Adolescentes e jovens aprendem a conviver com a epilepsia. Eles tentam superar a vergonha e as limitações impostas pela doença. Flávia Duarte Da equipe do Correio Por alguns minutos o corpo perde a compostura e começa a tremer. Caído no chão, só resta ao epiléptico esperar a crise passar e recuperar a consciência. Sintomas da doença também podem ser alguns segundos de desligamento total ou fortes dores no abdominais. O caminhar sem rumo ou o tatear de paredes parecem estranhos ao olhar alheio, mas faz parte da rotina de quem convive com o mal da epilepsia. O distúrbio afeta o trabalho dos neurônios e também influi na saúde emocional dos pacientes. No caso dos adolescentes, então, o problema pode ser ainda maior. Com vergonha das crises, vítimas do preconceito e das limitações imposta pelas doença, muitos jovens se afastam do convívio social. A vida agitada e as horas turbulentas da juventude também atrapalham, com freqüência , o tratamento. A ciência não consegue explicar mais de 65% dos casos de epilepsia. Na prática, o distúrbio é causado pelo funcionamento desordenado dos neurônios, que provoca descargas anormais no cérebro. Pronto para pipocar em curto-circuito, os sistema nervoso de um epiléptico gera as crises, que podem apresentar mais de 30 sintomas diferentes. Para um jovem, esse momento é sinônimo de rejeição e isolamento. ' É muito comum o adolescente ficar deprimido. Os amigos da escola colocam apelido, alguns não conseguem namorada e até são rejeitados pela família". Comenta a professora Rosa Maria, 55 anos. Foi justamente por acompanhar as crises constantes que marcaram a infância e a adolescência do filho Adailton , hoje com 30 anos, que rosa assumiu a presidência da Associação de portadores de Epilepsia do Distrito Federal. Nas reuniões semanais, ela conhece o dramas vividos pelos jovens epilépticos. Limitações e constrangimentos tão parecidos como os enfrentados pelo filho durante 18 anos - desde o ano passado Adaiton esta livre das convulsões, resultado de uma cirurgia. " Quando acontecia na escola, os amigos faziam chacota, achavam que fosse contagioso e as professoras nunca sabiam o que fazer", relembra a mãe. Diante de tanto preconceito e desinformação, o rapaz desistiu da escola e cursou apenas ate a Quinta série do Ensino Fundamental. Pelo menos 1,5% da população compartilha uma historia parecida com a de Adailton. Os sintomas da epilepsia não escolhem a hora para se manifestar. Traços genéticos, tumores, traumas cranianos, pancadas, acidentes ou doenças como meningite e encefalite viral podem ser o estopim da doença. Para tratar, só mesmo muito remédio, paciência e uma série de limitações. " A irregularidade do sono pode desencadear crises. Por isso o epiléptico precisa dormir muito bem", alerta Wagner Teixeira, neurologista do Hospital de Base e especialista em epilepsia pela Clínica Berthel, na Alemanha. Aliás, dormir em horários desregulados faz parte da cartilha do adolescente. A energia que se gasta nas farra é recuperada com sono durante o dia. Isso quando não se tem outro programa agendado para a manhã do dia seguinte e adeus descanso. O epiléptico não pode seguir a rotina agitada dos amigos, caso contrario pode sentir na pele os efeitos da desobediência as recomendações médicas." Muitos reclamam que não podem beber e dirigir desejo que são bem comuns nessa idade"', explica Wagner Teixeira. Foram as, tão inexplicáveis como insuportável, dores abdominais que levaram Virgínia Angélica Tonaco, 15 anos, a procurar um médico. No diagnóstico, uma doença de nome estrago e desconhecido: a epilepsia. "Não sabia do que se tratava. Só me lembro que ficava bastante triste quando os amigos da escola diziam que eu era louca porque tomava remédio controlado", comenta a estudante, sem ressentimentos. Levar as cápsulas para onde fosse também não era a parte preferida da rotina da jovem. Algumas noites deixou de passar noites divertidas na casa das amigas por que estava sem o arsenal de medicamentos. "Já deixei de tomar remédios, mesmo sabendo que isso seria prejudicial ao tratamento", diz sabidamente. As escapadelas lhe custou alguns meses a mais de medicação. Depois de sete anos de tratamento', a expectativa de Virgínia é de que se veja livre dos remédios até o final do ano. "O maior problema é que os adolescentes muitas vezes não seguem à risca as recomendações do médico, o que pode causar crises e prolongar o tratamento", alerta a neuropediatra do Hospital Regional de Taguatinga. (HRT), Simone Guimarães. Por isso é importante que o paciente esteja bem informado para se livrar dos preconceitos do passado", acrescenta a especialista. Enquanto alguns se esquecem de tomar as doses recomendadas, outros jovens tornam os remédios inúteis depois de alguns goles de álcool. As bebidas tão apreciadas pelos adolescentes anulam o efeito do medicamento e, em alguns casos, podem ate desencadear uma crise. Mais do que o desconforto físico, porem , para esses meninos e meninas, a epilepsia é sinônimo de preconceito e vergonha. A falta de informação muitas vezes faz com que o adolescente seja alvo de chacotas. O estudante Vernon Rodrigues, 22 anos , é um exemplo. Ele quer ser administrador. Por enquanto só concluiu a oitava série, mas nunca viu a doença como obstáculo. Para evitar os olhares assustados quando o coro se agira no ritmo da convulsão, explica aos amigos do que se trata a doença. " As pessoas nem sabem o que é epilepsia. Faço questão de explicar tudo para elas. Algumas até já sabem o que fazer quando eu passar mal,' conta Vernon, que lida com crises quase diárias. Atitude bastante acertada na opinião da neuropediatra Simone Guimarães ."Os jovens não podem se deixar abater por causa da doença. Eles precisam entender que qualquer pessoa tem limitações e a epilepsia não os torna inválidos", ensina a médica. Como ajudar um epiléptico durante a convulsão: - Coloque um objeto macio sobre a cabeça do paciente. - Desabotoe a camisa, solte a gravata e o cinto - Vire a pessoa de lado para evitar que ela engasgue - Não segure nem tente conter os movimentos do epiléptico durante a crise. - Nunca coloque qualquer objeto na boca da pessoa,. Enrolar a língua não passa de mito - Ao final da crise, observe se a respiração normalizou. Caso contrário, leve a pessoa para um hospital. A EVOLUÇÃO DO (PRE)CONCEITO DE DEFICIÊNCIA Vaneza Cauduro Peranzoni Soraia Napoleão Freitas . O presente artigo procura explicitar a evolução histórica da conceituação da deficiência sob a ótica do estigma e da discriminação que configuram (e, por vezes, ainda configuram!) as páginas de nossa história, mais precisamente quanto às oportunidades educacionais (negadas e proporcionadas) e aos serviços oferecidos à clientela dita especial (hoje chamadas de Portadores de Necessidades Educativas Especiais pela sociedade que, em certa época, pregou integração mas segregou e, hoje, prega inclusão mas ainda exclui. Palavras-Chave - deficiência - história - evolução Como seres humanos, encontramo-nos em constante evolução e sede de saber. Deste modo, no contexto educacional, educador e educandos tornam-se sujeitos históricos de busca, de inquietações, operacionalizando a superação de desafios nos mais diferentes sentidos da construção do conhecimento. Sob essa ótica, a proposta deste artigo objetiva apresentar como transcorreu a evolução histórica da conceituação da deficiência, discutida desde os pioneiros até os dias atuais. Assim, observamos que, por meio da história, as PNEE vêm sendo consideradas de diferentes maneiras, sempre relacionadas aos valores sociais, morais, filosóficos, éticos e religiosos de cada época, isto é, historicamente as PNEE foram e ainda são consideradas conforme as diversas concepções de homem e de sociedade nas diferentes culturas. Para compreendermos a situação atual das PNEE, faz-se necessário um resgate histórico- evolutivo de como essas pessoas foram tratadas. Analisando a literatura existente que versa sobre este tema, fica-nos uma certeza: a quase constante situação de segregação e exclusão que perpassou a criação e a evolução da humanidade e que perpassa até os dias atuais. A literatura aponta que, na Roma antiga, muitas crianças com deficiência ou que nasciam com alguma malformação eram abandonadas em pequenos cestos nas margens do Rio Tibre. Por outro lado, Roma também teve no seio de seu comando muitos imperadores que apresentavam algum tipo de deficiência, como: Caio Júlio César, Ápio Cláudio, Cláudio I e Nero. Só que suas deficiências eram "escondidas" e ignoradas pelo povo, devido ao poder que estes possuíam em suas mãos para governar. Portanto, sendo detentores do poder, tinham a chance de não serem segregados. Além desses imperadores, Roma teve muitos outros imperadores com deficiências, que são: Galba, que apresentava problemas nas mãos e nos pés; Othon, com deformação física nas pernas; e Vitélio, que possuía grave lesão nas pernas (BEZ, (s/d) In: Revista Vivência). De acordo com BEZ (s/d), na antiga Grécia, a deficiência era totalmente ignorada, não possuía nenhum espaço, considerando que a beleza e o culto ao corpo e à perfeição física eram tidos como condição sine qua non para a participação em sociedade, e uma pessoa com deficiência, considerada então feia, malformada, era, por conseqüência, praticamente uma ofensa ao povo. Assim, quando nascia uma criança que apresentava alguma deficiência esta devia passar por um "conselho" que definiria se deveria viver ou morrer. A criança destinada à morte era conduzida ao Apothetai, o que significa depósito. Mas, como em Roma, na Grécia houve muitas personalidades que apresentavam alguma deficiência, entre eles: Homero, que era cego; Alexandre, o Grande, que sofria de epilepsia; e Demóstenes, que sofria de gagueira. BEZ (s/d) coloca ainda que "no tempo de Aristóteles, havia, em Atenas, 20 mil pessoas portadoras de deficiências, que correspondiam a aproximadamente 20% de toda a população, recebendo pensão do Estado", p. 08. Esse índice era considerado alto, por isso, talvez, os romanos e gregos tentavam de todas as formas impedir que crianças consideradas deficientes permanecessem vivas. Ao mesmo tempo, podemos dizer que estes povos serviam de "fábrica" de deficiência, considerando que, com suas guerras constantes, muitos soldados voltavam mutilados, tornando-se, assim, portadores de deficiência física. Então, muito seguramente, podemos colocar que a sociedade não só eliminava as pessoas consideradas diferentes, mas também as fazia ficar nesta condição e perpetuava a questão da eliminação, num movimento cíclico e perene de segregação, em analogia ao "darwinismo social" e à "eugenia", considerando que "os portadores de deficiência foram vistos como vilões, portadores de taras hereditárias, que representavam um perigo para a continuidade da espécie" (MENDES s/d, p. 08). Na Idade Antiga, acreditava-se que o "comportamento diferente" da PNEE era conseqüência de forças sobrenaturais, sugerindo a crença em uma origem demoníaca das doenças e, mais especificamente, da deficiência mental. Com o advento da Idade Média, intensificou-se a crença no sobrenatural. O homem passou a ser submetido a poderes invisíveis, tanto para o bem quanto para o mal; a prática de magia e as relações com o demônio eram parte do cotidiano. Em conseqüência disso, segundo AMIRALIAN (1986), a sociedade agia distintamente com as PNEE, conforme o tipo de excepcionalidade apresentada: os psicóticos e epilépticos eram considerados possuídos pelo demônio; alguns estados de transe eram aceitos como possessão divina, e os cegos eram reverenciados como videntes, profetas e adivinhos. Em torno do século XVIII, começam aparecer explicações naturalistas para o comportamento dos deficientes. Segundo PESSOTTI (1984, p.72), "o desenvolvimento da ciência permite questionar os dogmas religiosos e começam a surgir estudos mais sistemáticos na área médica visando explicar tais comportamentos". Os estudos na área da medicina permitiram verificar que muitas deficiências eram resultantes de lesões e disfunções no organismo. Dessa forma, a medicina começa a ganhar um forte espaço, e as PNEE passam a ser vistas como objeto e clientela de estudo desta área. Isso não significou ainda uma redução na discriminação social de que eram vítimas, mas, sim, um marco no que se refere ao atendimento às suas necessidades básicas de saúde apenas. Assim, podemos dizer que há uma continuidade da segregação aos deficientes. Com o objetivo de oferecer tratamento médico e aliviar a sobrecarga da família e da sociedade, as PNEE eram mandadas para asilos e hospitais, na companhia de prostitutas, loucos e delinqüentes. Com a Revolução Industrial, o panorama da concepção de deficiência muda um pouco seu foco, considerando que esse período retrata um processo de transformações econômicas e sociais, caracterizadas pela aceleração do processo produtivo e pela consolidação da produção capitalista, abrindo caminho para o processo de produção em série, que exige a escolarização em massa de seus trabalhadores. Surge, então, uma nova parcela da população que passou a ser considerada menos eficiente, ou seja, deficiente, aqueles que não conseguiam aprender conforme as normas escolares instituídas. Observa-se que, até o início do século XIX, a deficiência estava associada à incapacidade, à idéia de inutilidade e dependência, e não havia nenhuma preocupação com a mudança desse quadro. O abandono e a eliminação das PNEE eram atitudes comuns e não eram fundamentadas a preceitos morais e éticos que regiam as relações sociais das diferentes épocas. Somente no final do século XIX e no início do século XX é que se criaram instituições para os deficientes mentais moderados e profundos, com a finalidade de servir de asilo para que eles "incomodassem" o menos possível. Se observarmos a evolução histórica da deficiência no que se refere ao atendimento educacional, a área denominada de Educação Especial expandiu-se, no Brasil, com a criação de entidades filantrópicas assistenciais e especializadas destinadas à população das classes menos favorecidas. Ao lado dessas instituições, surgiram clínicas e escolas privadas para o atendimento das PNEE das classes mais altas. Em relação ao atendimento, notamos um número elevado de profissionais ligados ao modelo médico da deficiência, no qual esta é vista como um "problema" do indivíduo e, por isso, o próprio deficiente terá que mudar para se adaptar à sociedade ou terá que ser mudado por profissionais através da reabilitação ou cura. Esse modelo médico da deficiência é um dos grandes responsáveis pela resistência da sociedade em aceitar mudar as suas estruturas e atitudes para a inclusão das PNEE, pois durante anos tratou estas pessoas com fins médicos e clínicos e não pedagógicos. Na verdade, o que se almeja é o fim pedagógico, o da inclusão, em que profissionais trabalhem com as capacidades e habilidades das PNEE. A sociedade deve ser aberta a todos e não deve segregar e apresentar barreiras a ninguém. A escola seria uma das instituições que poderia quebrar com muitos tabus, mas, ao contrário, é permeada de preconceitos e juízos prévios sobre os alunos e suas famílias. De acordo HELLER (1970, p. 17), "a vida cotidiana é a do homem inteiro; ou seja, o homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade". Infelizmente, na maioria das vezes, a individualidade e a personalidade das PNEE não são respeitadas e nem levadas em conta pela sociedade. Este indivíduo se torna vítima de muitos preconceitos. Mas o que vem a ser preconceito? O preconceito é um fenômeno conhecido há muito tempo, mas seu objeto e seu conceito têm variado historicamente, torna-se muito difícil defini-lo. Conforme Jahoda e Ackerman (1969) apud CROCHIK (1997, p.29) o ... preconceito é considerado por (...) como um pré-julgamento que predispõe o indivíduo a ter atitudes frente ao objeto em questão, e este pré-julgamento, por sua vez, é determinado pela relação entre o indivíduo e aquilo que a cultura lhe oferece para se expressar e ser expressada por ele. Mais adiante, os mesmos autores colocam que o preconceito ... ... ... representa uma subcategoria do pré-conceito, apóia-se no pensar estereotipado, sem confundir-se com um ou com outro. Do ponto de vista psicológico, o preconceito é (...) uma atitude de hostilidade nas relações interpessoais, dirigida contra um grupo inteiro ou contra os indivíduos pertencentes a ele, e que preenche uma função irracional definida dentro da personalidade. Em cada época, a PNEE, como foi relatado anteriormente, foi vítima de um tipo de preconceito, conforme os valores e os costumes do próprio período. Os preconceitos, segundo Kant apud CROCHIK (1997), são incutidos nos homens, os quais são impedidos e se impedem de pensar por si próprios. O autor vê a experiência e a razão como fundamentais para o conhecimento e o preconceito como seu maior obstáculo. O preconceito se remete à dominação e, quando necessário, à proposta de eliminação do desconhecido para se manter aquilo que já é conhecido. A vida cotidiana e o cotidiano escolar têm muitos preconceitos, devido a muitos fatores. Sabemos que a vida cotidiana é heterogênea e hierárquica, e o homem já nasce inserido em sua cotidianidade. Com o amadurecimento, ele adquire todas as habilidades para a vida cotidiana da sociedade. Esse amadurecimento começa sempre por grupos. Mas, muitas vezes, a PNEE é privada deste convívio em grupos, sendo segregada, excluída da sociedade por causa das suas diferenças e limitações. Segundo HELLER (1970, p. 20), "a vida cotidiana está no centro do acontecer histórico: é a verdadeira "essência" da substância social". E o indivíduo é sempre um ser particular e genérico, simultaneamente. Não se deve esquecer disso no cotidiano escolar. Mas, infelizmente, o cotidiano escolar é o espaço onde se concretiza a produção do fracasso escolar (e não o contrário), onde não se dá a atenção necessária para aquele ser "diferente". Contudo, devemos romper esta muralha de preconceitos, para construir uma escola comprometida com as PNEE. Ser capaz de se elevar à esfera do humano-genérico, suspendendo a vida cotidiana e suas inúmeras reivindicações, e aí ser capaz de transformar seu próprio cotidiano, é essencial se pretendemos ser sujeitos de nossa própria historia. Apresento, aqui, para reflexão, esta citação de COLLARES & MOYSÉS (1996, p. 260): "Se, porém, pretendemos ser agentes efetivos de transformação social, sujeitos da história, fica o desafio de sermos capazes de nos infiltrar na vida cotidiana, quebrar seu sistema de preconceitos e retomar a cotidianidade em outra direção." Portanto, buscamos uma escola e uma sociedade inclusivas, a que todos tenham acesso e onde sejam respeitados os limites de cada um, sendo dado espaço a todas as pessoas para que elas possam crescer e transformar cada dia mais o seu meio, rompendo com muitas das barreiras que lhes são impostas. BIBLIOGRAFIA AMIRALIAN, Maria Lúcia. Psicologia do Excepcional. v. 3. São Paulo: EPU, 1986. ARIES, Philippe e DUBY, Georges (Dir.) Do ventre materno ao testamento. In:. História da vida privada. Do Império Romano ao ano mil. V. I. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 23-43. ___. A individualização da criança. In: História da vida privada. Da Renascença ao Século das Luzes. v. III. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 311-329. BEZ, Volnei Martins. O Ocaso dos mitos. In: Revista Vivência. Fundação Catarinense de Educação Especial. n. 14, p. 5-9. São José, SC. COLLARES, C. & MOYSÉS, M. A. Preconceitos no cotidiano escolar: ensino e medicalização. São Paulo: Cortez, 1996. CROCHIK, José Leon. Preconceito: indivíduo e cultura. São Paulo: Robe Editorial, 1997. GOYOS, Celso (org.) Temas em Educação Especial. São Carlos, SP: Editora da UFSCar,1996. HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970. ___. Sociologia de la vida cotidiana. Barcelona. Edicione Península, 1991. JANNUZZI, Gilberta. A luta pela educação do deficiente mental no Brasil. Campinas, SP: Editora Autores Associados, 1992. MANTOAN, Maria Tereza. Compreendendo a deficiência mental: novos caminhos educacionais. São Paulo: Scipione, 1989. MAZZOTTA, Marcos J. S. Educação Especial no Brasil: História e políticas públicas. São Paulo: Cortez, 1996. MENDES, Enicéia Gonçalves. História da Educação Especial para Portadores de Deficiência Mental no Brasil. S/d. Mimeo. ___. Construindo a concepção de deficiência: implicações no processo de formação de educadores. S/d. Mimeo. PESSOTTI, Isaías. Deficiência Mental: da superstição à ciência. São Paulo: T. A. Queiroz/EDUSP, 1984. SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão. Rio de Janeiro: WVA, 1997. Edição anterior Página inicial Próxima edição Cadernos :: edição: 2000 - N° 16 > Editorial > Índice > Resumo > Artigo Sobre a tolerância e a diferença: contribuições epistemológicas para o trabalho com pessoas que necessitam de atenções especiais Valdo Barcelos Débora Ortiz de Leão . Este ensaio tem como principal objetivo colaborar com subsídios teórico-epistemológicos no sentido da construção de práticas pedagógicas para o trabalho em educação de forma geral e, em particular, refletir sobre alternativas de intervenção pedagógica junto a pessoas que necessitam de atenções especiais. Nossos olhares serão orientados na busca de algumas alternativas que nós poderemos dar para, através do fazer pedagógico, contribuir com o aumento da tolerância entre homens e mulheres nos tempos de pós- modernidade em que vivemos. Tentaremos responder à seguinte pergunta: Qual a contribuição que nós, educadores e educadoras, podemos dar, através do fazer pedagógico/educativo, para que o exercício da tolerância passe a ser uma prática cotidiana e permanente nos tempos de pós-modernidade em que vivemos? Palavras-Chave: tolerância, diferença, Educação Especial. Introdução As viagens, os viajantes – tantas espécies deles! Tanta nacionalidade sobre o mundo! Tanta (Profissão! tanta gente! Tanto destino diverso que se pode dar à vida, À vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma! Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas E nada traz tanta religiosidade como olhar (muito para gente. A fraternidade afinal não é uma idéia revolucionária. É coisa que a gente aprende pela vida afora, (onde tem que tolerar tudo, E passa a achar graça ao que tem que tolerar, E acaba quase a chorar de ternura sobre o que (tolerou! (Fernando Pessoa. “Ode Marítima”- p. 67) Este ensaio tem como principal objetivo contribuir com subsídios teórico-epistemológicos no sentido da construção de práticas pedagógicas para o trabalho em educação de forma geral e, em particular, refletir sobre alternativas de intervenção pedagógica junto a pessoas que necessitam de atenções especiais1. Nossos olhares serão orientados no sentido de visualizarmos algumas alternativas para que, através do fazer pedagógico, possamos contribuir com o aumento da tolerância2 entre homens e mulheres nos tempos de pós-modernidade em que vivemos. Vivemos em um mundo onde cada vez mais as pessoas podem ser cosmopolitas. É importante observar que estamos dizendo que as pessoas podem ser cosmopolitas. O cosmopolitismo, assim como outras opções da sociedade, é uma conquista humana. As migrações sempre existiram sendo, inclusive, um fenômeno indissociável da história da humanidade. As pessoas sempre se deslocaram de suas aldeias, povos, cidades nações. A grande diferença entre as migrações da antigüidade e as contemporâneas é que, enquanto essas são, na grande maioria das vezes, voluntárias, aquelas aconteciam de forma compulsória. As migrações, antigamente, davam-se majoritariamente por expulsão após as guerras, perseguições religiosas ou como fuga de regimes de escravidão. Essas migrações foram responsáveis, também, pela migração de costumes, hábitos, religiões, crenças, saberes e conhecimentos. Enfim, migram as gentes e migram, também, com elas, as suas culturas. Appian (1999), ao analisar o ritmo crescente do cosmopolitismo no mundo contemporâneo, ensina que, assim como viajaram as pessoas, as práticas culturais com elas sempre viajaram. Segundo esse mesmo autor, não há razões para ter medo das migrações voluntárias que levam ao cosmopolitismo. O que se deve combater são as migrações impostas por razões política, étnicas, religiosas e, até mesmo, econômicas. Assim como no amor aquilo que não for coercitivo deve ser celebrado, as migrações desejadas, feitas por vontade própria podem ser uma possibilidade a mais de construção da felicidade. Portanto, as migrações, quando voluntárias, não só devem ser respeitadas como constituem um importante processo através do qual as culturas se comunicam e se enriquecem na diversidade. O poeta e ensaísta mexicano Octávio Paz (1994), ao falar do devir humano, coloca a leitura e as viagens como componentes indissociáveis da instituição dos seres humanos como construções imaginárias sociais. Para ele, “O desejo de viajar é natural nos seres humanos; não é inteiramente humano aquele que não o sentiu pelo menos alguma vez” (p.15). Isso faz parte do desejo humano de aventura, de desafiar o desconhecido, de construir/realizar fantasias. Está em nós mesmos. Faz morada em nossa imaginação, que é filha do desejo que, por sua vez, nasce e/ou se alimenta da distância. Vemos, aqui, novamente, uma importante aproximação entre o desejo de viajar e o amor. Esse último intermediado por aquilo que chamamos saudade, sentimento híbrido que persegue as pessoas quando estão separadas pela distância física. Falamos até aqui de amor, distância, saudade, diferença, viagem, tolerância...São palavras, sentimentos e ações aparentemente pertencentes a territórios existenciais diversos mas que, com muito freqüência, são responsáveis por des/encontros, con/vivências, des/amores, in/tolerância, des/respeito, in/felicidades. Enfim, vida/morte/morte/vida...No entanto, neste ensaio, escolhemos refletir sobre a importância/necessidade/atualidade da tolerância para a construção de um mundo social e ecologicamente mais justo, em que a diferença seja festejada e a tolerância uma exigência. Como procuramos demonstrar, nesta breve introdução, a exigência da tolerância não é, certamente, algo novo entre nós. Não é alguma coisa que se tenha mostrado necessária apenas a partir do momento da planetarização das relações que atualmente vive a sociedade mundial. A tolerância, ou a falta dela, está na origem mesma da sociedade humana e dos grandes conflitos que a acompanham. A necessidade de tolerância se acentua à medida em que a sociedade se torna mais complexa. Cada vez mais radicais e evidentes se mostram as interdependências entre os componentes deste sistema mundial pós-moderno. Paralelamente a essa situação de interdependência, aumenta a fragilidade do sistema mundial. Assistimos à falência da capacidade reguladora fundada nos ideais de democracia moderna, que tinham sua abrangência delimitada ao local e ao nacional. Estavam restritas aos limites políticos, econômicos e de direito dos Estados-Nações Modernos. Este cenário de fragilidade/instabilidade reguladora e a falta de instâncias democráticas para o estabelecimento de diálogo entre homens e mulheres contemporâneos é atribuído por Pierre Calame (2001) ao acelerado processo de fragmentação da sociedade em diversos territórios independentes, bem como decorre da atribuição do papel regulador para os órgãos burocráticos de gestão e para serviços administrativos que não mais conseguem fazerem-se representantes legítimos das partes e de seus interesses na sociedade contemporânea. Tais organismos já não bastam para representar as diversidades de subjetividades, desejos e interesses em jogo, muito menos conseguem criar mecanismos de convivências que consigam viabilizar a autonomia das pessoas e das comunidades sem descuidar do fato de que vivemos em um mundo de interdependências sociais, políticas, econômicas, culturais e ecológicas. É a partir de um cenário com esta configuração caleidoscópica que nós, educadores e educadoras, teremos que nos posicionar/agir. Um desafio de tamanha magnitude exigirá muito mais que uma postura profissional tecnicamente competente. Exigirá uma postura de cidadãos e cidadãs de um mundo que clama cada vez mais pela aceitação e defesa das diferenças étnicas, religiosas, políticas, ideológicas, ecológicas, ou seja, pela tolerância em relação ao outro/a. Acreditamos que essa aceitação tem muita relação com a idéia aristotélica de que tolerar e ser tolerado caminha lado a lado com o ato de governar e ser governado, sendo portanto, uma tarefa que só poderá ser praticada por cidadãos e cidadãs democráticos(as) e tolerantes. Tentaremos responder, a partir de agora, à seguinte questão: Qual a contribuição que nós, educadores e educadoras, podemos dar, através do fazer pedagógico/educativo, para que o exercício da tolerância passe a ser uma prática cotidiana e permanente nos tempos de pós-modernidade em que vivemos? 1- Diferença/diversidade e des/igualdade: aprendendo a conviver com o/a outro/a “A tolerância torna a diferença possível: a diferença torna a tolerância necessária” (Walzer, 1999, p.XI) Tentar compreender os motivos pelos quais as pessoas ainda sentem dificuldades em conviver com as diferenças, numa época em que tanto se discursa sobre cooperação, globalização, democracia, pode se constituir em um primeiro passo em direção a uma possível mudança no imaginário social que, na maioria das vezes, acaba por limitar ainda mais as condições de vida de quem foge ao padrão da normalidade imposto por uma história de discriminações e de dominação. Quando se trata de pessoas comuns, as diferenças passam, na maioria das vezes, desapercebidas, principalmente, quando as características físicas e/ou psicológicas não são tão evidentes. Porém, em se tratando de pessoas que necessitam de atenções especiais, uma diferença faz toda a (in)diferença. Quando se vive em um mundo onde a maioria é par e onde a grande maioria das pessoas estão acostumadas a se olhar e se reconhecer através de características pares (dois olhos, dois ouvidos, dois braços, duas pernas...) ser ímpar, não raro, é o que nos faz diferentes. Porém, nós também podemos ser pares, ou ímpares, alternadamente, como uma brincadeira de criança, desde que participemos do jogo da vida. As questões da igualdade e da diferença têm sido discutidas por vários autores, entre eles, Boaventura Souza Santos que nos traz muitas contribuições para refletirmos sobre o multiculturalismo tão presente na sociedade em que vivemos. Neste contexto, encontramos uma expressão que complementa nosso pensamento: “temos o direito a ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza”. (Santos apud Oliveira, 2002, p.53) Conviver com o diferente, sem descaracterizá-lo de suas escolhas ou de suas histórias de vida, numa sociedade de orientação capitalística3 como a nossa, ainda está muito longe de ser um processo tranqüilo, algo comum, realizado naturalmente. A diferença pode ser sinônimo de diversidade, mas jamais de desigualdade no sentido em que aqui nos referimos. O problema começa quando nos deparamos com situações em que as diferenças se tornam mais evidentes aos olhos/ouvidos/corações/mentes dos que querem vê-la/ouvi-la/senti-la como tal ou, o que é ainda pior, negando-se a reconhecê-la. Neste momento, entram em cena as diversas formas de isolamento, os silenciamentos e, por fim, a exclusão. Nós, educadores e educadoras de um mundo que se planetarizou, estamos frente a um grande desafio: transformar o processo educativo em um território no qual o conhecimento não seja pensado para dominar o/a outro/a mas, sim, para criar espaços de solidariedade. Entendemos que seria um grande avanço, para o fazer pedagógico, se conseguíssemos fazer algo semelhante ao que sugere Maturana (1995) quando alerta para a necessidade de que, para vivermos em sociedade há que recuperar a confiança das crianças nos adultos. Para ele, essa seria, na verdade, a grande – senão a maior – demonstração de inteligência que poderíamos dar. Contudo, isto só seria possível através de uma inteligência orientada pelo amor e pela solidariedade. Esta seria uma boa pista para nós, educadores e educadoras, começarmos a pensar um conhecimento que reconheça o/a outro/a na sua diferença. Boaventura Santos (2000) denomina este conhecimento, que reconhece, de solidariedade. Para esse autor, estamos tão habituados a conceber o conhecimento como um princípio de ordem sobre as coisas e sobre os outros que é difícil imaginar uma forma de conhecimento que funcione como princípio de solidariedade. No entanto tal dificuldade é um desafio que deve ser enfrentado. Sabemos nós hoje o que aconteceu às alternativas propostas pela teoria crítica moderna não nos podemos contentar com um pensamento de alternativa. Necessitamos de um pensamento alternativo de alternativas.(Santos, 2000,p.30). A prática da solidariedade está vinculada, entre outros fatores, ao reconhecimento, à aceitação e à defesa do direito do outro ao exercício de seus desejos e vontades. Enfim, o direito à diferença. A construção de espaços de solidariedade está diretamente ligada à idéia de diversidade cultural que, por sua vez, é inseparável do exercício da tolerância. Assim, a construção de um conhecimento que reconheça e não discrimine o/a diferente enfrentaria duas outras grandes dificuldades, que, para Boaventura Santos, seriam o silêncio e a diferença. O silêncio a que se refere Boaventura Santos está diretamente relacionado/condicionado ao processo moderno de hegemonia do conhecimento-regulação, que foi exercido como principal forma de dominação e, até mesmo, de aniquilação cultural de diversos povos, etnias e culturas durante o processo de colonialismo ocidental. Essa forma de relação de dominação colonialista levou à produção de silêncios que tornaram impronunciáveis subjetividades e diversidades culturais de vários grupos sociais e, até mesmo, de povos inteiros, aniquilando, com isto, seus saberes e conhecimentos. Segundo Boaventura Santos, “não nos esqueçamos que sob a capa dos valores universais autorizados pela razão foi de fato imposta a razão de uma ‘raça’ de um sexo e de uma classe social.” (Santos,2000, p.30). A questão que se coloca ao processo educativo, neste momento de transição paradigmática em que vivemos, é: como estabelecer espaços de convivência entre os/as diferentes quando muitas destas diferenças já foram anuladas/silenciadas ou, até mesmo, eliminadas? A segunda dificuldade enfrentada pelo conhecimento-emancipação, a diferença, é decisiva para a prática da solidariedade, pois esse sentimento só se torna possível na diferença, no diálogo com o outro e não na dominação e/ou anulação desse ou de suas diferenças. A viabilização deste diálogo, desta relação de solidariedade passa, necessariamente, segundo Santos, pela sua aceitação e institucionalização, pois todo conhecimento é sempre dependente das condições que o tornaram possível, ou seja, o conhecimento é uma produção contextualizada. Ao mesmo tempo em que todo conhecimento é uma produção que tem vínculos com a cultura na qual está imerso e foi elaborado, torna-se necessário aquilo que Boaventura Santos (2000) denomina de uma “teoria da tradução”. Essa teoria da tradução constitui-se em um componente decisivo, fundamental para a construção de teoria crítica que aqui vamos denominar de pós-moderna4, sem a qual o diálogo entre essas formas diferentes de conhecimento ficaria inviabilizado. É essa teoria da tradução que, de acordo com Santos (2000,p.30), tornaria uma “necessidade, uma aspiração, uma prática numa dada cultura compreensível e inteligível para outra cultura”. É a partir dessa constatação que se depreende a necessidade de construção de um processo educativo em que o conhecimento produzido, além de prudente, mantenha-se em permanente reflexão sobre a escala tanto de suas ações quanto de suas conseqüências para os destinos da vida em sociedade. Com uma orientação desse tipo, a educação teria como sua principal tarefa a construção de pessoas que vissem qualquer outra pessoa como alguém que deve ser respeitado em suas diferenças e individualidades. Para tanto, a tolerância para com esse/a outro/a constitui-se condição necessária. Estaríamos também, desta forma, fugindo da armadilha, ou da imprudência, de não reconhecer que existem muitas formas explícitas ou implícitas de preconceito geradores de exclusão. Negros, índios, mulheres, analfabetos, pessoas portadoras de atenções especiais, (na maioria das vezes essas categorias associadas) formam essa sociedade multicultural, na qual não deveria haver uma hierarquia dominante. Deveria, sim, haver um profundo cuidado por tudo o que diz respeito ao outro/a, como legítimo/a outro/a na convivência com os/as demais, como nos ensina Maturana (2002). 2- Tolerância e Educação: uma conversa necessária “Uma criança que cresce no respeito por si mesma pode aprender qualquer coisa e adquirir qualquer habilidade se o desejar” (Maturana, 2002, p.12). Uma das provas – para quem ainda precisa delas – de que a tolerância é algo necessário, está, segundo Walzer (1999), no fato de as pessoas sentirem-se tão fortemente inclinadas a lhe dar valor. É muito difícil justificar a não valorização ou o sentido humanitário da tolerância . Negá-la é como ter de assumir, publicamente, que defendemos a violência, a discriminação, o egoísmo. Enfim, é aceitar a negação do outro/a como algo normal. Tão normal quanto o era a “convivência pacífica” entre escravos e senhores. Como na poesia pessoana - nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente/A fraternidade afinal não é uma idéia revolucionária/ É coisa que a gente aprende pela vida afora, onde tem que tolerar tudo/ E passa a achar graça ao que tem que tolerar, e acaba quase a chorar de ternura/Sobre o que tolerou! – a educação, como uma construção cotidiana e permanente, não é um ato revolucionário. É um processo que se dá no dia a dia da relação entre as pessoas. Exige de nós, educadores e educadoras, uma ação respeitosa e cuidadosa com o/a outro/a. Pensar o processo educativo e suas relações pedagógicas é pensar/agir com tolerância em relação aos educandos e às educandas. Um pensar/agir muito próximo àquilo que Freire (1997, p.39) chama de “pensar certo” em que não pode haver espaço para qualquer forma de discriminação. O exercício da tolerância, de uma forma geral, não é, certamente, algo fácil de praticar. Em algumas situações, torna-se mais difícil ainda fazê-lo. Vamos refletir sobre o espaço da escola e como nele a tolerância enfrenta dificuldades que vão da própria organização político-pedagógica até a ação particular de cada educador/a. Poderíamos começar pelo fato de que as crianças não têm escolha quanto ao fato de freqüentar ou não a escola. A partir da modernidade, a educação escolar passou a ser um dever das famílias e do Estado Moderno5, principalmente desse último. É na modernidade que a criança passa a ser apresentada ao mundo através da escola. Essa instituição passa, desde então, a desempenhar um papel fundamental na construção das identidades e subjetividades das crianças e/ou dos(as) educandos(as). Além dessa tarefa, cabe a ela estimular/promover o desenvolvimento de habilidades e capacidades o que, do ponto de vista da educação, colabora para a construção da singularidade de cada pessoa. É a partir dessa singularidade que se pode dizer que cada ser humano é diferente do outro, bem como cada criança é um viajante que chega sempre pela primeira vez neste mundo. Nas palavras de Arendt (1997, p.139) “Alguém que não é apenas um forasteiro no mundo, mas alguma coisa que jamais esteve aí antes”. No entanto, é importante não esquecer que o processo educativo não tem como – nem deve ser seu objetivo – pensar a escola como uma representação total do mundo a ser enfrentado pela criança e/ou pelos(as) educandos(as) em geral. Sobre essa questão é importante o alerta feito por Arendt (1997, p.238) quando chama atenção de que, por mais importante e bem organizada que seja a escola e por melhor preparados(as) intelectual e profissionalmente que estejam os(as) educadores(as) ela, Não é de modo algum o mundo e não deve fingir sê-lo; ela é, em vez disso, a instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer com que seja possível a transição, de alguma forma, da família para o mundo. Um dos paradoxos a ser enfrentado pelo processo educativo moderno, segundo Walzer (1999), está no fato de constituir-se de um dever dos governos dos Estados ensinar para as crianças, sem discriminá-las quanto ao grupo social ou étnico, os seus valores, regras, padrões morais e filosóficos. Enfim, o valor de seus próprios arranjos constitucionais e as virtudes de seus fundadores/governantes/heróis e líderes. Uma pergunta inevitável que se faz é: Este ensino, que tem a participação/orientação do Estado, não irá interferir autoritariamente nas diferentes identidades culturais dos grupos ao qual pertencem estas crianças? Para Walzer (1999) a resposta para essa pergunta só pode ser uma: Vai, muito provavelmente, interferir. É justamente em função desta possibilidade de interferência que se torna fundamental, no espaço escolar, o exercício intransigente da tolerância com o/a outro/a na sua diversidade religiosa, étnica, política e, principalmente, nas necessidades particulares das pessoas como seres no mundo. Estamos nos referindo nesse último caso, aos cuidados educativos para com as pessoas que necessitam de atenções especiais. 3- (Re)aprendendo a escutar/ouvir/sentir... (...)“a educação se dá na biologia do amor, os valores, a espiritualidade, a justiça, etc., não precisam ser ensinados de maneira especial, pois são vividos a partir dali.” (Maturana, 2002, p.19). Acreditamos que a idéia acima apresentada por Maturana vem referendar nossa crença na pertinência e importância do exercício da tolerância no trabalho em educação em geral e, em particular, com pessoas que necessitam de atenções especiais. Assim como o amor, a justiça, a espiritualidade são valores e, como tal, não precisam ser ensinados, mas sim, vividos6, a tolerância, também, como um valor a ser construído, não carece de uma formulação especial para ser trabalhada em educação e muito menos em se tratando do trabalho educativo com pessoas portadoras de necessidades especiais. Neste ensaio, tratamos da discriminação, da indiferença e da intolerância. Referimo-nos, em sentido amplo, aos silenciamentos produzidos/impostos pelos grupos hegemônicos através de suas respectivas linguagens oficiais e padronizadoras. São padronizadoras na medida em que não deixam espaços para outras vozes que não aquelas da cultura dominante. Temos que entender que, por trás da voz que fala, existe um universo de linguagens possíveis, desde que para tanto não as desconsideremos e que estejamos dispostos a ouvi-las. Vai longe o tempo em que acreditávamos que nossa capacidade de pensar/sentir era algo determinado/controlado apenas pela razão. O pensador espanhol Miguel de Unamuno (1964, p.296) já alertava para os limites desta visão reducionista dizendo que Há pessoas, com efeito, que parecem não pensar mais que com o cérebro, ou com qualquer outro órgão que não seja específico para pensar, ainda que outros pensem com todo o corpo e com toda a alma, com a medula dos ossos, com o coração, com os pulmões, com o ventre, com a vida. As palavras de Unamuno, embora proferidas na metade do século passado, parecem-nos manter ainda uma grande pertinência e sabedoria. Desafia-nos a alargar nossos horizontes pedagógicos. Desafia- nos no sentido de ouvir a voz que fala assim como as outras vozes/silêncios que, por trás desta voz/silêncio, também falam. Convida-nos convida a fazer um exercício poético em educação, algo que busque identificar as múltiplas vozes que cada voz contém, reconhecendo, assim, as múltiplas linguagens/vozes de que cada pessoa é portadora. Alguma coisa semelhante ao que sugere Cabrera Infante (2000, p.475) ao dizer que por trás de uma voz sempre existem outros que também falam. Ilustra essa afirmação perguntando: De quem é a voz que fala? Ou A voz por trás da voz? Quem escreve? Quem fala em um poema? Quem narra em uma novela? Quem é este eu das autobiografias? Quem conta um conto? Quem são os que conversam nesta peça imaginada de apenas três paredes? Quem é este ventríloco oculto que fala neste momento pela minha boca? Essas vozes invisíveis, porque silenciadas, poderão deixar de sê-lo desde que nos disponhamos a ouvi-las/senti-las/valorizá-las. Defendemos que a escola é um dos territórios privilegiados para que essa escuta aconteça. Atualmente há consenso entre os(as) educadores(as) quanto a que esforços devem ser empreendidos no sentido de promover/incentivar a inclusão e a convivência, sem esconder nem ressaltar as diferenças, mas sim, acolhê-las como parte instituinte e instituidora de cada uma das pessoas. Este é um pressuposto básico para a promoção da inclusão, tarefa da qual a escola não pode tergiversar. De outra forma, é justamente a existência das diferenças que, como ensina Arendt (1997), permitem-nos dizer que cada ser humano é diferente do outro, é único em sua diversidade. Isto exigirá, também, uma postura/ação por parte da escola, que respeite essa característica. Uma educação que reconheça essa necessidade estaria contemplando a boniteza como uma das exigências propostas por Paulo Freire quanto à prática educativa. Boniteza essa que só poderá acontecer no respeito pleno à diferença, na humildade, na solidariedade e no respeito às diversidades de toda ordem. Enfim, na aceitação do outro como legítimo em seu ser/estar no mundo, desde que esse outro(a) tenha como orientação a paz, a justiça, a cooperação, o cuidado de si e para com todos os(as) outros(as). Referências Bibliográficas APPIAN. K. A. Cultura, comunidade e cidadania. In: SANTOS. T. (Org.) A crise dos paradigmas em ciências sociais e os desafios para o século XXI. Rio de Janeiro. Contraponto, 1999. ARENDT. H. A Condição Humana. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 1997. CABRERA INFANTE, G. Infantería – Obras Completas. México. Fondo de Cultura Económica, 1999. CALAME, P. Missão Possível – Pensar o futuro do planeta. Itajaí. Ed. UNIVALI, 2001. FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1997. GUATTARI, F. As três Ecologias. São Paulo. Papirus, 1991. HOLANDA, H. Pós-modernismo e política. RJ. Rocco, 1991. MATURANA, H; REZEPKA .S. N. Formação Humana e Capacitação. Rio de Janeiro. Vozes, 2002. ___________. A Árvore do conhecimento. Campinas. WORKSHOPSY, 1995. OLIVEIRA, Inês Barbosa de e SGARBI, Paulo (orgs.) Redes Culturais, diversidades e educação. Rio de Janeiro: DP&A,2002. PAZ, O . Obras Completas V. II. México. Fondo de Cultura Econômica, 1994. 13v. REIGOTA, M. Ecologia, elites e intelligentsia na América Latina: um estudo de suas representações sociais. São Paulo. Annablume, 1999. REIGOTA, M.. São Paulo. Perspectiva, 1997. SANTOS, B. S. A crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência, v. 1. São Paulo. Cortez, 2000. UNAMUNO. M. Antologia. México. Fondo de Cultura Económica, 1964. WALZER, Michael. Da Tolerância. trad. Almiro Pisetta. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Notas 1 Neste texto, optamos pela expressão “pessoas que necessitam de atenções especiais” em substituição a “pessoas portadoras de necessidades educativas especiais”, pois, no contexto desse artigo, nos parece mais adequada. 2 Tolerância será tomada no sentido dado por Walzer (1999). Para esse autor, a tolerância é condição necessária, indispensável, para a coexistência pacífica de grupos de pessoas com histórias, culturas, e identidades diferentes, que é o que a tolerância possibilita. 3 A expressão “Capitalística”, por nós aqui usada, é no sentido em que o usa Guattari (1991), quando diz não ter havido diferença significante quanto à forma como o mundo capitalista e/ou comunista relacionaram-se com os diferentes. 4 A idéia de pós-modernidade por nós referida está em acordo com Holanda (1991) quando essa autora afirma ser esta uma contraprática não só da cultura oficial do modernismo, mas também da “falsa normatividade de um pós-modernismo reacionário. Referenciamo-nos, também. em Boaventura Santos (2000) quando esse argumenta que vivemos um momento de pós-modernidade inquietante e de resistência aos valores da modernidade conservadora. Também nos apoiamos em Reigota (1999) quando esse afirma que, via de regra, o termo pós-moderno foi/é rápida e apressadamente associado às elites conservadoras e ao ideário neo-liberal. Contudo, para esse autor, e com o que concordamos, essa resistência é fruto de uma série de equívocos, entre os quais o mais comum é a associação pura e simples da pós-modernidade à passagem do modelo industrial ao pós-industrial.. 5 Vale lembrar que um dos pressupostos em que está assentada a idéia de Modernidade e do Estado Moderno é o direito à educação pública para todas as pessoas. 6 Para Maturana (2002) não devemos ensinar valores para as crianças. É preciso vivê-los a partir da biologia do amor. Não devemos ensinar cooperação, é preciso vivê-la desde o respeito por si mesmo, que surge no conviver no respeito mútuo. Cadernos :: edição: 2003 - N° 22 > Índice > Resumo > Artigo