O estigma das epilepsias O objetivo deste trabalho é analisar o impacto e o estigma causado pelas epilepsias em um contexto mundial e como os pacientes reagem a ele. Em ordem decrescente de importância, os portadores de epilepsia relatam distúrbios psicológicos, solidão, desajustamento e percepção do estigma; esses fatos parecem contribuir significativamente para os desajustes de ordem social. INTRODUÇÃO 1- Epilepsias Nos Estados Unidos, aproximadamente 2.000.000 de pessoas têm epilepsia, tornando a prevalência dessa síndrome semelhante a do diabetes mellitus e todo ano são diagnosticados pelo menos 100.000 casos novos. Tanto a prevalência quanto a incidência das epilepsias são muito mais altas entre as pessoas idosas. A maior prevalência nas regiões em desenvolvimento provavelmente está relacionada a fatores como: desnutrição calórico-protêica, atendimentos inadequados da gestante e parturiente, infecções, convulsões febris e traumatismos crânio-encefálicos. A neurocisticercose foi identificada como a causa em quase 1/4 de todos os casos novos de epilepsia diagnosticados no Equador, é a causa mais freqüentemente identificada de epilepsia no Brasil e a principal causa de epilepsia de início tardio no México. O efeito de qualquer doença é identificado por vários fatores, incluindo os aspectos biológicos, intervenções médicas disponíveis e também pelas atitudes e reações da sociedade. O primeiro passo na avaliação de um paciente com possível diagnóstico de epilepsia é determinar se o paciente apresenta ou não crises epilépticas, pois um diagnóstico errôneo pode levar a conseqüências negativas para o paciente, devido a desvantagens sociais não partilhadas por pacientes portadores de outras doenças crônicas, como por exemplo, a hipertensão arterial. Conviver com crises epilépticas envolve mais do que o ajustamento às intermitentes perdas de consciência, tratamento a longo prazo e supervisão médica. Historicamente estigma e discriminação têm sido relacionados às epilepsias, e seus portadores têm que aprender a lidar com graus variáveis de antipatia pública à sua condição clínica. Muitos dos problemas psicossociais associados às epilepsias são freqüentemente causados pela discriminação pública. 2- Estigma e Epilepsia Os gregos criaram o termo estigma para se referir a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar algo de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava. Atualmente, o termo é amplamente usado de uma maneira um tanto quanto semelhante ao sentido literal original, porém é mais aplicado à própria "desgraça" do que à sua evidência corporal. Por estigmatizado entende-se a situação do indivíduo que não está apto para a aceitação social plena. Os portadores de epilepsia se sentem tão preocupados com a estigmatização que os sentimentos de desvalorização da sociedade se tornam interiorizados, gerando dependência a qual também pode ser decorrente da superproteção. A interiorização do estigma pode eventualmente levar a alterações comportamentais e maiores dificuldades de ajustamento. A etiologia do estigma é complexa e multifatorial, podendo decorrer da atitude dos pais frente ao diagnóstico de epilepsia ou da superproteção. A gravidade da epilepsia, conceituada pela freqüência e gravidade das crises, e a personalidade do indivíduo também podem afetar as respostas para qualquer experiência direta ou indireta de discriminação. O impacto psicossocial das epilepsias tem sido bem documentado e seus portadores relatam impacto significativo do seu diagnóstico e tratamento na dinâmica familiar, com baixa auto-estima e reduzidas oportunidades de emprego, com níveis altos de ansiedade e depressão que aumentam com o aumento da freqüência de crises. As epilepsias têm sido consideradas "condições estigmatizantes por excelência" e seus portadores relatam sentimentos de estigma ou discriminação baseados apenas em seu rótulo. Embora a estigmatização seja difícil de ser medida, pode variar em diferentes regiões, tende a ser um fator importante nos países em desenvolvimento, tendendo a ser mais grave nesses países. Estudos de qualidade de vida entre os portadores de epilepsia mostraram comprometimento relacionado ao estigma, decorrente principalmente do baixo nível sócio-econômico e educação em classes especiais. Baker et al. (2000) estudaram o estigma em 15 países europeus e relataram que 55% dos pacientes avaliados se sentem estigmatizados, sendo que 18% deles se sentem altamente estigmatizados; os maiores níveis de estigmatização foram relacionados com preocupação, sentimentos negativos, doença crônica, traumatismos e efeitos adversos das medicações. Em algumas sociedades, especialmente na África, as epilepsias ainda são consideradas contagiosas, as crianças são mantidas em casa, não freqüentam escolas, não conseguem fazer amigos e, mais tarde, não conseguem casar-se e/ou encontrar trabalho. Estudos recentes têm mostrado que os portadores de epilepsia com crises bem controladas ou em remissão, são menos sujeitos aos sentimentos de estigma se estiverem livres de crises por pelo menos 6 meses até 2 anos. Entretanto, mesmo pacientes com crises raras podem apresentar altos níveis na escala de estigma quando comparados aos pacientes livres de crises. Também existe uma relação significativa entre aderência à medicação e sentimentos de estigmatização, indicando a importância da avaliação do estigma também para o tratamento dos portadores de epilepsia. Em ordem decrescente de importância os pacientes com epilepsia relatam: distúrbios psicológicos, solidão, desajustamentos e percepção do estigma, que parecem contribuir significativamente para o preconceito e prejuízo do funcionamento psicossocial. Os portadores de epilepsia estão sujeitos a atitudes de rejeição social desde a infância e, muitas vezes, tais atitudes se iniciam no próprio grupamento familiar, com restrições à freqüência escolar e à participação em atividades coletivas próprias da idade. O trabalho é um importante fator para o ajustamento psicossocial. O desemprego e subemprego são muito mais freqüentes em pacientes epilépticos e a resistência do empregador parece ser o principal fator responsável. Embora seja descrito que mais de 80% dos pacientes epilépticos estão aptos para o trabalho e que os índices de acidente de trabalho, absenteísmo e produtividade não diferem da população em geral, a dificuldade de encontrar e manter empregos tem sido relatada como a maior causa de desajustes para os portadores de crises epilépticas, inclusive para aqueles com crises controladas. Além da freqüência de crises, outros aspectos associados relativos ao ajustamento profissional devem ser avaliados, quais sejam: distúrbios mentais e comportamentais, profissões de risco, ansiedade e preconceito dos pacientes, empregadores e colegas de trabalho. Os problemas associados às epilepsias, como dificuldades pessoais e de relacionamento interpessoal, e não a própria epilepsia é que parecem estar mais relacionados com as dificuldades profissionais. A falta de informação da população em geral pode afetar diretamente a vida dos portadores de epilepsia em qualquer faixa etária. Tem sido relatado o preconceito que as crianças epilépticas enfrentam com os pais de crianças não epilépticas, que desaprovam que seus filhos estudem ou brinquem com elas. Em nosso meio, a falta de conhecimentos básicos sobre as epilepsias é também observada na maioria dos professores. O trabalho realizado pela Associação Brasileira de Epilepsia (ABE), promovendo a educação dos professores e ressaltando a importância da atitude positiva frente às epilepsias, é essencial e pode ajudar a melhorar a qualidade de vida e o tratamento médico dos pacientes. Embora a maioria das crianças portadoras de epilepsia freqüente escolas, pode acontecer dificuldades escolares. Considere-se, além disso, que a escolaridade inadequada geralmente está relacionada a profissões não-especializadas e subempregos. Recentemente, tem crescido o interesse nos aspectos econômicos das epilepsias. Se por um lado nos EUA existem muitas redes de televisão que transmitem sagas de pacientes que se submeteram a lobectomia temporal ou mesmo hemisferectomia, a grande maioria de pacientes de outros países não têm acesso à cirurgia, ressonância magnética cerebral, novas drogas e, muito freqüentemente, acesso às drogas anti-epilépticas clássicas. Por exemplo, o Paquistão conta com 24 laboratórios de EEG, 20 tomógrafos e 4 aparelhos para realização de ressonância magnética para mais de 120 milhões de pessoas; apenas 13% dos pacientes etíopes são tratados com drogas anti-epilépticas e, de um modo geral, entre 80 a 98% dos pacientes nos países em desenvolvimento estão sem tratamento. O custo dos medicamentos anti-epilépticos, especialmente as drogas novas, é muito mais alto nesses países, devido a problemas comerciais, limitando seu acesso até mesmo para a classe média e para pacientes que moram em áreas remotas, para os quais o custo dos transportes pode ser proibitivo. Estima-se que atualmente existe 5.000.000 de portadores de epilepsia na América Latina e Caribe, sendo que aproximadamente 3.500.000 de pacientes não recebem tratamento adequado. Muitos portadores de epilepsia são economicamente ativos em suas comunidades e outros, mesmo com maior dificuldade, apesar da interferência das crises, conseguem se manter economicamente ativos. A qualidade de vida dos portadores de epilepsia é resultado de múltiplos fatores, entre os quais incluem-se as condições sócio-econômicas, freqüência e gravidade das crises, ação das drogas anti-epilépticas, atitudes dos familiares, empregadores, amigos, médicos e dos próprios pacientes. As epilepsias, através da história, têm inspirado medo naqueles que assistem a uma crise, por idéias de possessão demoníaca, deficiência mental, insanidade ou tendências criminosas. Ignorância, superstições e mal entendidos não estão presentes apenas nas pessoas comuns, mas também em médicos e legisladores e, para os portadores de epilepsia, as leis têm sido bastante restritivas. A Suécia, em 1757, foi provavelmente o primeiro país dos tempos modernos a impor restrições legais ao casamento dos portadores de epilepsia e a esterilização dos pacientes, voluntária ou não, foi praticada em muitos estados americanos. Muitas dessas atitudes estão mudando atualmente e essas modificações refletem um melhor entendimento e conhecimento das epilepsias. Embora alguns trabalhos não mostrem diminuição na freqüência de casamentos entre os portadores de epilepsia, outros têm descrito maior grau de dependência familiar e menor freqüência de casamentos. Os graus de ajustamento psicossocial e a freqüência de crises epilépticas não estão necessariamente relacionados e a boa resposta ao tratamento parece depender mais do grau de ajustamento psicossocial do que da redução da freqüência de crises epilépticas. COMENTÁRIOS FINAIS Os portadores de epilepsia têm ainda preconceitos e discriminações a enfrentar, os estigmas sociais persistem e infelizmente os pacientes e seus familiares ignoram vários aspectos de sua epilepsia. Quando orientamos os pacientes e seus familiares, é importante a informação adequada a respeito das crises, os resultados dos exames e os métodos de tratamento. Devemos ser positivos e não iniciar a orientação com as possíveis restrições, embora os pacientes devam ser informados sobre possíveis riscos e precauções, pois a tendência restritiva pode levar a estigmatização, que também pode limitar a qualidade de vida dos portadores de epilepsia, levando à exclusão de grupos sociais, desemprego e comprometimento das relações interpessoais. As interferências nas atividades da vida diária dos pacientes podem também ser decorrentes de atitudes de não-aceitação de si mesmos, da percepção e interiorização da discriminação e do estigma ao qual estão sujeitos, manifestados por outras pessoas, inclusive profissionais da área da saúde. A Organização Mundial da Saúde (OMS), Liga Internacional contra a Epilepsia (ILAE) e o Bureau Internacional das Epilepsias (IBE) estão trabalhando juntos numa campanha global (Epilepsia fora das sombras), que também objetiva ajudar os portadores de epilepsia a entender melhor sua condição, a analisar as razões do estigma e, se não for possível eliminá-lo, pelo menos melhorar a qualidade de vida e o ajustamento psicossocial. EPILEPSIA Vencendo preconceito e superando desafios O portador de epilepsia e também de seus familiares necessitam de uma boa compreensão do diagnóstico para aceitar e aprender a lidar com a realidade, fatores essenciais ao sucesso do tratamento. O tratamento, embora prolongado, tem resultados excelentes em 70 a 80% dos casos. O tratamento da epilepsia é mais preventivo e, portanto, “tem de ser rigoroso”; sem erros ou falhas no uso dos medicamentos. A maioria dos casos de epilepsia inicia-se na infância e adolescência e a cura é mais fácil quanto mais precoces forem o diagnóstico e o tratamento. Ao contrário do que se imagina, as epilepsias são muito freqüentes. Dentre cada cem pessoas, uma a duas são epilépticas, segundo dados da Associação Brasileira de Epilepsia (ABE). Nos Estados Unidos, aproximadamente dois milhões de pessoas têm epilepsia e todo ano são diagnosticados pelo menos cem mil casos novos. O que é A epilepsia é um distúrbio do cérebro que se expressa por crises repetidas. Não se trata de uma doença mental, embora as crises possam ser desencadeadas por estresse e ansiedade. Além do medo natural relativo às consultas médicas, exames, uso de medicamentos, os portadores da epilepsia também têm preocupações a respeito do futuro e a necessidade de provar que são iguais a qualquer pessoa. O diagnóstico É feito pela história clínica, por exames de imagem (Tomografia e Ressonância) e por exames funcionais (Eletrencefalograma e monitoramento contínuo da atividade elétrica do sistema nervoso (Holter Cerebral). O tratamento É feito por meio de medicamentos que evitam as descargas elétricas cerebrais anormais, que são a origem das crises epiléticas. Como as crises são ocasionais e imprevisíveis, não adianta tomar os medicamentos só por ocasião das crises ou sem acompanhamento médico regular e contínuo. O tratamento costuma ser longo e é necessário muita força de vontade do paciente, a fim de se chegar ao controle das crises. A consulta periódica ao médico permite que a quantidade de medicamentos seja ajustada à necessidade individual, além de possibilitar a identificação de fatores que possam estar contribuindo para o aumento das crises (fatores desencadeantes) e também para a verificação dos efeitos colaterais que às vezes aparecem com o uso dos medicamentos. => Consulte seu médico periodicamente. => Tome os remédios nos horários e quantidades prescritas. => Não dobre a dose no horário seguinte caso tenha esquecido de tomá-la no horário anterior. Fale com o médico. => Cuidado com o uso de bebidas alcoólicas, pois o álcool pode facilitar a ocorrência de crises. => Procure dormir suficiente e fazer suas refeições em horários regulares. => Verifique se existe algum fator que facilita a ocorrência de suas crises. Anote tudo e converse com seu médico. A Causa As Crises Como se Comportar Cuidados Preconceito Mais informações nos sites: Associação Brasileira de Epilepsia INF-Instituto de Neurologia Funcional Causa Pode estar relacionada a uma lesão no cérebro, decorrente de um traumatismo na cabeça, uma infecção (meningite, por exemplo), neurocisticercose ("ovos de solitária" no cérebro), abuso de bebidas alcoólicas, de drogas, etc. Às vezes, algo que ocorreu antes ou durante o parto. As causas que deram origem à epilepsia muitas vezes não são identificas encontrando-se em alguns casos “cicatrizes” cerebrais de causa ignorada. As Crises As crises epiléticas podem ser desencadeadas por febre, suspensão abrupta da medicação antiepilética, fadiga física, ingestão de álcool, privação de sono, hiperventilação (respiração forçada), emoções (relacionadas à preocupação, alegria, irritação, tristeza e outras). Elas podem se manifestar de diferentes maneiras. Veja as mais conhecidas: Convulsiva - forma mais conhecida e identificada como "ataque epiléptico". A pessoa pode cair ao chão, apresentar contrações musculares em todo o corpo, mordedura da língua, salivação intensa, respiração ofegante e, às vezes, até urinar. Ausência - conhecida como "desligamento", tem como características o olhar fixo, a perda de contato com o meio por alguns segundos. Como se Comportar É comum o expectador de uma crise epiléptica entrar em pânico, colocando, assim, o paciente em maior grau de risco. “O melhor é nada fazer e manter a calma”. Não tente parar a crise e cuide apenas para que a pessoa não se machuque, mantendo- a longe de qualquer objeto que possa ferí-la ou colocando qualquer coisa macia sob a cabeça. Não coloque nada na boca. Deite-a de lado para que possa respirar bem. Espere que a crise termine espontaneamente e depois a deixe repousar ou dormir. Fique com a pessoa até que ela se recupere. Cuidados Observe alguns cuidados: => O epiléptico não deve cozinhar, pois os acidentes pessoais mais comuns e mais graves são os que envolvem fogo e fogão. Se for imprescindível, deve-se utilizar sempre a boca de trás do fogão, evitar frituras e água fervendo. => Natação em rio, represa e mar tem de ser evitada porque, em caso de crise, o socorro é muito dificultado. Em piscinas, só com supervisão. => Dirigir: há uma legislação específica para os epilépticos possam dirigir veículos desde, que a epilepsia esteja controlada e o paciente fora de crise há pelo menos dois anos. Preconceito O preconceito ainda é grande. Ignorância, superstições e mal entendidos inspiram medo infundado naqueles que assistem a uma crise. A melhor forma de esclarecer tudo sobre a doença é conversando com o médico. A Organização Mundial da Saúde (OMS), a Liga Internacional contra a Epilepsia (ILAE) e o Bureau Internacional das Epilepsias (IBE) têm trabalhado numa campanha global (Epilepsia fora das sombras), que também objetiva ajudar os portadores de epilepsia a entender melhor sua condição, a analisar as razões do preconceito e, se não for possível eliminá-lo, pelo menos melhorar a qualidade de vida e o ajustamento psicossocial. Grandes personalidades conviveram com a epilepsia A estatística para o número de pessoas com epilepsia é alta, calcula-se que de cada 100 pessoas, uma tem a doença. Através da história, anônimos e famosos tiveram epilepsia. É grande a lista de figuras ilustres da história, com gênios como o pintor holandês Van Gogh, até roqueiros como o inglês Ian Curtis da banda Joy Division que chegou a ter ataques epilépticos no palco. Ian Curtis, vocalista da banda Joy Division, às vezes tinha crises no palco Na maioria dos casos a pessoa tenta esconder a doença, que sempre foi envolvida em uma áurea de mistério e superstições. Até hoje em dia, muitos epilépticos ainda evitam assumir a doença em público, porque ainda existe o preconceito causado pela ignorância sobre a causa dos ataques e o medo de contágio. No Brasil há várias associações que se organizam para lutar contra o preconceito e auxiliar o tratamento e o controle dos casos. No passado era mais difícil esconder os ataques, mas hoje pessoas públicas e pessoas comuns mantém a doença sob controle através de tratamento com medicamentos e cirurgias. Os portadores de epilepsia enfrentam a insegurança profissional, com medo de perder o emprego pelo estigma que a doença ainda provoca e com o preconceito gerando dúvidas sobre a capacitação intelectual e profissional. Mas a história mostra, apesar das dificuldades enfrentadas, grandes personalidades que se destacaram em suas áreas de atuação tiveram a doença. Atualmente é difícil comprovar cientificamente que pessoas no passado tiveram epilepsia, mas há relatos sobre os sintomas. Líderes, místicos artistas e escritores sofreram ataques epilépticos. O desafio da difícil convivência com a epilepsia foi enfrentado e superado por escritores como Gustave Flaubert e Dostoiévski, que produziram clássicos da literatura universal. Dostoiévski, autor do livro Os Irmãos Karamázovi, escreveu pouco antes de sua morte: "sim, eu tenho a doença das quedas, a qual não é vergonha para ninguém. E a doença das quedas não impede a vida". É uma vida difícil, esta de conviver com ataques convulsivos inesperados. A presidente da Associação dos Portadores de Epilepsia do Distrito Federal, Alaíde Ferreira da Silva, 36 anos, diz que chegou a ter 18 ataques epilépticos em um dia. Ela teve a primeira crise aos 5 anos de idade e passou a ter sempre, quase diariamente. No caso dela, os medicamentos não conseguiram controlar totalmente os ataques, apesar de tomar três remédios diferentes e cerca de 20 comprimidos por dia. Há dois anos Alaíde foi operada com recursos próprios através de seu plano de saúde no Hospital Santa Luzia, pela equipe do médico Wagner Afonso Teixeira, que fez a primeira cirurgia de epilepsia em Brasília. Depois da operação, Alaíde nunca mais teve ataques e hoje toma três comprimidos diários e tem a possibilidade de se ver livre dos medicamentos em quatro anos. Em maio de 1999, Alaíde criou uma associação para ajudar os portadores em Brasília. "É muito difícil conviver. Eu graças a Deus consegui estudar, mas a maioria não consegue. São muitas as dificuldades, as pessoas têm vergonha". As principais lutas da associação são contra o preconceito e o ignorância. Muita gente faz brincadeiras de mau gosto com os portadores e colocam apelidos pejorativos. Uma outra forma de preconceito é decorrente da falta de informação sobre as causas da doença e do medo do contágio. "É uma crise feia, eles caem, batem a cabeça, babam e as pessoas não socorrem", diz a presidente da associação que reúne cerca de 200 portadores em Brasília, onde o número de doentes é calculado em 20 mil pessoas. O lema da associação é: "Contagioso é o Preconceito" e o objetivo é orientar a sociedade sobre a doença e reunir os portadores e familiares em discussões e palestras. Outra batalha da associação é conseguir que o estado realize as operações pela rede pública de saúde, que ainda não são feitas por falta de verbas. O médico neurologista, Ricardo Teixeira, diz que a grande luta é dar o acesso à cirurgia para todos que podem ter esse recurso. "Hoje existem em Brasília 120 pacientes prontos para a operação, com todos os exames feitos, só aguardando a criação de um espaço e os aparelhos para a cirurgia". Ele diz que apesar de ser uma técnica do século 19, a operação passou a ser bastante aplicada a partir da década de 1950. "Mas no Brasil ela ainda é vista por alguns planos de saúde com um conceito como se fosse "experimental", mas é muito consagrada e 90% dos pacientes têm chances de operação", diz o neurologista. Genialidade e Criatividade Ao lado dos problemas enfrentados pelos portadores da epilepsia, existem casos de pessoas que superaram as dificuldades cotidianas e se dedicam à produção de obras geniais, desenvolvendo habilidades fora do comum. Os maiores exemplos acontecem nas áreas das artes e de atividades ligadas à criatividade, como a literatura. O biólogo Norberto Garcia-Cairasco, do Laboratório de Neurofisiologia e Neuroetologia Experimental da USP em Ribeirão Preto, diz que há uma grande pergunta que a ciência ainda não tem como responder: se alguns indivíduos eram gênios por causa de epilepsia? Em certas doenças cerebrais e neurológicas, os pacientes desenvolvem capacidades incríveis em certas áreas, apesar da falta de coordenação motora. "Este é um tema interessante, porque indivíduos com casos neurológicos conhecidos como idiotas-sábios tem desempenho acima da média em certas habilidades, apesar dos problemas motores. Alguns autistas, totalmente desconectados do meio externo, são capazes de ouvir uma música e reproduzi-la perfeitamente em um instrumento. Como se explica isso? Não se explica.", diz Cairasco. Se a ciência ainda não explica esses fenômenos, por outro lado, há a constatação de que os problemas causados pela epilepsia não comprometem o desempenho artístico e criativo dos portadores. "Apesar da epilepsia, eram gênios. Hoje não se distingue uma pessoa com casos de epilepsia mais leve, embora haja os estigmas. Mas pessoas que não se tratam ou não respondem ao tratamento se afastam do convívio social e podem sofrer de ansiedade e problemas psicológicos", diz Cairasco. Para ele, estas alterações de humor coincidem com períodos de grande produção, principalmente na literatura, no caso por exemplo de Dostoiévski e Tennessee Williams, indicando uma relação entre o emocional e a produtividade. É difícil afirmar a epilepsia de grandes nomes da história universal, mas são muitos os famosos com indícios da doença. A médica Elza Márcia Targas Yacubian (leia artigo de Elza Márcia nesta edição) do Departamento de Neurologia e Neurocirurgia da Unifesp escreveu o livro Epilepsia: da Antigüidade ao Segundo Milênio - Saindo das Sombras, onde reúne vários casos históricos. Entre os vários nomes citados por neurologistas estão: Sócrates, Júlio César, Alexandre o Grande, Buda, Maomé, Napoleão, Pascal, Isaac Newton e Lênin. No Brasil estão o escritor Machado de Assis e o Imperador Dom Pedro I. Pintores e Músicos O pintor holandês Van Gogh é o maior exemplo da genialidade artística em um caso considerado como epilepsia, como foi diagnosticado pelo Dr. Peyron no asilo Saint-Paul de Mausole em Saint-Remy de Provence. Apesar de que Van Gogh é um caso atípico, com vários fatores que podem ter influído para a sua doença mental que até hoje ainda não foi bem explicada. As causas de suas crises podem ter origem na intoxicação por várias substâncias, como o álcool, o absinto, as próprias tintas e a terebintina, usada como solvente e para secar os pigmentos e que Van Gogh ingeria. Van Gogh tinha também o hábito de comer as suas pinturas, que seria uma conseqüência de seu vício em substâncias com terpenos, presente no absinto, na cânfora e na terebintina. O pintor sofria de mania aguda e alucinações visuais e auditivas, que o levaram a cortar a própria orelha. Nas cartas enviadas ao irmão Theo, Van Gogh descrevia vários sintomas e as crises que passou a ter após os 35 anos de idade e que continuaram até a sua morte, dois anos depois. Em uma dessas cartas, quando estava internado em Sait-Remy, ele escreveu: "as alucinações insuportáveis desapareceram, estando agora reduzidas a um pesadelo simples, eu penso que em conseqüência do uso que venho fazendo do brometo de potássio", o primeiro medicamento usado para combater crises epilépticas. Depois dessa internação, Van Gogh procurou o médico homeopata Dr. Paul Gachet que diagnosticou intoxicação aguda por terebintina e lesão cerebral causada pelo sol. O Dr. Gachet foi retratado em dois quadros famosos de Van Gogh, com ramos da planta dedaleira, também conhecida como digital (Digitalis purpurea). No século 18 a dedaleira chegou a ser usada no tratamento da epilepsia, mas não há registro de que ela tenha sido receitada e usada por Van Gogh. Grandes gênios da música apresentaram quadros de epilepsia. Há suspeitas de que o compositor alemão Ludwig van Beethoven tenha tido a doença. Beethoven tinha uma personalidade marcante e no final da vida sofreu com vários problemas de saúde. A partir do 30 anos, ele começou a ter perda progressiva da audição e aos 50 anos estava praticamente surdo. O compositor também sofria de cirrose hepática. As análises feitas no cabelo de Beethoven indicaram altos níveis de chumbo, provavelmente ingerido através de peixes contaminados. Isto pode ter provocado uma doença conhecida como saturnismo, causada pela intoxicação pelo metal pesado e que provoca transtornos mentais e neurológicos. Outros nomes de músicos tradicionais são citados na literatura como portadores de epilepsia, como o compositor barroco Handel, autor de O Messias, o italiano Niccolo Paganini, um violinista virtuoso, o compositor francês Berlioz e o russo Tchaikowsky, autor das obras O Lago dos Cisnes e O Quebra-Nozes. Do século 20, há o caso do americano George Gershwin, compositor de canções populares e do roqueiro inglês Ian Curtis. A história de Curtis é curiosa e trágica. Ele era vocalista da banda Joy Division que foi criada em 1977, numa época seguinte ao estouro do movimento punk. A banda foi a precursora do som soturno e melancólico, que caracterizou o estilo conhecido no Brasil como "dark" ou "gótico". A primeira crise convulsiva do vocalista aconteceu logo após a estréia em Londres. O show foi decepcionante e a crise abalou Curtis. Depois disso, a excitação dos shows levava o vocalista a ter ataques epilépticos em pleno palco. Quando Ian Curtis tinha convulsões durante as apresentações ao vivo, o público adorava e achava que fazia parte da performance. Até o jeito de dançar de Ian tinha alguns gestos que chegaram a ser comparados aos movimentos das convulsões, mas este estilo já existia antes dele ter a primeira crise. A mulher do vocalista, Deborah Curtis, escreveu o livro Carícias Distantes, onde relata os bastidores da banda. Ela escreveu: "as pessoas o admiravam por aquilo que o estava matando". O estilo mórbido e as letras melancólicas ficaram marcados já nas músicas do primeiro álbum da banda, Uknown Pleasures. Com os sintomas da doença, Ian Curtis desenvolveu problemas emocionais. Quando ficava eufórico durante os shows e a crise não acontecia nos palcos, ele só conseguia dormir depois de esperar o ataque. Segundo Deborah, ele tinha medo do sono. Curtis chegou a se separar da mulher e os problemas o levaram a ser internado por ingerir uma alta dose de remédios. Pouco tempo depois, ele se suicidou, enforcando-se em sua casa. Os outros integrantes da banda, Bernard Summer e Peter Hook, formaram em seguida a banda New Order, que fez bastante sucesso nos anos 80 com seu som eletrônico para as pistas de dança. Alguns atores famosos de Hollywood também sofreram de epilepsia, como Richard Burton, Michel Wilding e Margaux Hemingway. No Brasil, o Imperador Dom Pedro I era considerado um gênio, segundo alguns historiadores, incluindo Pedro Calmon. Apesar de ter recebido pouca instrução, o Imperador se destacava em certas habilidades artísticas e tinha um gênio impetuoso. Dom Pedro I foi o autor da música do Hino da Independência. Segundo os historiadores, ele sofria de epilepsia herdada do lado materno de sua família e antes dos 18 anos já tinha sofrido seis crises. Escritores e Místicos A área literária é a que reúne maior número de autores que tiveram epilepsia comprovada é mais fácil por registros escritos. Entre os escritores, o russo Dostoiévski foi o que mais descreveu os estados da epilepsia, antes mesmo da medicina. Ele começou a ter as crises aos 25 anos de idade. Os ataques se prolongaram até a sua morte aos 60 anos. Nestes 35 anos, o escritor teve cerca de 400 crises convulsivas, que eram seguidas de confusão mental, depressão e distúrbios temporários de fala e memória. Em suas cartas, diários e obras literárias, Dostoiévski relatou as suas sensações características da epilepsia, como os estados de sonhos, pensamentos meditativos, sentimento de culpa, tremor, fuga de idéias, entre outras. Mas a doença para Dostoiévski foi mais um estímulo para ativar a sua genialidade. Ao usar a epilepsia como fonte de inspiração, o escritor venceu o desafio de conviver com ela e, sem tratamento em sua época, comprovou que os ataques não afetam o potencial intelectual e profissional. O escritor Gustave Flaubert, autor de Madame Bovary, também é um outro exemplo de luta contra os problemas cotidianos da epilepsia. A doença se manifestou aos 22 anos de idade, com crises parciais simples, (com sintomas visuais de curta duração) e depois com crises complexas. Ele também apresentava os sintomas emocionais, como terror, pânico, alucinações, pensamentos forçados e fuga de idéias. Em certo momento da vida, Flaubert se isolou socialmente e foi morar em Croisset. Para enfrentar as barreiras que a doença impunha, como a dificuldade na memória verbal, em encontrar as palavras, ele chegava a trabalhar 14 horas por dia e se tornou um dos grandes escritores franceses. Vários outros escritores tiveram epilepsia, como Lord Byron, Dante, Charles Dickens, Leon Tolstói, Edgar Allan Poe, Agatha Christie, Truman Capote e Lewis Carrol. No Brasil o principal caso foi de Machado de Assis, que evitava comentar sobre a doença, numa tentativa de esconder a epilepsia por causa de seus estigmas. Mas os ataques eram freqüentes e foram testemunhados por várias pessoas e inclusive um desses ataques foi registrado pelo fotógrafo conhecido como velho Malta no centro do Rio de Janeiro. Durante a história, várias pessoas que afirmavam ter revelações, ouvir vozes e ter visões, podem ter sofrido de epilepsia. Esses casos estão presentes entre personalidades de várias religiões, desde o início do catolicismo, do budismo, do islamismo e do protestantismo. Entre os místicos, há vários relatos de visões que podem ser atribuídas aos sintomas de epilepsia, como a luz brilhante que cegou São Paulo no deserto de Damasco, descrita na Bíblia e que o deixou sem enxergar por três dias. Entre outros dados históricos analisados por pesquisadores em neurologia estão as revelações de Buda, obtidas pela meditação que lhe proporcionava as visões e sensações do nirvana ou do paraíso, e de Maomé, que dizia receber os ensinamentos do Anjo Gabriel para escrever o Corão, o livro sagrado do islamismo. Segundo o neurologista espanhol, Esteban Garcia-Albea, Santa Tereza de Jesus sofria de um tipo diferente de epilepsia parcial, provocada por uma pequena irritação no cérebro, que provocava sintomas afetivos de prazer e felicidade. A santa, nascida em Ávila no ano de 1515, tinha "crises de felicidade". Os sintomas eram; primeiro a aparição de uma luz, depois a paralisia do corpo, as alucinações e no final as sensações de prazer. A causa dos problemas de Santa Tereza teria sido um estado de coma em decorrência de uma encefalite que a deixou desacordada por quatro dias. Quando já preparavam o funeral, seu pai se negou a enterrá-la e ela despertou com delírios e uma paralisia que a impediu de andar durante quatro anos. É possível que essa doença tenha deixado uma pequena cicatriz no cérebro e tenha causado as "crises de felicidade", que permaneceram por 12 anos. Outros religiosos que podem ter tido epilepsia são: Martin Lutero, o criador da reforma protestante, e a francesa Joana D`Arc. Aos 43 anos Lutero começou a sentir crises de zumbido, que soavam como uma catarata. Mas a sua doença pode ser explicada também como o mal de Menieri, que causa problemas na região do labirinto e também pode provocar vertigens. Já a heroína francesa, aos 13 anos viveu os primeiros momentos de êxtase, vendo raios de luzes, ouvindo vozes de santos e visões de anjos. Essas vozes incentivaram Joana D'Arc a guerrear contra a dominação inglesa. As sensações aconteceram até a sua morte aos 19 anos, queimada por heresia na fogueira da Inquisição. Várias pesquisas são realizadas em todo o mundo para encontrar uma explicação para os fenômenos religiosos relacionados com o funcionamento do cérebro humano, com as suas redes neurais e reações químicas. São experimentos que analisam o comportamento do cérebro durante estados de meditação profunda, sob o efeito de substâncias psicoativas e nas crises epilépticas. O cientista Andrew Newberg, da Universidade da Pensilvânia, fez experimentos com budistas em meditação, aplicando contrastes radioativos para analisar as imagens em um tomógrafo. Os resultados mostraram uma redução na atividade da região do cérebro conhecida como lobo parietal, que controla a orientação. Segundo o cientista, algumas experiências espirituais podem ser explicadas, porque a pessoa perde ou diminui a fronteira entre ela mesma e o mundo, entrando em comunhão com o Universo. (GP) Atualizado em 10/07/2002 http://www.comciencia.br contato@comciencia.br Educação especial tenta afastar estigma da epilepsia A pessoa que tem epilepsia, além de sofrer com os problemas neurológicos causados pela doença, pode ter que enfrentar, no decorrer de sua vida, um obstáculo difícil de transpor: o de ser socialmente estigmatizada. As eventuais convulsões ou crises de um epilético geralmente assustam quem as assiste, quando elas acontecem em um ambiente social como a escola, por exemplo. E para a criança com epilepsia, sofrer o estigma chega a ser pior que a própria doença. Segundo o presidente da Sociedade de Neurologia Pediátrica Mexicana, Jesus Gómez- Placencia, em artigo publicado na revista Cérebro & Mente, 75% dos pacientes epiléticos iniciam suas crises antes dos 18 anos. Ele alerta para a importância de se efetuar o diagnóstico o mais cedo possível, para que se estabeleça o tratamento adequado, e para que possam ser trabalhados os aspectos psico-sociais relevantes para a reintegração do paciente a seu núcleo familiar, escolar e social. "Em todos os países, a epilepsia representa um problema importante de saúde pública, não somente por sua elevada incidência, mas também pela repercussão da enfermidade, a recorrência de suas crises, além do sofrimento dos próprios pacientes devido às restrições sociais que na grande maioria das vezes são injustificadas", afirma o neurologista, que também é professor da Universidade de Guadalajara, no México. Um caso exemplar A escola Curumim, de Campinas (SP), tem mostrado que é possível trabalhar a reintegração de um aluno com epilepsia ao ambiente escolar, e que não há justificativa para restrições sociais a quem sofre com a doença. Em agosto de 1999, essa escola recebeu uma aluna com epilepsia. Fernanda chegou traumatizada pelo estigma sofrido na escola onde estudava anteriormente. Em 1997, quando tinha 11 anos, ela começou a ter suas primeiras crises. A princípio, os médicos diagnosticaram "idade mental inferior", decorrente de "algum problema neurológico". Quando verificou-se que esse problema neurológico era epilepsia, Fernanda recebeu os medicamentos necessários para o controle da doença. Porém, esses medicamentos lhe provocaram graves alergias. Em função disso, ela ficou internada por 25 dias no hospital, quase perdeu os rins e chegou a receber a extrema-unção. Os médicos conseguiram controlar a situação, mas Fernanda perdeu o ano na escola. Quando voltou às atividades, enfrentou o problema da não aceitação: os colegas de classe riam de suas crises e os professores usavam-nas como alegação para não trabalhar com a aluna. Na escola Curumim, o começo do trabalho com a aluna, no segundo semestre da 5ª série e na 6ª série, foi bastante difícil, segundo conta a coordenadora pedagógica, professora Rina Kátia Cortez. Devido ao trauma sofrido na escola anterior, a aluna tinha resistência a fazer atividades que a deixassem em situação de exposição, como as leituras em classe ou as aulas de educação física. Além disso, ela própria implicava muito com os colegas, dificultando as relações. "O trabalho de inclusão social começava por ela", afirma Rina. A professora diz que, devido ao trauma, não podiam tratá-la com firmeza, mas tinham que fazer combinações com ela. Na aula de educação física, pediam a princípio que ela participasse por 5 minutos. Depois, a participação foi aumentando gradativamente: 10 minutos, 15 minutos e assim por diante. Com os avanços e os elogios, a aluna passou a adquirir aos poucos auto-confiança. Ao final da 6ª série, Fernanda estava bastante defasada em duas disciplinas, em relação aos colegas. Mas a proposta da escola foi que ela seguisse com o grupo, e por isso, a aluna passou para a 7ª série. As aulas de história, passou a assistir com a 5ª (tinha dificuldade em entender a linha do tempo), e as de matemática, com a 6ª. Todas as outras aulas, ela continuava assistindo com o mesmo grupo com o qual convivia, desde que chegou na Curumim. A coordenadora pedagógica conta que a turma teve uma participação importante em sua reintegração social. "O tempo todo, falamos com os alunos sobre o caso dela", diz. "Eles teriam que saber lidar com os momentos de crise". Colegas da turma de Fernanda tiveram participação importante na inclusão, diz coordenadora. Crédito: Curumim Segundo Rina, devido ao fato de Fernanda não poder tomar os medicamentos para controle da doença, por causa da alergia, ela sempre teve crises, inclusive em sala de aula. Às vezes, eram crises rápidas e só percebidas quando ela se queixava de dores de cabeça. Mas algumas vezes, a crise era generalizada. A pior delas, conta a coordenadora, aconteceu em 2001. Um dia, na aula de matemática, quando Fernanda estava tendo acompanhamento com a professora, começou a crise e ela chegou a cair no chão e bater na mesa. Pegaram um colchão às pressas, onde a colocaram. Rina afirma que Fernanda ainda se debateu por 15 minutos com a cabeça em seu colo. Ao voltar a si, sua preocupação era saber quem tinha visto sua crise. "Ela dizia: 'eu fiz de novo', 'eu tive tique-tique'", conta a coordenadora. De fato, todos os seus colegas viram a cena e ficaram bastante impressionados, passando a se preocupar mais com ela. Além de não ridicularizarem Fernanda, como faziam os colegas da escola anterior, eles ajudaram muito em seu processo de inclusão. Rina diz que a aluna chegava a pedir avaliação especial para ela, e seus colegas diziam: "Não é preciso uma prova especial. Isso a gente sabe que você pode fazer". A coordenadora pedagógica diz que atualmente Fernanda, que tem 14 anos, está bem e feliz. "Ela ajuda a professora da educação infantil. Adora crianças", conta. "E foi a que mais vendeu bingo na festa junina da escola, que aconteceu no dia 22 de junho", comemora. Pais e alunos se divertem na festa junina Crédito: Curumim O exemplo da escola Curumim mostra que é possível, mesmo que seja difícil, trabalhar com alunos especiais em uma escola regular. Além da Fernanda, com epilepsia, a escola tem alunos com autismo, síndrome de Down, surdez e hidrocefalia, entre outros. Segundo a coordenadora pedagógica, o conteúdo das disciplinas é adaptado para as condições do aluno. Ela diz que a escola consegue trabalhar a inclusão social aliando-a à pedagogia da diversidade, proposta pelo pedagogo francês Freinet, a qual tenta valorizar o diversificado talento individual de cada aluno. "Diferentes, todos nós somos", filosofa Rina. Educação Especial Nos últimos anos, o Ministério da Educação (MEC) vem tentando mudar o tratamento dado aos alunos especiais no ensino de base. Antes, havia escolas especiais para esses alunos. Agora, existem adaptações curriculares, estipuladas pelo MEC, que integram os Parâmetros Curriculares Nacionais e têm como meta a inclusão social e a integração de alunos especiais em escolas regulares. A princípio, as escolas estaduais e municipais viram a medida como uma incômoda imposição, e algumas chegavam a ligar para o Ministério perguntando se havia alguma lei que garantisse o direito da escola de não aceitar um aluno especial. "Hoje, a resistência ainda existe, mas está acabando", diz a secretária de Educação Especial do MEC, Marilene Ribeiro dos Santos. "E essa resistência não é porque as escolas não querem o aluno especial, mas porque não sabem como trabalhar com ele", afirma. Segundo a secretária, o MEC investe na capacitação de professores, para que eles possam trabalhar as necessidades especiais de cada aluno em sala de aula. "Não é preciso uma super-especialização para se conseguir a inclusão social", declara. (RC) Atualizado em 10/07/2002 http://www.comciencia.br contato@comciencia.br Epilepsia e educação: prevenção e formação ética Ulisses F. Araújo Gostaria de iniciar este artigo relatando uma situação experienciada por uma professora de ensino fundamental de uma escola pública na cidade de Campinas. Acredito que a cena descrita poderá ajudar na discussão que faremos posteriormente sobre epilepsia, educação e algumas propostas para se abordar tais temáticas no cotidiano das escolas. "A turma era de quarta série e a professora Dirce estava percorrendo os grupos que faziam trabalhos sobre a independência do Brasil. De repente, ouviu-se o barulho forte de uma carteira e livros caindo no chão. Todos olharam para o local e logo perceberam que Marli, uma aluna da classe, estava ao solo se contorcendo, tremendo e se debatendo. Foi uma gritaria geral!!! A professora ficou paralisada; alguns alunos começaram a chorar; alguém saiu correndo para a Diretoria para pedir ajuda; outros se aproximaram de Marli tentando segurá-la. Os comentários e sugestões eram os mais diversos: uns dizendo que deveriam desenrolar a língua de Marli, outros dizendo que deveriam jogar água no seu rosto; alguém disse que não deveriam encostar na "baba" que saia de sua boca. Depois de alguns poucos minutos, Marli começou a melhorar e se recuperar dos efeitos da crise epiléptica que havia sofrido. Só então a professora Dirce venceu seu quadro de paralisia e meio que sem saber o que fazer foi afastando as crianças, se aproximou de Marli e a levou para a Diretoria. Ninguém mais conseguiu assistir aulas naquele dia, e a notícia rapidamente espalhou-se por toda a escola. A história, porém, não terminou por aí e suas conseqüências estenderam-se por muito tempo! A professora não sabia o que fazer e decidiu ignorar o que havia acontecido, nunca mais tocando no assunto. O mais grave, porém, foi a discriminação que passou a sofrer Marli, na sua turma e na escola. Além de ter perdido algumas amigas, cujas mães proibiram que brincassem com ela ou se sentassem a seu lado na classe, ela passou a ser alvo de chacotas, brincadeiras e teorias variadas que as crianças traziam de casa para explicar sua situação. Alguns diziam que ela havia sido tomada por demônios; outros, que ela era louca; ou que ela estava usando drogas escondido; e ainda, que era deficiente mental. Infelizmente, o final desta história terminou com Marli, sentindo-se discriminada pelos colegas e acreditando nas teorias que lhe apresentavam para explicar o que tinha, decidindo abandonar a escola e não mais estudar". A cena acima descrita, ao contrário do que muitos podem pensar, não é rara de acontecer nas escolas brasileiras. Dificilmente um professor com alguns anos de profissão não experienciou casos semelhantes nas escolas em que trabalha. Embora atualmente exista maior consciência por parte da comunidade sobre a epilepsia, suas causas, as formas de tratamento e as conseqüências para os portadores deste tipo de enfermidade continuam devastadoras para suas vidas pessoal e social. Principalmente no caso de crianças. A estigmatização a que são submetidas, e até mesmo o preconceito que sofrem, costumam marcar profundamente suas vidas. A situação relatada traz uma abertura para discutirmos o papel da escola e de seus profissionais no enfrentamento da questão, e permitirá apontarmos alguns caminhos para a articulação de temáticas relacionadas à ética e à saúde no cotidiano de nossas escolas, públicas e privadas. O campo educacional Em minha opinião, os dois objetivos centrais da educação, os dois eixos indissociáveis em torno dos quais giram, ou deveriam girar, as propostas educacionais são a instrução e a formação ética das futuras gerações. O primeiro eixo, a instrução, trata daqueles conhecimentos construídos historicamente pela humanidade e que cada cultura decide transmitir às futuras gerações. Assim, cada cultura estrutura a educação de seus alunos e suas alunas em torno da transmissão de determinados conteúdos relacionados a áreas disciplinares como a matemática, a língua, a história, as ciências, a educação física, as artes, etc. O segundo eixo trata da formação do cidadão e da cidadã, da busca pelo desenvolvimento de alguns aspectos que dêem aos jovens e às crianças as condições físicas, psíquicas, cognitivas e culturais necessárias para poderem exercer e participar efetivamente da vida política e pública da sociedade, de forma crítica e autônoma. Todas as escolas que conheço, públicas e privadas, incluem em seus projetos político- pedagógicos o objetivo de trabalhar esses dois princípios. Todas dizem que pretendem instruir e formar os futuros cidadãos e cidadãs. Minha experiência profissional mostra, porém, que este segundo aspecto fica relegado a segundo plano. As escolas têm se preocupado, objetivamente, apenas em instruir. Procurando romper com este quadro, penso que a introdução de temáticas relacionadas à saúde podem trazer avanços na construção da cidadania, se devidamente inseridos no processo educativo de formação e instrução das futuras gerações. No caso específico da epilepsia, podem e devem ser objeto de projetos educacionais que permitem o trabalho tanto no âmbito dos conhecimentos relacionados ao campo das ciências e da saúde, quanto no campo ético, abordando as diferenças humanas e o preconceito vivido pelas pessoas que sofrem de epilepsia. Uma dúvida que costuma despontar entre os educadores conscientes da importância da inserção de temáticas relacionadas à ética e à saúde no ensino regular diz respeito ao modo como isso deve se dar. Para os profissionais da educação que acreditam nesses princípios, o grande desafio é conceber caminhos que permitam a articulação desses campos de conhecimento no interior das escolas, buscando não fragmentá-los. Não sou partidário da proposta de que tal inserção deva ocorrer por meio de disciplinas específicas de ética e de saúde, uma vez que continuariam a ser percebidas de forma fragmentada, sem relação direta com os demais conhecimentos científicos abordados na escola e com os aspectos da vida cotidiana dos alunos e das alunas. Defendo, outrossim, a proposta de se incorporarem tais temáticas na estrutura curricular das escolas de maneira transversal (ver Araújo & Aquino, Os direitos humanos na sala de aula: a ética como tema transversal, Ed. Moderna, 2001), de modo que perpassem os conteúdos tradicionais. Diferentemente do ensino tradicional, que enfoca apenas as disciplinas científicas, essa proposta apoia-se na premissa de que a participação da educação escolar na construção da democracia e da cidadania deve dar-se enfocando conteúdos estreitamente vinculados ao cotidiano, às preocupações sociais e aos interesses da maioria da população. Com o intuito de concretizar tal proposta, faz-se necessário integrar interdisciplinarmente os conteúdos tradicionais e os chamados temas transversais, como a ética e a saúde. Ou seja, é imprescindível reconhecer que a transversalidade só faz sentido se atrelada a uma concepção interdisciplinar de conhecimento. Dessa maneira, as temáticas relacionadas à ética, como as discussões sobre discriminação, estigmatização e preconceitos, podem tornar-se a preocupação central da proposta curricular das escolas, em torno das quais devem orbitar as demais temáticas tradicionais e as outras transversais. Isso significa que os professores dos conteúdos tradicionais da escola, como os de Biologia, Ciências, Matemática, Língua, Química e Física, devem estruturar suas aulas contextualizando seu trabalho em projetos interdisciplinares que contemplem temáticas chamadas de transversais, relacionadas à saúde e à ética. Esses princípios, inclusive, estão na base conceitual das recém-aprovadas Diretrizes Curriculares do Ensino Médio e dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental, aprovados pelo Conselho Nacional de Educação. Tais diretrizes curriculares já encontram-se em vigor no Brasil, o que faz com que sua implementação receba apoio do Estado e passe a ser objeto de desenvolvimento de políticas públicas nessa direção. Assim, a legislação educacional brasileira incorporou uma concepção que abre possibilidades de um projeto educativo para nossa sociedade em que situações como as descritas no relato acima podem servir de referência tanto para a instrução de conteúdos científicos relacionados à epilepsia, suas causas e tratamentos; quanto pode auxiliar na diminuição dos estigmas e preconceitos que sofrem seus portadores, contribuindo para que essas pessoas tenham uma melhor qualidade de vida. Enfim, contribui para a construção de uma sociedade solidária, justa e mais aberta para as diferenças individuais. O projeto Epilepsia fora das sombras nas redes de ensino Trabalhar tal concepção educacional nas escolas é um dos objetivos do projeto Epilepsia fora das sombras. Em fase de implementação nas cidades de Campinas e São José do Rio Preto, no Estado de São Paulo, sob a chancela da Organização Mundial de Saúde, o projeto tem como objetivo principal gerar procedimentos que aprimorem a identificação e o tratamento de pessoas com epilepsia, em parceria entre as universidades públicas, os sistemas públicos de saúde e as comunidades-alvo do projeto. Dele participam as prefeituras das cidades envolvidas e pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas e da Universidade Estadual Paulista. Um dos aspectos previstos para ser abordado no projeto é o desenvolvimento de ações junto às escolas públicas e privadas de Campinas e São José do Rio Preto. Tal iniciativa tem, dentre seus objetivos, capacitar os profissionais da área de educação a lidar com as temáticas relacionadas à epilepsia. Além disso, pretende-se atingir toda a comunidade a partir do pressuposto de que as famílias mantêm uma relação próxima com as escolas, onde seus filhos estudam. Assim, a intenção é prevenir e educar os profissionais da educação para que situações como as relatadas neste artigo não tenham o desfecho vivido por Marli. Nesse sentido, o trabalho educacional almeja atuar sobre duas perspectivas distintas e complementares: a) o ensino sobre a epilepsia, sua identificação, características, causas e tratamentos possíveis; b) a formação ética da comunidade escolar, visando desmistificar as atribuições sobrenaturais de manifestação, assim como promover a redução do estigma, do preconceito e da discriminação decorrentes da enfermidade. Pensamos que um docente capacitado e consciente do que é a epilepsia e como se manifesta não terá comportamento semelhante ao da professora Dirce. Ela, além de ficar paralisada no momento da crise, decidiu ignorar o caso posteriormente por não saber como agir, contribuindo para que a aluna Marli sofresse discriminação e preconceito por parte de seus colegas. Se além de conhecer cientificamente a epilepsia os docentes puderem trabalhar em sala de aula tais conhecimentos científicos, e também os de ética, espera-se que seus alunos e suas alunas possam levar tais conhecimentos a suas famílias, assim como construir valores e virtudes morais de respeito e de generosidade que contribuirão para a redução de casos como os experienciados pela aluna Marli. Intencionamos construir com os profissionais da educação e da saúde envolvidos no projeto, práticas educativas coerentes com os pressupostos de interdisciplinaridade e transversalidade apontados anteriormente. Este é um dos caminhos para a construção de uma sociedade mais bem informada e bem preparada para lidar com as diferenças e com o preconceito para com pacientes que sofrem de epilepsia. Ulisses F. Araújo é professor da Faculdade de Educação da Unicamp. Mecanismos psicológicos e o estigma na epilepsia Elisabete Abib Pedroso de Souza, Paula Teixeira Fernandes, Priscila Camile Barione Salgado e Fernanda Doretto O diagnóstico da epilepsia como uma condição neurológica crônica traz uma série de mudanças na família e no paciente e afeta comportamento e bem estar. Estudar o impacto que esta condição acarreta é focalizar em problemas outros que não só as crises, que são desencadeadas já no início da doença. Ter epilepsia ativa todo um sistema de crenças ao nível pessoal e social que modifica o comportamento. Além disso, envolve expectativas e percepções que são categorias intrapsíquicas individuais relacionadas com a história de vida de cada um, afetando as pessoas de forma diferente (Souza, 2001). O foco nos problemas psicológicos e outros fatores que não só os sintomas físicos considera os efeitos importantes do estigma, desemprego, problemas no casamento, família, dificuldades para dirigir, além dos efeitos comportamentais e cognitivos das drogas que afetam a vida das pessoas com epilepsia (Baker, 1995). Medidas de qualidade de vida quantificam, numa perspectiva subjetiva, as limitações impostas ao indivíduo como resultado da epilepsia, das reações discriminativas da sociedade aos efeitos da medicação. Falam de problemas da vivência da condição epiléptica e da experiência do sujeito. Entender o que acontece a partir do início desta condição permite estabelecer objetivos educacionais que possibilitem a prevenção primária e intervenção terapêutica mais abrangente e adequada àquele que, como qualquer pessoa, tem expectativas e objetivos de vida e merece almejar satisfação e bem estar. A experiência da doença O que acontece quando as pessoas percebem que há algo errado com elas? O que isto significa? Que explicações dão às sensações estranhas e novas que estão acontecendo no próprio corpo? Quais crenças, expectativas, medos e fantasias são ativados? Como encaram buscar ajuda e lidar com o rótulo médico? Nesta perspectiva, estudar a experiência do adoecer é avaliar um complexo mundo de significados, é considerar no relato do doente seus sentimentos, cognições e comportamentos além da descrição dos sintomas físicos. Na epilepsia, há uma longa história de mudanças de definições e significados que afetam como as pessoas experienciam e percebem as reações dos outros. Demônios ou deuses, espíritos sobrenaturais, humor e desequilíbrio mental e, mais recentemente, alterações elétricas no funcionamento do cérebro foram determinando um sentido, idéias e crenças pessoais e sociais que são estimuladas já no diagnóstico e influenciam profundamente a experiência da epilepsia. O significado definido à condição pelo meio social do paciente, estressa mais do que as próprias crises (Suurmeijer, 1995; Suurmeijer et al, 2001). Hoje, a epilepsia é completamente medicalizada. É uma desordem médica que deve ser tratada com intervenção médica. Entretanto, a história da epilepsia é uma história de estigma. Os resíduos sociais das concepções negativas e pejorativas permanecem como problemas para os portadores de epilepsia (Schneider & Conrad, 1983). Pais como mediadores da experiência A epilepsia é uma doença neurológica crônica muito comum que acomete principalmente as crianças, revelando dificuldades psicossociais que estão associadas ao estigma e que influenciam o ajustamento social e a qualidade de vida da criança e sua família (Fernandes & Souza, 2001; Jacoby, 1992). Quando o médico transmite a informação de que a criança é portadora de epilepsia, altera seu status social, causando mais preocupação e stress do que as próprias crises (Souza et al., 1998; Goldstein et al., 1990; Scambler & Hopkins, 1986). Na epilepsia infantil, o estigma inicia-se com o comportamento dos pais em relação ao diagnóstico. A maneira que os pais reagem forma a base de como as crianças vão interpretar a epilepsia depois e se relacionar com outras pessoas (Souza et al, 1998). O diagnóstico da epilepsia, gera nos pais uma série de sentimentos, que quase sempre incluem: medo, ira, culpa, tristeza, ansiedade, confusão, negação, preocupação (Lewis et al., 1991). Estes sentimentos levam os pais a se comportarem normalmente de modo inapropriado, exibindo superproteção, permissividade, rejeição e baixa expectativa em relação a seus filhos. Estes são tratados como doentes, porque os pais acreditam que qualquer atividade pode precipitar uma crise (Thompson & Upton, 1994). Muitas vezes, o excesso de cuidados é tanto que os pais acabam se esquecendo dos outros membros da família, o que gera conflitos e stress familiar. A partir dessas reações, as crianças aprendem rapidamente que há algo de errado com elas e, conseqüentemente, começam a apresentar comportamentos inadequados de dependência, insegurança, irritabilidade e imaturidade. Os pais, dessa forma, treinam seus filhos a se sentirem apreensivos e preconceituosos com relação à epilepsia, perpetuando o estigma. Neste contexto, a família começa a ter menos proximidade e mais restrições de comportamentos, de atividades e de comunicação (Fernandes & Souza, 2001; Thompson & Upton, 1994). Diante disso, os pais de crianças com epilepsia exibem comportamentos que dependem não só dos fatores relacionados à própria epilepsia (tipo de crise, severidade da epilepsia, presença de outras desordens, efeitos medicamentosos), mas principalmente dos fatores psico-sócio-culturais: preconceito, crenças, aspectos familiares e sociais e características individuais da criança (Souza et al., 2000; Hoare & Kerley, 1991). Vários estudos confirmam que a situação familiar é um dos fatores preditivos mais importantes dos problemas psicossociais e da baixa qualidade de vida nas crianças com doenças crônicas (Fernandes & Souza, 2001; Fejerman & Caraballo, 2000; Trimble & Dodson, 1994). O estigma da epilepsia já na infância é um peso maior que as limitações físicas impostas pelas crises ou pelo tratamento (Collings, 1990; Mclin & Boer, 1995). Quando se identifica precocemente essa variável, é possível atuar de modo mais positivo na dinâmica familiar, controlando o ajustamento da criança e da família à epilepsia (Fernandes & Souza, 1999). O impacto do estigma no adolescente A adolescência tem sido considerada um período psicologicamente complexo onde ocorrem várias mudanças, tanto físicas como sociais, psicológicas e cognitivas, sendo também um período com maiores dificuldades de desenvolvimento do que anos anteriores (Mussen et al, 1995). Alguns fatores típicos da adolescência, parecem ser acentuados e até agravados quando associados a uma doença crônica como a epilepsia. Em qualquer idade é provável aparecerem incertezas em relação ao prognóstico de uma doença crônica, mas especialmente para o adolescente, pois há o desejo de independência e autonomia e as relações estão começando a ser redefinidas. As conseqüências sócio-psicológicas são grandes nos adolescentes com uma doença crônica: preocupações com os estudos, perspectivas futuras, efeitos colaterais das drogas anti-epilépticas, possibilidade de dirigir, consumo de álcool, sexualidade, dúvidas em relação ao tratamento cirúrgico, assim como restrições de lazer. Adolescentes com epilepsia são muitas vezes estigmatizados. Muitas são as hipóteses para essa estigmatização, como o medo de uma crise ocorrer a qualquer momento e em publico, e o estado amedrontador de perder o controle do corpo e rejeição social (Viberg et al, 1987). A psicologia do adolescente vive mediada pela aparição traumática da necessidade de afirmar uma identidade e uma independência. Esta situação choca-se frontalmente com as limitações que a epilepsia impõe. Tanto a auto-estima como a valorização por parte dos companheiros pode ser afetada pelos condicionamentos sociais, como resposta à epilepsia (Artigas, 1999). O estigma, o preconceito e a vergonha das crises levam ao isolamento, limitando cada vez mais as oportunidades de crescimento pessoal (Souza et al, 2000a). As concepções populares da epilepsia são especialmente negativas e a pessoa com epilepsia na maioria das vezes as legitima (Souza et al, 1998). Os efeitos do prejuízo são mediados por características individuais e sociais relacionadas à percepção de si ou de sua condição (Ryan et al., 1980). A Qualidade de Vida do adulto com epilepsia Quando a epilepsia acontece na vida adulta, as pessoas estão estabilizadas em suas profissões e estilo de vida e a ocorrência de crises epilépticas tem grandes implicações no emprego e relações sociais (Salgado & Souza, 2002), afetando relacionamentos afetivo- sexuais (Souza et al, 2000b) além de causar um stress financeiro, alterar os papéis sociais com conseqüentes alterações emocionais. A alta taxa de desemprego e subemprego parece contingente às discriminações que as pessoas com epilepsia tendem a aceitar como reais, porque elas próprias aprenderam a se sentir estigmatizadas. Sentir-se estigmatizada é desvantajoso e isolar-se reduz o risco de lidar com discriminação. Baixos índices de casamento podem ser explicados por limitado contato social, evitação de contatos mais íntimos com medo de ser rejeitado, baixa auto-estima e problemas associados à sexualidade (Morrell, 1991). A baixa auto-estima no adulto pode ser resultado da percepção do estigma e das dificuldades no trabalho e nos relacionamentos. Um distúrbio crônico se traduz num processo contínuo de mudanças e ajustamentos que depende de vários fatores mais ligados ao sujeito do que ligados à doença ela própria como idade de início, duração, severidade (Salgado & Souza, 2001). São as avaliações afetivo-cognitivas subjetivas que controlam como os portadores de epilepsia sentem o impacto da doença no dia a dia. Vários fatores influenciam a maneira do indivíduo interpretar as situações da vida e a doença em particular e estão ligadas às características de personalidade e história de vida individuais, níveis de expectativas, estratégias de controle da doença e de relacionamentos, avaliação de auto-eficiência e auto-conceito bem como a percepção se possui ou não suporte social. O indivíduo se vê doente avaliando os sinais da doença. O portador de epilepsia tem a percepção de sua doença através de suas crises. Quando elas por alguma razão diminuem de intensidade ou freqüência, o indivíduo pode sentir que está controlando sua doença, mesmo que sob a perspectiva médica não seja considerado um paciente controlado. Pode também acontecer que mesmo que apresente esporadicamente crises, o indivíduo se sinta bastante ameaçado pelo descontrole das mesmas, pois estas acontecem em situações de embaraço e vergonha. Há uma diferença entre freqüência de crises (número real de crises expresso em dias, meses e ano, segundo avaliação médica) e percepção de controle de crises (avaliação subjetiva a respeito de como interpreta o controle das mesmas) (Souza, 2001). A frequência de crises tem o significado que a pessoa der. A auto-avaliação do que significa ser doente, ter crises e fazer uso de drogas e de quanto percebe suas crises como controladas ou não, são parâmetros para suas respostas de bem estar (Salgado & Souza, 2001). As interpretações das situações como estressantes são extremamente individualizadas. Pessoas com epilepsia vivem comumente situações que são consideradas estressantes. O inesperado das crises, a falta de controle sobre seu corpo, as reações estigmatizantes podem levar a crenças irracionais e sentimentos de insegurança e anormalidade. Estes sentimentos foram identificados por Souza et al (2000b). A maneira de interpretar o controle de sua doença influencia a formação de um lócus de controle interno ou externo. É freqüente na epilepsia, como em qualquer doença crônica, o paciente desenvolver um lócus de controle externo porque acredita que tem pouco controle de sua doença e generaliza esta falta de controle para todos os eventos da vida. Lócus de controle e percepção de controle de crises são importantes controladores de bem estar e qualidade de vida (Salgado & Souza, 2001) . O impacto que a epilepsia causa nas pessoas vai além da experiência com as próprias crises; inclui os caminhos pelos quais as pessoas pensam e sentem sobre si mesmas e a própria história de vida. O senso de vergonha e o medo do estigma (estigma percebido) associado ao "ser uma pessoa com epilepsia" precede até qualquer experiência real de discriminação (estigma real) (Scambler & Hopkins, 1990). É preciso dar atenção para a auto-rotulação como problema de fato. Trabalhar com o significado é central na identificação dos mecanismos psicológicos que a pessoa utiliza para lidar com a doença. Mesmo que a pessoa nunca enfrente um estigma real, o estigma introjetado pode ser extremamente forte e impedir um ajustamento satisfatório porque as percepções pessoais ou sociais são incorretas. O estigma afeta a saúde de maneira geral, interferindo nos aspectos psicológicos e no bem-estar das pessoas. Conclusão O objetivo da educação em saúde é a mudança de comportamento. A meta é desenvolver estratégias que levem a um estilo de vida saudável, que reduzam as crises e problemas associados, bem como interpretar e agir adequadamente no social, minimizando a força do estigma. A monitoração dos resultados comportamentais deve ser periódica em cada avaliação médica, não somente do aspecto clínico mas dos ganhos na qualidade de vida, nas diferentes etapas do processo da doença. Elisabete Abib Pedroso de Souza é Prof. Dr. Departamento de Neurologia FCM Unicamp- Responsável pelo Laboratório de Qualidade de Vida em Neurologia. Paula Teixeira Fernandes é Doutoranda, Pós-Graduação em Ciências Médicas FCM Unicamp Priscila Camile Barione Salgado é Mestranda, Pós-Graduação em Ciências Médicas FCM Unicamp Fernanda Doretto é Mestranda , Pós-Graduação em Ciências Médicas FCM Unicamp. Referências bibliográficas - Artigas J. Psychological amd social implications of epilepsy in adolescents. Rev. Neurol., 1999; 28 (161): 43-49 - Baker GA. Health-related quality of life issues: Optmizing patient outcomes. Neurology, 1995, 45: S29-S34. - Collings JA. Psychosocial well-being and epilepsy: an empirical study. Epilepsia, 1990; 31 (4): 418-426 - Fejerman N. & Caraballo R. Impacto de la epilepsia em el niño y su familia. In Devilat M. (ed): La epilepsia in LatinoAmerica. Santiago de Chile. Iku editorial, 2000. p. 245-254 - Fernandes PT & Souza EAP. 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