Professor: Jean Disciplina: Contemporânea III Texto para prova: A Primeira Guerra Mundial Pág.15 A linha demarcatória entre o século XIX, que estamos deixando,e o século XX, em que estamos entrando, passa geralmente pelo que até 1939 se chamou a Grande Guerra, quando outra a desclassificou, substituindo-lhe o epíteto por um simples adjetivo ordinal: A Primeira Guerra Mundial. Justifica-se a passagem da linha de demarcação pela guerra? Pergunta essencial. Atribuindo tamanha importância à guerra, não lhe estaremos superestimando o papel? Suas consequências foram tão decisivas que mudaram a história da humanidade? Não estaremos sacrificando à concepção tradicional, que talvez concedesse aos fatos militares excessiva atenção? Toda a orientação das ciências do homem, de duas gerações a esta parte, não tende, porventura, a reduzir o alcance dos fatos militares e a recolocar em plena luz outros fatos de civilização? Limitemo-nos, por enquanto, a formular a pergunta. Responde remos melhor a ela quando tivermos feito o balanço dos efeitos da guerra. Só esse balanço, realizado em todos os países interessados e passando em revista os diversos setores de atividade, nos permitirá dizer se a guerra pertence ou não à categoria dos acontecimentos que separam de maneira irrevogável o antes e o depois. Admitamos, por ora, para começo de conversa, que a Primeira Guerra Mundial transformou os países nela implicados. Direta ou indiretamente, às vezes das duas maneiras ao mesmo tempo, a guerra atingiu inúmeras nações. Alterou regimes, transtornou economias, modificou sociedades, transformou o sistema de forças, teve consequências sobre os estados de espírito, repercussões sobre a história das ideias. Por conseguinte, pode admitir-se que se trata, com efeito, de um grande acontecimento. Pág. 16 O problema das causas dos grandes acontecimentos é um caso particular de um problema com que já topamos mais de uma vez. Quer se trate de revoluções, quer se trate de guerras, metodológica e filosoficamente, o problema é o mesmo: como é que o novo pode sair do velho? Como se passa de um estado de coisas a outro, de um regime a uma revolução, de uma situação de paz internacional a um conflito? As origens são múltiplas. Certas causas, circunstanciais e imediatas, podem ser postas de manifesto por uma análise cronológica. A conflagração de agosto de 1914 sai da crise diplomática que estourou a 28 de junho de 1914, com o atentado de Serajevo. E o primeiro modo de responder à pergunta é reconstituir o encadeamento dos fatos que vai do assassínio do Arquiduque Francisco-Fernando à declaração de guerra. É a crise do verão de 1914; crise militar e diplomática. Essa, porém, não deixa de ser uma resposta provisória, pois se o acidente de 28 de junho teve tais consequências, a razão é porque surgiu num contexto que encerrava possibilidades de guerra. Em outros momentos, o mesmo acidente teria comovido a opinião, mas não teria rido consequências tão graves. Ele veio acrescentar-se a uma soma de fatores anteriores. São as causas preexistentes, as engrenagens, os mecanismos dessa máquina infernal que urge desmontar. Para essa pergunta, que nos remete a um ponto um pouco mais distante do passado, propõem-se várias respostas. Uma é jurídica; tem por si a vantagem da simplicidade e teve também por muito tempo a autoridade da coisa julgada. Nela se apóia o Tratado de Versalhes, em seu artigo n.° 231, ao atribuir a responsabilidade da guerra às potências centrais e, sobretudo, à Alemanha.Explicação simples. Por que procurar alhures? A causa da guerra reside na vontade de guerra de uma ou várias potências, que desejariam instaurar sua hegemonia. A opinião pública alemã não aceitou esse julgamento, que valeu ao Tratado de Versalhes o nome de Diktat. Era o artigo que legitimava as reivindicações dos Aliados. Por ser responsável pela guerra,a Alemanha devia assumir suas responsabilidades até o fim e indenizar os vencedores de todas as perdas que a guerra lhes causara. Hoje em dia, ninguém mais sonharia em empregar de novo, tal e qual, o artigo 231 e sustentar que a Primeira Guerra Mundial se Pág. 17 deveu exclusivamente à vontade de guerra do governo alemão. Isso não lhe diminui a responsabilidade, mas esta deve ser partilhada por outros. Cumpre, portanto, que nos orientemos para outros elementos de explicação. De qualquer maneira, é preciso esclarecer por que a Alemanha quis a guerra. Pouco a pouco, ao remontar dos efeitos às causas, a crise do verão de 1914 obriga-nos também a ressubir o curso do tempo. A responsabilidade, presumida ou aceita, da Alemanha leva-nos a perguntar: por que a Alemanha quis, ou teria querido, a guerra? A segunda explicação é de ordem econômica: a guerra teria provindo da conjuntura e da inadequação das estruturas. Explicação clássica que logo veremos como se aplica à Alemanha. A economia alemã estava em plena expansão. O desenvolvimento contínuo era para ela uma necessidade vital. Seus enormes investimentos, cuja rentabilidade exigia dela que encontrasse novos mercados, precisavam ser amortizados. A política comercial alemã orientava-se toda para a conquista dos mercados externos. Prova disso eram suas práticas comerciais, sobretudo o dumping. A política comercial fá-la entrar em competição principalmente com a Gra-Bretanha, acessoriamente com a França. À rivalidade econômica entre as velhas potências coloniais e a Alemanha provoca toda a sorte de conflitos, desde a China até o Marrocos. Ao mesmo tempo que procura abrir mercados para si, a Alemanha fecha-se ao comércio exterior. É o que a distingue da Gra-Bretanha.A economia britânica não trazia em si o germe da guerra, porque repousava no liberalismo e na reciprocidade das trocas. A Inglaterra renunciou ao protecionismo em 1846 e aboliu, em 1849, a Lei de Navegação. A Alemanha, ao contrário, conjuga uma política de exportação análoga à da Gra-Bretanha e uma política de fechamento do mercado interno; associa o monopólio do mercado nacional à conquista do exterior; política repleta de contradições, que a impele a entrar em conflito com outras potências. Nos anos anteriores a 1914, a opinião pública alemã tem a impressão de estar sendo cercada e sufocada, É grande a tentação de romper a concorrência pela força e abrir, pela (Suerra, os terrenos que se fecham. A conflagração de 1914 proviria,portanto, diretamente, do imperialismo econômico, o que ilustraria a tese clássica do marxismo-leninismo. Até que ponto é válida essa explicação? Todos os trabalhos dos historiadores e, nomeadamente, os do historiadores francês P. Renouvin, o maior conhecedor do período, lhe reduzem o alcance. Ela é demasiado esquemática: a economia alemã não cachava em dificuldades, nada havia que tornasse inelutável o recurso Pág.18 à guerra. Outras possibilidades se ofereciam a ela. Não é verdade que a economia alemã estivesse acuada e só lhe restasse a alternativa da guerra. É forçoso, portanto, tomar em consideração um conjunto de fatores diferentes, políticos, militares e psicológicos. Passarei a enumerar, sem tentar estabelecer uma hierarquia por ordem de importância, os elementos que já conhecemos e que constituem outros tantos componentes de uma situação objetivamente belicosa. AS DIFICULDADES INTERNAS DOS ESTADOS Vários Estados europeus, às voltas com dificuldades sérias, sentem-se muito tentados a procurar derivativos e consolidar-se por meio de êxitos externos: em 1914, raciocina-se em função das guerras do século XIX, em que os riscos eram limitados. Tal é o caso de dois grandes Estados da Europa em 1914: a Rússia, que lutava com uma agitação revolucionária desde a revolução de 1905, e ainda não se recobrara da derrota de 1905 diante do Japão; e a Áustria-Hungria, dilacerada pelas reivindicações das nacionalidades. O cálculo, de resto, não era totalmente desarrazoado. Se a guerra não tivesse durado tanto tempo, teria produzido os efeitos calculados. Isso não quer dizer que os governos russo e austro-húngaro a tivessem querido, mas alguns responsáveis não afastavam tal eventualidade. A guerra, com efeito, começou reforçando a coesão nacional. Num primeiro período, um ímpeto de unanimidade acaba com as brigas, apaga as dissensões. Até as nacionalidades serram fileiras em torno dos Habsburgos. Na Rússia, todos os matizes da opinião pública se reagrupam em torno do governo. A fórmula da união sagrada, lançada na França pelo Presidente Poincaré, poderia aplicar-se, pelo menos nos primeiros meses, a quase todos os beligerantes. AS DIFICULDADES EXTERNAS Ao lado das dificuldades internas, as externas: entre as duas, interferências ocasionais. As dificuldades suscitadas à Áustria-Hungria por suas nacionalidades são alimentadas do outro lado das fronteiras; o império espera resolver, ao mesmo tempo, suas dificuldades internas e as que lhe suscitam os vizinhos. O desmembramento da Sérvia suprimiria o pólo de atração que o mito de uma grande Sérvia exerce sobre as nacionalidades croata, sérvia, eslovena, bosníaca, herzegovina. Outros tantos aspectos de um fenômeno que foi uma causa determinante das hostilidades: o movimento das nacionalidades, a aspiração Pág.19 a independência nacional, a reivindicação da unidade ou do separatismo, conforme as situações. Os nacionalismos desempenharam seu papel no evento do conflito. Desde 1905, a febre aumenta, exacerbam-se as paixões, até levar tudo de roldão em 1914. Desse ponto de vista, a guerra de 1914 resulta, com efeito, dos movimentos que vimos surgir entrecruzar-se no século XIX. Esses elementos são ainda agravados pela expansão no ultramar e nela corrida aos raros territórios ainda disponíveis. Quase todas as terras já têm dono, ao passo que aumenta o número das partes interessadas. Os sonhos de hegemonia, as vontades de poder estendem-se ao mundo inteiro, e não mais apenas à Europa. Projetam-se nos outros continentes. A Alemanha abandona a política bismarckiana, que, depois de 1871, é uma política de paz: Bismarck era suficientemente realista mpara saber que a Europa não toleraria novos acrescentamentos. No centro da Europa ligada por tratados à Áustria, à Itália e à Rússia e mantendo boas relações com a Inglaterra, a Alemanha é senhora da paz. Mas depois da demissão de Bismarck e da ascensão de Guilherme II, passa de uma política de equilíbrio europeu à Weltpolitik, ou seja, a uma política de expansão aventurosa, de hegemonia, portadora de germes de guerra. A partir de 1900, a situação internacional caracteriza-se pelo que se chama a paz armada. A expressão associa dois elementos caracte- rísticos: os sistemas de alianças e a corrida aos armamentos. De um lado, os sistemas de alianças. A França saiu do isolamento desde 1892, com a reaproximação franco-russa, a política de Delcassé que separa a Itália da Tríplice, a reaproximação com a Inglaterra, a Entende Cordiale em 1904, o sistema triangular em que se fundem a aliança franco-russa e a Entente Cordiale (1907). Agora existe outro sistema de alianças diante do sistema da Tríplice. Por outro lado, a corrida aos armamentos, a votação de leis militares comprometendo todos os anos verbas mais e mais consideráveis, prolongando a duração do serviço militar, reforçando o armamento, construindo materiais novos. Tudo isso cria uma situação explosiva. Conjugando-se, os sistemas de alianças e a corrida aos armamentos contam o mecanismo da generalização do conflito a partir de uma rivalidade limitada. Nisso reside a originalidade da Guerra Mundial. Houve guerras no século XIX, mas todas foram sempre limitadas: a de 1914 estendeu-se à Europa e ao mundo graças à paz armada. Tampouco se deverá subestimar o papel dos fatores psicológicos: o medo de se ver cercado, a vontade de ação preventiva, chave da aquiescência ou da resignação à guerra. Pág.20 A partir de 1905, as crises sucederam-se quase todos os anos. A Europa entrou em águas perigosas: Tânger em 1905, a Bósnia-Herzegovina em 1908, o Marrocos outra vez em 1911, os Bálcãs em 1912-1913. A guerra ameaça. Parte da opinião pública resigna-se a ela e para ela se prepara. Na véspera do verão de 1914, a Europa está à mercê de um acidente que porá bruscamente em contato recíproco todos os elementos que fazem da situação diplomática, política e militar da Europa, na véspera de 1914, uma máquina infernal. 1.AS CARACTERÍSTICAS DA GUERRA Três características contribuem para singularizar a Primeira Guerra Mundial em relação aos conflitos precedentes: sua duração, sua exten- são no espaço, certas formas novas e inéditas. A DURAÇÃO É desusada. Fora preciso remontar às guerras napoleônicas para encontrar conflitos que assim duraram vários anos. As únicas guerras longas que a Europa conheceu depois disso foram as que ela travou no ultramar, como a Guerra dos Bôeres, em que se digladiaram, durante três anos, o corpo expedicionário britânico e o povo bôer, que defendia sua independência. Na verdade, houve uma guerra no século XIX que durou tanto tempo quanto vai durar a Primeira Guerra Mundial, mas uma guerra civil: a Guerra de Secessão, que se prolongou exatamente por quatro anos, de abril de 1861 a abril de 1865. As guerras longas, portanto, correspondem a formas determinadas de conflito, conflitos coloniais travados a milhares de quilômetros das metrópoles, ou conflitos internos. Por isso mesmo toda a gente pensa, no início do verão .de 1914, que a guerra durará algumas semanas ou, na pior das hipóteses, alguns meses. A estratégia dos beligerantes repousa no postulado de uma guerra curta, cuja decisão será obtida nos primeiros encontros: é a guerra de movimento. Essa estratégia inspira não só o plano alemão de envolvimento do front francês pelo oeste, mas também as esperanças postas pelos Aliados no avanço, a leste, do "rolo compressor" russo. Mas a guerra vai durar. Nos primeiros meses, nenhum beligerante consegue alcançar a vantagem decisiva capaz de propiciar-lhe a vitória e o fim da guerra: nem os alemães na França, depois do reerguimento Pág.21 imprevisto do começo de setembro na Batalha do Mama, nem os russos Prússia Oriental, onde são vencidos em Tannenberg. Eis aí os beligerantes obrigados a rever seus planos, impelidos por acontecimentos que não se tinham podido prever. As duas partes instalam-se na guerra, imobiliza-se o front, e a guerra de movimento, seguida da corrida para o mar, é substituída pela guerra de posição, como uma frente contínua que impossibilita a penetração. A luta se reveste, então, de características inesperadas. É o retomo à guerra de antanho, a guerra de assédio, mas um assédio do tamanho dos Estados modernos, que, em lugar de limitar-se a algumas praças fortificadas, se desenrola numa extensão de centenas de quilômetros, do Mar do Norte à fronteira suíça, do Báltico aos Cárpatos, e opõe uns aos outros milhões de homens. Tal é o ponto de partida que desvia bruscamente o curso das operações militares e imprime ao conflito mundial um aspecto imprevisto, cujas consequências vamos ver. A duração terá, como primeira consequência, a extensão no espaço. E é em parte porque o conflito se prolonga e ameaça etenizar-se que os dois sistemas diplomáticos e militares contrários tentam atrair os que permanecem na expectativa: os neutros. Desde o início, a guerra assumiu proporções insólitas: consequência direta do sistema da paz armada. O jogo dos compromissos, que comportam as alianças, arrasta, nas primeiras semanas, numerosos países á luta. Formam-se duas coalizões. De um lado — enumerando os paises na própria ordem em que a guerra os atinge — a Sérvia, objeto ultimato austríaco e da declaração de guerra, o reinozinho de Montegro, a Rússia, aliada da Sérvia e que não pode deixar que sejam esmagados os irmãos eslavos do Sul, a França, por ser aliada da Rússia e porque a Alemanha exige dela que se pronuncie claramente, a Bélgica visto que o Rei Alberto se recusou a ceder ao ultimato alemão,a Grã-Bretanha em consequência da invasão belga, o império britânico e as colônias francesas. Esses países representam na Europa 240 milhões de homens, aproximadamente. No campo oposto, os dois impérios centrais, a Áustria-Hungria e a Alemanha, não têm mais do que 120 milhões. Verifica-se, pois, no início, grande desigualdade numérica entre coalizões. Mas a força militar de um país não é apenas função do número; resulta de inúmeros fatores, entre os quais a Pág.22 aptidão para mobilizar os homens e o grau de poderio econômico. Nesse sentido, os 240 milhões reunidos pela Entente pertencem a sociedades muito desiguais. Por outro lado, em razão da sua posição geográfica, os impérios centrais dispõem de considerável vantagem estratégica, a possibilidade de transportar suas forças de uma frente à outra, ao passo que a Enterite está dividida entre dois fronts que não se comunicam. Assim, desde os primeiros dias de agosto de 1914, as cinco grandes potências européias — Alemanha, Áustria, Rússia, França, Grã-Bretanha —, as mesmas cujo acordo constituía o que a linguagem diplomá- tica tradicional denominava "o concerto europeu", se vêem empenhadas em guerra, pela primeira vez, desde 1815. Até então, os conflitos só tinham oposto uns aos outros, no máximo, dois ou três países; nunca todos juntos. Na Guerra da Criméia, a França e a Inglaterra tinham lutado com a Rússia; mas a Prússia e a Áustria haviam permanecido fora do conflito. Em 1870, a França e .a Prússia tinham sido as únicas a combater, ao passo que os demais haviam permanecido neutros. 1914: é a primeira vez, desde o fim das guerras napoleônicas, que a Europa inteira se precipita na guerra. As coisas não ficarão nisso; sob o efeito de vários fatores conju-gados, o conflito se estenderá rapidamente. A Pressão da Diplomacia dos Beligerantes Prolongando-se, a guerra mostra que cada campo se entrega, junto aos outros, a um redobramento de promessas, a fim de persuadi-los a tomar parte no litígio e romper o equilíbrio das forças. Multiplicam-se as promessas para seduzi-los ou para manter na luta os que poderiam sentir-se tentados a abandoná-la. A França e a Inglaterra fazem à Itália promessas substanciais: se ela deixar a neutralidade, recuperará as terras irredentas. A Rússia exige Constantinopla em paga de sua fidelidade. Os objetivos de guerra se revelam amiúde contraditórios: nem todas as exigências formuladas são conciliáveis. É o germe de dissensões que estourarão depois do armistício, por ocasião da conferência da paz, e que levarão a Itália, por exemplo, a torcer o nariz para a conferência durante algumas semanas. Reivindicações dos Governos Neutros Segundo fator que conduz ao alastramento das hostilidades: o desejo de certos governos neutros de conseguir vantagens. Ora, os Pág.23 neutros permanecerão fora da Conferência da Paz: não terão a possibilidade de formular reivindicações. O único meio consiste em passar a neutralidade à beligerância. O mesmo cálculo inspirara, meio século antes, a diplomacia de Cavour declarando guerra à Rússia. Toda a gente perguntara, na época, que divergência poderia opor o Piemonte á Rússia: era tão somente o meio de formular, no Congresso de Paris,as reivindicações contra a Áustria. Pressão das Opiniões Públicas Terceiro fator: em certos países, a pressão de parte da opinião pública, instigando o governo a entrar na guerra. É o que acontece na Itália, onde o setor formado pelos patriotas de direita e pela fração socialista ue segue Mussolini se declara a favor da intervenção. Todos esses fatores acarretam a progressiva generalização do conflito. Distinguem-se como que círculos concêntricos em tomo do foco inicial da guerra, na Europa continental. O primeiro país a abandonar Império Otomano, que, em novembro de 1914, adere aos impérios centrais. Fazia já muito tempo que o Império Otomano era uma espécie de colônia da Alemanha: terreno de expansão do imperialismo econômico, tendo sido o exército e a marinha turcos reorganizados sob a direção de oficiais alemães. Os laços estreitos que existiam entre o Império Otomano e a Alemanha predispunham o primeiro a serrar fileira ao lado dos impérios centrais. Sua entrada na guerra tem grandes consequências estratégicas: o fechamento dos estreitos. Tornava-se agora impossível à Rússia manter comunicações marítimas com seus aliados do Oeste e deles receber material; baldar-se-ão todas as tentativas para forçar os Dardanelos. Segunda conse- quência: a guerra estende-se â Ásia, uma vez que o Império Otomano tem uma perna na Europa e outra no continente asiático. O Oriente Médio é arrastado para a luta ao lado da Alemanha e da Áustria. O bloco dos impérios centrais agora se dispõe sobre uma espécie de grande eixo grosseiramente orientado do noroeste para o sudeste, do Mar do Norte para o Golfo Pérsico. Maio de 1915: é a vez da Itália de entrar na guerra, mas ao lado dos Aliados. Abre-se um novo front nos Alpes Orientais, e a Áustria, qiue só precisava combater, na direção do leste, a Rússia e a Sérvia, tem de lutar também a oeste, entre o Trentino e o Adriático. A partir de outubro de 1915, participam do litígio pequenos países balcânicos por uma sucessão de intervenções em série. Primeiro a Bulgária. É o ricochete das guerras que. dois anos antes, a haviam Pág.24 deixado às voltas com seus Aliados balcânicos, vencedores da Turquia. Em 1912 e 1913, duas guerras balcânicas se tinham travado. Em 1912, a coalizão da Grecia, da Sérvia, da Bulgária e da Roménia obrigara o Império Otomano a ceder a quase totalidade de seus territórios europeus, com exceção da Trácia. No ano seguinte, descontente com a divisão territorial, a Bulgária toma a iniciativa das operações. Mas é esmagada pela coalizão dos outros três. Para interpor agravo desse resultado entra no conflito em 1915, esperando desforrar-se da Roménia e da Sérvia. Agosto de 1916; a Roménia ingressa no campo dos Aliados. Junho de 1917: a Grecia é arrastada à guerra, contra a vontade, em favor dos Aliados. Estes, para acudir à Sérvia e à Roménia, decidiram abrir um segundo front nos Bálcãs — é o campo entrincheirado de Salonica — forçam a mão ao governo grego, depõem o Rei Constantino e apoiam Venizelos. Lembremos a participação, desde março de 1916, de Portugal, que mandou uma divisão, a título simbólico, à frente francesa. Ao todo, catorze países da Europa entraram no conflito. Em 1917,os únicos neutros na Europa são, no centro, a Suíça, e, na periferia,alguns países pequenos — os reinos escandinavos e a Espanha. Todos os demais foram arrastados a uma campanha cuja intensidade não pára de crescer. As dimensões do conflito, todavia, não se restringiram ao continente europeu: ele estendeu-se aos outros por um processo duplo. De um lado, em razão dos laços que sujeitam os territórios coloniais às potências europeias. É o caso da África, nove décimos da qual, em 1914, são possessões coloniais. As colonias seguem o destino das metrópoles, participam do esforço de guerra, fornecem combatentes e servem até de teatro de operações, como aconteceu quando os franco-britânicos ocuparam, uma depois da outra, as colonias alemãs da África, os Camarões, o Togo e o Sudoeste da África Oriental. Um segundo fator determina a extensão do conflito a outros continentes além da Europa: a determinação de alguns Estados, por motivos semelhantes aos que ditaram a beligerância da Itália. Tal é o cálculo dos nipônicos, que julgam obter maiores vantagens entrando na guerra do que ficando neutros; em agosto de 1914 o Japão declara guerra à Alemanha. Não só em virtude do tratado que o liga à Gra-Bretanha desde 1902, mas também porque a ocasião lhe parece azada para apropriar-se das bases alemãs na China, sobretudo no Xantum.A China também entra nominalmente na guerra para não se inferiorizar diante do Japão. Pág.25 Depois da África e da Ásia, o continente americano. Ao todo,onze países do hemisfério ocidental tomam parte na luta. A partícipação da maioria continua simbólica e não é de molde a modificar o equilíbrio das forças. O mesmo, porém, não se pode dizer da intervènção dos Estados Unidos. Em abril de 1917 o Presidente Wilson propoe ao Congresso o rompimento das hostilidades. Ao todo, contando os domínios briânicos, uns trinta e cinco lotados participaram do conflito. Todos os continentes foram arrasliáos a ele: centenas de milhões de homens. É a primeira vez na história que uma conflagração assume tamanha amplitude e essa extensão Incorre do prolongamento da guerra. Foi porque a luta durou tanto limpo que numerosos países sobrepujaram as próprias hesitações, ou acabaram cedendo à pressão dos primeiros beligerantes. O objetivo é sempre romper o equilíbrio, ou restabelecê-lo se for ameaçado. O prolongamento anormal da campanha e sua extensão insólita são duas causas das inovações desse litígio, terceiro aspecto de sua singularidade. As Formas Novas Precisamente por ser uma guerra de posições, a luta exige a particípaçao de forças cada vez maiores. É a primeira experiência a cujo propósito se pode empregar, sem exagero, a expressão "guerra total".Está visto que é menos total — se assim podemos dizer — do que a segunda Guerra Mundial; mas já apresenta características tão originais que assinala uma mudança profunda, um rompimento com os hábitos tradicionais. Os Efefivos Em primeiro lugar, observe-se a mobilização dos efetivos levada a um grau até então desconhecido. As guerras tradicionais jogavam com efetivos que não ultrapassavam algumas centenas de milhares de homens . A opinião pública ficara estupefata, em 1812, com o Grande Exercito empregado na Rússia e que se compunha, mais ou menos,600.000 homens. A cifra parece irrisória diante dos milhões, e até dezenas de milhões, de homens mobilizados nesses quatro anos.Na França — o país que levou mais longe a mobilização dos efetivos- arregimentaram-se cerca de 8,5 milhões, numa população que não chegava então a 40 milhões, ou seja, mais de um quinto dos habitantes,para 14 milhões de alemães. Em 1916, a Gra-Bretanha introduz a conscrição . A Rússia mobiliza tanta gente que lhe falta material. Pág.26 A Mobilização dos Recursos Ora, urge abastecer esses milhões de homens, dar-lhes munições.O grande temor dos estados-maiores e dos ministros da guerra no outono de 1914 é menos a ruptura do front ou a falta de homens do que a possibilidade de se esgotarem os estoques de munições: ninguém contara com uma guerra comprida e, no princípio do outono, as reservas estão exauridas. Foi preciso, portanto, forjar completamente, a partir do nada, uma indústria de guerra, criar fábricas de armamentos, recrutar uma mão-de-obra substituta, em grande parte feminina, que rendesse os homens mandados para a frente de batalha. Também se chamaram de volta os especialistas, objeto de designações especiais. Foi preciso dirigir a economia: o Estado teve de regulamentar,controlar, organizar e racionar recursos que se esgotavam e que não se proporcionavam às necessidades da indústria de guerra ou do abastecimento da população. Tornaremos a ver o alcance longínquo e as consequências institucionais, administrativas e psicológicas dessa intervenção crescente do poder público, e do controle exercido sobre todas as atividades econômicas e sociais. As Novas Armas Em terceiro lugar, a guerra põe em jogo armas novas. Ao choque militar propriamente dito, acrescenta-se uma luta econômica, que visa a atingir o adversário em sua economia de produção, paralisando-lhe a atividade, obstando à chegada de matérias-primas. Os Aliados bloqueiam os impérios centrais. Dispondo do domínio dos mares, arrimados à fábrica norte-americana, tentam isolar os impérios centrais e obrigá-los a capitular pela asfixia. A Alemanha responde com a guerra submarina; agora é a sua vez de bloquear as ilhas britânicas e apoderar-se de todos os navios mercantes, incluindo os que ostentam pavilhão neutro e transportam material de guerra destinado à França ou à Grã-Bretanha, ou simplesmente produtos destinados a abastecer a população ou a indústria. Dessa maneira, tudo se encaminha para a prática de uma guerra efetivamente total. Guerra econômica, mobilização da população civil: outras tantas etapas do deslizamento da guerra para formas radicais. No século XIX,a vida civil prosseguiu à margem da conflagração. Já não acontece o mesmo desde o ano de 1914. Pág.27 A Guerra Psicológica Não podendo abrir brechas no front, tenta-se transformá-lo atingindo-lhe o moral.Esse é o objetivo dos bombardeios das capitais e cidades abertas. É também a razão de ser da propaganda. A importância do fator moral cresce à proporção que o litígio se prolonga.Evidencia-se de maneira cada vez mais clara que nenhum dos campos possui os meios de conseguir uma vantagem estratégica; a lassidão e o desgaste do moral darão, portanto, a vitória a um dos dois. Ora, em 1917, os dois campos se aproximam do ponto de ruptura.Dai a importância capital do ano de 1917, em cujo decorrer a guerra poderia ter tomado outro curso, talvez até acabado: ela já dura há três anos. 1917 sucede ao ano de Verdun, 1916, em que a Alemanha e a Jirança se esgotaram sem conseguir vantagem alguma. Em 1917, vários países se aproximam do ponto crítico, em que tudo é possível, a capitulação, a paz branca. Isso aplica-se à Rússia em primeiro lugar, mas também se aplica à França. É o momento decisivo da guerra. A Revolução russa modifica repentinamente a relação das forças em detrimento dos Aliados, embora o primeiro governo russo tenha declarado sua intenção de não ensarilhar as armas e permanecer fiel aos compromissos internacionais da Rússia. A revolução, porém, não tarda a desorganizar a máquina de guerra, a enfraquecer a vontade de guerra.É normal que a Rússia seja a primeira a ceder: foi o país que pagou o maior tributo em homens, que sofreu as baixas mais pesadas. Mal preparada para a guerra, não soubera aproveitar as lições da derrota diante do Japão em 1905. Sua organização é defeituosa, há falta de material, a intendência é precaríssima; durante três anos, fazendo das tripas coração, os soldados disfarçaram essas falhas a poder de coragem; mas o cansaço acabou levando a melhor. A primeira revolução russa, seguida da segunda, em outubro e novembro de 1917, acarreta duas ordens de consequências para a história da guerra. Primeiro, as consequências militares. Com a paz separada de "Brest-Litowsk produziu-se, em favor da Alemanha, a famosa ruptura equilíbrio que os estados-maiores vinham procurando havia três anos.Com um dos principais beligerantes fora de jogo, o Grande Estado-Maior alemão poderá transportar para o Oeste a quase totalidade suas forças; as divisões do Leste atravessam a Alemanha e são transferidas para a frente ocidental. Ora, nesse exato momento, franceses ingleses acabavam de conter a investida alemã. A entrada dos Es- Pág.28 tados Unidos na guerra, em abril de 1917, deixa esperar,sem dúvida,o restabelecimento do equilíbrio, e até sua inversão em favor do Oeste.Mas a inversão só poderá produzir-se ao cabo de um ano ou dezoito meses, pois os Estados Unidos, que não possuem nenhuma força militar, são obrigados a improvisar, a partir do nada, um exército e uma indústria de guerra. As primeiras unidades chegam no outono de 1917 e só no verão de 1918 as forças americanas começam a empenhar-se de modo maciço. Há, portanto, um hiato de quase um ano; serão os Aliados capazes de resistir até lá? Em seguida, as consequências políticas. A revolução russa desperta sentimentos até então contidos pela união sagrada e abala a vontade de levar a guerra até o fim. Para alguns, é um exemplo que deve ser seguido. O socialismo de esquerda passa por uma renovação de vitalidade: o derrotismo revolucionário acorda e junta-se ao desejo da paz. Na França, e principalmente na Itália, onde parte da opinião pública só entrou na guerra mau grado seu (socialistas, sindicalistas,católicos), despertam os fermentos da divisão. Conjugada com o desgaste físico e nervoso, a ação dessas forças centrífugas explica que 1917 seja o ano turvo, o ano difícil: greves nas fábricas de armamentos na França, motins que se alastram pelas unidades no front. Certos políticos preconizam a abertura de negociações para uma paz branca. O derrotismo levará a melhor e os impérios centrais ganharão a guerra? Mas uma reviravolta da situação em novembro de 1917 faz que na França — peça principal da coalizão — acabe prevalecendo a vontade de continuar até o fim: a chegada de Clemenceau à presidência do Conselho e a formação de um gabinete decidido a prosseguir na guerra até o final põem termo às negociações, derrubam o derrotismo;os políticos suspeitos de sonhar com uma paz branca são arrastados às barras do Supremo Tribunal. Em 1918, inverte-se a situação. O reerguimento do moral, a nomeação de um comandante interaliado que coordena o conjunto das forças militares do Oeste, a intervenção dos norte-americanos e, finalmente, a vitória, o armistício de 11 de novembro de 1918. Pag.29 AS CONSEQUÊNCIAS DA GUERRA A luta c a vitória dos Aliados tiveram consequências múltiplas e decisivas. Não deixam praticamente nada no estado em que a guerra encontrou os aliados em Julho de 1914. A figura da Europa e a fisionomia do mundo saem profundamente transformadas desses quatro anos. Tomaremos a situação em 1920, após a Conferência da Paz e a assinatura dos diferentes tratados que regulam as divergências do conflito. l. AS TRANSFORMAÇÕES TERRITORIAIS As consequências mais aparentes, que decorrem diretamente das operações militares, são as transformações territoriais. Consideráveis.O mapa da Europa sai de tudo isso de pernas para o ar: não deixa de ser interessante procurar um atlas e examinar, paralelamente, o mapa da Europa antes e depois da guerra. A Conferência da Paz inaugura-se em Paris, em janeiro de 1919.Nela estão representados vinte e sete países. Número tão grande que permitirá uma negociação rápida e eficaz. Logo se constituí um organismo mais restrito, chamado Conselho dos Dez — os dez países representaram o papel mais importante na guerra. Acima do Conselho dos Dez, o Conselho dos Quatro: Estados Unidos, Inglaterra,França e Itália, reduzidos por um momento a três em virtude da defecção do Presidente do Conselho italiano, Orlando: o Presidente dos Estados Unidos, Wilson, o Primeiro Ministro britânico, LIoyd George,o presidente do Conselho francês, Georges Cleméceau. Foi o Conselho dos Quatro que tomou as decisões capitais e arbitrou as divergências entre pretensões rivais. Pág.30 O Tratado de Versalhes é o mais conhecido, mas não é o único:segue-se-lhe um cortejo de tratados que põem fim à guerra com os aliados da Alemanha, com seus herdeiros ou com as potências balcânicas. Esses tratados têm todos o nome de castelos ou residênciasreais dos subúrbios parisienses: o Tratado de Sèvres com o Império Otomano, o de Trianon com a Hungria, o de Saint-Germain com a Áustria, o de Neuilly com a Bulgária. São assinados em 1919 e 1920.Eis a razão pela qual tomo o ano de 1920 como ponto de referência:é o momento em que todos os tratados começam a ser aplicados. Através deles se consagra a derrota dos grandes impérios. Quatro impérios desaparecem ou são substancialmente amputados: é uma mudança de primeira grandeza. Será preciso remontar ao Congresso de Viena ou à Paz de Vestfália para encontrar um equivalente da subversão territorial de 1919 e 1920. A Áustria-Hungria deixa de existir. A Áustria e a Hungria, até então reunidas por um elo dinástico, desmembram-se. Separam-se as duas cabeças de águia. As nacionalidades sujeitas constituem outros tantos Estados nacionais. Verifica-se, ao mesmo tempo, o fim do dualismo e a desintegração do império dos Habsburgos. As forças centrífugas sobrelevam a coesão: a série de tratados consagra a emancipação das nacionalidades. A Romênia sai aumentada: as províncias da Moldávia e da Valáquia, que tinham conseguido sua independência no Congresso de Paris (1856), haviam-se unido e logo se tinham transformado no reino da Romênia. Este se acrescentou na direção do oeste, no rumo da Transilvânia, além dos Cárpatos, em detrimento da Hungria, na direção do nordeste, da província da Bessarábia destacada da Rússia, e na direção do sul, da Dobruja disputada pela Bulgária e pela Romênia. A Romênia é uma das grandes beneficiárias da paz. Nasce uma grande Sérvia, que reúne o reino da Sérvia, o reino de Montenegro, a Bórnia e a Herzegovina, que eram, desde 1878, uma espécie de mandato austríaco, a Macedônia. Tudo isso constitui um grande reino da Iugoslávia, que une os sérvios, croatas e eslovenos. No norte, assiste-se ao nascimento do Estado tchecoslovaco, que reúne o antigo reino da Boêmia, da Eslováquia e da Rutênia subcarpática. Três Estados consideravelmente ampliados, ou até criados do nada,ao lado de uma Áustria reduzida à sombra de si mesma e de uma Hungria despojada de suas minorias, que passaram para o domínio dos eslavos. É a fragmentação da Europa danubiana. Pág.31 É também o fim do Império Otomano, acontecimento talvez ainda mais considerável do que o fim do império dos Habsburgos. Não se trata apenas da solução da questão do Oriente, mas da conclusão um milénio de história. O desaparecimento do Império Otomano encerra uma história que começa no século XI, com a chegada dos turcos à Anatólia, e continua com a tomada de Constantinopla em 1453. O Tratado de Sèvres completa o balanço das guerras balcânicas.Em 1912, o Império Otomano precisara renunciar a quase todas as nas possessões europeias; em 1920, perde três quartas partes de suas possessões asiáticas. A Turquia — nome que assume o ex-Império Otomano — reduz-se ao platô anatoliano. Depois de haver recuado diante da Europa, ei-la na Ásia obrigada a ceder às reivindicações das nacionalidades da Ásia Anterior. Novos Estados surgem das ruínas do Império Otomano: o Iraque, a Síria, o Líbano, a Palestina, a Transjordânia. O Império Otomano desaparece como força política. O califado será ab-rogado alguns meses depois. Os dois outros impérios sofrem menos: não acabam de todo.Se a Áustria-Hungria se desintegra e o Império Otomano desaparece,a Rússia e a Alemanha subsistem, mas são submetidas a amputações de vulto. A Rússia perde todas as suas conquistas dos dois últimos séculos.A fachada ocidental, laboriosamente construída por Pedro, o Grande,é Catarina, esboroa-se de golpe. Reconstitui-se uma grande Polônia,que se estende na direção do leste, em detrimento de parte da Rússia Branca e da Ucrânia russa. A Finlândia conquista sua independência.Formam-se três Estados bálticos a partir das províncias conquistadas outrora aos suecos: a Estônia, a Letônia e a Lituânia. Enfim, como vimos, a Rússia teve de ceder a Bessarábia à Romênia. É um recuo considerável para o leste. Eis a Rússia repelida em toda a linha. Em 1920, de resto, as fronteiras ainda não estão fixadas; nesse caso, não é a data de 1920 que se deve tomar como ponto de referência, mas a de 1922; em 1920, está no auge a guerra entre a Rússia e a Polônia,e os cavaleiros de Budienny chegam às portas de Varsóvia. É em 1922 que a Rússia reconhece suas perdas territoriais e faz as pazes com a Polônia e os Estados bálticos. Dos quatro grandes impérios, o menos tocado foi mesmo a Alemanha, que perde cerca de um sétimo de seu território europeu e todas as colônias. Dos quatro, era a única potência colonial; vê-se obrigada a ceder todas as colônias, repartidas entre a França, a Inglaterra, o Japão e a África do Sul. Na Europa, a oeste, devolve à França a Alsácia e a parte anexada da Lorena; à Bélgica, os chamados cantões Pág.32 redimidos: Eupen e Malmédy. O território do Sarre é submetido, pelo espaço de quinze anos, a um estatuto provisório, enquanto aguarda um regulamento definitivo em 1935, Mas é a leste que a Alemanha sofre as mutilações mais sensíveis: a Polônia reconstitui-se, em parte, à sua custa. A Posnânia, a Alta-Silésia estão perdidas, Dantzig foi destacada, erigida em cidade livre. Um corredor separa, doravante, a PrússiaOriental do Brandeburgo e da Pomerânia. O Schleswig do Norte é abandonado aos dinamarqueses. A margem esquerda do Reno assim como certo número de cabeças de ponte na margem direita são objeto de uma ocupação militar que deve durar até 1935. Assim, no plano territorial e sem nos anteciparmos às outras mudanças, políticas, econômicas ou sociais, a guerra, sancionada pelos tratados de 1919 e 1920, acarreta o desmembramento de dois grandes conjuntos históricos — a Áustria e o Império Otomano — e a multiplicação dos Estados — visto que se criam ou reconstituem a Polnia,a Tchecoslováquia, a Finlândia, os Estados bálticos — sem contar os que se acrescentam, como a Romênia e a Sérvia. Se examinarmos os princípios que nortearam as negociações, clara e indelevelmente expressos nos tratados, este é o triunfo do movimento das nacionalidades, a coroação da série de arremetidas que, em 1830,1848 e 1860 haviam, pouco a pouco, libertado as populações oprimidas e unificado as nacionalidades separadas. A Itália recupera as terras irredentas, emancipam-se as nacionalidades eslavas, plebiscitos permitem aos povos pronunciar-se livremente. Claro está que ainda subsistem minorias, porém menos numerosas do que antes de 1914, e são agora as nacionalidades dominadoras de ontem que estão sujeitas a seus antigos vassalos: as minorias húngaras, na Tchecoslováquia, na Transilvânia romena ou na Iugoslávia. Se, do quadro do Estado-nação, passarmos a conjuntos mais vastos,a nova divisão territorial assinala o recuo do germanismo e o progresso dos eslavos. Quase todos os novos Estados são eslavos: Polônia,Tchecoslováquia, Iugoslávia. Em consequência disso, modifica-se profundamente o equilíbrio das forças e dos blocos étnicos no interior da Europa. Se procurarmos destacar a resultante em relação à hegemonia política e militar, tudo concorre para a primazia da França. Foi a França quem ganhou a guerra. A lembrança de Verdun eclipsa todas as outras batalhas. O exército francês impôs-se como o primeiro da Europa e do mundo. As instituições da França são copiadas pela maioria dos novos Estados: a Tchecoslováquia, a Polônia e outros países adotam constituições inspiradas no modelo político da França. A maioria desses Pág.33 Estados é constituída de aliados e clientes seus. Para manter a perenidade do tratado de Versalhes, a França apoia-se na barreira oriental que circunda os vencidos: Alemanha, Áustria, Hungria. Todos os novos Estados devem seu renascimento ao exército e à diplomacia franceses. 2. OS REGIMES POLÍTICOS A variedade das formas cujo desenvolvimento seguimos a partir do século XVIII sofreu notáveis alterações em 1920. A vitória dos Aliados é também a vitória das democracias e da democracia, que assim triunfa do Antigo Regime, dos impérios auto-craticos , dos regimes autoritários. A identificação dos vencedores com princípios da democracia aumentou desde que, em 1917, a Rússia czarista abandonou a guerra e foi substituída pela grande democracia americana: já não há anomalia, o desencontro Rússia-Estados Unidos acaba de identificar um dos campos com os princípios e os valores da democracia. É o desaparecimento dos impérios históricos, escorados no princípio da legitimidade. As dinastias seculares são destronadas: primeiro os Romanovs na Rússia, em 1917, e depois, no fim de 1918, os Habsburgos e os Hohenzollerns; não tardará tampouco a deposição do sultão e a abolição do califado. Em toda a parte, as revoluções provoam a queda dos tronos. É uma espécie de renovação de 1789 ou 1848 . Para os contemporâneos, a vitória da França, da Inglaterra e dos Estados Unidos aparece como o resultado de mais de um século lutas, como a desforra do Congresso de Viena, como a consagração da democracia. Sobre as ruínas desses regimes aristocráticos, monárquicos, absolutistas, instala-se a democracia. Proclama-se a república na Alemanha e na Áustria. As assembléias adotam constituições democráticas. Na Alemanha , o Parlamento reunido em Veimar estende o direito de voto ás mulheres , decide a eleição do Presidente da República pelo sufrágio universal. Logo depois da guerra, a Grã-Bretanha remata a evolução encetada em 1832, suprimindo as últimas exceções ao sufrágio universal. Logo depois da guerra entram também em vigor as modalidades enunciadas pela lei eleitoral de 1912 na Itália, reduzidos ou anulados os prazos que ela previa. Na França, modifica-se o regime eleitoral introduz-se a representação proporcional, considerada a mais democrática. Pág.34 A democratização vai além das formas políticas: chega à organização social, à regulamentação dos problemas do trabalho. O governo Clemenceau instaura na França, em 1919, o dia de 8 horas. O Tratado de Versalhes é o primeiro a comportar um capítulo que interessa a organização das relações sociais. Institui-se o Bureau Internacional do Trabalho, que deve preparar a codificação das legislações sociais, a elaboração de uma carta internacional do trabalho e das relações entre empregadores e empregados. A democracia estende-se, por fim, às próprias relações internacionais, acabando com a diplomacia secreta, responsabilizada pela deflagração do conflito. Segundo uma tese então muito difundida, a guerra saiu das negociatas oficiosas das chancelarias. Se se expusesse a diplomada em praça pública, os povos diligenciariam para que ela não alimentasse novos conflitos. Acredita-se que a substituição da diplomacia secreta por uma diplomacia praticada em praça pública suprimirá os germes do litígio. A Sociedade das Nações estende às relações internacionais princípios e práticas que pouco a pouco se generalizaram no interior dos Estados: discussão pública, deliberação parlamentar, regulamentação das questões pendentes da maioria dos sufrágios. A Sociedade das Nações é a universalização do regime parlamentar e, aparentemente, o triunfo definitivo do direito sobre a força, a instauração de uma ordem jurídica que destrona as soluções de violência. Dessarte, tanto nos remanejamentos territoriais, inspirados no princípio do direito dos povos de disporem de si mesmos, quanto na nova organização política, social e internacional, a nova ordem da Europa de 1920 inspira-se na democracia. Na distensão que se seguiu ao armistício, na euforia propícia às ilusões, os contemporâneos puderam cuidar-se chegados ao fim da história; a Europa e o mundo após ela encontravam o término de suas inquietações, de suas misérias. Era a vitória do direito e o triunfo da democracia que coroava a marcha da humanidade para uma sociedade mais humana, mais livre e mais justa. Apesar de tudo, porém, esse aspecto só constitui parte da realidade: a mais visível; o recuo do tempo e uma visão retrospectiva projetam luz sobre outro aspecto, menos imediatamente perceptível, menos risonho também e cujos traços se revelarão pouco a pouco. Com efeito,o fim das hostilidades e a regulamentação dos conflitos não suprimiram ipso facto certo número de problemas, alguns nascidos da guerra, outros anteriores a ela, mas que a guerra não resolveu. Pág.35 Por sua duração, extensão e características, o conflito provocou toda a sorte de mudanças, algumas das quais produziram, por seu turno,os irreversíveis. A conflagração foi causa de múltiplas subversões,que interessam a economia, a sociedade, os costumes, as idéias e as mentalidades e cujos efeitos, que só se farão sentir aos poucos, não serão igualmente acentuados em todos os países, pois estes foram desigualmente atingidos. A profundidade das subversões depende de duas coisas:da extensão de sua participação na guerra, visto que a amplitude das subversões é proporcional à intensidade do esforço de guerra-nesse sentido, evidentemente, a França é mais atingida que Portugal ; e da posição dos beligerantes no fim do conflito, a saber, se pertencem ao campo dos vencedores ou ao dos vencidos. Esse dado é decisivo.Para os vencidos se ajuntam, às destruições da guerra, que atingiram quase todos os países indistintamente, as misérias da derrota,a ocupação mais ou menos prolongada (no caso da Alemanha até 1930,embora a evacuação se faça vários anos antes da data inicialmente prevista), o peso das reparações impostas pelos tratados de paz, as conseqüências do desmoronamento dos regimes, a instabilidade disso decorrente e, afinal, os traumatismos causados pela amputação territorial,que desorganiza a economia e deixa uma ferida moral duradoura. Eis aí conjunção de encargos e sofrimentos que se adiciona, nos países vencidos , Áustria ou Alemanha, ao quinhão das consequências comuns da guerra. AS CONSEQUÊNCIAS DEMOGRÁFICAS As perdas humanas foram consideráveis em resultado da duração guerra e da amplitude dos efetivos empenhados: cerca de 9 milhões mortos, quase todos europeus. Só na França, 1.400.000; em números absolutos, é menos do que na Alemanha (1.700.000); relativamente, porém, essa hemorragia atinge com maior gravidade a população francesa, menos numerosa que a alemã — 39 milhões em 1914 contra 66 milhões — e cuja renovação se fará com maior dificuldade,uma vez que a França entrou, há muito tempo, no caminho da limitação da natalidade. Para o Reino Unido, mais de 700.000 mortos.A essas perdas cumpre aditar os milhões de mutilados e todas as conseqüências de ação retardada. Atingindo as classes mobilizáveis, entre 20 e 40 anos, tais perdas acarretam,por várias gerações, diminuição da natalidade. A pirâmide das idades ficou decepada por muito tempo: ainda hoje se pode ler,em seu perfil, a consequência da Primeira Guerra Mundial. O fenômeno repercutirá na geração seguinte, com a formação do que se deno- Pág.36 minará, depois de 1930, as classes ocas. Menos numerosas, as classes que chegam à idade da mobilização exigem, em março de 1935, que se estenda para dois anos a duração do serviço militar. O fenômeno das classes ocas repercutirá, por seu turno, na segunda geração. Essa perda de substância não interessa apenas o aspecto demográfico. Por suas incidências, atinge a economia, que priva de produtores e consumidores, e a defesa nacional; repercute na atividade intelectualdo país: basta pensar na longa lista de escritores mortos na guerra.De modo mais difuso, é um componente da sensação de envelhecimento que domina a Europa na década de 1920. A ausência dos pais desor-ganizou as famílias. Multiplicaram-se as situações familiares anormais: viúvas de guerra, pupilos da nação. Na Rússia, a guerra civil e a fome completam a guerra estrangeira; bandos de crianças erram, abandonados — cenas que serão ilustradas pelo cinema soviético. AS DESTRUIÇÕES ECONÔMICAS O balanço adiciona, ao mesmo tempo, as ruínas acumuladas pelas gerações militares, a destruição de riquezas, a perda de substancial sobretudo nos países ocupados e nos que foram teatro de operações de guerra; desse ponto de vista, a França foi mais gravemente atingida que a Alemanha. Cerca de 3 milhões de hectares devastados, pontes rebentadas, a rede ferroviária desorganizada, edifícios arrasados, minas inundadas pelos alemães no momento de evacuar o Passo-de-Calais. O balanço associa paradoxalmente às ruínas uma economia voltada para a guerra, superequipada, de reconversão contestável. Em quatro anos, os beligerantes engoliram, dilapidaram, em despesas improdutivas uma soma considerável de trabalho, recursos e capitais, razão do déficit orçamentário. Para fazer frente a essas despesas extraordinárias, todos os governos pediram dinheiro emprestado e o ônus da dívida aumentou em proporções consideráveis. A dívida pública da França passou, entre 1914 e o fim da guerra, de 33,5 bilhões de francos-ouro para 219 bilhões. Dívida interna, além da dívida externa; o problema das dívidas interaliadas pesará nas relações entre os europeus e os Estados Unidos ver-se-á, no fim de 1932, um governo francês derrubado pelo Parlamento porque pretendia honrar o compromisso de seus predecessores e pagar aos Estados Unidos a parcela da dívida que então se vencia.Ao mesmo tempo que recorriam a empréstimos, os governos apelaram para a emissão de papel, o que provocou uma inflação como nunca viu no século XIX. Pág.37 Além disso, a guerra deixa ao Estado o encargo dos créditos das vitimas de guerra. Os governos adotam o princípio de que as vítimas de guerra fazem jus à solidariedade da nação. É a célebre fórmula a propósito dos ex-comba tentes: "Eles têm direitos sobre nós!" Direitos fogo materializados pela carta de ex-combatente, pelo estabelecimento de pensões ,em formas que variam de um país para outro: nos Estados Unidos chama-se bonus, na França é a aposentadoria dos ex-combatentes. As vítimas de guerra são numerosíssimas. Sua administração exige a constituição de um departamento ministerial especial. A maioria dos países ex-beligerantes tem agora um Ministério das Pensões,dos Ex-Combatentes ou das Vítimas da Guerra. Todos os anos, parte apreciável do orçamento público se destina ao pagamento das pensões de guerra. A esses encargos ordinários, que pesam sobre todos os antigos beligerantes, acrescentam-se, para os vencidos, as reparações. Os Aliados fizeram questão de registrar no Tratado de Versalhes o reconhecimento, por parte da Alemanha, da sua culpabilidade: e estribam-se nesse artigo para legitimar suas exigências. É a frase famosa do Ministro das Finanças francês, Klotz: "A Alemanha pagará." Na realidade, a Alemanha não pagará e deixará em dificuldades a tesouraria dos vencedores, que contavam com as reparações para saldar suas dívidas haviam feito despesas cujo encargo recai sobre a tesouraria francesa ou britânica. Essa é uma das causas das graves crises financeiras que abalarão a estabilidade das moedas europeias, provocando-lhes a depreciação e a elevação dos preços na Alemanha (1923) e na França (1924-1926). AS SUBVERSÕES SOCIAIS A guerra teve sobre a ordem social e as relações entre grupos sociais consequências incalculáveis, que não se terão exaurido em 1939. Em primeiro lugar, a guerra criou um tipo social novo: o do ex-combatente. Dezenas de milhões de homens voltam aos lares, marcados por quatro anos de guerra; e, entre eles, estabeleceu-se uma soliedariedade de sentimentos e interesses. Há, doravante, uma mentalidade "ex-combatente", feita de altivez, fidelidade à lembrança dos mortos , apego à unidade (unidos como no front) e hostilidade instinva as divisões partidárias, aos políticos e às instituições parlamentares.É também um poderoso grupo de pressão e até mesmo, em certos casos ,uma força política, quando o mal-entendido entre o regime e os antigos combatentes atinge certo grau de gravidade. Pág.38 Do social passamos então ao político. Na França, várias recrutam partidários entre os ex-combatentes: é o caso, por exemplo das Cruzes-de-Fogo (Croix-de-feu). Na Alemanha, o Capacete de os ex-combatentes das tropas irregulares, que depois de 1919 prosseguiram numa luta sem esperanças contra os poloneses ou nos países bálticos, e o partido nacional-socialista jogam com a solidariedade dos ex-combatentes. Na Itália, o fascismo também buscará inúmeros adeptos entre os antigos combatentes. Ao lado dessa consequência direta, a guerra e a inflação conjugada precipitaram evoluções, acentuaram desigualdades ou disparidades na escala social, beneficiaram grupos, prejudicaram outros, acusaram discordâncias e envenenaram relações. A guerra enriqueceu produtores e intermediários, fabricantes de guerra, comerciantes. É o fenómeno dos novos-ricos, que ocupa um lugar tão proeminente na imprensa e na literatura do após-guerra; toda uma fauna de aproveitadores, muitas vezes improvisados fornecedores de guerra, embora nada os tivesse preparado para fabricar granadas ou sapatões para o exército, e que são os descendentes dos municionários de antanho. Não têm melhor reputação do que seus antepassados: toda a gente embirrava com eles por haverem ganho dinheiro em detrimento dos que se deixavam matar. O sucesso material dessa categoria de industriais de guerra, mercadores que especularam e traficaram, obriga ao reexame das crenças tradicionais na superioridade do trabalho, na virtude da poupança, e abala a estabilidade dos valores que constituíam o decálogo da moral liberal e burguesa do século XIX. No outro campo, no campo dos empobrecidos, das vítimas da guerra e da inflação, figuram todos os que, tendo rendas fixas, não a puderam reavaliar e sofreram o contragolpe da depreciação monetária É o caso dos rendeiros, tão numerosos na França, na Bélgica e na Inglaterra no século XIX: muitas pessoas viviam apenas do que lhe rendiam suas parcas propriedades. A mobilização da poupança pelo mecanismo da obrigação bolsista e dos fundos do Estado multiplicar os rendeiros. Atingidos pelos efeitos da depreciação monetária, são vítimas também da bancarrota dos Estados em que tinham confiado aos quais haviam emprestado suas economias. A Revolução Russa engole os bilhões que a França entregou à Rússia desde 1890 e que eram a contrapartida da aliança militar franco-russa. A caixa otomana já não está em condições de garantir os pagamentos. Na Hungria na Bulgária, o desmembramento dos Estados e a queda dos regime arruinam milhões de pequenos poupadores. Calcula-se que há na França cerca de dois milhões de portadores de fundos estrangeiros. Os que, Pág.39 no princípio da guerra, num rasgo de patriotismo, também haviam levado o seu ouro ao Estado para garantir os empréstimos e tinham recebido, em troca, simples pedaços de papel, estão agora sem recursos. Nos vencidos, a situação dessas categorias sociais é ainda agravado da pela revolução política: o caso extremo é o da Rússia, em que elas se acham juridicamente despojadas do seu emprego e das suas rendas . Grande número delas vê-se reduzido a emigrar: o fenômeno da emigração social e política assume certa amplitude. Os russos brancos , às dezenas de milhares, vêm fixar-se nos países da Europa Ocidental, que acolhe uma população flutuante de apátridas, desaposados de sua nacionalidade, que não têm nem solicitam a do país acolheu, e para os quais é preciso imaginar uma fórmula jurídica nova:a do passaporte Nansen, que lhes dá um estado civil. Tampouco se poupou o mundo rural: em conjunto, a agricultura foi uma das vítimas da guerra e da inflação. Ao contrário do que acontecerá na Segunda Guerra Mundial, caracterizada pela penúria e pelo mercado negro, os preços dos produtos agrícolas não seguem o ritmo da inflação; os preços dos cereais e dos outros produtos da terra permanecem bem aquém dos preços dos produtos industriais. A guerra acelerou o êxodo rural. As necessidades da indústria de guerra,das manufaturas de armamentos, criaram uma convocação de mão-de-obra; toda uma população desarraigada, arrancada ao seu gênero de vida habitual, à sua aldeia, procura trabalho e alojamento. A Europa do após-guerra conhece uma grave crise de habitação,mormente nos países em que a derrota acentua o fenômeno; o caso mais típico é o da Áustria, cuja capital, Viena, abriga, sozinha, uma quarta parte da população total do país. A guerra dissociou as estruturas tradicionais. Acarretou a extensão do trabalho das mulheres, ou melhor, já que a proporção não mudou tanto, a modificação dos setores: a mão-de-obra feminina, até então empregada nas tarefas domésticas, começa a trabalhar nas fábricas Todas essas subversões explicam que o fim da guerra tenha dado novo impulso a uma intensa pressão de agitação social. Os anos de 1910 a 1921, ou 1922, conforme os países, são marcados, até entre os vencedores, por uma efervescência de caráter revolucionário. O descontentamento social é atiçado pelo exemplo da revolução russa, revezada , por sua vez, pelas revoluções que afeiam a Europa Central, a Hungria, a investida espartacista na Alemanha, as jornadas de insur- Pág.40 reição de Berlim e de Munique. A onda de greves que avassala Europa não poupa país algum; a França vive em 1920 uma situação de greve quase geral, que paralisa os transportes e os grandes setores industriais; a Itália conhece, além disso, uma agitação agrária. Mercê dessa agitação, a classe operária obtém, de início, alguma conquistas sociais, como o dia de pito horas na França (1919). Mas o movimento, que provoca a profunda inquietação dos ricos e da classes médias, temerosos da bolchevização da Europa, não tarda a abortar. Em toda a parte se teme que os países venham a cair nas mãos do comunismo. Por isso mesmo, a agitação acaba deflagrando um fenômeno de reação contrária. O PAPEL DO ESTADO E AS RELAÇÕES No plano político, a guerra modificou o papel do Estado: se o ano de 1918 representa a vitória da democracia política, representa também o fim do liberalismo. Quatro anos de guerra transformarar as relações entre o poder e os indivíduos e as relações entre os próprio poderes públicos muito mais do que todo o século que se escoou após a derrota de Napoleão. AS RELAÇÕES ENTRE O PODER E OS INDIVÍDUOS Entre os poderes públicos e a iniciativa privada, individual coletiva, as máximas tradicionais do Estado liberal, até então reconhecidas e respeitadas, deixaram de ser viáveis durante a guerra. A filosofía liberal acantoava o Estado num domínio excessivamente restrito:manutenção da ordem, exercido da justiça, relações exteriores, defesa nacional. Quanto ao resto, o poder público devia abster-se de imiscuir-se num domínio que pertencia à iniciativa privada. Em toda a parte a guerra obrigou o Estado a sair desse papel e a mobilizar não só os os homens mas também os recursos materiais. A necessidade disso imposta pela eficácia, pelo desejo de ganhar a guerra, e também pela obrigação do mínimo de equidade indispensável à coesão moral da nação. O Estado, portanto, precisou tomar nas mãos a direção da economia regulamentar as atívidades, mobilizar todos os recursos. Tornou-se produtor, comanditário, empregador, cliente: o governo fixa as prioridades, faz os pedidos, constrói fábricas, orienta a pesquisa, distribui a penúria. Estende sua intervenção às relações entre os grupo sociais: de acordo com os sindicatos, regulamenta o nível dos salários Pág.41 e a duração do trabalho. Bloqueia os aluguéis e intervém nas relações entre proprietatários e locatários. Dessas inovações, muitas sobreviverão às circunstâncias que as impusramm.Por diversas razões, algumas das quais são dados de fato,a situação continua a exigir a intervenção do Estado. O fim da guerra não repôs a sociedade e a economia na situação anterior. Urge assegurar a desmobilização progressiva da enorme máquina de guerra e preparar-lhe a reconversão. A penúria persiste: muitos anos terão de passar até que se volte a encontrar um nível de produção capaz de satisfazer à demanda sem controle nem racionamento. Ademais, persistem os hábitos adquiridos: a guerra afetou duradouramente as relações entre o poder público e a iniciativa privada.Deixa traços na própria estrutura dos governos; as administrações criadas entre 1914 e 1918 sobrevivem a si mesmas; o número dos funcionarios , cresceu, o orçamento inchou. AS RELAÇÕES ENTRE OS PODERES PÚBLICOS Esse sistema de relações também sofreu profundas alterações: o reforço do papel do Estado, a extensão das atribuições do poder público não se realizam em proveito de todos os poderes indistintamente.A Evolução o fez-se em detrimento das assembleias e em benefício, sobretudo executivo. O executivo, de fato, estava melhor armado: em tempo de guerra,a politica exige, mais do que nunca, decisão rápida, continuidade na execução e eficácia. Só o executivo pode satisfazer a essas exigências.As assembléias, ao contrário, adaptam-se mal às necessidades da guerra:são demasiado numerosas para uma decisão rápida. As exigências do sigilo impedem que o governo as informe cabalmente do estado dos problemas e das suas intenções. É verdade que se improvisam processos de reserva, como os comités secretos: as Câmaras reúnem-se a portas fechadas e não se dá nenhuma publicidade aos seus debates. Apesar de tudo, ministros hesitam em divulgar, perante seiscentos parlamentantares, tudo o que sabem. O orçamento, que cresceu muito,já presta tão bem quanto antes de 1914 a um exame aprofundado .|Espera-se que as Câmaras depositem no governo uma confiança totale, não raro, cega. Escapa-lhes a decisão, relaxa-se-lhes o controle.É impressíonante o contraste entre o triunfo aparente da democracia e, prática, a inadaptação cada vez maior do regime parlamentar ás novas condições do exercício do poder, às necessidades obietivas da situação e às disposições dos espíritos. Nesse contraste entre a aparência e a realidade, entre os princípios declarados e as possibilidades Pág.42 práticas, reside um dos germes da crise que a democracia parlamentar atravessará no espaço de tempo compreendido entre as duas guerras. OS EFEITOS SOBRE OS ESPÍRITOS A guerra, seus problemas e suas consequências também produziduziram efeitos sobre o espírito público/consequências de ordem inlectual, moral, psicológica e ideológica. Talvez sejam até as mais profundas e duradouras; algumas ainda se fazem sentir na véspera do segundo conflito mundial. Basta retomar, completando-as, certas incações sugeridas a propósito das subversões sociais ou políticas. A guerra abalou o respeito aos valores tradicionais. A Europa liberal, a Europa democrática, repousava num pequeno número de postulados fundamentais, admitidos universalmente, que foram, de pente, reexaminados. O espetáculo da matança prolongada e generalizada projeta uma sombra sobre o otimismo do século XIX, sobra confiança das gerações precedentes na próxima instauração de uma sociedade melhor, mais livre e mais justa. Em segundo lugar, os sacrifícios suportados, a tensão imposta e o esforço de guerra provocam uma reaçao de compensação, o desejo de recuperar os anos perdidos, de tomar uma desforra contra tanto sofrimentos. É o apetite de gozo que os escritores concordam em descrever como característico da década de 1920. Não nos deixemos,contudo, iludir por testemunhos parciais e não generalizemos indevidamente. Tendemos amiúde a extrapolar a partir de situações muito localizadas: o mesmo erro nos apresenta toda a França do Diretório entregue aos prazeres das "merveilleuses" e dos “muscadins", ou a Europa depois de 1945 adotando o existencialismo de Saint-Germaindes-Prés. A descrição não se aplica às aldeias nem aos burgos. Em compensação, o apetite de gozo, a busca do prazer e do luxo, que se estadeiam nas capitais, contribuíram para a desmoralização do país. A provação da guerra desenvolve efeitos de sentidos contrário É o que se constata em dois exemplos: a religião e o patriotismo. No tocante à religião, a provação despertou com frequência o sentimento religioso ou a inquietação metafísica sobre o sentido do destino humano; a guerra provocou inúmeros retornos à prática, foi causa uma onda de conversões. Ao mesmo tempo, porém, pelo escândalo que representa, pelo desmentido permanente da fraternidade do Evangelho e por se haverem deixado as Igrejas, em todos os países, envolvei no esforço da guerra, esta divorciou da fé um sem-número de espíritos. No tocante à ideia nacional, idêntica dualidade de consequências psicológicas e ideológicas. De um lado, a guerra e seus malefícios esti Pág.43 mularam o pacifísmo: parte da opinião pública consagra-lhe um horror instintivo, insuperável; a literatura do após-guerra é pacifista, numa reação contra a publicidade mentirosa e a propaganda bélica, e descreve os horrores, as atrocidades ou a monotonia das trincheiras. A estimulou o internacionalismo: para impedir-lhe o retorno, todos estão prontos para todas as experiências,para todas as soluções. O exemplo dado pelos bolchevistas e o derrotismo revolucionário comunicam ao antímilitarismo, ao pacifismo e ao internacionalismo tradicional intensidade sem precedentes. A aspiração à paz, talvez a aspiração fundamental da Europa do após-guerra, explica as negociações para o desarmamento, a confiança nas instituições internacionais, a simpatia pela Sociedade das Nações, o Pacto Briand-Kellog, que, em 1928, colocará a guerra fora da lei, e o que o nome de Briand simbolizará para a opinião pública francesa. Por outro lado, todavia, as lembranças de guerra, a decepção gerada pela derrota ou, entre os vencedores, por resultados considerados inferiores aos sacrifícios aceitos, exasperam o amor próprio e o orgulho nacional. É um dos componentes do espírito do "ex-combatente": dele procederão os regimes autoritários. Uma das razões de queixa articuladas contra a democracia pelo fascismo na Itália, pelo nacional-socialismo na Alemanha e pelos regimes congêneres é que ela sacrificou a honra e o interesse nacionais, permitiu que se dilapidassem as conquistas do esforço de guerra ou até, no caso da Alemanha, o exército pelas costas. Em toda a parte, a guerra engendra reações contraditórias: aspiração à ultrapassagem dos particularismos nacionais e exasperação desses mesmos particularismos. Em 1920, nos Estados Unidos, o redespertar isolacionismo leva os republicanos à Casa Branca. O Congresso põe em vigor uma legislação neutralista e adota leis que restringem a imigração. EUROPA NO MUNDO E AS RELAÇÕES ENTRE OS CONTINENTES A guerra também modificou as posições relativas. Em 1914, a Europa detinha uma preponderância incontestada, universal. A guerra abalou os fundamentos dessa preponderância. A Europa despojou-se dela aos poucos: não imediatamente; é um caso em que as consequências da luta não se fazem sentir todas num pronto. Os anos de guerra permitiram uma ascensão rápida dos outros continentes. Obrigados a passar sem os fornecimentos europeus, ou lotados pela Europa a contribuir para o seu esforço de guerra, os Pág.44 países novos foram levados a industrializar-se. Inverteu-se o balanço das contas: de credora, a Europa passou a devedora. Os Estado Unidos detêm a metade do estoque mundial de ouro, embora, até então, fosse a Europa a detentora de todas as riquezas do mundo. Á americanização do gosto conduz a Europa a abrir-se a outras civilizações ao mesmo tempo que a faz duvidar de si mesma, da legitimidade da sua dominação, da superioridade da sua civilização e do seu futuro. A Europa descobre a própria fragilidade. Nos anos que se segues ao fim da guerra aparecem vários escritos que, pela primeira vez, esxpressam essa incerteza. O geógrafo Demangeon publica um trabalho intitulado O Declínio da Europa, título impensável antes de 191 Foi quando Valery escreveu o artigo famoso: "Nós, as civilizações sabemos agora que somos mortais..." Guardemo-nos, todavia, de forçar o traço. Não há revolta nas colônias que permaneceram leais durante a guerra. Mas já existem sinais precursores de uma inversão de tendência e de um declínio rela tivo da Europa em relação ao resto do mundo. Eis aí um quadro sucinto das sequelas da guerra e dos elemento! da crise por que passará a Europa nos anos de 1919 a 1925. A crise terá maior ou menor gravidade, conforme o país; em alguns, será rapidamente reabsorvida. Nos anos de 1925 e 1926, a Europa tem iimpressão de haver superado a crise. Restabeleceu-se a economia começa para ela a chamada era da prosperidade. A paz parece consolidada. É o belo período da SDN, que deu provas de eficácia. vencidos parecem aceitar a derrota com a assinatura do Pacto de locarno (1925); estabilizam-se os novos Estados, o mundo recome a viver. Tem-se a impressão de que o após-guerra terminou. Na verdade, porém, os problemas não estão resolvidos; as falhas não tardarão a reaparecer e outras divergências voltarão a encaminhar a Europa para a guerra. Todo o sentido do período compreendido entre 1919 e 1939 pode encerrar-se na passagem do após-guerra para antes-da-guerra.