VESTIBULAR: O DESAFIO DA INCLUSÃO NA EXCLUSÃO Lúcia Virginia Mamcasz Viginheski1 Orientadora: Profª Ms. Eglecy Lippmann Resumo: O presente estudo é resultado de vivências teórico- práticas da pesquisadora na área da Educação Especial e traz como objetivo o questionamento das condições educacionais oferecidas às pessoas com necessidades especiais no vestibular. Trata-se de uma análise de questões, predominantemente de matemática, contidas em edições recentes de um concurso vestibular de uma universidade pública do Estado do Paraná, questões essas respondidas por pessoas cegas. Atualmente, o ensino na escola realiza-se na maioria das vezes de forma abstrata, desvinculada da realidade, já que desconsidera conceitos prévios que os alunos trazem, citando como exemplo, a educação matemática. Essa situação se acentua quando se trata de aluno deficiente visual, especialmente no momento em que ele presta o vestibular, esta por sua vez configura- se como uma grande barreira em sua trajetória escolar. A análise foi fundamentada em Vygotsky, Piaget e D’Ambrósio. Foi possível observar que mudanças devem ocorrer concretamente no sistema educacional, pois é importante e urgente considerar a diversidade, para que se efetive a política da inclusão. Há necessidade de diferentes enfoques na educação como um todo, essencialmente no que diz respeito ao vestibular, uma vez que esse é um processo seletivo necessário dentro da atual conjuntura, e que, portanto deve consider a urgência da ressignificação de conteúdos na abordagem educativa. Palavras-chave: Educação; vestibular; cegos; inclusão Abstract: The study is a result of the theoretical practical experiences of the researcher in the field of special education. It aims at questioning the educational conditions that are offered to people with special needs during the university 1 Professora Esp. da APADEVI – Assoc. Pais e Amigos dos Def. Visuais, Guarapuava - PR. ANALECTA Guarapuava, Paraná v. 5 no 2 p. 35-42 jul/dez. 2004 36 entrance examination (Vestibular). This study analyses Mathematics tasks, applied to blind people, in the last issues of the entrance examination of a public university in the state of Paraná. Nowadays, in most cases, the teaching in schools is developed in an abstract mode, disentailed from reality and not taking into account the students’ previous knowledge, as for instance, mathematical education. Such situation aggravates when visually handicapped students have to take entrance examinations which configure as a barrier in the student’s school development. The analysis is based on Vygotsky, Piaget, and D’Ambosio. It was possible to observe that changes should occur concretely in the educational system, considering the diversity, accomplishing a police of social inclusion. This study suggests that there is the need to have different focuses in Education as a whole, essentially concerning the university entrance examination, which is a necessary selective process, what, in turn, leads to the necessity to resignify the contents in the educational context. Key-words: Education; university entrance examination; blind people; inclusion Vive-se um momento histórico no cenário educacional em que despontam políticas sobre inclusão. Pessoas com necessidades especiais estão tendo a oportunidade de freqüentar a escola pública, de concluir o ensino fundamental, médio e, em muitos casos, ingressar no ensino superior, apesar das dificuldades do atual sistema educacional. Nos últimos anos, a oportunidade de fazer parte de bancas especiais para o atendimento a vestibulandos com necessidades especiais, dentre eles, pessoas cegas, possibilitou observar certas peculiaridades. Apesar de as provas para os cegos serem adaptadas ao braille, em muitas situações, atuou-se como ledores2 porque, mesmo o cego podendo usufruir do acréscimo de 50% no tempo para realização das provas, esse tempo acaba sendo insuficiente pois, ao contrário da leitura visual, a leitura do código braille é mais lenta, já que o tato fornece informações segmentadas: descodificase letra por letra para formar uma palavra, palavra por palavra para formar uma frase e assim sucessivamente. Ultimamente, o vestibular apresenta característica vocacionada, agrupando os cursos por áreas de conhecimentos afins, o que, de certa forma, tornou- o mais acessível às pessoas com necessidades especiais. No entanto, observamos uma certa preocupação com relação às disciplinas comuns a todos os cursos, como por exemplo, a Matemática. Esta é alvo de muitas preocupações por se tratar da disciplina que apresenta expressivo índice de baixo rendimento escolar. Com os resultados apresentados, (a disciplina em questão pode ser considerada) excludente, em tempos que muito se fala de inclusão. 2 Termo utilizado para nomear pessoas que lêem para cegos. 37 Levando em consideração os muitos aspectos que envolvem a disciplina, sabe- se que não são somente os cegos que encontram dificuldades para resolver as questões de matemática propostas nos vestibulares. Voltando à trajetória escolar do aluno, que antecede o vestibular, observamos que o ensino da Matemática nas escolas ainda é extremamente conteudista, mesmo havendo alguns professores que buscam diferentes alternativas e metodologias para o ensino dessa disciplina. Muitos professores, ainda que saibam (reconheçam) a inutilidade de alguns conteúdos da escola na vida prática dos alunos, permanecem insistentes nas mesmas posturas, como, por exemplo, o chavão usado: “aprendam porque mais tarde vocês vão precisar...” Segundo D’Ambrósio, “não é de se estranhar que o rendimento esteja cada vez mais baixo em todos os níveis. Os alunos não podem agüentar coisas obsoletas e inúteis, além de desinteressantes para muitos.” (1996, p. 59). Vygotsky (1987), orienta que o conceito é formado através da mediação de outras pessoas e se dá atrelado à história do indivíduo. Em nossas escolas, os alunos muitas vezes não têm a oportunidade de construir seus conceitos. Os professores, não atuando como mediadores do conhecimento, entregam fórmulas prontas e alguns exemplos a serem seguidos na extensa lista de exercícios propostos. Isso tudo vai deixando os alunos insatisfeitos e, muitas vezes, leva-os a repudiar algumas áreas de conhecimento por sentirem-se incapazes de compreendê-las. Diversas são as posturas dos professores que lecionam em escolas com turmas de alunos cegos inclusos. Em muitos casos, esses alunos são motivos de preocupação, de desafio, de insegurança e até mesmo de contrariedade à inclusão. Muitos professores, apesar de se manifestarem favoráveis a esta política, deparam- se com as barreiras do desconhecimento, do despreparo, enfrentam salas de aula superlotadas, desmotivação financeira, falta de apoio, de formação, de informação, etc. É com todas essas dificuldades que o aluno cego chega ao vestibular, momento em que compete a uma vaga com centenas de pessoas, em desvantagem, devido a sua limitação visual. A ele cabe, ainda, realizar as mesmas provas, com as mesmas questões, elaboradas por pessoas que têm uma visão formada na homogeneidade, não na diversidade, pessoas que ainda acreditam que todos são iguais, que negam a diversidade. Diante desse quadro, tomou-se como objeto de análise algumas questões dos últimos vestibulares, predominantemente voltadas à Matemática, realizados pela Universidade Estadual do Centro-Oeste – UNICENTRO, em Guarapuava (PR), em que alunos cegos foram submetidos às mesmas provas que a grande maioria dos alunos com visão normal. Questão nº 36, p. 18, Prova de Matemática - Vestibular de Primavera - UNICENTRO – 2000: 38 A adaptação desta questão, ao braille, trouxe o seguinte enunciado: “Considere o diagrama cartesiano em que as retas r e t são perpendiculares e se interceptam no eixo OY, acima do eixo OX. A reta t corta OX no ponto A=(2,0) e faz ângulo de 120º com o eixo OX. As equações da reta r e da reta que é paralela a t e passa pela origem são...” Cabe destacar que na prova em braille o gráfico é substituído pela sentença descrita. A questão foi selecionada por apresentar uma adaptação bastante complexa e abstrata, pois o cego, além dos conhecimentos sobre Geometria Analítica, necessita ainda construir tal gráfico mentalmente, a partir da descrição acima. Essa mesma descrição foi mostrada a alguns professores que estudaram ou concluíram o Curso de Matemática. Foi-lhes solicitado que esboçassem o gráfico, sem terem conhecimento aquele impresso à tinta. Nenhum deles conseguiu chegar a um semelhante; ou mesmo que se aproximasse do proposto. Questiona-se então: como é possível a um cego, esboçar tal gráfico e resolver tal questão? Questão nº 1, Prova de Matemática - Vestibular de Primavera - UNICENTRO – 2000: 39 Essa questão foi selecionada por apresentar outra forma de adaptação para o cego em Braille, com os gráficos adaptados em relevo. Visualmente, tem-se a noção da totalidade dos gráficos, no entanto, como citado anteriormente, o tato fornece informações segmentadas e, tratando-se de uma representação gráfica, que sentido faz para o cego? Questão nº 5, Prova de Geografia - Vestibular de Verão - UNICENTRO – 2004: 40 Cabe salientar novamente que, na adaptação em braille, os gráficos são substituídos pela seguinte descrição: “A questão contém dois gráficos, representando dois tipos climáticos do Brasil. Ambos possuem colunas numeradas à esquerda e à direita. À esquerda, há a seguinte numeração: 0, 100, 200, 300, 400, 500 e 600 mm e à direita, outra numeração: 0, 5, 10, 15, 20, 25, 30º C. Abaixo: os meses do ano, representados pelas suas letras iniciais. No Gráfico I, pequenas barras que representam as chuvas que caem durante todo o ano estão colocadas acima das letras dos meses, da seguinte forma: Janeiro - atinge 300 mm Fevereiro - atinge 250 mm Março - atinge 200 mm Abril – mais de 100 mm Junho, julho e agosto – as barras ficam bem diminutas, não atingindo 50 mm Maio e setembro – atingem 50 mm Outubro, novembro e dezembro – as barras vão aumentando, até atingir 250 mm, em dezembro. Acima das barras, uma linha (representando as temperaturas) une a linha da esquerda à linha da direita da seguinte forma: começa à direita na altura dos 27º C, no mês de dezembro, desce até 18º C no mês de julho e volta a subir, chegando novamente aos 27º em janeiro. O gráfico II tem o mesmo formato anterior, com os seguintes detalhes: as chuvas são concentradas nos meses de verão, diminuem na primavera e no outono. No inverno, junho e julho são meses de poucas chuvas. As temperaturas no verão chegam aos 20º C, descendo a menos de 15º C no inverno. Com base nas informações e nos conhecimentos sobre os tipos climáticos do Brasil, pode-se afirmar...” Tal questão foi selecionada por envolver gráficos estatísticos aplicados à Geografia e ter sido adaptada em braille para o cego de uma forma extensa e complexa. A extensão na descrição dos gráficos além de obrigar o cego a realizar inúmeras leituras, tornando uma situação exaustiva e demorada, não são objetivas como os gráficos correspondentes. Outras questões poderiam também ser abordadas, tais como: mapas de história, onde predominam conceitos pertinentes à visualidade; o espaço geográfico mostrado apenas com elementos de significatividade visual (mapas); tabelas; gráficos, que neste estudo não foram objeto de análise pela complexidade em sua extensão conceitual. Quais são, então, as soluções que podem ser apontadas para amenizar o problema? 41 Vygotsky, apud Oliveira (1995), considera que a aprendizagem é um processo em que as pessoas adquirem informações, habilidades, atitudes, valores, etc., através do contato com a realidade, interagindo com o meio e com outras pessoas. Ao desenvolvermos os conceitos com nossos alunos, abrimos espaço para que possam se apropriar dos conhecimentos elaborados historicamente pela humanidade, os quais todos têm direito, pois são instrumentos necessários à cidadania. Piaget (1975) considera o jogo ou atividade lúdica condutor da ação à representação, na medida em que evolui da sua forma inicial do exercício sensório motor para a forma do jogo simbólico, ou da imitação, esta sendo uma atividade representativa. A representação, segundo o autor, inicia-se quando acontece a diferenciação entre significantes e significados. Daí a importância da educação pressupor a experimentação, as vivências em situações concretas para a formação de conceitos, tanto lógicomatemáticos, como em outras áreas de conhecimento. Para Vygotsky (1995), a cegueira não é apenas uma deficiência, mas em certo ponto, uma fonte de manifestações de suas capacidades, portanto, é preciso acreditar que todas as pessoas podem aprender. Falsear o ensino para o aluno cego é menosprezar suas capacidades. Realizar adaptações curriculares é necessário, mas é preciso usar o bom senso para escolher o que realmente é útil e necessário para sua cidadania e autonomia. A Constituição Brasileira, promulgada em 1988, através do artigo 208, inciso I, garante a todos os cidadãos ensino fundamental obrigatório e gratuito. Embora a legislação nada defina quanto ao atendimento no nível superior, tal direito deveria ser assegurado para que todos tivessem acesso a esse nível, sem serem necessários processos de seleção, como está posto. Por questões culturais, históricas, econômicas e políticas, não existem vagas para todos e o vestibular acaba sendo um mal excludente necessário, resultando em uma grande barreira do sistema educacional. Deveria ser trabalhado sob um novo enfoque, considerando as diversidades, oferecendo melhores condições para que as pessoas com necessidades especiais, por exemplo, pudessem competir com iguais condições com pessoas não deficientes. Reservar cotas para deficientes, negros, indígenas, alunos de escolas públicas ou outras pessoas que são discriminadas pelo preconceito sobressalta a discriminação, afirmando com isso que eles não têm condições. E realmente, como se apresenta na atualidade, sem adaptações procedimentais, curriculares e pedagógicas, sem dúvida evidenciam-se suas incapacidades e deficiências que se propôs neste estudo foi exatamente questionar e denunciar a ausência de alternativas para o enfrentamento e superação desta situação. Diante dessas constatações e havendo situações similares em outras realidades do meio educacional brasileiro, algumas perguntas se põem: Há inclusão? Se há, que tipo de inclusão encontramos? Se não há, o que fazer relativamente à Educação para que a inclusão seja real? 42 Só se efetivará a política de inclusão quando de fato entendermos e tratarmos a diversidade da clientela educacional com a responsabilidade das ações concretas. Referências bibliográficas CONSULTEC – Consultoria em Projetos Educacionais e Concursos S/C. Caderno de Prova de Língua, Literatura e Matemática. Vestibular de Primavera da Universidade Estadual do Centro Oeste – UNICENTRO, Guarapuava: 2000. CONSULTEC – Consultoria em Projetos Educacionais e Concursos S/C. Caderno de Provas 2. Vestibular de Primavera da Universidade Estadual do Centro Oeste – UNICENTRO, Guarapuava: 2003. CONSULTEC – Consultoria em Projetos Educacionais e Concursos S/C. Caderno de Provas 2. Vestibular de Verão da Universidade Estadual do Centro Oeste – UNICENTRO, Guarapuava: 2004. D’AMBRÓSIO, U. Educação matemática: da teoria à prática. Campinas: Papirus, 1996. MEC – Ministério da Educação e Desporto. Constituição: República Federativa do Brasil, 1988. Brasília: 1989. OLIVEIRA, M. K. de. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento um processo sóciohistórico. São Paulo: Scipione, 1995. PIAGET, J. A formação do símbolo na criança. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975. VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1987. _____. Fundamentos da Defectologia. Obras Completas, tomo cinco. Havana: Pueblo y education, 1995.