ESTADO E EDUCAÇÃO NA CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE INCLUSIVA NILMA MARIA CARDOSO FERREIRA* RESUMO Abordagem da educação contextualizada no Estado capitalista contemporâneo. Apresenta reflexões sobre a exclusão social, especificando a realidade da pessoa com deficiência e defende a educação inclusiva como política pública para construção da sociedade inclusiva. Palavras-chave: Estado. Educação. Educação Inclusiva. Sociedade Inclusiva 1 INTRODUÇÃO Ao estudarmos a realidade específica da educação brasileira, enveredamos na perspectiva da forma do Estado brasileiro, que está submetido a uma característica universal como sociedade capitalista, ao mesmo tempo em que tem a sua singularidade. No Brasil, o fenômeno da exclusão social reflete uma sociedade marcada por profundas desigualdades estruturais. Pode se falar de uma sociedade civil extremamente secundarizada, estranha ao Estado, porque tem seu reconhecimento social bloqueado. Isso tem implicado no comprometimento, inoperância e precariedade dos serviços públicos sociais em diversos setores. Nesse contexto, muitos segmentos não usufruem direitos básicos como a educação. As pessoas com deficiência constituem um desses segmentos, pois a sua diferença é ideologicamente tratada como incapacidade. Dessa forma, são afastados da lógica do mundo da produção e sofrem um processo progressivo de exclusão. NERI (2003) propõe um mapeamento da deficiência no Brasil para traçar o alvo das políticas locais de inclusão social e perspectivas para as pessoas com deficiência. As pessoas com deficiência somam 14,4% da população brasileira, enquanto dados do Censo Universitário 2003 (INEP) demonstram a baixa inserção desse extrato populacional nos ambientes acadêmicos É necessária a promoção de ações que promovam a inclusão das pessoas com deficiência nos ambiente acadêmicos, em condições de igualdade. (SESU, 2005). Apesar de existir uma legislação específica voltada para a defesa dos direitos das pessoas com deficiência, ainda há pouca visibilidade sobre a implementação da mesma. Essa implementação é imprescindível para a concretização de uma sociedade inclusiva. Na sociedade inclusiva ninguém é bonzinho. Ao contrário. Somos apenas - e isto é o suficiente - cidadãos responsáveis pela qualidade de vida do nosso semelhante, por mais diferente que ele seja ou nos pareça ser. Inclusão é, primordialmente, uma questão de ética.(WERNECK, 1997, p. 21) Compreende-se, entretanto, que ainda há uma cultura sobre a educação inclusiva como sendo uma concessão para inserção da pessoa com deficiência. Para que haja a superação dessa cultura e a construção de uma nova, é necessário que a educação inclusiva seja reivindicada como política pública, para defesa dos direitos desse segmento social, possibilitando uma melhor qualidade de vida, com perspectivas para a construção de capacitação e formação, inclusive em nível superior, que permita maiores e melhores perspectivas para esses cidadãos e sujeitos de direitos. 2 ESTADO, EDUCAÇÃO E SOCIEDADE INCLUSIVA O Estado é uma construção histórica, social e política e, portanto, do domínio do ser social. O Estado expressa as relações sociais, políticas, culturais e econômicas de cada época de uma sociedade. [...] Marx e Engels deixaram mais do que simples fragmentos de uma teoria do Estado capitalista. Deixaram uma análise concreta que Lênin aplicou a uma situação concreta, cujas conclusões principais acerca da dialética do Estado capitalista ainda são pertinentes na época contemporânea. (FARIAS, 2000, p. 13). É necessário compreender o Estado numa análise marxista, a partir da sua natureza e do seu papel. (FARIAS, 2000). O Estado não é neutro. Na sociedade capitalista, ele integra a lógica do capital; é um produto da lógica da produção, então o Estado e o capital são indissociáveis e são historicamente determinados. "São fenômenos situados na estrutura complexa do ser social, podendo, portanto, ser abordados por intermédio do mesmo método dialético e materialista" (FARIAS 2000, p.14). Nesse sentido é necessário compreender o processo histórico e a ação contraditória do ser social. A compreensão da sociedade está impregnada das ideologias que a permeiam. Aliás, a sociedade é, acima de tudo, uma ideologia. Michael Löwy se debruça a refletir sobre o conceito de ideologia e, por meio da explicação do materialismo histórico de Marx, refere-se a uma "consciência deformada da realidade que se dá através da ideologia dominante: as idéias das classes dominantes são as ideologias dominantes na sociedade". (LÖWY, 1991, p.12). Ampliando essa discussão sobre as classes sociais, entre dominantes e dominadas, as ideologias estão presentes nas mais diversas formas de relação social e tendem a constituir grupos a partir do retorno produtivo que estes podem dar à sociedade. Assim, são constituídos os chamados setores dos excluídos, entre eles, negros, mulheres, indígenas, camponeses, deficientes etc. Esse quadro explica a contraditória relação opressores-oprimidos, trabalhada por Paulo Freire que, pela via da educação, sugere e defende a liberdade ou a libertação dessa cultura. Paulo Freire critica a "falsa generosidade" dos opressores e alerta que "ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão". (FREIRE, 1988, p. 52). Um outro aspecto relevante a ser lembrado é sobre quem forma esse conjunto de pessoas que integra o grupo social. A sociedade pode ser vista como um repertório de identidades. Mas a "identidade é movimento, é desenvolvimento do concreto; é metamorfose; é sermos o Um e o Outro, para que cheguemos a ser Um, numa infindável transformação" (CIAMPA, 1995, p.74). A relação do indivíduo com o ambiente social sugere uma resposta desse sujeito, a partir de um processo de adaptação compreendido numa dinâmica interiorização/exteriorização, dialética em que "a percepção do mundo se faz de acordo com o que já foi interiorizado, e a exteriorização do sujeito no mundo se faz conforme sua percepção das coisas existentes" (LANE, 1995, p.83). A sociedade não corresponde a um grupo homogêneo, ao contrário. Sua maior característica é a diversidade expressa pelas diferenças, sendo que algumas delas sugerem um fenômeno e/ou processo inevitável como o gênero e a etnia; outros parecem conseqüência dos construtos sócio-culturais como as classes sociais. Dessas diferenças e da forma de lidar com as mesmas, muitas conseqüências surgem e apontam para problemas que deságuam no fenômeno da exclusão social e com esta, direitos básicos de cidadania costumam ser negados. É preciso indignar-se frente à sociedade incapaz de conviver com as diferenças (...) na verdade, a deficiência está na inabilidade de lidar com as diferenças (...) é preciso, então, avançar no sentido de construir novos paradigmas: dizer sim à diferença. Incluir e humanizar caminhos, nisso está implicado um grande e inovador desafio que não é o de acabar com o preconceito, mas impedir que ele se instale (FERREIRA, 1997 p. 55). A Constituição Federal expressa a lei máxima do país, e é preciso resgatá-la para que se observe a legitimidade do objeto do presente trabalho e, será a partir da observação dos direitos garantidos por lei que poderemos estabelecer uma comparação entre o legal e o real registrando o que efetivamente é viabilizado nos espaços institucionais responsáveis pela promoção e defesa dos direitos humanos. "O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência preferencialmente na rede regular de ensino" (BRASIL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988 Art. 208). A discussão sobre as necessidades de combate a quaisquer práticas de exclusão social tem se intensificado dentro do discurso e de práticas que defendem a sociedade inclusiva, mas ainda não representam uma transformação suficiente para a erradicação de vícios que mantêm as práticas exclusivas. Nunca, em tempo algum, se falou tanto na importância da participação de minorias sociais, em ambientes antes reservados apenas àqueles que se enquadravam nos ideais preestabelecidos e perversos de força, beleza, riqueza, juventude, produtividade e perfeição (...) Trabalhar, inovar e ousar implementar a educação numa perspectiva inclusiva, não é missão impossível. É, sim, um desafio superável. É uma questão de pensar e mudar. (FERREIRA , 2003 p. 154). BROCK & SCHWARTZMAN (2005) coloca que os maiores desafios da educação no Brasil são, ainda, a má qualidade, a repetência e a evasão, sendo que estes dois últimos fatores decorrem do primeiro. Ele faz uma contextualização histórica e defende a necessidade de inovações na política educacional do sistema público do ensino para que sejam "solucionados problemas estruturais que entravam seu funcionamento e sua expansão" (BROCK & SCHWARTZMAN, apud DURHAM, 2005 p. 235). A inclusão não representa somente ambientação, ou seja, inserir a pessoa num determinado ambiente. É, antes de tudo, uma filosofia, definida por Sassaki como: o processo pelo qual a sociedade se adapta para poder incluir, em seus sistemas sociais gerais, pessoas com necessidades especiais e, simultaneamente, estas se preparam para assumir seus papéis na sociedade. (SASSAKI, 1997, p.41). Esse processo envolve a aceitação e a valorização da diversidade humana, através do reconhecimento das diferenças; contribui com a construção de uma nova sociedade e isso implica em criar condições de mudanças que favoreçam a acessibilidade e, conseqüentemente, a inclusão. A sociedade inclusiva é conseqüência de um movimento internacional, com regras definidas, explicitadas pela primeira vez em 1990 através da resolução 45/91, da Assembléia Geral das Nações Unidas, cujo teor defende uma sociedade para todos. Ou seja, é uma forma de denunciar e combater as práticas e ideologias que, por ação ou omissão, estimulam e propagam a exclusão de alguns segmentos da sociedade. A sociedade para todos, consciente da diversidade da raça humana, estaria estruturada para atender às necessidades de cada cidadão, das maiorias às minorias, dos privilegiados aos marginalizados. Crianças, jovens e adultos com deficiência seriam naturalmente incorporados à sociedade inclusiva, definida pelo princípio:'todas as pessoas têm o mesmo valor'. E assim trabalhariam juntas, com papéis diferenciados, dividindo igual responsabilidade por mudanças desejadas para atingir o bem comum. (WERNECK, 1997 p. 21). SAWAIA (2001) aborda o tema da exclusão como sendo uma "dialética exclusão/inclusão". Ele diz que a exclusão é um processo complexo e multifacetado "uma configuração de dimensões materiais, políticas, relacionais e subjetivas (...) nesse processo dialético, a exclusão só existe como parte constitutiva dela" (SAWAIA, 2001. p. 9). Fato é que não se pode dissociar as questões sociais, como o processo de exclusão social, da relação direta que este tem com o Estado em que esse processo ocorre. Segundo Althusser, numa leitura marxista de sociedade de classe, a produção necessita, para se manter, da reprodução das condições materiais da produção, ou seja, a reprodução dos meios de produção. Essa reprodução refere-se às forças produtivas e às relações de produção existentes. A reprodução dos meios de produção envolve os meios de produção e a força de trabalho. Essa reprodução pode ser compreendida no local do trabalho, mas ocorre fora da empresa. O salário é uma condição necessária para a reprodução da força de trabalho, mas no ambiente social, situa-se lugares que dão sustentação a essa reprodução. A escola é um desses lugares, ou melhor, o mais significativo deles. A escola assegura, fora da produção, a reprodução da força de trabalho. A aprendizagem, os saberes práticos instrumentalizam essa reprodução (da força de trabalho): a reprodução da qualificação, da submissão. Nesse sentido, a ideologia (dominante) determina a sua eficácia. A explicação sobre a teoria marxista é apresentada pela descrição da organização social as partir de dois níveis ou instâncias: a infra-estrutura ou base econômica, correspondendo às forças produtivas e às relações de produção, na sua unidade; e a superestrutura, correspondendo ao jurídico-político (o direito e o Estado) e à ideologia (religiosa, moral, jurídica, política). O Estado é apresentado como possibilidade de visualização material da ideologia e do concreto. Mas a teoria do Estado também é apontada numa perspectiva descritiva. A fase descritiva, entretanto, é transitória. A teoria descritiva do Estado representa uma fase da constituição da teoria que exige por si mesma a superação desta fase. O Estado pode ser compreendido como aparelho (repressivo) de Estado e, nesse sentido, é indispensável e indissociável a função de poder do Estado. Althusser propõe acrescentar à teoria marxista do Estado, a partir da distinção entre poder de Estado e aparelho de Estado, outra realidade conceitual que é o conceito de aparelhos ideológicos de Estado. Os aparelhos ideológicos de Estado diferem do aparelho repressivo do Estado. Este último funciona, predominantemente, pela violência. Os aparelhos ideológicos de Estado são de ordem religiosa, escolar, familiar, jurídica, política, sindical informação e cultural. Os aparelhos ideológicos de Estado podem ser não só o alvo, mas o local da luta de classes. É nesse sentido que se pode visualizar a materialização, ou melhor, o local onde ocorre a reprodução dos meios de produção. Os aparelhos de Estado funcionam simultaneamente pela repressão e pela ideologia; os aparelhos ideológicos de Estado também podem funcionar da mesma forma, embora a ideologia predomine. O aparelho Ideológico de Estado que foi colocado em posição dominante nas formações capitalistas maduras, após uma violenta luta de classes política e ideológica contra o antigo aparelho Ideológico de Estado dominante, é o aparelho ideológico escolar. (ALTHUSSER, 1974, p. 60). Na Escola compreende-se que não há neutralidade e, apesar de existirem professores que enfrentam as piores condições de trabalho, lá estão situados os "profissionais da ideologia". Assim, a proposta de Althusser é dar visualização à ideologia que reproduz as relações de produção, através de aparelhos ideológicos do Estado, dando ênfase ao contesto escolar. Em última instância, é o Estado quem sustenta essa reprodução. A ideologia tem uma expressão e existência material, e é nessa e por essa materialização que a reprodução ocorre. É através da hegemonia que o Estado tem sua representação de suposta neutralidade, de que está para atender aos interesses de todos. Na verdade, o Estado faz concessão à classe dominada para que não se tome consciência de seu caráter de classe, mas esse Estado só faz essas concessões para atender aos interesses maiores da classe dominante. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O Estado capitalista contemporâneo é contextualizado constrói um progressivo movimento de exclusão social. Na lógica da sociedade capitalista, que é classista, há uma classe que domina e que é privilegiada pelo poder dos meios de produção. Sua dominação é mantida por um processo ideológico, por uma ideologia dominante. As pessoas com deficiência, entre outros, configuram um dos segmentos excluídos do meio de produção e, por conseguinte, dos investimentos de políticas públicas em seu favor. Dentre essas políticas a educação. O Estado capitalista não é neutro. Ao contrário, ele tem um papel significativo, cujas funções básicas podem ser de mediação ou de intervenção. Nesse sentido, está contextualizado no tempo e no espaço para atender à sociedade capitalista e a uma ideologia dominante (do capitalista); O processo de exclusão e inclusão sociais correspondem a uma contradição absolutamente coerente com as contradições da sociedade capitalista, que assim se mantêm. Para analisar tal realidade, o método do Materialismo Dialético é pertinente, por considerar o contexto histórico, as contradições e a perspectiva da totalidade dessa realidade. A sociedade inclusiva é pensada como possibilidade de combate radical às práticas de exclusão social. Consiste na perspectiva da superação da sociedade capitalista. Trata-se de um significativo desafio que, de maneira alguma, se faz facilmente acessível, mas que é mantido por uma utopia por onde perpassam as relações de classes e sua repercussão nas mais diversas esferas sociais, sobretudo no contexto histórico da construção das políticas educacionais. REFERÊNCIAS ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Lisboa: Editorial Presença, 1974. BROCK, Colin; SCHWARTZMAN; Simon (Org.). Os desafios da educação no Brasil.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. BRASIL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Brasília, 1988. CIAMPA; Antonio da Costa.Identidade. In: LANE, Silvia T. M.; CODO, Wanderley (Org.). Psicologia Social: o homem em movimento. São Paulo: brasiliense, 1984. p. 58-75. FARIAS, Flávio Bezerra de. O Estado capitalista contemporâneo: para a crítica das visões regulacionistas.São Paulo: Cortez, 2000. _________. A Globalização e o Estado cosmopolita: as antinomias de Jürgen Habermas. São Paulo: Cortez, 2003. 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