PAPAI NÃO É PERFEITO Papai tinha dezenove anos quando aconteceu. Pumba! Um desmaio e pronto! A tal da trombose já tinha afetado para sempre uma parte do cérebro que comandava os seus movimentos. [...] O papai conta que a primeira reação da família foi de pena. Muita pena. Choraram, sofreram, e, em seguida, estenderam a mão com carinho. Dá para sentir que o pessoal gosta do meu pai de verdade. E, depois, tem os amigos. Bons amigos que o respeitam e o tratam como a pessoa normal que ele é. Esses amigos estendem a mão nos momentos difíceis dos nossos passeios, ao perceberem que a mamãe, sozinha, não vai conseguir dar apoio. Subindo e descendo trilhas para chegar em uma cachoeira. Subindo e descendo em barcos para conhecer uma ilha. Pulando riachos e pedras. Várias vezes vi gente interromper o passeio para esperar pelos meus pais, que sempre são os últimos da fila. Os homens, num gesto amigo, estendem os braços fortes como quem diz: "-- Venha, companheiro. Você não vai perder nadinha deste passeio. Chegará na cachoeira, na ilha, até na Lua, se depender de nós". Esses são os amigos de verdade. Outros esquecem os dois lá atrás e, se eles caírem, nem vão perceber. Mas meu pai não deixa de ir a passeios por causa dessas dificuldades ou dessas pessoas. Ele não só vai como curte pra valer. Ele adora o mar, o sol, a natureza inteira. Quando eu for maior, problemas assim vão desaparecer, pois farei questão de estender a mão para o meu pai e de carregá-lo no colo, se precisar. E quando eu penso como tratam meu pai, compreendo uma outra coisa. Fica mais fácil aceitar e conviver com o deficiente quando gostamos dele, quando existe o que a mamãe chama de laço. Um laço de amor, de amizade, de companheirismo. E é verdade. As pessoas que conhecem o papai gostam muito dele e o tratam de um jeito legal. Ele conquista todo mundo com a maior facilidade. Só que tem gente que foge desse tipo de laço como do diabo. Eles não sabem como é fácil e bom. Basta ser espontâneo, sincero e natural; o resto acontece sozinho. O que me aborrece nisso tudo é que certas pessoas só querem amigos perfeitos, campeões, fortes, bronzeados, bonitos, de dentes brancos. Parecem ter vergonha de ter amigos com um defeito qualquer, por menor que seja. Parece que têm medo de ser contaminados. Ou será que acham que deficiente dá muito trabalho? Ou, então, acham que não dá prestígio. Vai ver que é isso. [...] E existe mais. Muito mais. Com os poucos deficientes que conheço já dá para sacar que o ser humano "normal" é ruim da cabeça e do coração. É cheio de preconceito e não gosta de encarar o lado ruim da realidade. Mas, como diz o meu pai, esse lado também faz parte dela. Todos nós vamos ter que aprender a conviver com isso. O que ninguém percebe é que o maior deficiente é este mundo em que vivemos. O nosso planeta e seus habitantes estão precisando de uma revisão geral, sabia? Quer dizer, o planeta não tem culpa de nada. A revisão deve ser feita em algumas coisas estúpidas que o próprio homem inventou. É por isso que eu digo e repito: papai não é perfeito. Mas é exatamente isso que faz dele um grande herói! E isso agora me dá um tremendo orgulho! Papai luta, dia a dia, contra monstros invisíveis e jamais desiste, tamanha é a sua força. Seus grandes inimigos são coisas que parecem insignificantes para a maioria das pessoas, mas não são. São aquelas pequenas bobagens de que falei e que, somadas, dão um trabalhão: botões de camisas, laços de gravatas e sapatos, talheres, relógios, abotoaduras, fechos de malas, guarda-chuvas, abridores e tampas de latas e garrafas, embalagens de todos os tipos, escadarias, degraus de ônibus e milhões de tantas outras coisas feitas especialmente para seres "normais", que só de pensar a gente fica pirado. Papai é o herói de todas as horas. Vive, a todo instante, vencendo pequenas dificuldades que nós não enxergamos e que podem ser monstruosas para quem quer chegar sozinho a algum lugar e tem que conviver com um defeito físico. Papai luta e vence, com garra e confiança, uma luta sem fim. (Sônia Salerno Forjaz. *Papai não é perfeito.* São Paulo, FTD, 1994.)