COMPROMISSO POLÍTICO E COMPETÊNCIA TÉCNICA: 20 ANOS DEPOIS PAOLO NOSELLA RESUMO: Este artigo faz uma releitura do debate ocorrido na década de 1980 a respeito da relação entre o compromisso político e a competência técnica do educador. Pontua que as idéias mais emancipadas (como as propaladas pelos textos de Antônio Gramsci) fizeram com que o pensamento pedagógico assumisse no Brasil sua dimensão de engajamento político, contribuindo, inclusive, para as vitórias eleitorais do Partido dos Trabalhadores. Entretanto, se naquela época certo "modismo gramsciniano" foi referência e sinônimo de idéias mais emancipadas e arejadas, hoje, diante da realidade política, complexa e multifacetada, torna-se necessário aprofundar a leitura dos textos desse autor. Uma difusa ideologia de "esquerda" não é mais referência suficiente para o engajamento político. Por isso, o artigo busca compreender a nova forma de compromisso político que o educador e o intelectual em geral precisam praticar, dizendo, por exemplo, que é preciso resgatar o valor da dúvida como método; compreender o processo de amadurecimento da cultura democrática; voltar a refletir sobre o próprio conceito de política "desinteressada" e reafirmar que todo ato pedagógico em si já possui uma implícita dimensão ético-política, questionando, assim, a vinculação burocrática com os partidos. Palavras-chave: Memória e educação. Política e educação. Competência técnica e compromisso político. Conjuntura atual. Relembrando os anos oitenta Se a história é um garimpo, a memória é a bateia que revolve o cascalho do passado e busca dados preciosos para continuar nossa luta. Vinte anos atas, em 1983, fervia entre os educadores o debate sobre o compromisso político e a competência técnica. Polemizava-se contra a dicotomia entre o educador-político e o educador-técnico. A conjuntura política foi a oportunidade para a explosão daquele debate: os governos militares, que estavam sendo forçados a passar o poder aos civis, haviam enfatizado a dimensão tecnológica, as competências específicas e a prática do ensino como treinamento; ao contrário, a emergente democracia destacava o sentido e a necessidade do engajamento político da prática científico-pedagógica. Em outras palavras: na década de 1980, de um lado estavam os defensores da neutralidade técnica do fazer pedagógico, do lado oposto entrincheiravam-se os defensores de um compromisso político inerente a quaisquer atividades pedagógicas. O debate acentuou-se por ocasião da publicação do livro da professora (e minha colega) Guiomar Namo de Mello (Magistério de 1º grau - da competência técnica ao compromisso político, São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1982). "Vejo [escrevera Guiomar] na capacitação profissional o ponto crítico a partir do qual imprimir um caráter político à prática docente" (idem, ibid., p. 146). No mês de maio do ano seguinte (1983), a revista Educação & Sociedade, n. 14, publicava um pequeno artigo de minha autoria: "Compromisso político como horizonte da competência técnica", no qual tecia algumas críticas à tese de Guiomar que operava, dizia eu, uma justaposição entre o ato técnico da prática pedagógica e seu engajamento político, considerando-os dois momentos seqüenciais e, portanto, separados: "A competência técnica não é uma categoria em si, universal, acima dos Interesses de classe, mas, pelo contrário, competência e/ou incompetência são qualificações atribuídas no interior de uma visão de cultura historicamente determinada, pois existe o competente e o Incompetente para certa concepção de cultura, como existe o competente e o incompetente para uma nova concepção de cultura" (Nosella, Ibid, p. 92). Distinguia eu, portanto, duas concepções fundamentais de cultura: a enciclopédica (burguesa) e a histórica (proletária), frisando que, tanto no âmbito da primeira quanto no âmbito da segunda, registram se ilustres competências pedagógicas. Por isso, não poderia existir, por exemplo, uma técnica de alfabetização, universal, neutra e prévia à opção política do alfabetizador. Esse debate, como disse, alastrou-se entre os educadores dos anos de 1980 praticamente no Brasil inteiro. Hoje, reconheço que o nefasto taticismo político-partidário insuflava a polêmica que acabou gerando "uma imagem equivocada nos leitores [escreveu então o professor Dermeval Saviani] pois criou a idéia de que o autor da crítica (Nosella) desautorizava o autor criticado (Guiomar), colocando-se em campos opostos e definindo-se adversários renitentes" (Saviani, 1983, p. 112). Com efeito, jamais desautorizei a colega e exímia educadora Guiomar Namo de Mello, Saviani percebera, com inigualável perspicácia, que à base da polêmica existia o equívoco do "vínculo entre neutralidade e objetividade" (idem, ibid,. p. 137). O que fazer? Todo mundo sabe que os anos de 1980 foram marcados por muito romantismo político e por uma notável indulgência ao taticismo. Mas a história não flui em linha reta, feliz ou infelizmente. Saldo daquele debate Aquele romantismo político trouxe, felizmente, um inegável saldo positivo para o país e, especificamente, para o campo da educação. Teoricamente, o debate dos educadores encontrou nos escritos de Antonio Gramsci um grande alento. Presenciamos a uma verdadeira "gramscimania", isto é, a uma excepcional difusão dos escritos desse intelectual marxista italiano. Calcula-se que mais de 40% das dissertações e teses de pós-graduação em educação, produzidas na década, citavam Gramsci como principal referência teórica. Suas frases eram citadas, em epígrafe, nos projetos ou nas propostas de política educacional de várias secretarias de Educação, estaduais e municipais. O nome de Gramsci era citado com grande freqüência nos congressos e nas reuniões das várias associações científicas e sindicais dos educadores. A literatura sobre ele e dele era sempre bem-vinda e até mesmo bem vendida. O primeiro saldo positivo decorrente dessa onda de estudos marxistas, sobretudo da visão gramsciana, foi o abandono por parte dos educadores do velho marxismo ortodoxo stalinista e a adoção sistemática da crítica ao tradicional didatismo técnico. Privilegiou-se a visão teórica que explica o fenômeno escolar pela sua relação com a sociedade, com a economia e com a política. O discurso repleto de citações gramscianas era, para os educadores de duas décadas passadas, elemento de distinção cultural que os prestigiava com relação aos tradicionais pedagogos didatistas. Gramsci e também Paulo Freire tornaram-se bandeiras de orgulho e estímulo para a organização político-sindical dos pedagogos. Observe-se, também, que durante esses anos de transição do autoritarismo militar para a democracia ganhou relevância o termo "educador", sobrepondo-se ao de "professor", justamente porque "educador" semanticamente explicitava a necessidade do engajamento ético-político dos professores. Com efeito, o conceito de educador transcende o de professor. Este se refere às competências específicas adquiridas por uma pessoa, que as transmite a outras, ensinando-as e treinando-as. Aquele se refere à responsabilidade na formação integral do cidadão, à cumplicidade radical entre educando e educador. O professor que não assume plenamente a função de educador e se exime de sua responsabilidade de ensinar a leitura do mundo, para restringir-se à leitura das palavras - utilizando expressões freireanas -, era considerado um técnico asséptico, reducionista, que reeditava na prática pedagógica a velha tese da neutralidade científica. Enfim: durante os anos de 1980, o pensamento pedagógico modernizou-se, arejou-se ao assumir sua dimensão de engajamento político. Novos conceitos e novas perspectivas teórico-práticas enriqueceram os debates no campo da educação, em que com muita freqüência se utilizavam termos e conceitos até então desconhecidos, como: sociedade civil e política - hegemonia - ideologia e contra-ideologia - intelectuais orgânicos e tradicionais - a educação como ato político-partidário - educação e cidadania etc. Mais ainda: politicamente, a maioria dos educadores dos anos de 1980, sabedora de que a escola não se explica por ela própria e sim pela relação política que ela mantém com a sociedade, lutou para colocar na administração educacional partidos e homens compromissados com os objetivos da escola popular e libertadora. Até mesmo redutos tradicionalmente mais fechados, como os dos especialistas da educação (orientadores educacionais, administradores ou gestores, supervisores, diretores etc.), foram influenciados pela idéia de o ato pedagógico ser ao mesmo tempo um ato de compromisso político. Nos congressos da área (nacionais, estaduais, regionais e municipais), os especialistas da educação afirmavam que a relação pedagógicocientífica era fundamentalmente uma relação de hegemonia política. Assim, instigavam professores a buscarem uma forma de relação profissional que fosse ao mesmo tempo uma nova relação hegemônico-política, isto é, a hegemonia da classe trabalhadora. Como vimos, esse movimento político dos educadores, ao longo deste últimos 20 anos, engrossou o movimento político nacional que desaguou nas vitórias eleitorais do Partido dos Trabalhadores, nos estados, nos municípios, e hoje, na federação. E hoje, qual compromisso político? Se na década de 1980 os educadores afirmaram que toda competência técnico-pedagógica era ao mesmo tempo um ato político (Damasceno et al., 1988), duas décadas depois, isto é, no complexo quadro po