O sentinela O que traz de sapiência lhe permite caminhar pela vida com a independência que nasce da dependência que outros lhe destinam. Não é o seu nariz meio empinado, o olhar acabrunhado e os poucos fios de cabelos brancos que fazem com que as outras pessoas o respeitem tanto. Ele sabe proclamar delícias com a mesma malícia que deflagra as suas batalhas, pessoais ou coletivas. Tem o charme dos que pouco falam, e que remexem os ouvintes por dentro com alguns pares de palavras bem colocadas. Ele é sábio de um jeito convencido, porque, homem, adora como as mulheres o observam, enquanto ele ensina aos súditos a se livrarem das culpas cultuadas durante a trajetória de suas vidas. Nasceu pobre de um jeito que não só fazia doer sua barriga, tamanha era a fome, mas também encrespava o olhar. Nasceu só de mãe, porque o pai desapareceu na vida, assim que soube da sua chegada. Aos doze anos, ele acreditava completamente que morreria aos treze, chegando mesmo a fazer uma vaquinha com os vizinhos para encomendar um caixão. A mãe vivia bronqueada com ele, porque enquanto ela se virava com bicos por aí, o moleque só fazia contabilizar as despesas do funeral, deixando de lado até as tarefas da escola. Mas há quem diga que, no dia do aniversário de treze anos do menino, a mãe chorou descontroladamente ao ver que ele não morrera, porque, sem saber como, no dia seguinte teria de botar comida para dois na mesa. Desapontado com a morte, que o abandonara sem dar pistas, ele passou a se vangloriar da vida, mas só de raiva, porque queria se vingar da morte. Assim, começou a falar pelos cotovelos sobre como se viver plenamente. Vez ou outra, ele ajudava o zelador de um prédio, duas quadras pra lá da sua casa, com pequenas tarefas. Foi o zelador que, comovido com a forma como o menino comentava a vida, emprestou-lhe um livro de autoajuda. Da leitura do livro à publicação de um de sua autoria foi apenas uma década. As pessoas escutam o que ele tem a dizer, embriagadas pelo ritmo que ele coloca nas palavras, com a forma como contempla importâncias. Adulto, mas ainda carregando o rancor pela morte que não veio quando ele esperava, aprendeu que pode sobreviver à vida ensinando aos outros como domesticá-la. Então, o faz com a ousadia de quem não se importa com ela, sem prezar pelo ritmo de cada um, ostentando a imagem de homem que tem o poder de mudar aquilo que desconhece completamente. Apesar de hoje dormir em macios lençóis, de há muito tempo não lhe faltar o que comer no jantar, a mãe dele remói uma tristeza que lhe salta aos olhos. Pouco se falam, mas quando acontece, ela diz a primeira frase, e então ele inicia um monólogo, uma repetição escancarada de trechos dos seus livros de autoajuda. A vida dele é tatuada em uma rigorosa agenda. O máximo de rebeldia se dá nas noites de luxuria em algum hotel com mulheres de quem ele sequer deseja saber o nome. Todo charme despendido ao aconselhar outros sobre como devem levar as suas vidas, falta-lhe no trato com as suas amantes. Em momentos de reflexão, quando os assistentes já foram dormir, ele se lembra de que nunca soube como se aproximar daquela mulher de alma entortada pelo sofrimento, da mãe de quem ouvira, quando ainda era menino de tudo e mais de mil vezes, que a morte sim era o melhor para eles. E ele acreditou... Acreditou que morreria aos treze anos de idade, e até conseguiu o dinheiro do caixão para que ela não precisasse pagar por ele, porque não queria incomodá-la com o seu próprio infortúnio. Antes de cair num sono intranquilo, a mãe relembra o menino dormindo no chão de terra batida do barraco, sobre um cobertor verde feito os olhos dele. E do desespero que a consumia por não saber o que aconteceria com ele, se ela conseguiria cuidá-lo. E então, ela chora baixinho, relembrando o ontem do seu menino, que de certa forma, morreu aos treze anos de idade, quando decidiu que a vida nada mais era que uma fórmula, sem direito à ousadia de se sentir próximo à felicidade. Carla Dias