Veja 14/07/99 Famosos e difíceis Pesquisa revela como grandes nomes da História lidavam com as doenças e reagiam aos médicos André Viana Montado em seu cavalo baio, Napoleão assistiu à derrota do glorioso Exército francês pelas tropas inglesas comandadas pelo duque de Wellington na fatídica Batalha de Waterloo, em 1815, na Bélgica. O sofrimento moral de ver esvanecer as derradeiras esperanças de retorno aos dias de glória e conquista era agravado por um sofrimento mais íntimo, conhecido de poucos: cavalgar era um tormento, por causa das hemorróidas. Mas ai do médico que ousasse tocar em Napoleão. Os doutores nunca mereceram a confiança do imperador. "A medicina é a ciência dos assassinos", disse, certa vez, ao médico-chefe dos soldados franceses, o barão René Desgenettes. "Que definição o senhor daria para a ciência dos conquistadores?", retrucou o médico, com sabedoria. Após sua morte, em 5 de maio de 1821, exilado numa ilha, descobriu-se que Napoleão fora envenenado. De início, a suspeita recaiu sobre seu médico, o corso Francesco Antommarchi. Anatomista que pouco entendia de doenças, Antommarchi irritava profundamente Napoleão. Era recebido com cusparadas e xingamentos. "Eu lhe daria meu cavalo para dissecar, mas não lhe permitiria tratar do meu pé", insultou o imperador sem império. Passados 159 anos da morte de Napoleão, em 1980 revelou-se que o doutor não tinha nenhuma culpa. O papel de parede do quarto de Napoleão continha arsênico o suficiente para causar o envenenamento. As hemorróidas, o papel de parede assassino e outras histórias sobre as inúmeras batalhas de Napoleão ao longo da vida contra os médicos e as doenças - além de cálculos na bexiga, crises de náuseas e vômito, dificuldade para respirar - estão contadas em A Assustadora História de Pacientes Famosos e Difíceis, do médico inglês Richard Gordon, publicado pela editora Record. Gordon é autor também de A Assustadora História da Medicina, que permaneceu durante 39 semanas na lista dos livros mais vendidos de VEJA, em 1996. Para relatar os tratamentos médicos a que foram submetidas 31 personalidades entre reis e rainhas, presidentes e estadistas, escritores e artistas, o historiador debruçou-se sobre uma extensa bibliografia - registros médicos, enciclopédias, biografias, jornais e revistas. Examinar personagens históricos por meio de seus prontuários médicos tem a vantagem de permitir uma espiada na intimidade, além de qualquer possibilidade de manipulação propagandística. É o caso de Adolf Hitler. Nenhum gesto ou referência ao ditador eram permitidos na Alemanha nazista sem a aprovação oficial. O relatório de seu médico, datado de 2 de junho de 1943, ainda assim, lega às gerações futuras a informação não autorizada da existência de laxante nas fezes do führer. O ditador acreditava no efeito benéfico dos purgantes. Raras vezes a pompa de um grande homem sobrevive ao escrutínio de seus criados e médicos, testemunhas de suas mazelas íntimas. Dois anos atrás, o chinês Li Zhisui, médico pessoal de Mao Tsé-tung durante 22 anos, publicou um devastador retrato do grande timoneiro da revolução chinesa. O Camarada Mao, contou o doutor Li, jamais tomava banho ou escovava os dentes e recusou-se a ser tratado de uma doença sexualmente transmissível apesar de saber que estava infectando dezenas, talvez centenas de amantes. Hitler, nos conta a ficha médica, foi um paciente complicado - e patético, até. Não se submetia a radiografias - "Com que direito um alemão poderia ver o que havia dentro do führer, se nenhum estadista da Europa tinha esse privilégio?", descreve Gordon. Precisava usar óculos, mas não o fazia em público. Considerava um sinal de fraqueza. Por isso, seus discursos eram escritos com letras garrafais. Do contrário, não conseguiria ler. Nas consultas médicas, recusava-se a tirar a roupa. Hitler e as anfetaminas - Quando finalmente se despiu, ficou nu para um dos grandes charlatães da época, Theo Morell, cujo sucesso consistia em exagerar os sintomas imaginários dos pacientes e tratá-los com remédios inócuos. Em 1941, Morell começou a dar injeções de vitaminas no ditador todas as manhãs. Nos músculos glúteos, dizem os registros. A partir de 1943, o doutor acrescentou um novo ingrediente ao coquetel de vitaminas. "Eu estava completamente esgotado, depois da injeção que ele me aplicou me senti novo", contou Hitler a Benito Mussolini, em 1944. Não era para menos. Na seringa, anfetamina, um estimulante potente que pode causar dependência. Então recém-descoberta, a anfetamina era usada pelo Exército alemão para livrar os soldados do sono e da fome. As injeções se multiplicavam à medida que a sorte do Exército alemão piorava. Chegaram a cinco injeções diárias e a dose aumentou oito vezes. A manipulação das condições de saúde dos governantes não é exclusividade das ditaduras. Presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt foi internado 29 vezes entre 1941 e 1945, cada vez com um nome diferente. Jamais uma só notícia a respeito foi publicada na imprensa americana. Acometido de poliomielite aos 39 anos, Roosevelt governou numa cadeira de rodas - mas nunca foi fotografado de modo a revelar sua condição de aleijado. A rainha Vitória, que ocupou o trono inglês durante 64 anos no auge do império e que passou à História como um sinônimo de austeridade pessoal, ajudou a popularizar o uso do clorofórmio como anestésico usando-o no nascimento do oitavo de seus nove filhos, o príncipe Leopoldo, em 1853. A rainha recebeu 1 onça de clorofórmio, pingada num lenço ao longo de 53 minutos, o suficiente para mantê-la dopada durante o trabalho de parto. "Abençoado clorofórmio, delicioso ao extremo", elogiou Vitória. Como Napoleão, a rainha inglesa não tinha apreço por médicos. Não desgrudava, no entanto, do doutor James Reid, que "a adulava generosa e valorosamente, com ilimitada devoção profissional, em troca de uma remuneração miserável". Ela tinha consulta com ele todos os dias, sempre por volta da meia-noite. Por precaução, caso a rainha necessitasse de medicação para atravessar a noite. Não foram raras as vezes em que acessos de indigestão, flatulência e cólica mantiveram Reid na cabeceira da cama de Vitória até o dia amanhecer. Paciente difícil, mal-humorada, a rainha não deu sossego ao médico nem quando ele partiu em viagem de núpcias, em 1899. "Os intestinos estão funcionando bem", comunicou-lhe numa carta. Pior o tratamento - Por meio da descrição das doenças e tratamentos aos quais eram submetidos os famosos, Gordon traça um quadro pouco lisonjeiro da evolução da prática médica. A medicina do século XVII maltratou o rei da Inglaterra Carlos II (1630-1685) até a morte. Como não se conheciam as causas das doenças, a maneira habitual de expulsar o mal - fosse ele qual fosse - era sangrar o paciente. Na manhã de 2 de fevereiro do ano de sua morte, no castelo de Whitehall, Carlos II acordou feliz ao lado de uma de suas amantes. Minutos depois, começou a sentir tonturas e a ter convulsões. Em quatro dias, os médicos tiraram 1 litro de sangue do rei - pelas veias dos braços e jugulares. Incrementaram a limpeza do organismo lavando os intestinos reais com a ajuda de uma "pesada seringa de latão usada para enemas, com um bico de 9 centímetros como se fosse uma mangueira de incêndio". Em vão. O último recurso foi um xarope com raspas de crânio humano. No dia seguinte, Carlos II estava morto. Martinho Lutero (1483- 1546), o pai da Reforma Protestante, foi desenganado pelos médicos em 1537, depois de seis dias de retenção urinária. Lutero pediu para morrer em casa, a 240 quilômetros de distância. Quinze quilômetros de sacolejo numa carruagem, e ele expeliu na urina seis pedras, uma delas do tamanho de um feijão. Assim foi nos quinze dias de viagem. Uma parada aqui, uma pedra ali. Atualmente, uma das recomendações para o tratamento de pedras nos rins é a prática regular de exercício físico. O corpo em movimento favorece a saída dos cálculos. História demasiadamente antiga? Pois no final do século passado um médico recomendou ao escritor Marcel Proust, pai do modernismo francês, que procurasse um sanatório suíço, onde lhe tirariam o hábito da asma, "uma condição neurótica". Nos anos 20, o pai da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939), já acometido de um câncer na boca, foi submetido a vasectomia para estimular o rejuvenescimento dos hormônios dos testículos. Uma insensatez. Adolf Hitler era convicto de que sua aparência deveria servir de exemplo para o povo alemão. Apavorado com a perspectiva de engordar, ele costumava tomar doses cavalares de laxantes e aplicar uma solução de camomila pelo reto. Até se entregar aos cuidados do doutor Morell, um notório charlatão, Hitler deu muito trabalho aos médicos. Recusava-se a tirar a roupa e não permitia radiografias - mesmo vestido. A partir de 1943, o ditador nazista passou a receber injeções de anfetaminas, que aumentavam sua disposição. Em 4 de fevereiro de 1915, a atriz francesa Sarah Bernhardt escreveu ao médico Pozzi, a quem ela se referia como "doutor Deus", pedindo que ele lhe amputasse a perna direita. Ela sofria de dores horrorosas, em decorrência de uma queda alguns anos antes numa visita ao Rio de Janeiro. "Eu lhe suplico, corte-me a perna um pouco acima do joelho. (...) Com uma boa perna de pau poderei dar recitais de poesias e até realizar turnês de conferências. Estarei livre para ir e vir sem dor", escreveu Sarah. O médico achava que não era caso para uma amputação e só cedeu quando a diva do teatro ameaçou suicídio. Operação marcada, Sarah mandou o seguinte telegrama aos amigos: "Feliz demais. Minha perna será cortada amanhã". A atriz ainda viveria mais oito anos, feliz com sua perna de pau. Durante a Guerra da Independência dos Estados Unidos, em 1776, George Washington comandou as tropas americanas com dentes postiços amarrados com arame aos poucos naturais que lhe restavam. Depois da queda do último, em 1796, ele passou a usar dentadura. Feito de chumbo, o aparelho era muito pesado e nada anatômico. Havia ainda um par de molas para manter as arcadas separadas, que contraía a musculatura em torno de sua boca num permanente esgar. No mais famoso retrato do presidente americano, aquele estampado na nota de 1 dólar, o retratista preferiu "suavizar" a aparência de Washington trocando a dentadura por chumaços de algodão. A rainha Vitória, da Inglaterra, sempre teve tendência para engordar. Ao assumir o trono, aos 18 anos, em 1837, media menos de 1,50 metro e pesava 55 quilos. Quando seu médico particular, James Reid, lhe recomendou dieta, ela aceitou. Mas impôs uma condição: que o novo cardápio fosse acrescido a seus hábitos alimentares. No fim da vida, a rainha sofria terríveis crises de indigestão, quando era então acometida de cólicas e flatulência. Seus arrotos são famosos. Para ela, médicos estavam socialmente abaixo dos oficiais de cavalaria e não mereciam confiança. Tinha problemas de vista, mas recusava-se a usar óculos. Tinha os dentes ruins, mas preferiu arrancar todos a se tratar. Sofria de hérnia, mas o doutor Reid nunca soube. Ele jamais a vira nua. Copyright © 1999, Abril S.A. Abril On-Line