0# CAPA 30.4.14 VEJA www.veja.com Editora ABRIL edição 2371 - ano 47 – nº18 30 de abril de 2014 [descrição da imagem: caricatura da presidente Dilma e de Lula. Cada um de um lado da capa da revista, puxando, cada um para si, a faixa presidencial. Dilma tem cara de quem faz muito esforço, olhos arregalados e boca aberta. Do outro lado Lula tem um sorriso e pisca com o olho direito; A faixa presidencial já começa a rasgar no meio.] SE PUXAR MAIS, RASGA! O cabo de guerra no PT entre os seguidores de Dilma e os de Lula ameaça a reeleição mais do que os candidatos da oposição. [descrição da imagem: parte superior direita, a imagem do Cristo Redentor, com uma grande bandeira das Olimpíadas na frente] OLIMPÍADA Os obstáculos que o Rio precisa vencer para sediar um grande espetáculo. [descrição da imagem: foto do Reservatório de Jaguari, em SP, parte do sistema Cantareira, completamente vazio de água, com o chão ressecado, rachado] CRISE ANUNCIADA Os riscos do racionamento de água e energia. ______________________________ 1# SEÇÕES 2# PANORAMA 3# BRASIL 4# ECONOMIA 5# GERAL 6# GUIA 7# ARTES E ESPETÁCULOS _________________________________ 1# SEÇÕES 30.4.14 1#1 VEJA.COM 1#2 CARTA AO LEITOR – AS VIRTUDES DE DILMA 1#3 ENTREVISTA – NADIA TOLOKONNIKOVA – ELA NÃO TEM MEDO DE PUTIN 1#4 CLAUDIO DE MOURA CASTRO – A CASA É ECOLÓGICA, A BUROCRACIA NÃO 1#5 MAÍLSON DA NÓBREGA – NÃO DESANIME 1#6 LEITOR 1#1 VEJA.COM QUANTAS TERRAS EXISTEM NO UNIVERSO? A descoberta, no último dia 17, do Kepler-186f, planeta fora do sistema solar semelhante ao nosso, foi apenas a primeira de uma série de revelações que virão das dezenas de missões de busca de lugares que possam abrigar vida fora da Terra. “Estamos descobrindo que há muitos planetas assim, o que amplia a chance de existir vida lá fora”, diz, em entrevista ao site de VEJA, a astrofísica Elisa Quintana, principal pesquisadora da Nasa responsável pela descoberta do Kepler-186f. Reportagem mostra ainda como a ciência avança na exploração do universo e traz uma lista dos prováveis candidatos a Nova Terra. ALÉM DA BOLA Como todo esporte de massa, o futebol ajuda a entender as sociedades em que ele é popular. Em uma série de reportagens especiais, o site de VEJA mostra, por exemplo, como a escalação da seleção da Bósnia reflete conflitos étnicos do país, por que a equipe italiana tem dificuldade para absorver filhos de imigrantes e como moradores de Barcelona, que lutam pela separação da Catalunha, torcem contra a seleção espanhola. MARQUETEIRO POLÍTICO: PRODUTO DE EXPORTAÇÃO O marketing político virou produto de exportação brasileiro. Profissionais dessa área hoje são requisitados para fazer campanhas na América Latina, América Central, África e até na Europa. Como e por que isso ocorreu? Reportagem de VEJA.com mostra que ricas tradições de propaganda e teledramaturgia, combinadas a um moderno ferramental de pesquisas eleitorais, fazem o cacife dos marqueteiros brasileiros. OS PLANOS DO EBAY PARA O BRASIL O eBay, gigante do e-commerce, está de olho no Brasil. Depois de autorizar os brasileiros a fazer compras na plataforma usando cartão de crédito nacional e boleto, a companhia americana vai lançar um recurso que permite que os consumidores paguem antecipadamente taxas relativas à importação de itens, reduzindo o risco de os produtos pararem na alfândega. Em entrevista, Wendy Jones, que traça as estratégias do eBay para o Brasil, detalha os planos e diz quais são os bens mais procurados por brasileiros no site. "Eles compram itens vendidos aqui por preços muito salgados." 1#2 CARTA AO LEITOR – AS VIRTUDES DE DILMA Uma reportagem desta edição de VEJA mostra como a perspectiva de perda do poder desencadeou no PT um sentimento de desespero que abriu feridas antigas e novas entre as diversas facções do partido. O fato gerador da crise foi a divulgação de uma pesquisa apontando que a aprovação do governo da presidente Dilma Rousseff recuou de 36% para 34%. Muitos analistas dão esse número como a barreira que separa os presidentes candidatos à reeleição com grande chance de vencer daqueles fadados a perder o cargo nas urnas. Por esse prisma, Dilma estaria, então, saindo da região de conforto e entrando em uma área de perigo para sua candidatura. Uma das alas mais alarmadas com a ameaça de dar adeus aos confortos do poder se uniu em torno de uma temerária campanha pela volta de Lula como candidato do PT nas eleições presidenciais deste ano. Ora, nem em política dois corpos podem ocupar o mesmo lugar no espaço. Portanto, o "volta Lula" produz automaticamente o "fora Dilma". Isso acrescenta enorme complexidade à maquinação em curso. A reportagem de VEJA revela que essas manobras estão sendo feitas sem que o próprio Lula tenha dado sinais de que as aprova. Embora, por outro lado, também não se registre nenhuma reação pública de desconforto de Lula com as especulações em torno de seu nome, é evidente que o ex-presidente sabe que uma urdidura eleitoral dessa envergadura não pode ser feita sem que pareça uma facada pelas costas em Dilma. Vale lembrar que no passado Lula teve a grandeza de não embarcar no movimento golpista pelo terceiro mandato. Do pouco que se sabe, por inconfidências de um e de outro a pessoas próximas, Dilma aproveitou o encontro pessoal que teve com seu antecessor em São Paulo há três semanas para deixar claro que está incomodada com a crescente ousadia do movimento "volta Lula" e que resistirá a qualquer tentativa de afastá-la da disputa eleitoral. Pelo que se conhece de sua biografia, dos princípios e do temperamento da presidente Dilma Rousseff, ninguém é capaz de convencê-la a trilhar os maus caminhos. Entre tantos defeitos que se enxergam em sua condução do governo e, em especial, da política econômica, não está o da facilidade com os grupos historicamente acostumados a servir-se dos cofres públicos. Essa retidão pessoal deveria fortalecê-la nos embates atuais. Tristemente, ocorre o contrário. Dilma tem sido alvo de tramas dos companheiros de partido e dos aliados muito mais por suas virtudes do que por seus defeitos. 1#3 ENTREVISTA – NADIA TOLOKONNIKOVA – ELA NÃO TEM MEDO DE PUTIN Depois de dois anos presa por protestar contra o governo, a integrante do grupo punk Pussy Riot conta como o presidente russo conseguiu calar a oposição e recuperar a popularidade. NATHALIA WATKINS, DE Moscou A russa Nadia Tolokonnikova tinha 22 anos quando foi condenada à prisão por "vandalismo motivado por ódio religioso", em 2012. Naquele ano, ela e outras integrantes da banda de punk rock Pussy Riot fizeram uma barulhenta apresentação na Catedral de Cristo Salvador. O protesto era contra o apoio do patriarca da Igreja Ortodoxa a Vladimir Putin, então candidato à Presidência. Ao cantarem com balaclavas coloridas na cabeça, elas se tornaram o mais extravagante símbolo da oposição a Putin. Libertada em dezembro de 2013, Nadia falou a VEJA em Moscou em duas ocasiões. Na primeira, em um café, irritou-se ao ouvir a seguinte pergunta: "Por que vocês nunca protestaram numa mesquita?". "Porque eles não fizeram nada. Aqui acaba a entrevista", Nadia respondeu. No dia seguinte, ela concordou em retomar a conversa. Ao sair da prisão, você percebeu alguma mudança na sociedade russa? Depois de alguns meses em liberdade, notei que muitas pessoas nos encaravam com os olhos arregalados. Era estranho, porque nós, do Pussy Riot, somos as mesmas de antes. Agimos da mesma forma. Foi o resto da sociedade que mudou. Os russos estão mais apáticos. Isso aconteceu principalmente por causa das recentes leis contra protestos, que aumentaram a perseguição política e as penas para os manifestantes. As ONGs passaram a ser registradas como "agentes estrangeiras", inspecionadas e perseguidas. A disposição para a classe média se mobilizar diminuiu. Os pequenos burgueses, como os chamamos, são exatamente a classe social que seria capaz de transformar a insatisfação em algo maior e acabar com o regime de Vladimir Putin. No último dia 15 de março ocorreu um protesto na cidade. Vieram 350.000 pessoas. Muita gente, portanto. Mas eram majoritariamente intelectuais, ou seja, os dissidentes de sempre. A classe média, que participou dos protestos de 2011 e 2012 contra o governo, não estava mais presente. Na Ucrânia, em fevereiro, os protestos populares derrubaram o presidente Viktor Yanukovich, um aliado de Moscou. Esse exemplo pode tirar os russos da letargia? A possibilidade de uma mudança na Rússia foi postergada. Putin está conseguindo alcançar todos os seus objetivos. Um deles era marginalizar a oposição. Ele calou a todos. Putin controla melhor a polícia do que Yanukovich e é um pouco mais inteligente. Yanukovich é extremamente idiota. No fim do ano passado, depois de ordenar às forças de segurança que expulsassem na pancada os manifestantes da Praça da Independência, em Kiev, ele apareceu explicando que tinha mandado desocupar o lugar para colocar uma árvore de natal. Uma estupidez. Putin tem medo de que ocorra em Moscou o mesmo que em Kiev? Claro que sim. O pavor vem desde 2004, quando ocorreu a Revolução Laranja na Ucrânia, após uma eleição suspeita. Foi então que ele criou movimentos juvenis nacionalistas, como os Nashi. Esses jovens seriam os responsáveis por resistir ao que eles chamam de "ameaça laranja" (movimento popular contra a corrupção e pela adesão da Ucrânia à Europa). Agora, o temor de Putin é que a Ucrânia prospere. Se esse país passar por mudanças positivas, ficará impossível justificar nosso próprio sistema corrupto. Uma Ucrânia desenvolvida e democrática seria péssimo para Putin. A maioria dos russos, cerca de 80%, apoia a gestão de Putin e concorda com a decisão de anexar a Crimeia. Como explicar esse fenômeno? A alta taxa de aprovação do governo é o resultado da manipulação das notícias e da intensa propaganda estatal. Putin domina todos os meios de comunicação. É muito complicado, para os russos, ter acesso a fontes de informação que contem o que realmente acontece no país. Os jornais independentes estão sendo comprados e seus editores-chefes, substituídos. Os veículos e sites que dão espaço a opositores ou a denúncias de corrupção vêm sendo sistematicamente fechados. De dia e de noite, os porta-vozes do Kremlin dizem sempre a mesma coisa. É uma linguagem uniforme. Entre o público, são poucos os que suspeitam do que escutam e lêem. Ao ligar a televisão, um cidadão que não se interessa por política e tem apenas dez minutos para se inteirar dos assuntos do momento só pode pensar que Putin é um grande homem e que tudo está muito bem na Crimeia. A adoração ao presidente se deve muito ao trabalho intensivo de propaganda massiva. Há três meses, antes de essa campanha começar, a imagem de Putin entre a população era diferente. Ele estava muito enfraquecido no fim de 2011 e no começo de 2012. Agora, com todas as leis contra os protestos e com a onda de propaganda fascista, muitos russos voltaram a acreditar nele. A situação virou e está agora a favor de Putin. Não há mais esperança de mudanças, então? Existe uma vontade de mudança, mas que não está na superfície. Não é explicitada. Com a repressão, a maioria tem medo de dizer o que sente. Percebo que, quando começo a falar sobre minha experiência, minha prisão, outros cidadãos se lembram de que também aconteceram injustiças com eles, com seus filhos ou com seu cônjuge. Há vários relatos de autoridades que exigem propina ou de conhecidos que foram presos de forma arbitrária. Não existe uma oposição bem articulada, é verdade. Mas os cidadãos podem ser contaminados pelo sentimento opositor se alguém os ajudar e lhes der voz política. Quem poderia exercer esse papel? Os grupos de oposição foram destroçados pouco a pouco. A estratégia de Putin é promover ataques pontuais aos líderes que se destacam, para que sirvam de exemplo aos demais. Todos sabem muito bem o que acontece com quem age contra o governo. Sergei Udaltsov (político da Frente de Esquerda, acusado de provocar desordem durante protestos em maio de 2012) está no segundo ano de prisão domiciliar. Alexei Navalny (advogado e crítico da corrupção no governo de Putin, acusado de difamação) será julgado em breve. Possivelmente, ele será condenado a vários anos de cárcere. O empresário Mikhail Khodorkovsky ficou preso por quase dez anos. Foi um aviso aos demais oligarcas do que pode acontecer com os poderosos que se metem na política. Vocês tinham liberdade para ler o que quisessem na prisão? Havia um controle muito forte sobre as obras às quais podíamos ter acesso. Estavam proibidos os livros de filosofia, como os do francês Gilles Deleuze, toda a literatura que tinha alguma relação com movimentos de protesto ou com dissidentes e biografias de presos em campos de concentração. Os guardas ficavam sempre muito nervosos quando pedíamos essas coisas. Também não nos davam revistas que tratavam do tema gay. Nem mesmo aquelas que defendiam a proibição da propaganda gay estavam autorizadas. Mas a realidade é que não havia muito tempo para esse tipo de coisa. O objetivo principal das autoridades penais no país é exaurir o preso até o ponto em que ele durma sem nenhuma força para ler ou se dedicar a outras atividades. O meu trabalho forçado consistia em costurar uniformes de militares. Como é defender os direitos dos presos na Rússia? Eu e Masha (Maria Alekhina, integrante do Pussy Riot que também ficou presa) costumamos viajar para a região de Nizhny Novgorod e para a Mordóvia, onde ficamos presas. Visitamos as detentas, levamos comida e anotamos suas reclamações. Durante essas visitas sempre somos agredidas. Eles nos atacam e jogam cerveja choca e outros líquidos sobre nós. Se o único prejuízo fosse a roupa, nós até toleraríamos, mas Masha ainda está sofrendo com as consequências do último ataque. Ela levou pontos na testa e tem dores constantes na cabeça. Depois ficou comprovado clinicamente que ela sofreu uma concussão cerebral. Fomos à polícia dar queixa, e depois de um mês nos disseram que os agentes concluíram que o espancamento de Masha não foi um crime. Quem são os homens que bateram em vocês? Não sabemos direito. Do que temos certeza é que os ataques são coordenados por policiais. Só isso explica por que eles se negam a investigar as denúncias. Ninguém é detido. Mesmo em Sochi, onde fizemos um protesto (durante a Olimpíada de Inverno), os militares que nos golpearam não foram sequer interpelados. Ao saírem da prisão, vocês decidiram fundar uma ONG de direitos humanos. Enfrentaram resistência das autoridades? Nós ainda estamos tentando registrar nossa ONG. Em outros países, não há nada mais inofensivo do que defender os direitos dos presos. Na Rússia, negaram-nos o pedido duas vezes. Nossos advogados têm enfrentado uma pressão fortíssima. Um deles, que estava a ponto de receber o cargo de juiz, foi avisado de que seus esforços para ser promovido eram inúteis, porque, mesmo que o avaliador o aprovasse, ele teria problemas com os superiores. Como as integrantes do Pussy Riot são tratadas quando são identificadas pelo povo na rua? Muitas famílias gostam de tirar fotos com a gente. Dizem que somos corajosas e nos apoiam. Eu gosto de me iludir e pensar que todos gostam de mim. A brasileira Ana Paula Maciel, integrante do Greenpeace, foi presa depois de protestar contra uma plataforma de petróleo no Ártico. Esse episódio tem algo em comum com sua prisão? Sim. Os dois casos têm motivação política. Curiosamente, a reação popular também foi muito similar. Na televisão, diziam que piratas haviam capturado uma plataforma russa. Eu estava na prisão e ouvia as detentas repetindo a mesma história. Só as prisioneiras que acessavam a internet entendiam um pouco mais o que estava acontecendo. O mesmo se passou com a gente. A população repetia o discurso estatal, segundo o qual o nosso crime foi dançar em um local onde isso é proibido. Só uma pequena parte dos cidadãos questiona as informações que recebe. A maioria tende a acreditar que, se alguém foi preso, é porque fez algo errado. A diferença entre o meu caso e o dos militantes do Greenpeace é que entre eles havia estrangeiros. Isso ajudou muito, porque é difícil resistir à pressão da comunidade internacional. A cantora americana Madonna, em um show na França, colocou uma suástica sobre uma imagem de Marine Le Pen no palco. Na Rússia, ela não teve coragem de fazer o mesmo com Putin. Madonna foi covarde? Ela não fez coisas menos radicais na Rússia do que na França. Afinal, ela interveio em nosso favor no momento em que éramos o principal alvo de ódio do Estado russo. Foi uma atitude bastante arriscada. Muita gente já perdeu o emprego na Rússia por nos defender, como foi o caso de Alexander Cheparukhin, que organizava festivais de música com muito sucesso. Além disso, aqui na Rússia, Madonna sofreu forte pressão. Foi ameaçada de morte por nos apoiar e por defender os direitos dos gays. O ódio contra os homossexuais é fomentado pelo governo. Por isso a homofobia é tão alta na nossa sociedade. Não é uma temeridade levar uma filha pequena a uma manifestação, que na Rússia sempre pode resultar em repressão violenta? Depende. Em protestos coordenados com a prefeitura, não é perigoso levar crianças. Levei minha filha, Gera (de 6 anos), várias vezes quando ela era ainda menor. Em algumas ocasiões, nem sequer há policiais. Nas manifestações sem aprovação oficial, porém, eu não levaria minha filha. Sua carreira musical foi substituída pela de militante? Seguiremos fazendo música. Nós reavivamos o movimento punk, que começou como música política de protesto e depois se inclinou para o lado comercial. O que as Pussy Riot fizeram foi trazer de volta o punk bruto. Não temos a pretensão de fazer boa música. O que queremos mesmo é fazer música ruim sobre política. 1#4 CLAUDIO DE MOURA CASTRO – A CASA É ECOLÓGICA, A BUROCRACIA NÃO Estou construindo uma casa de campo, nas proximidades de Belo Horizonte. Enamorado de construções de poucas ofensas ao meio ambiente, inundei minha biblioteca, importando livros sobre o assunto, já que raramente frequentam as livrarias tupiniquins. Foi um caminho solitário, pois arquitetura ecológica pode ter virado bandeira, mas não realidade. Atrapalhando bastante os arquitetos, queria uma casa sem pecados energéticos evitáveis. Optei por uma construção levíssima. As paredes e tetos têm padrões de isolamento da Comunidade Europeia. Nada de ar condicionado, pois o ar entra por um lado e sai pelo outro. Mas custei a descobrir um único arquiteto que me ensinasse a calcular o coeficiente térmico de uma parede. É óbvio, terei aquecimento solar e eletricidade fotovoltaica. A casa paira sobre pilotis, preservando os esplêndidos campos de altitude do terreno — com suas canelas-de-ema, bromélias e orquídeas Borbulhando em vaidades, resolvi certificar a casa. Tentei inicialmente o sistema Leed, mas, segundo a consultora que me assessora, para residências esse selo ainda não estava disponível. Fui então para o Procel, filhote do Ministério da Energia. O projeto foi submetido à UFSC, e recebemos o orçamento para processar a certificação. Surpresa! Da janela do meu escritório, vejo um edifício de seus quinze andares e 15.000 metros quadrados. Por casualidade, a mesma consultora fez sua certificação Procel. Segundo ela, o construtor pagou 27.000 reais. Mas para a minha casa, com somente 120 metros quadrados de área construída, eu pagaria 20.000 reais. Como assim? Segundo entendi, o exame do projeto é artesanal e varia pouco com o tamanho. No meu caso, supondo um custo de 2000 reais pelo metro quadrado, estamos falando de uma casa em que a certificação custaria 8% do seu valor, causa de infarto em qualquer construtor comercial. Considerando que hoje não há nenhuma vantagem financeira para o proprietário de uma casa certificada, que razões haveria para fazê-lo? Perguntei à moça que loucos estariam certificando casas no Procel. Respondeu que não conhecia um caso sequer. Alguma coisa descarrilou, em uma política pública que penaliza quem gasta para preservar o ambiente e ainda deve gastar mais 8% com a papelada, só para provar sua inocência ambiental! Ganha a natureza. Mas perde quem faz o esforço. Se jogo no córrego esgoto in natura, economizo no tratamento de efluentes, mas crio custos adicionais de saúde para quem mora rio abaixo. Ao proceder assim, gero o que os economistas chamam de deseconomias externas. A solução velha é proibir, mas a fiscalização costuma ser falha e cara. Uma alternativa para as políticas públicas é promover a chamada "internalização" das deseconomias externas — ou seja, transformá-las em prejuízos para quem as gera. Assim, pode ser mais inteligente aplicar o princípio do "quem polui deve pagar". Ou seja, impor um ônus que tornaria desinteressante gerar as deseconomias. Se alguém trata o seu esgoto sem receber vantagens, está gerando economias externas, pois pune a sua conta bancária e beneficia quem nem conhece. Como tende a ser difícil tornar obrigatória sua geração, pode ser mais eficiente oferecer um bônus (melhor financiamento?) e deixar o mercado funcionar. Na construção civil, os selos Leed ou Procel, corretissimamente, são os primeiros passos em uma política de internalizar economias ou deseconomias externas. Podem ser criadas vantagens ou prêmios para quem certificar, demonstrando ipso facto que não polui, além de penalidades para os pecadores. Para edifícios, os incentivos começam a tomar forma. Mas, como descobri, alguém se esqueceu de incluir residências unifamiliares na lógica do sistema. O impacto energético e de meio ambiente da minha casinha será sempre ínfimo. Mas quantas centenas de milhares de casas se erguem no Brasil, neste mesmo momento? Seu gigantesco impacto energético depende de como estão sendo construídas. E, como descobri, faltam formas simplificadas para lidar com casas pequenas, sem o que a certificação de nada serve. CLAUDIO DE MOURA CASTRO é economista claudiodemouracastro@positivo.com.br 1#5 MAÍLSON DA NÓBREGA – NÃO DESANIME Muitos brasileiros estão desanimados. Perderam esperanças diante das más notícias. A economia desacelerou muito e cresce menos de 2%. A inflação ameaça furar o teto da meta, de 6,5%. Passamos a depender de capitais especulativos para financiar o crescente déficit externo. A gestão fiscal não é crível. A Petrobras tem sido humilhada por denúncias de tráfico de influência e corrupção, pela malsucedida compra da refinaria de Pasadena, pelos enormes custos de sua utilização como instrumento de política econômica e industrial, e pela prisão de um ex-diretor. O desânimo aumenta com pesquisas que sugerem a provável reeleição de Dilma no primeiro turno. Não dá, todavia, para perder o entusiasmo com o futuro do país. Erros de gestão podem ser revertidos. A democracia não está sob risco. Ela permite a correção de rumos e mudanças de governo sem revolução. Há saídas. Comecemos pelas eleições. Quanto às pesquisas, elas refletem a maior exposição de Dilma à mídia. Dos que votam, 56% ainda não se conectaram à disputa. A decisão deve ocorrer no segundo turno. Lula nunca se elegeu no primeiro turno, mesmo contando com situação econômica melhor, carisma e maior capacidade de conquistar votos. A presidente é favorita, mas a queda de sua popularidade indica que as eleições serão as mais competitivas desde 2002. A reeleição não é mais tão certa, o que explica o movimento de petistas pela volta de Lula. Crescem as chances da oposição. Nem isso move os desanimados. Para eles, se a oposição vencer será boicotada pelos petistas encastelados no governo. O argumento não procede. A invasão aconteceu nos cargos de confiança. Todos poderão ser substituídos. As carreiras permanentes incluem muitos simpatizantes do PT, mas isso acontece desde os anos 1980. Governos passados não tiveram sua gestão ameaçada. A qualidade das carreiras aumentou muito nos últimos anos. Profissionais egressos das melhores universidades, muitos com grau de mestrado e doutorado, foram atraídos pelos bons salários e pela estabilidade do emprego. A maioria pode substituir, com vantagens, os indicados por ação política. Não dá para desesperar em caso de reeleição de Dilma. O Brasil dispõe de instituições — democracia, imprensa livre e independente, mercados sofisticados, sociedade intolerante à inflação e à corrupção, entre outras — que forçam a correção de rumos. Após reduzir a nota de crédito do país, a Standard & Poors manteve o grau de investimento com apoio na solidez de nossas instituições, segundo a própria agência. Dilma abandonou a fracassada cruzada contra os juros altos depois que a inflação voltou. Teve de aceitar novas elevações da taxa Selic. Um senador indicado para o cargo de ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) desistiu dele depois que a imprensa revelou sua ficha suja e o próprio TCU se opôs polidamente à ideia. Funcionários do IBGE reagiram aos sinais de interferência política na divulgação de pesquisas. São demonstrações de que há mecanismos limitadores da má gestão, do voluntarismo e do arbítrio. Com Dilma ou com Lula, pode-se assistir a uma reviravolta, incluindo uma nova equipe econômica e medidas mais ousadas de ajustes e reformas. Há sinais de crise rondando a predominância política do PT. Caiu a identificação dos eleitores com o partido, efeito do natural desgaste da longa permanência no poder. As manifestações de rua apontam para novas demandas da sociedade. O descontentamento com a crise na Petrobras diz que a opinião pública recusa a mistificação do discurso petista. Dissidências no PMDB se bandeiam para a oposição, evidenciando fraturas do pacto político que sustenta o PT no poder. Com Lula ou Dilma, medidas duras afetarão a popularidade do governo. Sem elas, a estagnação e a inflação vão piorar, acelerando o declínio do predomínio petista. A vitória da oposição, mesmo que não aconteça em 2014, será altamente provável em 2018. O projeto do PT, de perpetuar-se no poder é um sonho dificilmente concretizável. O país pode ter desempenho medíocre e perder oportunidades com os equívocos e as omissões dos governos petistas, mas não há o risco de uma hegemonia à moda peronista ou chavista. Não dá para desanimar. MAILSON DA NOBREÇA é economista 1#6 LEITOR O ASSASSINATO DE BERNARDO Muito triste ver o caso do garoto Bernardo, que foi pessoalmente pedir socorro, e nada foi feito para mudar a sua realidade ("Ele gritou, mas não deu tempo", 23 de abril). Ao pai foi dada a oportunidade de mudar em três meses o que ele não fez em quatro anos. O menino morreu, e aí, sim, nos demos conta de que o caso era realmente sério. Quantos Bernardos não existem no nosso Brasil? Que a justiça seja feita agora, pelo Bernardo, por sua mãe, pela avó e pelos moradores de Três Passos. JÉSSICA ALBINO Caieiras, SP Parabéns a VEJA pela reportagem séria e qualificada sobre o assassinato do menino Bernardo. Esperamos que esse caso não fique impune e que esses bandidos sejam banidos do convívio da sociedade por longos anos, embora, com o atual sistema penal e com a cultura patrimonialista do país, em que predominam os vícios públicos, privados e o jeitinho, provavelmente em menos de dez anos esses desqualificados já estarão nas ruas, quem sabe posando como baluartes da ética e da moralidade. DANIEL ARRUDA CORONEL Santa Maria, RS Essa triste história do pequeno anjo Bernardo é a prova de que, em nosso país, a Justiça falha e tarda! GIANA PA ESCOSSIA MELO Natal, RN Infelizmente temos uma reedição do casal Nardoni, poucos anos após aquela barbárie de São Paulo. Parabenizo VEJA pela reportagem de capa. Espero que a imprensa se empenhe tanto quanto no caso passado na divulgação desse crime hediondo, de modo que haja uma comoção nacional e, só assim, o Judiciário cumpra o seu papel e saia do eterno berço esplêndido em que se encontra. Embora tenhamos uma Justiça extremamente benevolente, que os assassinos paguem pelo crime cometido. JACQUELINE SOARES João Pessoa, PB Madrasta tão cruel parece só caber em histórias como a da Branca de Neve. Mas, se naquela ficção o caçador, os anões e o príncipe ajudaram a heroína, na vida real ninguém ouviu o grito de Bernardo. ENI MARIA MARTIN DE CARVALHO Botucatu, SP J.R. GUZZO Como eu gostaria que o que foi escrito por J.R. Guzzo fosse mais amplamente divulgado e chegasse até as massas. Até os que, apesar de tudo, ainda votam no PT por causa dos benefícios que recebem. O artigo "A casa não pode cair" (23 de abril) é o retrato fiel dos sentimentos da maioria dos brasileiros. CLAUDIA BARRA Curitiba, PR As coisas poderão mudar caso a eleição presidencial não seja ganha pelo PT. Devemos reconhecer, entretanto, que não será tarefa fácil desalojar do Planalto esse governo, que, com sua forma populista e assistencialista de governar, faz a festa de milhões de analfabetos e alienados Brasil afora, todos inebriados com as benesses recebidas. ALBERTO DE SOUSA BEZERRIL Natal, RN Imagem perfeita: o PT grudado no osso por não querer deixar o poder. Parabéns, Guzzo. Desta vez, você se superou. APPARECIDA ZARONI Itajubá, MG Todo brasileiro deveria ler o que J.R. Guzzo escreveu sobre as armadilhas e artimanhas do governo e finalmente acordar. O Brasil dorme enquanto esse pesadelo chamado PT arrasa com o país e brinca com ele, fazendo a população de fantoche e controlando os mais inocentes através de discursos mentirosos. O PT usa o país para viver assim como o ser humano usa o alimento. Onde se encaixa a sociedade civilizada nesse paradigma? CAMILA CARDOSO SIMIÃO Curitiba, PR PETROBRAS Das várias hipóteses aventadas para explicar o péssimo negócio de Pasadena ("Mau, não. Péssimo negócio", 23 de abril), a imperícia, a incompetência e as cláusulas contratuais mal explicadas foram apenas uma "cortina de fumaça" para encobrir o que foi, intencionalmente, o objetivo principal: a corrupção. Nada, além da vontade de se locupletar, explica a nebulosa negociação, a estratosférica valorização da refinaria e o desconhecimento das cláusulas leoninas em prol do sócio belga. Um jogo com cartas marcadas. Nem é preciso uma CPI para explicar o assalto. LUDINEI PICELLl Londrina, PR RACHEL SHEHERAZADE Com a reportagem "Baixaram o volume dela" (23 de abril), mais uma vez comprovamos que a censura na imprensa ainda existe. Assistia diariamente à jornalista Rachel Sheherazade, pois ela era a voz da maioria dos brasileiros. Vi seus comentários sobre os rolezinhos, o aborto, o bandido preso ao poste e outras opiniões. Era alguém falando por nós. NORMA VALLE ROCHA Juiz de Fora, MG O silêncio imposto a Rachel Sheherazade é só mais um dos vários exemplos que separam o Brasil de uma nação civilizada. Poder expressar-se livremente é uma conquista civilizacional, que a esquerda (os bolivarianos brasileiros: PSOL, PCdoB, PT), por exemplo, não aceita de jeito nenhum. Para os autointitulados progressistas, opinião só vale quando é a favor. Se uma voz dissonante, apenas, como a de Sheherazade, foi capaz de provocar histeria coletiva em quase toda a esquerda, o que acontecerá no dia em que o pensamento hegemônico desses desmiolados encontrar adversários em número expressivo? Dá para imaginar: a Venezuela nos espreita. Ora, a meu ver, aqueles que são a favor do aborto e a favor de criminosos, em geral integrantes da esquerda caviar (como diria Rodrigo Constantino), é que são os verdadeiros apologistas do crime. Não bastasse isso, ainda querem calar quem deles discorda. FÁBIO MENDES DOS SANTOS São Ludgero, SC GABRIEL GARCIA MÁRQUEZ Muito se escreveu, na semana passada, sobre a morte de Gabriel Garcia Márquez. Parabenizo os jornalistas Jerônimo Teixeira e Rinaldo Gama, que não se detiveram apenas nas questões epistemológicas e mostraram, também, o lado controverso e falho do homem ("O escritor em seu labirinto", 23 de abril). Mas a principal informação está no "start" para sua guinada literária ao ler Kafka. Agora, Garcia Márquez vive sua metamorfose, transformando-se em lenda. RENNI A. SCHOENBERGER Joinville, SC ECONOMIA BRASILEIRA A economia brasileira clama por mudanças. Os programas governamentais, benéficos a parte da população, se continuarem a ser usados inadequadamente, acarretarão um prejuízo geral — que já se faz presente. Oferecer mais do que se tem é sinônimo de instabilidade e déficit econômico ("Velho antes de ficar rico", 23 de abril). Sendo assim, o Brasil está traçando o caminho oposto ao ideal. VITORIA BERTICELLI BASSO Curitiba, PR GEORGE OSBORNE O Brasil sempre na contramão. Enquanto o ministro das Finanças da Inglaterra reduz drasticamente os gastos públicos ("George, o Mãos de Tesoura", Entrevista, 23 de abril), o nosso ministro da Fazenda (termo arcaico) não consegue cortar os gastos públicos com os planos sociais do governo, como o Bolsa Família, que na verdade são eleitoreiros. O governo não quer tomar decisões difíceis com medo de perder votos dessa população carente e sofrida, que não percebe que está sendo usada. MILTON DA SILVA São Paulo, SP Quero parabenizar VEJA pela entrevista com o ministro das Finanças da Inglaterra, George Osborne, principalmente pelas palavras dele quando diz que o governo inglês é desavergonhadamente pró-negócios, e que a razão para isso é que sabe que são as empresas que criam empregos. Quando o nosso governo vai reconhecer que a galinha dos ovos de ouro são as empresas, principalmente as pequenas e médias, que criam empregos e dão esperança e segurança às pessoas? ÉLCIO DE CARVALHO ANDRADE Governador Valadares, MG "A MÃO DE CUBA NO COMÉRCIO COM O BRASIL" É de esperar que um Estado esquerdista, obcecado pelo controle, pretenda assumir para si qualquer atividade econômica que é prestada com competência por terceiros, principalmente se exercida por "exploradores estrangeiros". Mas, no caso venezuelano, muito me surpreendeu delegar justamente a "exploradores estrangeiros" a única "atividade econômica" que é prestada de forma eficiente e lucrativa pelo Estado: a cobrança de propina. RICARDO MELLÃO São Paulo, SP Correção: o empresário Henry Maksoud (Datas, 23 de abril) não foi fundador do Grupo Visão. Ele comprou a editora em 1974 do jornalista Saïd Farhat, e a conduziu até 1990. PARA SE CORRESPONDER COM A REDAÇÃO DE VEJA: as cartas para VEJA devem trazer a assinatura, o endereço, o número da cédula de identidade e o telefone do autor. Enviar para: Diretor de Redação, VEJA - Caixa Postal 11079 - CEP 05422-970 - São Paulo - SP; Fax: (11) 3037-5638; e-mail: veja@abril.com.br. Por motivos de espaço ou clareza, as cartas poderão ser publicadas resumidamente. Só poderão ser publicadas na edição imediatamente seguinte as cartas que chegarem à redação até a quarta-feira de cada semana. 2# PANORAMA 30.4.14 2#1 IMAGEM DA SEMANA – AFIRMATIVO OU NEGATIVO? 2#2 DATAS 2#3 HOLOFOTE 2#4 CONVERSA COM DÉBORA NASCIMENTO – A MAIS BELA INSPIRAÇÃO 2#5 NÚMEROS 2#6 SOBEDESCE 2#7 RADAR 2#8 VEJA ESSA 2#1 IMAGEM DA SEMANA – AFIRMATIVO OU NEGATIVO? A voz dos supremos: estados americanos podem proibir o favorecimento racial. Do ponto de vista moral e ético, uma das questões mais complexas que existem é a discriminação invertida: facilitar o ingresso no ensino superior com base na raça dos concorrentes. Há razões fortes para os dois lados, como o dever de compensar desvantagens de setores historicamente discriminados ou a obrigação de rejeitar o uso de critérios raciais estruturalmente corrompidos. Nos Estados Unidos, isso é chamado de ação afirmativa, que continua em vigor apesar de uma decisão da Suprema Corte na semana passada que não entrou no mérito da questão, mas sustentou a validade de plebiscitos estaduais proibindo que raça e correlates rendam pontos extras na admissão em universidades. O caso começou em 1995, quando Jennifer Gratz não foi aceita na Universidade de Michigan, apesar das notas altas e atividades extracurriculares. Perdeu o primeiro processo, mas a proibição da discriminação positiva foi aprovada em votação popular em 2006. A validade desse plebiscito foi confirmada agora pela Suprema Corte, por 6 votos a 2, incluindo na maioria o juiz Clarence Thomas, vilipendiado em redes sociais com termos parecidos aos usados contra Joaquim Barbosa. A decisão da Suprema Corte coincidiu com o caso do jovem Kwasi Enin, admitido nas oito universidades da Ivy League, as melhores do país: Brown, Colúmbia, Cornell, Dartmouth, Harvard, Universidade da Pensilvânia, Princeton e Yale. Alguns descontentes se queixaram de que a cor dele pesou, mas Kwasi atribuiu seu sucesso aos mais sólidos valores conservadores: "pais-helicóptero" (ficam rondando os filhos para controlá-los), o apoio da Igreja Batista, a valorização do estudo típica de famílias de imigrantes (a sua veio de Gana). Ele também toca viola clássica, faz trabalho voluntário num centro radiológico e escreveu um ensaio comovente sobre a maneira como "a música se tornou a fagulha da minha curiosidade intelectual". Que floresçam mil Kwasis. VILMA GRYZINSKI 2#2 DATAS MORRERAM Luciano do Valle, locutor esportivo paulista que, além de narrar jogos de futebol, contribuiu para a popularização do boxe, do vôlei, do basquete e da Fórmula Indy. Nascido em Campinas, iniciou sua carreira aos 16 anos na rádio Educadora, emissora local. Em 1971 foi para a televisão. Na Globo, transmitiu corridas de F1, duas Copas do Mundo (de 1978 e 1982) e duas Olimpíadas (de 1976 e 1980). Transferiu-se, então, para a Record e em seguida para a Bandeirantes, onde criou o Show do Esporte. Nessa sua primeira passagem pelo canal, permaneceu por duas décadas; voltaria em 2006. Na véspera da Páscoa, ao viajar de São Paulo para Minas, onde iria transmitir o jogo entre Atlético-MG e Corinthians, sentiu-se mal durante o voo. Após o pouso da aeronave, foi levado para um hospital, mas não resistiu. Dia 19, aos 66 anos, de infarto, em Uberlândia. Rubin "Hurricane" Cárter, ex-pugilista americano que teve a carreira interrompida ao ser condenado por um assassinato que não cometeu. O boxeador — que em 1964 disputou o cinturão mundial dos pesos médios, perdendo por pontos para Joey Giardello — passou dezenove anos na prisão até provar sua inocência. Em 1966, ele estava em uma taverna de Paterson, Nova Jersey, quando dois homens e uma mulher de cor branca foram mortos a tiros. Racismo e manipulação das provas e de testemunhas levaram à condenação do lutador. "Um inocente num inferno vivo / Essa é a história do Hurricane / (...) Mas houve um tempo / Em que poderia ter sido / o campeão do mundo", diz a letra de Hurricane, canção clássica de Bob Dylan lançada em 1975. O drama de Cárter também inspirou um filme que rendeu a Denzel Washington uma indicação ao Oscar (2000). Após ser solto, Hurricane, que ganhou esse apelido — furacão, em inglês — pela força devastadora de seus golpes de esquerda, foi viver no Canadá, onde fundou uma ONG que age em defesa de condenados injustamente. Dia 20, aos 76 anos, de complicações decorrentes de um câncer na próstata, em Toronto. Tito Vilanova, técnico do Barcelona na temporada 2012-2013, quando substituiu Pepe Guardiola, de quem havia sido auxiliar. Sob seu comando, a equipe catalã venceu o campeonato espanhol. Desde 2011 lutava contra um câncer na glândula salivar parótida. Em julho do ano passado, deixou o cargo para tratar a doença. Dia 25, aos 45 anos, de complicações gástricas decorrentes do câncer, em Barcelona. Hamish Maxwell, empresário inglês que consolidou a ampliação dos negócios da multinacional Philip Morris, fabricante de cigarros. Em 1985, comprou a General Foods e, três anos depois, a Kraft. Com sua saída, em 1991, a empresa voltou a focar suas atenções no mercado de cigarros. Dia 19, aos 87 anos, em decorrência de um câncer na bexiga, na Flórida. U Win Tin, jornalista e escritor que passou dezenove anos preso por ser contrário ao regime militar de Mianmar. Seu período de reclusão, iniciado em 1989, foi marcado por frequentes torturas. Para manter a sanidade, ele fazia uma pasta com fragmentos de tijolo e usava a mistura para escrever versos nas paredes de sua cela. Dia 21, aos 84 ou 85 anos — há divergências sobre sua idade —, por falência de órgãos, em Yangon. 2#3 HOLOFOTE OTÁVIO CABRAL otavio.cabral@abril.com.br • ANONIMATO CASTIGADO Um papiloscopista da Polícia Federal enviou, fora do horário de trabalho e por seu e-mail pessoal, reclamações sobre suas condições de trabalho e o excesso de policiais que cuidam da segurança da filha do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, para a página Fale com a Presidenta — site mantido pelo Planalto para ser um "canal direto" com a Presidência e que diz garantir o sigilo do remetente. Dias depois, ele foi suspenso pela direção da PF. A decisão foi revertida pela Justiça após uma ação do sindicato dos policiais federais, mas ficou claro que o direito à crítica não vale para todas as áreas do governo. • CIDADE SEM COMANDO A capital do Rio Grande do Norte está sem governo desde o dia 15 de abril. O prefeito de Natal, Carlos Eduardo Alves (PDT), viajou para a Espanha em missão oficial, emendou uns dias de folga e só volta ao trabalho nesta segunda. A vice-prefeita, Wilma de Faria (PSB), o presidente e o vice-presidente da Câmara se recusaram a assumir o cargo, já que ficariam impossibilitados de disputar a eleição de outubro. • PAGAMENTO DA FATURA O presidente do Senado, Renan Calheiros, se reuniu na quarta-feira passada com Dilma Rousseff e entregou sua fatura pelo trabalho incansável para evitar a CPI da Petrobras. Ele quer que o PT apoie a candidatura de seu filho, Renan Filho, ao governo de Alagoas. Pretende ainda nomear o sucessor de Nestor Cerveró na diretoria financeira da BR Distribuidora. Por fim, quer que a base do governo aprove a indicação de seu ex-assessor Bruno Dantas para ministro do Tribunal de Contas da União, em votação que ocorrerá nesta semana no Congresso. • PALANQUE DESFALCADO A queda de Dilma nas pesquisas ameaça tirar dois partidos de seu palanque. A direção do PP jantou na casa do presidente do partido, Ciro Nogueira, e adiou a decisão sobre a eleição para junho — hoje, a posição majoritária é pela aliança com Aécio Neves. E o PR se reuniu e discutiu duas possibilidades: apoiar Eduardo Campos ou lançar a candidatura do senador Magno Malta, que tem força no eleitorado evangélico. • CANTEIRO DE OBRAS ETERNO A Infraero decidiu romper o contrato de reforma do aeroporto de Fortaleza e fazer nova licitação. Caso contrário, a diretoria da empresa poderia responder a uma ação de improbidade administrativa proposta pelo Ministério Público. A ampliação do aeroporto é feita pelo Consórcio CPM Novo Fortaleza, composto pela Consbem Construções, MPE Montagens e Paulo Octavio Investimentos Imobiliários, que pertence ao ex-governador do Distrito Federal Paulo Octavio, réu no caso do mensalão do DEM. As obras já consumiram 58 milhões de reais e deveriam ser concluídas até a Copa, mas estão praticamente paradas, e não há mais previsão de entrega. Para tentar minimizar os problemas na Copa, foi construído por 1,8 milhão de reais um terminal externo provisório, onde será feito o check-in dos passageiros. • COMO SE LIVRAR DE DOIS SÉCULOS DE PAPÉIS? O presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, José Renato Nalini, enviou ofício ao Conselho Nacional de Justiça pedindo ajuda para se livrar dos 83 milhões de processos em papel que são guardados em arquivos privados, ao custo de 80 milhões de reais por ano. Há documentos produzidos desde o século XIX. Os de antes de 1940 precisam ser preservados porque são considerados históricos. Os demais poderiam ser digitalizados, mas o processo levaria 227 anos e teria um custo astronómico. A proposta de Nalini é fazer uma convocação pública a quem tiver interesse em processos específicos, como faculdades de direito e de jornalismo, para que se responsabilize pela guarda. Os restantes seriam cadastrados e reciclados. 2#4 CONVERSA COM DÉBORA NASCIMENTO – A MAIS BELA INSPIRAÇÃO A mais bela inspiração Ela se moldou à atriz colombiana Sofia Vergara para o papel de modelo ninfomaníaca em nova novela. Para quem ainda consegue respirar: também faz aula de canto e de piano e uma dança "maluca" pela casa. Quais as semelhanças com Sofia? O nome, Maria Vergara, o fato de ela falar com as mãos, ser engraçada e ter todos os homens que quer. Além disso, a personagem é espanhola. Quanto à ninfomania, para Maria, é tchaca tchaca na butchaca. Está sendo uma delícia fazer. Sofía estudou para ser técnica odontológica. Você tentou alguma profissão alternativa? Fui modelo, o que serviu para me abrir, porque eu não conhecia nada, era um bicho do mato. Fiz cursos, viajei e morei no Chile, na Tailândia, na China e na África do Sul. Você costuma fazer papel de moça recatada. Como é a mudança? Essa mulher fogosa também está dentro de mim. É só virar a chavinha. Ver clipes da Shakira e dançar feito uma maluca em casa, soltando a franga sem ninguém ver — para depois me exibir para todo mundo —, me ajudou a soltar os quadris. O ator José Loreto, seu futuro marido, achou bom? Ele não me via dançando, mas reclamou um pouquinho de me ouvir cantando, aos berros, e sair correndo atrás dele pela casa. Ator americano costuma cantar, dançar e ter faculdade de teatro. Quando você fez O Incrível Hulk aprendeu algo desse profissionalismo? Faço aulas de canto, piano e balé. Não sento no sofá só para ver a própria novela. As curvas que a ajudaram a ficar famosa sumiram? Precisei diminuir os quadris para viver essa modelo. Emagreci 5 quilos. Mas as curvas ainda estão aqui, vai! A novela se chama Geração Brasil e, além de você, tem Murilo Benício no elenco. É para repetir o sucesso de Avenida Brasil? Não tinha feito esse link, tão óbvio! Tomara que tudo isso nos traga sorte. 2#5 NÚMEROS 180 bilhões de reais em valor de mercado foi o que a Petrobras perdeu desde o início do governo Dilma, em 2011. A empresa vale hoje 179 bilhões de reais, uma queda de mais de 50% em três anos. 9 entre as dez maiores companhias de energia do mundo ganharam valor desde a crise financeira global de 2008, segundo um ranking da consultoria IHS - a única que perdeu foi a estatal brasileira. 3,4 vezes foi aumento da dívida da Petrobras no governo Dilma. Chegou a 223 bilhões de reais neste ano. Uma das principais causas é o congelamento do preço da gasolina, que obriga a empresa a vender o produto no Brasil por um valor mais baixo do que o pago para importá-lo. 2#6 SOBEDESCE SOBE • Teoria da conspiração - O coronel Paulo Malhães, que em março deixou indignados integrantes da Comissão da Verdade ao jactar-se de ter participado de torturas, foi assassinado em sua casa. • Combate ao câncer - O exame PET-Scan, capaz de diagnosticar focos iniciais da doença, passará a ser oferecido de graça na rede pública de saúde. • Inflação - Pesquisa semanal do Banco Central junto ao mercado financeiro captou pela primeira vez a estimativa de que a taxa fechará o ano acima do teto da meta, de 6,5%. DESCE • Tião Viana - O governador (PT-AC), que enviou 400 refugiados haitianos a São Paulo depois que um abrigo de seu estado foi fechado, atribuiu as críticas ao gesto ao "preconceito da elite paulista". • Drone português - O primeiro aparelho militar do tipo fabricado em Portugal caiu na água logo na estreia - o vídeo do fracasso foi visto mais de 1 milhão de vezes na internet. • Teoria da conspiração A Comissão Nacional da Verdade concluiu que o ex-presidente Juscelino Kubitschek morreu mesmo em um acidente de carro - não foi assassinado pela ditadura. 2#7 RADAR THIAGO PRADO thiago.prado@abril.com.br • OLIMPÍADA PREJUÍZO A CAMINHO Está nas mãos de Dilma Rousseff e Eduardo Paes uma projeção de arrepiar: o Comitê Rio 2016 terminaria a organização da Olimpíada com um déficit de 1 bilhão de reais. A conta, como prevêem os contratos assinados lá atrás, cairia no colo do poder público. • BRASIL ERA UMA VEZ Foi-se o tempo em que Dilma e o notório Paulo Roberto Costa eram figuras próximas. Em 2008, o então diretor de Abastecimento da Petrobras foi um dos convidados da seleta festa de casamento de Paula Araújo Rousseff, filha de Dilma. CALCULANDO A SAÍDA Joaquim Barbosa começou a preparar a saída do Supremo. Recentemente, pediu ao Itamaraty o cálculo exato do tempo em que trabalhou como oficial de chancelaria no ministério, entre 1976 e 1979. O movimento indica que Barbosa não aguardará os 70 anos para se aposentar compulsoriamente e que pretende pendurar a toga, se possível, antes de Ricardo Lewandowski assumir a presidência do Supremo. EMPREGO GARANTIDO Lurian Lula da Silva, a filha de Lula, acaba de conseguir um novo emprego. Foi nomeada para trabalhar na Maricá Já, empresa de comunicação e eventos de Washington Quaquá, prefeito de Maricá (RJ), e sua mulher, Rosângela Zeidan. É mais uma personagem petista de alto quilate a conseguir um bico na cidade — Marcelo Sereno, ex-braço-direito de José Dirceu na Casa Civil, foi, durante anos, secretário de Quaquá. ACESSO PRIVILEGIADO Dois novos depoimentos podem reabrir o inquérito que aponta Eduardo Cunha como beneficiário do vazamento de informações sobre a investigação de fraudes e sonegação fiscal na refinaria de Manguinhos (RJ). Em 2010, o deputado foi flagrado em conversas telefônicas com Ricardo Magro, dono da refinaria, prometendo ajudá-lo em questões comerciais. No ano passado, o caso foi arquivado por falta de provas. Havia, até então, a suspeita de que o ex-procurador de Justiça do Rio de Janeiro Cláudio Lopes repassara a Cunha dados sigilosos da investigação. Agora, um policial e um promotor registraram oficialmente que Lopes pediu para que os autos do inquérito fossem levados ao seu gabinete. E que Cunha foi ao prédio do MP no dia da remessa dos papéis. • ELEIÇÕES 2014 CAIXA-FORTE 1 Anthony Garotinho tem investido pesado na sua pré-campanha ao governo do Rio de Janeiro — sempre com pagamentos à vista, preferencialmente com dinheiro vivo. Eis alguns exemplos dos gastos: o deputado pagou 500.000 reais para ter o espaço de 25 minutos diários durante nove meses na Rede Boas Novas, do pastor Samuel Câmara. CAIXA-FORTE 2 Em outubro, ao pôr na rua a Caravana Palavra de Paz, festival gospel em que aproveita para se promover, passou a pagar 20.000 reais em dinheiro vivo por semana — separado em caches de artistas que vão de 1000 a 2000 reais, mais o aluguel do palco. Desde outubro de 2013, foram mais de 500.000 reais nas caravanas. Garotinho também pagou cerca de 150.000 reais a uma empresa para enviar milhares de torpedos a eleitores de todo o estado. • ECONOMIA NOVOS NEGÓCIOS O Mubadala, fundo soberano dos Emirados Árabes, está tão firme no propósito de tomar tudo o que Eike Batista tem que está montando no Rio de Janeiro seu primeiro escritório fora de Abu Dhabi para administrar o espólio de sua naufragada sociedade com o ex-bilionário. BAIXO CALIBRE Um gigante do setor de defesa está cambaleando no Brasil. Com dívida de 819,2 milhões de reais, a Taurus vai votar em assembleia o corte na própria carne para sair da crise. A tesoura vai atingir os salários no conselho de administração, que variam de 25.000 a 150.000 reais. A remuneração cairá para 5000 reais. • LIVROS LEILÃO DISPUTADO A Record acaba de vencer a maior concorrência do ano até o momento para um livro de não ficção. Think Like a Freak, dos autores do best-seller Freakonomics, foi adquirido pela editora em um megaleilão por meio milhão de reais. Será lançado em setembro no Brasil. • FUTEBOL BOIEIROS PREGUIÇOSOS Virou lugar-comum no discurso dos jogadores que o calendário apertado do futebol brasileiro atrapalha o desempenho dos clubes. Não é bem assim. Uma pesquisa inédita com os doze times mais tradicionais do Brasil revela que, em 2013, dos 509 jogadores empregados, apenas 43, ou 8,4%, jogaram cinquenta ou mais partidas. A média dos gigantes europeus é de sessenta jogos por temporada. BATE-BOLA A propósito, o Ministério do Esporte abriu um intenso diálogo com os líderes do movimento Bom Senso FC — que luta justamente por mudanças no calendário do futebol brasileiro. • TELEVISÃO ARTISTAS, UNI-VOS Antonio Fagundes quer institucionalizar o grupo que criou no ano passado para reivindicar melhores condições de trabalho para os artistas na Globo. O nome preferido para a organização — debatido em reuniões na sua casa no Rio de Janeiro — é MAU (Movimento Artistas Unidos). • COPA 2014 REI DE FORA Azedaram as relações entre a Fifa e a Sony, patrocinadora da Copa, depois da escolha dos artistas que cantarão as músicas do Mundial. Roberto Carlos, o principal nome da gravadora no Brasil, ficou de fora do CD e de qualquer apresentação na cerimônia de abertura, participações tidas como certas há um ano. O cantor chegou a rascunhar uma letra para a Copa junto com Erasmo Carlos, mas a Fifa preferiu outros artistas — muitos, inclusive, de gravadoras concorrentes da Sony. 2#8 VEJA ESSA “Em casa ou em um set, estou sempre acompanhado de um violão, um toca-discos, muitos vinis de blues do começo do século passado e uma máquina de escrever. Computador? É a última coisa em que penso na vida.” - JOHNNY DEPP, ator americano, em O Globo: bem-humorado, ele disse ainda que todas as pessoas ficam obsoletas - e que está bem perto disso. “Nós (os mexicanos) sempre terminamos as nossas frases com um 'não?', 'certo?'... Estamos à procura de aquiescência, aceitação do outro. 'A casa está bonita, não?' 'Choveu muito forte hoje, não é?' Sempre o outro tem de nos apoiar.” - ELENA PONIATOWSKA, escritora e jornalista franco-mexicana, que recebeu na semana passada o prêmio de literatura Miguel de Cervantes, em entrevista ao diário espanhol El País. “Temos de (...) encarar a oposição não somente na velha Cúria, mas também de qualquer um que não queira perder privilégios.” - OSCAR RODRÍGUEZ MARADIAGA, cardeal hondurenho, ao comentar, no jornal americano National Catholic Repórter, que o papa Francisco sofre oposição na cúpula do Vaticano, na qual, afirmou ele, se ouvem queixas como "o que quer esse pequeno argentino?" “É um escândalo de proporções épicas, escondido à vista de todos.” - CHARMIAN GOOCH, cofundadora da ONG Global Witness, em palestra no Canadá, ao condenar a profusão de companhias que se valem do anonimato para agir contra interesses públicos, numa prática, enfatizou ela, que favorece a corrupção. “Nós estávamos tentando puxá-los, mas era muito difícil, então decidimos subir (...); agora me arrependo.” - EUN-SU CHOI, motorista que tentou salvar alguns estudantes do naufrágio do navio Sewol, na Coreia do Sul, falando à BBC. “O Brasil assumiu um papel de liderança nas discussões da governança da web.” - FADI CHEHADÉ, presidente da Icann (instituição americana que "supervisiona" a internet), em entrevista a O Estado de S. Paulo. “Depois de viver nos Estados Unidos por mais de quinze anos, você aprende que os americanos não gostam de ser o segundo colocado. Eles vão trabalhar duro para crescer.” - JURGEN KLINSMANN, técnico dos EUA, na Folha de S.Paulo. “Não há escolha. São Paulo ficará pronta. Ainda que seja no último minuto.” - JÉRÔME VALCKE, secretário-geral da Fifa, a respeito das obras no Itaquerão, onde será o jogo de abertura da Copa do Mundo; dias depois, ao visitar a Arena Pantanal, foi menos agressivo com os atrasos do estádio. “Jogar contra o Brasil nunca é uma boa notícia.” - INIESTA, meia da seleção espanhola, recordando os 3 a 0 da final da Copa das Confederações, em coletiva à imprensa; ele citou a possibilidade de um reencontro com o time de Luiz Felipe Scolari nas oitavas do Mundial. “Ela (Beyoncé) levanta sua voz tanto no palco quanto fora dele e estimula as mulheres a ser independentes e a liderar.” - REVISTA TIME, que dedicou à cantora americana a capa de sua edição sobre as 100 personalidades mais influentes do mundo. EPÍGRAFE DA SEMANA A pretexto dos embates do Rio de Janeiro com o Comitê Olímpico Internacional sobre os Jogos de 2016 “É preciso zelar mais pela palavra que pela fortuna, pois zelar pela palavra leva à fortuna, e nenhuma fortuna apaga a mancha feita à consciência por uma palavra não cumprida.” - HONORÉ DE BALZAC, escritor francês (1799-1850). 3# BRASIL 30.4.14 3#1 OS DOIS LADOS DE UM MESMO PROBLEMA 3#2 EM SEIS ELEIÇÕES, DUAS VIRADAS 3#3 PEIXE GRANDE NA REDE 3#4 MAIS DINHEIRO PELO CANO 3#5 NOVAS PISTAS 3#6 RAPOSAS DE TOGA 3#1 OS DOIS LADOS DE UM MESMO PROBLEMA Intrigas, ameaças, traições, corrupção. A disputa de poder no PT expõe um racha inédito na história do partido que pode pôr em risco a reeleição da presidente Dilma Rousseff. DANIEL PEREIRA E ADRIANO CEOLIN “Se alguns setores, seja por que motivo for, instalarem desconfiança, especialmente desconfiança injustificada, isso é muito ruim. A guerra psicológica pode inibir investimentos e retardar iniciativas.” - Presidente Dilma Rousseff “Hoje você tem problema, que é: povo quer mais. Poderíamos estar melhor. E a Dilma ter de dizer isto claramente na campanha: como vamos melhorar a economia brasileira.” - Ex-presidente Lula A presidente Dilma Rousseff enfrenta um momento inédito de fragilidade. Além de ter problemas na economia, como o crescimento baixo, a inflação persistente e o desmantelamento do setor elétrico, ela perdeu apoio popular e força para barrar, no Congresso, iniciativas capazes de desgastá-la. A aprovação ao governo caiu a um nível que, segundo os especialistas, ameaça a reeleição. Partidos aliados suspenderam as negociações para apoiá-la na corrida eleitoral. Já os oposicionistas conseguiram na Justiça o direito de instalar uma CPI para investigar exclusivamente a Petrobras. Acuada, Dilma precisa mais do que nunca da ajuda do PT, mas essa ajuda lhe é negada. Aproveitando-se da conjuntura desfavorável à mandatária, poderosas alas petistas pregam a candidatura de Lula ao Planalto e conspiram contra a presidente. O objetivo é claro: retomar poderes e orçamentos que foram retirados delas pela própria Dilma. A seis meses da eleição, o PT está rachado entre lulistas e dilmistas — e, para os companheiros mais pragmáticos, essa divisão, e não os rivais Aécio Neves (PSDB) e Eduardo Campos (PSB), representa a maior ameaça ao projeto de poder do partido. Com carreira política construída na resistência à ditadura militar e posteriormente no PDT, Dilma nunca teve alma petista. Ao assumir a Presidência, ela herdou boa parte da cúpula do governo Lula, como ministros, dirigentes de estatais e até a então chefe do escritório da Presidência em São Paulo, Rosemary Noronha. O governo era de continuidade mesmo nos nomes escalados para comandar o país. O plano de Dilma era dar uma feição própria à sua gestão de forma gradativa, reduzindo a influência do antecessor ao longo do tempo. Antonio Palocci, seu primeiro chefe da Casa Civil, ilustrou a estratégia: "No primeiro ano de mandato, será um governo Lula-Dilma. No segundo, um governo Dilma-Lula. No terceiro, será Dilma-Dilma". Esse cronograma, no entanto, foi atropelado pelos fatos. Já em 2011 a presidente foi obrigada a demitir seis ministros acusados de corrupção e tráfico de influência — quatro deles egressos do governo anterior. Dilma se mostrava intransigente com os malfeitos, ao contrário de Lula, acostumado a defender políticos pilhados em irregularidades. Com a chamada faxina ética, ela atingiu recordes de popularidade e conseguiu força para tirar das mãos de notórios esquemas partidários setores estratégicos da administração. Nem mesmo o PT foi poupado nessa ofensiva. O partido perdeu terreno em fundos de pensão e na Petrobras, que teve sua diretoria reformulada em 2012. A faxina ética era acompanhada da profissionalização da gestão. Com essas mudanças, muitos petistas estrelados, como o mensaleiro preso José Dirceu, perderam influência. Havia um distanciamento crescente entre a presidente e a engrenagem partidária, mas Lula mantinha o PT unido e silencioso. Ele alegava que a "mídia conservadora" — ao exaltar as demissões promovidas pela sucessora, com o intuito claro de atacá-lo — ajudava Dilma a conquistar eleitores que historicamente tinham aversão ao PT. Ou seja: a comparação entre os dois beneficiava o partido. Se alguns petistas registravam prejuízos em casos isolados, o conjunto estava sendo fortalecido. Esse discurso manteve a companheirada sob controle até 2013, quando a popularidade da presidente despencou devido à inflação e às manifestações populares de junho. Petistas, então, passaram a criticar Dilma, conspirar contra ela no Congresso e defender a candidatura de Lula. A cizânia interna se desenhava, mas ainda era incipiente e restrita aos bastidores. Esse dique foi rompido pelo escândalo da Petrobras. Hoje, o PT testemunha uma batalha pública e cruenta entre a soldadesca dos dois presidentes. Palocci não previu, mas o último ano de mandato também tem seu epíteto: governo Dilma versus Lula. A guerra foi declarada depois de a presidente dizer que votou a favor da compra da refinaria de Pasadena, nos Estados Unidos, com base num relatório "falho" elaborado pela antiga diretoria da Petrobras. Lula não gostou do que ouviu. Considerou a sinceridade de Dilma um erro político, ao levar o problema para o colo do Planalto, e uma deslealdade, ao debitar na conta dele o prejuízo decorrente da operação. A aliados, Dilma se mostrou incomodada com o fato de o antecessor, que sempre posa de bombeiro em tempos de crise, não ter saído a campo para ajudá-la a abafar o caso. Foi para resolver essas diferenças que os dois se encontraram, em São Paulo, para conversar. Na ocasião, decidiram afinar o discurso e enterrar a CPI da Petrobras. Faltou combinar com as respectivas infantarias. Em depoimento ao Senado, Graça Foster, presidente da Petrobras nomeada por Dilma, disse que a compra da refinaria foi um "mau negócio". O disparo foi prontamente revidado. Antecessor de Graça Foster no posto, o petista José Sérgio Gabrielli, nomeado por Lula, partiu para o ataque: "Dilma não pode fugir à responsabilidade dela". A presidente, como se sabe, comandava o Conselho de Administração da Petrobras quando a operação foi aprovada. Ao revide em público, Gabrielli adicionou uma ameaça. A petistas, ele afirmou que Dilma, quando era ministra de Lula, participou de "várias reuniões no Palácio do Planalto" sobre o assunto, sempre defendendo a compra da refinaria de Pasadena. Essa versão, insinuou Gabrielli, pode ser transmitida aos parlamentares caso ele seja novamente convidado a depor, o que ocorreu na semana passada. "A reação do Gabrielli foi essencialmente política, em defesa do governo passado. Ele e o Lula estão mordidos", afirma um senador petista. Parte do PT resolveu reagir porque considera que Dilma, numa ofensiva publicitária, está tentando dividir o partido em duas bandas: uma republicana, a dela, e outra podre, composta de aliados do ex-presidente. Essa estratégia não é nova e explicaria a falta de solidariedade de Dilma com os mensaleiros presos, mas ganhou fôlego agora, quando ela precisa recuperar popularidade (veja a reportagem na pág. 66). A ideia de extirpar a "banda podre" também seria visível no caso do deputado André Vargas, que responde a um processo no Conselho de Ética da Câmara devido a suas relações com o doleiro Alberto Youssef, preso sob a acusação de comandar um esquema bilionário de lavagem de dinheiro. Aliado de Dilma, o presidente do PT, Rui Falcão, pressiona Vargas a renunciar ao mandato de deputado. Falcão quer encerrar logo o caso para impedir mais danos às candidaturas da presidente à reeleição e de petistas estrelados a governos estaduais. Vargas resiste — e acusa o governo de vazar informações a fim de destruí-lo politicamente só porque é um ponta de lança do movimento "volta, Lula". "A Dilma nos trata como banda podre. Vamos reagir", disse o deputado José Mentor (PT-SP) a colegas de bancada. Formada por quadros que tinham mais prestígio no governo passado, a tal banda podre não está de brincadeira quando promete disparar fogo amigo. Demitido do cargo de líder do governo por Dilma, o deputado Cândido Vaccarezza foi ao Planalto avisar que não admitirá vazamentos contra ele. Vaccarezza disse ainda estar pronto para enfrentar uma longa batalha caso seja atacado. O deputado, ao que parece, se precavia do que estava por vir (veja a reportagem na pág. 70). Pressionado a renunciar, Vargas ameaçou abrir a caixa de ferramentas contra o ministro Paulo Bernardo e os candidatos do PT aos governos do Paraná, Gleisi Hoffmann, e de São Paulo, Alexandre Padilha. Além da possibilidade de retaliação, a "banda podre" atua para eleger um aliado, o deputado Luiz Sérgio, para o cargo de vice-presidente da Câmara. O governo, obviamente, tenta emplacar outro nome. Lula sabe que a especulação sobre sua volta e as batalhas entre as bandas petistas atrapalham a reeleição de Dilma. O ex-presidente é taxativo ao descartar uma nova candidatura dele neste ano. Essa candidatura, se ocorresse, seria de altíssimo risco e representaria uma punhalada nas costas da sucessora. Como explicar, por exemplo, a troca de nomes na urna sem passar a impressão de que Dilma foi um fracasso administrativo ou uma fraude eleitoral? "A Dilma é o Pitta do Lula", ironizam os lulistas mais raivosos. Se rechaça a possibilidade de concorrer ao Planalto, Lula sempre critica, em conversas reservadas, a sucessora, fragilizando-a diante dos interlocutores. O ex-presidente costuma dizer que Dilma abusa do confronto com os parlamentares, sem necessidade, e não negocia medidas na área econômica. Ele ecoa, assim, as acusações de intervencionismo e o autoritarismo que pesam sobre ela. "O Lula diz que só recebe reclamação da Dilma", conta o deputado William Dib (PSDB-SP), que conversou com o ex-presidente num casamento, em São Bernardo, no mês passado. Ex-prefeito da cidade, Dib rompeu com o tucano Geraldo Alckmin e apoiará o petista Padilha na eleição estadual. "O Lula está preocupado porque a Dilma está com muitos problemas", acrescenta João Inocentini, presidente do Sindicato Nacional dos Aposentados, que também conversou recentemente com o ex-presidente. "Mas ele avalia que não há mais tempo para trocar de candidato. Se fosse em dezembro ou janeiro passado..." Os lulistas se dividem basicamente em dois grupos. Um deles ainda nutre a esperança de o chefe rifar Dilma e disputar a eleição presidencial. É minoritário. Outro estica a corda contra a mandatária para se cacifar politicamente e mostrar a ela que é melhor tê-los como aliados, de preferência no usufruto das benesses do poder. "O Lula quer mesmo é a reeleição de uma Dilma fragilizada, o que daria a ele situação privilegiada no segundo mandato dela", diz um deputado lulista. Na semana passada, a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a imediata instalação de uma CPI no Senado para investigar exclusivamente a Petrobras. A decisão representa uma derrota para o governo, que queria incluir entre os alvos da comissão o cartel do metrô em São Paulo e as atividades no Porto de Suape, como forma de desgastar os rivais do PT na disputa presidencial. Os petistas decidiram não recorrer da decisão do STF para evitar ainda mais desgaste diante da opinião pública. A ordem agora é controlar os trabalhos da comissão e buscar um armistício entre lulistas e dilmistas. Um pequeno grupo de bombeiros, conhecido pelo pragmatismo, apela ao bom e velho instinto de sobrevivência, lembrando que pesquisas internas mostram queda nas intenções de voto em candidatos petistas de vários estados. O argumento é simples: a banda podre pode até derrotar a banda republicana, e vice-versa, mas há risco real de o PT perder o poder emanado das urnas. Diz o deputado José Guimarães, vice-presidente do partido e vice-líder do governo: "Lula, Dilma e PT juntos vencem. Se separar, se dividir, nós perdemos". AS IRREGULARIDADE NA COMPRA DA REFINARIA “O que a presidente fez foi revelar, com a verdade, com a transparência, com a humildade de quem reconhece que houve uma falha, os erros que aconteceram.” - Graça Foster, presidente da Petrobras. “Não posso fugir da minha responsabilidade, do mesmo jeito que a presidente Dilma não pode fugir da responsabilidade dela, que era presidente do conselho. Nós somos responsáveis pelas nossas decisões.” - Sérgio Gabrielli, ex-presidente da Petrobras. O ENVOLVIMENTO COM O CRIME ORGANIZADO “Eu continuo achando que a melhor solução é que o companheiro André Vargas deveria renunciar. Mas essa é uma decisão personalíssima, a gente não pode votar isso.” - Rui Falcão, presidente do PT. “A direção do nosso partido é mais valente com os seus que cometem equívocos do que com a oposição. Fui vítima de vazamentos seletivos e criminosos.” - André Vargas, deputado do PT. POR QUE O PT TEM TANTO MEDO DE PERDER O GOVERNO Desde que chegou ao poder, em 2003, o PT assumiu ministérios e aumentou o número de cargos de confiança ocupados por militantes que pagam dízimo ao partido. MINISTÉRIOS - No governo do PSDB, os tucanos controlavam 7 ministérios. Hoje o PT controla 18 ministérios. ORÇAMENTO - No governo do PSDB, em 2002, os gastos dos ministérios controlados pelo partido somavam 914,4 bilhões de reais (em valores corrigidos). Em 2013, o PT controlava um orçamento de 1,2 trilhão de reais. CARGOS – No governo do PSDB havia 18.374 cargos comissionados. Hoje são 22.737. MINIMANUAL DA GUERRILHA DA INTERNET Nos anos 60, o militante-terrorista Carlos Marighella escreveu um pequeno livro que serviu de bíblia para milhares de almas iludidas que imaginavam derrubar a ditadura pelas armas. O Minimanual do Guerrilheiro Urbano ensinava como armar emboscadas e defendia a execução sumária de inimigos. Passados mais de cinquenta anos, a militância de esquerda no país se prepara para outra batalha. No feriado de Páscoa, cerca de 2000 petistas se reuniram em um evento batizado de Camping Digital, em São José dos Campos (SP). O objetivo era aperfeiçoar os presentes na arte da guerrilha pela internet. Bancado pelo partido, custou 400.000 reais. Os palestrantes eram alguns dos principais defensores do PT na rede - donos de blogs e colaboradores de sites financiados por anúncios de governos e de empresas comandadas pelo partido. Junto com os chamados "estrategistas" do jogo nem sempre limpo das redes sociais, eles ensinavam o melhor meio de atacar os adversários e fazer reverberar suas acusações - uma espécie de Minimanual do Guerrilheiro da Internet. Uma das principais táticas recomendadas à plateia foi a criação e disseminação de "memes" - vídeos, imagens ou frases que, embalados por bom humor, se espalham rapidamente pela internet, neste caso, com o propósito de beneficiar o PT ou achincalhar seus adversários. Explicou Leila Farkas, responsável pela página Fernando Haddad Prefeito: "Uma mesma imagem serve para explorar qualquer coisa. Você pega qualquer foto e põe o significado que quiser, não é uma delícia?". O exemplo que ela deu já circula pela rede: uma foto em que o governador Geraldo Alckmin faz um sinal com as mãos para indicar algo pequeno, como fazia o humorista Chico Anysio na pele do Professor Raimundo. "Dá para usar para tudo: o baixo nível do Cantareira, o salário do professor, do PM...", explicou. Outra palestrante, Tais Krug, defendeu um meme que vinculava a imagem do candidato do PSDB a presidente, Aécio Neves, a fotos de bebidas. O post foi tirado do ar pelo Facebook, mas ela não se conformava: "O que há de ofensivo nisto aqui?". Nas aulas sobre gestão de perfis, a ordem dos palestrantes era não escrever apenas sobre política, o que poderia afastar os leitores. O petista na web deve trabalhar com assuntos populares, o que pode incluir Valesca Popozuda, Michael Jackson e qualquer "outro assunto de que o pessoal goste", explicou Kátia Figueira, que cuida de mídias sociais em uma empresa de criação de sites. Outra orientação passada pelo partido aos aprendizes da guerrilha digital foi apagar páginas com referências ao "volta, Lula". Disse Kátia: "Cria a impressão de que o partido acha que o governo da Dilma não deu certo". Alguns palestrantes falaram sobre técnicas de criptografia, recurso usado para impedir o acesso ao conteúdo de mensagens e recomendado por eles para "despistar a NSA", a agência de inteligência americana. "Se quiserem monitorar nossos e-mails, terão de gastar mais dinheiro para isso", disse Tiago Pimentel, de uma ONG "pró-navegação anônima". No combate eleitoral em solo brasileiro, outra estratégia sugerida pelo PT é interferir em discussões políticas entre não militantes para engrossar a ala favorável ao partido. Se um argumento anti-PT leva vantagem em uma postagem numa rede social, por exemplo, o contra-ataque é "curtir" todos os posts que tenham ideias pró-PT. Segundo a socióloga e "militante pelo software livre" Clareana Cunha, "quem olhar de fora vai ter a ideia de que a visão de esquerda tem mais aceitação". Além disso, não se deve, jamais, deixar ataques sem defesa. A tendência é que venham à tona mais casos de corrupção até as eleições, como apontou Altamira Borges, do Blog do Miro ("contra a ditadura midiática"). A militância, diz ele, não pode estar "desarmada" - mesmo porque, "se bobear, perde a eleição". Pode até perder, mas os guerrilheiros digitais prometem cair atirando. LUCAS SOUZA 3#2 EM SEIS ELEIÇÕES, DUAS VIRADAS O histórico das disputas presidenciais reforça o favoritismo de Dilma, mas outro importante indicador aponta na direção contrária. PIETER ZALIS O Brasil teve seis eleições presidenciais desde a redemocratização. Em quatro delas, o candidato que liderava as pesquisas em abril chegou em primeiro lugar seis meses depois. As exceções foram Lula em 1994, que perdeu para Fernando Henrique Cardoso graças ao sucesso do Plano Real, e Dilma Rousseff em 2010, que se aproveitou da popularidade recorde de seu antecessor para virar o jogo sobre José Serra. Como não há no horizonte planos fabulosos nem (ao menos no caso dos adversários da presidente) padrinhos imbatíveis, o histórico das disputas sugere que Dilma, liderando na mais recente pesquisa do Datafolha, tem boas chances de ser reeleita em outubro. Além da intenção de voto, porém, há outro número a levar em conta. E esse faz o vetor da presidente girar no sentido contrário: a aprovação de seu governo. Em cinco meses, ela caiu 9 pontos e chegou a 34%, segundo o Ibope — muito distante dos 63% de que gozava em março de 2013, antes dos protestos de junho. O Datafolha mostra apoio um pouco maior: 36%. Mas as duas pesquisas levam à mesma conclusão: Dilma está perigosamente próxima do limiar a partir do qual a reeleição se torna muito difícil. Um estudo do Instituto Análise, conduzido pelo cientista político Alberto Carlos Almeida, comparou as avaliações dos políticos com os resultados de 104 eleições para governador no Brasil, de 1994 a 2010. Quando o índice de eleitores que consideram a administração ótima ou boa fica abaixo de 34%, a probabilidade de reeleição é nula. No outro oposto, aqueles que tinham uma aprovação acima de 46% foram todos reeleitos. Eleições não são uma ciência exata, mas há que lembrar, por exemplo, que, em 2012, o matemático Nate Silver acertou os resultados da disputa entre Barack Obama e Mitt Romney em todos os cinquenta estados americanos a partir de análises de pesquisas e estatísticas. Pode-se argumentar, a favor da candidata Dilma, que FHC e Lula, quando reeleitos, tinham índices de aprovação semelhantes aos dela a seis meses da votação. O que diferencia os cenários, no entanto, são as perspectivas futuras. O tucano tinha a estabilidade econômica como trunfo. O petista havia passado pelo pior do mensalão e começava a recuperar a popularidade. Para Dilma, o horizonte é nebuloso. Diz o cientista político Rubens Figueiredo: "Ainda não há um eixo no qual os eleitores possam se alinhar. Tudo está em aberto". A semana passada ofereceu uma boa mostra do que ainda pode vir. No campo da imagem do país no exterior, assunto que afeta diretamente a candidata do PT, registraram-se: novos protestos contra a Copa do Mundo, greve policial na Bahia com sessenta mortes em dois dias e cenas de vandalismo em Copacabana depois da morte de um dançarino que teria sido assassinado por policiais. No campo político, as notícias tampouco foram boas para o governo: o Supremo Tribunal Federal deu aval para uma CPI sobre a Petrobras, o que deve aprofundar a crise de corrupção na estatal. Por fim, na economia, pesquisas mostraram que ao menos 65% dos eleitores acreditam que a inflação vai aumentar e 72% pensam que o país precisa mudar. O potencial de crescimento dos principais adversários de Dilma é outra ameaça para ela. Só 60% dos eleitores ouviram falar do candidato do PSDB à Presidência, Aécio Neves. No caso de Eduardo Campos, do PSB, foram 75%. Restam seis meses para as eleições e a presidente ainda desponta como favorita. Mas está longe de poder dormir sossegada. 1989 O Líder em Abril: FERNANDO COLLOR 17%. Com aparição intensiva na TV a partir de abril como “caçador de marajás”, Collor dispara nas pesquisas até a vitória. Resultado do 1º Turno da Eleição: FERNANDO COLLOR 28%; LULA 16%. 1994 O Líder em Abril: LULA 37%. Lula liderava, mas Fenando Henrique consolida o Plano Real, que acaba com a inflação e o leva à Presidência da República. Resultado do 1º Turno da Eleição: FERNANDO HENRIQUE 54%; LULA 27% 1998 O Líder em Abril: FERNANDO HENRIQUE 41%. FHC convence o eleitorado de que é o mais preparado para enfrentar a crise econômica internacional e chega à reeleição. Resultado do 1º Turno da Eleição: FERNANDO HENRIQUE 53%; LULA 32% 2002 O Líder em Abril: LULA 32%. Lula prepara a Carta ao Povo Brasileiro, aproxima-se do mercado e vence com o discurso de mudança sem radicalização. Resultado do 1º Turno da Eleição: LULA 46%; JOSÉ SERRA 23% 2006 O Líder em Abril: LULA 40%. O Bolsa Família atinge 40 milhões de pessoas e ajuda Lula a superar a crise política do mensalão e ser reeleito. Resultado do 1º Turno da Eleição: LULA 49%; GERALDO ALCKMIN 42% 2010 O Líder em Abril: JOSÉ SERRA 40%. Dilma Rousseff é apresentada como a candidata de Lula e, com proposta de continuidade, supera José Serra e se elege. Resultado do 1º Turno da Eleição: DILMA ROUSSEFF 47%; JOSÉ SERRA 33% 3#3 PEIXE GRANDE NA REDE A Polícia Federal suspeita que o ex-ministro Alexandre Padilha e mais dois deputados do PT de São Paulo se envolveram no golpe milionário contra o Ministério da Saúde. RODRIGO RANGEL Uma das primeiras revelações que surgiram sobre o doleiro Alberto Youssef foi que ele havia planejado e executado um bem-sucedido golpe contra o Ministério da Saúde. Junto com alguns amigos, montou uma fábrica fictícia, a Labogen, nomeou uma diretoria fictícia para comandá-la e conseguiu um contrato de 31 milhões de reais para fornecer comprimidos ao governo. Na sequência, emergiu a segunda parte da história. Para conseguir o contrato, o doleiro contou com a ajuda decisiva do então vice-presidente da Câmara, deputado André Vargas (PT-PR), que lhe abriu as portas certas dos gabinetes em Brasília. Sócios na empreitada, ambos almejavam a "independência financeira". O doleiro está preso. O parlamentar perdeu o cargo, enfrenta um processo de cassação de mandato e, desde então, seu partido implora sua renúncia. Na semana passada, porém, o caso subiu mais um degrau. Segundo a Polícia Federal, há indícios de que o golpe contra o Ministério da Saúde pode ter contado com a participação e o aval do ex-ministro Alexandre Padilha, pré-candidato do PT ao governo de São Paulo, e de outros dois parlamentares do partido. Um relatório produzido pela polícia revelou o conteúdo de mensagens trocadas entre Youssef e André Vargas que comprometem o ex-ministro. Nelas, o deputado mantém o doleiro informado sobre as articulações para viabilizar os contratos com o Ministério da Saúde. O plano era usar a Labogen, o laboratório de mentirinha montado com sucata reciclada, para ganhar os contratos, superfaturar os preços e, depois, terceirizar a produção. Estima-se que a quadrilha lucraria, de início, perto de 15 milhões de reais sem fabricar um mísero comprimido. Em 26 de novembro de 2013, André Vargas escreve ao doleiro: "Falei com Pad agora, e ele vai marcar uma agenda comigo". A PF relaciona "Pad" a Padilha. Dois dias depois, Vargas comunica ao doleiro o nome do executivo que deveria tocar o laboratório-fantasma e ressalta: "Foi Padilha que indicou". O "indicado" foi Marcus Cezar Ferreira da Silva, um petista que trabalhou como assessor de Padilha no Ministério da Saúde e também prestou serviços à campanha da presidente Dilma em 2010. Em nota, Padilha afirmou que repudia o envolvimento de seu nome com as operações do doleiro Youssef e garantiu que "não indicou nenhuma pessoa para a Labogen". O documento que abriu caminho para o laboratório fornecer medicamentos ao governo foi assinado por Padilha um mês depois da mensagem em que André Vargas avisa Youssef de que trataria do assunto com o então ministro. A rede de contatos do doleiro envolvia outros figurões do PT. Segundo a PF, estavam no rol de amizades de Youssef os deputados Cândido Vaccarezza e Vicente Cândido, ambos de São Paulo. Vaccarezza teria, inclusive, promovido em seu apartamento uma reunião com representantes da quadrilha, incluindo o doleiro e Pedro Paulo Leoni Ramos, ex-assessor do governo Collor e sócio oculto da Labogen. Os investigadores acreditam que o encontro serviu para alinhavar os detalhes do contrato. "Se ele (Youssef) foi à minha casa, eu não lembro", diz Vaccarezza. O deputado Vicente Cândido, também amigo do doleiro, desconversou: "Conheci o Youssef em Cuba. Ele me foi apresentado como sendo um empresário". Sabe-se que em 2011 Vicente Cândido e Padilha foram a Cuba visitar laboratórios. Se foi lá mesmo que o deputado conheceu Alberto Youssef, a presença do doleiro na comitiva começa agora a fazer sentido. 3#4 MAIS DINHEIRO PELO CANO A Petrobras assina um contrato que a obriga a pagar por oleoduto que não é usado: o prejuízo já é de 271 milhões de reais. A CPI da Petrobras, como o nome indica, deve ser utilizada para investigar as denúncias de corrupção ligadas à empresa e apenas isso, decidiu na semana passada a ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber. Parece óbvio, mas o governo federal preferia ampliai- o foco, de modo a incluir outros escândalos, como o do cartel dos trens em São Paulo, e desviar a atenção dos próprios problemas. A decisão do STF, uma liminar da qual o governo ainda promete recorrei; recoloca a Petrobras no centro do palco. E, uma vez instalada a CPI, trabalho é o que não faltará aos congressistas, como mostra esta reportagem — mais um caso em que o dinheiro público é desperdiçado pela estatal de forma suspeita e difícil de engolir. Há uma década a Petrobras desembolsa milhões de reais para NÃO utilizar um oleoduto de 500 quilômetros que atravessa a Amazônia e chega ao Pacífico através da Cordilheira dos Andes. Em 2003, ela assinou um contrato com a OCP Ecuador S.A. que lhe permitia usar o oleoduto para escoar a produção dos poços que vinha explorando no Equador. Mas mudanças na legislação equatoriana e a revogação de licenças ambientais impediram a continuação do trabalho nas reservas, localizadas no chamado Bloco 31. A área acabou devolvida ao Equador em 2008. Ocorre que o contrato de uso do oleoduto era do tipo ship or pay — o que significa que a Petrobras deveria continuar pagando pelo direito de usá-lo ainda que não transportasse por ele nem uma gota de petróleo. O fato de que isso não parecia um bom negócio foi comunicado à Petrobras mês seguinte à assinatura do contrato. Uma manifestação da área internacional da companhia, datada de dezembro de 2003, advertia: "A obrigação de pagar tarifa, exportando ou não, equivalente a 80.000 barris por dia, resulta num negócio de alta exposição e economicamente inviável nos padrões da Petrobras". O negócio foi fechado com validade até 2018. Desde então, registrou, segundo os relatórios da Petrobras, um prejuízo de 271 milhões de reais. Procurada, a empresa informou que vem tentando reduzir os custos e que o déficit atual está em 14 milhões de dólares ao ano. Duas curiosidades. Primeira: as negociações para a entrada do Brasil no negócio foram intermediadas pelo presidente da Transpetro no governo FHC, Mauro Campos, e pelo agora notório Paulo Roberto Costa, ex-diretor de Abastecimento da Petrobras atualmente preso por suspeita de corrupção. A outra: se algum dia a estatal viesse a exportar petróleo pelo oleoduto, seu destino seria a encrencada refinaria de Pasadena, nos Estados Unidos, Terá a Petrobras acredita do que dois erros com põem um acerto? Respostas na CPI. ALANA RIZZO 3#5 NOVAS PISTAS O médico acusado de participar da morte do filho estava prestes a ter de dividir com ele a herança da mulher morta. O casal Leandro e Graciele Boldrini corre o risco de perder a guarda da filha de 1 ano. Presos na cidade gaúcha de Três Passos, eles são acusados pela morte de Bernardo Uglione Boldrini, de 11 anos, filho do primeiro casamento de Leandro. A solicitação para a retirada da guarda partiu da promotora Dinamárcia Maciel de Oliveira. Ela é a mesma que recebeu Bernardo quando ele procurou sozinho a Justiça pedindo para ser adotado por outra família, já que seu pai não lhe dava atenção e sua madrasta o maltratava. A promotora também solicitou o bloqueio dos bens de Boldrini. Médico-cirurgião, ele é o herdeiro legítimo do filho morto e, por consequência, da herança deixada pela mãe dele, Odilaine Uglione, morta em 2010 num caso de aparente suicídio. Dinamárcia argumenta que, com a medida, ela pretende evitar que Boldrini use parte dos bens que seriam de Bernardo para, por exemplo, custear a própria defesa. Caso se prove sua culpa na morte do filho, ele perde o direito à herança. O inventário de Odilaine ainda não foi concluído. Boldrini só pediu sua abertura no dia 30 de janeiro. Quando era casado com Odilaine, ele vendeu um imóvel sem formalizar sua transferência. Recentemente, o comprador passou a pressionar o médico para regularizar a situação, o que só podia ocorrer com a abertura do inventário e uma autorização da Justiça, concedida em 24 de fevereiro. A abertura do inventário implicaria a repartição dos bens de Odilaine entre Boldrini e o filho, incluindo a casa em que moravam com Graciele. O menino só poderia reivindicar a herança para si ao fazer 18 anos. Até lá, quem administraria o patrimônio seria o detentor da guarda da criança, Boldrini. O médico, no entanto, correu o risco de perder esse status no dia 31 de janeiro, quando a promotora Dinamárcia, depois de ser procurada por Bernardo, solicitou a transferência de sua guarda para a avó materna. O pedido foi negado pelo juiz Fernando Vieira dos Santos em 11 de fevereiro. Atendendo a uma solicitação de Boldrini, ele concedeu três meses para que o médico melhorasse sua relação com o filho. Bernardo foi morto um mês antes de o prazo expirar. Laudo pericial divulgado na sexta-feira não apontou sinais de terra na traqueia nem nos pulmões do menino, o que afastou a possibilidade de ele ter sido enterrado vivo. Investigadores chegaram a cogitar a hipótese depois que a assistente social Edelvânia Wirganovicz, que confessou ter participado do crime, revelou que a madrasta de Bernardo não checou sua pulsação antes de enterrá-lo. Graciele está isolada das demais presas em uma cela de 12 metros quadrados. Seu advogado, Vanderlei Pompeo de Mattos, contou que ela se alegrou ao ser informada de que a filha está com a irmã na cidade vizinha de Santo Augusto, dado que o lugar fica "pertinho" dali e que ela poderá visitar a criança "quando sair da cadeia". ISABEL MARCHEZAN 3#6 RAPOSAS DE TOGA Uma pesquisa revela que 62% dos conselheiros de tribunais de contas são políticos em fim de carreira e 20% deles respondem a processos. KALLEO COURA Desde que deixou o cargo de secretário de governo na gestão de Mário Covas (PSDB), em 1997, Robson Marinho ocupa uma cadeira no Tribunal de Contas do Estado de São Paulo. Como conselheiro do órgão (cargo vitalício e com salário superior a 20.000 reais mensais), sua função é analisar os gastos do governo de forma a evitar roubalheiras e mau uso do dinheiro público. É uma responsabilidade e tanto. Mas o fato de o conselheiro ser acusado desde 2008 de ter recebido suborno para favorecer a multinacional francesa Alstom e de, segundo o Ministério Público, ter 2,5 milhões de dólares numa conta secreta na Suíça não foi suficiente para afastá-lo do cargo. Marinho, que há apenas um mês começou a ser investigado pela Corregedoria do TCE-SP, continua sentado em sua cadeira no tribunal, de onde zela pela lisura dos contratos bilionários do governo paulista. O caso de Robson Marinho está longe de ser uma exceção. Um levantamento inédito feito pela Transparência Brasil mostra que um em cada cinco dos 238 conselheiros de tribunais de contas no Brasil é alvo de processos na Justiça ou nas próprias cortes. A maioria dos processos é por improbidade administrativa (não se espera que entendam do assunto, afinal?), mas há casos de homicídio também. O conselheiro do TCE de Alagoas Luiz Eustáquio Toledo, por exemplo, tem nas costas uma condenação por assassinato. Matou a mulher com um tiro na cabeça quando já ocupava uma cadeira no órgão, em 1987. Foi sentenciado a seis anos no regime semiaberto e, durante esse período, cumpriu a esdrúxula rotina de ir para a corte durante o dia, fiscalizar a administração do estado e dormir à noite num quartel, na condição de preso condenado. Até hoje ocupa uma cadeira no TCE-AL. No Amapá, o ex-presidente do tribunal de contas José Júlio Coelho foi alvo de um inquérito da Polícia Federal e acusado de amealhar por vias ilegais oitenta imóveis de luxo espalhados por seis capitais, além de carros como Ferrari e Maserati. Segundo a PF, ele foi o mentor de um esquema que desviou mais de 300 milhões de reais dos cofres do próprio tribunal: duplicava a folha de pagamento do órgão e sacava a metade fajuta por meio de cheques. Ao menos 7,5 milhões de reais teriam sido sacados pessoalmente pelo conselheiro na boca do caixa, diz o inquérito da PF. Em 2010, a polícia desmontou o esquema. Em 2012, o ex-presidente e outros três conselheiros foram afastados do cargo pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Mas todos continuam a receber normalmente seu salário. Outro dado do levantamento da Transparência ajuda a explicar por que os casos de corrupção nos tribunais de contas são tão comuns. O cargo de conselheiro, em vez de caber a técnicos preparados para vigiar os corruptos, no Brasil costuma ser oferecido como prêmio de aposentadoria a políticos em fim de carreira. Segundo o levantamento da Transparência Brasil, nada menos que 62% dos atuais conselheiros dos 34 tribunais de contas do país são ex-políticos. A cultura de agraciar aliados e apadrinhados com os gordos salários dos tribunais e suas mordomias vitalícias acaba criando situações como a da ex-deputada estadual Lilian Martins, do PSB do Piauí. Ela foi nomeada em 2012 para exercer a missão de fiscalizar as contas do próprio marido, o então governador Wilson Martins, que deixou o cargo em abril para concorrer ao Senado. Tribunais de contas existem em vários países e, apesar do nome, são órgãos auxiliares do Legislativo, sem relação com o Judiciário. Nas nações desenvolvidas, praticamente inexistem neles membros nomeados por motivos políticos. Na França, apenas o presidente é indicado por um conselho de ministros, mas só pode ser selecionado entre os mais de 700 magistrados que fazem parte do tribunal e foram escolhidos entre os melhores alunos da Escola Nacional de Administração. Em Portugal, os conselheiros são selecionados por concurso. Nos Estados Unidos, apenas o chefe é nomeado pelo presidente. Um projeto de lei que está no Congresso desde o ano passado propõe uma maneira de pôr fim a esse atraso. Prevê que os conselheiros sejam escolhidos entre técnicos dos tribunais e do Ministério Público de Contas por meio de eleição interna. Sua aprovação significaria ao mesmo tempo um aumento da fiscalização e o fim de uma aposentadoria confortável para os políticos. Assim, ele permanece parado desde que foi apresentado, em outubro. Enquanto isso, nos galinheiros, a ordem é salve-se quem puder. SUAS EXCELÊNCIAS, OS CONSELHEIROS José Júlio Coelho INVESTIGADO POR SACAR 7,5 MILHÕES Ex-presidente do TCE do Amapá, segundo a Polícia Federal comandou um esquema que desviou mais de 300 milhões de reais dos cofres da instituição ao longo de dez anos. As investigações indicam que o conselheiro sacou pessoalmente 7,5 milhões de reais na boca do caixa. Foi afastado em 2012, mas continua a receber o salário de 25.323 reais. Luiz Eustáquio Toledo CONDENADO POR MATAR A MULHER Membro do TCE de Alagoas, matou a mulher com um tiro na cabeça e depois fugiu para evitar o flagrante. Na década de 90, foi condenado a seis anos de prisão no regime semiaberto. Ia para o tribunal durante o dia, para fiscalizar e julgar contratos do estado, e dormia em um quartel do Corpo de Bombeiros à noite. Permanece como conselheiro do tribunal até hoje. Jonas Lopes de Carvalho ACUSADO DE VENDER SENTENÇAS O presidente do TCE do Rio de Janeiro é acusado pelo Ministério Público Federal de ter recebido 20.000 reais para aprovação das contas de Carapebus, que havia contratado uma consultoria fictícia. Continua no cargo e, no início do mês, sentou-se à mesa das autoridades na posse do novo governador do estado: "É um reconhecimento do nosso trabalho", afirmou. 4# ECONOMIA 30.4.14 4#1 LIÇÕES DE VALOR 4#2 AS TURBINAS EM RISCO 4#1 LIÇÕES DE VALOR Um livro conta os princípios da estratégia de Yale para administrar os recursos recebidos em doações de ex-alunos. GIULIANO GUANDALINI Depois de alguns anos trabalhando em bancos de investimentos em Wall Street, David Swensen foi indicado, em 1985, para assumir a administração do fundo formado pelos recursos doados pelos ex-alunos de Yale, uma das mais prestigiosas universidades americanas. Esse fundo, chamado de endowment, tinha então 1 bilhão de dólares. A ideia de Yale, ao contratar o executivo, foi rentabilizar os seus recursos acima daquilo que seria obtido se fizesse aplicações tradicionais. Nas quase três décadas cuidando do fundo, Swensen obteve uma rentabilidade média anual superior a 13%, um Índice extraordinário, bem superior ao pago pelos títulos públicos. Hoje o endowment possui mais de 20 bilhões de dólares. Swensen é considerado o criador da mais influente estratégia para investidores institucionais com metas de longo prazo. Seu método pode ser conhecido no livro Desbravando a Gestão de Portfólios, lançado agora no Brasil pela BEI Editora. Swensen, que participará de debates no Insper, no próximo dia 8 de maio, e na Casa das Garças, no dia 9, falou a VEJA. Como foi possível manter um histórico de rentabilidade média anual superior a dois dígitos por tanto tempo, mesmo em meio a crises e crashes nos mercados financeiros? Os princípios centrais da estratégia para a administração dos fundos de Yale incluem a diversificação entre muitos tipos de ativos, mas com foco em ações, a disciplina no rebalanceamento do portfólio de investimentos e a administração ativa dos recursos. As ações oferecem a possibilidade de retorno elevado para investidores com um horizonte de longo prazo, como é o caso de um endowment. O rebalanceamento disciplinado do portfólio é essencial para que um investidor não saia de seu curso de longo prazo em meio às oscilações de curto prazo de mercado e assim possa comprar ativos cujos preços estejam deprimidos e vender aqueles cujos preços estejam elevados. Graças a esses princípios, Yale conseguiu alcançar uma rentabilidade superior a longo prazo. Desde a crise financeira iniciada em 2008, houve uma queda acentuada no ritmo da economia mundial. Como proteger o valor do dinheiro e rentabilizá-lo em um contexto de baixo crescimento e taxas de juros reduzidas? Nunca pensamos em adaptar a nossa estratégia de longo prazo a cenários específicos dos mercados. A melhor maneira de alcançar rentabilidade superior é manter a estratégia de longo prazo. Perseverar na estratégia estabelecida é tão importante quanto colocá-la em prática. Durante as crises, muitos investidores, seja por falta de opção, seja por necessidade, venderam ativos no momento errado e converteram a volatilidade de curto prazo em uma perda permanente de capital. A longo prazo, a implementação disciplinada de uma estratégia de investimento representa uma diferença enorme em termos de rentabilidade. Como essa estratégia se compara à atuação dos investidores típicos de Wall Street? O horizonte de tempo é a diferença essencial. Os analistas de Wall Street tendem a focar o curto prazo, tentando antecipar qual será o resultado financeiro das companhias no trimestre seguinte. Os endowments investem com um horizonte muito mais longo. Em Yale, tentamos identificar oportunidades com preços atrativos e, uma vez feito o investimento, mantemos essa posição por muitos anos. Para Yale e outras grandes universidades americanas, qual a importância dos endowments no financiamento das atividades? Varia muito entre as universidades. Em nosso caso, o endowment é responsável por 35% do orçamento total. Qual a maneira apropriada de gastar os recursos de um endowment? O objetivo desses recursos é apoiar tanto as operações correntes como as de gerações futuras. As universidades, constantemente, são pressionadas a gastar uma parcela maior de seus endowments, por isso o uso disciplinado é vital para preservar os recursos. Em Yale, temos a regra de gastar 5,25% dos recursos a cada ano, com eventuais ajustes. O endowment ajuda os alunos de duas maneiras, reduzindo o custo das mensalidades e oferecendo bolsas de estudo. As despesas estimadas para um estudante em Yale, incluindo mensalidade, acomodação, gastos pessoais e livros, são de 60.900 dólares ao ano, mas a despesa média por aluno com mensalidade é de 18.000 dólares. Graças ao endowment, Yale pode oferecer ensino de qualidade a todos os estudantes, independentemente da situação financeira. No Brasil, os fundos de doações de ex-alunos são raros, entre outras razões pela falta de incentivos tributários. Nos Estados Unidos, como a questão fiscal contribui para a formação dos endowments? Doações para fins de caridade, incluindo as universidades, podem ser deduzidas da base tributável. Sem dúvida, é um incentivo aos endowments. 4#2 AS TURBINAS EM RISCO A falta de água faz com que hidrelétricas reduzam sua geração, e o risco de racionamento aumenta. Indústrias já preferem vender a energia contratada a ter de ampliar a sua produção. MALU GASPAR E MARCELO SAKATE Em meados de março, o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, convocou representantes do setor elétrico para uma reunião em Brasília. Os empresários imaginaram que finalmente teriam a oportunidade de traçar um plano para contornar o risco crescente de um apagão. Não foi o que aconteceu. Logo de início, Lobão deixou claro o objetivo do encontro: conter a divulgação, pelo empresariado, dos cenários mais pessimistas. "Parem de falar com a imprensa", exortou o ministro. "Projeções alarmistas não contribuem para o diálogo." Nas conversas fechadas entre representantes do governo e das distribuidoras e geradoras de energia, de vez em quando escapa uma insinuação como o "você tem financiamento do BNDES, não é? Lembre-se disso". A ordem é manter as aparências e agir como se estivesse tudo sob controle, pelo menos até que sejam contados os votos da eleição de outubro. Isso não significa, é claro, que o país esteja livre de um novo racionamento — e ele poderá ocorrer mais cedo do que gostaria o governo. O período úmido, que se estende de dezembro a abril, chegou ao fim sem que o volume de chuvas tenha se aproximado da média histórica. A falta de chuvas e a inépcia governamental criaram um desequilíbrio inédito entre oferta e demanda de energia, a ponto de os reservatórios das principais usinas hidrelétricas se esvaziarem em uma época do ano em que eles costumam se encher substancialmente. Segundo projeções de três consultorias ouvidas por VEJA, há grandes chances de os brasileiros enfrentarem um novo apagão nos próximos meses, sem que exista nenhum plano de contingência em preparação. Uma das projeções indica que, se as chuvas continuarem no mesmo volume em que vêm ocorrendo desde o início do ano, a 70% da média histórica, o nível das represas cairá para menos de 18% até o fim de agosto (veja o gráfico). Esse é considerado um patamar crítico para as usinas, porque as obriga a desligar ao menos parte das turbinas. Em regiões onde a estiagem é mais grave, as hidrelétricas já estão recorrendo a esse expediente, como a de Três Marias, em Minas Gerais. A redução no fluxo do São Francisco preocupa os agricultores que dependem do rio para a irrigação. Na região de Petrolina e Juazeiro, divisa entre Bahia e Pernambuco, os produtores de manga e uva observam a queda no nível do lago de Sobradinho. O recuo exige a movimentação das bombas que captam a água. Silvio Medeiros, presidente da Agrobrás, afirma que a redução de 1 metro no nível do rio significa um recuo de 500 metros. "Em alguns locais, a água já desceu mais de 2 quilômetros", diz o executivo. Mesmo que chova 100% do esperado entre maio e dezembro, o que é pouco provável segundo os serviços de meteorologia, o país viverá os próximos meses sob o fantasma do apagão. Pelos cálculos da consultoria PSR, existem atualmente 48% de chance de os reservatórios ficarem abaixo de 10% ainda neste ano. Nessa situação, as medida de redução de consumo teriam de ser adotadas com urgência. "A vantagem de fazer com antecedência um programa de redução voluntária da demanda é minimizar o impacto. Pense no orçamento de uma família: é mais fácil cortar 5% das despesas por seis meses do que cortar 30% em um único mês, embora o total economizado seja equivalente", explica Mário Veiga, presidente da PSR. O nível dos reservatórios já é semelhante ao registrado em 2001, quando o país vivia na iminência de racionamento. A diferença é que, então, se realizou uma campanha nacional de redução da demanda. Até agora não há plano conhecido para evitar o apagão. O problema é que ninguém quer enfrentar o ônus de tentar convencer Dilma Rousseff de que é preciso começar a pensar em medidas de emergência. Os relatos dos assessores da presidente para a questão energética são de que, a cada informação ruim que apresentam, costumam ouvir broncas homéricas. Eles têm medo da presidente, que não raro expressa de forma enfática sua insatisfação com "a bagunça que vocês criaram". Diz Afonso Henriques, que foi secretário de Energia durante a crise de 2001: "A situação do setor elétrico é caótica. Estão apostando na retração do consumo industrial para ajudar a aliviar a situação, sem providências imediatas que ajudem a evitá-la". Caso as estimativas das consultorias se confirmem, os brasileiros logo começarão a sentir no dia a dia os efeitos da crise. Primeiro é a qualidade da energia que sofre. A luz fica mais fraca, os computadores começam a ter pequenas falhas, o maquinário da indústria sofre pequenas interrupções. Em seguida vêm os cortes seletivos, pequenos apagões diários. Quando a falta de energia chega a um extremo, não resta alternativa senão o racionamento, com cortes programados e generalizados, até que se consiga recuperar a capacidade de geração. Diz Cristopher Vlavianos, presidente da Comerc, empresa de gestão e comercialização de energia: "O governo optou por não ter um plano B. Decidiu estressar ao máximo a operação do sistema. Nessa situação, qualquer imprevisto pode causar problemas de fornecimento. A geração das usinas térmicas está no limite há dois anos". A crise energética já faz parte do cotidiano de algumas grandes empresas. É o caso da americana Alcoa, uma das líderes mundiais na produção de alumínio. Há um mês, ela anunciou uma redução de 28% em sua capacidade de produção no país, com a paralisação de atividades nas unidades de São Luís e Poços de Caldas, e citou o aumento na eletricidade como um dos fatores determinantes para a decisão. A energia responde por metade de seus custos. É uma decisão adiada sempre que possível, pois significa abrir mão de mercado em favor da concorrência. Com o corte na produção, a empresa passou a vender o excedente de energia no mercado livre, em que os preços são à vista e dispararam por causa da escassez de chuvas. A Votorantim também optou por reduzir os planos de expansão, ao menos temporariamente, e vender parte da energia que havia contratado. Mesmo quem conseguiu ficar relativamente incólume ao apagão do governo não comemora. A paranaense Pisa, a maior fabricante nacional de papel para a imprensa, compra energia com uma antecedência de até cinco anos — é um insumo que representa 40% de seus custos. "Sem esse planejamento, teríamos de paralisar totalmente a operação em um momento como o atual", afirma Alex Pomilio, diretor-geral da Pisa. É o tipo de planejamento que passa longe dos gabinetes de Brasília. COM REPORTAGEM DE HELENA BORGES E BIANCA ALVARENGA 5# GERAL 30.4.14 5#1 AMBIENTE – AGORA, É REZAR PARA SÃO PEDRO 5#2 IDEIAS – UTÓPICO E DELICIOSO 5#3 COMPORTAMENTO – É MENOS TÓXICO, MAS VICIA 5#4 GENTE 5#5 RELIGIÃO – RASCUNHOS DE UM SANTO 5#6 CRIME – UM PAÍS EM CHAMAS 5#7 OLIMPÍADA – O JEITO AGORA É CORRER MUITO 5#8 SOCIEDADE – ESCOVAS PROGRESSISTAS 5#9 SOCIEDADE – MULHER DO JOESLEY, NÃO! 5#1 AMBIENTE – AGORA, É REZAR PARA SÃO PEDRO Sim, a falta de chuvas agrava a seca brasileira. Mas é outro o real motivo da escassez de água: a incapacidade oficial em administrar os vastos recursos hídricos do país. JENNIFER ANN THOMAS E RAQUEL BEER Como explicar que há perigo de racionamento de água em um país que detém 12% dos recursos hídricos do planeta? Sim, a falta de chuvas é um motivo. A precipitação está abaixo do esperado nas três regiões mais populosas, onde estão 84% dos brasileiros (veja o quadro abaixo). Mesmo assim, em teoria, sobraria água potável para suprir a demanda. O que realmente explica o risco é a ineficiência em administrar nossa imensa capacidade hídrica. As reservas, como a da Cantareira — responsável pelo abastecimento de 10 milhões de paulistas —, atualmente com 11,4% de sua capacidade, estão à beira do colapso. Para piorar, pela carência de investimentos em fiscalização e em novas tecnologias, 40% da água tratada vaza em tubulações precárias. A situação é ainda mais alarmante quando se leva em conta que mudanças climáticas que afetam a Terra farão com que secas sejam cada vez mais frequentes no Brasil. Estamos preparados? Em consequência do aumento da temperatura global em 1,2 grau em cinco décadas, treze dos catorze anos mais quentes desde que começaram as medições, em 1850, ocorreram neste começo de século. O Brasil é diretamente afetado. Segundo o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), órgão da ONU, as chuvas no Nordeste serão cada vez mais raras, o que transformará áreas semiáridas em áridas. Até o fim deste século, quando o mundo deve aquecer 1,3 grau, será reduzida a quantidade de água potável em regiões subtropicais e tropicais, a exemplo do Brasil. O descompasso do clima tem outro efeito, este difícil de ser mensurado. Disse a VEJA o cientista ambiental Anthony Leiserowitz, da Universidade Yale, nos Estados Unidos: "As alterações climáticas aumentam a frequência de eventos extremos, como as secas em períodos teoricamente chuvosos e tempestades quando antes não víamos uma gota caindo do céu". Climatologistas esperavam que ocorresse seca no Brasil. "Mas nossa estrutura não foi preparada para lidar com isso", afirma o engenheiro ambiental Benedito Braga, professor da USP e presidente do Conselho Mundial da Água. "Temos poucos reservatórios e é ineficiente a tecnologia brasileira de captação hídrica", completa. O IPCC aponta soluções para países onde há água de sobra, mas o recurso é mal utilizado. Entre elas, o tratamento de água da chuva. Também é preciso acabar com o desperdício. Enquanto 40 de cada 100 mililitros de água tratada no Brasil não chegam aos consumidores, em países secos a captação beira a perfeição. Em Israel, onde desertos tomam 60% do território, a água do mar é dessalinizada, a irrigação é por gotejamento (gotas são aplicadas diretamente na raiz) e sensores avisam quando canos vazam. Resultado: nem 5% da água é desperdiçada. Enquanto isso, no Brasil, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) deixou de investir 815 milhões de reais em melhorias que evitariam a seca e responde a inquérito do Ministério Público que questiona a má gestão de recursos hídricos paulistas. Só nos sobrou rezar para São Pedro. CADÊ A ÁGUA? O retrato da grave seca que aflige o Brasil FALTA CHOVER As três regiões mais afetadas JANEIRO Chuva esperada: Nordeste 113,3mm; Sudeste 205,6mm; Sul 203mm Quanto choveu: Nordeste 64,7mm; Sudeste 81,1mm; Sul 198,4mm Diferença: Nordeste 43%; Sudeste 60,5%; Sul 2,3% FEVEREIRO Chuva esperada: Nordeste 121,8mm; Sudeste 147,8mm; Sul 174,2mm Quanto choveu: Nordeste 107,5mm; Sudeste 84,5mm; Sul 164,6mm Diferença: Nordeste 11,7%; Sudeste 43%; Sul 6% MARÇO Chuva esperada: Nordeste 177,4mm; Sudeste 168mm; Sul 144,2mm Quanto choveu: Nordeste 155,9mm; Sudeste 122,7mm; Sul 191,1mm Diferença: Nordeste 12,1%; Sudeste 27%; Sul 32,4% Fonte: Inmet OS RESERVATÓRIOS SECOS É a primeira vez em mais de dez anos que o nível dos reservatórios do Centro-Oeste e do Sudeste cai entre janeiro e março, período de chuvas. A PARTE QUE SOME A cada 100 mililitros de água tratada, apenas 60 chegam aos consumidores (40 vazam em tubulações ou são desviados ilegalmente) Desperdício de água tratada ... no brasil: 40% ... nos Estados Unidos: 16% 5#2 IDEIAS – UTÓPICO E DELICIOSO Assim é Capital, o livro-sensação do momento, bem escrito, bem pesquisado, ótimo no diagnóstico dos males do capitalismo, mas inútil como receituário para eles. EURIPEDES ALCÂNTARA É infalível. Sejam eles ganhadores do Prêmio Nobel ou reles propagandistas, esquerdistas autores de livros sobre o capitalismo desconhecem ou menosprezam as razões básicas de sucesso em uma economia de mercado. Não o fazem por falta de inteligência nem de conhecimento. Não é preguiça, má-fé nem despreparo. Simplesmente eles se suicidariam intelectualmente caso se vissem na situação de tentar entender o impacto positivo para todos, pobres e ricos, da produtividade e da inovação, das liberdades individuais, do poder das instituições em limitar as ações dos governos e, principalmente, da competição em um ambiente de regras claras e justas. O livro-sensação do momento, Capital no Século XXI, do francês Thomas Piketty, range morro acima nessa mesma arcaica bitola estreita. A sina começa com aquele livrão escrito há 150 anos, Das Kapital, que se propunha a fazer uma crítica materialista e definitiva da economia política. Seu autor, Karl Marx, como admite o próprio Piketty, errou grosseiramente o diagnóstico do fim iminente do capitalismo por ignorar que as economias centrais da Europa colhiam naquele período os frutos do mais extraordinário salto de produtividade desde a domesticação das plantas e dos animais na pré-história. Marx e a turma viam um '"espectro rondando a Europa". Enquanto isso, a produtividade média era multiplicada por 100 pelas novas tecnologias e, em múltiplos variados, mas sempre positivos, melhoravam os salários, a qualidade e a expectativa de vida, as oportunidades educacionais e de ascensão social para a classe trabalhadora. Na teoria dos marxistas, essa classe deveria estar fazendo a revolução comunista e, assim, herdar o mundo, coroando séculos de trevas com a implantação da "ditadura do proletariado", a forma mais justa e livre de organização social que o engenho humano poderia conceber. Deu no que deu. Os trabalhadores das economias avançadas, desfrutando os benefícios da revolução — não da comunista, mas da tecnológica —, mandaram os marxistas para a Rússia e para as universidades, onde eles produziram catástrofes gigantescas. Na Rússia, o experimento marxista durou 75 anos e desabou sob o peso da própria monstruosidade. Nas universidades a tragédia continua em andamento. Thomas Piketty estudou e deu aulas de economia nos Estados Unidos, mas a raiz do seu pensamento econômico é deliciosa e inutilmente francesa. O livro que escreveu é exatamente isto: deliciosamente inútil. Delicioso pelo estilo e pelo diagnóstico. Inútil pela inaplicabilidade utópica do tratamento que prescreve para acabar com a desigualdade: a criação de um imposto mundial sobre a riqueza cuja alíquota máxima seria de 80%. Como cobrar esse imposto? Piketty nem sequer ensaia uma resposta. Nem poderia. Sua França natal anunciou no ano passado a cobrança de 75% de imposto sobre o valor que exceder o rendimento de 1 milhão de euros por ano. O resultado, antes mesmo que o imposto começasse a vigorar, foi fuga e destruição de riqueza no país, com impactos negativos sobre toda a economia, mais fortes sobre os pobres, que viram seu emprego ameaçado pela paralisação dos investimentos. Cobrar um imposto mundial exigiria a criação de uma burocracia fiscalizatória e punitiva planetária. Ela estaria fadada ao fracasso e à desmoralização pelo gigantismo, pela ingovernabilidade e pela ineficiência. Vivemos em um tempo de fragilização das fronteiras nacionais pela malha capilar das conexões da internet e seus ainda incipientes, mas potencialmente perturbadores, sistemas de compensação de moedas digitais — dos quais o Bitcoin é apenas o mais conhecido. Como bom marxista, Piketty ignora o conceito de criação de riqueza e continua propondo soluções para as economias mercantilistas em que o ganho de um significa o prejuízo do outro, o "jogo de soma zero". Para o autor de Capital, a riqueza ou é herdada ou apropriada, nunca criada. Essa prisão intelectual o leva a namorar o totalitarismo e à negação da democracia. "As revoluções inglesa, americana e francesa adequaram-se a esta lógica comum — seus sistemas tributários de maneira alguma foram feitos com o objetivo de reduzir as desigualdades de riqueza", escreve Piketty, para concluir: "Claramente, a igualdade de direitos e oportunidades não é suficiente para garantir a distribuição igualitária da riqueza". Ora, se a distribuição igualitária da riqueza é a panaceia para todos os males da humanidade e a democracia é incapaz de resolver o problema, então a conclusão lógica e inescapável é que a solução terá de ser imposta de cima para baixo. Isso até seria, vá lá, tolerável se o objetivo atingível da humanidade fosse o igualitarismo. Não é. As tentativas de impô-lo produziram ainda mais desigualdade. O maior desafio continua sendo criar riqueza de maneira sustentável e prolongada. Quando os países atingem esse estágio todos ganham — ricos e pobres. Na ótica de Piketty, no entanto, a distribuição equitativa da miséria faz do Haiti um país melhor do que a China, que está a caminho de se tornar uma nação rica, mas "onde a desigualdade aumentou". Capital não traz novidades. Apenas reafirma aquilo que as pessoas definem como "o rio corre para o mar" quando lêem notícias de que um sujeito rico ficou ainda mais rico. Ou quando as estatísticas mostram que a riqueza produzida em um país de livre mercado tende a ir, proporcionalmente, para as mãos de quem já tem muito. Simplificando, digamos que a riqueza nacional duplique em um cenário hipotético em que a maré suba igualmente para todos. Nesse caso, um bilionário poderia ganhar mais 1 bilhão. Um milionário, mais 1 milhão. Um pobre poderia também dobrar seus ganhos. Em valores absolutos e relativos, porém, ocorreria um inegável aumento da concentração da renda nas mãos dos bilionários. Esse estado de coisas é o ideal? Não, longe disso. É um fato imperfeito da vida econômica da imperfeita espécie humana no decorrer de uma história imperfeita. A desigualdade não é invenção capitalista. Ela foi mais profunda e cruel nas eras que precederam o capitalismo. Ainda sem tradução para o português, Capital, com mais de 600 páginas, figura em primeiro lugar na lista de mais vendidos da Amazon nos Estados Unidos. Piketty disfarça com novos conceitos crenças de Marx, enterrado no cemitério Highgate, em Londres, desde março de 1883. O espantoso é que esse tipo de argumentação ainda tenha poder de sedução. "O amor à liberdade é incompatível com a devoção integral à crença em uma panaceia para todos os males humanos. O contato com pessoas incapazes de questionar intensificou mil vezes minhas dúvidas sobre a sabedoria de se agarrar a uma crença mesmo ao custo da disseminação da miséria", escreveu o filósofo inglês Bertrand Russell em 1920. Piketty não se acha comunista nem socialista. Ele se vê como um reformador do capitalismo. É sua maior fraqueza. Ao contrário do socialismo, o capitalismo não é um sistema artificial (Adam Smith não usa uma única vez a palavra capitalismo em sua investigação sobre as causas da Riqueza das Nações). O capitalismo não tem fundador, livro básico nem militantes. Ele funciona sob sistemas políticos totalitários, mas sua vocação é libertária. Governos mais democráticos produzem melhor capitalismo, que produz mais riqueza — para todos. 5#3 COMPORTAMENTO – É MENOS TÓXICO, MAS VICIA A FDA, agência sanitária americana, propõe regular o uso do cigarro eletrônico. Ele vicia, libera toxinas nas baforadas e não há evidências de que ajude os que lutam para abandonar o tabagismo. TATIANA GIANINI Com a venda proibida no Brasil desde 2009 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o cigarro eletrônico continua entrando no país escondido nas malas de muitos viajantes. Ele também pode ser encontrado em algumas tabacarias e em sites da internet, indiferentes ao decreto da agência. Não há restrições federais ao seu uso, ainda que alguns estados e municípios, com diferentes graus de rigor, tentem impor limites. Por isso, o produto, facilmente identificado pela luzinha que simula a brasa do cigarro comum, aparece com frequência em restaurantes, festas e nas rodas de adolescentes na porta e nos pátios dos colégios. Os fabricantes defendem a ideia de que o cigarro eletrônico não contém toxinas, ajuda quem pretende abandonar o vício do cigarro com tabaco e seu vapor é inofensivo e, portanto, não incomoda ninguém. Esses benefícios, contudo, são questionados pelos médicos, que já encontraram ao menos duas substâncias cancerígenas no produto (veja o quadro). "O cigarro eletrônico pode ser menos tóxico que o convencional, mas não há evidência alguma de que ajude a deixar de fumar", diz a médica sanitarista Tânia Cavalcante, do Instituto Nacional de Câncer (Inca) e responsável pela política nacional contra o tabagismo. Estudos feitos com jovens americanos e coreanos concluíram que muitos adolescentes acabam fazendo uso dos dois tipos de cigarro. Nos últimos anos, o aumento nas vendas de cigarro eletrônico na Europa e nos Estados Unidos levou a uma interferência das autoridades. Em fevereiro, o Parlamento Europeu aprovou uma legislação que aumenta a supervisão sobre o cigarro eletrônico a partir de 2016. Na semana passada, a FDA, a agência americana para o controle dos alimentos e remédios, propôs colocá-lo sob a sua jurisdição e divulgou um esboço de regulamentação. Na terça-feira 29 entra em vigor na cidade de Nova York a proibição do cigarro eletrônico em bares, restaurantes, parques e escritórios. Mais de vinte estados americanos têm leis semelhantes. O cigarro eletrônico contém uma bateria e um cartucho com nicotina líquida, substância viciante extraída do tabaco. Se ingerido por uma criança, o que já aconteceu dezenas de vezes nos Estados Unidos e na Europa, o líquido causa intoxicação grave. No aparelho, o refil de nicotina passa por uma resistência e se transforma em vapor, que é inalado. O produto não contém as substâncias cancerígenas do alcatrão, mas não está livre de problemas. Ele libera no ar um décimo da nicotina e um sétimo de partículas físicas do tradicional. "Ainda que o cigarro eletrônico elimine menos toxinas no ar, quem estiver por perto deve, sim, ser considerado fumante passivo", diz o epidemiologista americano Gary Giovino, da Universidade de Buffalo, nos Estados Unidos. A maior preocupação é com os jovens. "De cada dez fumantes, oito começaram o hábito na adolescência", diz o pneumologista José Roberto de Brito Jardim, de São Paulo. O cigarro eletrônico é uma eficiente porta de entrada para o vício do tabaco, porque tem o apelo da tecnologia e não provoca a desagradável sensação de amargor na boca, que espanta muitos iniciantes do cigarro comum. Nos Estados Unidos, o cigarro eletrônico estava, até a semana passada, em um limbo legal. Qualquer um, de qualquer idade, podia comprar. O ator Robert Pattinson, astro da saga Crepúsculo, aparece frequentemente com a versão mentolada da marca americana NJoy entre os dedos. As empresas divulgavam livremente seus produtos em redes sociais e em jogos infantis para tablets. São práticas em extinção. Entre as regras propostas pela FDA está proibir sua compra por menores de 18 anos, a divulgação de benefícios não comprovados à saúde e a distribuição de amostras grátis. VAPORIZAR OU FUMAR? Substâncias cancerígenas Cigarro eletrônico: Nitrosaminas e dietilenoglicol Cigarro normal: 60, no total. Só no alcatrão são 48. Substâncias que causa dependência Cigarro eletrônico: Nicotina Cigarro normal: Nicotina Sabores Cigarro eletrônico: Tabaco, café, morango, baunilha, chocolate Cigarro normal: Menta, cravo e cereja, entre outros (todos proibidos no Brasil) Preço Cigarro eletrônico: Entre 90 e 300 reais. O refil equivalente a um maço custa 30 reais. Cigarro normal: 6,50 reais o maço, em média Venda permitida no Brasil Cigarro eletrônico: Não Cigarro normal: Sim COM REPORTAGEM DE LETÍCIA NAÍSA 5#4 GENTE JULIANA LINHARES. Com Taisa Szabatura e Thaís Botelho ENFIM, UMA MULHER DE NEGÓCIOS A empresária de GISELE BÜNDCHEN é uma de suas irmãs. A advogada, outra. E quem cuida de suas redes sociais, uma terceira do clã. Mas a cabeça que coordena todas as operações é dela mesma. Quando vai fazer uma campanha publicitária, a modelo manda para o fotógrafo referências de imagens nas quais quer se espelhar. O maquiador também recebe instruções detalhadas: “Gisele controla tudo. Tem uma inteligência para negócios – quem não gosta de mostrar – que faz com que ela saiba o que vende mais”, diz Sandra Chayo, diretora da marca de lingeries de Gisele. “Fazemos quatro reuniões por ano. Ela sempre fala com o contador e prova todas as peças, que são refeitas até alcançar sua aprovação.” Funciona: as vendas de seus produtos aumentaram 28% e sua fortuna já é maior que a do marido; ela tem 42 milhões de dólares e Tom Brady, esportista de alto rendimento, 38. UM MADRASTÃO É um sonho ter uma enteada como a apresentadora OPRAH WINFREY, com fortuna de 2,9 bilhões de dólares? Não foi mau enquanto durou, mas, agora que o casamento com o pai de Oprah acabou, BARBARA WINFREY recebeu ordem de despejo da casa presenteada, sem escritura, pela bilionária. Ressentida, a ex-madrasta fez jus à fama da categoria e lascou: 1) "Nunca vi Oprah beijando o companheiro dela. Eles conhecem bem os segredos mútuos", disse, aludindo à antiga fofoca de que a apresentadora tem uma profunda ligação com a amiga Gayle King; 2) "As duas dão toda a pinta de que o que têm não é só amizade"; 3) "Meu ex-marido sempre dizia que Oprah gostaria de poder clarear a pele"; 4) "A negrada chegou", dizia quando pai e madrasta a visitavam; 5) "Comida é o consolo dela. Sua perdição, qualquer tipo de batata". O SHOW DO BISTURI A cantora ANÍTTA acabou de completar 21 anos e já tem no currículo e no corpinho de 1,60 metro ao menos sete cirurgias plásticas. A médica que realizou algumas das últimas, Ana Patrus, da Clínica Santé, pondera: "Agora, ela vai parar". Será? Nariz Há três anos, ele foi diminuído. Anitta diz que ficou com uma narina tapada e voz de pato. "Fiz outra operação agora. Ela queria algo menor'', diz Ana Patrus. Bem menor. Maçãs do rosto e queixo Especialistas dizem que Anitta fez preenchimento. "Aumentar essas regiões cria a sensação de um rosto mais fino", diz um deles. Seios Na mesma época, diminuiu as mamas e colocou silicone. Alega que, depois, elas cresceram seis números. "Só num caso patológico", avalia o cirurgião Marcelo Daher. Agora, Anitta fez outra plástica e diminuiu as próteses "para dançar com mais segurança". Cintura e barriga Lipo. "Mas ela só está divulgando a plástica dos seios e a do nariz", diz Ana. Culote Lipo. Já que vai fazer cintura, barriga, nariz, peito... CINEMA-VERDADE Em Hollywood, o teste do sofá há muito deu lugar ao teste da jacuzzi e sempre abrangeu múltiplas preferências sexuais. Mas ainda provoca engulhes ouvir histórias como a do ex-modelo MICHAEL EGAN, 31, que acusa ter sido violentado por figurões do cinema e da televisão dos 15 aos 17 anos, quando tentava carreira de ator. Da lista, constam um ex-diretor da TV Disney, um ex-chefão da Fox e da NBC e Bryan Singer, o diretor dos filmes X-Men. BONNIE MOUND, a mãe de Egan, disse que o FBI nunca investigou as denúncias que fez há cerca de dez anos. Ambos entraram na Justiça. Singer repudiou as acusações, atribuindo-as a um desejo de autopromoção. Perguntado sobre o que gostaria de dizer aos seus agressores, Egan respondeu: "Vocês nunca mais vão fazer mal a uma criança". 5#5 RELIGIÃO – RASCUNHOS DE UM SANTO Livro com anotações pessoais de João Paulo II revela os questionamentos e as reflexões de fé do "papa da certeza", que será canonizado neste domingo. ADRIANA DIAS LOPES Não deixo nenhuma propriedade sobre a qual seja necessário tornar providências. (...) Que minhas anotações sejam queimadas. Peço que isso fique sob a responsabilidade do padre Stanislaw, a quem agradeço pela colaboração e pela ajuda tão prolongada e compreensiva através dos anos." Assim determinou o papa João Paulo II em seu testamento. A vontade do pontífice só seria conhecida quatro dias depois de sua morte, em abril de 2005, devido a complicações da doença de Parkinson. O desejo de João Paulo II, no entanto, não foi cumprido. Stanislaw Dziwisz, secretário particular do papa polonês ao longo dos 26 anos de seu pontificado, não só preservou as anotações como as transformou no belíssimo livro João Paulo II — Estou nas Mãos de Deus, recém-lançado no Brasil pela editora Planeta. As anotações pessoais vão de 1962, quando João Paulo II era Karol Wojtyla, bispo-auxiliar de Cracóvia, na Polônia, a 2003, no fim do pontificado. Por meio de frases e parágrafos curtos, João Paulo II esboça reflexões sobre questões de fé e da Igreja. Em relação ao celibato, por exemplo: "O celibato sacerdotal é um mistério sobrenatural e, ao mesmo tempo, um dom de Deus, um carisma, para dedicar-se às coisas do Reino com coração indiviso". Em seguida, lança a pergunta: "Penso eu assim sobre esse tema? Como vivo meu celibato?". E, por fim, responde: "O sacerdócio não é o celibato, mas o celibato fortalece o sacerdócio. O celibato é comprometer-se para sempre, aqui está a grandeza do homem". Nem sempre, no entanto, João Paulo II responde aos próprios questionamentos. "Entendo meu ministério na sede de Pedro como uma defesa da lei de Deus?" Ou então: "Sou testemunha de Cristo?" e "Sou obediente ao Espírito Santo?". Tais autocríticas, que podem até ser naturais para a maioria dos cristãos, tornam-se incômodas tendo em vista o autor das reflexões — um homem que sempre se mostrou imbatível e grandioso, até o fim de sua vida, mesmo com o corpo combalido pelo Parkinson. João Paulo II era o "papa da certeza", como o chamavam os especialistas em assuntos da Santa Sé, os vaticanistas. As 638 páginas de Estou nas Mãos de Deus se configuram a maior obra do gênero já feita por um papa. João Paulo II escreveu seguindo o método inaciano, inspirado em Santo Inácio de Loyola, o fundador da Companhia de Jesus, ordem religiosa do papa Francisco. Inácio de Loyola recomendava que se anotassem os pensamentos ocorridos durante a oração para depois serem revistos. Os originais do livro, em polonês, contêm alguns trechos em latim e italiano. João Paulo II escrevia, sobretudo, à noite. Quando estava em Roma, costumava trabalhar em suas anotações no quarto localizado no Palácio Apostólico, no Vaticano — era comum os fiéis permanecerem até altas horas na Praça São Pedro à espera do momento em que o pontífice apagava as luzes de seus aposentos. Antes de João Paulo II, apenas João XXIII (1958-1963) teve suas meditações espirituais organizadas em livro — O Diário da Alma, lançado em 1964. O documento mistura reflexões particulares com impressões sobre acontecimentos históricos ocorridos ao longo de sua vida. O papa polonês raramente associa suas reflexões a acontecimentos externos. Isso aconteceu em 1996, quando Karol Wojtyla apresentava os primeiros sintomas do Parkinson: "Deus cura as feridas do pecado por meio da penitência". Estou nas Mãos de Deus foi lançado em fevereiro passado, na Polônia. Stanislaw Dziwisz, hoje cardeal e arcebispo de Cracóvia, justificou publicamente a rebeldia de não acatar um desejo do chefe da Igreja: "Não queimei as anotações porque elas são a chave para compreender a sua espiritualidade. Destruí-las seria um crime". Poucas pessoas foram tão próximas de João Paulo II como ele. Os dois se conheceram no início da década de 60, quando Dziwisz foi chamado a ser seu secretário na Polônia. Foi Dziwisz quem amparou o corpo ferido de João Paulo II durante o atentado a bala contra o pontífice, ocorrido em 1981, na Praça de São Pedro. No ano da morte do papa polonês, Dziwisz entregou uma cópia das anotações pessoais do papa à Congregação para as Causas dos Santos, a instituição da Santa Sé responsável por coordenar os estudos sobre os candidatos a santo. O documento foi incluído no processo de canonização de João Paulo II, que será declarado santo neste domingo. Na ocasião, João XXIII também será canonizado. 5#6 CRIME – UM PAÍS EM CHAMAS Em ações criminosas, protestos contra uma injustiça ou na hora de uma reivindicação, brasileiros passaram a atear fogo em tudo — ônibus, pneus, lixo. Por quê? ANDRÉ PETRY Houve um tempo em que protestos com objetos queimados e labaredas ocorriam só nas penitenciárias, quando os presos rebelados ateavam fogo em colchões. Ultimamente, como que numa regressão pré-histórica, os brasileiros (os honestos e trabalhadores, bem como os vândalos e os criminosos) parecem ter redescoberto o fogo. Quase todo protesto resulta em um incêndio — de ônibus, de lixo, de pneus. Na semana passada, depois que o dançarino Douglas Pereira, de 26 anos, apareceu morto na favela do Pavão-Pavãozinho, na Zona Sul do Rio de Janeiro, os moradores acusaram a polícia de tê-lo executado ao confundi-lo com um traficante e foram às ruas protestar. Houve tiros e barricadas em chamas. Em outro caso, de natureza inteiramente distinta, homens armados invadiram a garagem de uma empresa de ônibus em Osasco, na região metropolitana de São Paulo, e queimaram 34 veículos. Foi o maior incêndio de ônibus ocorrido numa região já exausta de tantos incêndios de ônibus. Suspeita-se que os criminosos tenham agido em represália contra a morte de um traficante — neste caso, um traficante de verdade. Na onda piromaníaca, as ações de quadrilhas de criminosos são alarmantes mas fáceis de explicar: é caso de polícia e como tal deve ser tratado. O aspecto mais complexo está no alastramento do fogaréu em manifestações de cidadãos comuns. Aqui, não se fala dos protestos de junho do ano passado, nem de manifestações organizadas através das redes sociais. Não se fala das chamadas "revoltas globais", como o americano Occupy Wall Street, ou o mexicano Yo Soy 132, ou a Primavera Árabe, ou os indignados espanhóis. Fora os incêndios promovidos pelo crime organizado, o Brasil em chamas é outro: está nas periferias, nas favelas, é repentino, explosivo e sua paciência parece perto do esgotamento. Em Palmeirais, no interior do Piauí, a população apelou para o fogo contra a falta de energia elétrica. Na terça-feira passada, sem luz havia três dias, os moradores, revoltados, foram à Eletrobras, quebraram as paredes e atearam fogo no prédio. Em São José dos Campos, no interior de São Paulo, cansados de acidentes numa pista próxima, moradores atearam fogo em lixo e detritos para pedir a construção de uma lombada. Em Aparecida de Goiânia, na região metropolitana da capital de Goiás, manifestantes queimaram pneus na principal avenida pedindo mais segurança. Em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, moradores do Jardim Itamaracá atearam fogo em pneus e galhos de árvores, interditando a avenida, numa manifestação pela instalação de quebra-molas e faixas de pedestre. Todos esses casos ocorreram agora em abril. Até manifestações de trabalhadores, antes limitadas a assembleias, piquetes e passeatas, agora tocam fogo. Na semana passada, em Ceilândia, cidade-satélite de Brasília, funcionários de um supermercado queimaram pneus e um veículo e bloquearam uma avenida de acesso à capital em protesto contra o fechamento do estabelecimento, irregularmente instalado numa área pública havia décadas. Em Salvador, um grupo de rodoviários fez uma fogueira no meio de uma importante rodovia para reivindicar o pagamento de gratificação por terem trabalhado no Carnaval. Na região noroeste de Belo Horizonte, um motorista e alguns passageiros queimaram um ônibus na BR-040 porque o veículo estava velho. Fizeram uma vaquinha, compraram gasolina, tocaram fogo e disseram que fora obra de uma quadrilha de criminosos. Nada se compara à aplicação da tática incendiária pelo Movimento dos Sem Terra. No dia 17 de abril, membros do MST interditaram com barricadas de fogo a BR-070, que liga as cidades goianas ao Distrito Federal. Era uma homenagem aos dezoito anos do massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará, quando dezenove trabalhadores rurais foram assassinados pela polícia. Na terça-feira passada, um grupo de sem-terra tocou fogo em pneus com o singelo propósito de pedir uma audiência ao prefeito de Ceará-Mirim, na região metropolitana de Natal. E por que o país está em chamas? "O único jeito de entender isso é ir a um centro espírita, encontrar um médium que fale alemão e invocar Max Weber", satiriza o antropólogo Roberto DaMatta, autor de obras relevantes das ciências sociais como Carnavais, Malandros e Heróis e A Casa e a Rua. DaMatta suspeita que estejamos vivendo um momento de "desfibrilamento", em que sociedade e Estado aparentemente não falam a mesma língua. As demandas sociais ficam sem respostas efetivas do poder público. Os canais institucionais de diálogo não funcionam. Para manter o emprego ou receber uma gratificação, para ter mais segurança ou conseguir uma audiência, um quebra-molas, um ônibus novo é preciso atear fogo? Para DaMatta, que o lado positivo é que talvez tudo isso esteja ocorrendo em razão da modernização da sociedade brasileira e da tímida ascensão de uma sociedade um pouco menos desigual. "É um sentimento de mal-estar", diz. O ingrediente alarmante é que manifestações violentas são vistas com excessiva naturalidade. Prefeito, governador, presidente, ninguém vem a público censurar a violência ou mesmo mandar uma palavra de conforto aos familiares dos que morrem nesses protestos. Em 2005, quando a periferia de Paris se levantou contra a polícia e começou a tocar fogo em tudo, o país decretou estado de emergência. Em 1992, quando Los Angeles veio abaixo depois da absolvição dos policiais que espancaram um negro, nada ficou como antes. No Brasil, pelo menos por enquanto, não se observa nada com a dimensão do que aconteceu em Paris ou Los Angeles. Mas é perturbadora a sensação de que a população, sobretudo a mais humilde, se sente como presidiários, que só conseguem chamar a atenção quando tocam fogo em alguma coisa. 5#7 OLIMPÍADA – O JEITO AGORA É CORRER MUITO Para que o Rio promova em 2016 o grande espetáculo que todos esperam, não dá para perder nem mais um dia com o jogo de empurra e a politicagem que fizeram o COI entrar em campo para valer HELENA BORGES Confrontados diariamente com a angústia do "entrega não entrega" dos estádios de futebol para a Copa do Mundo que se avizinha, os brasileiros tiveram de engolir outro atestado de incompetência na condução de um grande evento esportivo quando o Comitê Olímpico Internacional (COI) decretou uma espécie de intervenção branca nos preparativos para os Jogos de 2016 no Rio de Janeiro. À exceção de Atenas (2004), que ingressou no glossário olímpico moderno como sinônimo de caos administrativo e incertezas até o último instante, nenhuma outra cidade-sede havia levado o alto escalão do COI a acender o sinal de alerta com essa intensidade e entrar em campo para zelar por sua própria história. É verdade que na Grécia, a quatro anos dos jogos, justamente quando o COI soou a sirene, não se via uma única obra em andamento, diferentemente do que ocorre no Rio. Mas, com dois anos apenas pela frente, é consenso aqui que não resta mais um minuto a perder com a letargia de Brasília, o jogo de empurra de responsabilidades entre poderes e a politicagem que até agora vêm sendo a marca dessa Olimpíada 2016. Há um claro desencontro entre os relógios suíços que regem o COI e a noção de tempo nos gabinetes de quem decide as coisas no Brasil. No governo federal, a instância que no dossiê de candidatura aparece como a grande financiadora e gestora do projeto olímpico, as prioridades estão claras: Olimpíada é assunto para depois da Copa e das eleições. A má coincidência de datas, que atravanca a máquina e represa os repasses olímpicos, traz certo mal-estar à presidente Dilma Rousseff. "É duro para ela justificar o aporte de um caminhão de dinheiro para o Rio de Janeiro em detrimento de outros 26 estados em pleno ano eleitoral. As manifestações nas ruas também são outro incômodo: a revolta com a Copa pode facilmente se estender à Olimpíada, e Dilma sabe que acabará respingando nela", conta um observador. Nesse sentido, a matriz que define as responsabilidades de cada alçada de poder (recém-divulgada, com atraso de uns dois anos e já sob a pressão do COI) contém uma informação que não deve passar despercebida: não é mais o governo federal, como previsto inicialmente, mas sim a prefeitura do Rio que arcará com grande parte dos projetos, a maioria deles em parceria com a iniciativa privada. A nova matriz — um documento sucinto que informa quem bancará e executará as obras de todas as instalações envolvidas nos Jogos — deu algum alento ao COI por dois motivos: 1) finalmente foi batido o martelo sobre o mais básico e 2) suavizou-se um pouco o peso da agenda eleitoral sobre a Olimpíada do Rio. Não significa que a cúpula de Lausanne não esteja de olhos bem abertos e ciente dos enormes desafios por vir. Um dos projetos que simbolizam melhor o misto de morosidade à brasileira com o empurra-empurra entre os poderes é o Parque Olímpico de Deodoro, na Zona Oeste carioca, sede de nada menos do que onze das 41 modalidades dos Jogos. Evidentemente, as obras já deveriam estar a pleno vapor, mas só na semana passada — é isso mesmo, leitor — lançou-se o edital de licitação. Como uma batata quente, Deodoro foi passando de mão em mão — repousou três anos sobre o colo federal, oito meses no estadual, até cair na alçada municipal, em dezembro. Entre os técnicos, é unanimidade: se o prometido valer, a obra começará no segundo semestre e ficará pronta em cima do laço. "Mas nada, nada mesmo, pode sair fora do previsto no meio do caminho”, enfatiza um desses técnicos. No rol das obras, porém, há outro enrosco que se arrasta longe dos holofotes e aflige ainda mais o COI. Trata-se da construção do International Broadcast Center (IBC), estrutura equivalente a dez Projacs onde ficarão as emissoras que detêm direitos de transmissão dos Jogos — uma das maiores fontes de renda do comitê. O governo federal já empurrou o projeto de 400 milhões de reais para o município, mas permanece ainda o impasse sobre quem vai bancar as instalações no entorno, essenciais para o alojamento de equipamentos e de um gigantesco sistema de ar condicionado. Só para dar o tamanho da encrenca: a conta que ainda não tem dono gira em torno de 300 milhões de reais. Dinheiro, aliás, é preocupação presente nesse enrolado enredo. Isso desde os tempos em que o Rio ainda pleiteava ser escolhido. Para dar solidez à candidatura carioca, à qual era simpático, o próprio COI sugeriu que os governos entrassem como uma espécie de avalista do Comitê Rio 2016 — cujo caixa (7 bilhões de reais dos 36,7 bilhões envolvidos nos Jogos) é composto basicamente de verbas de patrocínio e repasses do COI. Esse dinheiro banca os equipamentos esportivos, a estadia dos atletas e a organização geral do evento. Se esses recursos acabarem, diz o dossiê, os governos entram em cena para cobrir o buraco. Só que nesse ambiente de "deixa que eu deixo", em que nenhuma parte demonstra disposição para desembolsar mais do que o planejado, o COI sente justificada insegurança quanto à palavra escrita. Como se isso não bastasse, um fato novo fez subir ainda mais a temperatura em Lausanne. O imbróglio que ecoa na sede suíça do Comitê Internacional está situado na Vila Olímpica, onde ficarão os atletas. Havia sido acordado que, durante os Jogos, o Comitê Rio 2016, presidido por Carlos Arthur Nuzman, pagaria ao consórcio de empreiteiras — dono do terreno e das edificações que se converterão em novo bairro — um aluguel pelo uso dos apartamentos. Mas o consórcio entendeu que deveria receber também pelo período de quase um ano em que, segundo calcula, os alojamentos já prontos ficarão vazios esperando a Olimpíada começar. Fala-se de um extra na casa de 300 milhões de reais a ser custeado pela Rio 2016 — um adicional que causa compreensível apreensão. Afirma um dos observadores das costuras olímpicas: "Ninguém faz alarde, mas a preocupação com a saúde financeira do comitê local foi uma das razões que levaram o COI a endurecer com o Brasil". Nos últimos anos, os delegados do Comitê Internacional rodaram de esfera em esfera, de gabinete em gabinete na tentativa de definir quem faria o quê — um périplo quase sempre infrutífero. Para a coordenação de tantos poderes, criou-se uma alçada sob inspiração londrina, a Autoridade Pública Olímpica (APO). Uma medida tecnicamente justificável, mas logo contaminada pelo fisiologismo, já que seus titulares foram mudando ao sabor das conveniências políticas. Primeiro foi a vez do ex-presidente do Banco Central Henrique Meirelles, que Dilma queria acomodar em sua corte, mas não sabia onde. Foi ele próprio que, entendendo a pesada disputa de poder, jogou a toalha antes mesmo de ser entronado. Acabou aceitando uma vaga no conselho público olímpico, órgão que supervisiona a APO, em que está até hoje. A presidente resolveu então conceder o comando ao ex-ministro das Cidades Márcio Fortes. Era uma espécie de prêmio de consolação, que logo se converteu em presente de grego; ele acabaria escanteado e sem voz. Atualmente, é o general Fernando Azevedo quem ocupa o cargo. Aqueles que acompanham os preparativos dos Jogos, porém, sabem que a rara união de tantos egos selada nos bons tempos da candidatura, com o ex-presidente Lula à frente, nunca mais se viu. E essa desarticulação explica em grande medida a bagunça de hoje. Foi a soma de todos esses problemas que empurrou o COI para a recém-anunciada intervenção (na língua do comitê, uma "prestação de auxílio"). Em janeiro, o próprio presidente da entidade, o alemão Thomas Bach, esteve com Dilma em Brasília. Ela ouviu suas queixas, prometeu providências e designou o ministro da Casa Civil, Aloizio Mercadante, para coordenar as iniciativas olímpicas, acima inclusive da APO. Desde então a coisa andou muito pouco, e o diplomático COI liberou as federações internacionais para manifestar insatisfações represadas. Anunciou ainda que vai contratar uma consultoria para fiscalizar o andamento dos trabalhos e antecipou em cinco meses a chegada do diretor executivo dos Jogos Olímpicos, o suíço Gilbert Felli, que desembarcaria no Rio neste fim de semana. Claramente, a euforia da época em que a turma brasileira encantou a plateia na Dinamarca vendendo um Rio Maravilha ficou no passado distante. Também o Brasil não é o mesmo daquele tempo em que a economia fervilhava, milhões eram guindados à classe média e o país atraía dinheiro de toda parte, enchendo os olhos do COI. Mesmo longe de tal otimismo, os boatos de que o Comitê Organizador pensa em um plano B são apenas isso: boatos para gerar pressão. Não há e nunca houve alternativa aos Jogos do Rio; a luta agora é para que eles não coloquem em risco a tão valiosa marca olímpica. Para 2020, o martelo já está batido: Tóquio, cidade de infraestrutura exemplar, será a sede da Olimpíada, escolha que deverá dar uma trégua ao COI. No Rio, espera-se que os próximos dois anos sejam de trabalho duro em prol de um bom legado e de respeito à montanha de dinheiro do contribuinte depositada em tão grandioso projeto. CADA SEGUNDO VALE OURO Enquanto os órgãos responsáveis jogam a culpa uns nos outros, os prazos estabelecidos para a conclusão de obras cruciais da Olimpíada estão cada vez mais apertados. SUBESTAÇÃO OLÍMPICA Função: fornecer energia elétrica ao Parque Olímpico Custo: 152 milhões de reais Inicio: as obras ainda não começaram Promessa: conclusão em maio de 2015 Como está: só em janeiro foi criada a empresa responsável pela construção e pela operação do empreendimento Por que atrasou: a subestação não estava prevista no dossiê de candidatura do Rio e sua construção foi uma exigência do COI, feita no fim do ano passado DESPOLUIÇÃO DA BAÍA DE GUANABARA Função: abrigar as provas de vela Custo: 918 milhões de reais Início: 2007 Promessa: 80% do esgoto tratado até 2016 Como está: apenas 40% do esgoto tem tratamento Por que atrasou: as verbas do governo estadual saem a conta-gotas. Das seis Unidades de Tratamento de Rios (UTRs) planejadas, só uma está perto de ficar pronta; as obras das outras nem começaram IBC Função: reunir os estúdios de todas as emissoras de rádio e TV Custo: 400milhões de reais Início: outubro de 2013 Promessa: conclusão no segundo semestre de 2015 Como está: em fase de fundação, execução de blocos e montagem de pilares e vigas Por que atrasou: por causa da discussão sobre quem vai pagar as obras do entorno, aí incluída toda a infraestrutura de energia do prédio - o que quase dobra o orçamento DEODORO Função: sediar as provas de onze modalidades Custo: 804 milhões de reais Início: as obras ainda não começaram Promessa: conclusão no início de 2016 Como está: em fase de licitação; se tudo correr bem, a construção começará no segundo semestre Por que atrasou: por causa do jogo de empurra - o projeto passou do governo federal para o estadual e, dele, para o municipal 5#8 SOCIEDADE – ESCOVAS PROGRESSISTAS Uma nova geração de cabeleireiros e maquiadores adquire alto nível de especialização e, com ele, fortuna e respeitabilidade. THAÍS BOTELHO A cena se repete duas vezes por mês: uma alta executiva do mercado financeiro vai ao salão do cabeleireiro paulistano Eron Araújo e, enquanto ele cuida de suas madeixas, um segurança fica ao lado da cadeira, empurrando um carrinho de bebê que tem dentro a cachorrinha da madame, adornada com uma coleira de brilhantes de verdade. O flagrante mostra dois tipos de pessoa que estão ganhando muito dinheiro: a mulher bem-sucedida financeiramente que se senta na cadeira de cliente e o homem que fica em pé, atrás dela. Ele é integrante de uma nova geração de cabeleireiros e maquiadores de alto rendimento, que ganham somas da ordem de 70.000 a 200.000 reais por mês, viajam até quatro vezes no ano ao exterior para fazer cursos de especialização e não raro se tornam amigos de artistas, políticos e empresários, que os acolhem sem nenhum resquício da ironia até não muito tempo atrás reservada aos homossexuais assumidos, predominantes nesse universo. Qualquer mulher que se interessa por moda e beleza já ouviu falar em nomes como Marco Antônio de Biaggi, Wanderley Nunes e Celso Kamura, todos donos de salões caros, badalados e projetados pelas pessoas famosas que os frequentam. Não é deles que falamos aqui, mas de alguma maneira de suas crias, os cabeleireiros que com trabalho duro e talento tanto para embelezar quanto para cativar clientes começam a se equiparar aos mestres originais, com os quais muitos deles começaram. "Investi 5 milhões de reais no meu salão-butique de São Paulo e estou abrindo outro em Nova York", diz Eron Araújo, que fatura 80.000 reais por mês, valor que aumenta 30% na época de fim de ano e certa ocasião bateu os píncaros dos 200.000 reais. Eron vai cinco dias por semana a bons restaurantes, onde deixa uma média mensal de 8000 reais, e viaja para o exterior várias vezes por ano, "só de executiva ou primeira classe". Adendo importantíssimo: ele trabalha de terça a sábado, frequentemente, das 9 às 22 horas, no duplo e habitual papel de embelezador e confidente. "Vou ao salão dele às terças, quartas, quintas e sextas. Às vezes, também aos sábados", conta Marina Mantega, inevitavelmente descrita como filha do ministro da Fazenda, atualmente com uma participação no programa de rádio Pânico. "É para ele que faço minhas confidências amorosas." Em cada visita, deixa 371 reais. A ascensão da nova geração desses profissionais reúne melhor capacitação, o uso de produtos de beleza importados e especializados — além de, em média, 80% mais caros do que os locais — e uma visão mais ambiciosa da carreira. "Os salões sempre pertenceram em grande parte às mulheres. Mas muitas vezes elas não tinham nada de novo a oferecer às clientes, que começavam a viajar e ver programas na TV em que os cabeleireiros eram tratados como celebridade. Os homens tiveram visão de negócio e investiram nos salões-espetáculo", diz Lúcia Orofino, professora de estética e cosmética da Faculdade Estácio de Sá. De espetáculo, o maquiador Júnior Mendes entende. Ele é o mais celebrado do país entre as noivas ricas, famosas ou ambas as coisas. Cobra de 10.000 a 12.000 reais pelo trabalho e oferece, além de uma pintura comparativamente leve — o que o diferencia da mão exagerada de boa parte dos maquiadores de noivas —, retoques na entrada da igreja e durante a festa, até altas horas da manhã. "Minhas caixas de maquiagem juntas pesam 60 quilos e só uso produto de marca estrangeira, com batom de 50 dólares e blush de 280. Os cílios postiços são da Indonésia. E o segredo: antes de aplicar a maquiagem no rosto da noiva, molho os pincéis na água francesa Evian. Vem daí a leveza", descreve Mendes, cuja equipe atende a oito casamentos por fim de semana. "Fiquei anos sem folga, mas ergui um patrimônio que inclui três apartamentos, que valem, cada um, 1 milhão de reais." Rodrigo Cintra, cabeleireiro, tem quadros nos programas das apresentadoras Eliana e Isabella Fiorentino, mais de 2 milhões de seguidores no Facebook e uma linha de produtos com seu nome. E, mesmo sem ter dado o salto de tocar o próprio negócio, aos 34 anos, ele trabalha no salão de Wanderley Nunes e fatura até 140.000 por mês. Metade desse valor vai para o dono. Cintra estudou em Barcelona, só fica em hotel cinco-estrelas e carrega no peito um grande orgulho: "Na família, era a maior zoação o fato de eu ser cabeleireiro. Hoje, trouxe sete primos para a profissão. O que era frufru agora é respeito". Se dependesse só do nome, o respeito já estaria garantido, mas Viktor I (o primeiro em algarismo romano é artístico) se garante é com suas hábeis mãos de tesoura. Ele tem um salão em Curitiba enfeitado com quinze colunas de cristais e réplicas de esculturas romanas. Entre suas clientes, a senadora Gleisi Hoffmann. Levou o estilo exuberante à filial de seu salão, no Shopping Vila Olímpia, uma região cara de São Paulo. O espaço, como se diz no ramo, é adornado com cinquenta espelhos de 3 metros de altura do igualmente arrebatado designer francês Philippe Starck. "Invisto muito do que ganho, mas meu xodó é uma estufa, no jardim do meu apartamento, onde crio 25 bonsais, que valem até 15.000 reais cada um. Tenho um personal bonsai para tratar deles", diz Viktor. Por seus dois salões, passam em média 400 clientes por semana. Assim ele descreve a fórmula do sucesso: "Nós mimamos as mulheres e fazemos com que acreditem que as transformamos em divas — o que é verdade". Em especial, se elas estiverem com uma taça de espumante na mão, ouvindo uma música envolvente e vendo artistas circulando pelo ambiente. Ou até descobrindo que os diamantes também podem ser os melhores amigos de uma cachorrinha. PÉ, MÃO E MUITOS CIFRÕES Poucas profissões passaram por uma transformação tão grande, e para melhor, nos últimos anos. Cabeleireiros e maquiadores bem-sucedidos têm ganhos, hábitos e respeitabilidade de altos executivos. Ganhos: podem chegar a 200.000 reais por mês Formação: os profissionais viajam de duas a quatro vezes por ano para cidades como Paris, Nova York, Barcelona e Londres para fazer cursos Preconceito: cuidam de atrizes, presidentes de grandes empresas e políticos. A condição sexual deixou de ser alvo de discriminação Local de trabalho: luxuosos salões, em que investem do próprio bolso até 5 milhões de reais 5#9 SOCIEDADE – MULHER DO JOESLEY, NÃO! Bonita, bem-nascida e bem-sucedida, Ticiana Villas Boas detesta ser chamada de "senhora Friboi". Mesmo porque se alguém agregou valor ao casal esse alguém foi ela. "Mercado de carne não tem glamour", diz. BELA MEGALE Se tem algo que deixa Ticiana Villas Boas furiosa é alguém insinuar que ela deve a fama ao marido, o bilionário goiano, presidente da holding J&F Investimentos e dono da maior empresa processadora de proteína animal do mundo (que detém a marca Friboi), Joesley Batista, 42 anos. A jornalista, de 33, lembra logo que vem de família tradicional de Salvador, tem "rua e edifício na cidade com nome de parentes" e, se hoje o casal frequenta os jantares dos mais animados ricos paulistanos, isso se deve principalmente a ela. "O mercado de carne não tem glamour", afirma. "Agora todo mundo puxa o saco do Joesley, mas ele morou muito tempo no interior e só fechava negócio com dono de venda e açougue." Hoje o terceiro maior salário do jornalismo da Rede Bandeirantes (atrás apenas dos apresentadores José Luiz Datena e Ricardo Boechat), Ticiana começou na emissora no ingrato horário da madrugada e bateu muito o salto 10 na rua antes de conquistar sua cadeira na bancada do Jornal da Band. Quando chegou a São Paulo, há sete anos, dirigia um Fox vermelho e morava num apartamento de 45 metros quadrados. Mas em 2011, ano em que conheceu Joesley — faz questão de dizer —, a vida já estava bem mais confortável. "Eu havia viajado bastante e conquistado meus maiores sonhos materiais: uma Santa Fé blindada e um apartamento decorado por um profissional." Com o marido rico, vieram, como ela diz, os "frufrus". Alguns deles: um imóvel em Nova York comprado do publicitário Nizan Guanaes, uma casa em Angra dos Reis adquirida do apresentador Luciano Huck, viagens a bordo de um jato Legacy de treze lugares avaliado em 25 milhões de dólares, um barco ancorado na ilha caribenha de St. Barth, um cartão de crédito ilimitado e — o que não tem preço — a graça de ser poupada de qualquer informação relativa ao custo das coisas. Verdade que o seu vestido de noiva, assinado por Karl Lagerfeld, da maison Chanel, custou 180.000 euros? "Não tenho ideia'', responde. ''Nem de quanto custou o vestido, nem de quanto custou a festa. Joesley pagou tudo." Joesley paga tudo, não conta quanto foi e ainda adora fazer surpresinhas para a mulher. Quando, no ano passado, o casal voltou da lua de mel na Itália, Ticiana achou que iriam do hangar para o apartamento dele, no bairro da Lapa. Diz que seu queixo quase caiu quando o carro estacionou em frente a um casarão no coração do Jardim Europa que, meses antes, ela havia namorado. Lá dentro, esperava por ela, além de amigos e garrafas de champanhe, uma casa montadinha (por um "profissional", claro, e desta vez famoso), incluindo o closet com todas as suas roupas dobradas e separadas por cor. "Até minha escova de dentes já estava no lugar", conta ela. Tantos frufrus fizeram com que a apresentadora decidisse se impor algumas regras para "'não sair da realidade". O Porsche Cayenne azul que ganhou de presente do marido, por exemplo, costumava ser abastecido pelo motorista do casal. ''Quando me dei conta, nem sabia mais o preço da gasolina. Pensei: sou jornalista e não sei quanto custa o combustível? Voltei eu mesma a encher o tanque", diz. Ticiana nega a informação corrente de que é uma das mais ávidas compradoras de marcas de luxo em São Paulo. Diz Roberta Santos, sua "consultora visual" (pessoa que assessora ricos e ricas na hora de-comprar roupas, montar figurinos e dizer o que lhes cai bem e o que é "super trendy"): "O closet dela é até modesto em relação ao bolso". Instada a definir "modesto", explica: "Olha, sem contar pecinha, tá? Não vamos falar de coisa dobrada na gaveta, e sim de coisa boa, pendurada no cabide: deve ter umas cento e poucas peças." Entre as marcas preferidas de Ticiana estão Chanel, Dior e Jimmy Choo, quase sempre em cores vivas: amarelo, verde, azul. "A Tici fica hor-ren-da em tons pastel", justifica Roberta. Ticiana conheceu Joesley em abril de 2011, mesmo mês em que se separou do primeiro marido, o economista baiano Fábio Malheiros (a união durou seis meses). Conta ela que resistiu quatro meses às investidas do empresário, mas, depois do primeiro beijo, cuidaram de recuperar o tempo perdido. Desde então, "casaram-se" três vezes — na Índia, organizaram uma cerimônia simbólica em frente ao Taj Mahal, "ao amanhecer". Em seguida, renovaram os votos em uma praia em Bora-Bora. No ano seguinte, foi a vez da festa "oficial", em São Paulo — 1500 convidados, show de Ivete Sangalo e Bruno & Marrone e 120.000 orquídeas vindas de todo o país para formar uma parede com a flor preferida da noiva. "Joesley me ganhou na insistência, mas hoje vejo nele características que admiro muito, como caráter, segurança e constância — não tem altos e baixos. É bom saber com quem a gente lida", diz. Recentemente, à carreira de apresentadora Ticiana acrescentou outra atividade, a de empresária. No início do ano, inaugurou uma produtora de vídeos em sociedade com a irmã. A primeira cliente é uma das empresas de Joesley, mas é claro que ela não pretende depender dele para sempre. Afinal, como gosta de lembrar, não veio ao mundo grudada no marido — e muito menos nasceu ontem. 6# GUIA 30.4.14 6#1 APOSENTADORIA SEM PIJAMA 6#2 PARA NÃO PERDER O PLANO DE SAÚDE 6#3 DE FUNCIONÁRIO A CONSULTOR 6#1 APOSENTADORIA SEM PIJAMA COM A EXPECTATIVA DE VIDA EM TRAJETÓRIA ASCENDENTE, O APOSENTADO QUE DE FATO PENDURA AS CHUTEIRAS PODE TER ALGUMAS ABORRECIDAS DÉCADAS DE ÓCIO PELA FRENTE. Um batalhão de aposentados, porém, prefere se manter firme na profissão, não só para adiar as tardes no sofá, como também (ou principalmente) para evitar uma queda abrupta no padrão de vida. Atualmente, meio milhão de brasileiros permanecem no mercado de trabalho após a aposentadoria por idade (65 anos para os homens e 60 anos para as mulheres) ou tempo de contribuição (35 anos para eles e trinta anos para elas) para complementar o benefício do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que vai de 724 reais a 4390,24 reais mensais. VEJA conversou com especialistas para esclarecer sete dúvidas comuns de trabalhadores que pretendem se aposentar, ou já o fizeram, mas sem largar o batente. Trabalho em uma multinacional e já poderia me aposentar pelo INSS. Posso saber de antemão quanto receberei de aposentadoria? Sim. Para trabalhadores do setor privado, o site do Ministério da Previdência disponibiliza um simulador on-line (previdencia.gov.br/calcule-sua-aposentadoria-simulao/). É preciso ter em mãos o número do PIS/Pasep e a data de início e fim de todos os contratos de trabalho. Para chegar a uma renda estimada, o ministério se vale de uma fórmula que considera uma média dos maiores valores de contribuição ao INSS do trabalhador nos últimos vinte anos e, conforme o caso, submete o resultado ao fator previdenciário. O que é fator previdênciario e como ele afeta minha aposentadoria? Trata-se de um índice utilizado para calcular a aposentadoria por tempo de contribuição. Três dados influenciam a tabela: a idade, a expectativa de sobrevida e o tempo de contribuição propriamente dito. Na prática, o fator visa a reduzir o benefício do trabalhador que se aposenta por tempo de contribuição: quanto mais jovem ele é, menor é o benefício. A cada revisão da expectativa de vida dos brasileiros, a tabela do fator previdenciário sofre atualização. A mais recente ocorreu em dezembro de 2013, quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) anunciou que a esperança de vida dos brasileiros que nasceram em 2012 chegou a 74,6 anos - contra 71 anos para os nascidos em 2002 Se eu continuar trabalhando após minha aposentadoria, posso deixar de contribuir mensalmente para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS)? Tanto para o trabalhador do setor privado quanto para o autônomo, a contribuição para o INSS é, sim, obrigatória. O projeto de lei 56/2009, do Senado, prevê a extinção do desconto para os aposentados, mas ele ainda está em tramitação no Congresso Se eu entrar com o pedido de aposentadoria no INSS, posso adiar a aposentadoria da previdência privada (e, assim, permanecer contribuindo com ela) para resgatar o benefício no futuro? Sim. Os planos de previdência privada são autônomos, ou seja, possuem regulamentos próprios, como idade e tempo de contribuição mínimos para o resgate do investimento. Em contrapartida, a situação inversa - receber o benefício da previdência privada antes de se aposentar pelo INSS - pode ser inviável. A maioria das administradoras de previdência privada condiciona o resgate à aposentadoria oficial. Ou seja, só tem direito a receber a renda da previdência privada quem já se aposentou oficialmente pelo INSS Tenho 50 anos e acabo de cumprir o tempo mínimo de contribuição providenciaria, mas pretendo continuar trabalhando. Vale a pena me aposentar agora? "Quanto mais novo for o trabalhador e quanto mais cedo ele requerer a aposentadoria, menor será o benefício. A redução será de no mínimo 30%", explica Danilo Augusto Garcia Borges, advogado previdenciário. Quem já se aposentou e continuou trabalhando - e, portanto, contribuindo para o INSS - pode tentar minimizar as perdas recorrendo aos tribunais com uma ação de desaposentação O que é desaposentação? Trata-se do cancelamento da aposentadoria atual para a abertura de uma nova aposentadoria. O recurso pode resultar em um aumento do valor do benefício, pois, no recalculo, a Previdência leva em conta as contribuições para o INSS do aposentado que se manteve no mercado de trabalho. Porém, não existe lei que regulamente a desaposentação. Os interessados, portanto, devem recorrer à Justiça, por meio de um advogado, para tentar a revisão da renda. Cuidado: alguns tribunais do país, ao conceder a desaposentação, exigem que o aposentado devolva tudo que recebeu em benefícios pelo processo anterior. Mas o cenário permite otimismo. No ano passado, o Superior Tribunal de Justiça confirmou ser a favor da desaposentação. A palavra final caberá ao Supremo Tribunal Federal. "A perspectiva é que até o fim deste ano o STF decida a favor da revisão sem devolução", diz Vanessa Vidutto, advogada paulista especialista em previdência Mantive o emprego após a aposentadoria, há dois anos. Já posso entrar com uma ação para solicitar a revisão do benefício? Apenas um advogado da área pode avaliar se o processo de desaposentação é financeiramente compensador. Em geral, os especialistas recomendam que o aposentado aguarde um período mínimo de três anos contribuindo para o INSS antes de solicitar a revisão do benefício 6#2 PARA NÃO PERDER O PLANO DE SAÚDE As regras para aposentados e para demitidos que desejam manter o plano de saúde coletivo após o desligamento da empresa - sob a condição de assumir o pagamento integral, claro - são distintas: Aposentados: o funcionário que para de trabalhar ao se aposentar pode manter o benefício pelo tempo que desejar, desde que tenha contribuído com o pagamento mensal daquele plano por mais de dez anos. Quando o tempo é inferior, cada ano de contribuição dá direito a um ano no plano coletivo após a aposentadoria Demitidos: o funcionário demitido sem justa causa tem direito a manter o plano de saúde coletivo por um período equivalente a um terço do tempo de contribuição, sendo que esse período não pode ser inferior a seis meses nem ultrapassar dois anos Aposentados que são demitidos: "Os aposentados que continuam trabalhando e acabam demitidos sem justa causa enquadram-se no primeiro caso - ou seja, têm direito ao plano coletivo por tempo indefinido. As empresas têm a responsabilidade de dar ao funcionário a opção de manutenção ou não do plano coletivo no final do vínculo", explica Julius Conforti, advogado especialista em saúde 6#3 DE FUNCIONÁRIO A CONSULTOR Muitos aposentados não querem abandonar o mercado de trabalho, mas planejam tirar o pé do acelerador. Não são raros os casos em que um trabalhador aposentado troca a rotina diária na empresa por serviços de consultoria. Mas o funcionário aposentado que pede demissão ou é demitido pode prestar serviços como consultor à empresa para a qual trabalhava logo após seu desligamento - ou a legislação estabelece um prazo mínimo antes do retorno? Quando se trata de readmissão ou contrato de prestação de serviços com um ex-funcionário, a lei não distingue o trabalhador jovem do funcionário aposentado, tampouco determina um intervalo mínimo para seu retorno à empresa. Entretanto, para evitar acusações de fraude à legislação trabalhista (por exemplo, quando o funcionário faz um acordo com a empresa para ser demitido, receber o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço e logo em seguida ser readmitido), muitas companhias determinam um período mínimo de seis meses antes de estabelecer novo vínculo (como pessoa física ou jurídica) com um ex-funcionário. A mudança na rotina de trabalho é outro fator determinante para não caracterizar como fraude o retorno do ex-funcionário, mesmo que aposentado, na qualidade de consultor da empresa da qual era contratado. "Como consultor ou prestador de serviços, o ex-funcionário deve ter autonomia, ou seja, não ter a obrigação de cumprir os mesmos horários e funções do cargo anterior", explica a advogada Carla Lobo, especialista em direito trabalhista Fontes consultadas: Ministério da Previdência Social e os escritórios Gueller Portanova Vidutto, Bueno Magano Advocacia, G Carvalho Sociedade de Advogados e Araújo Conforti Jonhsson Advogados Associados DANIELA MACEDO daniela.macedo@abril.com 7# ARTES E ESPETÁCULOS 30.4.14 7#1 LIVROS – AMARELO É A COR DO GÓTICO 7#2 CINEMA – UMA BREVE HISTÓRIA PARA UMA LONGA VIDA 7#3 MÚSICA – A MARATONA DO PIANO 7#4 TELEVISÃO – O RIDÍCULO VENDE 7#5 VEJA RECOMENDA 7#6 OS LIVROS MAIS VENDIDOS 7#7 ROBERTO POMPEU DE TOLEDO – O CORVO E O ANJO 7#1 LIVROS – AMARELO É A COR DO GÓTICO O Rei de Amarelo, uma pequena pérola da literatura de horror, assombra o leitor com a ideia de um livro terrível que traz a loucura e a maldição a todos que percorrem suas páginas. JERÔNIMO TEIXEIRA O amor entre a jovem Tess, que ganha a vida como modelo para artistas em Nova York, e Scott, pintor americano que já viveu na França, foi precipitado pelo medo. Ela vinha tendo sonhos em que Scott aparecia dentro de um caixão; e ele lhe conta de um sonho igualmente ominoso, em que é levado, mais uma vez dentro de um caixão, por ruas escuras e estranhas. É no auge da aflição suscitada por esses sonhos simétricos que Tess confessa seus sentimentos pelo empregador eventual. Romântica e previsivelmente, Scott beija a moça. O romance desanuvia as sugestões sinistras dos sonhos: no encontro seguinte, Tess aparece radiante (e também pudica: já não se dispõe a posar nua diante do amado). Mas eis que aparece, inexplicavelmente, um exemplar de O Rei de Amarelo na biblioteca de Scott. Trata-se de uma peça de teatro que tem a fama de enlouquecer todos que a lêem. Tess, contrariando as advertências do namorado, lê o livro — e abre a porta para todos os pesadelos. Eis a premissa sensacional de O Rei de Amarelo (tradução de Edmundo Barreiros; Intrínseca: 256 páginas; 19,90 reais ou 9,90 reais na versão eletrônica), coletânea de contos do americano Robert W. Chambers (1865-1933): há outro livro com o mesmo título que causa a perdição de todos os que o lêem. Chambers entrega apenas retalhos dessa peça maldita: o nome de alguns personagens — Camilla e Cassilda —, referências a um país ou lugar fantástico chamado Carcosa, uns poucos versos e diálogos. É uma espécie de lenda lacunar, como a mitologia de um povo esquecido da qual só o que se conhece são fragmentos. Que essas poucas alusões a uma obra inexistente tenham o poder de inspirar tanto pavor é prova de um inegável talento narrativo. E a obra de Chambers, apropriadamente, tornou-se o centro de uma rede de alusões: foi citada em livros de outros autores devotados à literatura de horror, como o mestre H.P. Lovecraft, o escritor e roteirista de quadrinhos Neil Gaiman e o best-seller Stephen King. Mais recentemente — e este é o evento motivador desta edição brasileira —, o universo gótico de O Rei de Amarelo permeou a série True Detective, sucesso da HBO. Antes de enveredar pela literatura, Chambers foi pintor e ilustrador. Estudou arte em Paris (o Quartier Latin frequentado por jovens artistas americanos é um cenário de muitos contos de O Rei de Amarelo). Lançada em 1895, a coletânea colocou Chambers na tradição da literatura fantástica, que ele depois abandonou: seu posterior sucesso comercial veio da literatura romântica mais melosa. Mesmo em O Rei de Amarelo, somente os quatro primeiros contos são dedicados ao universo tenebroso do título. A peca fictícia que traz a danação aos seus leitores não aparece nos seis contos restantes, quatro deles dedicados às desventuras amorosas de pintores americanos em Paris. O jornalista e escritor Carlos Orsi, responsável pela introdução e pelas competentes notas aos contos da edição brasileira, traça a ligação de Chambers com a literatura decadentista do fim do século XIX, o universo cheio de refinamento estético e dissolução moral de escritores como o francês Joris-Karl Huysmans e o irlandês Oscar Wilde — em O Retrato de Dorian Gray, aliás, o protagonista a certa altura lê um estranho "livro amarelo" (talvez pela associação com as chamas do inferno, a cor parece carregar um simbolismo diabólico: no início de Ulisses, de James Joyce, o personagem que encena uma paródia blasfema de missa católica veste um herético roupão amarelo). A atmosfera dissoluta, porém, é amena nos relatos de Chambers: no final de três dos quatro contos parisienses que encerram a coletânea, a pureza de sentimentos sai premiada. Outra fonte literária imediata de O Rei de Amarelo foi o escritor americano Ambrose Bierce. Nos contos do compatriota, Chambers encontrou os nomes Carcosa, Hastur e Hali, que parecem designar lugares imaginários da peça teatral maldita. Para além do decadentismo, uma moda literária circunscrita ao fin de siècle, Chambers pertence — como Bierce — a uma família literária mais ampla e variada: os góticos (veja o quadro acima). Na origem, o romance gótico também foi uma moda. No século XVIII, autores como Horace Walpole, Ann Radcliffe e Gregory Lewis conquistaram as novas multidões de leitores que então surgiam na Inglaterra com uma literatura povoada por fantasmas e assombrações, quase sempre em cenários soturnos como mosteiros e castelos medievais. O termo "gótico", aliás, foi tomado de empréstimo do austero estilo arquitetônico da Idade Média. Mas o elemento mórbido do gótico tocou em certos nervos sensíveis do romantismo: aí estão, por exemplo, as mulheres belas mas frágeis e doentias que se tornam objeto da paixão obsessiva dos heróis de Edgar Allan Poe, Tess e Scott, o casal amaldiçoado do conto "O emblema amarelo", parecem saídos da mesma forma macabra. O conto mais bizarro da coletânea é o primeiro. "O reparador de reputações". A história se passa em Nova York, em 1920 (um cenário futurista, portanto: o livro é de 1895). Embora o narrador fale de uma era de paz e prosperidade nos Estados Unidos — o país acaba de sair vitorioso de uma guerra com a Alemanha —, há elementos de pesadelo no admirável mundo novo: os judeus foram expulsos do país, e Câmeras Letais, destinadas a facilitar o suicídio, foram instaladas nas cidades. O personagem que narra a história tem sonhos delirantes de se tornar imperador — e, claro, é um leitor de O Rei de Amarelo. Seguem-se ''A máscara", sobre um triângulo amoroso envolvendo artistas americanos em Paris, e o tenebroso "No pátio do dragão", em que um homem é assombrado, também em Paris, por um perseguidor implacável (a visão de Carcosa no final desse conto parece ter inspirado o delírio do personagem de Matthew McConaughey no último episódio de True Detective). E então o quarteto sobre a peça maldita é fechado com o já citado "O emblema amarelo". Há cores góticas em outros contos da coletânea, e Chambers voltou ao fantástico em umas poucas obras posteriores. Mas sua grande contribuição ao gênero está toda contida nos quatro contos sobre o livro que desgraça todos que o lêem. H.P. Lovecraft lamentava que Chambers não tivesse desenvolvido melhor "um veio no qual poderia facilmente ser reconhecido como mestre". Mas o poder de O Rei de Amarelo bem pode estar na sua indeterminação radical: não sabemos onde fica Carcosa, e nem sequer quem, afinal, é o rei de amarelo. Graças a esse jogo de sombras, O Rei de Amarelo, o livro real, desperta o temor e o desejo de ler O Rei de Amarelo, a peça inexistente. GALERIA DO TERROR Marcos da literatura de horror e sobrenatural desde o início do gótico Com histórias de fantasmas e castelos sombrios e misteriosos, o romance gótico - nome emprestado do estilo de arquitetura medieval - foi uma febre no fim do século XVIII. O inglês Horace Walpole é considerado o fundador do estilo, com O Castelo de Otranto (1764) Incentivada por uma espécie de concurso de histórias promovido por Lord Byron, Mary Shelley criou um mito da era moderna: o monstro construído pela ciência, em Frankenstein (1818). Na foto, a criatura de Frankenstein em sua encarnação mais célebre, por Boris Karloff. O americano Edgar Allan Poe (1809-1849) deu uma nova dignidade literária ao gótico em contos como "A queda da casa de Usher” e em poemas como "O corvo". Também foi um dos criadores da moderna narrativa de detetive. O americano Robert W. Chambers (1865-1933) foi pintor e ilustrador antes de se arriscar na literatura. Seu livro de contos O Rei de Amarelo (1895) exerceria uma influência discreta mas decisiva sobre autores do gótico no século XX. como H.R Lovecraft e Neil Gailman. Gótico tardio, o irlandês Bram Stoker (1847-1912) foi responsável pela incorporação do vampiro ao rol dos monstros mais populares, graças ao romance Drácula de 1897. Na foto, Gary Oldman vive o vampiro no filme Drácula de Bram Stoker (1992). Ao longo do século XX, o gótico virou pop. Seus clássicos foram adaptados para o cinema e novos cultores do gênero, como o escritor americano Stephen King - também ele muito adaptado para o cinema -, conquistaram leitura em massa. 7#2 CINEMA – UMA BREVE HISTÓRIA PARA UMA LONGA VIDA Getúlio acertadamente se concentra nos derradeiros dezenove dias de seu personagem: gente assim não cabe num filme só. AUGUSTO NUNES O primeiro longa-metragem sobre o homem que governou o país por turbulentos vinte anos dura menos de duas horas e dezenove dias. A cena de abertura de Getúlio (Brasil, 2014), que estreia no país nesta quinta-feira, mostra o atentado da Rua Tonelero, que matou o major Rubens Vaz e feriu o jornalista Carlos Lacerda. O final infeliz chega com o suicídio do mais importante político da história do Brasil. Ao limitar-se à exumação dos fatos ocorridos entre 5 e 24 de agosto de 1954, o diretor João Jardim demonstrou que conhece Getúlio Dornelles Vargas o suficiente para entender que gente assim não cabe num filme só. Ainda que fosse tão extensa quanto os discursos do jovem Fidel ou as apresentações televisivas de Hugo Chávez antes de recorrer aos médicos do velho Fidel, nenhuma obra cinematográfica conseguiria condensar a saga do gaúcho de São Borja que, depois do batismo eleitoral, em 1909, foi deputado estadual, deputado federal, ministro de Estado, governador do Rio Grande do Sul, senador e chefe de Estado durante vinte anos, oito dos quais como ditador. O resgate terá de ser feito por etapas. E Getúlio é um bom começo. Qualquer filme histórico seria bem-vindo num momento em que a produção nacional parece monopolizada por comédias de quinta categoria. Mas Getúlio não é um longa qualquer. A cuidadosa reconstituição de época e a fotografia de Walter Carvalho recriam o Rio de Janeiro dos anos 1950 e restauram o clima político sufocante daquele trágico agosto. O roteiro acompanha passo a passo a caminhada do presidente que saía da vida para entrar na história. Em torno do pivô da trama, movimentam-se coadjuvantes com densidade de protagonista. Abstraída a inexplicável ausência de Oswaldo Aranha, amigo íntimo de Getúlio desde os anos 1920 e ministro da Fazenda em agosto de 1954, não faltou ninguém. Alguns desempenhos são impecáveis — Drica Moraes, por exemplo, é a reencarnação de Alzirinha Vargas, a filha predileta de Getúlio. Outros confirmam que só intérpretes de primeira grandeza igualam o brilho dos atores que encenaram o drama na vida real. Premiado com o papel principal, o competente Tony Ramos consumiu dois anos na composição do personagem. Profissional aplicado, hospedou-se no Palácio do Catete durante 51 dias seguidos, ao longo dos quais teve pesadelos na cama em que Getúlio dormia, usou a escrivaninha que testemunhou o parto da carta-testamento, atravessou madrugadas nos corredores reduzidos pela crise a becos sem saída. Incontáveis consultas a livros e jornais antigos tornaram a esfinge menos indecifrável. Aprendeu que um gaúcho da fronteira pode ser tão cauteloso, astuto e matreiro quanto o mais radical dos mineiros. Um macacão importado de Los Angeles deixou-o 30 quilos mais gordo. As semelhanças foram acentuadas por duas horas de maquiagem, que incluía bolsas dos olhos e rugas simuladas com o uso de látex, e pela adição diária de fios de cabelo branco ao couro cabeludo. Fisicamente, tudo a ver com Getúlio. Pena que as falas não sejam tão irretocáveis quanto os silêncios. Entrevistado por VEJA, o ator revelou que a inexistência de registros da voz de Getúlio em conversas privadas o aconselhou a não reproduzir o que ouviu nos discursos gravados. A decisão resultou no sumiço de pelo menos duas marcas registradas: o uso da segunda pessoa do singular e o "l" pronunciado à castelhana. O personagem não diz "tu" nem sequer nas conversas reservadíssimas com Alzirinha. E o "Trabalhadores do Brasil" que abria os discursos do Primeiro de Maio é deformado pelo "l" de Brasil com som de "u". Tais distorções talvez sejam originárias do método. "Personagem não vai comigo para casa, não entra nem no carro", informa Tony Ramos. Se a regra abrisse uma exceção para Getúlio Vargas, Ramos poderia ter interpretado o papel com a mesma intensidade convincente exibida pelo inglês Daniel Day-Lewis em Lincoln. Uma temporada no estado natal de Abraham Lincoln ensinou ao ator britânico como é o sotaque de quem vive em Illinois. Tony Ramos nem precisaria ter instalado Getúlio no quarto de hóspedes para descobrir como o filho dos pampas falava em casa. Bastaria uma semana em São Borja para transformar um bom desempenho numa performance perfeita. Leia entrevista com Tony Ramos sobre Getúlio em VEJA.com 7#3 MÚSICA – A MARATONA DO PIANO As Variações Goldberg, de Johann Sebastian Bach, foram criadas para aplacar a insônia de um nobre russo. Hoje elas tiram o sono dos que ousam tocá-las. SÉRGIO MARTINS Para curar a insônia, oitenta minutos de Johann Sebastian Bach por noite devem resolver. Em 1741, o compositor alemão criou as Variações Goldberg em socorro ao conde Von Keyserlingk, embaixador da corte russa em Dresden, para tornar menos enfastiantes suas madrugadas em claro. Nas biografias do gênio alemão não há notícia de que a obra, dedicada ao cravista e ex-aluno Johann Gottlieb Goldberg, tenha de fato melhorado as noites de Von Keyserlingk. Mas certamente poucas peças tiram tanto o sono dos pianistas quanto a criação de Bach. Primeiro, pelo desafio técnico de executá-la. São trinta variações construídas sobre a linha de baixo de uma ária de 32 compassos. A peça agrega ainda várias outras formas musicais, como fuga, trio-sonata, danças e até uma brincadeira coral. É mais ou menos como andar por uma rua cheia de obstáculos seguindo outra pessoa que vai ditando o ritmo da caminhada, compara o pianista paulistano Álvaro Siviero. As Variações Goldberg exigem ainda excelente preparo físico. "Elas demandam o mesmo esforço que correr duas maratonas", exagera o pianista americano Jeremy Denk. "Há uma variação em que você começa com a mão esquerda. A partir da oitava nota, a mão direita repete a nota tocada anteriormente pela esquerda. O efeito lembra a perseguição do Papa Léguas pelo Coiote do desenho animado", diz. Em setembro do ano passado, Denk lançou uma elogiadíssima versão das Variações Goldberg em disco e em DVD. Nesta semana, ele repete a maratona virtuosística numa única noite na Sala São Paulo. O recital — que inclui a Sonata Concord. de Charles Ives, outro desafio pianístico — faz parte da temporada 2014 da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (em outra noite, Denk toca o primeiro Concerto para Piano, de Beethoven, acompanhado pela orquestra). No vocabulário musical, ''variações", explica a professora e pianista Scheilla Glaser, são um formato em que o compositor usa uma estrutura musical como base — uma harmonia ou um tema melódico — e a partir dela cria derivações e transformações, mudando alguns elementos e acrescentando outros, mas sempre mantendo a base. O bom ouvinte consegue reconhecer, do início ao fim, o tema principal. Em outros termos, seria como uma reforma num antigo cômodo da casa. Ele ganha novos móveis, outra mão de tinta, mas mantém as dimensões originais, sem comprometer a sensação de familiaridade. No caso das Variações Goldberg, a base é a linha de baixo, tocada em geral pela mão esquerda do pianista (ou cravista: o piano moderno não existia ao tempo de Bach). As Variações Goldberg foram das poucas obras de Bach que sobreviveram ao injusto esquecimento ao qual o compositor foi relegado durante anos após sua morte (somente no início do século XIX seu legado foi recuperado e valorizado, graças ao empenho do também compositor Felix Mendelssohn). Franz Liszt (1811-1886), virtuose do piano, conhecia as Variações; o compositor e pianista Johannes Brahms (1833-1897) não apenas as incluía em seus recitais como chegou a classificá-las como "um bálsamo". No século XX, coube ao pianista canadense Glenn Gould (1932-1982) transformá-las em cavalo de batalha do repertório pianístico erudito. Gould gravou a peça duas vezes, em 1955 e em 1981. Embora diferentes entre si (uma gravação é rápida e impetuosa, a outra mais lenta e com longas pausas), ambas são leituras riquíssimas da obra de Bach, que teve no canadense um de seus intérpretes mais dedicados. Gould e suas Variações causaram tanto impacto que viraram personagens literários. O Náufrago, romance do escritor austríaco Thomas Bernhard (1931-1989), fala de dois companheiros de estudos de Gould que entram em parafuso após escutar sua leitura para a obra de Bach — e um deles se suicida pouco tempo após a morte de Gould. Ainda que não haja registro de casos de suicídio associados às Variações, é inevitável que toda nova interpretação delas seja comparada às famosas gravações de Gould. "As versões de Gould nunca me serviram de parâmetro. Prefiro tocar o que sinto. E, sinceramente, gosto mais das gravações de Charles Rosen e Murray Perahia", desdenha Denk, que diz achar especialmente encantadora a maneira como Bach une o lirismo e a ternura nas Variações. "É um vasto deserto de alegria com ocasionais oásis de tristeza", define ele. Como se disse, as Variações Goldberg foram criadas para curar uma insônia. Difícil é pregar o olho após oitenta minutos de audição de alguns dos momentos mais belos criados para o piano. 7#4 TELEVISÃO – O RIDÍCULO VENDE Bem mais engraçadas que os velhos comerciais com atores jurando que usam esta ou aquela marca são as campanhas publicitárias que investem na autodepreciação. BRUNO MEIER “Venha ver meu dendê." 'Venha ver o que o baiano tem." 'Vem provar do meu tempero." "Tchaaaaan, tu tu tu pá." Compadre Washington testou uma série de bordões na gravação do comercial de um site de venda e classificados, em janeiro, em São Paulo. Além de se divertir com o improviso, ele filou um bom rango (expressão dele) providenciado pela produtora. A frase que acabou indo ao ar, porém, já estava no roteiro. Inspirados pela personalidade exuberante do cantor do grupo É o Tchan, cinco publicitários da agência NBS chegaram à frase que hoje se repete por todo lugar: "Sabe de nada, inocente!". O comercial segue uma nova tendência: o anúncio autodepreciativo. Não se deprecia o produto — seria contra o espírito do negócio —, mas sim a celebridade (ou, em certos casos, subcelebridade) escalada para promovê-lo. Compadre Washington, 52 anos, aparece como a cabeça falante de um aparelho de som que dirige cantadas inconvenientes a uma mulher, até que o marido banana decide vendê-lo pelo site em questão. Outras quatro personalidades foram chamadas para encarnar objetos irritantes: Sérgio Mallandro, Paulo Gustavo, Supla e Narcisa Tamborindeguy, esta no papel de um móvel brega. Nenhuma alcançou tanta repercussão quanto Compadre Washington: "As pessoas não prestavam atenção no comercial até eu aparecer", gaba-se o cantor. Os caches individuais variaram de 100.000 a 250.000 reais - uma pechincha se comparados aos 25 milhões que, segundo se especula no mercado publicitário, Roberto Carlos teria embolsado para comer (aliás, só olhar) um bife. Uma nova leva de comerciais do site já foi gravada e deve ir ao ar depois da Copa do Mundo. O nome dos novos garotos-propaganda está sendo mantido em segredo, mas a agência tem recebido até seis pedidos semanais de comediantes, atores e personalidades sumidas que se oferecem para se ridicularizar na figura de um eletrodoméstico indesejável. Em outro comercial que faz essa linha irônica, a estrela é Betty Faria, 72 anos, figura indissociável da história da TV brasileira. "Em nenhum momento pensei: 'Será que não vou ficar bem?'. Estou numa idade em que meu ego está bem administrado", diz a atriz, que encarna o mau humor provocado pela fome em um comercial de chocolate. A linha do comercial foi concebida nos Estados Unidos, onde a atriz nonagenária Betty White e o chatonildo Robin Williams atuaram como o alter ego rabugento de personagens comuns que, depois de saciar a fome com uma barra de chocolate, voltam à normalidade. A ideia foi exportada para oitenta países. No Brasil, o nome de Betty Faria apareceu em uma pesquisa que apontou seis nomes de atrizes que não costumam aparecer em propagandas. "Queríamos causar impacto pelo estranhamento. A ideia é que o espectador se pergunte: 'O que ela está fazendo aí?'", diz Fernando Rodrigues, diretor de marketing no Brasil da empresa dona da marca. A atriz encarou com bom humor o fato de ter sido escolhida para ser a cara do mau humor. E diz que só se recusaria a fazer comercial de "bicho morto". "Por dinheiro nenhum do mundo. Sou vegetariana." Perguntada se estava se referindo à publicidade em que Roberto Carlos diz ter voltado a comer carne depois de anos, Betty saiu pela tangente: não disse nem que sim, nem também que não. A peça publicitária protagonizada por Roberto Carlos segue um modelo mais convencional (e há quem diga que não o faz muito bem: "É visível que Roberto está desconfortável", diz um respeitado publicitário). Trata-se do chamado anúncio "testemunhal" — aquele em que uma estrela jura que usa o produto anunciado. 'Todos sabem que celebridades ganham muito dinheiro para promover produtos que não necessariamente usam", diz André Lima, vice-presidente de criação e planejamento da NBS. "O espectador hoje quer história. Famoso por si só não segura mais." Há um seleto time que, na avaliação dos publicitários, ainda funciona quando aparece no ar empenhando sua (caríssima) palavra pela qualidade de um produto. Entre eles estão Pelé, Gisele Bündchen, Luciano Huck, Fernanda Montenegro, Fátima Bernardes, Ivete Sangalo — e, sim, Roberto Carlos. Esperto, Compadre Washington já fez uma música com o "sabe de nada. inocente" no refrão. Artistas só aceitam participar de comerciais que os esculacham porque opera aqui o princípio “falem mal, mas falem de mim". E nem todos se arriscam assim. Em comerciais, o cantor Sidney Magal já saiu de um carro cantando Tenho, e dançou Sandra Rosa Madalena para uma marca de canos de PVC. Diz, porém, que não embarcaria na achincalhação escancarada. "Já fui chamado de tudo — brega, cafona e por aí vai. Mas de ridículo, isso eu nunca me fiz", diz Magal. 7#5 VEJA RECOMENDA DISCOS WATERLOO (SPECIAL EDITION), ABBA (UNIVERSAL) • No inicio de carreira, o quarteto sueco ABBA era execrado pelos jornalistas de seu país. Um deles chegou a perguntar como o grupo tivera o desplante de transformar em canção uma batalha que ceifou a vida de cerca de 40.000 europeus. Puro despeito. Waterloo, o suposto insulto em formato pop, é tão delicioso que rendeu ao ABBA o primeiro lugar no festival Eurovision, em 1974. Waterloo, o disco, também serviu como cartão de visita do ABBA para o restante do mundo. Não tem tantos hits quanto os álbuns posteriores do quarteto, mas já traz os elementos que alçariam o ABBA ao topo do pop da década de 70: os vocais bem casados das cantoras Agnetha Fältskog e Anni-Frid Lyngstad e os ótimos arranjos do guitarrista Björn Ulvaeus e do tecladista Benny Anderson. Esta edição traz raridades, como cinco canções do álbum interpretadas em sueco, alemão, espanhol e francês. EVERYDAY ROBOTS, DAMON ALBARN (WARNER) • Mais improvável ícone do britpop (era certinho, pouco afeito a escândalos e não torcia para um time do "povão"), o cantor Damon Albarn — revelado no grupo Blur — provou seu talento em projetos que iam do hip-hop a namoricos com a música africana. Mas faltava em sua discografia um trabalho pessoal, em que ele não precisasse se escorar em personas como o 2D, dos Gorillaz, nem virasse um coadjuvante em meio a convidados especiais. Seu primeiro disco-solo supre a lacuna com louvor. Na parte musical, há elementos que já eram explorados por ele, como as sonoridades da África e do Caribe, a música eletrônica e os arranjos sinfônicos. A diferença está nas letras, nas quais Albarn aborda desde situações que enfrentou na infância até o uso de drogas pesadas. O tecladista Brian Eno dá um toque de classe ao álbum, adicionando sintetizadores a You & Me e seus vocais a Heavy Seas of Love. LIVROS MR. GWYN, DE ALESSANDRO BARICCO (TRADUÇÃO DE JOANA ANGÉLICA D'AVILA MELO; ALFAGUARA; 224 PÁGINAS; 39,90 REAIS) • Natural de Turim, Alessandra Baricco é uma figura bem conhecida na Itália. Misto de escritor, teatrólogo, apresentador de TV e militante da causa da leitura, ele é autor do monólogo que inspirou o filme A Lenda do Pianista do Mar, dirigido por Giuseppe Tornatore nos anos 1990, e até fez uma parceria com o duo francês de pop eletrônico Air. Com atividades tão variadas, Baricco ainda consegue manter o foco no essencial: escrever bons livros. No seu mais recente romance, ele se vale de humor e delicada ironia ao narrar a história de um escritor em crise existencial. Caminhando por um parque londrino, Jasper Gwyn toma a decisão repentina de publicar um artigo num jornal elencando coisas que não fará nunca mais — escrever livros é a principal delas. Dividido entre o novo cotidiano de ócio e uma vontade louca de voltar a escrever, Gwyn vive encontros e desencontros com seu agente e a assistente dele, uma gordinha sexy. Fugir de si mesmo na tentativa de se achar — eis a ilusão muito humana dissecada aqui. O TRONCO E OS RAMOS, DE RENATO MEZAN (COMPANHIA DAS LETRAS; 624 PÁGINAS; 69 REAIS) • Na década de 70, o psicanalista Renato Mezan viu nascer a fagulha de inquietude que, mais de trinta anos de pesquisas e reflexões depois, daria origem a seu novo livro. Autoridade indisputável na obra do austríaco Sigmund Freud (1856-1939), ele se intrigou na juventude com as diferenças teóricas entre os psicanalistas que frequentou na França e no Brasil. Desde então, devotou-se a investigar como as concepções de Freud se desdobraram em vertentes tão distintas ao longo de 120 anos. O Tronco e os Ramos narra a evolução das ideias que brotaram dessa riquíssima fonte original. Com prosa elegante e cheia de erudição, Mezan oferece aos leitores iniciados uma panorâmica alentada do universo freudiano — além de se revelar um ótimo guia para os não iniciados em meio a uma selva conceitual que vai do "self grandioso" ao "complexo de castração". Em outra seção, ele parte do filme Freud, Além da Alma — que o americano John Huston dirigiu em 1962, com base em roteiro do filósofo francês Jean-Paul Sartre — para resgatar os anos heróicos do advento da psicanálise. CINEMA 7 CAIXAS (7 CAJAS, PARAGUAI, 2012. JÁ EM CARTAZ) • No Mercado 4, no centro de Assunção, o garoto Victor (Celso Franco), quando não está disputando trabalho com outros carregadores, está se embasbacando com as imagens das TVs espalhadas entre as lojas de eletrônicos, açougues, barracas de verduras, quiosques de comida e tudo mais que cabe nessa enorme feira. Louco por um celular com câmera (a história se passa em 2005, quando isso era novidade), Victor aceita transportar, em seu carrinho de mão, sete caixotes de madeira de conteúdo misterioso. Ao final, ganhará a outra metade da nota de 100 dólares que o contratante rasgou diante de seus olhos — uma fortuna. A missão, porém, o colocará na mira da polícia, de tipos escusos e de um carregador (Victor Sosa) ainda mais necessitado que ele. Aparentada na estética e na inspiração a Cidade de Deus, esta rara e premiada produção paraguaia dirigida por Juan Carlos Maneglia e Tana Schémbori compõe um retrato vívido, entre o cômico e o aflitivo, de um mundo que será muito familiar aos brasileiros (exceto pelos diálogos em guarani), marcado por pobreza, aspiração, miscigenação e aquela iniciativa que nasce do desespero. 7#6 OS LIVROS MAIS VENDIDOS FICÇÃO 1- A Culpa É das Estrelas. John Green. INTRÍNSECA 2- Divergente. Veronica Roth. ROCCO 3- Convergente. Veronica Roth. ROCCO 4- Quem É Você, Alasca? John Green. MARTINS FONTES 5- Insurgente. Veronica Roth. ROCCO 6- Adultério. Paulo Coelho. SEXTANTE 7- A Menina que Roubava Livros. Markus Zusak. INTRÍNSECA 8- O Teorema Katherine. John Green INTRÍNSECA 9- A Guerra dos Tronos. George R.R. Martin. LEYA BRASIL 10- Entre o Agora e o Sempre. J.A. Redmerski. SUMA DE LETRAS NÃO FICÇÃO 1- Demi Lovato – 365 Dias do Ano. Demi Locato. BEST SELLER 2- Assassinato de Reputações. Romeu Tuma Jr. TOPBOOKS 3- 1889. Laurentino Gomes. GLOBO 4- Sonho Grande. Cristiane Corrêa. PRIMEIRA PESSOA 5- O Tempo É um Rio que Corre. Lya Luft. RECORD 6- O Livro da Psicologia. Nigel Benson. GLOBO 7- Eu Sou Malala. Malala Yousafzai. COMPANHIA DAS LETRAS 8- O Livro de Filosofia. Vários. GLOBO 9- 12 Anos de Escravidão. SOLOMON NORTHUP. VÁRIOA EDITORES 10- Um Sorriso ou Dois. Frederico Elboni. SARAIVA AUTOAJUDA E ESOTERISMO 1- Ansiedade. Augusto Cury. SARAIVA 2- Pais Inteligentes Formam Sucessores, Não Herdeiros. Augusto Cury. BENVIRÁ 3- Kairós. Padre Marcelo Rossi. PRINCIPIUM 4- Casamento Blindado. Renato e Cristiane Cardoso. THOMAS NELSON BRASIL 5- Foco. Daniel Goleman. OBJETIVA 6- Eu Me Chamo Antonio. Pedro Gabriel. INTRÍNSECA 7- O Monge e o Executivo. James Hunter. SEXTANTE 8- Eu Não Consigo Emagrecer. Pierre Dukan. BEST SELLER 9- Crianças Francesas Não Fazem Manha. Pamela Druckerman. FONTANAR 10- A Magia. Rhonda Byrne. SEXTANTE 7#7 ROBERTO POMPEU DE TOLEDO – O CORVO E O ANJO Uma porta lateral se abriu e apareceu um negro alto, rijo, bem-vestido. O ano é 1945 e o cenário, a chefia de polícia do Rio de Janeiro, onde está sendo interrogado um certo Euclides, acusado de ter provocado e agredido, numa confeitaria, o político e jornalista José Eduardo de Macedo Soares, crítico contumaz do ditador Getúlio Vargas. Sob pressão intensa da imprensa oposicionista, naqueles exteriores do Estado Novo em que o regime já não tinha forças para impor-se com o instrumento da censura, o chefe de polícia concordara em permitir que interrogadores independentes questionassem Euclides. Pergunta daqui, pergunta dali, e enfim o acusado confessa: trabalhava para a guarda pessoal de Getúlio. O negro só observava, calado. Um dos interrogadores era outro jornalista, crítico ainda mais contumaz e acerbo do ditador, Carlos Lacerda. O chefe de polícia interrompeu o interrogatório. Se a investigação conduzia à residência da República, não era ele quem lhe daria continuidade. O negro não abriu a boca. Nem precisava. O episódio consta do excelente A República das Abelhas, recém-lançado livro de Rodrigo Lacerda. O autor, romancista com livros premiados no currículo, é neto de Carlos Lacerda. A República das Abelhas é uma crônica familiar com meio século da história brasileira como pano de fundo. Começa com Sebastião Lacerda, que foi político e juiz do Supremo Tribunal Federal, passa por Maurício Lacerda, filho de Sebastião, caso raro de advogado e deputado que, na República Velha, se distinguiu pela defesa dos trabalhadores (era "o tribuno da plebe", diziam), e desemboca no filho de Maurício, Carlos Lacerda, antigo comunista que virou campeão do anticomunismo. Tal qual o concebeu Rodrigo, o livro é narrado por um Carlos Lacerda que, já morto, repassa a própria vida e a dos antepassados. Sobre o negro daquele dia, o Carlos Lacerda do livro diz: "Tinha uma presença forte, porém não lhe demos maior importância". Se o Carlos Lacerda de 1945 já era o algoz de Getúlio, muito mais o seria o de agosto de 1954, mês em que se dá o famoso atentado da Rua Tonelero. Lacerda chegava em casa, à noite, acompanhado do major da Aeronáutica Rubens Vaz, quando um pistoleiro abrigado sob uma árvore disparou tiros que mataram Vaz e o feriram no pé. Seguiu-se, em clima de insurreição, investigação da Aeronáutica que levou, de novo, à guarda pessoal de Getúlio e à figura de seu chefe — o negro Gregório Fortunato, apontado como mandante. "Foi quando reconheci o negro soturno que, em 1945, assistira ao interrogatório", diz o Carlos Lacerda do livro. A figura de Gregório finalmente emergia à luz do dia. Ele acumulara poderes que lhe permitiam traficâncias diversas, nos altos escalões do governo, mas era sobretudo o anjo da guarda de Getúlio — o "Anjo Negro", como passou a ser chamado. Apelido por apelido, Lacerda ganhara o de "Corvo" do jornalista rival Samuel Wainer. O encontro do Corvo e do Anjo Negro, este ainda que por interposta pessoa, na escuridão da noite da Rua Tonelero, confere um significado ao mesmo tempo sinistro e caricatural ao cruzamento dos destinos desses personagens tão marcantes do período, um sempre calado, o outro um dos verbos mais devastadores da política brasileira, um agindo nas sombras, o outro mais exposto impossível. Mas o livro de Rodrigo narra ainda um último encontro entre os dois, de novo à noite, ocorrido quando Lacerda, agora governador da Guanabara, foi ao presídio da Rua Frei Caneca para tentar aplacar uma rebelião de presos. Os presos não acreditaram, a princípio, que quem despontava no pátio era o governador. Continuaram a batucar em torno de uma enorme fogueira feita com restos de móveis e colchões. "De repente, do meio da escuridão e esgueirando-se por entre os corpos que rodeavam o fogo, surgiu Gregório Fortunato", conta o Carlos Lacerda do livro. "Eu o reconheci imediatamente, e ele a mim." Gregório cumpria pena pelo crime de 1954 e Lacerda chegou a temer que ele viesse a se aproveitar da "chance inédita, quase miraculosa", para se vingar. Não. Ao contrário, "como um autêntico Anjo Negro, vagaroso e soturno", foi até os líderes da rebelião, e o clima mudou. Os presos se convenceram de que se tratava do governador. Lacerda trepou num caixote e, ao começar a falar, ainda pôde observar que Gregório continuava a movimentar-se, agora convocando outros presos a que se aproximassem. Vivia-se, à luz indecisa da fogueira, o extraordinário momento em que o Anjo, amansado, colaborou com o Corvo.