Nem Tudo no Amor é Prosa Valéria Santos do Rêgo Sim, me apaixonei por um pintor. Não era dos que seguiam os riscos de Van Gogh. Meu nêgo pintava paredes, mas era tão fogoso, e eu já tinha sessenta. Nessa idade a gente ajoelha e agradece quando um homem nota que por baixo das rugas ainda pulsa uma mulher. Em dois meses já morava comigo. Limpava o nariz com o dedo, comia de boca aberta e nunca lera Drummond. Mas quando a noite trazia aquele moreno pintado de branco nas tintas, eu guardava na estante os poemas e fazia versos gemidos. Minha filha reprovava o namoro. Já era casada, um português de Évora, lindo! Eu também já fora bonita, e meu pintor enxergava isso, não custava agradecer-lhe os carinhos pagando suas dívidas. Ele chegava espirrando suor, e eu na cozinha fedendo a alho. Era uma mão lavando a outra. Entrei numa academia de ginástica, na intenção de levantar as carnes. Juntei uma grana, a onda era botox. Fiz, ele vibrou. Também pedia uma coisa ou outra, que eu pagasse um curso de eletrônica, quero vencer na vida, te trazer mimos também. Viajamos pra Porto de Galinhas, andamos de bonde no Rio, esquiar no Chile não foi boa ideia, muito menos o vinho, prefiro cachaça, minha preta, e seguíamos vivendo. No meu aniversário, acordei disposta a caminhar. Deixei meu homem dormindo, os braços agarrados ao travesseiro, a pele de um moreno barro, os pêlos soltos no rosto. Um quitute! Voltei uma hora depois, com vontade de prazer. O corpo salgado do mar e do suor, mas meu pintor não estava na cama. O bilhete no travesseiro enrugou minha testa, amor, fui nadar um pouco. Era mentira, não podia ser. Eu viera agora das bandas do mar, a ressaca de agosto não pouparia nem os olhos de Capitu. O ciúme foi gerando perguntas, será a vizinha do terceiro andar? É bem-feita sem dúvida, homens gostam de rabo grande, o meu é murcho, mas aquela moça cheira cocaína. Talvez a Priscila da cobertura, aquelasim desperta ciúme, dezoito anos, viçosa, reúne uma turma bacana todo sábado, mas que nada, ela não olharia pra um pintor, o que meu nêgo poderia dizer que merecesse mais que um bom dia? Vou verificar, o pincel dele não escreve, mas nem tudo no amor é prosa. Senti já uma lágrima querendo descer, o telefone tocou, precisei atender com a voz embargada na garganta. Era minha filha, minha filhinha e o marido, juntos desejando feliz aniversário, mamãe, reservamos uma mesa no Restaurante Lusitano. Eu não teria fome, o vinho ia azedar no estômago, ai, minha vontade é pegar uma faca e cortar em pedaços a alma daquele pintor safado. Dessa vez chorei. Uma lágrima não pode cutucar a dor e dormir presa, eu precisava desaguar. Uma amiga avisara, ele vai comer todo seu dinheiro e eu fazia minhas graças, pelo menos me come, e você, bruxa velha, só conhece mesmo o pau da vassoura. Mas dentro de mim eu sabia, a juventude dele não traria a minha, isso é conversa de velha assanhada. Ai, Cristo, a punição da vida não é a ruga no rosto, é o desejo do corpo que não envelhece com a ruga. E eu sinto, eu sinto tudo como se ainda fosse menina. Ai, aquele homem me queima as entranhas, e essas lágrimas, se ao menos baixassem meu fogo. Já ia gritar quando senti uma mão pousando no meu ombro, era ele, feliz aniversário, querida. Entregou-me uma rosa vermelha junto com o que parecia ser... nossa, amor, que lindo, obrigada. Era um colar, nada muito caro, mas aquele presente teve o efeito de uma esmeralda. Está chorando, minha preta? Sim, mas já era de uma felicidade só possível depois de um grande susto. Aniversários me emocionam, amor. Pegou o meu queixo, suspendeu meu rosto ainda úmido, aproximamos as testas, a barba fez cócegas mas não ri, e ele disse te amo. Se era verdade não sei, nem quis saber. Não era frase de remoer ideias, o coração acolheu de bom grado e decidi que precisava mesmo era de um banho. Quer esfregar minhas costas, meu nêgo? Traga também o pincel.