UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CENTRO OESTE – UNICENTRO CURSO DE PEDAGOGIA – 3 PM – 2005 DISCIPLINA: FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA PROFESSORA: GIZELI TEXTO O4 1. Uma leitura da Educação Especial no Brasil Mônica de Carvalho Magalhães Kassar* Kassar. M. de C. M. Uma leitura da educação especial no Brasil. In: GAIO. r.; Meneghetti, R. G. K. (org). Caminhos pedagógicos da educação especial.Vozes,Petrópolis, 2004. p. 20-41 Não serão matriculados, e portanto não entrarão no sorteio: a) As crianças com idade inferior a 6 anos incompletos [...]; c) os que sofrem de moléstia contagiosa e repugnante [...]; e) os imbecis e os que por defeito forem incapazes de receber educação (Decreto-lei 1.216 de 1904 do Estado de São Paulo, apud Jannuzzi, 1995:41-2 – grifo nosso) O conjunto de leis de um determinado país pode ser concebido como forma de discurso e, como tal, está intimamente ligado à sociedade na qual se encontra imerso. Como parte de uma sociedade em movimento, os discursos se antagonizam e se completem. Nesse amaranhado podemos tentar buscar um fio que nos possibilite “olhar” aspectos da Educação Especial... No movimento dos sociedade as leis e as práticas sociais desenrolam-se, entremeados de modos de pensar e tendências filosóficas. Dentre muitos pensamentos presentes na sociedade brasileira, podemos identificar, desde fins do século XIX, a presença dos preceitos da ciência moderna ( observação, descrição e classificação), apropriados por vários campos do conhecimento, em meio a uma atmosfera de valorização das ciências naturais e de popularização das teorias evolucionistas1. O movimento da sociedade é explicado como parte de uma evolução “natural”. Esse modo de conceber o movimento social tem grande aceitabilidade no Brasil e, a partir do início do século XX, deixa de modo mais evidente suas contribuições nos rumos da educação brasileira, trazendo implicações na forma como entender e promover a educação especial. Portanto, a valorização do pensamento científico, presente na organização da sociedade brasileira mais incisivamente a partir do século XIX, penetra no discurso educacional de forma marcante, a partir do início do século XX. Sob a influência da valorização do conhecimento científico, tivemos na última metade do século XIX um período fértil de realizações no campo da educação no município da Corte brasileira, com a criação da Inspetoria Geral da Instrução Primária e Secundária do Município da Corte (1854), a reformulação dos estatutos da Academia de Belas Artes (1955), entre outros cf. Ribeiro, 1878). É exatamente nesse período que ocorre a fundação de duas instituições públicas para o atendimento de pessoas com deficiências2: o Imperial Instituto dos Meninos Cegos (atual Instituto Benjamin Constant1) em 1854, e Instituto dos Surdos-mudos (atual Instituto Nacional da Educação dos Surdos – Ines), em 1856. A implantação desses dois institutos pode ser considerada um ato isolado no que se refere à preocupação com a educação das pessoas com deficiências, pois nesse momento não há ainda nenhuma legislação educacional de âmbito geral, principalmente no que se refere à Educação Especial. O que temos é a Constituição Brasileira de 1824 registrando o “compromisso” com a gratuidade da instrução primária “a todos os cidadãos com a criação de colégios e universidades “onde serão ensinados os elementos das ciências, belas-letras e artes”. No entanto, o grupo de “todos os cidadãos” não incluía a massa de trabalhadores, que em sua maioria era escrava, e certamente também não dizia respeito às pessoas com deficiências. Já, na primeira Constituição da República a educação aparece dentre as incumbências do Congresso Nacional... Incumbe [...] ao Congresso [Nacional], mas não privativamente [...]. Animar o país ao desenvolvimento das letras, artes e ciências, bem como à imigração, à cultura, à indústria e comércio, sem privilégios que tolhem a ação dos governos locais. Criar instituições de ensino superior e secundário dos Estados (Constituição Brasileira de 1891, art. 35, parágrafo 2o e 3o ). E na “Declaração de Direitos”, que estabelece a laicização do ensino ministrado nos estabelecimentos públicos (parágrafo 6o do art. 72). Uma análise da legislação brasileira de 1891 aponta para a diminuta presença do Estado em relação às responsabilidades educacionais. Nesse contexto, diferentes regiões do país se organizam dentro das possibilidades existentes. Como exemplo, vemos um Decreto-lei do estado de Minas Gerais dispensando da freqüência às aulas o aluno nas seguintes circunstâncias: a)a falta de escola pública ou subvencionada num círculo de raio de dois quilômetros em relação às crianças do sexo feminino e de três para as crianças do sexo masculino; b) incapacidade física ou mental certificada pelo médico escolar ou verificada por outro meio idôneo; na incapacidade física se compreendem além das deformações ou enfermidades que fisicamente limitam para a freqüência, as moléstias contagiosas ou repulsivas; indigência, enquanto não se fornecer, pelos meios de assistência previstos neste regulamento, o vestuário indispensável à decência e à higiene; [...] d) a instrução recebida em casa ou estabelecimento particular (Decreto-lei 7970-A de 15 de outubro de 1927, apud Peixoto, 1981 – grifo nosso). Diante das poucas ações estatais em relação à Educação Especial inicia-se a implantação de instituições “privadas” especializadas no atendimento às pessoas com deficiências. Registros do Ministério da Educação (Brasil, 1975) apontam o Instituto Pestalozzi, criado em 1926 no Rio Grande do Sul, como a primeira instituição particular especializada brasileira. Como as instituições de caráter filantrópico atuais, a primeira Pestalozzi atendia parte de seus alunos através de convênios com instituições públicas. Segundo Mazzotta (1996: 42) esta instituição introduz no Brasil a concepção da “ortopedia das escolas auxiliares” européias. Tal concepção decorre da incorporação dos conhecimentos das ciências naturais pelas ciências humanas e da visão estritamente organicista da deficiência mental. Como ocorreu na Europa dos séculos XVIII e XIX, há a incorporação dos conhecimentos científicos e da idéia de modernidade racional no interior das instituições, consoantes com o discurso liberal3 da época. Podemos identificar o movimento de valorização do discurso “científico” na abordagem (ou “explicação”) de muitos problemas sociais. Lopes, em 1930, apresenta em seu artigo Menores Incorrigíveis três medidas de “profilaxia” à delinqüência: combater ao alcoolismo e a syphilis dos procriadores, evitação da união de indivíduos tarados e segregação e esterilização dos degenerados de acordo com o parecer de comissões técnicas (Lopes, 1930, apud Costa, 1976:45). Tanto a organização das instituições privadas especializadas no atendimento à Educação Especial, como a formação das primeiras classes especiais4, ocorre nessa atmosfera. As classes especiais públicas vão surgir pautadas na necessidade científica da separação dos alunos “normais” e “anormais” na pretensão da organização de salas de aula homogêneas, sob a supervisão de organismos de inspeção sanitária, a partir dos preceitos da racionalidade e modernidade. A prática de separação das crianças tem para a época, segundo Carvalho (1997), um caráter humanitário por ser proposto por uma pedagogia científica e racional. Essa pedagogia científica legitima-se por estar “fundada na natureza”. O discurso científico, as idéias de modernização e racionalização, características do movimento industrial das sociedades capitalistas, também tornam-se presentes nas propostas de organização educacional: A tentativa de agrupar crianças em classes homogêneas, [...] nada mais faz que obedecer a um princípio fecundo, encontrado na ordem do dia nos estabelecimentos industriais. Esse princípio é o da organização racional do trabalho, posto em evidência por W. Taylor, desde o fim do século [...]. O agrupamento dos alunos em classes homogêneas, segundo seu desenvolvimento mental, é, neste sentido, uma das combinações de organização racional do trabalho pedagógico (Helena Antipoff, 1930s, apud, 1995:43). Com o crescimento das cidades, que ocorre principalmente a partir da década de 1930 devido à industrialização, vemos também o crescimento da preocupação com a escolaridade da população. Tal preocupação está registrada na Constituição Brasileira de 1934, quando se estabelece, pela primeira vez, como competência da União, a incumbência de traçar as diretrizes da educação nacional (o que vai ocorrer em 1961)5, ao mesmo tempo em que fica estabelecida como competência da instrução pública em todos os seus graus. A educação é direito de todos e deve ser ministrada pela família e pelos poderes públicos... Assim é apresentada a responsabilidade sobre a educação na Constituição de 1934. Apesar do crescimento do número das escolas públicas iniciadas nesse período6, ainda é muito pequeno o número de crianças com deficiências matriculadas7. Na década de 1940, a Constituição Brasileira de 1946 explicita a proibição de cobrança de impostos a instituições de educação ou de assistência social “desde que suas rendas sejam aplicadas integralmente no país para os respectivos fins”. A educação passa a ser entendida como “direito de todos”, dada no lar e na escola, devendo inspirar-se nos princípios e idéias de solidariedade humana. Assim, em um país com poucas escolas, consequentemente, com poucas classes especiais e, ainda, com o “espaço” garantido pela legislação, é fundada, em 1954, na cidade do Rio de Janeiro, a primeira Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais – Apae, que segundo Silva (1995: 36) vai se desenvolve ocupando “o espaço vazio da educação especial como rede nacional”Silva, (1995: 36). A partir de iniciativas pessoais e privadas, esta instituição apresenta-se à sua fundação como “instituição privada que busca atender às necessidade da educação especial pública” (Silva, op. Cit.: 41 – grifo nosso), propondo-se à escolarização das crianças, que não estava ocorrendo de modo satisfatório da rede de ensino. A Apae é concebida tendo como parâmetro a organização da National Association for Retarded Children dos Estados Unidos da América, que consistia em uma associação de assistência às crianças excepcionais. Desde a criação da Apae há a preocupação de seguir um modelo de associação que se desenvolva em rede nacional, com a caracterização inicial de um “movimento” em prol da criança excepcional (cf. Silva, op.cit.). A preocupação de forma abrangente do Brasil em a Educação Especial ocorreu apenas em 1961, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB (Lei 4.024/61). Até essa data são organizadas campanhas como: Campanha para Educação do Surdo Brasileiro – Cesb em 1957, Campanha Nacional de Educação e Reabilitação dos Deficientes Visuais – CNERDV e, 1958 e Campanha nacional de Educação do Deficiente Mental – Cademe em 1960, que estavam subordinadas diretamente ao Ministério da Educação e Cultura - MEC e tinham como funções: a promoção, em todo território nacional, de treinamento, reabilitação e assistência educacional às pessoas com deficiências; a cooperação técnica e financeira com entidades públicas e privadas; e o incentivo de organização de cursos e entidades voltados a essa área. Quando, em 1961, a legislação brasileira explicita o compromisso com a Educação Especial na Lei 4.024, já existe no país uma organização considerável de caráter assistencial, quanto em algumas classes especiais públicas. Podemos apontar como fator que colaborou para a atenção dispensada à Educação Especial na LDB de 1961 o ingresso de parte da população economicamente menos favorecida à escolarização, decorrente do aumento crescente das escolas públicas em relação ao número de habitantes. A partir desse momento, evidencia-se a preocupação dos poderes públicos com os “problemas de aprendizagem” e com a Educação Especial propriamente. A LDB 4.024/61 vai tratar da Educação Especial em dois artigos. O art. 88 propõe o atendimento ao deficiente “dentro do Possível” na educação regular. Já o art. 89 garante apoio financeiro às instituições particulares consideradas eficientes aos critérios dos Conselhos Estaduais de Educação. O agrupamento dos alunos em classes homogêneas, segundo seu desenvolvimento mental, é, neste sentido, uma das combinações de organização racional do trabalho pedagógico (Helena Antipoff, 1930s, apud, 1995:43). Com o crescimento das cidades, que ocorre principalmente a partir da década de 1930 devido à industrialização, vemos também o crescimento da preocupação com a escolaridade da população. Tal preocupação está registrada na Constituição Brasileira de 1934, quando se estabelece, pela primeira vez, como competência da União, a incumbência de traçar as diretrizes da educação nacional (o que vai ocorrer em 1961)5, ao mesmo tempo em que fica estabelecida como competência da instrução pública em todos os seus graus. A educação é direito de todos e deve ser ministrada pela família e pelos poderes públicos... Assim é apresentada a responsabilidade sobre a educação na Constituição de 1934. Apesar do crescimento do número das escolas públicas iniciadas nesse período6, ainda é muito pequeno o número de crianças com deficiências matriculadas7. Na década de 1940, a Constituição Brasileira de 1946 explicita a proibição de cobrança de impostos a instituições de educação ou de assistência social "desde que suas rendas sejam aplicadas integralmente no país para os respectivos fins". A educação passa a ser entendida como "direito de todos", dada no lar e na escola, devendo inspirar-se nos princípios e idéias de solidariedade humana. Assim, em um país com poucas escolas, conseqüentemente, com poucas classes especiais e, ainda, com o "espaço"garantido pela legislação, é fundada, em 1954, na cidade do Rio de Janeiro, a primeira Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais - Apae, que segundo Silva (1995: 36) vai se desenvolve ocupando "o espaço vazio da educação especial como rede nacional"Silva, (1995: 36). A partir de iniciativas pessoais e privadas, esta instituição apresenta-se à sua fundação como "instituição privada que busca atender às necessidade da educação especial pública" (Silva, op. Cit.: 41 - grifo nosso), propondo-se à escolarização das crianças, que não estava ocorrendo de modo satisfatório da rede de ensino. A Apae é concebida tendo como parâmetro a organização da National Association for Retarded Children dos Estados Unidos da América, que consistia em uma associação de assistência às crianças excepcionais. Desde a criação da Apae há a preocupação de seguir um modelo de associação que se desenvolva em rede nacional, com a caracterização inicial de um "movimento" em prol da criança excepcional (cf. Silva, op.cit.). A preocupação de forma abrangente do Brasil em a Educação Especial ocorreu apenas em 1961, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB (Lei 4.024/61). Até essa data são organizadas campanhas como: Campanha para Educação do Surdo Brasileiro - Cesb em 1957, Campanha Nacional de Educação e Reabilitação dos Deficientes Visuais - CNERDV e, 1958 e Campanha nacional de Educação do Deficiente Mental - Cademe em 1960, que estavam subordinadas diretamente ao Ministério da Educação e Cultura - MEC e tinham como funções: a promoção, em todo território nacional, de treinamento, reabilitação e assistência educacional às pessoas com deficiências; a cooperação técnica e financeira com entidades públicas e privadas; e o incentivo de organização de cursos e entidades voltados a essa área. Quando, em 1961, a legislação brasileira explicita o compromisso com a Educação Especial na Lei 4.024, já existe no país uma organização considerável de caráter assistencial, quanto em algumas classes especiais públicas. Podemos apontar como fator que colaborou para a atenção dispensada à Educação Especial na LDB de 1961 o ingresso de parte da população economicamente menos favorecida à escolarização, decorrente do aumento crescente das escolas públicas em relação ao número de habitantes. A partir desse momento, evidencia-se a preocupação dos poderes públicos com os "problemas de aprendizagem" e com a Educação Especial propriamente. A LDB 4.024/61 vai tratar da Educação Especial em dois artigos. O art. 88 propõe o atendimento ao deficiente "dentro do Possível" na educação regular. Já o art. 89 garante apoio financeiro às instituições particulares consideradas eficientes aos critérios dos Conselhos Estaduais de Educação. Podemos dizer que ao propor atendimento "dentro do possível na rede regular de ensino, ao mesmo tempo que delega às instituições sob administração particular a responsabilidade de parte do atendimento, através da "garantia" de apoio financeiro, o Estado não se compromete em assumir a educação da população de crianças com deficiências mais severas. Pois não há em qualquer documento indicação de criação de serviços especializados na rede regular de ensino para atender a Educação Especial. Dessa forma, a distribuição de serviços que já ocorria, anteriormente à década de 1960, com a criação das Sociedades Pestalozzi e das Apaes por grupos privados (que se responsabilizavam pelo atendimento à clientela mais comprometida), e com a implantação das classes especiais públicas (que deveriam atender a população menos comprometida), é apenas normatizada em 1961. Ainda, como Mazzotta (1996) aponta, o Artigo 88 da LDB/61 pode ser interpretado como uma concomitância de "formas" de educação de modo que, não se adaptando ao sistema geral de educação, o excepcional deveria/deve ser enquadrado em um sistema especial de educação, entende-se que [...] as ações educativas desenvolvidas em situações especiais estariam à margem do sistema escolar ou "sistema geral de educação"(Mazzotta, 1996: 68). Mazzotta ainda diz que, quando o Estado se compromete na subvenção de toda iniciativa privada considerada eficiente aos Conselhos Estaduais de Educação, não se estabelece uma definição nas distribuições das verbas públicas, já que não fica esclarecida a condição de ocorrência da educação de excepcionais; se por serviços especializados ou comuns, se no "sistema geral de educação" ou fora dele (op. cit.: 68). Ainda, segundo Buffa (1979: 20), durante a tramitação da LDB/61, a discussão a respeito da responsabilidade do Estado em relação à educação já se faz presente, explicitada no conflito escola particular x escola pública. Mais especificamente, desde 1956 a idéia de descentralização da educação brasileira combina-se aos interesses privados. Em 1967, a primeira Constituição após o Golpe Militar de 1964 prevê o estabelecimento dos planos nacionais de educação e a Emenda Constitucional de 1969 estabelece a execução desses planos nacionais, assim como o dos planos regionais de desenvolvimento. A legislação sobre as diretrizes e bases da educação nacional também é revista. Desse modo, em 1971, a Lei educacional 5.692, em seu art. 1o, assume como objetivo geral da educação de 1o e 2o graus "proporcionar ao educando a formação necessária como elemento de auto-realização, qualificação para o trabalho e preparo para o exercício consciente da cidadania. Nesse contexto, a educação é vista como necessária para o progresso da sociedade, pois possibilita a adaptação do indivíduo em seu meio. Ainda no art. 9o da 5.692/71, podemos notar uma preocupação na caracterização da clientela de Educação Especial, que é definida como: alunos que apresentem deficiências físicas ou mentais, os que se encontrem em atraso considerável quanto á idade regular de matrícula e os superdotados (grifo nosso). Que leitura podemos fazer dessa definição? Que critérios estariam presentes para o estabelecimento dessa população? Uma das leitura possíveis é que a identificação da clientela da Educação Especial com os "problemas de aprendizagem" e "sociais", surgidos no ingresso da população economicamente menos favorecida à escola com expansão da rede pública, reitera a posição de descaso do serviço público em relação à população realmente com deficiências. Por essa especificação legal, é atribuído à Educação Especial a responsabilidade de atendimento de crianças sem, necessariamente, possuir qualquer deficiência, ou em outras palavras, torna-se legítima a transformação de crianças "atrasadas" em relação à idade regular de matrícula em "deficientes mentais educáveis "ou "treináveis"8. o sucesso ou fracasso dessa clientela é nesse contexto, respaldado pelo discurso das "potencialidades inatas". Podemos verificar como uma das conseqüências posteriores dessa política de atendimento os dados fornecidos pelo Ministério da Educação no ano de 1981, quando 17,1% de alunos que recebiam atendimento especializado encontravam-se em instituições administradas pelo Estado (municipal, estadual ou federal), contra 82,9% em instituições particulares9. Em 1988, novos dados fornecidos pelas Estatísticas do Ministério da Educação mostram uma alteração nas porcentagens, contudo, ainda confirmando a mesma divisão entre atendimentos: 21,7% de alunos em instituições sob administração pública, e 78,2% em instituições privadas10. Durante o período de reconstrução democrática, é promulgada, em 5 de outubro de 1988, a Constituição Federal e são discutidos o Estatuto da Infância e Adolescência - ECA e a Nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. A Constituição Federal traz como marca o movimento de descentralização. Esse processo caracteriza-se por um redimensionamento das competências entre a federação, estados e municípios, propiciando um afastamento gradativo do poder federal, a partir da valorização dos poderes municipais. Nesse sentido, é prevista a criação de Conselhos Municipais nas áreas sociais, que possibilitem a participação da sociedade nas decisões locais. No contexto de mobilização e participação social, o texto Constitucional é aprovado, concebendo a educação como "direito de todos e dever do Estado e da família". Em relação à Educação Especial, a Constituição de 1988 continua priorizando a atendimento do aluno com deficiências no ensino regular e explicitado a participação das instituições particulares. Ao mesmo tempo em que continuamos a ver a forte presença do setor privado nas propostas de atendimento, a nova Constituição prevê a garantia de salário mínimo às pessoas portadores de deficiências e idosos que não possuírem meios a própria manutenção (art. 203, inciso V). Pode-se dizer que as contradições presentes na Constituição de 1988, na qual podemos identificar avanços e recuos do Estado frente às questões sociais, são, antes de tudo, registros do movimento da própria sociedade, formada por setores antagônicos, onde acaba por prevalecer as estratégias de conciliação. Também como a apoio das associações e profissionais da área é aprovado o Estatuto da Criança e do adolescente - ECA, ou Lei 8069/90, que vem substituir o Código de Menores, garantindo proteção e direitos às crianças e aos adolescentes. Para a implementação plena dessa Lei é prevista a implantação de Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, nos níveis federal, estadual e municipal, com ampla participação popular. Quanto à atenção dada à criança e ao adolescente com deficiência, o ECA segue a mesma linha da Constituição Federal de 1988. Já a Nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação - Lei 9.394/96 - tem suas discussões iniciadas na comissão de educação da Constituição Federal de 1988, com o primeiro projeto apresentado no mesmo ano, dois meses depois da promulgação da Carta constitucional em outubro. No conflito das forças sociais podemos buscar indícios para atender o texto que vai se estabelecendo durante os oito anos de debates em sua tramitação. A LDB apresenta a educação como "dever da família e do Estado". Podemos dizer que há, nesse momento, uma inversão de papéis do Estado e da Família diante da responsabilidade do oferecimento da educação. Em outras palavras, parece haver no texto da legislação educacional um certo "distanciamento" do Estado em relação a esse "dever". Uma questão "apenas" de retórica? O "distanciamento" do texto vai ganhar sentido especial quando contextualizarmos a legislação no movimento da sociedade... Desde o início da década de 1990 há a presença marcante de um discurso "modernizador" do Estado, que se torna mais evidente no governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992). A partir desse momento, as instituições particulares assistenciais ganham o estatuto de "Organismos (ou Organizações) Não-Governamentais" (as "ONGs") e a presença dessas associações na sociedade é apresentada como uma necessária e fundamental "parceria" para o desenvolvimento do país: É muito difícil pensar na integração do portador de deficiência como processo independente das articulações e parcerias a serem estimuladas dentro do MEC, com outros Ministérios, com Organizações Não-Governamentais Especializadas, com a sociedade civil e, até, com organismos internacionais (Secretaria de Educação Especial, 1994). Com o governo Fernando Henrique Cardoso há um movimento explícito de reorganização do papel do Estado, principalmente a partir da elaboração do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (Maré, 1995). Nesse documento, no qual vem se pautando a organização do país, o Estado abandona o papel de executor ou prestador direto de serviços, mantendo-se, entretanto, no papel de regulador e provedor ou promotor destes, principalmente dos serviços sociais como educação e saúde... (Maré, 1995: 12). Na posição assumida atualmente pelo Governo Federal, as instituições assistenciais passam a se concebidas como "Instituições Públicas Não-Estaduais" e são conclamadas a assumir a responsabilidade dos serviços sociais. Voltando à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, podemos dizer que, por toda a significação que uma legislação tem no movimento da sociedade, é importante perceber que para se discutir as possibilidades de atendimento educacional às pessoas com deficiências não devemos nos restringir apenas ao capítulo V, Tendo em mente esse aspecto, verificamos que na LDB de 1996, seguindo os preceitos apresentados pela Constituição Federal, o acesso ao ensino fundamental é garantido como "direito público subjetivo". O texto ainda explicita que esse ensino pode ser exigido do poder Público pelo cidadão, grupos de cidadãos, associação comunitária, entidade de classe ou outra legalmente constituída, bem como pelo Ministério Público (art. 5o ). Isso significa que o cidadão tem não só garantido esse direito como, também, a possibilidade de exigi-lo, de forma legal, individualmente ou por decisão política coletiva. Especificamente quanto ao atendimento das pessoas com deficiências, a Lei 9.394/96 propõe "o atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com necessidades especiais, preferencialmente na rede regular de ensino"(art. 4o , III) e prevê, pela primeira vez, a existência de serviços de apoio especializado na escola regular (art. 58, &1o), abrindo a possibilidade ao atendimento em classes, escolas ou serviços especializados, quando não for possível a integração na classes comum. Explicita, também, a oferta de Educação Especial como dever do Estado, na faixa etária de zero aos seis anos, dentro da previsão das mudanças que devem ocorrer na educação infantil (art. 58, & 3o). Quanto à situação das instituições, a Lei reafirma o compromisso de subvenção às instituições especializadas assistenciais, prevendo o estabelecimento de critérios para sua caracterização. No entanto, apesar da subvenção, a nova legislação anuncia como "alternativa preferencial" a ampliação do atendimento do deficiente na própria rede pública de ensino, independente de apoio previsto à iniciativa privada (art. 60, parágrafo único). A partir dessa breve apresentação da Educação Especial em nosso país, podemos traçar algumas análises. A história da Educação Especial vem desenvolvendo-se na história de nossa sociedade com seu movimento contraditório. Atualmente encontramos a presença de um discurso que exalta a formação de associações privadas para assumir as funções sociais. Se concebemos o acesso ao ensino como um direito público subjetivo, podemos dizer que a presença das instituições assistenciais, responsabilizando-se por servi;cós de atendimento de setores educacionais, através de ações (assistenciais/filantrópicas/comuni tárias) de "parceria", colaboram para o afastamento gradativo do Estado em Relação à responsabilidade sobre essa obrigação. Como no lembra Ferreira & Nunes (1997: 18), a evolução da Educação Especial brasileira está muito ligada às instituições de natureza privada e de caráter assistencial, que acabam por assumir um caráter supletivo do Estado na prestação de serviços educacionais, e uma forte influencia da definição das políticas públicas. Ou, ainda, como analisa Jannuzzi (1996; 1997), a presença das instituições assistenciais nos serviços de atendimento ca Educação Especial caracteriza-se como uma verdadeira simbiose entre o setor público (entendido aqui como público estatal) e o setor privado. O movimento recente da sociedade brasileira tem, por um lado, apontado para o fortalecimento dessas instituições, com o discurso constante das “parcerias” com a caracterização dessas instituições como “públicas não-estatais”. Mas, por outro tem levado à defesa de um discurso “inclusivo”, desde a elaboração do Plano Decenal de Educação Para Todos, em 1993, reforçado pela promulgação da LDB em 1996. De certo modo, na história da Educação Especial o atendimento à população com deficiências mais severas revela-se, apenas, quando enfocamos as “margens”da Educação, através da presença das instituições assistenciais, das “parcerias” do atendimento entre setores público e privado, visto que não há ciências mais graves pelo serviço público, especialmente na setor educacional. A discurso assistencialista presente historicamente na educação brasileira vem ganhando outras versões. Atualmente ele aparece como consoante ao discurso da democracia, uma vez que, o envolvimento da sociedade na formação de associações civis é visto como fundamental para o seu estabelecimento: A participação dos cidadãos é essencial para consolidar a democracia e uma sociedade civil dinâmica é o melhor instrumento de que dispomos para reverter o quadro da pobreza, violência e exclusão social que ameaça os fundamentos de nossa vida em comum (Miguel Darcy de Oliveira. Prefácio. In: Fernandes, 1994). O problema de acesso aos direitos construídos historicamente pelas sociedades, cujo cerne está na organização econômica de um país, tem sido abordado hoje como uma responsabilidade da sociedade, uma questão de “boa vontade” e de filantropia. Talvez caberia perguntar: qual o significado da luta pela educação inclusiva – ou da luta pela educação para todos – diante do movimento atual de valorização das instituições “públicas não-estatais”? Atualmente não encontramos mais leis ou decretos proibindo explicitamente a matrícula de crianças com deficiências nas escolas como nos exemplos citados acima, do início do século XX (Decreto-lei 1.216 de 1904 do Estado de São Paulo ou Decreto-lei 7.970-A de 15 de outubro de 1927 do estado de Minas Gerais). No entanto, a apresentação da possibilidade de adequação das escolas aos alunos com deficiências apareceu apenas em 1996. Imersa nas contradições do movimento social, a explicitação, pela Lei de Diretrizes e Bases de 1996, da possibilidade de implantação de serviços mais especializados na própria rede regular de ensino, juntamente ao anúncio da “alternativa preferencial” de ampliação do atendimento ao deficiente na própria rede pública pode significar a possibilidade de atendimento de pessoas com deficiências mais graves nas escolas do país e a efetivação da educação como direito público subjetivo. Para que isso seja possível, ressaltamos a importância dos Conselhos Estaduais e Municipais de Educação, no que se refere à efetivação da conquista desse direito. * Doutora em Educação, professora do Departamento de Educação da universidade Federal do Mato Grosso do Sul – Brasil, autora dos livros Ciência e senso comum no cotidiano das classes especiais e Deficiências múltiplas e Educação no Brasil – Discurso e Silêncio na história de sujeitos, além de diversas publicações em revistas científicas. Tem participado de diversos congressos, discutindo e apresentando temos sobre a Educação Especial. 1. Como exemplo, citamos as teorias desenvolvidas por Lamarck (1744-1829) e Darwin (1809-1882) 2. Apesar de bastante discutível, usaremos o termo “pessoas com deficiências”, por considerarmos não haver ainda outra terminologia mais adequada. 1