Como citar este artigo: Fechar Formato ISO SOUZA, Regina Maria de. Língua de sinais e língua majoritária como produto de trabalho discursivo. Cad. CEDES, Set. 1998, vol.19, no.46, p.57-67. ISSN 0101-3262. Formato Documento Eletrônico (ISO) SOUZA, Regina Maria de. Língua de sinais e língua majoritária como produto de trabalho discursivo. Cad. CEDES. [online]. Set. 1998, vol.19, no.46 [citado 14 Março 2005], p.57-67. Disponível na World Wide Web: . ISSN 0101-3262. Língua de sinais e língua majoritária como produto de trabalho discursivo Regina Maria de Souza* Resumo: O presente estudo tem como objetivo problematizar a práxis pedagógica de ensino bilíngüe para surdos com base na concepção bakhtiniana de linguagem. Assumir tal perspectiva é pressupor a construção da subjetividade como resultado de um processo no qual o "outro" possui papel ativo e constitutivo. No processo de construção dialética do objeto lingüístico o sujeito entra no fluxo dinâmico de uma cadeia de enunciados já tecidos histórica e socialmente. Minha contribuição nesta apresentação busca resgatar o papel desse "outro" no processo recíproco de ensino e aprendizagem da criança surda, no contexto de seu trabalho com duas línguas: a de sinais e o português. Palavras-chave: dialogia, ensino de língua, aluno surdo Esta reflexão terá como objetivo problematizar a constituição do sujeito pela linguagem, no contexto atual das discussões relativas à implantação de um ensino bilíngüe para surdos, tema sobre o qual se tem discutido muito nos últimos anos. Como sabemos, na proposta bilíngüe a língua brasileira de sinais (Libras) seria introduzida como primeira língua (L1) e o português como segunda (L2). Os argumentos utilizados em favor da introdução, o mais cedo possível, da Libras no programa escolar são, igualmente, bem conhecidos. Aponta-se: 1) Para a existência de um "período crucial" para a aquisição da linguagem que, supostamente, abrangeria os primeiros anos de vida. Como o acesso aos sinais não é limitado por nenhum entrave biológico, o que não ocorre com a fala, a exposição à Libras garantiria à criança surda a possibilidade de adquirir linguagem nos estreitos limites desse "período crucial" (Rodrigues 1993, Luján 1993). 2) Para a existência de uma competência inata, pressuposto e núcleo duro do paradigma inatista. Segundo essa perspectiva, o sujeito é concebido como detentor, por características biológicas de sua espécie, dos princípios gerais de uma gramática universal. Dessa forma, bastar-lhe-ia, para aprender uma língua, estar imerso numa comunidade lingüística e receber dela "inputs lingüísticos cruciais". Dito de outro modo, a competência lingüística do sujeito seria ativada a partir de sua exposição a um número reduzido de dados lingüísticos; em decorrência, a língua emergiria de seu interior como conseqüência de um funcionamento cognitivo-biológico autônomo (veja mais sobre o assunto em Chomsky 1977). Essas duas linhas argumentativas, apesar de se buscarem em áreas de saber diversas (neurologia e lingüística, respectivamente), solidarizam-se quando o objetivo é defender a língua de sinais como L1. Uma vez que a grande maioria das pesquisas sobre a sintaxe das diferentes línguas de sinais é realizada por autores inatistas, esses dois argumentos são os mais utilizados na sustentação de uma proposta bilíngüe para surdos. Exposto à Libras, desde o início de sua vida, o sujeito surdo teria, assim, garantido seu direito a uma língua de fato. A partir dela, o ensino do português (L2) seria facilitado pela garantia de um funcionamento simbólico-cognitivo já ocorrendo de modo satisfatório. Apresso-me a explicitar aqui que também defendo a Libras como L1 e o português como L2. Fazer essa defesa já foi tema de um outro trabalho meu (Souza 1996), no qual dirigi esforços na argumentação da importância do acesso à Libras pela relevância que adquire no processo de construção da identidade da pessoa surda em todos os seus aspectos, a saber, lingüístico, cognitivo e social. Na reflexão que ora inicio, aprofundarei minhas reflexões sobre a indissociabilidade que se instaura entre "língua" e "sujeito". Minhas argumentações, aqui, procurarão enfatizar o fato de que "ensinar" uma língua é mais do que expor a criança a dados lingüísticos; muito além disso, é um processo de (re)organização constante e dinâmica do "eu" e do "outro". Desse modo, em vez de inscrever a língua no plano biológico (porque mental) vou situá- la no espaço dialógico (porque social). Para tanto elegerei Bakhtin (1992a) como interlocutor teórico. Para Bakhtin (1992a), a "verdadeira substância" da língua não está nem no sistema abstrato das formas lingüísticas (no universo lexical, nos fonemas, nos morfemas, nas flexões etc.) nem está alojada no psiquismo individual de cada pessoa. Sua essência não é nem o ato psicofisiológico que a produz nem a enunciação monológica. A "verdadeira substância" da língua é, por excelência, o ato dialógico em seu acontecimento concreto. Entretanto, qualquer diálogo, além de ser ele próprio histórica e socialmente determinado, evidencia uma outra história: a história da própria linguagem. Afirmar que a linguagem oculta e explicita uma história supõe admitir a existência de regularidades, cristalizações de formas e de certas fórmulas discursivas, de significados e de regras formacionais. Para Bakhtin, a história de qualquer língua tem o mesmo núcleo gerador de um enunciado particular, isto é, tem seu início na "faísca" produzida pelas interações sociais. Dito de outro modo, a língua é produto do trabalho coletivo e ininterrupto de sujeitos socialmente organizados, cujo processo instaura a construção, também coletiva, de conhecimentos e saberes sobre o mundo. Homem e linguagem não são, assim, categorias estranhas uma à outra. Homem e linguagem são produtos um do outro, se pertencem. Como produto humano, a linguagem guarda a história das relações sociais, traz a lembrança das oposições de classes, "constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças", e por isso "é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais" (idem, p. 41). Todavia, se a linguagem é marcada pela história, se há sistematicidades, isso não quer dizer que o fenômeno lingüístico se reduz a elas. Ao defender essa idéia, Bakhtin distancia-se do objetivismo abstrato. Para o objetivismo, o que faz da língua objeto de estudo é seu sistema de formas (fonéticas, gramaticais, lexicais), uma vez que, segundo postula essa abordagem, são os traços idênticos, normativos para qualquer enunciação, que garantem a unicidade de uma língua dada e a possibilidade de estudá-la. Segundo o objetivismo, as leis que a regem são imanentes do próprio sistema lingüístico e, portanto, completamente independentes das leis ideológicas. A língua, nessa perspectiva, é concebida como uma instituição social que, como tal, é normativa para o indivíduo, a quem cabe, apenas, aprendê-la. Na base dos métodos de reflexão que levam à postulação da língua como sistema de formas normativas, estão os procedimentos práticos e técnicos elaborados para o estudo das línguas mortas, que se conservaram em documentos escritos. (Idem, p. 96) Essa forma de abordar a língua afetou também a práxis pedagógica que seguiu os mesmos passos dos formalistas. Considere-se, por exemplo, que o ensino escolar tende a reduzir a língua ao léxico e à gramática. O "enriquecimento do vocabulário", quer dizer, os significados cristalizados ou de dicionário das palavras, passa a ser uma meta pedagógica em si mesma na tentativa de o professor garantir, por parte do aluno, a compreensão do texto. Por outro lado, a sintaxe é desvinculada do discurso: não há problematização, com o aluno, das transformações que as formas da língua sofrem no ato da enunciação. A língua é, pois, fracionada. Seu funcionamento é reduzido a regras que, por sua vez, são transmitidas aos alunos para que as memorizem. Yara, uma surda que nos concedeu ricos depoimentos, é um exemplo do produto de uma tal prática escolar. Impossibilitada de ter acesso "natural" à língua oral (pela ausência da audição), foi-lhe imputado um ensino de língua portuguesa circunstanciado na memorização e na automatização de regras gramaticais, com o pretenso objetivo de fazê-la aprender o português. É interessante notar que esse era o modo adotado tanto pela escola regular como pela escola especial, freqüentadas por ela de modo paralelo e simultâneo. Como não conseguia se valer nem das regras nem das palavras que, não obstante, havia decorado e cujos significados havia aprendido a identificar, não conseguia ocupar o lugar de enunciadora. Era solitária, não possuía amigos: eu era oralizada mas não tinha aquele vocabulário, por exemplo, tinha muito vocabulário mas não sabia conversar, não sabia comunicar (…), parece meio frio, igual papagaio, (…) saber falar mas não saber conversar, então, eu repetia tudo. (…) Só sabia imitar mas não entendia profundamente o que eles estavam falando. (Yara) No caso da pessoa surda, fracionar a língua, oferecê-la por partes aos alunos de modo esquematizado, pasteurizado e asséptico, como se fosse possível "ensinar" uma língua da mesma forma que um cirurgião separa órgãos, é também conveniente à escola. Conveniente porque, pareadas e confundidas com ilustrações de murais ou convertidas em objeto de técnicas de associação, as palavras e as regras são transformadas em coisas passíveis de ser transmitidas fora da linguagem. Dito de outro modo, a percepção, a visão, o tato, o olfato etc. passam a ser os canais de "transmissão" da "língua", já que o aluno não ouve. Há aí uma certa contradição: o professor fala embora saiba que não possa ser ouvido. Fala porque a fala é parte de si próprio, indissociada de sua identidade, do exercício de seu papel. Parte de alguém que "aprendeu", nos bancos de cursos universitários, que seus futuros alunos deveriam ser tratados todos iguais (mas a quem?) mesmo que soubesse que não fossem. Diante da criança surda, percebe- se de imediato impotente: como ensinar, se falar não pode ser mais o "meio"? Como "ensinar" sem linguagem? A única "saída" que imagina ter é a redução de seu ato de "ensinar" à estimulação dos canais sensoriais remanescentes como via de acesso à linguagem. Mas que linguagem seria possível brotar de cada mente em particular em tal contexto de "ensino"? Rosângela, surda, aproximadamente 25 anos, resolveu sair da escola quando estava na 3ª série. Atualmente produz e distribui chaveiros para serem vendidos por outros surdos. Quando explica por que saiu da escola sinaliza (tradução para o português feita por mim): "Por quê? Eu não sou palhaça, não! A professora só dava papel para copiar, desenhar, copiar palavra, copiar frase. Não conversava com a gente, ela ficava só lendo as revistas dela. Eu não aprendia nada, perdia tempo. Saí, não sou palhaça!" Por que uma prática centrada no vocabulário, em técnicas mecânicas de memorização de regras, de segmentação de texto e de palavras, aliada a operações combinatórias de sílabas, não funciona? Retornemos a Bakhtin. Bakhtin opta por um percurso diferente daquele proposto pela tradição formalista; isto é, em vez de privilegiar a língua toma como objeto de análise a heterogeneidade da fala, vale dizer, a complexidade dos múltiplos modos de ocorrência da linguagem que engendram sentidos novos e não reproduzíveis. Esses múltiplos modos de ocorrência são, na verdade, um efeito da "faísca" desencadeadora da linguagem: a interação verbal. Os elementos principais de qualquer interação são: presença de um locutor, de um interlocutor (real, suposto ou virtual), uma situação social dada, um contexto historicamente determinado, o objeto de discurso e o desejo pela palavra. Como esses elementos variam sempre, na totalidade ou em partes, cada ato enunciativo é um ato único de transformação das formas da linguagem. De fato, qualquer mudança no processo, que o uso efetivo da linguagem instaura, acarreta uma produção de novos sentidos. Por esse caráter dinâmico é que é impossível tomar a significação como um elemento à parte do signo, independente da situação particular e do trabalho de cada personagem que tece o discurso. Imerso no fluxo comunicativo, o locutor não trata a língua como sistema imutável. Para ele, não se trata de agir de acordo com uma norma externa e coercitiva, mas de produzir e compreender as novas significações que uma mesma forma adquire no contexto. Quanto ao interlocutor, seu ato de compreensão não se reduz a um ato mecânico de decodificação, pelo reconhecimento, de uma forma lingüística dada: esse é o "método" utilizado apenas por alguém quando diante de uma língua estrangeira ou que pouco conhece. Para aquele que acompanha atento o enunciado alheio o que de fato interessa é a compreensão da novidade que o signo lingüístico adquire numa situação discursiva particular, e não a avaliação de sua adequação à norma padrão (Bakhtin 1992a). Assim sendo, locutor e interlocutor operam com a linguagem como fornecedora de possibilidades expressivas, cujos significados são móveis e cujos sentidos nunca se repetem, porque determinados no contexto de uma situação discursiva única. Daí por que é inócuo o ensino da língua fundado na identificação mecânica de significados, na exploração exaustiva do léxico e na memorização de regras gramaticais. A língua é matéria viva tanto para o locutor como para o interlocutor. São as novidades sulcadas em cada forma, ainda que a mesma, em atos enunciativos particulares, que interessam e movem a enunciação de ambos. Mas há de se considerar também que o locutor não é um Adão que pela primeira vez rompe com o silêncio de um mundo mudo (Bakhtin 1992b). De fato, cada enunciado é mais "um elo na cadeia da comunicação verbal" (p. 308). Os enunciados não são, pois, indiferentes uns aos outros: entre eles se ocultam relações dialógicas inter e intratextuais. Refletem-se ou refratam-se mutuamente. Cada um deles guarda a memória e os ecos de outros enunciados, aos quais se vincula. Acima de tudo é uma réplica, uma resposta a eles: refuta-os, conta com eles, supõem-nos como já sabido, concorda com eles, transforma-os. De tal perspectiva, todo aquele que enuncia ocupa, segundo Geraldi (1993), dois papéis simultaneamente: o daquele que tece a réplica ao enunciado que responde e o daquele que, ao fazê-lo, coloca-se na perspectiva do outro, na tentativa de, ao presumir-lhe a resposta, restringir-lhe as possibilidades de oposição, conquistar- lhe como aliado etc. Por outro lado, o outro não é um ouvinte ou leitor passivo. Espera-se dele uma resposta, e é a essa resposta que o locutor se dirige. Sem ser considerada a natureza dinâmica e dialética da relação "locutor-interlocutor" não se pode realizar análises lingüísticas nem sobre o gênero, nem sobre o estilo do discurso, nem sobre sua função na cadeia de enunciados sobre o objeto temático. O objeto de discurso não é, pois, neutro, uma vez que já sofreu várias transformações pela linguagem, em outras palavras, foi objeto de outros enunciados. Assim concebido, "um enunciado é sulcado pela ressonância longínqua e quase inaudível da alternância dos sujeitos falantes e pelos matizes dialógicos, pelas fronteiras extremamente tênues entre os enunciados (…)" (Bakhtin 1992b, p. 318). O sujeito se constitui com o outro pela linguagem. Entretanto, o processo de construção de sua identidade não é nem linear nem passível de ser explicado de uma perspectiva teleológica. Esse processo é dialético por excelência, composto de fluxos e refluxos, de idas e vindas, de tomadas e retomadas de pontos de vista alheios, de valores etc. Pressupor um "desenvolvimento linear do sujeito" demandaria que fosse postulada a imagem do "outro" como construtor absoluto do "eu", desprovida de conflitos, sem história ou marcas ideológicas. Um "outro" poderoso, detentor de um saber que apenas transferiria à criança, ao aluno etc. Seria pressupô-lo como uma entidade epistêmica, o que equivaleria situá-lo no plano da ficção psicológica. Pelo contrário, o outro é marcado pelo eco das vozes de muitos outros; ecos que fazem ressoar visões de mundo contraditórias porque contraditórios são os interesses das classes sociais e os conhecimentos sobre o mundo que constroem. O outro é um ser em conflito, em permanente tensão com todas as vozes que o constituíram. O eu está imerso no fluxo dessas contradições e se constitui com elas. Mas não de modo passivo ou solitário, como se o processo de individualização se restringisse ao ato de apropriação de conhecimentos já postos. É pela pluridimensionalidade desse processo, pela presença simbolicamente marcada de todas as vozes alheias que o tecem, que o sujeito se constitui como ser multifacetado ou possuidor de várias máscaras. E é pela/na ebulição das vozes que essas máscaras fazem ecoar — ao longo da história do sujeito — que elas, transformadas, se monologizam. Marcado por múltiplas vozes, o enunciado é polifônico por natureza. Entretanto, a polifonia não faz parte de uma língua concebida como um sistema autônomo de formas e leis autóctones. Ao contrário, em Bakhtin (1992a), o enunciado, e não a oração, é a unidade da dialogia, e ela, por sua vez, é o centro (re)construtor da língua. Como diz Brait (1994,p. 15), para Bakhtin tudo que é dito, tudo que é expresso por um falante, por um enunciador, não pertence só a ele. Em todo discurso são percebidas vozes, às vezes infinitamente distantes, anônimas, quase impessoais, quase imperceptíveis, assim como as vozes próximas que ecoam simultaneamente no momento da fala. (Grifo do autor) Adotar essa concepção de linguagem implica ter que se desmanchar a tricotomia langue-parole-langage. Pressupõe também que seja reconsiderada a clássica dicotomia língua-discurso. A decorrência para a prática de "ensino" de língua, seja da L1 como da L2, quaisquer que sejam, é que o processo de construção do objeto lingüístico não pode e não deve ser reduzido à pura exposição das formas da língua, a um ensino descontextualizado, desvinculado da historicidade da relação professor-aluno, como se a língua pudesse ser reduzida à assimilação passiva de um sujeito em condição biológica para fazê-lo. Eis por que, apesar da obrigatoriedade do ensino básico, a cada ano a escola vem produzindo uma população de indivíduos que, apesar de falarem uma língua, fracassam na compreensão da escrita e, em conseqüência, interrompem seu percurso escolar ainda no 1º grau. Todo movimento da práxis pedagógica converte-se, assim, num mecanismo de "produção" de estudantes que não aprendem, apesar de os discursos idealistas, tecidos no seio da instituição de ensino, defenderem tese contrária. Meu receio, e aqui devemos aproveitar a lição do propalado fracasso do sistema de ensino comum, é que acabemos por reproduzir, na formulação de um programa de ensino bilíngüe para surdos, os mesmos erros cometidos no "ensino" de língua escrita à criança ouvinte. De fato, ao convertermos a Libras (e o português) em um conjunto de orações e regras; ao postularmos que sua aquisição se reduz à presença de um usuário surdo fluente em sinais — cujo papel seria, basicamente, o de oferecer dados lingüísticos a alunos surdos — não estaríamos convertendo a Libras, como foi feito com o português escrito, em língua morta? Em uma língua "fria", sem qualquer utilidade para os sujeitos, sem papel nenhum para a construção de sua identidade? Se Yara, a surda cuja voz fiz ecoar linhas acima, pôde entrar no fluxo vivo do português foi porque ela se (re)construiu sujeito, aos 16 anos, pela Libras, língua que fundava as relações de outros surdos na comunidade surda que começou a freqüentar. Mas a linguagem de sinais não se apresentou a ela de modo transparente e sem mediação: "fiquei emocionada mas não entendia nada". Ao contrário, para que tivesse acesso àquela linguagem, Yara precisou ter recebido do grupo de surdos um lugar no discurso e se valido dele para conquistar sua própria argumentação, seu próprio discurso: "Aprendi a conversar também e aí aprender no mundo social dos ouvintes melhorou muito por causa o que aprendi com os surdos a se comunicar". Foi no dinamismo, ou no movimento dialético que a dialogia funda, que o mundo fez sentido para ela, não só o mundo externo mas aquele seu, interno; produto social, sua consciência se organizou: "Ter minha própria personalidade, que foi para fora e não era mais a imitação dos ouvintes." Como nos diria Bakhtin (1992a, p. 33), porque um signo só pode se contrapor a outro signo, "a própria consciência só pode surgir e se afirmar como realidade mediante a encarnação material em signos". Signos exteriores incapazes de penetrar no contexto dos signos interiores tornam- se matéria física impossível de ser compreendida. Porque os signos sinalizados não foram, para Yara, matéria morta, ou um mero produto de assimilação passiva, é que puderam conferir sentido aos signos do português. Pela Libras, o português pôde se converter em matéria viva e significativa. Mas, vale repetir: se Yara construiu objetos lingüísticos, não foi memorizando e relacionando, metódica e sistematicamente, palavras e regras de formação. Foi porque o outro, ou o grupo de surdos, lhe conferiu lugar discursivo, interpretou para ela o mundo, demandou- lhe réplicas, inscreveu-a no simbólico pela língua de sinais, que lhe permitiu, devido à dialética que tal processo instaura, simbolizar a si própria, ao mundo e ao outro. Em síntese, chamo a atenção para a importância crucial do professor, seja surdo ou ouvinte, como personagem integrante e ativo do processo de construção da linguagem pela criança surda. Mais do que isso: procurei caracterizar seu papel como sendo de co-autoria na formação da individualidade da pessoa surda. E, aí, abre-se espaço para que seja mais bem aprofundada a relação entre ideologia, identidade e ensino, tema que deixo para uma outra reflexão. Ou, quem sabe, possa tal assunto se oferecer como objeto sedutor de apropriação legítima por um leitor que tiver tido a paciência de ter chegado até aqui. Sign language and majority language as work of discourse Abstract: Assuming Bakhtin's conception of language, this paper discusses the educational praxis of language teaching to deaf students. The construction of subjectivity is considered by the author as a product of dialogical and dialectic work in which the "other" has an essential co-author status. During the process of language construction, the subject takes part of a rich network of enunciations which are always historically and socially determined. My goal in this study is to focus on the linguistic co-partnership of this "other" in the reciprocal process of teaching and/or learning two different languages, Sign Language and Portuguese, by Deaf students. Bibliografia BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução realizada, principalmente da edição francesa, por Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 6ª ed. São Paulo: Hucitec, 1992a (original escrito em russo em 1929). BAKHTIN, M. "Os gêneros do discurso". In: Bakhtin, M. Estética da criação verbal. Tradução do francês por Maria Ermantina Galvão G. Pereira (revisão: Marina Appenzeller). 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992b (o texto considerado foi escrito em russo entre 1952 e 1953). BRAIT, B. "As vozes bakhtinianas e o diálogo inconcluso". In: Barros, D.L.P. e Fiorin, J.L. (orgs.). Dialogismo, polifonia e intertextualidade em torno de Bakhtin. São Paulo: Edusp, 1994. CHOMSKY, N. Diálogos com Mitsou Ronat. Tradução do francês por Álvaro Lorencini e Sandra Margarida Nitrini. São Paulo: Cultrix, 1977. GERALDI, J.W. Portos de passagem. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993. LUJÁN, M.A. "As crianças surdas adquirem sua língua". In: Moura, M.C.; Lodi, A.C.B. e Pereira, M.C.C. (orgs.). Língua de sinais e educação do surdo. São Paulo: Tec Art, 1993, Série de Neuropsicologia, 3. RODRIGUES, N. "Organização neural da linguagem". In: Moura, M.C.; Lodi, A.C.B. e Pereira, M.C.C. (orgs.). Língua de sinais e educação do surdo. São Paulo: Tec Art, 1993, Série de Neuropsicologia, 3. SOUZA, R.M. "O processo da construção da leitura e da escrita pela criança surda". In: Ciccone, M. Comunicação total - Introdução, estratégia. A pessoa surda. 2ª edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Cultura Médica, 1996. * Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação Prof. Gabriel Porto - Faculdade de Ciências Médicas - Unicamp. Como citar este artigo: Fechar Formato ISO LACERDA, Cristina B.F. de. Um pouco da história das diferentes abordagens na educação dos surdos. Cad. CEDES, Set. 1998, vol.19, no.46, p.68-80. ISSN 0101-3262. Formato Documento Eletrônico (ISO) LACERDA, Cristina B.F. de. Um pouco da história das diferentes abordagens na educação dos surdos. Cad. CEDES. [online]. Set. 1998, vol.19, no.46 [citado 14 Março 2005], p.68-80. Disponível na World Wide Web: . ISSN 0101-3262. Cad. CEDES v.19 n.46 Campinas Set. 1998 Um pouco da história das diferentes abordagens na educação dos surdos Cristina B.F. de Lacerda* Resumo: A educação dos surdos é um problema inquietante por suas dificuldades e limitações. Ao longo da história, esse assunto tem sido polêmico, gerando desdobramentos em várias vertentes com diferentes conseqüências. O objetivo deste artigo é dar a conhecer um pouco de sua história, focalizando principalmente o oralismo, a comunicação total e o bilingüismo como propostas educacionais e suas implicações. Palavras-chave: educação de surdos, crianças deficientes auditivas: educação, educação especial A educação de surdos é um assunto inquietante, principalmente pelas dificuldades que impõe e por suas limitações. As propostas educacionais direcionadas para o sujeito surdo têm como objetivo proporcionar o desenvolvimento pleno de suas capacidades; contudo, não é isso que se observa na prática. Diferentes práticas pedagógicas envolvendo os sujeitos surdos apresentam uma série de limitações, e esses sujeitos, ao final da escolarização básica, não são capazes de ler e escrever satisfatoriamente ou ter um domínio adequado dos conteúdos acadêmicos. Esses problemas têm sido abordados por uma série de autores que, preocupados com a realidade escolar do surdo no Brasil, procuram identificar tais problemas (Fernandes 1989, Trenche 1995 e Mélo 1995) e apontar caminhos possíveis para a prática pedagógica (Góes 1996 e Lacerda 1996). Nesse sentido, parece oportuno refletir sobre alguns aspectos da educação de surdos ao longo da história, procurando compreender seus desdobramentos e influências sobre a educação na atualidade. Durante a Antiguidade e por quase toda a Idade Média pensava-se que os surdos não fossem educáveis, ou que fossem imbecis. Os poucos textos encontrados referem-se prioritariamente a relatos de curas milagrosas ou inexplicáveis (Moores 1978). É no início do século XVI que se começa a admitir que os surdos podem aprender através de procedimentos pedagógicos sem que haja interferências sobrenaturais. Surgem relatos de diversos pedagogos que se dispuseram a trabalhar com surdos, apresentando diferentes resultados obtidos com essa prática pedagógica. O propósito da educação dos surdos, então, era que estes pudessem desenvolver seu pensamento, adquirir conhecimentos e se comunicar com o mundo ouvinte. Para tal, procurava-se ensiná-los a falar e a compreender a língua falada, mas a fala era considerada uma estratégia, em meio a outras, de se alcançar tais objetivos. Entretanto, era freqüente na época manter em segredo o modo como se conduzia a educação dos surdos. Cada pedagogo trabalhava autonomamente e não era comum a troca de experiências. Heinicke, importante pedagogo alemão, professor de surdos, escreveu que seu método de educação não era conhecido por ninguém, exceto por seu filho. Alegava ter passado por tantas dificuldades que não pretendia dividir suas conquistas com ninguém (Sánchez 1990). Assim, torna- se difícil saber o que era feito naquela época; em conseqüência, muitos dos trabalhos desenvolvidos se perderam. A figura do preceptor era muito freqüente em tal contexto educacional. Famílias nobres e influentes que tinham um filho surdo contratavam os serviços de professores/preceptores para que ele não ficasse privado da fala e conseqüentemente dos direitos legais, que eram subtraídos daqueles que não falavam. O espanhol Pedro Ponce de Leon é, em geral, reconhecido nos trabalhos de caráter histórico como o primeiro professor de surdos. Nas tentativas iniciais de educar o surdo, além da atenção dada à fala, a língua escrita também desempenhava papel fundamental. Os alfabetos digitais eram amplamente utilizados. Eles eram inventados pelos próprios professores, porque se argumentava que se o surdo não podia ouvir a língua falada, então ele podia lê- la com os olhos. Falava-se da capacidade do surdo em correlacionar as palavras escritas com os conceitos diretamente, sem necessitar da fala. Muitos professores de surdos iniciavam o ensinamento de seus alunos através da leitura-escrita e, partindo daí, instrumentalizavam-se diferentes técnicas para desenvolver outras habilidades, tais como leitura labial e articulação das palavras. Os surdos que podiam se beneficiar do trabalho desses professores eram muito poucos, somente aqueles pertencentes às famílias abastadas. É justo pensar que houvesse um grande número de surdos sem qualquer atenção especial e que, provavelmente, se vivessem agrupados, poderiam ter desenvolvido algum tipo de linguagem de sinais através da qual interagissem. A partir desse período podem ser distinguidas, nas propostas educacionais vigentes, iniciativas antecedentes do que hoje chamamos de "oralismo" e outras antecedentes do que chamamos de `"gestualismo'". Em seu início, no campo da pedagogia do surdo, existia um acordo unânime sobre a conveniência de que esse sujeito aprendesse a língua que falavam os ouvintes da sociedade na qual viviam; porém, no bojo dessa unanimidade, já no começo do século XVIII, foi aberta uma brecha que se alargaria com o passar do tempo e que separaria irreconciliavelmente oralistas de gestualistas. Os primeiros exigiam que os surdos se reabilitassem, que superassem sua surdez, que falassem e, de certo modo, que se comportassem como se não fossem surdos. Os proponentes menos tolerantes pretendiam reprimir tudo o que fizesse recordar que os surdos não poderiam falar como os ouvintes. Impuseram a oralização para que os surdos fossem aceitos socialmente e, nesse processo, deixava-se a imensa maioria dos surdos de fora de toda a possibilidade educativa, de toda a possibilidade de desenvolvimento pessoal e de integração na sociedade, obrigando-os a se organizar de forma quase clandestina. Os segundos, gestualistas, eram mais tolerantes diante das dificuldades do surdo com a língua falada e foram capazes de ver que os surdos desenvolviam uma linguagem que, ainda que diferente da oral, era eficaz para a comunicação e lhes abria as portas para o conhecimento da cultura, incluindo aquele dirigido para a língua oral. Com base nessas posições, já abertamente encontradas no final do século XVIII, configuram-se duas orientações divergentes na educação de surdos, que se mantiveram em oposição até a atualidade, apesar das mudanças havidas no desdobramento de propostas educacionais. Como representante mais importante do que se conhece como abordagem gestualista está o "método francês" de educação de surdos. O abade Charles M. De L'Epée foi o primeiro a estudar uma língua de sinais usada por surdos, com atenção para suas características lingüísticas. O abade, a partir da observação de grupos de surdos, verifica que estes desenvolviam um tipo de comunicação apoiada no canal viso-gestual, que era muito satisfatória. Partindo dessa linguagem gestual, ele desenvolveu um método educacional, apoiado na linguagem de sinais da comunidade de surdos, acrescentando a esta sinais que tornavam sua estrutura mais próxima à do francês e denominou esse sistema de "sinais metódicos". A proposta educativa defendia que os educadores deveriam aprender tais sinais para se comunicar com os surdos; eles aprendiam com os surdos e, através dessa forma de comunicação, ensinavam a língua falada e escrita do grupo socialmente majoritário. Diferentemente de seus contemporâneos, De L'Epée não teve problemas para romper com a tradição das práticas secretas e não se limitou a trabalhar individualmente com poucos surdos. Em 1775, fundou uma escola, a primeira em seu gênero, com aulas coletivas, onde professores e alunos usavam os chamados sinais metódicos. Divulgava seus trabalhos em reuniões periódicas e propunha-se a discutir seus resultados. Em 1776, publicou um livro no qual divulgava suas técnicas. Seus alunos manejavam bem a escrita, e muitos deles ocuparam mais tarde o lugar de professores de outros surdos. Nesse período, alguns surdos puderam destacar-se e ocupar posições importantes na sociedade de seu tempo. O abade mostrava-se orgulhoso de que seus discípulos não só liam e escreviam em francês, mas que podiam refletir e discutir sobre os conceitos que expressavam, embora houvesse avaliações contrárias que indicavam haver profundas restrições nesse suposto êxito. Existem vários livros datados dessa época, escritos por surdos, que abordam suas dificuldades de expressão e os problemas ocasionados pela surdez (Lane e Fischer 1993). Para De L'Epée, a linguagem de sinais é concebida como a língua natural dos surdos e como veículo adequado para desenvolver o pensamento e sua comunicação. Para ele, o domínio de uma língua, oral ou gestual, é concebido como um instrumento para o sucesso de seus objetivos e não como um fim em si mesmo. Ele tinha claras a diferença entre linguagem e fala e a necessidade de um desenvolvimento pleno de linguagem para o desenvolvimento normal dos sujeitos. Contemporaneamente a De L'Epée havia renomados pedagogos oralistas que o criticavam e que desenvolviam outro modo de trabalhar com os surdos, como, por exemplo, Pereira, em Portugal, e Heinicke, na Alemanha. Heinicke é considerado o fundador do oralismo e de uma metodologia que ficou conhecida como o "método alemão". Para ele, o pensamento só é possível através da língua oral, e depende dela. A língua escrita teria uma importância secundária, devendo seguir a língua oral e não precedê-la. O ensinamento através da linguagem de sinais significava ir em contrário ao avanço dos alunos (Moores 1978). Os pressupostos de Heinicke têm até hoje adeptos e defensores. Em conseqüência do avanço e da divulgação das práticas pedagógicas com surdos, foi realizado, em 1878, em Paris, o I Congresso Internacional sobre a Instrução de Surdos, no qual se fizeram acalorados debates a respeito das experiências e impressões sobre o trabalho realizado até então. Naquele congresso alguns grupos defendiam a idéia de que falar era melhor que usar sinais, mas que estes eram muito importantes para a criança poder se comunicar. Alí, os surdos tiveram algumas conquistas importantes, como o direito a assinar documentos, tirando-os da "marginalidade" social, mas ainda estava distante a possibilidade de uma verdadeira integração social. Em 1880, foi realizado o II Congresso Internacional, em Milão, que trouxe uma completa mudança nos rumos da educação de surdos e, justamente por isso, ele é considerado um marco histórico. O congresso foi preparado por uma maioria oralista com o firme propósito de dar força de lei às suas proposições no que dizia respeito à surdez e à educação de surdos. O método alemão vinha ganhando cada vez mais adeptos e estendendo-se progressivamente para a maioria dos países europeus, acompanhando o destaque político da Alemanha no quadro internacional da época. As discussões do congresso foram feitas em debates acaloradíssimos. Apresentaram-se muitos surdos que falavam bem, para mostrar a eficiência do método oral. Com exceção da delegação americana (cinco membros) e de um professor britânico, todos os participantes, em sua maioria europeus e ouvintes, votaram por aclamação a aprovação do uso exclusivo e absoluto da metodologia oralista e a proscrição da linguagem de sinais. Acreditava-se que o uso de gestos e sinais desviasse o surdo da aprendizagem da língua oral, que era a mais importante do ponto de vista social. As resoluções do congresso (que era uma instância de prestígio e merecia ser seguida) foram determinantes no mundo todo, especialmente na Europa e na América Latina. As decisões tomadas no Congresso de Milão levaram a que a linguagem gestual fosse praticamente banida como forma de comunicação a ser utilizada por pessoas surdas no trabalho educacional. A única oposição clara feita ao oralismo foi apresentada por Gallaudet que, desenvolvendo nos Estados Unidos um trabalho baseado nos sinais metódicos do abade De L'Epée, discordava dos argumentos apresentados, reportando-se aos sucessos obtidos por seus alunos (Sachs 1990, Lane 1989). Com o Congresso de Milão termina uma época de convivência tolerada na educação dos surdos entre a linguagem falada e a gestual e, em particular, desaparece a figura do professor surdo que, até então, era freqüente. Era o professor surdo que, na escola, intervinha na educação, de modo a ensinar/transmitir um certo tipo de cultura e de informação através do canal visogestual e que, após o congresso, foi excluído das escolas. Assim, no mundo todo, a partir do Congresso de Milão, o oralismo foi o referencial assumido e as práticas educacionais vinculadas a ele foram amplamente desenvolvidas e divulgadas. Essa abordagem não foi, praticamente, questionada por quase um século. Os resultados de muitas décadas de trabalho nessa linha, no entanto, não mostraram grandes sucessos. A maior parte dos surdos profundos não desenvolveu uma fala socialmente satisfatória e, em geral, esse desenvolvimento era parcial e tardio em relação à aquisição de fala apresentada pelos ouvintes, implicando um atraso de desenvolvimento global significativo. Somadas a isso estavam as dificuldades ligadas à aprendizagem da leitura e da escrita: sempre tardia, cheia de problemas, mostrava sujeitos, muitas vezes, apenas parcialmente alfabetizados após anos de escolarização. Muitos estudos apontam para tais problemas, desenvolvidos em diferentes realidades e que acabam revelando sempre o mesmo cenário: sujeitos pouco preparados para o convívio social, com sérias dificuldades de comunicação, seja oral ou escrita, tornando claro o insucesso pedagógico dessa abordagem (Johnson et al. 1991, Fernandes 1989). Nada de realmente importante aconteceu em relação ao oralismo até o início dos anos 50, com as novas descobertas técnicas e a possibilidade de se "protetizar" crianças surdas muito pequenas. Era um novo impulso para a educação voltada para a vocalização. Foram desenvolvidas novas técnicas para que a escola pudesse trabalhar sobre aspectos da percepção auditiva e de leitura labial da linguagem falada, surgindo assim um grande número de métodos, dando ensejo a momentos de nova esperança de que, com o uso de próteses, se pudessem educar crianças com surdez grave e profunda a ouvir e, conseqüentemente, a falar. Para os oralistas, a linguagem falada é prioritária como forma de comunicação dos surdos e a aprendizagem da linguagem oral é preconizada como indispensável para o desenvolvimento integral das crianças. De forma geral, sinais e alfabeto digitais são proibidos, embora alguns aceitem o uso de gestos naturais, e recomenda-se que a recepção da linguagem seja feita pela via auditiva (devidamente treinada) e pela leitura orofacial (Trenche 1995). Os métodos orais sofrem uma série de críticas pelos limites que apresentam, mesmo com o incremento do uso de próteses. As críticas vêm, principalmente, dos Estados Unidos. Alguns métodos prevêem, por exemplo, que se ensinem palavras para crianças surdas de um ano. Entretanto, elas terão de entrar em contato com essas palavras de modo descontextualizado de interlocuções efetivas, tornando a linguagem algo difícil e artificial. Outro aspecto a ser desenvolvido é a leitura labial, que para a idade de um ano é, em termos cognitivos, uma tarefa bastante complexa, para não dizer impossível. É muito difícil para uma criança surda profunda, ainda que "protetizada", reconhecer, tão precocemente, uma palavra através da leitura labial. Limitar-se ao canal vocal significa limitar enormemente a comunicação e a possibilidade de uso dessa palavra em contextos apropriados. O que ocorre praticamente não pode ser chamado de desenvolvimento de linguagem, mas sim de treinamento de fala organizado de maneira formal, artificial, com o uso da palavra limitado a momentos em que a criança está sentada diante de desenhos, fora de contextos dialógicos propriamente ditos, que de fato permitiriam o desenvolvimento do significado das palavras. Esse aprendizado de linguagem é desvinculado de situações naturais de comunicação, e restringe as possibilidades do desenvolvimento global da criança. Na década de 1960, começaram a surgir estudos sobre as línguas de sinais utilizadas pelas comunidades surdas. Apesar da proibição dos oralistas no uso de gestos e sinais, raramente se encontrava uma escola ou instituição para surdos que não tivesse desenvolvido, às margens do sistema, um modo próprio de comunicação através dos sinais. A primeira caracterização de uma língua de sinais usada entre pessoas surdas se encontra nos escritos do abade De L'Epée. Muito tempo se passou até que o interesse pelo estudo das línguas de sinais de um ponto de vista lingüístico fosse despertado novamente, o que ocorreu nos anos 60 com os estudos de Willian Stokoe (1978). Ao estudar a Língua de Sinais Americana (ASL), Stokoe encontra uma estrutura que, de muitos modos, se assemelha àquela das línguas orais. Argumenta que, assim como da combinação de um número restrito de sons (fonemas) cria-se um número vastíssimo de unidades dotadas de significado (palavras), com a combinação de um número restrito de unidades mínimas na dimensão gestual (queremas) pode-se produzir um grande número de unidades com significados (sinais). Propôs também em sua análise que um sinal pode ser decomposto em três parâmetros básicos: O lugar no espaço onde as mãos se movem, a configuração da(s) mão(s) ao realizar o sinal e o movimento da(s) mão(s) ao realizar o sinal, sendo estes então os "traços distintivos" dos sinais. Esses estudos iniciais e outros que vieram após o pioneiro trabalho de Stokoe revelaram que as línguas de sinais eram verdadeiras línguas, preenchendo em grande parte os requisitos que a lingüística de então colocava para as línguas orais. O descontentamento com o oralismo e as pesquisas sobre línguas de sinais deram origem a novas propostas pedagógico-educacionais em relação à educação da pessoa surda, e a tendência que ganhou impulso nos anos 70 foi a chamada comunicação total. "A Comunicação Total é a prática de usar sinais, leitura orofacial, amplificação e alfabeto digital para fornecer inputs lingüísticos para estudantes surdos, ao passo que eles podem expressar-se nas modalidades preferidas" (Stewart 1993, p. 118). O objetivo é fornecer à criança a possibilidade de desenvolver uma comunicação real com seus familiares, professores e coetâneos, para que possa construir seu mundo interno. A oralização não é o objetivo em si da comunicação total, mas uma das áreas trabalhadas para possibilitar a integração social do indivíduo surdo. A comunicação total pode utilizar tanto sinais retirados da língua de sinais usada pela comunidade surda quanto sinais gramaticais modificados e marcadores para elementos presentes na língua falada, mas não na língua de sinais. Dessa forma, tudo o que é falado pode ser acompanhado por elementos visuais que o representam, o que facilitaria a aquisição da língua oral e posteriormente da leitura e da escrita (Moura 1993). Entretanto, a forma de implementar a comunicação total mostra-se muito diferente nas diversas experiências relatadas; nota-se que muitas foram as maneiras de realizar essa prática envolvendo sinais, fala e outros recursos. Práticas reunidas sob o nome de comunicação total, em suas várias acepções, foram amplamente desenvolvidas nos Estados Unidos e em outros países nas décadas de 1970 e 1980 e muitos estudos foram realizados para verificar sua eficácia. O que esses estudos têm apontado é que, em relação ao oralismo, alguns aspectos do trabalho educativo foram melhorados e que os surdos, no final do processo escolar, conseguem compreender e se comunicar um pouco melhor. Entretanto, segundo essas análises avaliativas, eles apresentam ainda sérias dificuldades em expressar sentimentos e idéias e comunicar-se em contextos extra-escolares. Em relação à escrita, os problemas apresentados continuam a ser muito importantes, sendo que poucos sujeitos alcançam autonomia nesse modo de produção de linguagem. Observam-se alguns poucos casos bem-sucedidos, mas a grande maioria não consegue atingir níveis acadêmicos satisfatórios para sua faixa etária. Em relação aos sinais, estes ocupam um lugar meramente acessório de auxiliar da fala, não havendo um espaço para seu desenvolvimento. Assim, muitas vezes, os surdos atendidos segundo essa orientação comunicam- se precariamente apesar do acesso aos sinais. É que esse acesso é ilusório no âmbito de tais práticas, pois os alunos não aprendem a compreender os sinais como uma verdadeira língua, e desse uso não decorre um efetivo desenvolvimento lingüístico. Os sinais constituem um apoio para a língua oral e continuam, de certa forma, "quase interditados" aos surdos. O que a comunicação total favoreceu de maneira efetiva foi o contato com sinais, que era proibido pelo oralismo, e esse contato propiciou que os surdos se dispusessem à aprendizagem das línguas de sinais, externamente ao trabalho escolar. Essas línguas são freqüentemente usadas entre os alunos, enquanto na relação com o professor é usado um misto de língua oral com sinais. Paralelamente ao desenvolvimento das propostas de comunicação total, estudos sobre línguas de sinais foram se tornando cada vez mais estruturados e com eles foram surgindo também alternativas educacionais orientadas para uma educação bilíngüe. Essa proposta defende a idéia de que a língua de sinais é a língua natural dos surdos, que, mesmo sem ouvir, podem desenvolver plenamente uma língua visogestual. Certos estudos (Bouvet 1990) mostram que as línguas de sinais são adquiridas pelos surdos com naturalidade e rapidez, possibilitando o acesso a uma linguagem que permite uma comunicação eficiente e completa como aquela desenvolvida por sujeitos ouvintes. Isso também permitiria ao surdo um desenvolvimento cognitivo, social etc. muito mais adequado, compatível com sua faixa etária. O modelo de educação bilíngüe contrapõe-se ao modelo oralista porque considera o canal visogestual de fundamental importância para a aquisição de linguagem da pessoa surda. E contrapõe-se à comunicação total porque defende um espaço efetivo para a língua de sinais no trabalho educacional; por isso advoga que cada uma das línguas apresentadas ao surdo mantenha suas características próprias e que não se "`misture" uma com a outra. Nesse modelo, o que se propõe é que sejam ensinadas duas línguas, a língua de sinais e, secundariamente, a língua do grupo ouvinte majoritário. A língua de sinais é considerada a mais adaptada à pessoa surda, por contar com a integridade do canal visogestual. Porque as interações podem fluir, a criança surda é exposta, então, o mais cedo possível, à língua de sinais, aprendendo a sinalizar tão rapidamente quanto as crianças ouvintes aprendem a falar. Ao sinalizar, a criança desenvolve sua capacidade e sua competência lingüística, numa língua que lhe servirá depois para aprender a língua falada, do grupo majoritário, como segunda língua, tornando-se bilíngüe, numa modalidade de bilingüismo sucessivo. Essa situação de bilingüismo não é como aquela de crianças que têm pais que falam duas línguas diferentes, porque nesse caso elas aprendem as duas línguas usando o canal auditivo-vocal num bilingüismo contemporâneo, enquanto no caso das crianças surdas, trata-se da aprendizagem de duas línguas que envolvem canais de comunicação diversos. Pesquisas sobre esse tema (Taeschner 1985) apontam para a conveniência de não haver sobreposição das duas línguas envolvidas. A aprendizagem da língua de sinais deve se dar em família, quando possível, ou num outro contexto, com um membro da comunidade surda, por exemplo, e a língua falada deve ser ensinada por uma outra pessoa caracterizando um outro contexto comunicativo. Tais contextos não devem se sobrepor; as pessoas que produzem cada uma das línguas com a criança, no início, devem ser pessoas diferentes e o ideal parece ser que a família participe sinalizando. Num outro contexto, a criança aprenderá a desenvolver sua capacidade articulatória e fará sua adaptação de prótese e sua educação acústica. A língua de sinais estará sempre um pouco mais desenvolvida e adiante da língua falada, de modo que a competência lingüística na língua de sinais servirá de base para a competência na aquisição da língua falada. Será a aprendizagem de uma língua através da competência em outra língua, como fazem os ouvintes quando aprendem uma segunda língua sempre tendo por base sua língua materna. O objetivo da educação bilíngüe é que a criança surda possa ter um desenvolvimento cognitivo-lingüístico equivalente ao verificado na criança ouvinte, e que possa desenvolver uma relação harmoniosa também com ouvintes, tendo acesso às duas línguas: a língua de sinais e a língua majoritária. A filosofia bilíngüe possibilita também que, dada a relação entre o adulto surdo e a criança, esta possa construir uma auto-imagem positiva como sujeito surdo, sem perder a possibilidade de se integrar numa comunidade de ouvintes. A língua de sinais poderia ser introjetada pela criança surda como uma língua valorizada, coisa que até hoje tem sido bastante difícil apesar de esta ocupar um lugar central na configuração das comunidades surdas. O fato é que tais línguas foram sistematicamente rejeitadas e só recentemente têm sido valorizadas pelos meios acadêmicos e pelos próprios surdos (Moura 1993). As experiências com educação bilíngüe ainda são recentes; poucos países têm esse sistema implantado há pelo menos dez anos. A aplicação prática do modelo de educação bilíngüe não é simples e exige cuidados especiais, formação de profissionais habilitados, diferentes instituições envolvidas com tais questões etc. Os projetos já realizados em diversas partes do mundo (como Suécia, Estados Unidos, Venezuela e Uruguai) têm princípios filosóficos semelhantes, mas se diferenciam em alguns aspectos metodológicos. Para alguns, é necessária a participação de professores surdos, o que nem sempre é possível conseguir. Quando se recorre a professores ouvintes, nem sempre sua competência em língua de sinais é suficiente, comprometendo significativamente o processo de aprendizagem. Algumas propostas indicam uma passagem da língua de sinais diretamente para a língua escrita entendendo que a língua oral é muito difícil para o surdo, além de ser "antinatural". Existem países que têm assegurado, por lei, o direito das pessoas surdas à língua de sinais; outros realizam projetos envolvendo a educação bilíngüe quase à revelia das propostas estatais. Em cada um desses países o aprofundamento dos estudos sobre suas línguas de sinais é diferente e, apenas em alguns casos, esses estudos estão bastante desenvolvidos. Nos Estados Unidos, por exemplo, a Língua Americana de Sinais é bastante conhecida, talvez a língua de sinais mais bem estudada até hoje. Entretanto, as práticas de comunicação total são prevalentes lá, indicando que o desenvolvimento do conhecimento acadêmico sobre as línguas de sinais não é suficiente para sua efetiva inserção no atendimento educacional. Em outros países tais estudos são ainda iniciais, auxiliando pouco aqueles que desenvolvem práticas de educação bilíngüe. Tais práticas remetem a um universo amplo de questões ainda pouco explorado, que parece apresentar vários problemas ao mesmo tempo em que aponta para formas de atendimento mais adequadas às pessoas surdas. Em diversos países, como no nosso, as experiências com educação bilíngüe ainda estão restritas a alguns poucos centros, dadas as dificuldades apontadas acima, e também pela resistência de muitos em considerar a língua de sinais como uma língua verdadeira ou aceitar sua adequação ao trabalho com as pessoas surdas. Assim sendo, a maioria das práticas de educação para surdos ainda hoje é oralista ou se enquadra dentro da comunicação total. Apesar de não haver dados oficiais do Brasil, pode-se afirmar, por observações assistemáticas, que a comunicação total encontra-se em desenvolvimento enquanto as práticas oralistas tendem a diminuir. Com o surgimento da comunicação total, a grande mudança pedagógica foi a entrada dos sinais em sala de aula. O uso dos sinais pode ser muito variado, dependendo da opção feita no trabalho de comunicação total. Pode-se encontrar a língua de sinais sendo usada separadamente da fala, uso do português sinalizado acompanhando a fala numa prática bimodal, fala acompanhada de sinais retirados da língua de sinais, tentativas de representar todos os aspectos do português falado em sinais etc. Diante desse panorama é possível constatar que, de alguma maneira, as três principais abordagens de educação de surdos (oralista, comunicação total e bilingüismo) coexistem, com adeptos de todas elas nos diferentes países. Cada qual com seus prós e contras, essas abordagens abrem espaço para reflexões na busca de um caminho educacional que de fato favoreça o desenvolvimento pleno dos sujeitos surdos, contribuindo para que sejam cidadãos em nossa sociedade. A short history of different approaches to the education of the deaf ABSTRACT: The education of the deaf is a complex problem characterised by difficulties and limitations. Throughout history, this subject has been polemic bringing different consequences to that education. This article aims at presenting the history of the education of the deaf focusing on oralism, total communication, bilinguism and its consequences. Bibliografia BOUVET, D. The path to language: Bilingual education for children. Filadélfia: Multilingual Matters, 1990 FERNANDES, E. Problemas lingüísticos e cognitivos dos surdos. Rio de Janeiro. Agir, 1989. GÓES, M.C.R. "A produção de texto por sujeitos surdos: Questões sobre a relação oralidade-escrita." Anais do II Seminário Multidisciplinar de Alfabetização. São Paulo: PUC, 1992. ______.Linguagem, surdez e educação. Campinas: Autores Associados, 1996. JOHNSON, R.E., LIDDELL, S.K. e ERTING, C.J. 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