HISTÓRIA SOCIAL DA INFÂNCIA NO BRASIL Marcos Cezar de Freitas (org.) CORTEZ EDITORA São Paulo, 2001 A produção social da identidade do anormal José Geraldo Silveira Bueno Se a identidade social do anormal, como uma construção histórica, mantém alguma continuidade no transcurso da civilização, é a de que, em todas as épocas, o meio social identificou, por algum critério, indivíduos que possuíam alguma(s) característica(s) que não fazia(m) parte daquelas que se encontravam entre a maior parte dos membros desse mesmo meio - não pela simples presença de uma diferença, mas pelas conseqüências que tais diferenças acarretavam às possibilidades de participação desse sujeito na construção coletiva de sobrevivência e reprodução de diferentes agrupamentos sociais, em diferentes momentos históricos. Parece, no entanto, ocorrer uma contradição em termos entre a visão da anormalidade construída historicamente e a existência, em qualquer grupo social e em qualquer época, de indivíduos que possuem anormalidades evidentes, como a mutilação, a cegueira, a surdez, que acarretam dificuldades a esses indivíduos, independentemente das formas pelas quais o meio social em que vivem se organiza. Este trabalho não pretende discutir o conceito de anormalidade em geral, porque este não passa de mera abstração, mas o de anormalidade enquanto manifestação concreta, como fenômeno que se apresenta nas relações que o homem estabelece com o meio e com seus semelhantes e que diferem no tempo e no espaço. 163 O conceito de anormalidade como construção social Existindo indivíduos que possuem peculiaridades que interferem em seu processo de humanização, poderia parecer evidente que estaríamos diante de características não universais, geradas por um estado não freqüente das condições da vida do homem, ou melhor, estaríamos diante de quadros patológicos, cujo paradigma usualmente utilizado é o da doença. A doença tem sido encarada de diferentes maneiras. Em determinadas épocas e em determinadas sociedades ela foi vista como possessão; em outros momentos e espaços sociais foi encarada como desequilíbrio da totalidade do homem; em outros, ainda, como reação do organismo em busca de cura; ou ainda, mais modernamente, como um desvio quantitativo do funcionamento regular do ser humano. Independentemente das formas pelas quais os mais diferentes meios sociais encararam a doença, a procura de seu desvendamento implicou sempre intervenção sobre ela, tal como afirmou Canguilhem (1982, p.19): "É, sem dúvida, à necessidade terapêutica que se deve atribuir a iniciativa de qualquer teoria ontológica da doença". O desenvolvimento da ciência moderna, por um lado, retirou a doença do campo da explicação sobrenatural, possibilitando a intervenção controlada, a descoberta de agentes nocivos à saúde, contribuindo, efetivamente, para o aumento das possibilidades de sobrevivência do homem. A concepção hegemônica moderna de anormalidade social tem utilizado como base o paradigma biológico, na medida em que essa ciência já teria chegado a alto nível de certeza na distinção entre o estado normal e o patológico, ao considerar a doença como um desvio do estado habitual (de saúde), este último manifestado pela sua maior freqüência, que corresponderia às condições de vida, isto é, de sua própria manutenção. Assim é que, cabe, em primeiro lugar, analisar, em detalhe, esta concepção de doença que tem se transformado, praticamente, em senso comum, dada a sua penetração não somente entre especialistas, mas pelo fato de ter se disseminado e se entranhado em nossos espíritos, como se dele fizesse parte desde os tempos primitivos, tal a sua pretensa objetividade. Foi a partir da apropriação feita por Comte do princípio nosológico de Broussaist que o estado patológico deixou de ser relacionado com leis completamente diferentes das que regem o estado normal, pois, para ele, o estado patológico em absoluto não difere radicalmente do estado fisiológico, em relação ao qual ele só poderia constituir, sob um aspecto qualquer, um simples prolongamento mais ou menos extenso do limite de variações, quer superiores quer inferiores, peculiares a cada fenômeno do organismo normal, sem jamais poder produzir fenômenos realmente novos que não tivessem de modo nenhum, até certo ponto, seus análogos puramente biológicos. (Comte, A. Cours de philosophie positive, apud Canguilhem, 1982, p.31) Vale a pena, então, verificar, do ponto de vista estritamente biológico, se esta concepção pode ser considerada, tal como o positivismo a encarou, como a resposta definitiva da ciência para a compreensão da relação saúde-doença. Para Canguilhem, o fato de o ser vivo reagir por uma doença a uma lesão ou infestação pode ser interpretado no sentido de que a vida não é indiferente às condições nas quais ela é possível, que a vida é polaridade e, por isso mesmo, posição inconsciente de valor, em resumo, que a vida é, de fato, uma atividade normativa. (Canguilhem, 1982, p.96) O conceito de normal ultrapassa portanto a mera designação de fenômeno freqüente, na medida em que uma norma só é a possibilidade de uma referência quando foi instituída ou escolhida como expressão de uma preferência e como instrumento de uma vontade de substituir um estado de coisas insatisfatório por um estado de coisas satisfatório. (idem, p.212) Nesse sentido, mesmo do ponto de vista biológico, não há como se separar as manifestações orgânicas das condições do meio, isto é, se essas condições se modificarem, respostas "organicamente satisfatórias" podem passar a ser "organicamente insatisfatórias", na medida em que o __________________ l. O princípio nosológico de Broussais consistia na explicação de que as doenças consistem fundamentalmente na falta ou no excesso de excitação dos diferentes tecidos, abaixo ou acima do grau que constitui o estado normal. Ser vivo e o meio, considerados separadamente, não são normais, porém é a sua relação que os torna normais um para o outro. O meio é normal para uma determinada forma viva na medida em que lhe permite uma tal fecundidade e, correlativamente, uma tal variedade de formas que, na hipótese de ocorrerem modificações do meio, a vida possa encontrar numa dessas formas a solução para o problema de adaptação que, brutalmente, se vê forçada a resolver. Um ser vivo é normal num determinado meio na medida em que ele é i solução morfológica e funcional encontrada pela vida para responder a todas as exigências do meio. (idem, p.112-3) Em outras palavras, a normalidade em biologia não pode ser somente comprovada pela maior freqüência de uma manifestação orgânica, mas pela possibilidade de esta manifestação, mesmo que relativamente rara, ser normativa: O normal, em biologia, não é tanto a forma antiga mas a forma nova, se ela encontrar condições de existência nas quais parecerá normativa, isto é, superando todas as formas passadas, ultrapassadas e, talvez, dentro em breve, mortas. (idem, p.113)2 Se, do ponto de vista biológico, a perspectiva positivista não se sustenta, a sua utilização como paradigma para a conceituação da relação normalidade-anormalidade social, sobre a qual estamos nos referindo, merece ser colocada sob crivo crítico, pois mesmo aquelas anormalidades de origem orgânica, além de interferirem na capacidade de sobrevivência da espécie, geram conseqüências sobre as suas possibilidades de participação social do indivíduo. Assim é que o conceito de anormalidade social não vai, historicamente, apenas se refinando ou se tornando cada vez mais preciso, mas vai se modificando, na medida em que as condições sociais vão sendo transformadas pela própria ação do homem e que geram novas necessidades na relação indivíduo-meio social. Parece, entretanto, que determinados tipos de anormalidades, evidenciadas fundamentalmente por aquelas de origem orgânica, 2. CANGUILHEM (1982, p.112) apresenta evidências desta forma de se encarar a relação saúde-doença, apoiando-se em estudos que demonstram, por exemplo, como entre borboletas cinzas e pretas da mesma espécie, que, no seu ambiente natural, mantêm um certo equilíbrio de incidência, passa a ocorrer, em centros industriais, o desaparecimento progressivo das primeiras e o crescimento do número das segundas, com íntima relação entre o biológico e o meio: isto é, como nas regiões industriais o fato de ser cinza passou a ser "patológico". Poderiam ser caracterizadas como não universais ante a espécie humana e que gerariam conseqüências negativas, independentemente de condições históricas ou geográficas. Ao lado dessas, existiriam outros tipos de anormalidades, sem qualquer evidência de alterações orgânicas, estas, sim, produzidas nas relações sociais. Em outras palavras, se a delinqüência, ou mesmo a doença mental, não podem ser apreendidas apenas na perspectiva das suas manifestações internas e pessoais, mas somente através da íntima relação indivíduo-meio social, outras anormalidades, como a surdez, a cegueira e a deformidade física parecem carregar uma marca não universal ante a espécie que, em última instância, caracteriza-se, em toda a sua história, como possuidora de aptidões para ouvir, enxergar e se locomover. Na realidade, tanto umas quanto outras são determinadas não por distinções universais abstratas, mas respondem a determinações historicamente construídas. Se os cegos foram identificados, desde os tempos mais remotos, isto se deve ao fato de que essa diferença orgânica3 gerou conseqüências na relação que esses indivíduos mantinham com o meio, impossibilitando-os de se constituírem como seres normativos, isto é, essa diferença se constituiu, pela relação exigências do meio -características orgânicas, em anormalidade. Assim, na pré-história, na medida em que as condições de vida do homem o colocavam muito próximo do plano da animalidade, as conseqüências da cegueira se relacionavam com as possibilidades de sobrevivência física e, por isso mesmo, foram identificadas. Ao contrário, a deficiência mental, tal como a conhecemos hoje, não apenas só passou a ser identificada a partir do final do século XVIII, como foi construída na trajetória histórica de determinadas formações sociais que, gradativamente, foram exigindo determinadas formas de produtividade intelectual, as quais culminaram na caracterização de um determinado tipo de indivíduos - os deficientes mentais - que não conseguiam, em relação a essas _____________ 3. A distinção entre anomalia (entendida como irregularidade objetiva) e anormalidade (que implicaria referência a um valor) também é contestada por CANGUILHEM (1982, p.102-6), na medida em que, quando nos referimos à primeira, não estamos pensando nas "simples variações que são apenas desvios estatísticos, mas nas deformidades nocivas" (p.106), razão pela qual utilizo o termo diferença orgânica. exigências do meio (produtividade intelectual), se constituir como normativos. Se, em outras formações sociais, seja em tempos ou espaços diferentes, os requisitos e expectativas sociais não exigiram ou exigem um determinado tipo de atuação, que determine a existência desta ou daquela anormalidade, esta não é identificada, e isso não por atraso ou ignorância, mas porque as relações sociais estabelecidas não a requerem. 4 A relação normalidade-anormalidade na sociedade industrial moderna O termo norma remonta ao latim, o qual, por sua vez, é equivalente ao termo grego órtos, e se refere, fundamentalmente, à gramática, isto é, à regulamentação do uso da língua, o que demonstra a preocupação do homem na busca de regularidades em suas ações (Cf. Canguilhem, 1982, p.216). Entretanto, o processo de normalização inerente às exigências da sociedade industrial constitui algo radicalmente novo por atingir as mais diferentes atividades humanas: Do ponto de vista da normalização, não há diferença entre o nascimento da gramática no século XVII, na França, e a instituição do sistema métrico no fim do século XVIII. Richelieu e os Convencionais e Napoleão Bonaparte são os instrumentos sucessivos de uma mesma exigência coletiva. Começa-se pelas normas gramaticais, para acabar nas normas morfológicas dos homens e dos cavalos para fins de defesa nacional, passando pelas normas industriais e higiênicas. (idem, p.217) Porém, se o termo norma remonta à Antigüidade, seu derivado normal surge, na Europa, apenas no século XVIII, mais precisamente na França, em 1759 e, mais do que isso, foi incorporado à linguagem popular a partir de vocabulários específicos de duas instituições, a instituição escolar e a instituição sanitária, cujas reformas ocorrem em conseqüência da mesma causa, ou seja, da Revolução Francesa: ______________ 4. Boa parte da bibliografia sobre excepcionalidade trata, por exemplo, o fato de a própria família matar os anormais na pré-história ou o seu abandono na idade antiga como expressão dos maus-tratos a que eram submetidos os "deficientes" e não como prática decorrente das condições nas quais os homens estavam inseridos e produziam a sua existência. [Veja-se KIRK & GALLAGHER (1987) e LEMOS (1981).] Tanto a reforma hospitalar, como a reforma pedagógica exprimem uma exigência de racionalização que se manifesta também na política, como se manifesta na economia, sob a influência de um maquinismo industrial nascente que levará, enfim, ao que se chamou, desde então, normalização. (idem, p.209-10) Se, por um lado, a escola normal se constitui na instituição social em que se ensina a ensinar, em que se instituem os métodos pedagógicos e se procura formar os responsáveis pela transmissão de conhecimentos suficientes para a integração das novas gerações às exigências das novas relações sociais baseadas na industrialização, e o hospital vai se caracterizando não como o local de reclusão para que o doente desenganado aguarde a morte, mas, crescentemente, como a instituição privilegiada, com recursos humanos e equipamentos que possibilitem a recuperação da normalidade do doente, surgem, por outro lado, instituições que têm como função básica o isolamento de uma parcela da população que, por características peculiares da sua anormalidade, não têm, em última instância, possibilidade de ser curada: os hospícios e as instituições para deficientes. Embora surgidas na mesma época histórica e respondendo à exigência básica de racionalidade técnica, estas duas instituições possuem algumas características próprias que as distinguem. Os hospícios surgiram praticamente um século antes que as instituições para deficientes e tinham como característica fundamental o isolamento como forma de proteção do meio social de manifestações individuais que interferiam na nova ordem social, isolamento este decorrente da visão de irreversibilidade dessa conduta anormal. Os hospícios eram, na verdade, locais de internação dos mais diferentes tipos de desajustados, de tal forma que adentravam seus muros usurários, mulheres de conduta extravagante, visionários, paralíticos, criminosos, e isso ao ponto de, em 1737, o Hospício de Bicêtre passar por ampla reforma, objetivando uma divisão mais racional de sua população, gora vivendo em pavilhões separados para loucos, internados por cartas régias, "pobres bons", paralíticos, doentes venéreos, delinqüentes e crianças da correção: A internação é uma criação institucional própria ao século XVII [...] Com isso, a loucura é arrancada a essa liberdade imaginária que a fazia florescer ainda nos céus da Renascença. Não há muito tempo, ela se debatia em plena luz do dia: é o Rei Lear, era Dom Quixote. Mas em menos de meio século ela se viu reclusa e, na fortaleza do internamento, ligada à Razão, às regras da moral e às suas noites monótonas. (Foucault, 1978, p.78) As primeiras instituições para crianças deficientes surgem na segunda metade do século XVIII, em Paris, 5 voltadas exclusivamente para crianças cegas e surdas, tendo em comum com os hospícios o fato de se constituírem em internato, mas com duas características distintas. A primeira delas, é de que essas instituições possuíam alguma perspectiva de recuperação ou, pelo menos, de minimização do "mal" de seus usuários, decorrente do fato de, mesmo antes do seu surgimento, as iniciativas de preceptores e a existência de cegos e surdos que exerciam algum tipo de atividade com sucesso comprovarem a possibilidade de algum tipo de aprendizagem. Assim, diferentemente dos hospícios, onde o caráter de segregação era absoluto, essas instituições procuravam, de alguma forma, desenvolver habilidades prejudicadas pela deficiência (como a fala ou a linguagem gestual para os surdos, e a substituição da escrita por letras em relevo, para os cegos), ou conhecimentos e habilidades necessários ao trabalho, embora boa parte de seus usuários permanecesse o resto de suas vidas residindo no interior dessas instituições. A segunda característica refere-se ao fato de que nem todos os seus usuários necessitavam permanecer em regime de internato pois, para aqueles que tivessem possibilidade, a instituição poderia ser freqüentada em regime aberto. Se essa dupla possibilidade retirava dessas instituições o caráter inteiramente segregacionista dos hospícios, por outro reforçava a distinção entre deficientes de origens sociais diferentes, pois a totalidade dos alunos externos provinha dos estratos sociais superiores. O surgimento de instituições voltadas ao atendimento de crianças deficientes, na verdade, preencheu três funções fundamentais, que espelham os conflitos e contradições que permearam sua gênese e que permanecem até os nossos dias: · o de proporcionar a crianças com evidentes alterações, tais como a surdez e a cegueira, acesso à cultura socialmente valorizada, _________________ 5. As duas instituições pioneiras foram a escola do Abade de 'Epée, criada em 1760, e a escola para cegos, fundada por Valentim Haüy, em 1784, e transformadas respectivamente, no Instituto Nacional de Surdos- Mudos e no Instituto dos Jovens Cegos de Paris, após a Revolução de 1789. bem como de propiciar o desenvolvimento de suas potencialidades e de habilidades necessárias a uma vida relativamente útil; o de contribuir para a separação e segregação dos divergentes, dos que atrapalhavam a nova ordem social e que necessitavam ser enquadrados, de alguma forma, às suas exigências. Esse processo atingiu fundamentalmente os deficientes das camadas populares, já que os que não tiveram o infortúnio de nascerem pobres - marca muito mais significativa que a deficiência -, apesar de sofrerem limitações e preconceitos gerados pela mesma, podiam, contudo, usufruir da vida familiar e da riqueza socialmente produzida; · o de conformação das subjetividades sobre os sujeitos que a ela se incorporam, através das práticas institucíonais, como a internação, a auto-suficiência institucional em relação ao meio social e a incorporação de funções como o trabalho em oficinas segregadas. O que se pode verificar é que, logo após a sua criação, esses institutos ingressaram rapidamente em processo de deterioração, ocorrendo uma descaracterização da primeira função, que deveria se constituir no núcleo fundamental da ação institucional, com conseqüências tremendas para a educação escolar que lá se pretendia desenvolver. Com efeito, esses institutos se transformaram em asilos, preenchendo basicamente a função de organizadores de mão-de-obra barata, que retiravam os desocupados da rua e os encaminhavam para o trabalho obrigatório, manual e tedioso, parcamente remunerado, quando não em troca de um prato de comida e um catre no "maravilhoso espaço do asilo-escola- oficina" 6 _________________ 6. A escola fundada por Haüy, em 1784, cujo currículo era composto de linguagem escrita (através de letras em relevo), aritmética, geografia, música e treinamento industrial, foi incorporada pelo governo revolucionário, em 1791, sob a denominação de Institutos para os Cegos de Nascimento, aceitando a partir de então somente cegos que pudessem trabalhar, sendo que, em 1795, passou a se denominar Instituto dos Trabalhadores Cegos. Estas transformações não podem ser vistas apenas como mudança de denominações ou incorporação de atividades profissionais, já que estas últimas estavam presentes desde o currículo inicial organizado por Haüy, mas como a sua descaracterização como instituição escolar. Tanto isso é verdade que, mesmo com todas as evidências de que o sistema inventado por Braille era muito superior ao das letras em relevo, como processo substitutivo da linguagem gráfica, foram necessários trinta anos (de 1824 a 1854) para que o Instituto passasse a adotar oficialmente o sistema criado por um de seus alunos. Cf. BUENO, 1993, p.68-9. Por sua vez, a segregação e os baixos resultados alcançados, tanto em termos de compensação dos prejuízos específicos gerados pela deficiência, como em relação aos níveis de escolaridade alcançados, além de conformarem as subjetividades dos que nela se incorporavam, foram, em parte, responsáveis pela concepção deficiência disseminada no meio social, como a de indivíduos incapacitados para se responsabilizarem por suas próprias vidas. Isto é, além de cumprir com a função de separação objetiva do meio social em geral, o fato de o internato manter esses indivíduos dentro de seus muros, com vida praticamente auto-suficiente, conformou-os de tal forma que esta dependência à instituição foi se constituindo como fato natural. A tal ponto que um homem genial como Louis Braille, a quem o mundo reverencia - que aos quinze anos de idade criou o sistema substitutivo da escrita para cegos até hoje utilizado, que estudou no Collège de France e que obteve notoriedade junto à elite de sua época por sua inteligência e por seus dotes artísticos - esse mesmo Braille não conseguiu reunir condições para se tornar independente da instituição criada para tornar os cegos independentes, na qual residiu até o fim sua vida. Apesar de não poder deixar de reconhecer que Braille realizou a maior parte de seus estudos no Instituto, que foi aí que aprendeu música a ponto de se tornar um pianista famoso, é imperioso verificar que, sob a capa de uma instituição que se dizia destinada à integração social dos cegos, o Instituto Nacional dos Jovens Cegos de Paris tornou dependente um homem notável. . Isto é, se o surgimento da moderna sociedade industrial, com suas exigências de normalização, como requisito para o incremento da produtividade, se constitui na determinação última das formas pelas quais se efetuou a incorporação dos deficientes pelo meio social, as relações institucionais estabelecidas não podem ser vistas somente como mero reflexo dessas macrodeterminações, mas como espaços de mediação, onde ocorre o constrangimento que não se pode exercer senão com a cumplicidade ativa - o que não quer dizer consciente e voluntária - daqueles que a sofrem, os quais não são determinados a não ser na medida em que se privam da possibilidade de uma liberdade baseada na tomada de consciência. (Bourdieu, 1991, p.116) É sob esta óptica, ou seja, pela análise das formas institucionais pelas quais a educação especial foi se constituindo e suas conseqüências na construção das subjetividades - tanto daqueles que a ela se incorporaram, quer como profissionais, quer como usuários, como do meio social em geral -, que se pode avançar na compreensão do seu papel, na perspectiva de superação da alternativa simplista da visão "centralista" que situa nos "aparelhos ideológicos", investidos de um poder soberano de coerção simbólica, o princípio de todas as condutas e de todas as representações alienadas, e da visão que se pode chamar de "espontaneísta", e que, simples inversão da precedente, inscreve em cada um dos dominados o princípio de uma submissão sem necessidade, às vezes descrita na linguagem da "servidão voluntária", aos constrangimentos, às injunções ' """ e às seduções do poder, (idem, p.115-6) Em outras palavras, cabe verificar como a institucionalização da educação especial foi produzindo uma concepção de deficiência como conseqüência de suas ações, a qual se incorporou, como se fosse natural, aos seus agentes internos (profissionais e alunos), bem como ao restante da população, e que não pode ser explicada a não ser na perspectiva de sua construção histórica. Esta abordagem obriga-nos, do ponto de vista teórico-metodológico, a nos debruçar sobre a constituição dessas instituições em nosso país pois, mesmo que existam (e, a nosso ver, existem) similaridades na construção histórica da identidade social da anormalidade nas mais diferentes formações sociais que constituem a chamada sociedade moderna industrial, as peculiaridades de uma determinada formação, devem, com certeza, exercer influência diferençada na formação dessa identidade. A construção da identidade social do deficiente no Brasil Boa parte da trajetória histórica da educação especial no Brasil parece pouco diferir da dos países europeus avançados e dos Estados Unidos, ocorrendo, como em outras áreas, apenas um atraso em relação à adoção de práticas inovadoras. Assim, a educação especial brasileira parece acompanhar os três momentos marcantes da educação especial no período pós-revolução industrial: 1) o da criação de instituições de internação; 2) o da disseminação do atendimento, com conflito entre as instituições de internação e a escola diária; 3) a integração do deficiente na rede regular de ensino. Embora esta seja uma característica importante que, com certeza, marcou a trajetória da educação especial no Brasil, existem peculiaridades que merecem ser analisadas pois, mesmo que se constituam em mero desajuste causado por políticas sociais contraditórias de um país periférico, por isso mesmo são fatores significativos para a construção da identidade social do anormal. As primeiras instituições de educação especial surgem no Brasil, no início da segunda metade do século XIX, por iniciativa do governo imperial e, tal como suas congêneres européias, destinam-se aos deficientes visuais e auditivos.7 Há, contudo, uma diferença significativa entre os institutos brasileiros e os europeus, pois estes últimos, apesar de incorporados pelo Novo Regime, haviam se constituído anteriormente, como resultado da preocupação e atuação com crianças surdas e cegas, que remontava a um século antes da revolução de 1789, enquanto no Brasil estas foram as primeiras iniciativas. Embora os institutos europeus tenham se constituído como internatos, muitos de seus alunos, fundamentalmente os que provinham dos estratos sócio-econômicos superiores, freqüentaram-no como instituição de regime aberto, já que, desde o século XVII, esse atendimento era efetuado com crianças deficientes oriundas da nobreza, sem que, para isto, tivessem que ser separadas do seu meio social. Assim, a noção da necessidade de segregação dos anormais como forma necessária para a sua "educação" deve ter sido muito mais contundente em nosso país, já que não há informação de qualquer outra iniciativa não segregacionista, até, pelo menos, o início da década de 1930, quando foram criadas as primeiras classes especiais em escolas regulares 8 ______________ 7. O Imperial Instituto dos Meninos-Cegos (atual Instituto Benjamin Constant), foi criado pelo Decreto Imperial n.1428, de 12/09/185, e o Instituto dos Surdos-Mudos (atual Instituto Nacional de Educação de Surdos) foi oficialmente implantado em 26 de setembro de I857, ambos na cidade do Rio de Janeiro. Cf. BUENO, 1993, p.85. 8. Além dessas, as únicas referências sobre novas instituições reportam-se ao início do tratamento de deficientes mentais no Hospital Psiquiátrico da Bahia (atual Hospital Juliano Moreira), a partir de 1874, e da criação do Pavilhão Boumeville, no Hospital Dom Pedro II, no Rio de Janeiro, em 1903, que se configuram, também, como internatos. JANNUZZI (I985, p.62) aponta como uma das primeiras iniciativas, com relação à criação de classes para deficientes na escola regular, a criação de classe especial para "débeis mentais" na Escola Primária José de Andrade, em 1933. O internato, como forma exclusiva no atendimento de crianças deficientes, cria uma identidade social pautada em três dimensões. A primeira, da necessidade da sua separação do meio social geral para, por um lado, evitar que a presença de anormais interfira na racionalização do espaço, cada vez mais urbano, disseminando uma concepção segregacionista de atendimento da pessoa deficiente, e, por outro; para proteger os sujeitos com incapacidades, os quais têm dificuldades no autocuidado e na autoproteção. Assim, foi se construindo uma representação social do internato, não só pela população em geral, mas, principalmente, pelos próprios deficientes, como, mais do que ambiente segregado, um local onde poderiam viver sem ser molestados, convivendo com seus "iguais" protegidos contra aqueles que não lhes compreendem, isto é, criando uma cultura própria em que a instituição total, mais do que sua algoz, é encarada como sua aliada. A segunda, referente à absoluta falta de ampliação de instituições de educação especial durante setenta anos, isto é, até a década de 1920, fez com que, tanto o meio social como os próprios deficientes encarassem a possibilidade de internação nesses institutos como um privilégio a ser alcançado. Isto é, na medida em que as possibilidades de incorporação em instituições educacionais se reduzia praticamente aos dois institutos do Rio de Janeiro, o fato de se conseguir matrícula para uma criança era encarado como um prêmio, tanto para os familiares como para os profissionais, visão essa que, conseqüentemente, se estendia ao próprio deficiente. A terceira refere-se ao baixo rendimento alcançado nesses institutos, expresso, por exemplo, por graves distúrbios de ordem econômica, disciplinar e moral surgidos desde 1858 no Instituto de Surdos-Mudos, isto é, apenas um ano após a sua instalação, e que levaram o governo imperial a promulgar decreto dando ao Instituto um novo regulamento (Lemos, 1981, p.44), bem como, com relação ao Instituto dos Meninos Cegos, pela iniciativa do governo republicano provisório, no início dos anos 1890, de reformular a orientação educacional dada [...] ao mesmo tempo que considerava que outras providências deveriam ser tomadas para o encaminhamento do aluno cego na sociedade. (Lemos, 1981, p.28) Isto é, na medida em que esses institutos não conseguiam se organizar de tal forma a dar aos seus alunos formação suficiente para sua integração social, isso contribuía para que sua própria clientela criasse uma auto-imagem de incapacidade e de inferioridade e que a sociedade em geral os encarasse dentro do âmbito da filantropia. O segundo momento da educação especial no Brasil, que pode ser delimitado basicamente entre o início deste século e a década de 50, se caracteriza, por um lado, pela disseminação de instituições de educação especial pelo país, e, por outro, pela preocupação da escola regular em detectar "alunos-problema" para, mediante a homogeneização das classes, aumentar a produtividade escolar, o que parece também não diferir muito do movimento ocorrido na Europa e nos Estados Unidos. Ocorre que, entre nós e esses países, há uma diferença marcante: enquanto a universalização do ensino fundamental, nos países centrais, vai se constituindo de fato, nosso sistema público de ensino atende a uma pequena parcela da população e, mesmo dentro dessa pequena abrangência, começa a elaborar processos de exclusão do anormal. Na verdade, começa-se, no início deste século, a produzir um discurso que, através da explicitação da necessidade do atendimento do anormal em sistemas especiais de ensino, encobre o fundamental: a exclusão do diferente. Tanto é assim que tiveram de transcorrer mais de vinte anos desde a criação do Laboratório de Pedagogia Experimental (1912) para surgir a primeira classe especial para "débeis mentais" (1933), o que demonstra a absoluta falta de atenção do poder público aos anormais que eram detectados por serviços criados para esse mesmo fim. Ora, se nem para essas crianças foram criados sistemas especiais, o que dizer em relação aos que possuíam anormalidades orgânicas ou mentais evidentes? Se, em países avançados, já se instituía no século passado a obrigatoriedade da educação para deficientes,9 esta não era a realidade do Brasil, que não conseguia dar conta nem daqueles cuja anormalidade só era detectada quando de sua inclusão no ensino fundamental, quanto mais de deficientes evidentes10 que não ingressavam no ensino regular. _________________________- 9. A esse respeito, QUIRÓS e GUELER (1966, p.330) apontam que a educação de surdos passa a ser obrigatória na Dinamarca em 1817, na Noruega em 1881 e na Inglaterra em 1893. 10. A utilização do termo evidente, embora não consiga se desvincular das classificações vigentes, pretende, na medida do possível, não se subordinar a elas, pois considero problemática e pouco precisa a distinção entre "leves", "severas" e "profundas". Neste sentido, o termo pretende se referir àquelas deficiências que se afastam significativamente dos padrões de normalidade. O atendimento de deficientes evidentes se fez, basicamente, por meio de instituições especiais, a maioria esmagadora de caráter filantrópico, em número extremamente reduzido para o atendimento da demanda, o que contribuía, como conseqüência, para a visão da manutenção do atendimento dos deficientes em instituições especiais como um privilégio a ser alcançado por alguns felizardos, já que a maior parte permanecia sem qualquer tipo de atenção. Assim, a ampliação dos serviços de atendimento ao anormal, ocorrida na primeira metade deste século em nosso país, calcados numa concepção de irreversibilidade da anormalidade, contribuiu decisivamente para a manutenção de uma visão assistencialista, que colocou-os no rol da filantropia e da caridade pública, excluindo o atendimento do anormal da discussão sobre os direitos de cidadania. O terceiro momento da educação especial, que se estende da década de 50 até os nossos dias, é caracterizado pela expansão da ação do poder público, com a criação e desenvolvimento dos serviços de educação especial no nível do governo federal e de todos os estados da Federação, bem como pela disseminação de uma rede privado-assistencial que atinge a todo o país e que tem sido caracterizada, exclusivamente, como um avanço em relação aos momentos anteriores. Essa ampliação possui características marcantes que, com certeza, constituem fatores decisivos para a disseminação de uma determinada concepção de anormalidade, quais sejam: a da inclusão de outras categorias no rol das anormalidades e da conseqüente relação contraditória entre a exclusão do "aluno-problema" das classes regulares e da luta pela incorporação da educação dos deficientes no ensino regular; o da pequena abrangência, em termos estatísticos, do atendimento à criança anormal; e o da falta de qualidade dos serviços especializados. Se, durante a primeira metade do século, o atendimento à criança deficiente se restringiu aos deficientes mentais, auditivos e visuais (e, quase que residualmente, ao deficiente físico), uma das características deste terceiro momento foi a da inclusão de outras anormalidades no rol da excepcionalidade. ________________________________ 11. Sobre a questão terminológica envolvendo os conceitos de deficiência, excepcionalidade e crianças portadoras de necessidades especiais, ver BUENO (1993). Ao mesmo tempo que esta ampliação ofereceu, por um lado, o acesso à educação de quadros patológicos anteriormente não identificados, como por exemplo os de fundo neurológico, por outro, foi incorporando população com "deficiências e distúrbios" cada vez mais próximos da normalidade média determinada por uma "abordagem científica" que se pretende "neutra e objetiva", culminando com o envolvimento dos que não têm quaisquer evidências de desvio dessa mesma "normalidade média". (Bueno, 1993, p.80) Em outras palavras, a ampliação não só não significou o incremento do atendimento aos quadros patológicos já incorporados pela educação especial, mas passou a englobar sujeitos cujas dificuldades são decorrentes de processos sociais e de escolarização inadequados. Este aspecto fica evidente nas chamadas classes especiais para deficientes mentais "leves", as quais, com raras exceções, são constituídas, em grande parte, por multi-repetentes, sem qualquer caracterização mais precisa de déficit intelectual. Ao colocar essas crianças no âmbito do atendimento escolar do deficiente mental, a educação especial contribui decisivamente para a disseminação da concepção de "dificuldades de aprendizagem" inerentes aos indivíduos e, consequentemente, de avalizadora da função seletiva dos processos regulares de ensino, num sistema educacional que, até hoje, tem como uma de suas características básicas, a produção massiva do fracasso escolar que recai, fundamentalmente, sobre as crianças das camadas populares. Essa ampliação, por sua vez, não redundou em universalização das oportunidades educacionais para os anormais, na medida em que somente uma pequena parcela tem, até hoje, acesso a serviços educacionais especializados, estimada em cerca de, no máximo, 15% do total da população deficiente em idade escolar (Bueno, 1993, p.103),12 diferentemente do que tem ocorrido com o ensino regular ______________________- 12. Não há, no país, qualquer levantamento do número de crianças deficientes, razão pela qual a literatura tem se baseado em estudos realizados em outros países. Se considerarmos a absorção generalizada, principalmente pelas classes especiais públicas, de contingente de crianças multi-repetentes, este percentual, de 15% em relação à totalidade das crianças deficientes, será ainda mais baixo. em que, pelo menos nas regiões mais desenvolvidas do país, o crescimento da rede pública de ensino ocasionou uma ampliação significativa do acesso à escolaridade de crianças oriundas das camadas populares. Assim, o discurso de ampliação de oportunidades educacionais aos que não conseguem usufruir dos processos regulares de ensino serve para encobrir, na verdade, a real falta de acesso à educação especializada, na medida em que a maior parte da população deficiente continua sem ter oportunidades de incorporação pelos sistemas especiais de ensino. Ao não incorporar, então, a maior parcela das crianças anormais, a educação especial contribui decisivamente para a disseminação da concepção de irreversibilidade da anormalidade, na medida em que, por não deixar explícita que essa ampliação não significou, de fato, a oportunidade de acesso à maioria dos deficientes, os quais permanecem sem atendimento e consequentemente com grandes dificuldades de integração social, contribui para que a sociedade em geral os encare como incapazes de adquirirem autonomia. Por fim, àquela pequena parcela que consegue ingressar nas instituições de educação especial, sejam públicas, ou privado- assistenciais, não se tem oferecido atendimento qualificado, o que se comprova pelo baixo índice de escolarização alcançado por ampla maioria do alunado e pelas dificuldades de integração no mundo do trabalho. _____________________ 13. É certo que esta ampliação não significou o acesso ao conhecimento socialmente valorizado, já que os processos seletivos de repetência e evasão escolares excluem prematuramente da escola grande parte do contingente que a ela tem acesso; de qualquer forma, não se pode negar a ampliação do acesso à escola básica. 14. Bueno (1993, p.130-1) demonstra que, no estado de São Paulo, o mais evoluído da Federação e cujo sistema público de ensino tem sido considerado o mais avançado, embora a evolução das matriculas de alunos deficientes na rede pública estadual, no período compreendido entre 1970 e 1987, tenha sido da ordem de 84%, com crescimento real de 10.740 para 19.844, este número significa apenas 0,48% em relação ao número total de matrículas no ensino de 1° grau (19.844 matrículas em classes especiais para um total de 4.148.844 matriculas no 1° grau regular). 15. Os melhores índices têm sido alcançados junto à população deficiente proveniente dos estratos sociais superiores, cujas famílias têm condições econômicas para financiar atendimentos privados, tanto no que se refere aos atendimentos clínicos (diagnóstico e tratamento) como escolares. Muitas das iniciativas implementadas têm sido analisadas de forma bastante genérica e superficial, redundando em conclusões apressadas e pouco consistentes. É o caso, por exemplo, da consideração de que classes especiais em escolas regulares constituem uma forma de atendimento mais adequada do que as escolas especiais, tendo em vista as possibilidades de contato social entre crianças deficientes e crianças normais. Como são poucos os estudos que procuram investigar, efetivamente, como essa forma de atendimento tem se constituído de fato, as suas virtudes são consideradas sob uma perspectiva abstrata, na medida em que se permanece em análises formais que não levam em consideração os resultados efetivos alcançados por esta ou aquela forma de escolarização. Isto é, se em tese a classe especial parece ser uma forma mais adequada que a escola especial, assim como a integração de crianças deficientes em classes regulares parece superar as ontras duas, é preciso verificar os resultados alcançados em relação aos objetivos propostos para que se tenha uma real avaliação de sua eficácia. Ocorre que, em nosso país, este acompanhamento é praticamente inexistente. Veja-se, por exemplo, a adoção, bastante generalizada no ensino especial de 1° grau, de classes não seriadas, ao contrário do que acontece no ensino regular, em que a seriação é um fato. A justificativa para a não seriação é que esta tem se prestado sobretudo a processos de retenção em determinada série, na medida em que a programação fixa impede, ou pelo menos dificulta, a diversificação do trabalho pedagógico. Baseado, então, no princípio de que a avaliação do rendimento dos alunos e a adoção de programas que dêem continuidade ao seu processo de escolarização é que devem se constituir no núcleo fundamental do trabalho escolar, muitas redes públicas de ensino especial (por exemplo, a do Estado de São Paulo) eliminaram a seriação, como forma de evitar a retenção numa mesma série, o que redundaria na passagem obrigatória por todo um conjunto de conteúdos, muitos dos quais já incorporados pelo aluno. Isto é, a não seriação teria sido adotada em defesa do aluno deficiente. Mas, o que ocorre na realidade concreta das classes especiais? Como não há seriação, fica impossibilitado o acompanhamento dos níveis de escolarização e da distribuição do alunado por série. Assim, não se tem qualquer estatística oficial sobre os níveis de aprovação e de repetência, ou de distribuição do alunado pelas diferentes séries que compõem o ensino fundamental, mesmo quando se tem evidências do baixo nível de rendimento escolar alcançado pela maioria dos alunos. A conseqüência mais nefasta desta situação é a punição daqueles para quem a eliminação da seriação deveria estar servindo, ou seja, o aluno deficiente, pois, na medida em que não se tem informações consistentes sobre a eficácia dos processos de escolarização, não é possível realizar estudos sistemáticos com vistas a sua melhor qualificação, o que favorece a manutenção de processos de escolarização ineficientes e ultrapassados. Mas para além desses aspectos objetivos, a eliminação da seriação, aliada aos baixos níveis de escolarização alcançados, cria uma distinção entre o alunado das classes regulares e o alunado das classes especiais, a qual tem influência decisiva nas concepções sobre as possibilidades de aprendizagem e de escolarização da criança deficiente. Em outros termos, a não seriação e o baixo rendimento contribuem, de forma muito mais significativa do que se possa imaginar, para a cristalização de uma concepção de irreversibilidade e de incapacidade para o aprendizado como decorrência da deficiência, e não como decorrência da má qualidade dos processos educacionais. Considerações finais Este trabalho, embora não desconsiderando, por um lado, a existência objetiva de determinadas características não usuais de parcela da população considerada anormal e, por outro, a constatação de que a anormalidade social, mesmo aquela que é proveniente de alterações orgânicas, é produto das formas pelas quais os homens _____________ 16. Em trabalho anterior (BUENO, 1993) não consegui encontrar qualquer levantamento realizado por órgãos oficiais sobre o nível de escolarização de alunos deficientes inseridos em sistemas públicos de ensino. O único levantamento dizia respeito ao nível de escolarização alcançado por crianças deficientes auditivas inseridas em classes especiais públicas estaduais, fruto de trabalho efetuado por mim dentro de uma das Divisões Regionais de Ensino. Mesmo levantamentos mais recentes, como a Sinopse estatística da educação especial, 1988, produzida pelo Ministério da Educação (BRASIL, 1991), não têm qualquer informação sobre a distribuição do alunado com relação às séries escolares do 1° grau, apresentando somente dados gerais sobre o número de alunos matriculados neste nível de ensino, sem qualquer referência à sua incidência por série. têm produzido a sua existência, variando, portanto, no tempo e no espaço, procurou analisar a contribuição das chamadas instituições de educação especial na constituição da identidade social da anormalidade. Essa perspectiva de análise procurou, neste sentido, se contrapor a uma visão idealista, que interpreta o advento e o desenvolvimento da educação especial moderna como reflexo da democratização das relações sociais como fato "natural" da sociedade urbano-industrial, pelo contrário, entende que, se por um lado, a sua constituição não pode deixar de ser considerada como avanço em relação a outras formas de organização social, por outro, esta mesma sociedade produz uma série de problemas que não podem ser considerados como meras deformações de uma sociedade que se pretende harmônica, mas, inversamente, como conflitos e contradições que são integrantes, indissociáveis e inerentes a ela, e que demandam análise crítica na busca de sua superação. Assim, procurou-se estabelecer uma linha de análise que permitisse avançar no sentido do aprofundamento da compreensão da função exercida pelas instituições de educação especial, não somente com relação à situação social objetiva dos indivíduos anormais, expressa pelos níveis de escolarização e participação social, mas, sobretudo, com relação à constituição das formas de representação social da anormalidade, quer para a própria população deficiente, quer para a sociedade em geral, na medida em que se considera que desvalorizar o que a história apresenta como necessário ou progressista é rechaçar a validade do anterior e criar a possibilidade de opor-se e modificar as extensas práticas que parecem constituir nossa natureza. A implicação crítica que coloca o indivíduo dentro de uma história de assuntos sociais pode evidenciar pontos débeis nos "regimes de verdade", identificando, portanto, lugares potenciais de transformação. (Popkewitz, 1994, p.56) ______________ 17. "devaluar lo que la historia presenta como necesario o progresista es rechazar la validez de lo anterior y crear la possibilidad de oponerse y modificar las extendidas prácticas que parecen constituir nuestra naturaleza. La implicación crítica que coloca al individuo dentro de una historia de asuntos sociales puede presentar puntos débiles en los "regimenes de verdad", identificando, por tanto, lugares potenciales de transformación". 182 Referências bibliográficas ALENCAR, Eunice M. L. Soriano de. Um retrato da educação especial no Brasil. Em aberto, Brasília, ano 13, n. 640, 1993, p.5-10. BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, Hucitec, 1981. BASAGLIA, Franco. O homem no pelourinho. Educação e Sociedade, n. 25, São Paulo, Cortez; CEDES, 1986, p.73-95. BIANCHETTI, Lucídio. Aspectos históricos da educação especial. Revista Brasileira de Educação Especial, vol. 2, n. 3, 1995, p.7-19. BOURDIEU, Pierre. Estruturas sociais e estruturas mentais. 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