Colonização e conflitos no Sul do Brasil: Estudos sobre os Campos de Palmas. Livro: História Agrária Propriedade e Conflito: professor: Wilson Disciplina: História do Paraná Colonização e conflitos no Sul do Brasil: Estudos sobre os Campos de Palmas. Paulo Pinheiro Machado Pág 280 Em branco Pág 281 uma região rica No ano de 1886, quando Alfredo d'Escragnolle Taunay, Presidente da Província do Paraná, empreendeu uma viagem de reconhecimento de mais de 150 léguas em direção ao oeste da região sob sua administração, resolveu descrever a beleza da paisagem que vislumbrava ao longo do rio Iguaçu, no Cruzeiro, embarcação subvencionada pelo governo, de 18 cavalos-vapor, que portava a bandeira nacional: Uma coisa, de certo, ser-nos-á de todo o ponto impossível: transmitir ao leitor as múltiplas impressões, que nos salteavam o espírito, quando aos nossos olhos maravilhados se desdobravam as formosas perspectivas do Iguaçu, tão varias, tão extraordinárias, umas risonhas e amenas, outras grandiosas e solenes, já no seguimento de sua simples corrente, já quando se junta a outros grandes rios, como o Negrinho, o Negro, Potinga, o Timbó, tomando então largura de mais de 600 braças, e espelhando em sua serena superfície o azul dos céus, e a frondosa vegetação de suas margens. Para tanto é insuficiente a pena. Só o pincel de inspirado artista, que nos arroubos da arte, e na posse entusiástica do belo, consiga fixar em preciosa tela as seduções e esplendores da grande obra da Criação, que aqui no Brasil, mais que em outra qualquer parte do globo, se ostentam inexcedíveis, até a qualquer reprodução ideal, por mais esforços que faça o pintor para representar os primores de tão extraordinária natureza1. Não eram fatos muito corriqueiros viagens de Presidentes de Província ao interior, principalmente para regiões mais distantes do povoamento. Alfredo Taunay dirigiu-se à Vila de Porto União da Vitória, depois rumou mais um pouco a oeste, na direção da Vila de Palmas, agora em território litigioso, que o Império do Brasil disputava com a República Argentina. Tratava-se de uma Pág 282 extensa faixa de terra entre os rios Uruguai e Iguaçu, limitada a oeste pêlos rios Santo António e Peperi-Guaçu e, a leste, pêlos rios Chapecó e Jangada, totalizando uma área de aproximadamente 40.000 km2. A região era, segundo o Presidente Taunay, muito pouco povoada, porém rica em madeiras, ervais de ilex, pastagens e terras férteis. Seus habitantes nativos - os grupos indígenas guaranis, coroados e botocudos — ainda eram ocupantes de partes majoritárias deste território. Alfredo era filho do pintor e professor da Academia Imperial de Belas Artes Felix Taunay, daí sua natural dúvida em representar uma paisagem pela pena ou pela prosa, sua admiração era com o curso médio do rio Iguaçu, já que a expedição não alcançou as cataratas de Foz do Iguaçu. A disputa pela região remetia a diferentes interpretações de antigos tratados de limites, assinados pelas Coroas de Espanha e Portugal no século XVIII. Havia um consenso sobre a demarcação da linha divisória, nesta região, entre os territórios espanhóis e portugueses, ser formada pêlos rios Pereri-Guaçu e Santo António, porém os representantes de Buenos Aires consideravam que estes rios eram o que os brasileiros chamavam de Chapecó e Jangada2. Desta maneira, para a República Argentina, que se consolidava, na década de 1870, como um Estado Nacional após décadas de instabilidade desde a dissolução do Vice-Reinado do Prata, este território almejado pelo Império era apenas uma extensão de sua Província de Missiones. Durante o século XIX, houve uma sucessão de disputas em torno desta região, o que envolveu, inclusive o domínio paraguaio sobre a região de Missiones entre 1838 e 1865. Com o encerramento da Guerra da Tríplice Aliança, (1965-70) uma nova partilha das fronteiras da região, favorável aos países vencedores, reacendeu a disputa pela demarcação das fronteiras do Território de Missiones. Além da consolidação do poder dos Estados Nacionais, há um claro processo de expansão das fronteiras e frentes de ocupação, estimuladas pelo crescimento Pág 283 da pecuária, da exploração de madeiras e da colonização com imigrantes europeus. É evidente que estas relações internacionais devem ser analisadas num contexto mais amplo, de disputas hegemônicas regionais e continentais, onde estavam em jogo além da demarcação de fronteiras, a livre navegação nos rios do Prata, os interesses de comerciantes e proprietários brasileiros nos países vizinhos3. De qualquer maneira, desde os primeiros séculos de colonização portuguesa, a busca da ocupação real, a partir da posse útil por fazendeiros e demais particulares, sempre foi a estratégia mais eficaz de aumento da ocupação territorial do Brasil. O INÍCIO DA OCUPAÇÃO BRASILEIRA Para os brasileiros, a região em litígio, denominada "Campos de Palmas" ou "Sertão de Palmas", teve um início de ocupação de sua região mais oriental com a fundação da Vila de Palmas, por habitantes provenientes de Guarapuava e União da Vitória, em 1839. A região foi, aos poucos, se convertendo em novo traçado para o antigo caminho das tropas que ligava o planalto rio-grandense a Sorocaba, na Província de São Paulo. O uso do passo de Goio-En, no alto-Uruguai, viabilizou o novo traçado que reduzia em mais de 60 léguas o percurso antes praticado pêlos condutores de muares. Ao longo do novo caminho das tropas formaram-se fazendas de criação de gado vacum, seguindo um padrão de apropriação de solos, emprego de trabalhadores agregados e escravos em fazendas extensas que só algumas décadas adiante foram legitimadas4. Os Campos de Palmas foram ocupados por fazendeiros que formaram duas expedições a partir de Guarapuava. A primeira expedição constituiu-se como uma sociedade organizada por José Ferreira dos Santos, com 25 proprietários, que se comprometiam a ocupar suas terras com gado no primeiro ano. A segunda Pág 284 expedição de colonização, formada por 7 proprietários, destinou-se para a parte mais ao sul dos Campos de Palmas3. É importante registrar que a ocupação da região não foi apenas promovida por particulares. É possível identificar uma clara política oficial de estímulo, sustentação e direção da colonização. Uma das primeiras atividades foi a atração de lideranças indígenas coroadas, tradicionais aliados dos portugueses e brasileiros e adversários de guaranis, botocudos e espanhóis. Assim procedeu o Governo da Província de São Paulo, que, além de atrair os grupos coroados de Vitorino Conda e Viri, enviou a Vila de Palmas um pequeno destacamento do Corpo de Guardas de São Paulo, sob comando do Capitão Hermôgenes Carneiro Lobo Ferreira. Os coroados, no grupo de uma centena que seguia a liderança de Vitorino Conda, foram aldeados em um grande galpão próximo à Vila de Palmas, mas passaram a exigir compensações em terras e em recursos por seus serviços aos colonizadores. O governo recomendava que os colonizadores os tratassem com apoio e brandura: A numerosa tribo, que hoje está estabelecida no Campo de Palmas poderá servir de núcleo para um estabelecimento de maior escala, por isso o governo não tem cessado de recomendar que seja tratado com todo o afago e brandura, autorizando mesmo algumas despesas com o fornecimento de roupas, instrumentos de lavoura e outros objetos que os indígenas têm desejado, com estas vistas propus ao orçamento a consignação de l conto de réis6. A Província do Paraná, criada a partir de sua separação de São Paulo em 1853, passou a estimular o aldeamento e formação de toldos de coroados, com o pagamento de valores orçados pela Província a lideranças como os caciques Conda e Viri, de forma semelhante ao procedimento do governo provincial rio-granden-se em relação aos caciques Marau, Doble e Nonoai, coroados do planalto norte daquela Província. Como era ainda muito pequeno o número de colonizadores, a aliança local com estes indígenas foi Pág 285 fundamental para a exploração do local e para a segurança dos pioneiros. Os coroados, atualmente denominados kaingangues, são um povo do grupo linguístico Ge, tradicionais adversários dos guaranis e dos botocudos (atualmente chamados xoklengues) das matas. Os homens liderados por Conda e Viri já eram falantes de português, pediam auxílio em dinheiro e armas e, apesar de não desenvolverem uma relação harmónica com os colonizadores, foram decisivos para o sucesso da colonização pelo combate que davam aos outros grupos indígenas. O aldeamento de indígenas foi peça chave para a manutenção da operacionalidade do Estado Imperial em região envolvida em muitas disputas macrorregionais. No entanto, como o povoado de Palmas situava-se na região extremamente oriental da região litigiosa e entendendo como preocupante a presença paraguaia em Missiones, o Império decretou, em 1859, a criação de duas colônias militares, Chopim e Chapecó7. A situação no Prata era de muita instabilidade. A Província de Buenos Aires estava em conflito com a Confederação de Províncias do Litoral. O governo paraguaio criava dificuldades à navegação brasileira no rio Paraguai e condicionava a assinatura de um acordo de livre navegação a uma interpretação favorável aos pleitos de Assunção quanto aos limites deste estado com a Província do Mato Grosso. Para os paraguaios, o rio Branco seria o limite (decidido pelas Coroas ibéricas pelo Tratado de Santo II-defonso, em 1777) e para os brasileiros o rio Apa era defendido como a divisa (conforme a definição do Tratado de Badajoz, de 1801, que anulou o de Santo Ildefonso). No final da década de 1850, a tensão era crescente pelo fato do Brasil criar duas colônias Militares no território litigioso, Miranda e Dourados8. A formação de colônias militares foi uma estratégia de ocupação do território em regiões distantes, desinteressantes para as companhias de colonização particulares Pág 286 e inacessíveis à estrutura normal da rede de colônias ligadas ao Ministério da Agricultura. Desta forma, o Estado se fazia presente nos lugares mais ermos e, frequentemente, nas regiões em litígio com países vizinhos. Após a Guerra da Tríplice Aliança, a República Argentina recupera a administração sobre a região de Misiones. Este território foi reincorporado à Província de Comentes e um longo processo de negociação com o Império passou a ser intensificado pela definição e demarcação conclusiva das divisas dos dois estados. Um fato novo marcante ocorre em dezembro de 1881, quando o Presidente Júlio Roca decreta a criação do Território Nacional de Missiones, como região apartada da Província de Comentes e diretamente subordinada ao governo central de Buenos Aires. O Território foi dividido em 5 departamentos, sendo que um era a própria região em litígio. O governo do Rio de Janeiro passa a preocupar-se quando fica sabendo que o governador nomeado para administrar o Território é o Coronel Rudecindo Roca, irmão do Presidente da República. Mas, como a autoridade Argentina só se faz mais presente nas regiões próximas à cidade de Posadas, o governo brasileiro apenas fica atento para que não haja autoridade nomeada para o departamento litigioso9. A ocupação por colônias militares Desta forma, durante o ano de 1882, o governo do Império coloca em prática a criação das duas colônias militares previstas pelo Decreto de 1859. O Capitão José Bernardino Bormann é enviado com um grupo de praças para a formação da colônia Militar de Chapecó e o Capitão António Santiago Dantas segue na mesma época para reconhecimento do Iguaçu e formação da colônia Militar de Chopim. Eram dois veteranos da Guerra do Paraguai. Pág 287 Bormann afirma, em relatório ao Ministério da Guerra, que a colônia foi instalada em março àe 1882, e em um ano já contava com 200 habitantes (sem contar o pessoal militar), 58 casas e uma Igreja em construção. Bormann também informa que a região não era completamente vazia de colonizadores. Talvez pelo fato de ser, há décadas, parte do novo caminho das tropas, contou com a participação de habitantes que já viviam na região: Tendo o chefe da comissão [ Capitão Bormann ] encontrado no sertão, entre Chapecó e o Goio En (Alto Uruguai), alguns indivíduos com família ocupando indevidamente terrenos nacionais, convidou-os a aceitar lotes de terras na colônia, e deste modo cerca de 40 foram ali estabelecer-se, sem dispêndio algum aos cofres públicos, pois que já dispunham de recursos próprios10. Pelo relato, é possível que estas famílias fossem de cabo-los, brasileiros mestiços que viviam do produto de lavouras de subsistência e não possuíam qualquer título, mesmo que provisório, de legitimação de domínio sobre as terras, ocupando "indevidamente" terras públicas. O Coronel Santiago Dantas, na Colônia Militar de Chopim, também fez referências à população pré-existente, mas salientava a resistência dos mesmos em dirigirem-se à nova colônia. Segundo o Relatório do Ministro da Guerra, o Capitão "nutre a esperança de chamar para aquele núcleo diversas famílias dos arredores, que ainda se conservam afastadas por mal entendida desconfiança". E provável que estas famílias moradoras na região não desejassem abandonar suas terras já ocupadas, com benfeitorias edificadas, para submeterem-se à autoridade de militares. E provável que muitos dos moradores deste sertão de Palmas fossem fugitivos do recrutamento militar, verdadeiro pesadelo para as famílias pobres do meio rural. Mas o Capitão Santiago Dantas registra que o núcleo de Chopim crescia quando a maioria dos soldados que davam baixa do serviço decidiam instalar-se como colonos. Já existiam 42 famílias de colonos instalados em Chopim em 188311. Pág 288 Pelas instruções do Ministério da Guerra, as colônias Militares deveriam demarcar lotes rurais de 160 mil braças quadradas para o assentamento de cada família de colonos, com pequena casa provisória de madeira. Estes agricultores teriam também direito a ocupar um lote urbano com 500 braças quadradas12. Caberia ao comandante militar e seu respectivo destacamento os trabalhos de demarcação de lotes, a nomeação de Juizes Comissários que procederiam ao registro e legitimação das propriedades, segundo a Lei n. 601 de 1850 e seu Regulamento de 1854. Além disso, era responsabilidade do comandante militar a construção de prédios públicos como Igrejas, Escolas, galpões para equipamento e implementos agrícolas, quartéis e cemitérios13. O comandante também tinha poderes para assentar colonos ao longo das estradas de ligação, o que poderia facilitar na manutenção destes caminhos, que na prática eram frequentemente estreitas picadas que só podiam ser transpostas por indivíduos a pé ou por cargueiros de muares, raramente por carroças ou carruagens. Por muitas décadas, as queixas quanto ao estado lamentável das estradas foram recorrentes, os comandantes apontavam nas deficiências viárias os principais obstáculos para o sucesso de suas colônias. As colônias Militares de Chapecó e Chopim encontravam-se em linha de comunicação com a colônia Militar do Alto Uruguai, fundada em 1879, no noroeste da Província do Rio Grande do Sul, que em 1883 já contava com uma população de aproximadamente 600 habitantes. Desde cedo, mesclados à população nacional (não temos certeza se de caboclos ou de descendentes de imigrantes) há a presença de imigrantes europeus, principalmente alemães, italianos, poloneses e rutenos nas colônias militares. Na colônia de Chopim existiam, em 1886, 122 brasileiros e 197 estrangeiros14. Na colônia Militar do Alto Uruguai a proporção de estrangeiros era bem menor, 23 imigrantes para 559 nacionais, em 1883. Pág 289 Além da fixação de colonos, as colônias Militares poderiam ser um ponto de apoio a operações militares na região. Em 1887, na colônia Militar de Chapecó, que contava apenas com 241 habitantes (entre adultos e crianças) já estava sendo concluída a construção de um prédio para aquartelar 200 soldados. Além disso, um novo depósito para a acomodação de materiais da Comissão Brasileira de Demarcação de Limites já estava pronto15. Para evitar que a região em litígio ficasse sem o socorro das autoridades provinciais e gerais em caso de urgência, era prevista também a ampliação de linhas de telégrafo para a região de Palmas e para as colônias Militares. O Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas possuía um plano de expansão dos telégrafos de Guarapuava cata Palmas, de ÇaYmas pata Goio En, e deste até Cruz Alta e Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. Além de assistir esta região de fronteira, a ligação telegráfica do Rio Grande do Sul com o restante do Brasil pelo oeste seria uma alternativa de manutenção de contato frequente com esta Província meridional, devido às constantes quedas da linha já existente no litoral16. Para consolidar a presença de colonos brasileiros nesta região, o Ministério da Guerra decidiu nomear o Capitão Belarmino Augusto de Mendonça Lobo para a fundação da colônia Militar de Foz do Iguaçu, em 1888. As instruções ao Capitão Lobo, anexas ao Relatório do Ministro da Guerra definem tarefas precisas para sua missão. Além da fundação da colônia Militar na Foz do rio Iguaçu, o comandante contaria com um destacamento de 80 praças do Batalhão de Engenheiros, acrescidos dos soldados que já trabalhavam na regularização da estrada União — Palmas, mais 40 praças de cada um dos corpos da guarnição do Paraná incluindo ainda "as praças do contingente atualmente às ordens da Comissão de Reconhecimento e Exploração do Território Litigioso" para a construção de uma estrada de ligação entre o Paraná e a Província do Mato Grosso. Pág 290 A ligação destas províncias seria um caminho misto com o reconhecimento e construção de um trecho terrestre e o reconhecimento, mapeamento e balizamento de um trecho fluvial, ligando Palmas à colônia de Foz do Iguaçu e esta ao Distrito Militar de Miranda, no Mato Grosso17. Além de interiorizar a colonização, este caminho poderia ser uma alternativa mais ágil de comunicação do restante do país com a Província do Mato Grosso, diminuindo a dependência do acesso pelos rios Paraná e Paraguai, que periodicamente apresentavam problemas de livre navegação brasileira como consequência das tensões políticas no Prata. O CONTESTADO BRASILEIRO A solução da questão de limites das Missões só foi resolvida com a arbitragem do Presidente Cleveland, do Estados Unidos, em 1895, quando prevaleceu a tese brasileira de demarcação da divisa entre os países no rio Uruguai e nos rios Peperi-Guaçu e Santo Antônio. Entretanto, a maior parte dos Campos de Palmas continuava com uma população muito reduzida. Estima-se que não chegava a dez mil habitantes a população de todo o extenso município de Palmas no início da década de 1890. Resolvido o litígio internacional, permanecia a disputa interna entre os Estados de Santa Catarina e do Paraná pelo domínio de jurisdição da região. Os paranaenses se apresentavam como os herdeiros dos direitos da Província de São Paulo, que tinha tomado a iniciativa de iniciar a colonização da região. Os catarinenses argumentavam, baseados em diplomas portugueses do século XVIII, que seu território se limitava ao norte, com a Capitania de São Paulo, pelos rios Negro e Iguaçu, "até os espanhóis confinantes"18. A questão foi a julgamento no Supremo Tribunal Federal e um acordo provisório estabeleceu que o Paraná ficaria com a administração temporária desta região. Pág 291 Para a população dos Campos de Palmas, esta disputa não era algo superficial, tinha consequências muito graves sobre as vidas de seus habitantes. Com a República, a Constituição brasileira de 1891 passou a atribuição de legislar sobre terras e colonização do poder central aos estados membros. Isto representou, na época, o estabelecimento de novos prazos para legitimações de antigas posses, sesmarias do período colonial e validação de títulos emitidos pelo Império19. No Paraná, a presença de grandes proprietários que eram oficiais da Guarda Nacional e expoentes do poder local nas regiões de frente de expansão marcou, desde o início da República, uma forte política de expropriação de lavradores caboclos, chamados de "intrusos". Isto aconteceu com a presença ostensiva de bandos particulares armados sob o comando destes proprietários que registravam suas terras de regiões contestadas por Santa Catarina em cartórios de registros de títulos paranaenses e expulsavam os lavradores e moradores que não queriam submeter-se como seus peões e agregados20. Os agricultores nacionais pobres, cuja existência na região serviu de argumento à consolidação do domínio nacional, agora passavam a ser um obstáculo aos interesses dos grandes proprietários pela região. Esta prática de expropriação significou a principal ação do "coronelismo" em Palmas. Desta forma, a presença de Coronéis paranaenses, ou radicados no Paraná, nas regiões contestadas por Santa Catarina era particularmente forte na região de Rio Negro (com a atuação do Coronel Bley e dos membros da família Pacheco), no médio vale do Iguaçu (com a atuação do Coronel Fabrício Vieira a partir da fazenda Chapéu do Céu), na confluência do rio Timbó com o Iguaçu (com a atuação do Coronel Artur de Paula), na região de Palmas, com o domínio dos Coronéis Jucá Pimpão e Macedo Soares e na região de União da Vitória, com o domínio do Coronel Amazonas Marcondes, grande proprietário, comerciante e dono Pág 292 do vapor Cruzeiro, que premiou o Presidente Taunay com a viagem descrita no início deste texto21. O TERRITÓRIO DO MONGE Com a República, todo o sul do Brasil foi devastado pelo sanguinário conflito conhecido como Revolução Federalista (1893-1895). A luta entre os Republicanos "Pica-Paus", a nova liderança política, e os Federalistas, também denominados "ma-ragatos", em sua maioria herdeiros políticos do antigo partido liberal do Império, nacionalizou-se com a adesão da Marinha de Guerra à rebelião. No planalto meridional do Brasil combates muito intensos dizimaram rebanhos e levaram o luto a muitas vilas e pequenos povoados. As operações de guerra estenderam-se também pelos Campos de Palmas, que foram várias vezes cruzados por forças rebeldes e tropas legais em sua perseguição. O médico Angelo Dourado, que acompanhava a coluna rebelde de Gumercindo Saraiva, registra que havia uma simpatia popular pela causa federalista representada pela atuação do monge João Maria no apoio aos federalistas feridos em combate, e afirmava que toda região a oeste do rio do Peixe era "território do monge"22. A figura de João Maria não era nova na região. Consta que desde a década de 1840, ao longo do antigo caminho das tropas entre o Rio Grande e São Paulo, circulava um penitente leigo chamado João Maria que profetizava sobre o futuro e recomendava que os sertanejos mantivessem uma vida de fé, honra e lealdade. Sua atividade foi ligada à localização de vertentes de água, logo batizadas pela população de águas do monge ou águas santas, que os sertanejos acreditavam (e ainda acreditam) possuir poderes terapêuticos especiais. Vários registros dão conta do estímulo à ocupação dos Campos de Palmas, ou seja, de toda a região Pág 293 entre os rios Iguaçu e Uruguai, pelo andarilho que, segundo consta, indicou este caminho de migração para vários federalistas rio-grandenses que não encontravam mais paz para viver em suas regiões de origem23. Para o povo do planalto, o andarilho é um santo, chamado São João Maria. A partir de meados da década de 1890, há uma crescente presença de famílias de lavradores e criadores provenientes do planalto e da região das missões sul-riograndenses. Em parte, além do aspecto de exílio político, os Campos de Palmas eram a fronteira contínua de expansão uma vez que os principais solos do norte e noroeste do Rio Grande do Sul estavam sendo apropriados por companhias de colonização para o estabelecimento de imigrantes europeus24. Na região de Irani, ao sul dos Campos de Palmas, podemos identificar a chegada das famílias dos Fabrícios das Neves, dos Fragosos, dos Telles, dos Kades e Antunes. Consta que se estabeleceram como posseiros numa região que havia sido adquirida pelo Frigorífico Irani, que esperava transformar estes posseiros em seus empregados para um gigantesco estabelecimento de pecuária e beneficiamento de carnes, que seria viabilizado economicamente com a proximidade da ferrovia São Paulo — Rio Grande, concluída em 1910. Em 1912, circulava pela região paranaense de Palmas e de Campos Novos, em Santa Catarina, um novo monge, que se apresentava como curandeiro, chamado José Maria. Após curar a esposa de um fazendeiro de Campos Novos dos ataques de epilepsia, a notoriedade do novo monge cresce por toda a região. No município de Curitibanos, José Maria foi convidado a comparecer na tradicional festa de Taquaruçu, em agosto de 1912. Terminada a festa, o acampamento em torno do monge não se desfez, continuou crescendo com a afluência de grande número de doentes e pessoas que buscavam seus auxílios. Por desconfiar que o ajuntamento em torno do monge poderia ser explorado por seus adversários políticos locais, o Coronel Pág 294 Albuquerque, Superintendente Municipal de Curitibanos, pediu auxílio à força da Polícia estadual para desbaratar o que considerava um bando de "fanáticos monarquistas de Taquaruçu". Com a chegada da volante policial, José Maria evita o confronto e, junto a um grupo de 40 homens, segue para o oeste, para a região de Irani, nos Campos de Palmas, onde seria recebido por amigos e poderia continuar com suas curas. Nesta época, a questão de limites entre Paraná e Santa Catarina era crítica. Os catarinenses conseguiram uma sentença favorável no Supremo Tribunal Federal em 1904. O governo do Paraná recorreu, mas nova sentença em 1909, confirmou a vitória de Santa Catarina. Novos embargos jurídicos foram colocados pelo Paraná e uma terceira sentença, em 1910, concede ganho de causa definitivo aos catarinenses. Como o Paraná não aceitava perder os territórios, alegou que não existia qualquer lei federal de execução de sentença de limites entre estados e passou a colocar toda a sua força política para inviabilizar qualquer tentativa de execução de sentença. Com a chegada do grupo de José Maria ao Irani, portanto dentro dos Campos de Palmas, região contestada sob administração paranaense, a imprensa e o governo de Curitiba passaram a imaginar que a migração do grupo do monge se tratava de uma invasão catarinense em território paranaense. Tratando-os de "fanáticos", a imprensa de Curitiba passa a divulgar que tudo não passava de uma trama urdida por autoridades catarinenses, desejosas de criar tumultos e conflitos nos Campos de Palmas, o que viabilizaria a intervenção de uma força federal e, desta forma, estariam dadas as condições concretas para a execução da sentença em favor dos catarinenses. Desta forma, em Curitiba montou-se uma rápida operação de guerra, com forte unidade do Regimento de Segurança do Estado, para destruir o agrupamento de sertanejos em torno do monge e, se possível, promover desfile com os prisioneiros com Pág 295 os pescoços amarrados a cordas. Em 22 de outubro de 1912, a força paranaense chocou-se com o grupo armado de José Maria no Banhado Grande do Irani. Morreram vários caboclos, mas a força policial foi destroçada, sendo seu comandante, Coronel João Gualberto Gomes de Sá, morto com vários golpes de facão. Segundo Silveira Júnior25, o conflito entre os posseiros rio-grandenses e catarinenses contra o Frigorífico Irani está na origem da participação de centenas de sertanejos ao lado do monge José Maria no combate do Banhado do Irani, em outubro de 1912. Analisando o inquérito policial aberto após o combate, podemos identificar que a maioria dos sertanejos arrolados como réus por participarem do combate ao lado de José Maria eram habitantes da região de Irani (que na época compreendia todo o território dos atuais municípios de Itá, Seara, Concórdia e Irani) provenientes do Rio Grande do Sul nos últimos anos do século XIX e, em grande número, veteranos federalistas. Estas afirmações são sustentadas pelas declarações dos depoentes no inquérito policial aberto pelo Delegado de Polícia de Palmas26. O Banhado Grande ficava próximo ao Faxinai dos Fabrícios (folha 12), onde localizava-se as casas de Thomaz Fabrício das Neves, Miguel Fabrício das Neves e José Fabrício das Neves, rio-grandenses e federalistas que participaram do combate do Irani. A três léguas de distância, na região de Jacutinga, era morador o senhor Emiliano Martins Moreira (folha 40), rio-grandense, 48 anos, viúvo. José Felisberto Perón, abrasileirado para Perão, era outro morador que havia lutado junto ao monge para derrotar a polícia paranaense, usava fita branca amarrada ao chapéu (considerada como um símbolo federalista, entre os catarinenses). João Antônio da Rosa (folha 43), rio-grandense, 31 anos, genro de Miguel Fabrício das Neves e rio-grandense. Ou seja, acredita-se que a maioria dos 200 homens disponíveis a lutar pelo monge em Irani eram de origem rio-grandense. Pág 296 O grupo de povoadores rio-grandenses não era socialmente homogêneo. Pelo perfil dos depoentes no processo há um grupo de grandes fazendeiros, que eram criadores, seus agregados, peões e camaradas. Há alguns pequenos comerciantes, donos de alambiques e, entre os depoentes no processo, muitos declararam saber ler e escrever. E possível que o conflito do Irani fosse um choque de uma frente de expansão tradicional, com interesses de uma empresa capitalista. O combate do Irani foi apenas o início de uma longa guerra, onde, entre outras razões, a luta pela terra estava presente desde o início e o choque entre os interesses do Estado paranaense e os sertanejos que acompanhavam José Maria. Muitas disputas ainda aconteceriam nos Campos de Palmas. Pág 297