DISCIPLINA: ÉTICA PROFESSORA: WANESSA RIOS, Terezinha Azeredo. Ética e Competência. 5ª ed. São Paulo: Cortez, 1997. p. 45-67. CAPITULO 3 As dimensões da competência do educador A gente quer inteiro e não pela metade. (Antunes/Fromer/Britto) A bondade desarmada, incauta, inexperiente e sem sagacidade nem sequer é bondade, é ingenuidade estulta e apenas provoca desastres. (Antonio Gramsci) o que significa ser educador na sociedade brasileira hoje? O que é necessário para desempenhar o papel de educador? O que, em última instância, compete ao educador, na construção de nossa sociedade? Os papéis sociais são definidos levando-se em consideração as instituições onde se desenvolve a prática dos sujeitos. O educador desenvolve sua prática no espaço da instituição que é a escola. Enquanto instituição social, é tarefa da escola a transmissão/criação sistematizada da cultura, entendida como o resultado da intervenção dos homens na realidade, transformando-a e transformando a si mesmos. Como já afirmamos, e vale repetir, a escola não é uma entidade abstrata. Ela tem características específicas e cumpre uma função determinada, na medida em que está presente e é constituinte de uma sociedade que se organiza de maneira peculiar, historicamente. Ela resulta do trabalho e das relações estabeleci das em seu interior, é o espaço da práxis de determinados sujeitos. E pode-se afirmar que o caráter contraditório da escola advém da contradição presente na prática desses sujeitos, que, ao transmitirem o saber, ao estabelecerem certas relações, mantêm e transformam esse saber, essas relações. No interior da instituição escolar, o educador exerce sua profissão. A idéia de profissão nos remete à de ofício, que guarda o sentido de dever, de obrigação. A idéia de exercício relaciona-se à idéia de atividade, de trabalho. O educador, enquanto profissional, enquanto trabalhador numa determinada sociedade, tem de realizar sua "obrigação" de uma maneira específica. O que compete ao educador? Ao perguntar isso, devo estabelecer o que se entende por competência. COMPETÊNCIA = saber fazer bem Falar em competência significa falar em saber fazer bem. Apesar das diferenças entre as diversas concepções de educação e de escola presentes entre nós, elas sem dúvida concordam em definir desse modo a competência. Entretanto, é preciso atenção (o alerta da crítica!) ao explicitar o que se quer dizer quando se faz essa afirmação, uma vez que é essa a tônica do discurso da maior parte dos educadores. Minha definição de saber fazer bem como sinônimo de competência, em princípio, aproxima-se da posição dos educadores que apresentam esse saber fazer bem numa dupla dimensão: técnica e política. Mello (1982, pp. 43-4) afirma: Por competência profissional estou entendendo várias características que é importante indicar. Em primeiro lugar, o domínio adequado do saber escolar a ser transmitido, juntamente com a habilidade de organizar e transmitir esse saber, de modo a garantir que ele seja efetivamente apropriado pelo aluno. Em segundo lugar, uma visão relativamente integrada e articulada dos aspectos relevantes mais imediatos de sua própria prática, ou seja, um entendimento das múltiplas relações entre os vários aspectos da escola, desde a organização dos períodos de aula, passando por critérios de matrícula e agrupamentos de classe, até o currículo e os métodos de ensino. Em terceiro, uma compreensão das relações entre o preparo técnico que recebeu, a organização da escola e os resultados de sua ação. Em quarto lugar, uma compreensão mais ampla das relações entre a escola e a sociedade, que passaria necessariamente pelas questões de suas condições de trabalho e de remuneração. (...) O sentido político da prática docente, que eu valorizo, se realiza pela mediação da competência técnica e constitui condição necessária, embora não suficiente, para a plena realização desse mesmo sentido político, da prática docente para o professor. Abuso da citação, porque ela ajuda a esclarecer a dupla dimensão da competência do professor, do educador, mas quero ainda destacar alguns aspectos da definição que procuro explicitar. Afirmo que o saber fazer bem tem uma dimensão técnica, a do saber e do saber fazer, isto é, do domínio dos conteúdos de que o sujeito necessita para desempenhar o seu papel, aquilo que se requer dele socialmente, articulado com o domínio das técnicas, das estratégias que permitam que ele, digamos, "dê conta de seu recado", em seu trabalho. Mas é preciso saber bem, saber fazer bem, e o que me parece nuclear nesta expressão é esse pequeno termo - "bem" - porque ele indicará tanto a dimensão técnica - "eu sei bem geografia", portanto tenho um conhecimento que me permite identificar istmos .e penínsulas, distinguir planaltos de planícies, ou "eu sei fazer bem tricô", isto é, domino bem certos recursos, consigo manejar as agulhas e executar certas receitas etc. - quanto uma dimensão política -: eu faço bem o meu trabalho de geógrafa ou meu trabalho de tricoteira, isto é, vou ao encontro daquilo que é desejável, que está estabelecido valorativamente com relação à minha atuação. Como vimos, o conceito de bem não deve ser entendido numa perspectiva metafísica; o que se entende por bem responde a necessidades historicamente definidas pelos homens de uma determinada sociedade. A idéia de bem parece-me significativa na definição da competência, porque ela aponta para um valor que não tem apenas um caráter moral. Ele não se desvincula dos aspectos técnicos nem dos aspectos políticos da atuação do educador. É nessa medida que se pode compreender, como veremos, a ética como mediação. Porque ela está presente na definição e na organização do saber que será veiculado na instituição escolar, e, ao mesmo tempo, na direção que será dada a esse saber na sociedade. Quero então centrar minha reflexão na dimensão ética da competência do educador. Por isso procurei apontar acima o lugar da ética na filosofia da educação. Penso que precisamos levar isso em consideração para evitar uma polêmica que tem freqüentemente se estabelecido entre educadores que até defendem posições semelhantes. A polêmica tem se manifestado ora acusando-se a competência técnica de tecnicista, ora acusando-se a competência política de um certo politicismo. Acredito que é preciso recuperar no próprio caráter dialético da prática educativa a articulação entre os dois pólos da competência, e me parece fértil esse caminho que passa pela ética, embora a preocupação com a questão dos valores que constituem a moral idade possa eventualmente nos conduzir ao risco de um certo romantismo, denunciado por Saviani, na esteira de Gramsci, romantismo que devemos recusar. Parafraseando Gramsci eu diria que nós estamos ainda na fase romântica da defesa do compromisso político em educação. Nessa fase os elementos da luta contra a concepção técnico-pedagógica restrita e supostamente apolítica se dilataram morbidamente por causa do contraste e da polêmica. É necessário passar à fase clássica, encontrando nos fins a atingir a fonte para a elaboração das formas adequadas de realizá-los. Ora, a identificação dos fins implica imediatamente competência política e mediatamente competência técnica; a elaboração dos métodos para atingi-los implica, por sua vez, imediatamente competência técnica e mediatamente competência política. Logo, sem competência técnico-política não é possível sair da fase romântica. (Saviani, 1983b, p. 142) O romantismo, que acaba acontecendo no interior da escola, na divulgação do saber escolar, no ensino e na prática dos educadores, se revela, por exemplo, quando se confunde "saber bem" ou "fazer bem" com conhecer o bem, fazer o bem. Como não há uma essência a-histórica de bem, o bem é definido no âmbito de valores criados socialmente. No caso da nossa sociedade, muitas vezes o que se qualifica de bom é extremamente discutível, na medida em que atende a certos interesses, favorecendo indubitavelmente certa parcela desta sociedade. Então, temos o professor "bonzinho", que se relaciona "bem" com os alunos e deixa de lhes passar os conteúdos necessários. Temos o orientador "bonzinho", que procura proteger os alunos das exigências dos professores; o supervisor "bonzinho", que "compreende" os professores etc. A qualidade da educação tem sido constantemente prejudicada por educadores preocupados em "fazer o bem", sem questionar criticamente sua ação. Ou pela consideração da prática educativa apenas na dimensão moral, ou na visão equivocada de um compromisso que se sustenta na afetividade, na espontaneidade. Isso precisa ser negado, quando procuramos uma consistência para o desempenho do papel do educador na contribuição que dá à construção da sociedade. O maior problema que se enfrenta, no que diz respeito às dimensões técnica e política da competência do educador, é a desarticulação (impossível, na realidade, mas aparentemente considerada) entre os dois pólos. Na verdade a referência a competência técnica e compromisso político pode até, em determinados momentos, ter levado a essa desarticulação aparente. O que é importante, a meu ver, é falar em competência, pura e simplesmente, e nela apontar seus componentes - interligados, indissolúveis, essenciais -, o técnico e o político. Se evitarmos o formalismo de tratar o técnico e o político como segmentos estanques e separados, mais uma vez a questão da capacitação profissional do professor e de sua formação cultural mais ampla se coloca com grande relevância. Para a tarefa de ser um dos agentes de mudança da escola e da prática pedagógica (...), o saber fazer técnico constitui condição necessária porque é a base do querer político, ainda que a dimensão política da tarefa docente não seja percebida como tal. (Mello, 1982, p. 141) A presença da ética como dimensão da competência A importância de se resgatar a relação técnica/ética/política no interior da discussão sobre a competência sustenta o núcleo da reflexão aqui realizada, uma vez que se encontra aí a possibilidade de discutir um aspecto, a meu ver, pouco explorado sistematicamente - a presença da dimensão ética embutida na técnica e na política. Com respeito à relação existente entre moral e política, freqüentemente se percebe que os próprios educadores não têm clareza da dimensão política de seu trabalho. Ao interpretarem política como envolvimento partidário, ou mesmo sindical, alguns procuram até negar que tenham algo a ver com isso, invocando uma posição de "apoliticidade" em sua prática. No entanto, não podem se recusar - porque explicitam isso em seu discurso - a admitir a presença da moralidade em sua ação. E essa moralidade aparece, na verdade, de uma forma extremada - o moralismo, muito próximo do romantismo a que se refere Gramsci. É por aí que se reforça, inclusive, a idéia de espontaneísmo, que também se deve recusar se se quer resgatar o verdadeiro sentido da prática pedagógica. Gramsci, segundo Manacorda, afirma que Toda atitude de respeito à espontaneidade, em sua aparência de respeito pela natureza da criança é, em realidade, renúncia a educar, a formar o homem segundo um plano humano. (Manacorda, 1977, p. 83) Manacorda chama nossa atenção para algo importante: A seu equilíbrio da sociedade política com a sociedade civil, na dimensão universal, corresponde, na dimensão pedagógica, o equilíbrio entre coerção e espontaneidade, que ele (Gramsci) está buscando e que parece que se vislumbra no conceito de responsabilidade. (Manacorda, 1977, p. 106) Essa idéia de responsabilidade, que se encontra articulada com a de liberdade, conceito que representa o eixo central da reflexão ética, ajuda-me a encaminhar esta minha reflexão. Pois responsabilidade está ligada também à noção de compromisso - e esse compromisso traz a marca não apenas da política, no sentido amplo, mas da moral. Na avaliação que fazem de seu trabalho, em geral, os educadores, os professores, afirmam-se comprometidos com os interesses dos alunos, mas não têm clareza quanto à implicação política desse seu "comprometimento". Eles o vêem como fazendo parte de uma provável "essência" do educador, referindo-se à responsabilidade que deve estar presente em seu trabalho. Nas mulheres educadoras, isto aparece de uma forma ainda mais acentuada, contribuindo para o que Mello (1982, pp. 143-4). chama de "a face boazinha" da prática docente. Dá-se ênfase à dimensão afetiva, e o bom educador acaba sendo aquele educador "bonzinho" já mencionado. A dimensão moral aí, exatamente porque marcada pelo viés ideológico, é considerada como "natural", o que nos remete ao espontâneo. Tal atitude demonstra um desconhecimento do significado da presença do político na ação educativa, e também do ético, em sua forma autêntica, pois este aparece misturado com o sentimento, e essa mistura, sem dúvida, contribui para reforçar o espontaneísmo e para manter as falhas da instituição escolar. Libâneo lembra Élise Freinet ao dizer que Não podemos contar, para o êxito de nossa pedagogia, com atitudes incertas e subjetivas; não podemos contar, para o êxito da escola popular, com os sentimentos místicos dos educadores. A técnica educativa terá êxito onde as chamadas morais e moralizantes tiverem fracassado. (Libâneo, 1985, p. 52) É necessário, portanto, evitar o moralismo, as "chamadas moralizantes", e estar alerta para não reduzir a dimensão política à moral, mas é preciso ter claro também que não é possível desvincular moral e política, reduzindo a moralidade à ação política. Por isso, é necessário, a meu ver, resgatar o que chamei de sentido autêntico da ética, apelando para a contribuição que esta pode trazer, ligada, na filosofia da práxis, às ciências do social, buscando discutir os valores morais dominantes na sociedade. O destaque à perspectiva ética da competência pode ajudar-nos a desvelar certos elementos constituintes da ideologia que permeia nossa educação. O "compromisso", para o qual se apela em todas as falas do poder, passa a ser visto como realmente tem sido, num enfoque moralista, fundamentado nos interesses discutíveis de uma classe. O risco que se corre quando se procura dar ênfase à perspectiva política é exatamente esvaziá-la da conotação ética que nela está presente. Um modo de descobrirmos a conotação ética é verificarmos a dimensão de subjetividade presente no político. Não há como afastar a subjetividade que está presente na valorização, na intencionalidade que se confere à prática social. Há, entretanto, algumas observações a serem feitas, algumas distinções que é necessário estabelecer, para auxiliar nossa compreensão. Em primeiro lugar, é preciso distinguir subjetividade de singularidade ou individualidade. O singular é o que diz respeito ao indivíduo, aspectos de sua atuação que o distinguem dos demais. Entretanto, é na vida em sociedade que ele adquire essa individualidade e, como afirma Gramsci, (...) a síntese dos elementos constitutivos da individualidade é "individual", mas ela não se realiza e desenvolve sem uma atividade para o exterior, atividade transformadora das relações externas, desde as com a natureza e com os outros homens - em vários níveis, nos diversos círculos em que se vive - até a relação máxima, que abraça todo o gênero humano. Por isso, é possível dizer que o homem é essencialmente "político", já que a atividade para transformar e dirigir conscientemente os homens realiza a sua "humanidade", a sua "natureza humana". (Gramsci, 1989, pp. 47-8) Isso nos remete a uma segunda distinção, entre subjetividade e subjetivismo, individualismo. Gramsci faz ver que, ao fazer referência à subjetividade, não estou me encaminhando para a ênfase no sujeito, ou melhor, em um sujeito, o que me lançaria no individualismo que é próprio da sociedade capitalista - a crença de que os indivíduos são marcados naturalmente por seus atributos diferentes, o que os leva a ocupar posições sociais diferentes e a ser individualmente responsáveis por seu sucesso ou fracasso social, deixando de lado as condições históricas concretas de sua existência (Cunha, 1975, pp. 28-9). Aqui, destaca-se a noção de subjetividade para enfatizar a perspectiva de relação e encaminhar para o social, que está contido no político. Ou então se estaria esquecendo a polis e sua significação. Sendo social ou "político" por natureza, por isso que é logos, razão e palavra, que implica em si mesmo o outro, ou a alteridade, o homem está destinado a viver na polis, na cidade, não sendo possível transformá-lo, isto é, educá-lo... sem transformar simultaneamente a polis na qual o homem vive. (Corbisier, 1975, p. 30) O comportamento do homem é político enquanto logos (razão e palavra), sim, mas também enquanto nomos (criação de regras, escolha e compromisso). Na verdade, no compromisso o homem empenha a sua palavra, criadora de valores, de significações. Palavra criadora, trabalho, profissão. (A) consciência política (...) será historicamente conceptualizada no logos e no nomos. A Polis, concretização racional do nomos, é o lugar onde o homem legitima seu destino, dando significação e finalidade às suas ações, e escapando, dessa maneira, à arbitrariedade do Ia/um. A Polis é uma totalidade onde o homem confere sentido à sua existência, reconhece e assume seus valores e assume explicitamente seu destino como uma pergunta que tentará responder com sua ação política. A Polis é uma efetivação do logos, da palavra explicitada... (Andrade, 1977, p. 135) Por aí se resgata o sentido da história e do trabalho, fundamento desta, como componente essencial da "humanidade" do homem, a que se refere Gramsci. Assim, se ligarmos a idéia de profissão à de trabalho, teremos de explorar a noção de "profissionalidade" do campo da educação. Se quero recuperar o caráter profissional da prática educativa, devo ir ao fundo da questão tanto da dimensão "técnico-ética" quanto da dimensão "ético-política" do desempenho do educador. É preciso fazer aqui uma última distinção: quando me refiro à subjetividade e a distingo de singularidade, para evitar o risco do individualismo, deve referir-me também à distinção subjetividade/objetividade, que está no interior da discussão sobre a relação existente entre ética e técnica. A técnica aparece como o espaço da objetividade, que é inadequadamente identificada com "neutralidade". Está aí o outro aspecto que é objeto específico de minha reflexão. Se o conhecimento é resultado de relações sociais dos indivíduos, ele tem, indiscutivelmente, uma conotação de valor, ainda que se revista de objetividade. Quando se fala em objetividade, deve-se pensar na atenção às características do objeto, na necessidade de se evitarem as interferências que podem distorcer o conhecimento. Mas, se o conhecimento é relação dialética sujeito-objeto, não posso em momento algum falar na possibilidade de "não-envolvimento" do sujeito com o que ele conhece. Isso não significa que nos encaminhamos para um relativismo no campo do conhecer, mas sim que todo conhecimento é historicamente situado e que, ainda que tenha como característica a objetividade, não é de modo algum neutro. É assim que posso descobrir a moralidade, o ethos na dimensão técnica da atuação do educador. Há escolhas, há exigências de caráter social no que se chama de técnico, no ensino, no trabalho educativo. E essas escolhas têm implicações ético-políticas. A prática educativa emancipatória requer, efetivamente, do educador, uma tomada de posição pela missão histórica consciente e conseqüente da humanidade, de destruir as relações de classe que sustentam a alienação e privam o homem de seu pleno desenvolvimento humano. Mas a prática educativa é, antes de tudo, profissional. (Libâneo, 1985, p. 81) Essa prática profissional, desenvolvida pelo "agente pedagógico" de que fala Cury (1985, passim), tem condição de realizar o que Libâneo aponta, se souber dimensionar a função política da educação dentro da concepção de mundo dada pela filosofia da práxis. Cury afirma que a educação, um dos instrumentos de ação política planejada, toma-se aí um momento através do qual a necessidade se converte em consciência da necessidade e em ampliação da margem de liberdade. Destaco essas falas - e muitas outras a elas se ligariam - para ressaltar algo que procuro reforçar aqui: fazemos referência a querer político, a missão histórico consciente e conseqüente, a ampliação da margem de liberdade. Vontade, liberdade, conseqüência - conceitos que estão sem dúvida no terreno da ética-política. A articulação entre esses conceitos é que nos auxilia na busca da compreensão da competência do educador, pois constatamos que não basta levar em conta o saber, mas é preciso querer. E não adianta saber e querer senão se tem percepção do dever e se não se tem o poder para acionar os mecanismos de transformação no rumo da escola e da sociedade que é necessário construir. Aqui se faz, desse modo, a conexão dos elementos envolvidos no cerne do comportamento moral, que interessa à Ética, como vimos: só posso falar em compromisso, se menciono a adesão, a partir de uma escolha do sujeito, a uma certa maneira de agir, a um certo caminho para a ação. É para que essa adesão seja significativa que devem se conjugar a consciência, o saber e a vontade, que de nada valem sem a explicitação do dever e a presença do poder. Ao fazer referência ao poder, vejo a necessidade de desvinculá-lo da concentração exclusiva de dominação (como o descobrimos em nossa sociedade) e resgatá-lo na sua significaçãO de consenso (como queremos que ele exista na construção de uma nova sociedade). Pensar no poder como uma conjugação de possibilidades e limites, representados de modo geral pelas normas que regem a prática dos homens em sociedade. Deveres que se combinam com direitos e estão ligados à consciência e à vontade dos sujeitos. Atos propriamente morais são somente aqueles nos quais podemos atribuir ao agente uma responsabilidade não só pelo que se propôs realizar, mas também pelos resultados ou conseqüências de sua ação. Mas o problema da responsabilidade moral está estreitamente relacionado, por sua vez, com o da necessidade e liberdade humanas, pois somente admitindo que o agente tem certa liberdade de opção e decisão é que se pode responsabilizá-lo pelos seus atos. (Vázquez, 1975, p. 91) A condição para que se responsabilize, então, um sujeito por sua ação é que ela seja consciente/intencional e livre (entendendo a liberdade como articulação limites/possibilidades). Se vamos considerar isso para a ação do educador, teremos de pensar no que Libâneo (1985, p. 45) chama de saber ser. Ao lado do saber que se identifica com o domínio dos conteúdos e das técnicas para transmissão dos conteúdos, temos de encontrar um "saber que sabe", aquilo que vamos chamar de consciência, não num primeiro nível, de percepção da realidade, mas de percepção da percepção, percepção crítica. O "saber que sabe", de forma reflexiva, sabe o alcance do saber, as suas implicações, o seu rumo. E não poderá recusar-se a uma tomada de posição diante do saber que constata possuir. É por isso que dizemos que uma visão crítica da realidade não leva, automaticamente, a uma intervenção crítica, mas é um primeiro passo, se se pode ver com clareza o apelo da necessidade que está presente no real. Mas é aqui mesmo que nos encaminhamos para uma discussão ainda não completamente superada - ter um compromisso político não significa, absolutamente, ter um compromisso político autêntico. Essa discussão ainda nos desafia. Porque apresenta uma questão séria: ensinar bem os conteúdos, utilizando recursos adequados, é dirigir-se já para o objetivo desejável no que diz respeito a se conseguir um sujeito educado, isto é, um cidadão atuante e consciente? É aí que entra o componente fundamental presente na ação ético-política - a vontade, a intencionalidade do gesto do educador. Numa sociedade em que os interesses são antagônicos, as vontades, sem dúvida, dirigem-se para objetivos conflitantes, apesar de o discurso "oficial" referir-se a um objetivo único: o chamado "bem comum", a realização pessoal, a integração participante na sociedade. Assim, o que o educador decide fazer com o saber é extremamente relevante para que sua ação seja qualificada de competente. Poderíamos dizer que, nessa medida, o saber e o saber fazer ganham uma espécie de caráter instrumental. Ou melhor, eles não têm sentido isolados do para que saber e fazer, que afasta a possibilidade de uma suposta neutralidade. Se o professor pensa que sua tarefa é ensinar o ABC e ignora a pessoa de seus estudantes e a condição em que vivem, obviamente não vai aprender a pensar politicamente ou talvez vá agir politicamente em termos conservadores, prendendo a sociedade a laços do passado, ao subterrâneo da cultura e da economia, afirma Florestan Fernandes (1986, p. 24). E vai mais além: Se o professor pensar em mudança, tem que pensar politicamente. Não basta que disponha de uma pitada de Sociologia, outra de Psicologia, ou de Biologia Educacional, muitas de Didática, para que se torne agente de mudança. (Fernandes, 1986, p. 27) É nessa medida que o professor pode funcionar como um intelectual orgânico (Gramsci, 1978, passim), contribuindo, através de um ensinamento comprometido, para as transformações necessárias na sociedade. Um trabalho do professor Octavio Ianni explora este tema. Cito boa parte, que me ajuda a reforçar o que afirmo: Há quem pense que o intelectual orgânico é s6 aquele que está no partido, s6 aquele que está no sindicato ou que está no Congresso. Não só esse é o intelectual orgânico, mas a maioria, senão todos, somos intelectuais orgânicos, na medida em que o trabalho que se realiza., as idéias, os valores, os ideais em questão, entram na máquina da sociedade, no jogo das classes sociais, na produção, no discurso desta ou daquela classe e, mais freqüentemente, na produção do discurso do poder. Nesse sentido,em grande parte, os intelectuais que estão nas atividades de docência e de pesquisa., e mesmo em atividades técnicas estão, por assim dizer, determinados pela condição de intelectuais orgânicos, no sentido de que entram na produção cultural ou na produção cultural de valores, ideais, padrões, conceitos, metáforas, imagens, propostas, projetos, planos, visões do mundo que entram na máquina da sociedade e fazem parte do jogo das forças sociais em luta., no âmbito da sociedade, com relação à reforma agrária, habitacional, universitária., à ditadura., democracia., ao capitalismo e socialismo. (Ianni, 1986, p. 49) O reconhecimento dessa perspectiva evita que se caia no mencionado espaço da "boa vontade", presente no discurse dos educadores sob uma multiplicidade de rótulos - vocação, missão, etc. Tudo como se houvesse um certo elemento "mágico", deslocado de circunstâncias históricas bem concretas, que determinasse o rumo da ação do educador, independente de um conhecimento sério do que se tem de ensinar na escola para produzir o que se chama de ensino de boa qualidade. O desafio está mesmo em esclarecer o que significa esse "ensino de boa qualidade". Por vezes ele é identificado como aquele que vai "ao encontro das necessidades dos educandos". Entretanto, com freqüência o discurso ideológico mascara o que se faz realmente na escola, sob a alegação de ir ao encontro das necessidades. A necessidade, concretamente presente no contexto sócio-econômico em que se vive, é, efetivamente, o primeiro motor da ação do educador. Entretanto, é importante lembrar que essa necessidade é histórica, situada, que há possibilidade de se atender a ela de múltiplas maneiras; há, até mesmo, possibilidade de não se atendê-la; e aí está o que faz a necessidade do saber escolar diferente de outras necessidades sociais, e estas das que se encontram no plano da natureza. A vontade, articulada à consciência, mostra-se então como componente essencial da prática político-moral do educador. Entretanto, é impossível falar no ato compromissado sem que este seja também um ato livre. A liberdade não coincide, porém, com a espontaneidade, e nem é expressão de alguns pretensos direitos naturais. O conceito de liberdade deve ser examinado em relação com o de autonomia, entendida como capacidade de autocontrole, de autodeterminação individual, base necessária para dar sólido fundamento à vida social. É livre quem é (...) consciente de seus deveres e direitos, e capaz de conduzir-se autonomamente na vida. Portanto, liberdade não é um dado imediato, como crêem os teóricos dos direitos naturais, mas é o resultado mais importante da educação. (Betti, 1981, p. 58) É Gramsci, mais uma vez, quem pode nos ajudar a compreender a ação política como unidade de autonomia e direção: O conceito de liberdade deveria ir acompanhado do de responsabilidade que engendra a disciplina, e não imediatamente a disciplina, que neste caso se entende como imposta de fora, como limitação coativa da liberdade. Só é liberdade a liberdade "responsável", isto é, "universal", enquanto se põe como aspecto de uma liberdade coletiva ou de grupo, como expressão individual de uma lei. (Gramsci, apud Manacorda, 1977, p. 233) Devemos, então, considerar a possibilidade que o indivíduo tem de ir ou não ao encontro dos meios que o ajudarão a atender às necessidades. Não se pode falar em compromisso se se está apenas no nível da coerção. Não se pode falar em compromisso no âmbito de necessidades que não se pode deixar de atender. É por isso mesmo que é um problema moral, para o qual se chama a atenção, o deixar de lado certas necessidades que qualificamos, socialmente, como "imperiosas". É necessário haver escola para todos. Entretanto, a maioria da população não tem escola. É necessário haver ensino de boa qualidade; no entanto, as crianças saem da escola sem dominar o saber necessário para o exercício da cidadania. Sem comer, o indivíduo não pode ter vida. Sem escola, sua vida é "apenas" mais pobre. Todas essas questões são políticas, são éticas. É preciso que o educador saiba - e seja cobrado por isso - que é de sua vontade, articulada com seu saber consistente e com as possibilidades e os limites das circunstâncias, que dependerá o encaminhamento de sua prática educativa. Podendo ver melhor a dimensão individual de sua ação - inegavelmente moral-, ele terá mais condições de deixar de atribuir ao "sistema", aos "outros", as razões de seu insucesso - ou poderá descobri-las e lutar para superá-las. Muitas vezes assumimos os decretos, as normas burocráticas, os curricula, os salários, como destino, tendo deles uma concepção mágica. Não buscamos, coletivamente, conhecer e controlar as causas formais e eficientes que os produziram. Permanecemos no estágio fetichista do insulto aos males, exorcizando-os como se fossem produções extra-humanas. Neste sentido, é notável a capacidade que temos de assumir normas burocráticas, mesmo quando os cargos são exercidos por "eles", os kafkianos instauradores das mesmas normas absurdas que (...) praticamos. (Romano, 1986, pp. 106-7) Na tentativa de articular corretamente os elementos da competência do educador - suas dimensões técnica, ética e política -, poderíamos aprofundar nossa reflexão em torno de um conceito já explorado quando procurei caracterizar a reflexão filosófica - o de compreensão. Estaríamos assim associando as idéias de compreender e de comprometer, lançando-nos, pelo prefixo comum, à idéia de associação, de coletividade, rompendo com a idéia dominante do pensamento burguês, que é a de individualismo. A idéia de promessa, de anúncio da realização de uma ação, é extremamente rica para exploramos a noção de compromisso. Antes de mais nada, porque nos lança para o futuro. Prometer é anunciar algo que está por-vir. E, ao mesmo tempo, quando se trata de uma ação como a do educador, para a necessidade do empenho para que o prometido venha, isto é, se torne realidade. Empenho não sinônimo de "torcida", mas de prática, envolvimento concreto com a realização do "prometido". Há ainda uma outra ligação que é à idéia de "prender-com" ou de "estar preso a". Quem promete está preso à promessa. Quem prende com, tem laços não apenas com o objeto, mas com o companheiro de apreensão do objeto. Não se trata de um mero jogo de palavras, mas do que elas "querem dizer" - e que é preciso fazê-las dizer: assim como, no âmbito do saber, não se pode reduzir o indivíduo competente a um sujeito "sabido", e no nível do fazer não se pode "fazer-de-conta", também no nível do compromisso não é possível prometer sem ter elementos que permitam o cumprimento do que se anunciou. As vezes, basta intervir em circunstâncias já disponíveis; na maioria das situações, é preciso criar essas circunstâncias. Do ponto de vista político, no sentido mais restrito, acusamos indiscutivelmente o indivíduo que faz promessas que não pode cumprir, na medida em que isso evidencia um desconhecimento, uma não-compreensão (olhar abrangente) da situação sobre a qual se pretende agir, ou um gesto de má-fé. Assim, um gesto de compreensão é, também, um gesto compreensivo, no sentido ético, de envolvimento com aquilo que se tem por objetivo. Compreensão é, portanto, saber aprofundado, e envolvimento ético-político do saber. Na esteira dessa significação, a questão - problemática - do desempenho do educador toma-se mais evidente nas situações concretas que vivenciamos no cotidiano de nossa prática educativa. O resgate da significação da dimensão política e da dimensão técnica pela mediação da'perspectiva ética abre a possibilidade de enfocarmos sob uma nova luz a questão do poder na educação. É preciso pensar que o educador competente é um educador comprometido com a construção de uma sociedade justa, democrática, no qual saber e poder tenham equivalência enquanto elementos de interferência no real e organização de relações de solidariedade, e não de dominação, entre os homens. A idéia de poder, entretanto, é freqüentemente associada apenas à de dominação, porque é assim que ele tem sido exercido, particularmente na sociedade brasileira hoje. Um dos aspectos mais enfatizados na atividade política tem sido a luta pelo poder. Na verdade, semelhante luta não passa de um instrumento, de uma etapa, que tem como pressuposto a definição do que se vai fazer após a conquista do poder. No contexto do sistema capitalista, baseado num esquema de dominação, a conquista do poder poderia permanecer essencialmente contaminada por essa mesma situação de dominação. (Rezende, 1982, p. 82) Dividida em classes, com um Estado a serviço dos interesses da classe dominante, a sociedade, na medida em que tem o poder representado, em certa perspectiva, pelo saber (o saber funciona na sociedade dotado de poder), tem negado a uma parcela de seus membros o acesso a esse saber na medida em que o domínio do saber, sua apropriação, é sinônimo de possibilidade mais ampla de atuação. É assim que se qualifica como competente, de forma equivocada, o indivíduo que é considerado proprietário de um saber, que não é partilhado. Apesar dessa característica de que se reveste o poder em nossa sociedade e em nossa escola, vale lembrar que "não se explica inteiramente o poder quando se procura caracterizá-lo por sua função repressiva" (Machado, in Foucault, 1984, p. XVI). Aliás, a manutenção da sociedade tal como ela se organiza no modo de produção capitalista contemporâneo não seria possível se não se ocultasse o aspecto repressivo do poder, e se, pelo menos no nível das instituições que compõem a sociedade civil, não houvesse hegemonia, que se apresenta como uma conjugação de força e consenso, de dominação e de persuasão. É nesse sentido que julgo possível pensar na escola, na prática do educador, como um espaço de predominância do consenso e da persuasão. Pensar em uma situação de consenso no campo da educação não significa identificar consenso com "concordância numa proposta pela totalidade dos sujeitos nela envolvidos". Pelo contrário, se minha fala parte do terreno da filosofia, é na problematização, no questionamento, que estarão lançados os esforços na direção da sociedade desejada. Não no sentido de situar-se em terreno instável, escorregadio, mas no reconhecimento do desafio como impulsionador da ação. O consenso possível resultaria da explicitação dos elementos presentes na competência e na prática dos educadores, do confronto mesmo do discurso com a prática efetivamente desenvolvida na escola. Trata-se de aproveitar o espaço existente na sociedade civil para seu fortalecimento e para a transformação necessária na estrutura social. Uma vez que é sob a forma axiológica que os discursos pedagógicos tentam ocultar a luta de classes (Cury, 1985, p. 16), é por meio de uma reflexão que passa pela axiologia que se pode "desocultá-los". Aí, restaura-se o significado do político e consolida-se sua articulação com o técnico. Não poderíamos superar a dicotomia técnica X política se apenas articulássemos a ética à política, e mantivéssemos a técnica como um campo autônomo, que de fora recebe as benesses, os benefícios de uma política fertilizada pela ética. É preciso garantir a idéia de que a dimensão técnica também carrega a ética. O que temos é competência técnico-ético-política. Procurei aqui apontar o caráter de mediação da ética como elemento de superação da dicotomia. A ética é mediação, mas também síntese da técnica e da política. Ela está expressa na escolha técnica e política dos conteúdos, dos métodos, do sistema de avaliação, etc., ou ela tem de desvendá-los. O educador enquanto profissional é portador de valoração em sua prática. Técnica, ética, política não são apenas referências de caráter conceitual - podemos descobri-las em nossa vivência concreta real, em nossa prática. Sem dúvida, o real é mais amplo e mais rico que sua conceituação. A mutabilidade real das coisas não se compatibiliza com uma imutabilidade conceitual. Na verdade, as referências nunca estão prontas. Elas se inserem no processo social porque nascem dele e dele são expressão. Ora, o processo social é mutável, e o é também porque incorpora elementos de conhecimento, nascidos da reflexão. (Cury, 1985, p. 15) É a reflexão que nos fará ver a consistência até de nossa própria conceituação, e que, articulada a nossa ação, estará permanentemente transformando o processo social, o processo educativo, em busca de uma significação mais profunda para a vida e para o trabalho.