0# CAPA 25.6.14 VEJA www.veja.com Editora ABRIL Edição 2379 – ano 47 – nº 26 25 de junho de 2014 [descrição da imagem: foto da torcida brasileira, no centro, em tamanho maior a imagem de uma moça, sorrindo, vestida com as cores da bandeira brasileira e rosto com duas pequena faixas pintadas de verde e amarelo nas bochechas.] ESPECIAL COPA SÓ ALEGRIA ATÉ AGORA Um festival de gols nos gramados, menos pessimismo nas pesquisas, mais consumo, visitantes em festa e o melhor é aproveitar, pois legado duradouro, esqueça. EXCLUSIVO Testamos o programa de computador que fura a fila de compra de ingressos no site da Fifa. Funciona. Mas é justo? [descrição da imagem: faixa estreita na parte superior da capa: imagem de soltados na I Guerra Mundial, e de um avião com o símbolo do nazismo.] HISTÓRIA – 48 PÁGINAS 100 ANOS DA I GUERRA MUNDIAL ______________________________ 1# SEÇÕES 2# PANORAMA 3# BRASIL 4# ECONOMIA 5# INTERNACIONAL 6# ESPECIAL 100 ANOS DA I GUERRA MUNDIAL 7# COPA 8# GUIA 9# ARTES E ESPETÁCULOS _________________________________ 1# SEÇÕES 25.6.14 1#1 VEJA.COM 1#2 CARTA AO LEITOR – A AUTOFAGIA DA CIVILIZAÇÃO 1#3 ENTREVISTA – MARCO ANTONIO ZAGO – É PRECISO ARRISCAR MUITO MAIS 1#4 MAÍLSON DA NÓBREGA – O DECRETO DE DILMA: UM TESTE PARA AS INSTITUIÇÕES 1#5 CLAUDIO DE MOURA CASTRO – EDUCAÇÃO: RECEITA PARA NÃO RECUAR 1#6 RODRIGO CONSTANTINO – RETROCESSO 1#7 LEITOR 1#8 BLOGOSFERA 1#1 VEJA.COM MAUS CONSELHOS POR TODA PARTE Um dos argumentos de quem defende o decreto bolivariano de Dilma Rousseff — o de número 8243, que estimula todos os órgãos da administração federal a abrigar conselhos de "representantes da sociedade civil" — é que o Brasil já conta com milhares de entidades desse tipo em todas as camadas de governo. É verdade. Reportagem no site de VEJA mostra, contudo, que a experiência acumulada nesses conselhos é negativa: eles têm muito pouco de "democrático" e um conceito bem particular do que seja "sociedade civil". HORA DOS VICES Com as principais candidaturas à Presidência da República e aos governos estaduais decididas, os personagens da vez no tabuleiro eleitoral são os vices. Reportagem no site de VEJA mostra que, embora sem grande apelo como catalisador de votos, esse cargo é uma das principais moedas de troca nas eleições. A negociação mais importante envolve o PSD do ex-prefeito Gilberto Kassab, disputado por PT e PSDB no plano nacional e no pleito em São Paulo. O HORROR NA ÍNDIA A Índia tem um triste histórico de crimes contra mulheres. Segundo as autoridades locais, o país registra um estupro a cada 21 minutos. Não é simples tentar entender por que isso acontece em uma das maiores democracias do planeta. Reportagem no site de VEJA ouviu especialistas que esboçam explicações relacionadas ao sistema de castas, a fatores religiosos e até mesmo jurídicos. "Até o ano passado, algumas dessas atrocidades tinham amparo legal", diz Venkatesh Balan, diretor de uma ONG que apoia vítimas de abusos. AS IMAGENS QUE ANIMAM O GOOGLE O Google acrescenta com frequência à sua tradicional página branca de buscas imagens ou animações comemorativas. São os chamados doodles. Desde 1998, mais de 2000 deles já foram ao ar, homenageando de Charles Chaplin a Tom Jobim, passando por feriados nacionais e grandes eventos. Agora é a vez da Copa. A equipe multidisciplinar e multinacional responsável pelos doodles está no Brasil para criar imagens relativas ao Mundial. VEJA.com visitou o Q.G. do grupo em São Paulo e conta os bastidores da produção. Uma lista reúne vinte doodles memoráveis. 1#2 CARTA AO LEITOR – A AUTOFAGIA DA CIVILIZAÇÃO É fato. Foi há 45 anos, em Benin, na Nigéria. Para ver Pelé jogar, combatentes dos dois lados de uma guerra civil depuseram as armas e deram-se uma trégua que durou enquanto o rei do futebol exibia sua arte em campo. Nesta edição de VEJA, é a vez de o futebol ceder espaço a uma guerra. Em meio à cobertura especial da Copa no Brasil, a revista dedica 48 páginas ao centenário da I Guerra Mundial, cujo estopim foi aceso, em 28 de junho de 1914, com o assassinato, em Sarajevo, de Francisco Ferdinando, arquiduque do então poderoso Império Austro-Húngaro. Não é muita informação sobre um conflito europeu ocorrido há 100 anos, distante dos brasileiros, portanto, no tempo e no espaço? De maneira alguma. Mais presente na memória está a II Guerra Mundial, pois teve a participação da Força Expedicionária Brasileira (FEB), a monstruosidade de Hitler, o nazismo e o Holocausto, cujos sobreviventes ainda podem relatar os horrores dos campos de concentração. Mas, em termos de impactos duradouros, nada se compara à Primeira Grande Guerra. Para os europeus, ela foi "A Grande Guerra". Não "uma" nem a "primeira", mas "A", pois fez mais vítimas fatais do que qualquer outra guerra da história da Europa Ocidental. No épico desembarque na Normandia, o Dia D, da invasão aliada à Europa ocupada por Hitler, que fez setenta anos em 6 de junho, morreram 10.000 aliados e 5.000 alemães. Só no esquecido 22 de agosto de 1914, o dia mais sangrento da história militar francesa, foram mortos 27.000 soldados. Em apenas duas batalhas, travadas nos vales dos rios Mosa e Somme, perderam a vida na luta contra os alemães o dobro de ingleses, o triplo de belgas e quatro vezes mais franceses do que em toda a II Guerra Mundial. Morria-se por nada. Em quatro meses e meio no Somme, ao custo da vida de mais de 270.000 ingleses e franceses, os aliados avançaram 64 míseros quilômetros — quatro mortos para cada metro de terreno conquistado ao inimigo. A importância histórica da Grande Guerra não se mede apenas pela carnificina. Como mostra a reportagem de VEJA, ela deve ser avaliada pela profundidade e resistência das cicatrizes físicas, culturais e mentais que deixou. "Depois que se mergulha nos detalhes da história da I Guerra, é impossível não ver suas marcas em todas as grandes questões geopolíticas da atualidade", diz Diogo Schelp, editor executivo de VEJA que coordenou a reportagem. O terrorismo, o uso de armas químicas, a renovada Guerra do Iraque, a unificação europeia e a hegemonia americana no século XX encontram suas raízes na guerra de 1914-18. São fascinantes e enigmáticas as razões que levaram as sociedades europeias a entregar ao ferro e fogo dos canhões uma geração inteira de jovens. É vital tentar entender como a cultura que se deixou arrastar para a barbárie da guerra foi a mesma que dera ao mundo os pilares da vida civilizada: direitos iguais adquiridos ao nascer; inocência até prova em contrário; julgamento pelos pares; democracia representativa; e liberdade de imprensa. Para que os erros capitais cometidos há 100 anos possam ser evitados, eles precisam ser conhecidos. Esse é o objetivo da reportagem que começa na página 53. 1#3 ENTREVISTA – MARCO ANTONIO ZAGO – É PRECISO ARRISCAR MUITO MAIS O reitor da Universidade de São Paulo diz que o sistema atual favorece a acomodação dos pesquisadores estáveis na carreira, que nada criam e se bastam repetindo experimentos. LUCAS SOUZA E MARIANA BARROS O médico Marco Antonio Zago assumiu em janeiro a reitoria de uma instituição que já teve dias melhores. A Universidade de São Paulo (USP) perdeu posições importantes nos rankings internacionais, vive uma dramática crise financeira e sai de uma greve para entrar em outra. Zago, no entanto, vê soluções. Na escala de preocupações desse paulista de Birigui, o desconhecimento da língua inglesa pelos alunos ocupa hoje o primeiro lugar ("Inglês é a ferramenta de que eles precisarão para trabalhar globalmente"). A falta de ousadia dos pesquisadores e a predominância da cultura sindicalista na vida universitária são outros entraves que tiram o sono do reitor. Zago falou a VEJA em seu gabinete na Cidade Universitária. A USP perdeu onze posições no mais recente ranking de reputação universitária da revista britânica Times Higher Education e na lista das melhores caiu da 158ª posição para a faixa que vai da 226ª à 250ª. O que explica essa queda? Nada. As oscilações são normais e não representam mudança significativa de qualidade. Além do mais, as classificações são obviamente relativas e, se alguns dão saltos de qualidade, isso pode determinar a queda de outros que não necessariamente pioraram. Por outro lado, os índices anuais acusam oscilações cuja natureza pode ser apenas metodológica. Mas a USP caiu também na listagem deste ano da britânica QS Rankings. Foi ultrapassada pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Chile como a melhor da América Latina. Os rankings comparam universidades de dimensões, missões e focos diferentes. Nós estamos em segundo agora, mas a USP tem 92.000 estudantes. A PUC do Chile tem 22.000 alunos e um orçamento expressivo para o seu tamanho. Para mim, a queda nessa lista latino-americana não significa nada. A USP continua sendo a universidade mais relevante da América Latina. Mas claro que há problemas. Sobretudo porque não temos ensino secundário de qualidade no Brasil. O aluno que traz da escola dificuldades de escrever bem, compreender textos e fazer cálculos básicos não poderá ter um bom desempenho no ensino superior. Outra questão deriva do fato de as universidades brasileiras enfrentarem enormes dificuldades de gestão. Seria muito melhor se houvesse um orçamento anual definido e a prerrogativa de contratar ou demitir de acordo com o desempenho. Porém, o foco na qualidade e na meritocracia é algo estranho à administração do ensino superior no Brasil. A estabilidade precoce de professores e funcionários paralisa as coisas. Isso não existe em nenhum outro lugar do mundo. O que é preciso para a USP implantar o modelo que privilegia a meritocracia? Isso depende de questões políticas e de leis federais. Mas, internamente, é preciso abandonar a dinâmica de sindicalismo na vida universitária. Não é fácil dar esse passo. Mas ele é essencial e já foi dado em outros países. O que a USP está fazendo para aperfeiçoar o sistema de avaliação de professores? Infelizmente, ainda não se definiu claramente como avaliar o desempenho dos docentes na USP. Por isso, criamos um grupo de trabalho para determinar o que deve ser entendido como excelência. Não basta verificar se o pesquisador está publicando trabalhos ou não. Há outras formas de análise, como a produção de patentes, de material crítico e a realização de debates. A USP leva em conta o mérito ao contratar professores? Em lugares como Harvard ou o Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT, os diretores das universidades contratam pesquisadores pagando o salário que consideram que eles valem. Aqui, isso não é possível. Não temos diferenciação salarial. Não oferecemos premiações. Portanto, o único mecanismo de controle — e que não tem sido usado com muita eficiência — é a promoção. Mas são concursos em que o profissional concorre com ele mesmo, caso da livre-docência, ou com os demais, caso das vagas de professor titular. Há vantagens salariais nos dois casos. Um programa instituído em 2011 criou a progressão horizontal, sistema em que o profissional passa de doutor 1 para doutor 2 e vai evoluindo. As mudanças não pressupõem aprovação de uma banca, e os aumentos salariais que proporciona são menos significativos. É cedo ainda para saber se isso surtiu o efeito desejado. Criamos também um grupo para propor mudanças no regime de dedicação exclusiva, revendo critérios de promoção e progressão na carreira. O sistema atual compromete a inovação? Os pesquisadores precisam se arriscar mais, sair da zona de conforto que os leva a projetos de sucesso garantido de antemão. Ora, isso permite que a vida deles transcorra sem surpresas muito positivas ou negativas, o tempo passa, eles criam vínculos estáveis e passam a dispor de uma estrutura de pesquisa. Para quê? Para continuarem repetindo experimentos consagrados. Tudo bem que isso, de certa forma, contribui para o progresso, mas não é essa abordagem que produz grandes e decisivas descobertas. Sem salto no escuro não surgem avanços revolucionários. Os que se arriscam mais são sempre os mais jovens. Depois eles se casam, têm filhos, ficam mais prudentes, e o sistema aceita. Atualmente, no Brasil, tanto as universidades quanto as agências de pesquisa premiam a prudência e inibem a inovação. Recentemente, 110 alunos do programa Ciência sem Fronteiras retornaram ao Brasil por não terem fluência em inglês. Como essa deficiência afeta a produção acadêmica? Esse problema no Ciência sem Fronteiras serviu de alerta para todos. Ele é resultante também da má qualidade do ensino secundário. De modo geral, um estudante da PUC do Chile teve acesso ao ensino médio de maior qualidade e, diferentemente do brasileiro, já chega à faculdade competente em inglês. Mas não podemos nos esquivar do problema. Quando o graduando receber o diploma, ele trabalhará em uma sociedade global em que o inglês é necessário. Posso dizer que a prioridade número 1 da USP hoje é garantir o conhecimento da língua inglesa para os seus alunos. Já neste ano, a USP oferecerá aulas de inglês aos estudantes da graduação em parceria com o British Council. A USP atualmente compromete 105% do que capta com a folha de pagamento e está próxima da insolvência. O senhor fazia parte do Conselho Universitário que aprovou as contas da gestão anterior. Como se chegou a essa situação? O Conselho Universitário não tinha consciência dessa situação financeira. Durante todo o segundo semestre do ano passado não houve reuniões do Conselho Universitário. Nem o próprio orçamento foi discutido e aprovado. Tivemos de aprová-lo neste ano. Esses fatos não foram discutidos, ninguém tinha informações reais. Precisamos investigar onde tais decisões foram tomadas e onde as informações pararam de circular. Para isso, resolvemos contratar uma auditoria externa para buscar respostas a essas perguntas. Essa história precisa ser contada de maneira formal. Mas não é verdade que a universidade se encontra em estado de insolvência. Há uma dificuldade financeira conjuntural que será resolvida. Como reduzir as despesas? Temos de lembrar que nas universidades públicas é possível contratar, mas não demitir. Então, a primeira medida foi conter a sangria. Suspendemos obras em andamento e revogamos um pedido feito pela gestão anterior de contratação de mais 535 docentes. Não estou falando de corrupção, mas de tomada de decisões. Temos de rever como chegamos a esse ponto e evitar novos equívocos. Por que no Brasil não se adota o princípio óbvio e justo de cobrar mensalidade nas universidades públicas daqueles que podem pagar? A cobrança de mensalidade não é, a meu ver, uma alternativa para o financiamento da universidade pública no atual momento. No caso da USP em particular, sou contra a cobrança se o objetivo visado for obter uma nova e significativa fonte de recursos. Há inúmeros exemplos de iniciativas na área pública que mostram que, quando se introduz uma fonte de financiamento, ela logo deixa de ser adicional para se transformar em substituta. Muitas pessoas, no entanto, defendem o ensino pago como forma de justiça social e argumentam que isso poderia aumentar a inclusão, pois quem pode pagar ajuda a subsidiar quem não tem condições para isso. Se lembrarmos que a USP é financiada com recursos públicos arrecadados de pobres e ricos, o argumento da justiça social ganha força. Pessoalmente, temo que um ensino pago na USP possa representar não um avanço, mas um entrave à inclusão. Mesmo se associado à oferta de bolsas de estudo a quem não pode pagar? Sim. Em São Paulo, 460.000 estudantes concluem o ensino secundário por ano. Destes, 82% vêm de escolas públicas. Mas, quando se examina o corte socioeconômico entre os aprovados para a USP, a relação se inverte. A inversão começa já na inscrição para o vestibular. Apenas 37% dos vestibulandos da USP são egressos da rede pública. A maioria dos alunos das escolas públicas já se exclui naturalmente e nem sequer se anima a prestar o exame vestibular para a USP. Esse quadro permanece apesar dos nossos esforços de propaganda e do programa de convites a alunos de escolas públicas para visitar a universidade. Muitos perguntam quanto teriam de pagar para estudar na USP. Se cobrarmos mensalidade, como explicaremos ao aluno que vem de uma escola da periferia que, caso ele seja aprovado, ainda terá de fazer outro concurso para tentar obter uma bolsa? Ele dirá: "Bom, nesta aqui não dá mesmo". O que o senhor pensa da atual política de cotas? Estou convencido de que há outros meios que ainda não foram plenamente explorados — como o que a USP está adotando, na forma de bônus. Desde o ano passado, o estudante que vem de escola pública ganha um acréscimo de pontos na nota do vestibular e, aditivamente, sendo preto, pardo ou indígena, tem outro acréscimo. Essa bonificação pode representar 25% da nota, o que é bastante em uma disputa acirrada como a que temos. A meta é chegar a 2018 com metade dos alunos egressa da rede pública. Por enquanto, não temos queixas de que os alunos favorecidos pelo bónus social ou racial estejam tendo maior dificuldade para acompanhar os cursos ou sofrendo qualquer forma de segregação. O senhor acha razoável que uma em cada duas vagas nas universidades federais seja preenchida por critérios indiferentes ao mérito, como determinado pela atual Lei de Cotas? A questão central é a seguinte: o que seria um critério meritocrático para a seleção de alunos para a universidade? Estamos acostumados a responder que é a avaliação do seu desempenho no vestibular. Só que o vestibular não revela os melhores talentos, apenas os mais preparados para ele. Para um aluno da rede pública, a chance de bom desempenho é reduzida. Isso não denota falta de talento, mas de oportunidade. Por isso, sou favorável a examinar a seleção para a universidade com base em mais de um critério, de forma que outros talentos, além do treino para o vestibular, possam ser avaliados de modo mais justo e eficaz. O que falta para alguém da USP ganhar um Prêmio Nobel? Não tenho isso como meta. Temos é de dar melhor condição de trabalho aos pesquisadores e reduzir as tarefas administrativas e burocráticas. As condições para fazer pesquisa competitiva estão no estabelecimento de um ambiente favorável, com parcerias como as que temos hoje. Não dá para criar pesquisa de qualidade isoladamente. 1#4 MAÍLSON DA NÓBREGA – O DECRETO DE DILMA: UM TESTE PARA AS INSTITUIÇÕES Pelo decreto nº 8243, a presidente Dilma instituiu a "Política Nacional de Participação Social — PNPS" e o "Sistema Nacional de Participação Social — SNPS". Ela invocou, para tanto, o artigo 84, inciso VI, alínea a), da Constituição, que lhe permite emitir decretos sobre "organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos". De saída, essa exigência não foi cumprida. Há óbvio aumento de despesa. Surgirá uma complexa estrutura de conselhos, comissões, conferências, ouvidorias, mesas, fóruns, e por aí afora. A Secretaria-Geral da Presidência da República coordenará uma verdadeira administração paralela. Poderá "realizar estudos técnicos e promover avaliações e sistematizações das instâncias e dos mecanismos de participação social definidos neste decreto". Tudo isso gera despesa. O ato configura, assim, abuso de poder. É claramente inconstitucional. O decreto constitui um grave risco para a nossa jovem democracia. VEJA o esquadrinhou em reportagem na edição 2377, evidenciando a semelhança com os sovietes dos quais nasceu o regime comunista da União Soviética. Editoriais e articulistas apontaram os seus defeitos. Demétrio Magnoli o equiparou ao corporativismo da ditadura Vargas. Oliveiros Ferreira lembrou "o caminho da servidão", título de obra clássica de Friedrich Hayek (1889-1992). Hayek mostrou que coletivismos como o nazismo e o comunismo conduzem à tirania e à supressão das liberdades. O decreto esvaziaria a função básica do Congresso, que é a representação da sociedade. A Justiça do Trabalho poderia ser substituída por uma mesa de diálogo, à qual caberia "mediar e solucionar conflitos sociais". Um conflito selvagem como a recente greve dos metroviários de São Paulo poderia ser mediado por militantes de movimentos sociais escolhidos pelo governo, e não por juízes. O governo alega que os conselhos remontam aos anos 1930. É verdade, mas sua criação tem se guiado por uma lógica distinta. Eles servem para obter a colaboração de especialistas e melhorar a qualidade do processo decisório. Deles se exigem habitualmente "ilibada reputação e notório conhecimento" do assunto. Por se tratar de atribuição do Congresso, são criados por lei, como no caso do Conselho Monetário Nacional (CMN). Pelo decreto, representantes de conselhos populares poderiam integrar o CMN ou órgãos deliberativos da área diplomática, o que seria um despautério. Faltar-lhes-iam conhecimento técnico e experiência. Abusos de poder são inibidos nas democracias por mecanismos de pesos e contrapesos, cuja origem é a teoria da separação de poderes do barão de Montesquieu (1689-1755), aplicada pioneiramente na Constituição americana de 1787. Cada poder monitora a ação dos demais e possui formas de contestação de seus atos. No Brasil, o Legislativo pode decidir pela revogação de decretos do Executivo. O STF pode ser instado a se pronunciar sobre a constitucionalidade de medidas de outros poderes. Esses mecanismos se fortaleceram com a ampliação do direito de voto e com instituições que permitem detectar erros e corrigi-los. Estas são uma espécie de "alarme de incêndio" que aciona movimentos em defesa da sociedade e da reversão de medidas equivocadas ou simplesmente abusivas. Entre tais instituições se incluem a imprensa e as crenças da sociedade, que se manifestam em opiniões de especialistas e no debate das ideias. O decreto é um teste para as nossas instituições. Elas já começaram a operar. O Congresso examina projeto de resolução para derrogar a medida. A OAB e partidos políticos examinam submeter o assunto ao STF. A imprensa abriu espaço para a divulgação da medida e para sua contestação por editorialistas e analistas. São raros os que apoiam a medida. O decreto pode morrer em qualquer dessas instâncias decisórias ou mediante um sensato recuo da presidente Dilma. Curiosamente, ela terá contribuído para que verifiquemos a solidez de nossas instituições. Se a medida sobreviver, a democracia estará ameaçada. O espaço ficará livre para novos e crescentes abusos, que nos levariam para o caminho bolivariano. MAÍLSON DA NOBREÇA é economista 1#5 CLAUDIO DE MOURA CASTRO – EDUCAÇÃO: RECEITA PARA NÃO RECUAR Em um ensaio recente, mostrei que as fórmulas para melhorar a escola são conhecidas e convergentes. Mas eis que retruca Maria Helena G. Castro: "Como fazer para não desmoronar tudo na gestão seguinte?". De fato, esse tem sido um dos grandes desapontamentos, pois, se há casos de continuidade, também os há de marcha a ré. Minas teve uma notável continuidade na política que contagiou o ensino. Era o décimo melhor estado no início dos anos 90. Ao fim de duas gestões, tornara- se o primeiro. Tropeçou na seguinte. Mas, daí para a frente, recuperou a continuidade e o avanço. O Ceará lidera o Nordeste, fruto de uma incomum continuidade nas equipes e nas políticas adoçadas. Já em São Paulo, a política sobe e desce, e o mesmo ocorreu na sua educação. O peso da tradição permitiu que recuasse pouco, mesmo nos piores períodos, mas a dinheirama paulista não levou à liderança inconteste que poderíamos esperar. Saindo do nada, as escolas de Tocantins tiveram um avanço espetacular — em certos níveis, chegaram a ultrapassar o Rio de Janeiro. Mas, nos meandros da política, tropeçou a continuidade. No Rio de Janeiro, deu-se o oposto. Governos ineptos e sucessivos minaram sua educação. Mas, em anos recentes, mostra o seu potencial. Terá continuidade a nova trajetória? Pelas suas raízes culturais, o Rio Grande do Sul sobressaiu por muito tempo. Mas, nas últimas gestões, perdeu fôlego. São apenas exemplos. Há também os cinco mil e tantos municípios. O que nos ensina a observação desse sobe e desce? 1 Os ganhos não são irreversíveis. Um sopro, de qualquer direção, faz desmoronar a obra. 2 Contudo, quando dá para trás, o recuo tende a não ser total, alguma coisa sobra. 3 Há uma alta correlação entre a qualidade dos governantes e a robustez da educação. Sem dúvida, a descontinuidade é fatal para o ensino, quando um faz e políticos e sindicatos desfazem. Sofre a educação quando predominam sobre o interesse coletivo as nomeações de conveniência. Quando, por razões políticas, a fórmula do anterior precisa ser considerada ruim, desmancha-se o que estava sendo construído. Aliás, não basta ser do mesmo partido, pois os compromissos de campanha do novo incumbente podem sacrificar a continuidade e a motivação das equipes. Por que tamanha vulnerabilidade? A explicação é simples: uma educação de qualidade não é uma prioridade amplamente compartilhada pela sociedade brasileira. Os grandes avanços resultam do voluntarismo, da liderança e da obstinação de alguns governadores, prefeitos ou secretários. Na loteria política, a sorte leva para as cadeiras certas algumas pessoas iluminadas. Nesse clima, acontecem os acertos infrequentes. Mas, quando se vão, a obra é frágil e vulnerável. Parece haver uma atitude morna, um apreço frágil por uma meta tão árdua. E ocorrem os acidentes de percurso: "Pensei que fulano era bom...". Pensou, mas não verificou. Como essas, há muitas outras ameaças, de origens variadas. Não há uma causa única para o retrocesso. A grande constante é a fragilidade das defesas de uma educação de qualidade. Tem conserto essa fragilidade? Sejamos otimistas! Afinal, os avanços das décadas recentes foram impressionantes, mesmo diante de países bem-sucedidos nesses assuntos. Consideremos, no Brasil não faltam mais água nem comida. O governo tremelicou quando uma seca reduziu a oferta de eletricidade. Igualmente, as escolas têm vagas. Mas e a qualidade? Tudo depende das prioridades do povo. Nas sociedades em que a educação é para valer, não se aceitam versões pálidas e os governantes são castigados quando cai a qualidade — isso aconteceu na Alemanha diante de resultados no Pisa considerados vexaminosos. Mas permanecerá a vulnerabilidade nas sociedades em que um fracasso das escolas não atemoriza as "autoridades". Por isso, uma educação à prova de retrocessos requer uma sociedade que não os aceite. Infelizmente, como demonstrado por pesquisa da VEJA, 70% dos pais estão satisfeitos com a escola dos filhos. Portanto, não brigam por uma qualidade que acreditam já existir. Blindar a excelência da educação requer convencer esses pais de que nosso ensino é péssimo e está bloqueando o progresso. Basta isso. CLÁUDIO DE MOURA CASTRO é economista 1#6 RODRIGO CONSTANTINO – RETROCESSO “Como se demonstrou reiteradamente ao longo do tempo, os governos dos países emergentes tendem a considerar os surtos favoráveis como tendências duradouras, o que, por seu turno, atiça uma farra de gastos e de empréstimos públicos, que termina em lágrimas." O alerta consta no livro Oito Séculos de Delírios Financeiros, de Kenneth Rogoff e Carmen Reinhart, e cai como uma luva para nós, brasileiros. Com o acelerado crescimento chinês fazendo disparar a demanda por recursos naturais que, por sorte, temos em abundância, o Brasil ganhou na loteria. Acrescente-se a política monetária expansionista dos países desenvolvidos, que inundou o mundo com dólares, euros e ienes, e temos um quadro perfeito para a gastança dos governos de países emergentes. Foi isso que permitiu o crescimento da tal "nova classe média" brasileira, turbinado pelos estímulos estatais que, agora, se mostram insustentáveis. O endividamento das famílias e do próprio governo aumentou muito, assim como os gastos públicos. Havia a crença de que o verão duraria para sempre, e muitos, principalmente o governo, gastaram como se não houvesse amanhã. O problema dos gastos públicos, vale notar, é estrutural, pois boa parte de seu avanço tem ligação direta com o modelo de sociedade sancionado na Constituição de 1988. O Brasil pobre optou por um luxuoso Estado de bem-estar social bastante benevolente, cujas benesses pesam demasiadamente sobre os ombros dos pagadores de impostos. Só para se ter uma ideia, os gastos com servidores públicos saíram de 8,8% do PIB em 2000 para 13,7% em 2012. O INSS é um dos maiores vilões, indo de 3,4% do PIB em 1991 para 7,4% em 2013. Por se tratar de uma questão estrutural, a reforma do Estado é uma prioridade em nosso país. Aos trancos e barrancos, muito aquém do desejável, era o que estava em curso desde Collor e FHC. A abertura comercial forçou um choque de produtividade das nossas empresas. As privatizações foram parte importante nesse processo, estancando a sangria das estatais ineficientes e atraindo centenas de bilhões em investimentos em infraestrutura. O Plano Real pôs um fim no abuso do "imposto inflacionário", uma forma mascarada de financiar essa gastança, que punia especialmente os mais pobres. A autonomia operacional do Banco Central deu a credibilidade necessária para a gradual redução da taxa de juros. Os preços da economia começaram a flutuar de forma mais livre, inclusive o câmbio, fundamental para levar aos agentes econômicos informações relevantes para a tomada de decisões. Ainda restava muita coisa a ser feita, pois o escopo do Estado não parou de crescer, e as reformas estruturais, principalmente a previdenciária e a tributária, não saíram do papel. Mas houve avanços inegáveis, que o próprio ex-presidente Lula soube preservar no primeiro mandato. Até que o bilhete premiado da loteria criasse uma tentação irresistível para governantes populistas... Em 2009, tudo começou a ir por água abaixo. Com a crise mundial, o governo partiu para estímulos ainda mais agressivos, de olho apenas nas eleições. Com Dilma eleita, em vez de o governo pisar no freio, ele dobrou a aposta. Os bancos públicos agiram de forma totalmente irresponsável, os gastos públicos aumentaram ainda mais e o governo adotou a "nova matriz macroeconômica", nada mais que o velho e fracassado desenvolvimentismo. Houve um recrudescimento do protecionismo comercial, o Mercosul foi ideologizado, vários preços passaram a ser controlados pelo governo, o intervencionismo estatal na economia gerou enorme ineficiência e insegurança nos investidores, o Banco Central tornou-se mais negligente com a inflação, as estatais voltaram a agir somente com base em critérios políticos. Some-se a isso o aparelhamento das instituições de Estado, e não é difícil compreender o grande mau humor generalizado. Com Dilma, o Brasil experimentou um espantoso retrocesso, que reverteu o lento mas gradual processo de avanço institucional. Para piorar a situação, o governo não dá sinal algum de compreensão do problema. Ao contrário: a própria presidente admitiu que não sabe o motivo da crise, o ex-presidente Lula demandou do governo ainda mais estímulos ao crédito, e o PDT, aliado do PT, resolveu pedir uma politização ainda maior do Banco Central. Fica a nítida impressão de que o governo do PT quer dobrar a aposta uma vez mais, insistir em seus vários equívocos. Se for o caso, e o eleitor assim escolher, então não resta dúvida de que tudo vai acabar mesmo em um vale de lágrimas. 1#7 LEITOR A VAIA EM DILMA Perfeita a capa da edição 2378 ("O hino, as vaias e Neymar", 18 de junho). Muitos criticam a postura dos brasileiros que vaiaram a presidente Dilma na abertura da Copa. Se somos um povo sem educação por causa das vaias a ela, afirmo que somos, sim, sem educação, sem saúde... e sem paciência! VANESSA C. FERREIRA BOSSETTO Santo André, SP As vaias sintetizam a indignação da população diante das inúmeras alianças, opções, decisões e ações equivocadas do governo federal. Elas têm posto em xeque a credibilidade das instituições, a saúde da economia, o desenvolvimento do Brasil e, principalmente, a qualidade de vida e o orgulho dos brasileiros. Trata-se de sinal claro do fim de um ciclo, com enormes chances de mudança no comando máximo do Brasil nas próximas eleições. WILIAM TABCHOURY Piracicaba, SP Venho percebendo uma divisão maniqueísta da opinião pública que tira o foco daquilo que precisa ser analisado e criticado. Principalmente nas redes sociais, mas também em emissoras de rádio e nos jornais, percebo a corrente dos favoráveis à vaia e a dos contrários a ela. A dos conformados e a dos inconformados com a realização da Copa no Brasil. A dos elogiosos e a dos ácidos em relação à Arena Corinthians. É o bem ou o mal, o certo ou o errado, sem nuances. Enquanto o debate político for baseado em acusações de corrupção e a opinião pública se dividir entre esquerda e direita, justos e injustos, certos e errados, perderemos todos a grande oportunidade de aproveitar favoravelmente a tensão social e promover consistentes mudanças estruturais que nos levem adiante. Xingar a presidente é inconsistente e vazio. Mas eu xinguei e lavei a alma. FERNANDO THEMUDO LESSA DE MORAES São Paulo, SP Os xingamentos dirigidos à presidente da República foram desrespeitosos. Mostram, todavia, o tamanho da rejeição e a indignação contra o desgoverno a que o PT submeteu o Brasil. PAULO R. CHINCHILHA Joinville, SC Eu não senti vergonha, mas tristeza com os insultos à presidente Dilma. Tristeza de testemunhar o embrutecimento da população. A morte sistemática dos valores éticos e morais. Mas tudo isso é consequência do desprezo com que a população vem sendo tratada nos últimos anos. SIMONE KUROTUSCHE São Paulo, SP O torcedor mostrou o que é ser democrático. Vaiou a presidente Dilma e a Fifa por achar que os gastos para a realização da Copa do Mundo com o dinheiro público foram absurdos. RODRIGO BULLA Itapema, SC Os apupos a Dilma explicitam que o povo maduro e política estagnada não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. RICARDO C. SIQUEIRA Niterói, RJ SELEÇÃO BRASILEIRA A excelente reportagem "Um divórcio amigável" (18 de junho) lavou a minha alma por expressar em palavras os meus mais profundos sentimentos e, creio, de boa parte do povo brasileiro. Não assisto à Copa de 2014 com o frisson e o entusiasmo que sempre senti em tantas outras que acompanhei ao longo da vida. Já me percebi estranha em Brasil versus Croácia. Morna, triste, envergonhada, enojada e, por outro lado, com um sentimento de culpa enorme em relação à nossa seleção canarinho, por não torcer e vibrar como deveria. Assisti atenta, tensa, mas sem comemorações. Se a nossa seleção vencer esta Copa, o que é provável e muito desejado por nós, será pelo mérito dos jogadores, do técnico e da equipe. Então torço calada para que conquistem o hexacampeonato, mas desta vez só o façam por si próprios, por sua família, sua carreira e por nós, o povo. Não o façam pelo Brasil, e não porque o país não mereça, mas porque já chegou a esta Copa totalmente desmoralizado e derrotado. Se o hexa acontecer, digamos apenas: "A seleção ganhou!" E o Brasil? Nosso país só perdeu, e muito. Parabéns, Sérgio Rodrigues. Bateu um bolão! ANGELA CRISTINA RADECKI Santana de Parnaíba, SP Um dos motivos principais pelos quais eu e muitas pessoas não torcemos pelo Brasil na Copa não foi citado na excelente reportagem "Um divórcio amigável": a CBF, entidade de tradição corrupta, com dirigentes com total falta de ética, no mínimo. No dia em que a seleção ostentar a bandeira brasileira como símbolo, talvez voltemos a torcer por ela. SÉRGIO VIEGAS São Bernardo do Campo, SP DECRETO BOLIVARIANO DE DILMA Até Henrique Alves e Renan Calheiros, presidentes, respectivamente, da Câmara e do Senado, trataram de cobrar da presidente Dilma a revogação de seu decreto chavista, que cria a ditadura dos chamados "movimentos sociais" na administração pública brasileira ("Reação institucional", 18 de junho). Mas a OAB, que anda tão preocupada com o fato de o ministro Joaquim Barbosa ter expulsado do plenário do STF um advogado que o invadiu aos berros, tresloucado e com suspeita de embriaguez, tentando interferir na pauta do tribunal, não disse nada. Não seria o caso de sugerirmos a mudança da sigla da instituição para OABolivariana? DURVAL MONTEIRO São Paulo, SP O vice-presidente da República, Michel Temer, é também professor e autor de livros de direito constitucional que são referência no estudo da matéria. Em seu livro Elementos de Direito Constitucional (Malheiro Editores, 22ª edição, página 123), ao tratar da independência entre os poderes da República na Constituição Federal, afirma que "nenhuma norma infraconstitucional pode subtrair competências que foram entregues pelo constituinte". O silêncio de Temer diante do ditatorial decreto nº 8243/2014, assinado pela presidente Dilma Rousseff, que permite ao Poder Executivo subtrair competências do Poder Legislativo, quase faz crer que o vice-presidente e o professor e escritor não são a mesma pessoa. Eu, como estudioso de suas obras, estou decepcionado com sua incoerente e "inconstitucional" mudez. TÚLIO MARCO SOARES CARVALHO Belo Horizonte, MG CARTA AO LEITOR Estarrecedora a proposta através de decreto que a presidente Dilma quis impingir ao povo brasileiro, cuja maioria está ocupada em festejar a Copa do Mundo. Apesar de não partilhar suas atuações no Congresso, parabenizo o deputado Henrique Alves e o senador Renan Calheiros por se insurgirem contra tal descalabro ("O Congresso resiste", Carta ao Leitor, 18 de junho). ALFREDO GONZALEZ NETO Santos, SP Da leitura do decreto tem-se que seu mentor, e por isso seu apologista, Gilberto Carvalho, preparou para Dilma um documento em que ele próprio é transformado no mandão conselheiro em chefe. Resta ver se a resistência do Congresso será eficiente. PEDRO LUÍS DE CAMPOS VERGUEIRO São Paulo, SP J.R. GUZZO O belo artigo "Só um intervalo" (18 de junho) sintetizou o pensamento de quem, como eu, já parou para pensar no que está acontecendo e nas mudanças a que estamos sujeitos. Aquele trem que passa e para dentro do qual a multidão nos empurra, sem ao menos nos deixar parar para pensar aonde vamos. Nada se compara a um texto bem escrito, a um bom livro, que aguça a mente e a exercita, e no final nos deleita e enleva, fazendo que, a cada dia que passa e a cada livro que lemos, nos sintamos melhores e mais bem preparados para a vida. MARCO ANTÔNIO GILABERT Goiânia (GO), via tablet É difícil não concordar com argumentos tão claros e reais. Eu me pergunto: o que, a esta altura, é o projeto petista para o Brasil? Se há algum, ele se encerra com a Copa? A verdadeira herança maldita será a entregue ao próximo presidente. LUIZ ALBERTO PEPINO São Gabriel da Cachoeira (AM), via smartphone LYA LUFT A leitura do artigo "Respeito e autoridade" (18 de junho) levou-me a recordar uma encíclica de Paulo VI — Paternidade Responsável — divulgada nos anos 70. Dessa encíclica extraio: "A família é a primeira escola de virtudes sociais. Se ela falhar, ninguém a substituirá". Os fatos estão aí a comprovar o texto e a encíclica. SIMÃO HORACIO BOTTESI Mogi Mirim, SP O texto de Lya Luft nos mergulha na reflexão sobre o tipo de país que esperamos construir, a despeito de nossas legítimas contrariedades e frustrações. ALEXANDRE ALDRICHI RAGONHA Limeira, SP PARA SE CORRESPONDER COM A REDAÇÃO DE VEJA: as cartas para VEJA devem trazer a assinatura, o endereço, o número da cédula de identidade e o telefone do autor. Enviar para: Diretor de Redação. VEJA - Caixa Postal 11079 - CEP 05422-970 - São Paulo - SP; Fax: (11) 3037-5638; e-mail: veja@abril.com.br. Por motivos de espaço ou clareza, as cartas poderão ser publicadas resumidamente. Só poderão ser publicadas na edição imediatamente seguinte as cartas que chegarem à redação até a quarta-feira de cada semana. 1#8 BLOGOSFERA EDITADO POR KÁTIA PERIN kperin@abril.com.br RADAR LAURO JARDIM LIVROS A editora Thomas Nelson comprou os direitos de publicação do novo livro de Max Lucado, Miracle at the Higher Grounds Cafe. O autor, o maior best-seller evangélico do mundo, já vendeu mais de 100 milhões de exemplares - 2,5 milhões no Brasil. www.veja.com/radar NOVA TEMPORADA FERNANDA FURQUIM Série De TV A GNT estreia Animal, em 6 de agosto. A história acompanha a vida de João Paulo Gil (Edson Celulari), biólogo famoso, vítima de um raro distúrbio psicológico chamado teriantropia, que faz com que seus portadores pensem ser animais. www.veja.com/temporada SOBRE PALAVRAS SÉRGIO RODRIGUES DICIONÁRIOS O senso comum tende a acreditar que as palavras nascem magicamente nos dicionários e, depois, pulam para a língua que as pessoas usam na rua. O processo, claro, é o inverso. www.veja.com/sobrepalavras VEJA MERCADOS GERALDO SAMOR EMPRESAS Warren Buffett acaba de sepultar a ideia de que ele e a 3G Capital poderiam fazer uma oferta conjunta pela Coca-Cola Company e fechar o capital da empresa. www.veja.com/vejamercados SOBRE IMAGENS LOOMISDEAN O fotógrafo Loomis Dean trabalhou por 25 anos na revista Life, até o encerramento da publicação, em 1972. O blog Sobre Imagens mostra alguns de seus famosos retratos, como o do escritor americano Ernest Hemingway e o do toureiro espanhol Luis Miguel Dominguín. E, ainda, as imagens realizadas para a reportagem, publicada em 20 de junho de 1955, sobre os cinquenta anos de inauguração de Las Vegas. www.veja.com/sobreimagens CIDADES SEM FRONTEIRAS TEMPLOS DA INOVAÇÃO Conforme os Estados Unidos deixam para trás a recessão enfrentada a partir de 2008, reflexos de um novo modelo de ocupação de empresas começam a surgir em sua geografia. São os chamados distritos de inovação, áreas onde empresas e instituições se unem a startups (companhias novas que buscam colocar no mercado produtos e serviços diferentes) e incubadoras. De acordo com um estudo do Instituto Brookings, centro de pesquisa sobre políticas públicas em Washington, esses distritos são compactos, acessíveis por ônibus, bicicleta ou mesmo a pé, ou seja, não dependem exclusivamente do carro, e misturam residências, escritórios e comércio. Eles exemplificam uma tendência que tem transformado a economia, a criação de espaços urbanos e as relações sociais. www.veja.com/cidadessemfronteiras REINALDO AZEVEDO O MELHOR DO MUNDO Sou fã de Cristiano Ronaldo, e pouco me interessa se ele passa gel no cabelo, tira a sobrancelha, depila as pernas, pega a mulherada, é metrossexual... Não me ocupo dessa bobajada. Não o quero para genro. Gosto de seu futebol, que tem um quê, assim, de épico, diferente daquela prosa curta de Messi — brilhante, sim, no gênero, especialmente quando a câmera foca a coisa bem de pertinho. Cristiano Ronaldo está para Camões como Messi para Cortázar, entendem? "Ah, mas Cristiano não sabe ser humilde..." E daí? O que incomoda no rapaz? O fato de se saber talentoso, de viver como quem sabe disso e de ter se transformado numa celebridade? www.veja.com/reinaldoazevedo • Esta página é editada a partir dos textos publicados por blogueiros e colunistas de VEJA.com ____________________________________ 2# PANORAMA 25.6.14 2#1 IMAGEM DA SEMANA - VAI UMA MÃOZINHA AÍ? 2#2 DATAS 2#3 HOLOFOTE 2#4 SOBEDESCE 2#5 CONVERSA COM MARKO PORTO – ABAIXO OS FIOS DESENCAPADOS 2#6 NÚMEROS 2#7 RADAR 2#8 VEJA ESSA 2#1 IMAGEM DA SEMANA - VAI UMA MÃOZINHA AÍ? Problemas de Hillary: parecer mulher comum sendo milionária e trair Obama sem dar a impressão de que imita o marido. Reposicionar a imagem, afinar a narrativa, ocupar todos os espaços disponíveis. Seja lá como se chame, Hillary Clinton está fazendo de tudo, com o olho cravado na Casa Branca — até um netinho a caminho e uma reestruturação facial, dizem os mais pérfidos. A eleição presidencial americana é em novembro de 2016 e, quanto mais perto fica, menor o favoritismo de Hillary. Tinha 70% das preferências em 2012, baixou para 56% em março e chegou a 52% agora. Hillary precisa se afastar do governo Obama, em processo de desmanche, sem parecer que está apunhalando pelas costas o homem que lhe confiou a chefia da política externa, até o começo do ano passado. Apunhalar com um sorriso simpático, mentir como advogado de porta de cadeia e, ainda assim, cativar o eleitorado são características que ela não herdou do marido, Bill Clinton. Em compensação, tem uma imagem de seriedade e competência — e nem um único adversário oposicionista viável até agora. Só precisa vigiar a língua. Divulgando um novo livro — pagamento de nada menos que 14 milhões de dólares —, queixou-se de que ela e o marido saíram "totalmente falidos" da Casa Branca. O casal tinha dívidas com advogados (rebarba do caso Monica Lewinsky), mas hoje é multimilionário; só em palestras como ex-presidente, ele faturou mais de 100 milhões de dólares. A maior mancha no currículo de Hillary decorre do assassinato do embaixador e mais três cidadãos americanos, no ataque de 2012 em Bengasi, pela inação do governo e pela tentativa de encobrir as circunstâncias. A captura do líder do bando terrorista líbio, Ahmed Abu Khatalla, poderia ajudar, se não se soubesse que o sujeito vivia à vontade em Bengasi, dando entrevistas. Uma delas acompanhada por frapê de morango. VILMA GRYZINSKI 2#2 DATAS • MORRERAM Moise Safra, banqueiro e empresário. Nascido em Beirute, no Líbano, emigrou com a família para o Brasil nos anos 1950. Ao lado do pai, Jacob, e dos irmãos Edmond e Joseph, participou da transformação do Safra de uma pequena financeira em um dos dez maiores bancos do país, especializado no atendimento a clientes de alta renda e empresas. Em 2006, Moise, que se naturalizou brasileiro, vendeu sua participação no Safra a Joseph. Era o 23º homem mais rico do Brasil, com um patrimônio estimado em 2,2 bilhões de dólares pela revista Forbes. Notório filantropo — ainda que muitas de suas doações não fossem divulgadas —, fazia questão de cuidar pessoalmente das ações beneficentes. Seus alvos prioritários eram hospitais, universidades e institutos na área de educação e de apoio a crianças carentes ou com doenças. No ano passado, em sociedade com a chinesa Zhang Xin, investiu 700 milhões de dólares na compra de 40% do histórico edifício General Motors, em Nova York. Ele também foi dono, até a década de 90, da Filobel, uma das maiores indústrias têxteis do país. Moise Safra sofria da doença de Parkinson. Dia 15, aos 80 anos, de infarto, em São Paulo. Tércio Pacitti, major-brigadeiro da Aeronáutica, engenheiro e pioneiro da ciência da computação no Brasil. Foi reitor e professor do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) na década de 80. Nascido em 1928, na cidade paulista de Atibaia, formou-se em engenharia aeronáutica pelo próprio ITA e pós-doutorou-se pela Universidade da Califórnia, em Berkeley. Introduziu o uso de computadores no ITA (onde também criou o curso de engenharia da computação), na Aeronáutica, na UniRio e na Universidade Federal do Rio de Janeiro, da qual foi professor. Conquistou notoriedade na informática com o livro Fortran Monitor — Princípios, best-seller de 1967 (mais de 250.000 cópias vendidas). Trouxe, dos EUA para o Brasil, pessoalmente, o primeiro computador IBM do país. A máquina ajudaria no cálculo estrutural do primeiro avião da Embraer. Pacitti estava internado desde o dia 13, quando sofreu um AVC. Dia 17, aos 85 anos, no Rio de Janeiro. Horace Silver, pianista e compositor americano de jazz, precursor do hard bop, considerado uma das mais importantes e inovadoras vertentes daquele gênero musical. Nascido em Norwalk, Connecticut, Silver, descendente de cabo-verdianos, fundou, em 1955, ao lado de Art Blakey, o grupo Jazz Messengers. Suas composições abriram caminho para mestres como Miles Davis e John Coltrane. Dia 18, aos 85 anos, em New Rochelle. Ultrra Violet, artista plástica e atriz francesa, consagrada pelo Factory, estúdio de arte pop de Andy Warhol. Atuou em filmes dele e em Perdidos na Noite (1969), de John Schlesinger. Na década de 70, Isabelle Collin Dufresne — esse era o nome da artista, nascida perto de Grenoble — entrou para a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Sua escultura IX XI foi inspirada no 11 de Setembro. Dia 14, aos 78 anos, em Nova York. • SEG|16|6|2014 DEIXOU o estado de coma induzido e foi transferido do Hospital Universitário de Grenoble para o de Lausanne o ex-piloto alemão de F1 Michael Schumacher. O heptacampeão, internado em dezembro após sofrer um acidente enquanto esquiava nos Alpes, estaria conseguindo se comunicar movendo a cabeça e os olhos. 2#3 HOLOFOTE BAHIA • A MÃO AMIGA Nos diálogos interceptados pela Polícia Federal durante a operação Lava Jato, o doleiro Alberto Youssef aparece combinando com o deputado federal Luiz Argolo (SDD-BA) a entrega de alguma coisa na sede do governo da Bahia. Documentos? Não se sabe. Dinheiro? É difícil acreditar em tamanha ousadia, embora se tratasse de algo "entre 30 e 40". Por causa de conversas assim, cheias de códigos e referências claras a cifras, Argolo foi ameaçado de expulsão do partido e pode ter o mandato cassado. Mas ele tem amigos... O governador da Bahia, Jaques Wagner (PT), resolveu ajudar o deputado em apuros. Em troca de apoio, articulou para evitar a expulsão do parlamentar e vai mobilizar todo o aparato oficial para que ele permaneça mais quatro anos no Congresso. MARANHÃO • ASSUSTANDO OS POBRES Esperança do clã Sarney nas eleições para manter o poder no Maranhão, o senador Lobão Filho (PMDB) tem dado demonstrações de que fará uma campanha para o governo do estado em absoluta sintonia com o Palácio do Planalto. A tática é assustar os pobres com boatos de que a oposição vai acabar com os programas sociais. Circula na internet um vídeo no qual Lobinho, como é conhecido o parlamentar, fala a uma plateia de beneficiários do Bolsa Família. "Quem de vocês gosta do Bolsa Família levanta a mão! Eu tô preocupado. O candidato do PSDB, Aécio Neves, declarou que ele é contra o Bolsa Família." Aécio nunca disse isso. O oposicionista, ao contrário, já anunciou que pretende transformar o Bolsa Família em política de Estado. DISTRITO FEDERAL • O "ALOPRADO" VOLTOU Famoso pelo envolvimento no escândalo dos aloprados, o petista Expedito Veloso atacou de novo — só que desta vez contra o próprio time. Em 2006, em plena disputa presidencial, ele e um grupo de militantes do PT forjaram um dossiê com falsas denúncias contra o então candidato José Serra (PSDB). A armação foi descoberta e quase custou a reeleição do presidente Lula. Depois da trapalhada, Expedito foi convidado a assumir um cargo no governo do Distrito Federal, onde ficou até o mês passado, quando pediu demissão por discordar da "falta de ética" no órgão que cuida dos transportes. Leia-se corrupção. Para não perder o costume, antes de pedir exoneração, o petista encaminhou um dossiê ao governador Agnelo Queiroz, candidato à reeleição. • O ÚLTIMO MOTIM Petistas não desistem de rifar Dilma Rousseff da corrida presidencial. Na semana passada, o ex-presidente Lula telefonou para senadores, deputados e prefeitos do partido para exigir que cancelassem atos em defesa de uma nova candidatura dele ao Planalto. Lula entrou em campo depois de ser alertado de que correligionários rumariam em grupos a seu instituto, às vésperas da convenção do PT, para constranger Dilma e convencê-lo a disputar a eleição. "Não quero que tratem desse assunto comigo", disse o ex-presidente. Pela lei atual, ele pode substituir Dilma até vinte dias antes da eleição, mas essa hipótese, por enquanto, está descartada. • O PODEROSO PROS Euripedes de Macedo Júnior era até pouco tempo atrás apenas Júnior do Sintético, vereador e dono de um campo de futebol de grama artificial na cidade de Planaltina de Goiás. Desde o ano passado, quando foi criado o Pros, Júnior do Sintético deu lugar ao Dr. Euripedes, um requisitado articulador político. Para quem não sabe, Pros é o Partido Republicano da Ordem Social, que tem hoje vinte deputados, um senador, um governador e preciosos 40 segundos de tempo de televisão. Em época de eleição, isso vale muito. Vale milhões... de convites para reuniões, de propostas, de viagens. A vida de Euripedes, presidente e fundador da legenda, mudou radicalmente. 2#4 SOBEDESCE SOBE • Vitamina D - Estudo alemão com 26.000 pessoas constatou que a falta dessa substância aumenta o risco de morte por câncer e doenças cardiovasculares. • Ibirapuera - O parque foi eleito o melhor do Brasil e o oitavo melhor do mundo pelo site de viagens TripAdvisor. • Pessimismo - A confiança do empresariado na economia é a mais baixa desde 2009, segundo levantamento da Confederação Nacional da Indústria (CNI). DESCE • Glúten – Um quarto dos americanos cortou ou reduziu o consumo da proteína. O mercado de alimentos livres de glúten deve render 15 bilhões de dólares em 2016. • Heathrow - O aeroporto de Londres perdeu o posto de o mais movimentado do mundo para o de Dubai. • Superbactérias - Um possível ponto fraco das bactérias resistentes a antibióticos foi descoberto por pesquisadores da Grã-Bretanha e da China e pode ajudar a combater a ameaça que representam. 2#5 CONVERSA COM MARKO PORTO – ABAIXO OS FIOS DESENCAPADOS Dono de 331 salões, que fazem só sobrancelhas, ele fatura 4 milhões por mês e diz que a clientela é múlti. Qual a vantagem de um salão que só faz sobrancelhas? Ganha mais. Para cortar e pintar um cabelo, levava três horas e cobrava 200 reais. No mesmo tempo, faço doze sobrancelhas e ganho até 480. Para mexer com cabelo, investe-se em xampu, tesoura, cadeira. Com sobrancelha, é basicamente pinça. Homens heterossexuais, na maioria, não fazem a sobrancelha. Como os convence a mudar de ideia? Troco a palavra fazer por cuidar, digo que ir ao trabalho com as sobrancelhas da Frida Kahlo mostra que ele não tem cuidado pessoal e cito ídolos do futebol. Cristiano Ronaldo passa uma imagem de autoconfiança. Fora jogadores e pagodeiros, qual categoria profissional tem tirado os pelos sem vergonha? Executivos. Muitas vezes a sobrancelha não está desenhada, mas isso não significa que eles não fizeram algo nela. Tenho fazendeiro machão na clientela. No quesito sobrancelhas, qual presidenciável se sai melhor? As de Dilma, bem arqueadas, já foram suavizadas. Aécio aparenta fazer uma pequena limpeza, o que abranda a expressão. Já Eduardo Campos tem pouca densidade de pelos e as pálpebras estão baixas. Aconselho uma plástica. No geral, portanto, Aécio. 2#6 NÚMEROS 7 posições a seleção espanhola despencou no ranking das favoritas para ganhar a Copa na bolsa de apostas do site britânico William Hill entre o início do primeiro e o do segundo tempo da partida contra o Chile. 3º é o atual posto da Holanda no ranking. O país subiu iguais sete colocações na bolsa desde o início do torneio. O favorito continua sendo o Brasil, seguido por Argentina e Alemanha, empatadas em segundo. 4,5 reais para cada real apostado no hexacampeonato serão pagos caso o resultado se confirme. É um dos valores mais baixos já registrados pelo site (quanto mais provável a vitória, menor o prêmio). 2#7 RADAR LAURO JARDIM ljardim@abril.com.br • ELEIÇÕES O TIME 1 Aécio Neves planeja anunciar seus ministros a conta-gotas a partir de agosto. Em alguns casos, ele o fará nos programas eleitorais do PSDB na TV, onde pretende apresentar-se ao lado de alguns deles, como Armínio Fraga (Fazenda) e Antonio Anastasia (Planejamento ou Casa Civil). O TIME 2 Aécio Neves já se acertou com José Serra. Se for eleito, dará a Serra um ministério. Entre os tucanos aposta-se que seria o Itamaraty. CHANCE (QUASE) ZERO Há um acordo entre Aécio Neves e Geraldo Alckmin sobre o PSD, de Gilberto Kassab. Por ele, Kassab só será o vice de Alckmin se o PSD largar Dilma Rousseff pela estrada e apoiar o PSDB. Objetivamente, hoje a possibilidade de o PSD marchar com os tucanos é próxima de zero. É CANDIDATO José Sarney faz mistério para o público externo, mas para os mais próximos já confirmou que será candidato à reeleição. TEM DONO Não se sabe com que objetivo, mas em recente conversa Lula garantiu a um interlocutor que a candidatura de Dilma Rousseff não pertence a ela, mas ao partido. O interlocutor questionava-o sobre o "Volta, Lula". PALAVRA DE MÉDICO No domingo 15, Roberto Kalil, médico de Dilma Rousseff, teve de ligar para Emídio de Souza, presidente do PT paulista, garantindo que a presidente estava mesmo doente e não tinha condições de comparecer à convenção que sagrou Alexandre Padilha candidato ao governo de São Paulo. Foi a maneira encontrada para tentar abafar os rumores de que Dilma estava fazendo corpo mole. • GOVERNO TREM ESTRANHO Não foi só o recém-falecido presidente da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), Francisco Colombo, que o doleiro Alberto Youssef indicou em nome do PP. São também apadrinhados pelo doleiro Pedro Gherardi, o presidente interino, e Jorge Vieira, assessor especial da presidência e superintendente da CBTU em Minas Gerais. Oficialmente, as indicações foram dos notórios Benedito de Lira e Arthur Lira, pai e filho. O primeiro é senador e o segundo é deputado pelo PP alagoano. PESSOA JURÍDICA, NÃO Josué Gomes da Silva vai anunciar em breve que não aceitará nenhuma doação de empresas para sua campanha ao Senado pelo PMDB de Minas Gerais. Admitirá dinheiro apenas de pessoas físicas. Josué decidiu antecipar-se a uma provável decisão do STF nesse sentido, embora, se aprovada, a nova lei só valerá para a eleição de 2016. A propósito, Josué já definiu também seu sucessor no comando da Coteminas, a maior empresa têxtil do Brasil. Mas resolveu que só o anunciará após as eleições - se for eleito, claro. Nos meses pesados de campanha, ou seja, entre julho e outubro, Josué se dedicará integralmente a ela. • JUDICIÁRIO CAMINHO DAS PEDRAS O beija-mão para os muitos candidatos ao lugar de Joaquim Barbosa no STF passa sobretudo por três personagens: Beto Vasconcelos, chefe de gabinete de Dilma Rousseff; José Eduardo Cardozo e o advogado Sigmaringa Seixas. • ECONOMIA FASE FINAL Apesar de pressões de autoridades suíças contra a transação, caminha bem a negociação de compra da gestora de recursos suíça BSI, da seguradora italiana Generali, pelo BTG Pactul. PULSO FROUXO Há um consenso entre grandes bancos: a demanda por crédito por parte das empresas está baixa, o que revela falta de confiança na economia. PENSANDO GRANDE Eike Batista, acredite, tem pensado em ir ao BNDES pedir uma força para um novo projeto na área de energia. Talvez alguma voz sensata à sua volta consiga dissuadi-lo dessa ideia. • COPA ÁUDIO ABAFADO O Palácio do Planalto questionou a Fifa por ter lançado nos telões do Itaquerão a comemoração de Dilma Rousseff no segundo gol da seleção contra a Croácia. A imagem produziu mais uma saraivada de vaias e xingamentos dos torcedores. Como resposta, ouviu que a Fifa, apesar dessa cena, protegeu Dilma ao abafar o som dos impropérios no áudio da transmissão exibida pelas TVs brasileiras. NÃO XINGOU Xuxa recebeu um inusitado e-mail da Secretaria de Direitos Humanos do governo na segunda-feira passada. Questionava se ela havia vaiado ou xingado Dilma Rousseff dias antes no Itaquerão, conforme publicado em algum site. O motivo da pergunta: o Planalto queria evitar constrangimentos, pois Xuxa é convidada especial de Dilma para ir ao Palácio do Planalto nos próximos dias, quando a presidente vai sancionar a Lei da Palmada. Constrangida ficou Xuxa, que não havia vaiado nem xingado Dilma. • FUTEBOL CLUBES VERSUS BARES Os clubes querem abrir guerra contra a exibição de jogos em bares via pay per view. Em tese, a Globosat teria de cobrar mais pelo sistema usado para atrair clientes aos estabelecimentos e aumentar os repasses para os times. Muitos bares, no entanto, atuam na ilegalidade e pagam pelo pacote como se fossem residências. Os clubes querem uma fiscalização maior. CARTILHA DA BOLA O Santos resolveu criar um manual de conduta para os seus atletas. As regras vão desde não poder levantar a camisa para comemorar gols até a proibição do uso de celulares e tablets em vestiários nos dias de treinos e jogos. • BASQUETE FLA IN USA O Flamengo será o primeiro time brasileiro a pisar nas quadras da NBA. Em outubro, logo após o jogo entre Miami Heat e Cleveland Cavaliers, no Rio, o time fechou um amistoso contra o Orlando Magic, nos EUA. • TELEVISÃO ANO DE COPA Embalada pela Copa, a Globo aumentou seu faturamento em 17% neste semestre em comparação com igual período do ano passado. O mercado de TV cresceu 15%. RARA UNIÃO Globo, SBT, Record e RedeTV! estão conversando para unir forças com o objetivo de cortar custos. Já há alguns meses têm negociado para que, em vez de cada uma delas ter sua própria antena de transmissão, uma única torre possa servir às quatro redes. 2#8 VEJA ESSA Editado por RINALDO GAMA “Não estou nem aí." - JOAQUIM BARBOSA, presidente do STF, ao ser indagado se o resultado do Censo Judiciário, que mostra que apenas 1,4% dos magistrados são afrodescendentes, iria abrir um debate no órgão sobre a adoção de cotas; Barbosa vai se aposentar neste mês. “Com relação ao militar homossexual dentro da caserna, não há nenhuma lei que impeça, até porque não poderia haver. Seria uma flagrante discriminação. E isso é uma bandeira que eu sempre levantei e (continuarei) levantando em favor da igualdade de direitos.” - MARIA ELIZABETH GUIMARÃES TEIXEIRA ROCHA, ao tomar posse no cargo de presidente do Superior Tribunal Militar. “É preciso dar atenção ao tipo de política necessário para formar a base de um crescimento que será sustentável." - CHRISTINE LAGARDE, diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional. “Não há possibilidade de produzir desenvolvimento sustentável, erradicar a pobreza e ter desenvolvimento econômico se não garantirmos um ambiente saudável, rico em biodiversidade e com ecossistemas que funcionem bem.” - MARCO LAMBERTINI, diretor-geral do WWF, no Valor Econômico. “Não era uma pressão real, mas a de viver com o pensamento: 'E se todos estiverem falando que eu não terei uma carreira? E se estiverem certos e rirem de mim enquanto eu apareço naquelas listas de atores que foram esquecidos?'.” - DANIEL RADCLIFFE, ator londrino, comentando, no canal inglês Sky Arts, o período em que fez o papel de Harry Potter na adaptação da série literária para o cinema. “Com a proclamação de Felipe VI, nós, os espanhóis, reafirmamos nossa aposta na estabilidade democrática." - MARIANO RAJOY, primeiro-ministro da Espanha. “Saudade é algo tão louco e ao mesmo tempo tão poderoso que transforma coisas ruins em boas.” - PITTY, cantora baiana, em O Estado de S. Paulo. “É muito difícil imaginar como alguém, especialmente um diplomata russo, possa se sentar na mesma mesa de negociações com ele depois desse ataque de raiva.” - LEONIO KAUSHNIKOV, membro do Comitê de Relações Exteriores do Parlamento russo, falando do ministro de Relações Exteriores da Ucrânia, Andriy Deshchytsia, que xingou o presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante manifestação em Kiev. “A última coisa em que estou pensando agora é em voltar. Estou pensando é na minha recuperação, em ficar boa." - DAYANA FLORENTINO, acrobata brasileira que, junto com sete colegas, caiu de uma altura de mais de 7 metros durante apresentação do Ringling Bros and Barnum&Bailey Circus, no mês passado, em Rhode Island, nos EUA; ela fez a declaração durante uma coletiva em um hospital de Boston. “É importante lembrar ao cinema que existe espectador afoito por histórias sobre gente normal, e não só por filmes de super-herói.” - PETER BOGDANOVICH, cineasta americano, que voltou a dirigir um longa após treze anos, em O Globo. “(Gabriel Garcia Márquez) cometeu uma indiscrição maiúscula ao revelar a Patrícia Llosa alguma aventura de seu marido (Mário Vargas Llosa) nos anos de Barcelona.” – XAVI AYÉN, autor do livro Aquellos Años del Boom, explicando, segundo reportagem do diário espanhol El País, o porquê do fim da amizade entre os dois prêmios Nobel de Literatura; sua obra fala da época em que a cidade catalã abrigava representantes de peso da ficção sul-americana. EPÍGRAFE DA SEMANA A pretexto do centenário do primeiro conflito mundial “Em época de paz os filhos enterram os pais, enquanto em épocas de guerra são os pais que enterram os filhos.” - HERÓDOTO, historiador grego (c. 484-430 a.C.). ______________________________________ 3# BRASIL 25.6.14 3#1 O IMPÉRIO DA LEI 3#2 EXPEDIÇÃO VEJA — PLANTAS DE PROVETA 3#1 O IMPÉRIO DA LEI Atacado por advogados e ameaçado de morte por militantes, Joaquim Barbosa deixa a relatoria do mensalão. Cabe agora ao ministro Luís Barroso reafirmar que a Justiça está nas leis e não na cabeça dos juízes. ROBSON BONIN Desde que o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento que levou para a cadeia os mensaleiros, o presidente da corte e relator do caso, ministro Joaquim Barbosa, tornou-se alvo de uma perseguição implacável. Orquestrada pelos seguidores dos condenados no maior escândalo de corrupção da história, a ação começou com insultos variados da militância petista escondida atrás de perfis apócrifos na internet. Com o tempo, as grosserias virtuais evoluíram para ataques racistas, desacatos públicos e até ameaças de morte contra o magistrado. As agressões tinham o objetivo cristalino de deslegitimar as decisões do ministro responsável pela execução das penas e pressioná-lo a conceder aos condenados o benefício de trabalhar fora da prisão. Depois de ser afrontado publicamente pelo advogado Luiz Fernando Pacheco, Joaquim Barbosa renunciou à relatoria do caso — uma decisão, segundo ele, tomada porque as partes "deixaram de se valer de argumentos jurídicos destinados a produzir efeitos nos autos e passaram a atuar politicamente na esfera pública através de manifestos e até mesmo partindo para os insultos pessoais". Uma advertência de que algo não vai bem na instituição. Há duas semanas, Luiz Fernando Pacheco interrompeu uma sessão do Supremo e, aos gritos, dirigiu uma série de impropérios ao ministro Joaquim Barbosa. Retirado do plenário, o advogado ainda disse aos seguranças que, "se tivesse uma arma, daria um tiro na cara do presidente". E qual era a razão da revolta do advogado? Seu cliente, o ex-deputado José Genoino, condenado por corrupção a quatro anos e oito meses de prisão, quer cumprir a pena em casa. Alega que sofre de problemas cardíacos e corre risco de morrer. Antes de encaminhá-lo ao presídio da Papuda, Joaquim Barbosa pediu avaliação a duas juntas médicas. Ambas atestaram que o ex-deputado não necessitava de cuidados especiais. O veredicto, portanto, não poderia ser outro. A defesa, porém, discorda dos laudos técnicos e quer que o plenário da corte reveja a decisão. Também acusa Joaquim Barbosa, que se aposenta no fim do mês, de demorar para pôr o assunto em pauta. Diante da desproporção das hostilidades, o ministro resolveu processar o advogado pelos crimes de desacato, calúnia, difamação e injúria. Foi essa a razão de Barbosa considerar-se impedido de continuar atuando no processo dos mensaleiros. A saída de Joaquim Barbosa do caso e a escolha do novo relator, Luís Roberto Barroso, animaram os mensaleiros. Tão logo foi confirmado, Barroso anunciou a disposição de acelerar a análise dos pleitos dos condenados. Além de José Genoino, que quer cumprir a pena em casa. o STF vai decidir se autoriza ou não o trabalho externo aos petistas José Dirceu e Delúbio Soares, ambos também encarcerados por terem desviado 173 milhões de reais dos cofres públicos para subornar parlamentares. A lei estabelece que os condenados ao regime semiaberto, como é o caso dos dois chefes mensaleiros, cumpram suas penas em colônias agrícolas. Como elas existem em pequeno número no país, os juízes costumam adaptar a pena admitindo que os presos trabalhem durante o dia fora da cadeia. Se a decisão de Barbosa for mudada por pressão, será um desastre. Diz o ministro Marco Aurélio Mello: "No dia em que um ministro do Supremo sucumbir a pressões, nós estaremos muito mal no Brasil". Foi meritório e histórico o papel do STF no julgamento, condenação e encarceramento da cúpula criminosa do partido no poder. O feito foi saudado universalmente como a reafirmação da maturidade institucional brasileira e da existência no país de uma Justiça independente. Por outro lado, houve desgaste com a transformação temporária da corte constitucional brasileira em tribunal penal, encarregado até de minudências a respeito do grau de conforto das celas dos condenados do mensalão. As supremas cortes são mais equipadas para decisões sobre os grandes temas de seu tempo que dizem respeito aos limites do poder do Estado sobre os cidadãos, da relação entre os poderes e da União com seus entes federados. A Suprema Corte dos Estados Unidos, um paradigma de clareza, recebe cerca de 10.000 processos por ano, mas apenas oitenta são considerados próprios para ser examinados pelos juízes. O STF brasileiro já teve mais de 60.000 processos em tramitação. Esse número caiu em virtude das mudanças que permitem julgamentos em lista de casos similares, mas espera-se dos ministros a decisão sobre quase 1000 casos por ano. É um exagero. 3#2 EXPEDIÇÃO VEJA — PLANTAS DE PROVETA O Brasil que dá certo tem muitos exemplos de como a pesquisa constante é o caminho mais seguro para o sucesso no campo. GABRIEL CASTRO E KALLEO COURA Do solo da região de Petrolina, no sertão de Pernambuco, nasce um tipo exótico de fruta: a uva com sabor de algodão-doce. Não se trata de uma anomalia. Pelo contrário. A variedade é resultado de investimentos elevados. Há três anos, as Fazendas Labrunier decidiram aplicar 4 milhões de reais em pesquisa e criar no entorno da cidade pernambucana, com a participação de cinco geneticistas estrangeiros e da Embrapa, a maior área experimental de uvas do planeta. Dos 880 hectares produtivos, 374 são usados para pesquisas com 110 novos tipos de uva. "Só conseguimos competir com o exterior porque fazemos muitos estudos. Se há um lado positivo no custo Brasil é que ele nos obriga a buscar soluções para termos a maior eficiência possível", diz Arnaldo Eijsink, presidente do Grupo JD, que controla as fazendas. Em Petrolina, a tecnologia e a irrigação adequada transformaram o terreno seco em uma área fértil de cultivo de uvas, mangas e outras frutas. A maior parte do que lá é produzido acaba exportada para a Europa e os Estados Unidos. E não é possível ganhar esses mercados sem inovação constante. Desde que as pesquisas começaram, a produtividade anual das Fazendas Labrunier saltou de 25 para 35 toneladas por hectare. No ano passado, a cidade passou a abrigar também um centro de pesquisas da multinacional Monsanto, que investiu ali até o momento mais de 20 milhões de dólares, sem nenhuma contrapartida do município ou do estado. O clima ensolarado da cidade facilita o trabalho. "Este é um dos melhores lugares do planeta para fazer pesquisa. Temos aqui a segunda mais importante unidade de pesquisas da Monsanto no mundo", diz o chileno Alejandro Inojosa Arriagada, responsável pela unidade. As pesquisas que permitem o desenvolvimento de novos tipos de fruta em laboratório são a face mais recente da evolução tecnológica do campo brasileiro. A 2300 quilômetros de Petrolina, em Três Lagoas (MS), a Expedição VEJA conheceu a Eldorado, a maior fábrica de celulose do planeta, e uma unidade da Fibria, outro gigante do setor. As indústrias se instalaram na cidade há menos de cinco anos. As florestas de eucalipto que abastecem as fábricas se espalham pela região e exibem árvores com altura e folhagem idênticas a distância. O conjunto não forma a paisagem mais interessante do mundo, mas a técnica utilizada proporciona ganhos maiores aos produtores: as pragas são controladas, e os pesquisadores preveem com segurança as etapas do ciclo de produção. Não é preciso ajustar as máquinas constantemente, já que os troncos das árvores possuem espessura igual. "Nossas plantações têm baixa mortalidade e alta produtividade porque são homogêneas", diz Miguel Cadini, coordenador de silvicultura da Fibria. As pesquisas que permitiram a criação de espécies próprias de eucalipto, mais adaptadas ao clima e ao solo brasileiros, começaram ainda na década de 70. A iniciativa foi da Aracruz Celulose, hoje incorporada à Fibria. Os eucaliptos plantados no Brasil estão prontos para a derrubada em até sete anos, um tempo menor do que a média internacional. Além disso, a tecnologia torna possível um aproveitamento maior do espaço plantado. O uso da clonagem fez a produtividade dobrar. E os testes para a produção de mudas mais resistentes continuam. Enquanto isso, os vizinhos mato-grossenses contam os ganhos de mais uma colheita recorde. Na safra 2012/2013, a produtividade da soja nacional ficou em 2,94 toneladas por hectare, 10% acima da dos Estados Unidos, o principal concorrente do Brasil. Em Mato Grosso, o resultado foi de 3,35 toneladas por hectare. A região de Sorriso (MT) é a que mais contribui para esse número. Nos últimos anos, a agricultura de alta precisão vem ganhando espaço em Mato Grosso. Em vez de colherem apenas amostras do solo e calcularem os fertilizantes com base em uma estimativa geral, os produtores passaram a mapear áreas inteiras das propriedades e a corrigir o solo de acordo com a gradação de cada pequeno pedaço de terra. Isso permite o uso de máquinas de alta precisão, com GPS, para fertilizar o solo e plantar. Os tratores operam praticamente sozinhos. O incentivo às inovações é uma das explicações para o sucesso de Sorriso e se deu graças à iniciativa privada. O Estado veio a reboque, como quase sempre acontece no Brasil que dá certo. __________________________________________ 4# ECONOMIA 25.6.14 4#1 UM ANO DE AJUSTES 4#2 CRISTINA EM NOVO APURO 4#1 UM ANO DE AJUSTES MELHORES E MAIORES revela a estagnação nos resultados das empresas brasileiras, um reflexo do fraco crescimento do PIB. Os números falam por si. Por três anos consecutivos, as 500 maiores empresas brasileiras ficaram praticamente estagnadas. Esse é o resumo geral da mais recente edição de MELHORES E MAIORES da revista EXAME, da Editora Abril, também responsável pela publicação de VEJA. O faturamento total dos maiores grupos empresariais alcançou 2,3 trilhões de reais, ou pouco mais de 1 trilhão de dólares, um crescimento modesto de 3,9% em relação a 2012. Os resultados são compatíveis, como não poderia deixar de ser, com o baixo desempenho da economia brasileira. O número total de pessoas empregadas permaneceu virtualmente inalterado, com aumento de 2,2% — muito distante do avanço de 17% ocorrido em 2008. Como aspecto positivo, os lucros aumentaram 23,5%. o que indica um esforço para ampliar a produtividade e a rentabilidade. Todo esse esforço, obviamente, não se sustenta perpetuamente sem um maior dinamismo econômico que ofereça a oportunidade de investir em novos projetos, contratar funcionários e assim desencadear o ciclo virtuoso do crescimento sustentável. Se em edições anteriores recentes MELHORES E MAIORES destacou empresas que se haviam aproveitado do avanço no mercado interno, desta vez, com um cenário doméstico menos favorável, aquelas mais internacionalizadas e menos dependentes das vendas no Brasil saíram-se melhor em 2013. É o caso da Marcopolo, eleita a empresa do ano. Fundada nos anos 40 em Caxias do Sul, na Serra Gaúcha, a fabricante de carrocerias de ônibus possui hoje plantas em treze países, como Colômbia e China, além de parcerias nos Estados Unidos e na Índia. Em 2013, 35% de sua produção foi feita no exterior, contra um percentual de 29% há quatro anos. Sua especialidade é fazer carrocerias adaptáveis a diferentes necessidades das empresas de transporte, construídas sobre chassis fornecidos por fabricantes como Mercedes-Benz, Scania e Volvo. O modelo bem-sucedido no Brasil adaptou-se bem em outros países onde o transporte rodoviário é popular. "O que somos hoje vem sendo construído dia após dia nos últimos 65 anos", disse Mauro Bellini, presidente do conselho da Marcopolo, durante a cerimônia de entrega do prêmio, em São Paulo, na segunda-feira passada. Na avaliação de José Rubens de la Rosa, diretor-geral da companhia, 2013 foi um ano difícil, por isso a Marcopolo busca se preparar para um salto de crescimento a partir de 2015. "Em 2009 continuamos investindo, apesar da crise, e concluímos um plano de expansão'', afirmou De la Rosa. “Fomos recompensados quando houve a melhora do mercado." Também na cerimônia, o presidente da Abril Mídia, Fábio Barbosa, ressaltou que o país necessita de uma "reforma de valores". "É preciso que possamos olhar para as nossas empresas com profissionalismo, mostrando a todos que podemos dar certo", disse Barbosa. Para ele, MELHORES E MAIORES "tem a obrigação de reconhecer e valorizar as empresas que conseguem se destacar, e mostrar isso ao Brasil, especialmente em um ano em que o cenário não é muito favorável e a economia cresceu pouco". Os números de 2014 indicam, até aqui, mais um ano ruim. O governo, com a popularidade em queda, apresentou na semana passada outro pacote de incentivo à indústria, como a renovação de subsídios à exportação e ao investimento em máquinas. Resta ver se o estímulo será suficiente para trazer dias melhores — e lucros maiores — para as empresas brasileiras. 4#2 CRISTINA EM NOVO APURO A Argentina busca saída para evitar outro calote externo. A Argentina já deixou de pagar os seus vencimentos externos em sete ocasiões desde a sua independência da Espanha, em 1816. O calote mais recente foi em 2001. Seu mau histórico, agravado pelo populismo nos últimos anos, impossibilita o país de receber investimentos externos significativos. Não foi sempre assim. No fim do século XIX, rico pelas exportações de carne e grãos, o país conseguia até mesmo levantar libras no mercado financeiro de Londres vendendo títulos expressos em sua própria moeda, o peso, algo raro para um país em desenvolvimento. Mas logo os argentinos cairiam em descrédito. A gastança pública e a emissão acelerada de dinheiro elevaram a inflação, e, em 1885, o presidente Julio Argentino Roca desvalorizou o peso em relação à paridade com o ouro. A crise levou ao calote, e o banco Baring Brothers, então um dos principais da Inglaterra, foi à lona. Depois de mais de uma década de apuros e um processo conflituoso de renegociação com os credores, a Argentina fazia nos últimos meses ajustes na tentativa de retornar aos mercados internacionais. Agora, um revés nos tribunais americanos põe o país diante da possibilidade de um novo calote. Quem havia entrado no acordo de renegociação da dívida aceitara perder até 75% do valor de face dos títulos. Outros investidores, chamados pela presidente Cristina Kirchner de fundos "abutres", decidiram brigar na Justiça — e ganharam. Em novembro de 2012, o juiz Thomas Griesa, de Nova York, decidiu que a Argentina deveria honrar o pagamento no valor integral. O governo argentino recorreu. Na segunda-feira, a Suprema Corte rejeitou finalmente o apelo, confirmando assim a sentença do juiz Griesa. A ação diz respeito ao 1,3 bilhão de dólares pleiteado pelo fundo NML Capital, mas pode superar 18 bilhões de dólares caso a decisão seja estendida aos demais credores. Se não fizer esse pagamento, a Justiça americana poderá determinar a apreensão de ativos argentinos no exterior. O país corre o risco de ficar inadimplente no pagamento das prestações devidas aos investidores que aceitaram a renegociação. Isso porque esses pagamentos poderiam ser bloqueados assim que fossem depositados nos Estados Unidos. "Não posso submeter o país a tal extorsão", reagiu Cristina Kirchner. O juiz Griesa respondeu: "Os comentários não transmitem boa-fé e o compromisso de honrar as obrigações da Argentina". Para Griesa, os títulos foram emitidos sob jurisdição americana, portanto as leis dos Estados Unidos devem ser cumpridas. __________________________________________ 5# INTERNACIONAL 25.6.14 UM CAOS AINDA MAIOR Um grupo terrorista dissidente da Al Qaeda instaurou um cotidiano de brutalidade e extorsão em um vasto território entre a Síria e o Iraque, um país prestes a se desintegrar. TATIANA GIANINI Com menos de uma década de existência, a organização terrorista Estado Islâmico do Iraque e do Levante (Isis, na sigla em inglês) conquistou tudo o que a Al Qaeda um dia almejou e também ganha dos seguidores de Osama bin Laden em selvageria. Depois de controlarem regiões menos populosas entre a Síria e o Iraque, os jihadistas do Isis ocuparam Mosul, a segunda maior cidade do Iraque, importante centro logístico com 2 milhões de habitantes. No total, eles já dominam uma área equivalente à do território da Jordânia e cercaram a capital Bagdá. A Al Qaeda, em contrapartida, sempre foi hóspede do Talibã no Afeganistão e no Paquistão e, no máximo, reuniu pequenos territórios espalhados pela Somália, pelo Iêmen e pelo Mali. Os 15.000 terroristas do Isis são, em sua maioria, jovens violentos e exibicionistas familiarizados com o uso das redes sociais para espalhar o medo e atrair voluntários desajustados. Um em cada cinco integrantes do Isis vem de países como França, Suécia, Inglaterra, Estados Unidos e Rússia. Os vídeos e fotos de decapitações e chacinas que o grupo divulga na internet são tão assustadores que basta seus homens se aproximarem de uma cidade para que os soldados iraquianos tirem o uniforme e saiam em disparada. No domingo 15, os jihadistas se vangloriaram de ter executado 1700 xiitas do Exército regular do Iraque, que foi treinado e equipado pelos Estados Unidos. Em seu objetivo de estabelecer um califado islâmico, o Isis, sunita, declarou guerra contra os muçulmanos xiitas, que governam o Iraque e são maioria nesse país e no Irã. Ao acender o pavio da maior rivalidade do Oriente Médio — entre muçulmanos sunitas e xiitas —, o Isis ameaça iniciar um morticínio igual ou superior ao da guerra civil na Síria e mudar a configuração geopolítica da região. Muito antes de aparecer em uma reportagem do jornal The New York Times em agosto do ano passado, o grupo já aprontava as suas. O Isis surgiu como o braço da Al Qaeda no Iraque (AQI) em 2004, meses após a invasão americana que derrubou a ditadura de Saddam Hussein. A meta já era matar xiitas, considerados apóstatas e traidores. Com a retirada das tropas americanas, em 2011, a segurança diminuiu e os ataques se multiplicaram. Em abril de 2013, o Isis viu na caótica guerra civil da Síria uma oportunidade para aumentar sua atuação. Na cidade de Raqqa, o grupo literalmente crucificou vários homens acusados de roubo e espionagem. Também saqueou santuários xiitas, despachou homens-bomba para mercados e sequestrou curdos. Num dos vídeos de internet, os terroristas param três homens num caminhão na fronteira com o Iraque e perguntam a eles quantas vezes se curvam durante a oração do amanhecer. Os homens falham no teste e um terrorista joga um coquetel molotov dentro do caminhão, matando a todos. Nos territórios controlados, o Isis aplica o código de conduta feito pelo seu comandante, o iraquiano Abu Bakr al Baghdadi, de 43 anos, que vive na Síria e afirma ser descendente de Maomé. Cigarro, música e futebol são proibidos, ainda que alguns de seus membros sejam fãs de times europeus, como Real Madrid e Barcelona. As mulheres são proibidas de sair de casa. Nos mercados, os órgãos genitais dos animais à venda precisam ser cobertos. A insanidade e a barbárie do Isis são de tal ordem que até a também brutal Al Qaeda rompeu com o grupo iraquiano. Na Síria, ele é odiado por todas as facções. No Iraque, governado pelo primeiro-ministro xiita Nuri al Maliki, terão de enfrentar as milícias xiitas, que estão recrutando voluntários aos milhares, as tropas regulares do país, os curdos que vivem no norte e as forças especiais enviadas pelos aiatolás do Irã. Quando algo dá sinal de que vai sair muito errado no Oriente Médio, duas reações acontecem simultaneamente. A primeira é culpar os Estados Unidos pela situação. A segunda é pedir urgentemente que a superpotência faça alguma coisa. Desta vez, o governo americano tem mesmo sua parcela de responsabilidade. Quando o presidente Barack Obama decidiu retirar as tropas do Iraque, não faltaram especialistas alertando que era cedo demais e que em pouco tempo o país poderia voltar a se tornar um centro de treinamento e recrutamento de terroristas. Quanto a fazer alguma coisa, a resposta está nos eventos aos quais Obama compareceu nas últimas semanas, que vão de jogos de golfe a feiras de tecnologia. O presidente americano limitou-se a prometer o envio de 300 conselheiros militares ao Iraque e a pedir uma saída política para a crise. Se isso depender do xiita Maliki, Obama vai ter de pensar em uma sugestão melhor. Reeleito em 2010, Maliki até ensaiou um governo de coalizão, convocando ministros curdos e sunitas para o seu gabinete. Não demorou para a farsa cair. Em 2012, ele afastou os políticos sunitas. No início deste ano, entrou em atrito também com os curdos, que foram flagrados exportando petróleo diretamente para a Turquia. Maliki cortou o repasse de receitas para a região. Não espanta que os curdos estejam dando passagem livre para Bagdá ao Isis, ao mesmo tempo em que evitam que o grupo avance para o norte. Não faltam, ao Isis, armas e munições, que foram financiadas inicialmente com campos de petróleo do leste da Síria e com doações de países do Golfo Pérsico. A organização também arrecada dinheiro com a venda de antiguidades saqueadas de escavações arqueológicas e com a extorsão da população. Em Mosul, os terroristas saquearam 420 milhões de dólares dos bancos. A incursão no Iraque ainda permitiu ao grupo apoderar-se de blindados, veículos militares de transporte e helicópteros das forças iraquianas. Em um dos helicópteros Blackhawk apreendidos, eles escreveram: "Em breve, Força Aérea do Isis". A imagem foi divulgada em seguida nas redes sociais. Ao fazer propaganda na internet, o Isis declara querer o fim da divisão geopolítica do Oriente Médio, uma herança do acordo Sykes-Picot, feito entre franceses e ingleses em 1916, durante a I Guerra Mundial (leia especial sobre o conflito a partir da pág. 53). Em posts no Twitter, os terroristas acrescentaram #SykesPicotOver ("fim do Sykes Picot", em inglês). O nome do acordo faz referência ao secretário de Estado inglês Mark Sykes e ao funcionário do governo francês François Georges-Picot, que, vislumbrando a desintegração do Império Otomano quando a guerra terminasse, repartiram seu território no Oriente Médio entre si. Muitos historiadores atribuem ao Sykes-Picot as mazelas sectárias atuais da região, como se xiitas e sunitas já não se matassem em profusão antes mesmo da existência do Império Otomano. Pois é justamente a nostalgia por esse passado remoto e obscuro que motiva o Isis, que prega a instauração na região de um califado nos moldes dos que existiam no século VII, poucos anos após a morte de Maomé. O primeiro passo, claro, é eliminar as fronteiras entre os países. "Isso já foi feito. O Isis já se movimenta entre a Síria e o Iraque com extrema facilidade", diz o historiador americano Brian Katulis, do Center for American Progress, em Washington. O futuro pretendido pelos terroristas, contudo, é ainda mais artificial que as fronteiras criadas pelos europeus. O nome do grupo em árabe é al-Dawla al-Islamiya fil-Iraq wa al-Sham. O último "S" da sigla Isis vem da palavra árabe Sham (Levante), como era conhecida a região que vai da Síria à Península do Sinai, no Egito, até a I Guerra Mundial. Já o Iraque, mencionado no nome do grupo, só veio a existir após o conflito. As tentativas posteriores de unir os territórios do Iraque e da Síria, como as empregadas pelos seculares e socialistas do Partido Baath (o partido de Saddam Hussein), fracassaram por causa de divisões internas e ideológicas. As chances de o Isis unificar e governar países formados por correntes religiosas e etnias distintas são tão remotas quanto as dos seus antecessores. Seus métodos brutais podem ganhar batalhas, mas não a legitimidade necessária para governar. "O Isis controla um território enorme, mas não o administra. Se pretende estabelecer um califado, precisa antes criar um Estado que funcione", diz o cientista político Barak Mendelsohn, do Haverford College. Obviamente, o conceito moderno de Estado não combina com o sistema de califado pretendido pelos terroristas. A ideia de que é possível derrotá-los, porém, parece igualmente uma alucinação. Sem solução viável para esse problema, outros devem surgir. Os curdos iraquianos podem declarar sua independência no norte, estimulando os separatistas da Turquia a tentar o mesmo. Com a ameaça do Isis, os iranianos têm razões redobradas para seguir construindo a bomba atômica. No Oriente Médio, uma guerra puxa a outra. COM REPORTAGEM DE LETÍCIA NAÍSA ______________________________________ 6# ESPECIAL 100 ANOS DA I GUERRA MUNDIAL. 25.6.14 6#1 UMA FERIDA AINDA ABERTA 6#2 A ERA DA ESTABILIDADE – A (ILUSÓRIA) PAZ DORADOURA 6#3 A ERA DA ESTABILIDADE – ALIADOS, INIMIGOS E PRIMOS 6#4 O EQUILÍBRIO ROMPIDO – OS PRÍNCIPES E... OS TERRORISTAS 6#5 O EQUILÍBRIO ROMPIDO – É DOCE MORRER NO MAR 6#6 O EQUILÍBRIO ROMPIDO – FALTOU PULSO FIRME 6#7 A CATÁSTROFE – LAMA, SANGUE, HORROR 6#8 A CATÁSTROFE – INFERNO DE FOGO E BARRO 6#9 A CATÁSTRODE – A CIÊNCIA DA MORTE 6#10 A CATÁSTROFE – O CHANCELER DA DISCÓRDIA 6#11 A CATÁSTROFE – CADEIA DE INSUCESSOS 6#12 A CATÁSTROFE – O VAGÃO DA REVANCHE 6#13 O LEGADO – O MAJOR E O PEQUENO CABO 6#14 O LEGADO – A ECONOMIA DA PAZ 6#15 O LEGADO – ELES DEVEM? QUE PAGEM 6#16 O LEGADO – TRAGÉDIA SOBRE TRAGÉDIA 6#17 O LEGADO – PALAVRAS NA TRINCHEIRA 6#18 O LEGADO – O MAIOR TESTE DE ABNEGAÇÃO 6#19 O LEGADO – O PÊNDULO DA CULPA 6#1 UMA FERIDA AINDA ABERTA A última veterana da I Guerra Mundial, a inglesa Florence Green, que trabalhou como garçonete em uma base aérea inglesa, morreu em 2012, aos 110 anos. Para as gerações atuais, conflito mundial por excelência foi a II Guerra, com sua luta clara entre o bem e o mal, entre democracias e totalitarismo, com seu padrão de destruição e com o genocídio de judeus e de outros povos. Para muitos historiadores, porém, a II Guerra foi uma extensão da Primeira. Mais do que qualquer outro conflito, a I Guerra — ou a Grande Guerra, como foi inicialmente chamada — representou uma ruptura na história. O fim do domínio europeu sobre o mundo e a ascensão da potência americana, o radicalismo islâmico que brotou dos escombros do Império Otomano, o avanço do comunismo e os ferozes embates ideológicos a ele vinculados, o ocaso dos valores vitorianos e a revolução dos costumes — tudo isso aconteceu como consequência da I Guerra. Nunca antes se matou tanto em confrontos armados, em números absolutos. No total, 15 milhões de pessoas perderam a vida, na maioria soldados. Entre os alemães, 1,8 milhão de militares morreram e 2,7 milhões ficaram inválidos em uma população de quase 70 milhões. No Brasil atual, seria o equivalente a eliminar ou amputar a população inteira do Estado do Rio de Janeiro. Considerando-se a média de vencedores do Prêmio Nobel na sociedade alemã, pode-se estimar que pelo menos seis jovens com potencial para um dia conquistar esse reconhecimento internacional foram trucidados prematuramente no moedor de carne da guerra. Na foto ao lado, os remanescentes das trincheiras e das explosões de obuses assemelham-se a cicatrizes num campo aberto de Beaumont Hamel, na França. A Grande Guerra é isso. Um enorme ferimento que deixou sequelas e moldou o mundo como o conhecemos hoje. 6#2 A ERA DA ESTABILIDADE – A (ILUSÓRIA) PAZ DORADOURA Nas décadas anteriores à I Guerra, havia sinais de que a humanidade avançava para um estágio superior de progresso e de convivência pacífica. DIOGO SCHELP Quem viveu a primeira década do século XX na Europa e sobreviveu às três seguintes tinha fartas razões para apelidar o período interrompido, traumaticamente, pelos acontecimentos de 1914 de belle époque. Antes do início da Grande Guerra — renomeada como I Guerra depois que surgiu uma segunda, ainda mais devastadora, para rivalizar com ela —, existia a convicção de que o mundo havia adentrado uma era duradoura de estabilidade com progresso. A Exposição Universal de Paris, em 1900, ostentou essa percepção otimista nos pavilhões com temas científicos, históricos e culturais dos mais de quarenta países participantes, muitos pautados pelo positivismo. As novas tecnologias de transporte e de comunicação fizeram a participação do comércio entre as nações no PIB global saltar de 4%, em 1850, para 9%, em 1914. Os europeus pobres também se beneficiaram dessa que é considerada a primeira onda de globalização, seja pela queda de 50% no preço dos alimentos, seja pela possibilidade de tentar um futuro mais promissor do outro lado do Oceano Atlântico. O escritor austríaco Stefan Zweig chamou esse período de "Anos Dourados da Segurança" em seu livro de memórias O Mundo de Ontem. A obra foi finalizada em 1941, quando a Europa que o autor conhecera estava sendo transfigurada pela II Guerra, e publicada na Suécia no ano seguinte — postumamente, pois nesse meio-tempo Zweig e sua mulher, Charlotte Altmann, se suicidaram no exílio em Petrópolis, no Brasil. O livro, assim como o gesto extremo do escritor, expressa como nenhum outro a nostalgia pelos tempos de paz do início do século: "Ninguém pensava em guerras, em revoluções e em revoltas. Tudo o que era radical, toda violência, parecia impossível em uma era da razão". No texto, Zweig observa que o progresso se tornara uma religião, e enaltece seus feitos recém-alcançados, como o telefone, o automóvel, o avião, a eletricidade e as cidades com água e gás encanados. Lembra, também, a expansão do direito ao voto e de conquistas sociais. (Atribui-se ao chanceler alemão Otto von Bismarck a criação do primeiro sistema de bem-estar do mundo, ainda nos anos 1880, o que incluía programas de aposentadoria e de atendimento de saúde.) Além disso, Zweig lamenta a perda da atmosfera mais tolerante entre as pessoas de diferentes origens religiosas, nacionais e sociais: "A liberdade em questões privadas, atualmente inimaginável, era algo óbvio". Cem anos depois do magnicídio na Sérvia, em 28 de junho de 1914, que levou à Grande Guerra (veja a reportagem na pág. 64), ainda parece inacreditável, como o foi para a geração de Zweig, que a região mais próspera do mundo tenha sido capaz de se lançar de tal maneira num ciclo de autodestruição. Em poucos momentos históricos houve um desencontro tão claro entre os rumos tomados pela sociedade e as decisões catastróficas de um punhado de homens. 6#3 A ERA DA ESTABILIDADE – ALIADOS, INIMIGOS E PRIMOS Os laços familiares entre os principais monarcas europeus não ajudaram — e as alianças entre os países acabaram sendo um catalisador da guerra. Entre os integrantes das cortes europeias e da recente República francesa e dos seus gabinetes ministeriais, confiava-se que, apesar das tensões que apareciam entre países vizinhos aqui e ali, a paz do início do século XX se estenderia por muito anos por uma combinação de fatores que eles próprios haviam construído. O período das guerras que varriam a Europa e modificavam o padrão das fronteiras como se fossem dunas encerrou-se com o fim da era napoleônica, em 1815. Desde então, houve alguns conflitos coloniais, localizados na periferia da Europa ou relativamente curtos, como a Guerra da Crimeia (1853-1856) e a Guerra Franco-Prussiana (1870-1871). Para os padrões europeus, foram 100 anos de quase absoluta tranquilidade. Nesse período, predominaram os episódios que poderiam ter resultado em enfrentamentos mas foram resolvidos por meios pacíficos. Os governantes passaram a crer, de maneira imprudente, que cada nova situação de tensão não se comparava a outras ainda piores nas quais não foi necessário recorrer às armas. Os mecanismos de contenção contra guerras pareciam infalíveis. A começar pelo fato de que as principais monarquias da região estavam conectadas por íntimos laços familiares. A rainha Vitória, da Inglaterra, que reinou entre 1837 e 1901, era avó de dois futuros monarcas de países diferentes. Imperador alemão de 1888 a 1918, Guilherme II era o primogênito da princesa Vitória, a filha mais velha da rainha, e de Frederico III da Alemanha. George V, que ocupou o trono inglês entre 1910 e 1936, nasceu da união do rei Edward VII, também filho da rainha Vitória, com Alexandra da Dinamarca. Esta, por sua vez, era irmã de Maria Feodorovna, imperatriz consorte da Rússia e mãe de Nicolau II, czar entre 1894 e 1917. Em resumo, o rei George V, da Inglaterra, era primo em primeiro grau tanto do kaiser Guilherme II, da Alemanha, quanto do czar Nicolau II, da Rússia, George e Nicolau, mesmo antes de coroados, davam-se muito bem — além de serem fisicamente muito parecidos. Nenhum dos dois, porém, tinha muita paciência com Guilherme, que adorava fazer piadas inconvenientes e dar conselhos indesejados. As relações pessoais, contudo, tiveram pouca influência na conjuntura que os levou a se aliar ou se enfrentar na I Guerra. Guilherme II, o primeiro dos três a ascender ao trono, sofria de complexo de inferioridade — que alguns historiadores atribuem ao seu braço esquerdo atrofiado por causa de um acidente no parto — e tentava compensá-lo com ideias grandiosas. A mais impactante delas, a decisão de investir em uma frota de navios de guerra capaz de rivalizar com a inglesa, foi em parte uma reação emocional ao magnânimo desfile naval em Londres por ocasião do jubileu de diamante da rainha Vitória, em 1897. Nenhum monarca foi convidado para a comemoração dos sessenta anos de reinado, apenas os príncipes e nobres estrangeiros, em parte para evitar a presença incômoda de Guilherme II. Este, porém, recebeu um relato minucioso da exibição do poderio inglês. Nada menos que 165 navios foram reunidos no litoral sul britânico. Outros países enviaram seus próprios barcos para saudar a rainha, mas o kaiser achou que a Alemanha passou vergonha com o seu navio obsoleto. "Lamento muito não ter um navio melhor para pôr à sua disposição, enquanto outras nações brilham com seus barcos novos", escreveu Guilherme II a seu irmão, o almirante e príncipe Henrique da Prússia, que o representou no jubileu. Guilherme, em anos anteriores, já havia visto de perto o poder da armada inglesa, porque desde criança visitava a terra da sua avó, a quem admirava muito, e porque, um ano antes de ser coroado, estivera em seu jubileu de ouro, em 1887, que também contou com um impressionante desfile de navios. Foi apenas a partir de 1897, porém, que Guilherme II começou a pôr em prática sua corrida naval com a Inglaterra. Seus estrategistas sabiam que era inviável superar os ingleses, mas acreditavam que, com uma frota razoavelmente poderosa, eles relutariam em confrontar a Alemanha no Mar do Norte e, principalmente, em se alinhar com quem quer que entrasse em guerra com a Alemanha. O objetivo do kaiser, portanto, era forçar os ingleses a se aliar a ele — uma meta à qual os seus diplomatas se dedicaram por diversos outros meios, sem sucesso. Como se viu depois, o efeito da corrida naval foi exatamente o inverso do esperado pelo kaiser: como o império global em decadência que era, a Inglaterra sentiu-se ameaçada justo em seu monopólio, a força marítima, e acabou se aproximando da França, inimiga potencial da Alemanha. A contenção pelas armas, portanto, princípio pelo qual potências com alta capacidade de destruição evitariam enfrentar-se em uma guerra suicida, fracassou. O erro de cálculo do kaiser obedecia à lógica de alianças da época, as quais também deveriam servir ao propósito da paz por meio da dissuasão. Nas décadas anteriores à Grande Guerra, as nações europeias ensaiaram entre si diversas combinações de acordos de proteção mútua, seguindo o corolário "Mexeu com você, mexeu comigo, e vice-versa". Um dos primeiros e mais consistentes foi entre a França e a Rússia. A primeira havia perdido poucos anos antes território para a Alemanha, cuja economia e investimentos militares também cresciam mais rapidamente. A segunda tinha a oferecer um enorme exército e, em troca, beneficiava-se dos investimentos e da tecnologia da França. A Alemanha se sentia cercada por essa aliança e se aproximou do Império Austro-Húngaro, que tinha suas próprias diferenças com a Rússia nos Bálcãs. Mais tarde, já no início da I Guerra, o Império Otomano aderiu aos alemães e aos austro-húngaros. Em cada um desses países havia uma elite militar que sonhava com os idos tempos das glórias de batalha — e que, no momento certo, soube agarrar a oportunidade para suas forças para o conflito, apesar do esforço contrário de autoridades civis. Franz Conrad von Hötzendorf, comandante das forças austro-húngaras, por exemplo, queria dar mostras de seu heroísmo a uma dama divorciada com quem pretendia se casar. A Inglaterra tinha relações mais próximas com a França e a Rússia, mas relutava em comprometer-se com qualquer uma delas, justamente porque não queria se lançar em enfrentamentos iniciados por questões que não lhe diziam respeito. Afinal, o Império Britânico já carregava um fardo muito grande para manter o domínio sobre colônias e áreas de influência em praticamente todas as regiões do mundo. Os ingleses também se viam desafiados, em especial economicamente, por potências emergentes como os Estados Unidos, o Japão e a própria Alemanha. Em seu excelente A Guerra que Acabou com a Paz, a historiadora canadense Margaret Macmillan enumera as principais razões que tragaram a Europa e, depois, países de outros continentes para a Grande Guerra: "Para começar, a corrida armamentista, os rígidos planos militares, a rivalidade econômica, as guerras de comércio, o imperialismo com sua disputa por colônias, ou o sistema de alianças que dividia a Europa em campos opostos". A esses fatores, ela acrescenta o nacionalismo, com o seu ódio aos estrangeiros, os valores de honra ainda indissociáveis da carreira militar e a falta de líderes firmes e criativos para evitar o pior. Muitos desses elementos eram considerados, até 1914, os próprios obstáculos à guerra. Um engano que destruiu um dos períodos mais prósperos e pacíficos da Europa. No final, até os primos que se aliaram durante a guerra não conseguiram se ajudar. Em 1917, Nicolau II, deposto na Revolução Russa, pediu asilo à Inglaterra. George V negou, por temer uma revolta comunista em seu próprio reino. 6#4 O EQUILÍBRIO ROMPIDO – OS PRÍNCIPES E... OS TERRORISTAS O atentado terrorista que matou o improvisado herdeiro do império austríaco desencadeou a primeira mãe de todas as guerras e mudou a história. VILMA GRYZINSKI "O que é isso? O senhor acha que Sarajevo está cheia de assassinos? Eu assumo a responsabilidade." De todas as frases absurdas, muitas delas antecipando a tragédia que ia acontecer, nenhuma foi mais premonitória do que a reação indignada do empertigado oficial Oskar Potiorek. Servindo como governador de uma das províncias mais perdidas do vasto Império Austro-Húngaro, a Bósnia-Herzegóvina, tinha sido dele o convite feito ao arquiduque Francisco Ferdinando e sua mulher, Sofia, para que visitassem a rústica Sarajevo. E era dele o vexame pela grave falha de segurança ocorrida alguns minutos antes, quando um terrorista jogou uma bomba contra a comitiva ilustre na ensolarada manhã de 28 de junho de 1914. Ferdinando, que ocupava uma posição equivalente à de príncipe herdeiro do império, tinha escapado ileso. Em Sofia, impecável em seu vestido branco com um ramalhete de rosas na cintura, um leve arranhão no rosto mostrava a trajetória de um estilhaço. Em pouco mais de meia hora, os dois estariam mortos: Sarajevo de fato pululava de assassinos, sete no total. Trinta e oito dias depois a Europa estaria em guerra por causa do magnicídio. O destino de Potiorek é contado no fim desta reportagem. O mesmo código de honra que levou o governador a se indignar com a preocupação com a segurança manifestada por um integrante da comitiva de Ferdinando conduziu o arquiduque a se colocar a 2,5 metros de distância de outro dos sete terroristas envolvidos no plano para assassiná-lo, um jovem magro e encovado chamado Gavrilo Princip. Como cavalheiro e membro da grandiosa família Habsburgo, o arquiduque insistiu em que devia visitar os acompanhantes feridos na primeira fase do atentado, internados num hospital militar. No caminho, o elegante modelo fabricado pela Graef & Stift, de capota arriada para aproveitar o tempo glorioso, entrou numa rua errada. A Mão Negra, não do destino, mas da organização ultranacionalista sérvia que patrocinava Princip, conduziu os dois tiros certeiros da pistola Browning que abriram as portas do inferno. Como Nedeljko Chabrinovitch, o companheiro de conspiração que havia jogado a bomba, Princip tentou em vão se suicidar. Foi desarmado, espancado e quase linchado pela multidão. Para relembrar os principais interesses envolvidos. O Império Austro-Húngaro era um colosso europeu de 45 milhões de habitantes (o Brasil tinha 25 milhões à época) que congregava os dois países sob sua denominação num incômodo casamento ditado por razões dinásticas, unidos pela religião católica e pelo gosto por uniformes vistosos, desunidos por quase todo o resto, e mais nove núcleos nacionais que haviam sido ou viriam a ser nações independentes. A sudeste de suas fronteiras, outro império poderoso se desagregava, o dos turcos otomanos. As guerras pela independência travadas por seus antigos vassalos haviam feito ressurgir na região montanhosa dos Bálcãs uma série de países, entre os quais o mais próximo e complicado era a Sérvia. Eslava e cristã, era também furiosamente nacionalista depois de meio século de domínio muçulmano e de resistência ancorada numa religião poderosa — a ortodoxa — e no desejo universal de não sucumbir ao estrangeiro opressor, a nação balcânica seguia uma política parecida com o atual expansionismo da Rússia de Vladimir Putin, fincado na existência de minorias russas em países vizinhos. "Onde houver um sérvio, é a Sérvia", dizia a doutrina pan-eslavista dominante. E onde havia sérvios, entre outras nacionalidades, era na Bósnia-Herzegóvina, anexada em 1908 como província de pequena importância ao império dominante dos austríacos. Eram sérvios da Bósnia os jovens recrutados para o atentado contra o herdeiro imperial, com exceção de Mehmet Mehmedbashitch, um carpinteiro muçulmano anarquista e terrorista desastrado. Como só um dos sete precisava acertar, e a "honra", na visão deles, coube a Gavrilo Princip, o atentado de Sarajevo é comparável ao 11 de Setembro de 2001 por exemplificar "a maneira como um único e simbólico acontecimento — por mais que esteja embebido dos processos históricos mais genéricos — pode mudar a política irreversivelmente", segundo a definição de Christopher Clark, autor de um dos melhores livros contemporâneos sobre a Grande Guerra precursora, Os Sonâmbulos. É de Clark também a espetacular reconstituição do primeiro regicídio, que infiltrou nas sombras do serviço de inteligência da Sérvia a organização Mão Negra e seu tetricamente genial líder, Dragutin Dimitrijevitch. Em 1903, as vítimas foram os próprios reis sérvios, Alexandre, considerado insuficientemente comprometido com a causa nacional, e sua mulher, Draga, mortos a bala, picados a golpes de espada, destripados com uma baioneta e desmembrados a machadadas. Jogado pela janela dos aposentos reais no palácio de Belgrado, ficou o corpo grotescamente mutilado da odiadíssima rainha Draga — uma viúva com quem o rei insistiu em se casar, passando por cima da oposição generalizada, inclusive de seu ministro do Interior, que apelou: "Majestade, ela foi amante de todo mundo, inclusive minha". Um dos ultranacionalistas que haviam participado do crime — e, como Dimitrijevitch, voltou à cena nos assassinatos de Sarajevo — levaria durante anos, numa maleta de mão, um seio amputado e mumificado da rainha consorte. Matar membros da realeza não era incomum numa época de ascensão do anarquismo, declínio das monarquias e explosões de nacionalismo. O rei Umberto I da Itália foi assassinado em 1900; Carlos I de Portugal e seu filho, em 1908; Jorge da Grécia, em 1913. Dois militantes esquerdistas haviam explodido o czar Alexandre II em 1881, quase quatro décadas antes da Revolução Russa e do fuzilamento secreto não só do czar Nicolau II, mas de um total de dezoito integrantes da família real. A tia do herdeiro austríaco, a imperatriz Elizabeth, apelidada de Sissi e vivida no cinema dos anos 50 pela atriz Romy Schneider, levou uma estocada fatal de um anarquista italiano quando caminhava à margem do Lago de Genebra, em 1898. Bela, elegante e anoréxica na juventude, ela ainda se recuperava da maior tragédia da família Habsburgo: o suicídio do filho e herdeiro do trono, o príncipe Rodolfo, que se matou em 1889 junto com a amante, uma sensual baronesa húngara de 17 anos. Por causa da tragédia, o imperador precisou promover o sobrinho Ferdinando a herdeiro. Introvertido e inseguro, ele só desafiou o tio poderoso quando se casou com Sofia Chotek, que, apesar do título de condessa, não se qualificava como esposa, na inquebrantável visão oficial, por não pertencer a nenhuma família real. Mesmo assim, precisou fazer um humilhante juramento, assumindo que jamais romperia as regras do casamento morganático: nenhum de seus filhos poderia reclamar a posição de herdeiro. Tiveram três, dois meninos e uma menina, e uma vida de grande felicidade familiar. Em público, Sofia não podia andar ao lado do marido, dividir as honras da mesa com ele em banquetes oficiais nem sequer entrar no camarote real no teatro lírico de Viena. Por isso, Ferdinando valorizava amigos como o kaiser Guilherme da Alemanha, que recebiam bem o casal, e convites como o de Potiorek, o governador da Bósnia, que permitiam a Sofia aparecer em pé de igualdade com o marido, mesmo que na perdida Sarajevo. Cada um dos sete integrantes das duas células terroristas encarregadas de assassinar o arquiduque recebeu da Mão Negra uma pistola Browning, uma granada de mão e um frasco com cianeto de potássio envolto em chumaços de algodão. Primeiro na linha de ataque no Cais Appel, a avenida beira-rio de Sarajevo, o muçulmano Mehmedbashitch vacilou, com bomba na mão, provavelmente paralisado pelo medo. O segundo, Chabrinovitch, lançou a granada que alcançou o carro de trás de Ferdinando e Sofia. Depois tomou o veneno e se jogou no rio, que estava com o leito seco, mas nem de longe morreu; acabou preso por populares e policiais retorcendo-se de dor por causa das mucosas queimadas pelo cianeto. Decidido a manter a imperial imperturbabilidade, Ferdinando seguiu para o centro de Sarajevo, como programado, onde se deu uma cena tragicômica. Agitado, o prefeito Mehmet Fehim Effendi leu o discurso preparado antes do atentado, dizendo que "todos os cidadãos de Sarajevo saúdam entusiasticamente a ilustríssima visita de vossa alteza". Foi o único momento em que o arquiduque perdeu a classe: "É assim que os senhores recebem os visitantes, jogando bombas neles?". Acalmado pela mulher, mandou a cerimônia prosseguir. Dali embarcou para a última viagem, com as plumas de avestruz tingidas de verde no alto do capacete tornando-o um alvo perfeito, mas só atingido quando o motorista entrou na rua errada, parou o carro que não tinha marcha a ré e começou lentamente a retornar, bem diante de Princip. O primeiro tiro atravessou a porta do carro e perfurou a aorta abdominal de Sofia. O segundo rompeu a jugular de Ferdinando. Dois tiros, dois ferimentos fatais. "Sof, Sof, não morra. Viva pelos nossos filhos", disse o arquiduque quando viu a mulher tombar silenciosamente em seu colo. Ele próprio também se esvaía. "Não é nada, não é nada", repetia, cada vez mais baixo. Pouco depois das 11h30, estavam mortos. Foram velados na civilizadamente enlutada Viena e enterrados juntos, como Ferdinando queria, mas não na tumba imperial dos Habsburgo. O protocolo que excluía Sofia tinha de ser seguido até o fim. Um mês depois do atentado, o Império Austro-Húngaro declarou guerra à Sérvia, cuja participação no crime era evidente. Os respectivos aliados foram aderindo aos dois lados. Gavrilo Princip foi condenado à morte, com sentença comutada em prisão perpétua porque tinha menos de 20 anos. Morreu na prisão, de tuberculose óssea, em 1918. Pesava menos de 40 quilos. A roda fatídica desencadeada por seus dois tiros devorou 15 milhões de vidas na guerra em si e mais 50 milhões mortos na subsequente epidemia de gripe espanhola. Pouco depois do atentado, Oskar Potiorek, o governador que havia feito uma avaliação completamente errada dos riscos, recrutou milícias muçulmanas para desfechar represálias indiscriminadas contra a população servia. Com a declaração de guerra, ele ascendeu a comandante das forças austro-húngaras nos Bálcãs. Era bom no martírio de civis, incluindo o enforcamento de mulheres arrancadas de casa ainda vestindo os lindos aventais bordados de camponesas servias, e ruim na liderança militar. Foi destituído do comando em dezembro de 1914. Não cumpriu as ameaças de suicídio. 6#5 O EQUILÍBRIO ROMPIDO – É DOCE MORRER NO MAR O "homem mais bonito da Inglaterra" pregou em versos as virtudes do heroísmo, mas morreu de infecção em um navio antes de disparar um só tiro. "Rupert Brooke está morto. Um telegrama do almirante em Lemnos nos diz que sua vida murchou no instante em que parecia ter atingido a primavera", assim começava o obituário publicado pelo Times na manhã do dia 26 de abril de 1915. Assinava a peça um dos mais jovens ministros da Marinha da Inglaterra, Winston Churchill, de 40 anos, que viveria até os 90, existência gloriosa de maior estadista do século XX. Brooke, o soldado-poeta, "o homem mais bonito da Inglaterra", nas palavras de W.B. Yeats, o irlandês modernista, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1923, estava morto aos 27 anos. Não de balas trespassado, duas de lado a lado. Não. Morto de insolação e septicemia, evolução de uma picada de mosquito no Mar Egeu, a bordo de um navio que o levaria para a frente de combate na Turquia. Morte estúpida, inglória e, certamente, anônima, não fosse Brooke, como escreveu Churchill, "tudo o que se desejaria que os filhos mais nobres da Inglaterra fossem nesses dias em que nenhum outro sacrifício, mas o mais precioso, é aceitável, e o mais precioso é justamente o que é voluntariamente oferecido". Seis sonetos em que a guerra é um glorioso ritual de purificação, um obituário escrito por Churchill no The Times, a bajulação de Yeats imortalizaram Brooke. Milhões de outros jovens ingleses alistaram-se nas Forças Armadas com a mesma alegre e ingênua antecipação, emoção adequada para um passeio pelas montanhas, não para um campo de batalha desolador onde, mais tarde, outro poeta, T.S. Eliot, se proporia a mostrar ao leitor "o medo em uma mão com um punhado de terra". A França, a Alemanha e a Rússia Imperial tiveram seus próprios Rupert Brookes, porta-vozes de uma juventude incapaz de absorver os desafios trazidos por revoluções na arte (modernismo), na política (marxismo), na ciência (darwinismo) e nas relações entre os sexos (sufragismo e trabalho feminino fora de casa). "Para muitos desses jovens a perspectiva de uma guerra pareceu uma fuga honrosa de um ambiente em que tudo que era sólido se desmanchava no ar", diz Robert Bucholz, historiador da Universidade de Oxford, um dos maiores estudiosos das causas da Grande Guerra. Obviamente, entraram na equação muitos outros motivos mais palpáveis do que o desconforto com os desafios comportamentais da vida, da arte e da cultura modernas. As alegres filas de voluntários, muitos trazidos por namoradas e até por mães orgulhosas, que se formavam nos postos de recrutamento da Inglaterra eram inchadas por jovens nacionalistas, patriotas e por muitos homens em busca de uma ocupação rentável em meio a um período de brutal estagnação econômica, visível em quase todas as capitais da Europa. Tanto para os espíritos sensíveis, como Rupert Brooke e seus leitores, quanto para os homens de mãos calejadas das classes trabalhadoras, a guerra parecia uma solução, não um problema. Parecia a salvação. Para milhões de jovens foi um equívoco fatal. Na Alemanha, sem que se dessem conta ou tivessem isso como objetivo, os filósofos materialistas de todas as gradações haviam plantado no decorrer do século XIX uma ideologia que, de Schopenhauer a Karl Marx, passando por Kant e Nietzsche, mata a figura de Deus, pelo menos entre os mais instruídos. Sem Deus, a busca de um significado para a vida tornou-se um empreendimento intelectual em que a arrogância e a ousadia tinham lugar privilegiado. Sem Deus, a vida humana só encontra razão de existir na supervalorização do homem e de suas conquistas. Essa ideia se cristaliza no "Ubermensch" de Nietzsche, o super-homem, para quem qualquer pregação transcendental não passa de uma tentativa de tirar seu foco do único mundo que existe e pode ser transformado por ele e outros seres humanos individualistas, poderosos que desprezam os fracos. Mais tarde o super-homem de Nietzsche seria confundido propositalmente pelos nazistas da Alemanha com o conceito de "raça superior" — mas também seria adotado pelos anarquistas na Espanha e outros países como o paradigma do guerreiro sem freios morais que não a própria consciência. No que diz respeito à I Guerra Mundial, e especialmente entre os intelectuais da Alemanha, a filosofia que tirou Deus do centro da vida foi instrumental para fixar a visão da guerra como um caminho para atingir a superação do medo e outras fraquezas humanas. Essa ideologia cruzou o Atlântico. Ela, porém, encontrou em Randolph Bourne um resistente lúcido, abismado pela rápida adesão popular e dos formadores de opinião à tese da intervenção dos Estados Unidos no conflito. Escreveu Bourne em 1917: "Eles (os intelectuais) são responsáveis pela criação da mitologia popular de que essa guerra é uma cruzada santa". 6#6 O EQUILÍBRIO ROMPIDO – FALTOU PULSO FIRME Os diplomatas e os chefes de governo da Europa tiveram um mês para evitar as forças centrípetas da guerra. A ambiguidade da estratégia dos ingleses anulou boa parte dos esforços de paz. DUDA TEIXEIRA Ao retornar ao seu escritório depois de ser aplaudido na Câmara dos Comuns, em Londres, em 3 de agosto de 1914, o inglês Edward Grey, o mais poderoso ministro de Relações Exteriores do maior império da época, bateu os punhos na mesa e chorou: "Eu odeio a guerra. Eu odeio a guerra". Grey, então com 52 anos (nove como chanceler), acabara de fazer um discurso em que, por uma hora, explicou as razões pelas quais a Inglaterra deveria entrar no conflito que se iniciava. Embora seu país, segundo ele, não tivesse a obrigação de defender a França, a Alemanha não deixava outra opção ao ameaçar a Bélgica — um verdadeiro corredor de acesso para o Canal da Mancha e, portanto, para a Inglaterra. O continente europeu não poderia ser dominado por uma única potência. Ao anoitecer, observando pela janela um funcionário acender as luzes das ruas, Grey disse: "As lâmpadas estão se apagando na Europa inteira. Nós não as veremos brilhar outra vez em nossa existência". A frase de Grey entrou para os livros de história como um prenúncio da guerra que mataria milhões de pessoas, mas também pode ser interpretada como uma lamúria da inoperância da diplomacia, que perdeu a chance de evitar o pior. Pouco antes, em 28 de julho, o Império Austro-Húngaro declarara guerra à Sérvia. Desde o dia 28 do mês anterior, junho, quando o arquiduque Francisco Ferdinando foi assassinado, tinha havido uma intensa troca de telegramas entre embaixadas e encontros entre diplomatas europeus preocupados com as tensões nos Bálcãs. Temia-se, com razão, o ímpeto russo, de um lado, e o alemão, de outro, em se meter numa questão de cunho regional, acima de tudo. Se a Rússia e a Alemanha fossem tragadas para um conflito entre austro-húngaros e sérvios, como acabou acontecendo, a França teria de defender a primeira e a Inglaterra... bem, os líderes desta não tinham a menor ideia do que fazer. Uma a uma, todas as tentativas de manter a paz fracassaram por causa de uma visão estreita dos diplomatas, da falta de uma cadeia consistente de comando em muitos governos e da comichão belicista que sentiam alguns membros influentes de cada um dos países envolvidos. Contando com a confiança do rei George V e do primeiro-ministro Herbert Asquith, Grey agia por conta própria. Para ele, as relações internacionais eram elevadas demais para ser debatidas no Parlamento. O ministro costumava dizer que fazia o seu trabalho não por vocação, e sim por uma obrigação enfadonha. O inglês era seu único idioma. Grey só saiu do país uma vez. Seus interesses verdadeiros eram a pesca e a observação dos pássaros. Seu legado como naturalista, que inclui o livro O Charme dos Pássaros, é elogiado. O mesmo não se pode dizer de sua herança como ministro de Relações Exteriores. Ao mesmo tempo em que repetia publicamente não haver por parte da Inglaterra um compromisso de defender a França em caso de uma agressão estrangeira, Grey promoveu encontros às escondidas com franceses e prometeu aliar-se a eles. As reuniões feitas em 1905 e 1906 entre representantes dos dois países nem sequer foram reportadas ao seu gabinete. Se essa promessa de ajuda à França tivesse ficado mais evidente, talvez a Alemanha — que apostava em uma vitória rápida no front ocidental para poder concentrar esforços no front oriental, contra a Rússia — tivesse deixado os austro-húngaros sozinhos com seu problema sérvio. Talvez. Outros diplomatas também falharam, mais por falta do que por excesso de poder. Ao assumir o seu posto, em 1909, o ministro de Relações Exteriores alemão Theobald von Bethmann-Hollweg tentou uma aproximação com a Inglaterra. Em 1911, Grey e Hollweg evitaram que uma faísca se transformasse em incêndio no episódio que ficou conhecido como a Crise de Agadir. Naquele ano, a França ocupou a capital do Marrocos para conter uma revolta contra o sultão e a Alemanha respondeu enviando o cruzador Panther para a cidade portuária de Agadir. Como os alemães foram forçados a recuar, o kaiser passou a ignorar os conselhos de Hollweg. Quem ganhou voz no governo a partir de então foi o chefe da Marinha Imperial Alfred von Tirpitz, o mentor da corrida armamentista naval contra os ingleses. No desafortunado julho de 1914, quando os ânimos já estavam para lá de Berlim, o presidente francês Raymond Poincaré viajou com seus diplomatas, de navio, até São Petersburgo, a capital do Império Russo, para falar com o czar Nicolau II. Ele queria estreitar a cooperação militar com os russos e tranquilizar seus aliados. Do encontro, Poincaré entendeu que o czar estava determinado a defender a Sérvia de maneira diplomática. Faltou combinar com os russos que respondiam a Nicolau, que estavam tão divididos na questão quanto os alemães ou os franceses. Durante um jantar na embaixada francesa em São Petersburgo, um oficial francês em um salão secundário propôs um brinde "para a próxima guerra e nossa vitória certa". Em seu último dia de viagem. Poincaré assistiu a um desfile militar com a presença de 70.000 soldados. A música de fundo, não por acaso, era a Marcha Lorena, que os russos consideravam uma homenagem pessoal a Poincaré, nascido em Lorena. Ocorre que a Alsácia-Lorena é uma região da França que havia sido anexada pela Alemanha na Guerra Franco-Prussiana (1870-1871). Depois da I Guerra, retornou à França. Outro detalhe: os soldados que desfilavam em São Petersburgo não usavam uniformes cerimoniais. Vestiam fardas mais apropriadas, isso sim, para quem estava pronto para sair dali direto para os campos de batalha. Boa parte da saliva diplomática em julho de 1914 foi gasta para convencer o Império Austro-Húngaro a estender o ultimato dado à Sérvia para dar acesso à investigação do assassinato do arquiduque. Tanto Grey quanto os russos pediram que o limite fosse estendido. O inglês passou dois dias tentando formar um grupo com as outras quatro potências para mediar a questão. Os austríacos, bancados pelos alemães, não cederam. Cinco minutos antes do final do prazo, às 17h55 do sábado 25 de julho, o primeiro-ministro sérvio Nikola Pasic entregou uma nota em alemão capenga ao barão Giesl de Gieslingen, representante do Império Austro-Húngaro: "Parte das suas demandas nós aceitamos, mas quanto ao resto delas nós colocamos nossas esperanças na sua lealdade e na sua nobreza". Em seguida, saiu. O barão leu o texto, viu ali o que queria e assinou uma carta já redigida informando Pasic que deixaria Belgrado com seus empregados. As malas já estavam prontas. Antes das 7 da noite, ele, a esposa e seus funcionários cruzaram a fronteira com a Áustria. A declaração de guerra foi feita três dias depois. "As intrigas de um oponente malévolo obrigam-me, em defesa da honra da minha monarquia, a agarrar a espada depois de longos anos de paz", escreveu o imperador austro-húngaro Francisco José. Na madrugada, soldados sérvios explodiram uma ponte ao norte de Belgrado. Lanchas austríacas atiraram e, após uma breve tensão, os sérvios retrocederam. No dia 31, a Rússia anunciou a mobilização das suas Forças Armadas para defender a Sérvia. Em seguida, a Alemanha declarou guerra à Rússia, à França e à Bélgica. Com a recomendação de Grey, a Inglaterra anunciou que também entraria no jogo em 4 de agosto. A Alemanha invadiu a Bélgica no mesmo dia. Com as peças no tabuleiro, demoraria ainda duas semanas para que um conflito maior acontecesse. No front ocidental, os alemães passaram por cima dos franceses em Lorena no dia 20, inaugurando as Batalhas de Fronteiras, entre franceses, alemães e ingleses. A catástrofe começara. AS DIVISÕES DE UM BARRIL DE PÓLVORA A I Guerra redesenhou as fronteiras e extinguiu quatro impérios: o Alemão, o Austro-Húngaro, o Otomano e o Russo. Com isso, as linhas que às vésperas da II Guerra marcavam a Europa já eram muito mais parecidas com as de hoje. ALIADOS: Portugal, França, Inglaterra, Itália, Sérvia, Grécia, Romênia, Rússia. IMPÉRIOS CENTRAIS: Alemanha, Luxemburgo, Império Austro-Húngaro, Bulgária, Império Otomano O CONTINGENTE E AS BAIXAS NA I GUERRA IMPÉRIOS ALIADOS RÚSSIA: 12 milhões Voltaram incólumes 2,8 Feridos 5 Desaparecidos 2,5 Mortos 1,7 INGLATERRA: 8,9 milhões Voltaram incólumes 5,7 Feridos 2,1 Desaparecidos 0,2 Mortos 0,2 FRANÇA: 8,4 milhões Voltaram incólumes 2,2 Feridos 4,3 Desaparecidos 0,5 Mortos 1,4 ITÁLIA: 5,6 milhões Voltaram incólumes 3,4 Feridos 0,9 Desaparecidos 0,6 Mortos 0,7 ESTADOS UNIDOS: 4,4 milhões Voltaram incólumes 4,1 Feridos - Desaparecidos 0,2 Mortos 0,1 IMPÉRIOS CENTRAIS ALEMANHA: 11 milhões Voltaram incólumes 3,8 Feridos 4,2 Desaparecidos 1,2 Mortos 1,8 IMPÉRIO AUSTRO-HÚNGARO: 7,8 milhões Voltaram incólumes 0,8 Feridos 3,6 Desaparecidos 2,2 Mortos 1,2 IMPÉRIO OTOMANO: 2,9 milhões Voltaram incólumes 1,9 Feridos 0,4 Desaparecidos 0,3 Mortos 0,3 BULGÁRIA: 1,2 milhão Voltaram incólumes 0,9 Feridos 0,2 Desaparecidos - Mortos 0,1 TOTAL DE SOLDADOS: 62,2 MILHÕES (apenas dos países citados no gráfico) Feridos: 20,9 milhões Desaparecidos ou prisioneiros: 7,5 milhões Mortos: 8,2 milhões Fonte: Yhe Economist e National Geographic Society. 6#7 A CATÁSTROFE – LAMA, SANGUE, HORROR O Soldado Desconhecido é uma face nobre do primeiro conflito a industrializar a morte em batalhas cujas vitórias foram de Pirro. MARIO SABINO, DE PARIS F, MEAUX Na gênese do Soldado Desconhecido, essa invenção sem passado e sem futuro, está o 6. O número determinou a escolha do corpo a ser enterrado sob o Arco do Triunfo, em Paris, para simbolizar e homenagear todos os franceses que, ao cair pela pátria num dos campos de batalha da I Guerra Mundial, perderam não só a vida, mas a identidade, completamente desfigurados por obuses, gás e congêneres. Em 1920, dois anos depois do fim do conflito, o recruta Auguste Thin viu-se encarregado de escolher, entre oito caixões de carvalho que continham corpos exumados de diferentes frentes de combate, aquele que passaria sem nome à história. Surpreso, ele usou de um expediente da numerologia, por assim dizer. "Tive uma ideia simples: como eu pertenço à sexta divisão, e a soma dos algarismos do meu batalhão, 132, também dá 6, tomei a decisão de escolher o sexto caixão ali enfileirado", explicou Thin na ocasião. Quantos desses soldados desconhecidos não foram fotografados e filmados, a maioria deles sorridente, dentro da imensa ferida que se abriu no território da França, entre 1914 e 1918? O par de trincheiras opostas, franco-britânica e alemã, prolongava-se desde o Mar do Norte até a fronteira com a Suíça, em quase 800 quilômetros de extensão, com ramificações na retaguarda e cercas de arame farpado de um lado e de outro, separadas pela "terra de ninguém". Cem anos depois, o solo ainda guarda cicatrizes, seja de ruínas de trincheiras preservadas, seja dos buracos causados pela artilharia pesada, erosões circulares que comporiam uma paisagem lunar, não estivessem hoje cobertas de vegetação. Falou-se em sorrisos, e esse é um dos espantos provocados por imagens captadas pelas câmeras rudimentares de um século atrás. Várias delas inéditas, tais imagens puderam ser vistas na série Apocalypse, um documentário espetacular sobre a Grande Guerra que mesmerizou os telespectadores franceses, no início deste ano. Do que riam os poilus, ou "peludos", como eram chamados no país os soldados cuja hirsutez era o primeiro uniforme? Talvez de nada, por ordem da máquina de propaganda. Talvez porque estivessem condicionados a rir diante das lentes. Talvez da própria tragédia de estarem ali, na trincheira, por anos a fio, como personagens fatalistas de um enredo urdido pelos palacianos que engendraram alianças entre potências e alimentaram ambições coloniais — porque, se a II Guerra significou a luta entre o Bem e o Mal, a Primeira não passou de uma carnificina prescrita em tratados e negociações secretas, dos quais era difícil, e ainda é, extrair algum sentido, apesar da lógica que lhe aplicam os historiadores. E que tragédia eram as trincheiras! Esqueça-se, por um momento, a literatura que se teceu a respeito delas. O retrato mais objetivo é o fornecido por um poilu como tantos outros, Benjamin Godard: "São acampamentos sórdidos onde tudo é abundante: piolhos, pulgas, percevejos, ratos, exceto o que é útil". E lama, muita lama. Nas salas dedicadas à I Guerra, no Museu do Exército dos Invalides, em Paris, a peça mais pungente é um uniforme enlameado de um soldado morto em ação. A lama invadia os poros da pele, as narinas, os olhos, e as explosões constantes a arremessavam para todos os lados, inclusive para dentro da alma, se nela houvesse quem ainda acreditasse. Homens ocos revestidos de lama, se é o caso de fazer poesia. Atribui-se aos alemães o estabelecimento das primeiras trincheiras, a fim de consolidar a conquista do território tomado aos franceses. O mais provável, contudo, é que a necessidade de proteger-se em campo aberto, e de encontrar um pouco de repouso, tenha sido a causa primeira da abertura dessas imensas fossas por parte de soldados e oficiais no mais das vezes à mercê das forças da natureza e do fogo inimigo, não importa a cor do capacete. No Museu da Grande Guerra, na cidade de Meaux, foram reconstruídos um pedacinho de trincheira alemã e outro francês — reconstrução asséptica, evidentemente. Ambas tinham uma altura de 2 metros, no máximo, e uma largura de cerca de 1,5 metro. As alemãs exibiam, no mais das vezes, paredes de concreto. As francesas eram feitas do próprio terreno, seguras por madeirame frágil. Nas estações chuvosas (e como chove na França, especialmente no norte!), essas últimas desabavam, e era preciso reconstruí-las, num trabalho de Sísifo. Os alemães sempre utilizaram pás para escavar a terra, enquanto milhares de franceses tiveram de usar as próprias mãos. Chegava-se às trincheiras, e elas vinham alimentadas com armas e mantimentos, por meio de corredores subterrâneos — os boyaux, ou "mangueiras", na metáfora em francês — mais estreitos e baixos do que as trincheiras propriamente ditas. Com o perdão da comparação surrada, tais como formigas no formigueiro, fileiras de soldados iam e vinham, geralmente durante a escuridão da noite, carregando mochilas que pesavam até 20 quilos, para não falar das macas com os feridos retirados do front. Os boyaux se estendiam por até 10 quilômetros, e a cada 4 ou 5 metros havia uma bifurcação abrupta, em que eram comuns os choques entre os que seguiam em direções contrárias. Nesse labirinto populoso, podia-se levar até doze horas para alcançar o setor da trincheira para o qual se havia sido designado. A "guerra de posição", com a escavação de trincheiras, impôs-se à "guerra de movimento", após a derrota alemã na Primeira Batalha do Marne, que durou de 5 a 12 de setembro de 1914. O Marne, que corre do leste para o norte de Paris, é um afluente do Sena, e os alemães queriam transpô-lo para tomar a capital francesa. A ameaça ensejou aquela que é considerada uma das primeiras experiências de unidade motorizada — e o meio utilizado foram os táxis. Alarmado com a presença de tropas de vanguarda alemãs demasiado próximas a Paris, o general Gallieni, comandante militar da cidade, requisitou 670 táxis para transportar 6000 soldados destacados para conter esse avanço. O centro da operação era a Esplanada dos Invalides. Cada carro podia transpor cinco homens, ao preço de 300 francos a corrida. Há muita divergência sobre a real efetividade do esforço realizado em dois dias, mas não há dúvida quanto ao impacto psicológico positivo que ele exerceu sobre a população. Dois desses táxis — modelos Renault G7 — podem ser vistos no Museu dos Invalides e no de Meaux. Auxiliados por forças britânicas, os franceses derrotaram os alemães no Marne, e voltariam a fazê-lo na segunda batalha, em 1918. De acordo com as estimativas atuais (um século não foi suficiente para estabelecer com precisão quantos morreram na I Guerra Mundial), o total de mortos e desaparecidos foi de 195.000. O de feridos: 325.000. Uma enormidade incomparável com as baixas da outra batalha a que outro rio, o Somme, mais acima, empresta o nome. A refrega do Somme, em que britânicos e franceses assumiram a ofensiva para tentar empurrar as forças alemãs até a Bélgica, transformou-se no maior desastre militar da história do Reino Unido. Ela durou de 1º de julho a 19 de novembro de 1916. Total de mortos e desaparecidos estimado: 443.000. Total de feridos: 616.000. Entre os britânicos, morreram e desapareceram 206.000 soldados, quase 20.000 deles só no primeiro dia do confronto. É um episódio mais lembrado pelos ingleses do que pelos franceses também por outro motivo. "Em Verdun, os alemães foram os agressores. No Somme, os responsáveis pela carnificina foram os aliados", diz Pierre Miquel, um dos mais renomados estudiosos da Guerra de 14, autor do livro Os Esquecidos do Somme. Ao final, os aliados obtiveram uma vitória de Pirro (e qual não foi?), para recorrer outra vez à mitologia grega. As linhas alemãs foram empurradas ao limite de 64 quilômetros — ou seja, permaneceram em solo francês. A maior vantagem em prol da França é que, para se fortalecerem no Somme, os generais do kaiser alemão retiraram 35 divisões de Verdun, cidade quase na junção das fronteiras com Bélgica e Luxemburgo, palco da batalha mais longa da era moderna — e da qual os franceses se lembram com orgulho não só porque foram os agredidos, como pelo fato de terem vencido sozinhos. Para os alemães, ocupar Verdun tinha um significado especial — foi lá que o imperador Carlos Magno escolheu como brasão a águia de duas cabeças, uma voltada para o oeste e a outra para o leste, a fim de ilustrar a vitória dos francos sobre os saxões, no século VIII. E foi em Verdun que eles tentaram dar um basta à guerra de trincheiras, por intermédio do uso intensivo das tremendas armas made in Germany, tais como os projéteis com gás asfixiante, as bombas incendiárias lançadas de aviões e os canhões de calibre desmesurado, entre os quais o Grosse Bertha ("Grande Berta"), assim apelidado porque era esse o nome da filha do fabricante, o industrial Alfred Krupp. A batalha durou de 21 de fevereiro a 19 de dezembro de 1916, mais do que a de Stalingrado, na II Guerra Mundial. Como escreve Pierre Miquel, no livro Morrer em Verdun, o dado novo ali "é que os homens morreram num campo de batalha à moda antiga, grande como um lenço de bolso. Se o front do Marne tinha uma extensão de 200 quilômetros, em Verdun ele não ultrapassava 25". As crateras ainda visíveis dos mais de 10 milhões de obuses disparados pelos dois lados dão uma dimensão do massacre que resultou em 286.000 mortos e 412.000 feridos. Do lado francês, diz-se que "os mortos tinham a face enegrecida pelo gás, os feridos eram devorados por ratos, os soterrados morriam de asfixia, os abandonados, de sede. Nada de humano parecia sobreviver onde o obus de amanhã trazia à superfície os corpos enterrados pelo obus de ontem". Do lado da Alemanha, não foi muito diferente. Em 1984, o presidente François Mitterrand e o primeiro-ministro Helmut Kohl deram as mãos diante dos túmulos dos soldados em Verdun, para celebrar a reconciliação franco-alemã, formalizada somente em 1953, passados os dois conflitos mundiais. Em 1914, o escritor britânico H.G. Wells escreveu que a I Guerra, na qual pereceriam 15 milhões de soldados, seria "a guerra para acabar com as guerras". Infelizmente, as suas previsões eram mesmo matéria para livros de ficção. Um cálculo publicado pelo jornal italiano La Repubblica mostrou que, de meados de 1914 ao início deste ano, 130 milhões de pessoas morreram em conflitos armados ao redor do mundo. A frase de Wells virou motivo de deboche já em 1919, quando se assinou um tratado humilhante para a Alemanha. "Fizemos uma paz para acabar com toda a paz", disse um militar inglês. Um demagogo austríaco, condecorado com a Cruz de Ferro na I Guerra, usaria a humilhação alemã para enlouquecer uma nação. Na gênese das circunstâncias e do seu ódio à civilização, também havia um 6. Aquele acompanhado de mais dois. 6#8 A CATÁSTROFE – INFERNO DE FOGO E BARRO A brutalidade da guerra de trincheiras era inédita na história dos conflitos humanos. Para os combatentes, tão ou mais desgastantes do que a artilharia inimiga eram o trabalho extenuante e as condições insalubres das valas onde viviam. JERÔNIMO TEIXEIRA "O verdadeiro inferno não é o fogo. O verdadeiro inferno é o barro", dizia um jornal destinado aos soldados franceses. A guerra de trincheiras — modalidade de luta definidora do conflito europeu de 1914 a 1918 — impôs aos combatentes o embate diário de manter a vida em valas cavadas no solo. A chuva podia destruir meses de trabalho de escavadores e construtores. E fogo e barro às vezes faziam uma composição ainda mais infernal: sob bombardeio da artilharia, galerias podiam ruir, soterrando soldados. A trincheira representou uma nova forma de combate, que os estrategistas ainda não dominavam completamente. O alemão Ernst Jünger, que entrou na guerra como cadete e chegou a oficial, observou que a I Guerra Mundial, em seus primeiros anos, foi de "batalhas campais à moda antiga", adaptadas à lógica da trincheira. Os ingleses, aliás, demoraram a aprender que ataques em linha eram suicidas — acabavam todos metralhados ou fuzilados. O trabalho na trincheira era extenuante. Havia sempre uma nova tarefa a fazer: estender arame farpado, cavar novas galerias, consertar o estrago feito por bombas ou pela intempérie. O soldado dormia pouco e mal, e travava uma luta constante contra o frio e a umidade (e contra os ratos). Em todos os exércitos, os oficiais gozavam de privilégios: comiam melhor e bebiam vinho, muitas vezes inacessível para o magro soldo do soldado raso. Mas os tenentes também sofriam com alojamentos insalubres. E morriam nas frentes de batalha. Houve grandes e sangrentas ofensivas, como a Batalha do Somme, mas, por grandes períodos, a situação era estacionária: alemães de um lado, franceses ou ingleses de outro, ao longo das trincheiras, com a "terra de ninguém" entre eles. Na tentativa de conservarem as tropas em atividade, os comandantes periodicamente ordenavam incursões quase sempre inúteis e custosas até as linhas opostas. Na imobilidade, certo equilíbrio era mantido entre oponentes, em acordos tácitos: um não atirava no outro para não sofrer retaliações. O jovem oficial Charles de Gaulle, futuro presidente da França, irritou-se quando seu superior recusou a sugestão de aproveitar uma nova trincheira que chegava até perto dos alemães para abrir fogo sobre o inimigo. "A guerra de trincheiras tem essa desvantagem: exagera esse sentimento em todo mundo — se eu deixo o inimigo em paz, ele não me aborrecerá." Mesmo com esses arranjos conciliatórios, porém, a morte era frequente, por obra de franco-atiradores, cargas de artilharia e ataques de gás. Cadáveres ficavam abandonados nas linhas de arame farpado, pela primeira vez usado em uma guerra. É do lado alemão que vêm as melhores crônicas da brutal vida nas trincheiras, publicadas em 1920 e 1929: Tempestades de Aço, livro de memórias de Ernst Jünger (1895-1998), e Nada de Novo no Front, romance de Erich Maria Remarque (1898-1970), também combatente da I Guerra. Os dois livros descrevem realidades similares: a degradação permanente de botas e roupas úmidas, a morte cotidiana de companheiros, mutilações e ferimentos de guerra. No tom, porém, são obras muito distintas. Remarque fez um libelo contra a guerra: não por acaso, seu livro queimou nas fogueiras públicas feitas pelos nazistas depois de 1933. Nada de Novo no Front teve mais repercussão popular, tanto que já em 1930 foi adaptado para o cinema, em uma produção americana. Jünger, um militar entusiasmado e nacionalista — posteriormente serviu na França ocupada na II Guerra, embora não fosse simpático a Hitler ou ao nazismo —, escreve sobre a violência da guerra com frieza clínica, mas também com fascínio. Ao descrever como soldados alemães rastejavam até as linhas inimigas só para pendurar, no arame, um sino para perturbar os ingleses, Jünger observa: "Eles se divertem com a guerra”. 6#9 A CATÁSTRODE – A CIÊNCIA DA MORTE Pela primeira vez, armas químicas foram usadas em larga escala em um conflito — com a contribuição prestimosa de vencedores do Prêmio Nobel. NATHALIA WATKINS "A vida de Haber foi a tragédia do judeu alemão — a tragédia do amor não correspondido", sentenciou o físico Albert Einstein sobre o químico Fritz Haber, de quem era amigo. Nascido em 1868 em Breslávia, então parte da Alemanha e atualmente território polonês, Haber foi um cientista brilhante com um legado ambíguo. Ele é o inventor de um método de produção de fertilizantes sem o qual não haveria, no mundo, alimentos para dois em cada cinco seres humanos. Como um dos pioneiros das armas químicas, porém, usou os seus conhecimentos para provocar o maior número possível de mortes e dar vantagem à Alemanha nos campos de batalha. O seu patriotismo, segundo a análise de Einstein, era na realidade uma escada para ascender na sociedade alemã e deixar de ser visto como um judeu interiorano. Ainda jovem, aos 24 anos, ele se converteu ao protestantismo. A síntese da amônia, o processo que inaugurou a era dos fertilizantes químicos, é feita a partir da reação do nitrogênio com o hidrogênio. O método patenteado por Haber e Carl Bosch, em 1910, foi descrito à época como milagroso porque equivalia a criar "pão com ar". O feito rendeu-lhe o Prêmio Nobel de Química, em 1918. O equivalente da Paz, obviamente, não lhe poderia ser concedido, pois, quatro anos antes, quando a guerra estourou, ele pusera o Instituto Kaiser-Wilhelm à disposição da máquina de guerra alemã. Sob seu comando, o mesmo nitrogênio do ar usado para incrementar as lavouras foi aproveitado para fabricar explosivos para o Exército alemão, depois que as importações de nitrato do Chile foram bloqueadas pelas forças aliadas. Haber foi além. Em 22 de abril de 1915, ele liderou pessoalmente um ataque em Ypres, na Bélgica, com 167 toneladas de cloro liberadas de 5700 cilindros em direção às trincheiras francesas e inglesas. Levado pelo vento, o gás tóxico deixou 5000 vítimas, entre elas 1000 alemães que não estavam usando proteção adequada. "Os mortos ficaram pretos de uma só vez", descreveu uma reportagem do jornal americano The New York Times, quatro dias depois. Apesar da matança indiscriminada, a experiência com o cloro convenceu as autoridades alemãs a investir em gases letais. Haber foi promovido, por decreto, a capitão. Poucas horas depois de ele receber a patente, sua mulher, Clara Immerwahr, suicidou-se. Clara, doutora em química, se opunha ao uso que o marido estava dando aos seus conhecimentos científicos. O filho de 13 anos a encontrou agonizando com a pistola do pai na mão. No dia seguinte, o capitão já estava no front outra vez. A Alemanha não foi, porém, a primeira nem a única a empregar armas químicas. A França já havia usado gás lacrimogêneo e foi pioneira na utilização do componente mais letal, o fosgênio, com a ajuda de outro vencedor do Prêmio Nobel de Química, François Victor Grignard. Em 1917, começou a ser adotado o gás mostarda, que causava bolhas na pele e cegueira. No fim da guerra, 25% de toda a artilharia continha agentes químicos. Os gases mataram 1 milhão de pessoas e, apesar de terem sido usados por todos, não deram vantagem tática a ninguém. Posteriormente, Haber argumentou que, até então, a Convenção de Haia não proibia o emprego de gases letais, somente de projéteis com substâncias asfixiantes. Normas mais restritivas só entraram em vigor com a assinatura do Protocolo de Genebra, em 1925. Depois da guerra, Haber continuou liderando o instituto, que hoje leva seu nome e está subordinado ao respeitado grupo Max-Planck, até 1933. Apenas com a ascensão do regime nazista, ocorrida naquele ano, ele parece ter enfrentado seus primeiros dilemas morais. Apesar da origem religiosa de Haber, os oficiais nazistas tentaram poupá-lo, mas exigiram que demitisse os cientistas judeus. Ele começou cortando os mais renomados, acreditando que teriam mais facilidade para conseguir outro emprego. Em seguida, procurou trabalho para si próprio na França, na Holanda e na Inglaterra, sem sucesso. Em Londres, encontrou-se com Chaim Weizmann, que mais tarde viria a se tornar o primeiro presidente de Israel, que lhe propôs mudar-se para a Palestina. Haber morreu em 1934 em Basileia, Suíça. Entre as últimas criações de sua equipe estão o inseticida Zyklon e suas variações. Essa contribuição de Haber para a ciência também teve uma finalidade macabra — dessa vez, de maneira involuntária. Anos depois, a SS usou esse veneno nas câmaras de gás dos campos de concentração. Entre os mortos estavam filhos das irmãs e dos primos de Haber. 6#10 A CATÁSTROFE – O CHANCELER DA DISCÓRDIA Por orientação de um ministro de sobrenome alemão, o Brasil tentou se manter neutro, mas não conseguiu. O efeito na guerra foi nulo. No início do século XX, a economia brasileira dependia fortemente da venda de café nos mercados internacionais. Em 1914, a Bolsa de Hamburgo, na Alemanha, detinha a segunda maior participação no comércio cafeeiro brasileiro no exterior, perdendo apenas para Nova York. Nesse contexto, envolver-se num conflito que reunia alguns de seus principais mercados parecia péssima ideia para o país. Com a eclosão da I Guerra, o Brasil optou por adotar uma posição de neutralidade. Em 1917, foi obrigado a assumir uma posição quando seus navios foram torpedeados pelos alemães. O envolvimento do Brasil na guerra ganhou ares de conspiração porque, desde 1912, o ministro das Relações Exteriores era Lauro Müller, um descendente de alemães. Müller foi acusado, injustamente, de ser um germanófilo a favor dos interesses da pátria de seus pais. Nascido em Itajaí, em Santa Catarina, ele era apaixonado pelo Brasil. Frequentou a Escola Militar no Rio de Janeiro e recebeu o título de engenheiro. Foi ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas do presidente Rodrigues Alves e governador do seu estado. No Itamaraty, substituiu ninguém menos que o barão do Rio Branco, o patrono da diplomacia brasileira. Na função de chanceler, Müller cumpriu com louvor as medidas necessárias para a manutenção da posição de neutralidade adotada pelo Brasil. Partiu dele a ordem para o monitoramento de estações de rádio clandestinas a serviço das nações em guerra. Dos representantes diplomáticos dos aliados, em especial os ministros da Rússia e da França, Müller recebeu elogios sobre a correção com que conduziu a situação. Quando sua fidelidade à pátria foi contestada por jornais e alimentada por Rui Barbosa, então presidente da Academia Brasileira de Letras, ele respondeu com a célebre frase: "Quem nasce no Brasil é brasileiro ou é traidor". Em 11 de abril de 1917, sete dias depois de o navio a vapor Paraná, carregado de café, ser torpedeado, o Brasil rompeu relações diplomáticas com a Alemanha. As manifestações contra alemães se espalharam pelo país. Acuado, Müller entregou a sua demissão em maio. A guerra à Alemanha foi declarada pelo presidente Wenceslau Braz em outubro, depois que mais um navio mercante, o Macau, foi destruído na costa entre a França e a Espanha. O governo ordenou que fossem fechadas associações e escolas alemãs. Tímida, a contribuição do Brasil para os aliados incluiu o envio de uma missão médica para Paris e de uma pequena divisão da Marinha para patrulhar rotas do Atlântico no litoral africano. Na França, os médicos trabalharam mais com a gripe espanhola do que com feridos de guerra. A esquadra na África foi um fiasco. As embarcações estavam obsoletas e os marinheiros brasileiros foram atacados não por alemães, mas pela gripe. Dos cerca de 1500 tripulantes, 90% ficaram doentes e mais de 100 morreram. TATIANA GIANIN 6#11 A CATÁSTROFE – CADEIA DE INSUCESSOS Sem a Grande Guerra, a revolução comunista na Rússia não teria triunfado; sem ela, não haveria Stalin e, sem ele, não teria surgido Hitler. O mundo é pequeno. Os dois senhores que ilustram estas páginas são personagens históricos conhecidos, Vladimir Lenin e Leon Trotsky. São revolucionários russos. Eles depuseram a família imperial russa e mandaram matar seus integrantes, homens, mulheres e crianças. Consolidaram seu poder com base no terrorismo contra os adversários políticos e criaram a União Soviética, experimento comunista que durou 74 anos, implodido em 1991 pela força destruidora de suas próprias contradições. Lenin e Trotsky talvez não tivessem saboreado a vitória de sua revolução, pelo menos no ano em que ela ocorreu, 1917, se os temíveis U-Boats alemães houvessem poupado de seus torpedos os navios de bandeira americana. Mas em 1917 os submarinos alemães estavam atacando qualquer coisa que flutuasse e estivesse ao alcance de suas armas. Os Estados Unidos então decidiram reagir ao afundamento de seus cargueiros. Mas o mundo é pequeno mesmo, porque não bastaram os navios afundados. O que realmente convenceu os Estados Unidos a mandar tropas ao outro lado do Atlântico foi o hoje famoso Telegrama Zimmermann. Era um telegrama cifrado despachado pelo ministro do Exterior do Império Alemão, Arthur Zimmermann, a seu embaixador no México. Interceptada e decifrada pelos britânicos, a mensagem telegráfica continha uma proposta do kaiser Guilherme II ao governo mexicano. Em troca de o México declarar guerra aos Estados Unidos, a Alemanha lhe garantiria a posse dos estados americanos do Arizona, Texas e Novo México. O Telegrama Zimmermann apressou a entrada dos Estados Unidos na guerra. Para Guilherme II, seria possível vencer a Rússia se não fosse preciso enfrentar os americanos. Fazer as duas coisas era impossível. Com a mobilização das tropas americanas sob o general John Pershing, os alemães viabilizaram alegremente a volta do exilado Vladimir Lenin para Moscou, sabendo que sua bandeira de luta seria "Paz e terra". Vitorioso, Lenin negociou a paz com a Alemanha, mas já era tarde para salvar o regime do kaiser. A guerra estava perdida para os alemães. A história mal começava para os revolucionários russos. Livres das pressões da guerra externa, os bolcheviques trataram de solidificar internamente seu poder. A máquina de propaganda comunista mundo afora propagava a mensagem de paz — que, incrivelmente, duraria até a Operação Barbarossa, nome-código para disparar a invasão da União Soviética, iniciada em 22 de junho de 1941. A propaganda soviética era reverberada no Ocidente por intelectuais mesmerizados pela utopia de um mundo sem classes. A crença religiosa no que emanava de Moscou cegou inúmeros intelectuais para a realidade do que ocorria dentro das fronteiras da União Soviética: totalitarismo implacável com os dissidentes, censura, controle pelos agentes do Estado de todas as atividades artísticas e culturais, assassinatos em massa. Inúmeros estudiosos do período que transcorreu entre o fim da Primeira e o começo da II Guerra dão conta de que a força da propaganda comunista pela paz impediu que a Franca se armasse adequadamente, tornando-se presa fácil para a máquina de guerra de Hitler. Mesmo na Inglaterra — onde Winston Churchill, muitos anos antes de se tornar primeiro-ministro, já vislumbrara a perversidade nazista — o rearmamento foi boicotado sistematicamente por influência dos comunistas. Nos Estados Unidos, essas forças foram contrárias à entrada americana na II Guerra, sob o pretexto de se tratar de uma "guerra europeia". Assim que Hitler invadiu a União Soviética, instantaneamente o sinal se inverteu, e as mesmas vozes passaram a pregar a imediata abertura de uma "terceira frente" na Europa. O comunismo, Marx já alertara, não sobreviveria em um único país. Mas o pragmatismo dos líderes soviéticos mostrava que se deveria dar prioridade à consolidação do poder e à integridade das fronteiras da Rússia. Esse foi o caminho com a morte de Lenin e a ascensão de Josef Stalin, seguida do exílio de Leon Trotsky, seu opositor. Trotsky foi assassinado no México, em 1940, por Ramón Mercader, a mando de Stalin, que já eliminara os quatro filhos, genros, noras, netos e outros parentes próximos do rival. Se o internacionalismo podia esperar, a Alemanha depauperada e humilhada do pós-guerra fornecia um caldo de cultura ideal para o avanço do stalinismo. Hitler teve no anticomunismo uma plataforma mais ampla do que o antissemitismo. "Fur ein Marxismus frei Deutschland" ("Por uma Alemanha livre do marxismo"), berrava Joseph Goebbels, ideólogo e futuro ministro da Propaganda do regime nazista. Sem a Grande Guerra, não haveria Stalin; e, sem ele, não teria surgido um Hitler. 6#12 A CATÁSTROFE – O VAGÃO DA REVANCHE O carro de trem 2419D — usado na rendição da Alemanha, em 1918, e da França, em 1940 — é o elo simbólico entre as duas grandes guerras. O vagão 2419D, da companhia francesa Wagons-Lits, era um carro-restaurante que, durante a I Guerra, se converteu no escritório sobre rodas do marechal francês Ferdinand Foch na floresta de Compiègne, 80 quilômetros ao norte de Paris. Equipado com telefones, um mapa da linha de frente e uma grande mesa com oito lugares, foi dentro dele que a delegação germânica aceitou as condições de rendição impostas pelos aliados. Na manhã do dia 8 de novembro, Foch, que perdera o único filho e o genro na guerra, recebeu no 2419D um grupo de alemães liderado pelo diplomata Matthias Erzberger. Os franceses exigiram que eles deixassem seus automóveis a 50 quilômetros dali e embarcassem em outro vagão histórico, que havia pertencido ao imperador Napoleão III, derrotado na guerra franco-prussiana. Entre as 34 exigências dos aliados para o armistício estavam a desmobilização do Exército alemão, a evacuação em poucos dias dos territórios conquistados e a libertação do mais de 1 milhão de prisioneiros franceses, britânicos e italianos. A Alemanha também teria de entregar aos aliados todo o ouro e o dinheiro que haviam sido saqueados, além de seus submarinos e suas armas mais pesadas. Foch informou a Erzberger que ele tinha 72 horas para obter o consentimento de Berlim. Na madrugada do dia 11 de novembro, Erzberger e sua delegação voltaram ao trem. Depois de pequenas concessões feitas pelos franceses, o acordo foi assinado. O troco foi dado em junho de 1940, quando a Alemanha nazista ocupou a França nove meses depois do início da II Guerra Mundial. O ditador Adolf Hitler ordenou que os termos do armistício para os franceses fossem apresentados no mesmo vagão em que os alemães assinaram sua rendição na guerra anterior. Ele queria devolver aos franceses a humilhação sofrida 21 anos antes pelo exército ao qual pertencera (veja a reportagem na pág, 94). O 2419D foi então removido do memorial de Compiègne, onde estava instalado, e levado para o mesmo lugar onde ele se encontrava na ocasião do armistício de 1918, a poucos metros dali. Hitler permaneceu dez minutos no vagão. Ele ouviu Wilhelm Keitel, marechal das suas Forças Armadas, lendo para os franceses os duros termos da rendição, entre eles o que mantinha os prisioneiros de guerra nas mãos dos alemães e, em seguida, o vagão foi levado para Berlim para ser exibido como um troféu. Acredita-se que o carro tenha sido destruído nos anos seguintes durante os bombardeios aliados. Desde 1950, o Museu do Armistício de Compiègne abriga o vagão 2439D, da mesma série de fabricação do carro histórico. TATIANA GIANINI 6#13 O LEGADO – O MAJOR E O PEQUENO CABO Winston Churchill e Adolf Hitler poderiam até ter se batido na Frente Ocidental. O inglês era major dos granadeiros. O alemão era cabo. A cada um a guerra afetou diferentemente. Eles nunca estiveram frente a frente. Em 1932, durante uma viagem à Alemanha, Winston Churchill recebeu, por intermédio de um diplomata, a informação de que Adolf Hitler gostaria de conhecê-lo. Marcaram o encontro. Hitler não deu as caras. Mais tarde Churchill escreveu: "Foi assim que Adolf Hitler perdeu a chance de me conhecer". O inglês sempre olhou o líder nazista de cima para baixo. Como primeiro-ministro inglês na II Guerra Mundial, Churchill raramente citava Hitler pelo nome. O alemão era tratado simplesmente de corporal (cabo), graduação máxima que Adolf Hitler conseguiu na I Guerra Mundial, conflito em que eles tiveram experiências distintas. Churchill caminhava para os 40 anos e já conquistara prestígio político e fama por sua participação, sempre com lances espetaculares, nas campanhas militares inglesas. No Afeganistão, teve seu batismo de fogo. Na África do Sul, fugiu da prisão e teve a cabeça posta a prêmio durante a Guerra dos Bôeres (aliás, fruto de bem arquitetada intriga dos alemães, que insuflaram os habitantes de origem holandesa contra os ingleses). Na retomada do Sudão, participou da última carga de cavalaria da história, durante a Batalha de Omdurman, em que as tropas mahdistas foram derrotadas. Adolf Hitler tinha 25 anos quando a I Guerra começou. Parece ter sido um combatente valoroso. Foi ferido duas vezes, recebeu condecorações e a promoção a cabo. Quando a guerra acabou, estava internado em um hospital de campanha tratando-se de uma cegueira temporária por exposição ao gás mostarda na frente oeste, em território belga. Teoricamente, Churchill e Hitler até poderiam ter se batido pessoalmente nas trincheiras. Como comandante militar supremo do nazismo na II Guerra, Hitler se impunha aos generais quanto a questões da Frente Ocidental sob a alegação de ter conhecido pessoalmente aquela região como soldado na I Guerra. Churchill andou por perto quando foi mandado para a França no posto de major de um regimento de granadeiros. Relatos de seus contemporâneos dão conta de que Churchill detestava "o silêncio, o chá e o leite condensado" do quartel-general e fez de tudo até ser transferido para a frente de combate, onde "podia saborear duas coisas que apreciava bastante: aventuras e uísque". O armistício chegou sem grandes alterações para Churchill, mas a I Guerra já o marcara para sempre pelo talvez, se não único, seu mais retumbante fracasso. Churchill foi parar na Frente Ocidental para tentar recuperar seu prestígio, perdido junto com o cargo de ministro da Marinha por ter sido mentor intelectual do fracassado ataque de forças marítimas britânicas, russas e francesas contra posições turcas (o Império Otomano era aliado dos alemães na guerra) no Estreito de Dardanelos. Ao cabo de onze meses de combates com pesadas baixas para os dois lados, os britânicos e aliados se retiraram sem ter conseguido estabelecer sequer uma cabeça de ponte em território inimigo. Durante anos, uma maneira segura de aborrecer Churchill era lembrá-lo de Dardanelos. O fracasso deixou-o para sempre descrente de operações em desvantagem numérica, baseadas apenas na surpresa e no uso de comandos e forças especiais. Quando lhe tiraram as vendas no hospital, Hitler recuperou a visão, mas perdeu o rumo. Ele não conseguia conceber a vida fora da rígida disciplina militar. Sentia falta do companheirismo forjado nas batalhas. A organização militar, os ritos e protocolos, a hierarquia e o simbolismo marcial do nazismo nasceram em parte da nostalgia da caserna de Hitler. Em Grandes Homens do Meu Tempo, coletânea de artigos em que avalia seus contemporâneos, Churchill dedica espaço a Hitler como ele era visto em 1935, dois anos depois de chegar ao poder na Alemanha: "...o mundo vive na esperança de que o pior tenha passado e que ainda possamos ver em Hitler uma figura mais moderada, em tempos mais felizes". Em 1937, esse contido otimismo já se transformara em desconfiança com "Herr Hitler", e Churchill estava entre os que mais se batiam pelo rearmamento da Inglaterra e contra qualquer diálogo com os nazistas, que via como o maior perigo já enfrentado pela civilização ocidental em todos os tempos. 6#14 O LEGADO – A ECONOMIA DA PAZ O economista inglês John Maynard Keynes previu que a punição excessiva à Alemanha derrotada teria efeitos desastrosos para a Europa. GIULIANO GUANDALINI Era 10 de janeiro de 1919 quando o economista John Maynard Keynes se instalou no Hotel Majestic, a três quadras do Arco do Triunfo, em Paris, bem como outros integrantes da missão inglesa que, a partir da semana seguinte, tomariam parte nas negociações dos acordos pós-armistício. Então com 35 anos, Keynes foi indicado para a delegação por seu talento para administrar finanças, demonstrado nos anos de guerra como funcionário do Tesouro. Cinco meses depois, antes da assinatura do Tratado de Versalhes, renunciou ao seu posto e abandonou a comitiva britânica. Ele discordava do rumo das conversas nos termos estabelecidos pelos vencedores, sobretudo no que dizia respeito às exigências do primeiro-ministro da França, Georges Clemenceau. Para Keynes, a imposição de uma "paz cartaginesa" (uma referência à vitória de Roma na Segunda Guerra Púnica, no século III a.C., que não deixou pedra sobre pedra em Cartago) não prostraria apenas a Alemanha, como era o intuito deliberado da França, mas levaria toda a Europa Central à ruína econômica e à instabilidade política. Keynes expôs mais claramente suas ideias e as razões de sua revolta no brilhante e panfletário As Consequências Econômicas da Paz, publicado no fim de 1919, um best-seller instantâneo na Europa e nos Estados Unidos. Com o livro, Keynes perdeu prestígio no governo, mas ganhou fama. Anos mais tarde, o economista foi tido como visionário por ter antecipado que o Tratado de Versalhes trazia consigo as sementes para a emergência do radicalismo político vingativo — o nazismo — e a eclosão de um novo confronto bélico — a II Guerra. Para ele, ao punir a Alemanha e a Áustria a ponto de impossibilitar a recuperação de sua economia, punha-se em risco o futuro da própria Europa. Todo o progresso e o conforto material dos europeus ocidentais no pré-guerra só foram possíveis, argumentava, pela integração do continente e pelo avanço da indústria e do comércio. Com a Europa Central arrasada, não haveria Europa. Pelo tratado, a Alemanha, além de pagar reparações financeiras aos aliados, era obrigada a abrir mão de todos os seus grandes navios de carga e a entregar suas principais minas de carvão. Bens particulares e privados de cidadãos alemães em outros países foram confiscados — algo que, como notou Keynes, não ocorrera "em nenhum outro acordo de paz recente". O país seria tolhido de suas três principais fontes de riqueza: a indústria metalúrgica associada à exploração do ferro e do carvão, o comércio externo e o sistema de transporte. Para Clemenceau e a sua França, em decadência e já inferior em população e em tamanho da economia em relação à Alemanha, Versalhes representava a oportunidade de fazer "o relógio do tempo retroceder a 1870". Keynes dizia escrever como europeu, em defesa do continente, e não sob a ótica dos interesses ingleses. Posteriormente, alguns historiadores refizeram as contas e concluíram que ele havia exagerado, pois seria, sim, possível para a Alemanha suportar os pesados termos do acordo. Tanto é assim que o país se levantaria, ainda mais poderoso, poucos anos depois. Outros estudiosos lembraram a simpatia e a admiração de Keynes pelos alemães — em particular pelo advogado Carl Melchior, braço-direito do banqueiro alemão Max Warburg, com quem manteve um relacionamento amoroso em meio às negociações — ao mesmo tempo em que nutria um certo desprezo pelos franceses. Pode-se dizer ainda que ele pouco se preocupou em registrar o estado de destruição em que se encontrava a própria França. Mesmo assim, não há dúvida de que, na essência de seus argumentos, Keynes foi profético. Ele previu inclusive a desvalorização do dinheiro que levaria à inflação acelerada na Europa e em particular na Alemanha, onde a "circulação de moeda era dez vezes mais elevada em relação ao que era antes da guerra", como resultado dos gastos superiores ao fluxo de novas divisas. A hiperinflação da República de Weimar, nos anos 20, quando os preços chegavam a dobrar a cada dois dias, é até hoje o maior trauma econômico da Alemanha — e também uma das razões para a ascensão do nazismo. "O tratado não inclui nenhuma provisão para que a Europa se reabilite", observou Keynes na obra. Vinte anos depois, as tropas nazistas marcharam sobre a Polônia, deflagrando a II Guerra Mundial. Entre um conflito e outro, a Europa viveu os dias difíceis do protecionismo, da estagnação do comércio e da economia, do desemprego, da inflação e da pobreza. Depois de As Consequências Econômicas da Paz, Keynes aprofundou sua análise sobre questões monetárias e cambiais com a publicação de Tratado sobre a Reforma Monetária, de 1923, e, em 1930, Tratado sobre o Dinheiro. A experiência com a Grande Depressão dos anos 30 o levou a aprofundar o estudo dos ciclos econômicos e a defender, mais vivamente, a ação de políticas públicas para o combate ao desemprego. Sua contribuição para a economia moderna chegou ao ápice com a Teoria Geral do Emprego, dos Juros e do Dinheiro, de 1936, o seu trabalho mais influente e até hoje um dos pilares da macroeconomia. Quando a II Guerra começou a chegar ao fim, Keynes não poderia deixar de ser ouvido. Alguns dos principais pontos defendidos em As Consequências Econômicas da Paz foram contemplados nos acordos de Bretton Woods, como o incentivo à recuperação comercial e abertura dos mercados, o reescalonamento das dívidas entre aliados e o equilíbrio monetário e cambial. Em suma, o incentivo para a reabilitação. Keynes, que também influenciou os acordos do novo armistício, intuíra que o vencedor magnânimo lideraria o mundo pós-guerra. O Plano Marshall de reconstrução da Europa, patrocinado pelos Estados Unidos, nasceu dessas ideias. Dessa vez, os vitoriosos não buscaram impor uma nova paz cartaginesa — e a Europa prosperou como nunca. 6#15 O LEGADO – ELES DEVEM? QUE PAGEM Os empréstimos americanos foram decisivos na vitória aliada. Já a intransigência em cobrar os débitos aprofundou o drama econômico. Os Estados Unidos, quando se uniram às forças inglesas e francesas em abril de 1917, não eram uma potência militar. Ainda assim, o país foi decisivo para a vitória aliada porque possuía em abundância um recurso essencial e já escasso àquela altura na Europa: dinheiro. O governo captava dólares vendendo títulos aos cidadãos americanos, os chamados Liberty Bonds, pagando juros de 5% ao ano, e emprestava aos europeus. A operação foi possível pela aprovação da lei Liberty Loan ("empréstimo da liberdade"), aprovada, em abril de 1917, no governo Woodrow Wilson. Com a Europa destroçada, as empresas dos Estados Unidos faturavam alto exportando roupas, munições e alimentos para as nações aliadas. O total devido pelos europeus somava, ao fim de 1918, 10 bilhões de dólares. Ajustada apenas pela inflação, a dívida equivaleria, hoje, a 160 bilhões de dólares. Tão logo os canhões cessaram, ficou evidente a dificuldade de os europeus quitarem os débitos, ao menos nos termos originalmente contratados. A Inglaterra, por exemplo, devia 4 bilhões de dólares aos americanos. Como honrar o pagamento, sendo um país exportador, depois de boa parte de sua Marinha Mercante ter sido afundada pelos alemães? A França tomou emprestados 3,3 bilhões de dólares dos Estados Unidos e 1 bilhão dos ingleses. Suas cidades e fábricas haviam sido arrasadas, e 1 milhão de sua população masculina adulta morreu no conflito. O país só queria começar a pagar depois que recebesse as reparações impostas aos alemães. A recuperação econômica era dificultada sobremaneira pelas barreiras protecionistas erguidas no pós-guerra, inclusive pelos americanos. Sem contar com os dólares das exportações, os europeus argumentavam que ficava ainda mais difícil pagar as prestações de seus débitos. Em rodadas de negociações com os americanos, propunham o perdão de ao menos parte das dívidas, e que o restante fosse cobrado com juros mais baixos. Alguns políticos nos Estados Unidos compreendiam as agruras europeias e até sugeriram um alívio, mas a ideia não prosperava porque não tinha chance de passar no Congresso. Os legisladores e os candidatos à Presidência temiam a rejeição dos eleitores. A França usou essa situação para justificar o confisco das minas alemãs do Ruhr. Em 1922, chegou-se a selar um acordo para reduzir os juros, mas sem perdão dos valores como pediam os europeus. Emblemática da intransigência americana é a frase atribuída ao presidente Calvin Coolidge (1923 a 1929): "Eles contrataram o dinheiro, não?". Se devem, que paguem. Em vez de Tio Sam, os europeus passaram a chamar os americanos de "Tio Shylock", numa referência ao agiota da peça O Mercador de Veneza, de Shakespeare. O inglês Winston Churchill, ministro de Munições no fim da guerra, afirmou em seu livro de memórias que as dificuldades para pagar as dívidas e reparações agravaram o colapso econômico, postergaram a recuperação e inflamaram ódios. "Os europeus deveriam cozinhar em seu próprio molho", escreveu Churchill. Os Estados Unidos, em contrapartida, viviam uma das fases mais prósperas de sua história, os Roaring Twenties. Logo, entretanto, a euforia americana ruiria com o crash na Bolsa de Nova York, em 1929, e a Grande Depressão de 30. A crise se espalhou por todo o mundo, prostrando de vez a Europa — e a maior parte das dívidas nunca foi paga. Como sentenciou o historiador escocês Niall Ferguson: "A Grande Depressão destroçou o Tratado de Versalhes". Ou seja, precipitou a II Guerra. G.G. 6#16 O LEGADO – TRAGÉDIA SOBRE TRAGÉDIA No fim da guerra, a gripe espanhola, que se espalhou pelo mundo, matou principalmente jovens — e causou um vazio demográfico. Em sua última edição de 1918, a revista científica Journal of the American Medical Association (Jama) registrou em seu editorial: "1918 acabou: um ano importante para o fim da guerra mais cruel dos anais da raça humana; um ano que marcou o fim, pelo menos por um tempo, da destruição do homem pelo homem; infelizmente, um ano em que se desenvolveu a mais fatal doença infecciosa, responsável pela morte de centenas de milhares de seres humanos. Durante quatro anos e meio, a ciência médica se dedicou a pôr o homem na linha de frente das batalhas e a mantê-lo lá. Agora, deve-se mudar o foco para combater o maior inimigo de todos — a doença infecciosa". Em maio daquele ano, haviam surgido os indícios de uma manifestação branda de gripe. Ficou conhecida como "febre dos três dias". As primeiras notícias sobre a doença foram dadas pela imprensa da Espanha, país que se manteve neutro na guerra e portanto desfrutava mais liberdade de expressão. "Uma estranha forma de doença, com caráter epidêmico, apareceu em Madri", reportou a agência Fabra. A segunda onda da gripe foi a mais impactante. Entre agosto e setembro, dois meses antes do fim oficial dos combates, o vírus influenza voltou a fazer vítimas — dessa vez fatais. Algumas pessoas morriam poucas horas após os primeiros sintomas. A epidemia foi tão severa que a média da expectativa de vida nos Estados Unidos diminuiu dez anos. Em comparação a outras ocorrências do influenza, cuja mortalidade não passou de 0,1%, a da gripe espanhola chegou a 2,5%. Os jovens, surpreendentemente, eram os mais afetados. Estima-se que a taxa de mortalidade por gripe em 1918 entre pessoas de 15 a 34 anos tenha sido vinte vezes maior do que em anos anteriores. Para os países que já haviam perdido boa parte de sua população masculina jovem nas frentes de batalha, isso teve um efeito demográfico devastador. Calcula-se que a gripe espanhola tenha infectado um terço da população mundial e matado 50 milhões de pessoas, mais que o triplo do que a guerra em si. NATALIA CUMMINALE 6#17 O LEGADO – PALAVRAS NA TRINCHEIRA Expressões criadas ou popularizadas na Grande Guerra e usadas até hoje são a demonstração do impacto cultural daquele evento. "David Beckham colocou Victoria Posh contra a parede, discutiram e ele quase rasgou seu trench coat, mas, pouco antes que a festa acabasse, ele recuperou a calma e, quase na décima primeira hora, impediu que ela, irritada e desorientada, mergulhasse de nariz na piscina. Quem assistiu à cena desde o começo ou caiu de paraquedas nos momentos finais acha que, por pouco, o dia D do casal não teria de ser adiado — ou, quem sabe, cancelado." O trecho acima, totalmente ficcional, poderia passar como um relato bastante razoável de uma briga pré-nupcial do casal Beckliam. Ele foi escrito, porém, apenas para demonstrar como certas expressões criadas ou popularizadas durante e depois da I Guerra Mundial fazem parte do linguajar popular em diversos idiomas. Pela ordem, posh é a sigla em inglês para port-out, starboard-home, que nas viagens de navio dos ingleses para a Índia indicava que na ida a cabine do passageiro estaria a bombordo e na volta a estibordo, garantindo proteção contra os raios diretos do sol na ida e na volta. Mas foi só depois da I Guerra que posh se tornou sinônimo de coisa cara, exclusiva, de acesso apenas aos oficiais de alta patente. "Colocar contra a parede", que atualmente significa pressionar fortemente alguém, originou-se da expressão up against the wall, que, na guerra de 1914-1918, era o termo usado para informar que um desertor ou inimigo capturado seria levado ao paredão e fuzilado. Trench coat é um casaco de trincheira, que foi usado pela primeira vez na I Guerra e se tornou inspiração para inúmeras grifes. "Décima primeira hora" anda meio em desuso, mas já foi uma expressão popular para ilustrar que alguma coisa foi resolvida pouco tempo antes de o prazo se esgotar. "O contrato foi assinado na décima primeira hora." Deriva do momento da assinatura do armistício, que se deu na "décima primeira hora do décimo primeiro dia do décimo primeiro mês" em 1918 (ou seja, às 11 horas de 11/11 de 1918). "Mergulhar de nariz" apareceu na Grande Guerra com o emprego, pela primeira vez, de aviões em operações militares. É a manobra típica que os biplanos faziam para metralhar alvos no chão. "Paraquedas" surgiu com os aviões de combate. "Dia D" é o início de uma operação militar. CICATRIZES DURADOURAS - Não chega a ser o caso do homem à direita na foto, que perdeu o braço na guerra de 1914-1918. Aqueles que perderam os dois braços e as duas pernas só podiam se locomover carregados em uma cesta (basket, ern inglês), o que deu origem à expressão basket case, que significa caso perdido. 6#18 O LEGADO – O MAIOR TESTE DE ABNEGAÇÃO Criada cinco décadas antes, a Cruz Vermelha consolidou na I Guerra a noção de que entidades humanitárias devem ter salvo-conduto para atuar. “Os infelizes feridos recolhidos durante todo o dia estão pálidos, lívidos e enfraquecidos. Uns, especialmente os que foram seriamente mutilados, têm um olhar ausente e parecem não compreender o que se lhes diz, olhando com olhos esgazeados, mas esta aparente prostração não os impede de sentir os seus sofrimentos." O relato acima está no livro Recordação de Solferino, escrito em 1862 pelo banqueiro suíço Henry Dunant. A obra descreve o cenário de uma batalha decisiva da II Guerra de Independência Italiana. Dunant viajara para a Itália para encontrar-se com Napoleão III. Sua intenção era falar sobre negócios, mas, quando deparou com os milhares de feridos, decidiu organizar mutirões para cuidar da saúde das vítimas e alojá-las em abrigos. O sucesso do livro resultou na Convenção de Genebra, em 1864, um ano depois de Dunant e quatro amigos formarem o Comitê Internacional para Ajuda de Feridos. Era o primeiro passo para a fundação da Cruz Vermelha. Nas décadas seguintes, a organização atuou em diversos conflitos europeus, que serviram de preparação para o maior e o mais devastador deles, a I Guerra Mundial. Foi a partir dela que a Cruz Vermelha deixou de ser responsável apenas por fornecer cuidados aos soldados feridos e passou também a lidar com prisioneiros de guerra. A entidade alimentava os presos e lhes dava auxílio médico, organizava sua transferência para o país de origem e entregava-lhes cartas de familiares. Essa experiência serviu para, em 1929, aperfeiçoar as normas internacionais sobre o tratamento dispensado a prisioneiros. Durante o conflito, a Cruz Vermelha era a única entidade com autorização para visitar de forma neutra os campos de batalha de todos os países. O princípio da isenção foi inspirado no trabalho da enfermeira inglesa Florence Nightingale, que, durante a Guerra da Crimeia, em 1854, oferecia cuidado médico aos soldados. Ela acreditava que, quando feridos, eles não deveriam ser classificados como amigos ou inimigos, mas simplesmente tratados. Em 1917, a Cruz Vermelha recebeu o Prêmio Nobel da Paz — o primeiro de três. De lá para cá, de 90.000 voluntários passou a ter 20 milhões, que se equilibram no princípio da neutralidade em um mundo em que os principais conflitos já não são entre exércitos regulares. PIETÀ DA GUERRA - Uma voluntária da Cruz Vermelha trata de soldados feridos na Franca, em 1918. Abaixo, um pôster para a campanha de arrecadação de doações de Natal, em 1917, mostra uma enfermeira segurando um homem ferido em uma maca: "A maior mãe do mundo'' CAROLINA MELO 6#19 O LEGADO – O PÊNDULO DA CULPA A Alemanha já foi a única e solitária culpada pelo conflito, e agora, 100 anos depois, a gênese da tragédia ainda é uma questão que divide as nações. ANDRÉ PETRY Às 11 horas da noite do próximo dia 4 de agosto, os ingleses vão apagar as luzes das casas — é a forma que encontraram para lembrar a escuridão que se abateu sobre a Europa em 4 de agosto de 1914, quando estourou a I Guerra Mundial. Cem anos depois, a data do início do conflito é um dos raros consensos sobre essa catástrofe que marcou a ferro e fogo o século XX: forçou os Estados Unidos a assumir sua posição de líder mundial, abriu caminho para a vitória do comunismo na Rússia, desenhou a geografia explosiva do atual Oriente Médio e criou as condições para a ascensão de Hitler e seu rastro de calamidades — a II Guerra e o holocausto. Antes mesmo de ser disparado o primeiro tiro, as potências europeias já estavam empenhadas em obscurecer sua eventual responsabilidade pelo início do conflito, ainda que fosse preciso recorrer a manipulações e falsificações. Mas, assim que o armistício foi assinado, em novembro de 1918, explodiu outro tipo de disputa: a guerra das narrativas. Cada país acionou seu exército de estudiosos, historiadores e arquivistas para contar o conflito, cuidadosamente aliviando a própria culpa e ampliando a do inimigo. Ninguém queria carregar o fardo da culpa por um desastre que devastara a Europa e ceifara 15 milhões de vidas. Derrotada e com seu território reduzido, a Alemanha foi apontada como a única responsável pelo conflito e "por causar todas as perdas e danos", como afirma o Tratado de Versalhes, assinado sete meses depois do fim da guerra. Nos anos 40, a trilogia do italiano Luigi Albertini (1871-1941) chegara a conclusão diferente: o conflito fora resultado de falhas generalizadas de políticos e diplomatas, e nenhuma nação europeia o planejara ou provocara deliberadamente. Na década de 60, deu-se nova virada interpretativa, e todas as culpas voltaram a cair sobre os ombros da Alemanha. Em sua obra sobre a eclosão da guerra, o historiador Fritz Fischer (1908-1999) diz que a Alemanha imperial, ambiciosa e militarista, buscara o conflito como forma de alcançar o poder mundial. Ao interpretar que o nazismo fora consequência direta da guerra provocada pelos alemães, Fischer deixava concluir que o regime de Hitler não fora uma aberração histórica, mas uma consequência natural do passado imperial da Alemanha. A repercussão foi estrondosa, moldou a identidade alemã e ficou conhecida como "controvérsia de Fischer". Os demais países, com sua consciência alegremente aliviada, não tiveram dificuldade em aderir à tese de Fischer. Agora, com a chegada do centenário da guerra e uma nova fornada de interpretações, o pêndulo da culpa voltou a oscilar — e, outra vez, a Alemanha deixa de ser a única e solitária responsável pela catástrofe. Em seu espetacular Os Sonâmbulos, Christopher Clark, historiador de Cambridge, joga luz mais intensa sobre o papel da própria Sérvia, um Estado pária nacionalista e analfabeto, e da sucessão de equívocos cometidos pelos líderes europeus da época. Ao apontar o dedo para múltiplos responsáveis, Clark informa que a eclosão da guerra "foi uma tragédia, não um crime". Na Inglaterra, mais do que em qualquer outro país, a forma de comemorar o centenário tornou-se assunto politicamente explosivo. Na França, os 100 anos serão uma celebração da paz, sem diferenciar vencedores de vencidos. Em Notre- Dame-de-Lorette, no Pas-de-Calais, será erguido um memorial com os nomes dos 600.000 soldados que morreram nos campos de batalha da região, e os nomes virão em ordem alfabética, sem distinguir a nacionalidade. Na Rússia, a festa é mais simples, pois a I Guerra, historicamente, é vista como mero prelúdio da Revolução de 1917, e só agora começa a ser estudada por sua própria relevância. Na Alemanha, surgiu alguma polêmica. Com verbas 90% menores que as da França e da Inglaterra, o governo alemão preparou uma agenda modestíssima, e a oposição o acusa de renunciar à chance de aprofundar o antimilitarismo. O assunto ferve, porém, entre os ingleses. O governo quer celebrar o centenário como o de uma guerra justa e uma vitória sobre o expansionismo alemão. Lembrando a campanha de recrutamento, mandou imprimir uma moeda em que a figura bigoduda de Horatio Kitchener, então ministro da Guerra, aparece sobre a inscrição "Seu país precisa de você". A oposição é contra. Não quer uma festa de espírito nacionalista, que sirva para justificar outras guerras. Em vez de aplaudir heróis e triunfos militares, prefere celebrar a paz e a cooperação entre as nações europeias, exorcizando o fantasma de novas guerras. Como não teve as maiores baixas do conflito nem foi o único país vencedor, a Inglaterra até poderia dar menor importância ao conflito. Mas os ingleses nunca desprezam o fato de que a interpretação do passado aduba o terreno das ideias do presente. Depois das 11 da noite do próximo dia 4 de agosto, eles voltam a acender as luzes. _______________________________________ 7# COPA 25.6.14 7#1 SHOW COMO NO TEMPO DE PELÉ 7#2 O PESSIMISMO DIMINUIU 7#3 O JOGO DAS CANELADAS 7#4 CADÊ O 4K? 7#5 VAI SER BOM, NÃO FOI? 7#6 O FURA-FILA DIGITAL 7#7 GENTE 7#8 NÃO TEM MAIS SURPRESA 7#9 HUMOR – MENDES PEDREIRA – AGAMENON 7#10 CRAQUES NA REDOMA 7#11 A DÚVIDA COMO HÁBITO 7#1 SHOW COMO NO TEMPO DE PELÉ Em número de gols, vitórias e viradas, este Mundial lembra a época romântica do futebol. A qualidade dos espetáculos tem tudo a ver com o país-sede — apesar, sim, dele mesmo. SÉRGIO RODRIGUES Antes do encerramento da primeira rodada da Copa do Mundo já corria entre os amantes de futebol, presentes ou não no Brasil, o burburinho de que nunca houve um Mundial tão bom quanto este. É cedo para um juízo definitivo, mas o que se viu até agora justifica o entusiasmo. Para quem confia sobretudo na concretude das estatísticas, o fim do capítulo da primeira rodada, na terça-feira 17, apresentava algumas impressionantes: a média de três gols por partida nos dezesseis primeiros confrontos era a maior desde o Mundial de 1958, quando Pelé tinha 17 anos e o Brasil foi campeão pela primeira vez; o número de empates, apenas dois, foi o menor desde 1954; e a quantidade de "viradas", seis, superou a da Copa de 1970, quando por cinco vezes a equipe que começou o jogo perdendo conseguiu sair vencedora. Gols fartos, poucos empates, vitórias suadas — o que mais pedir do futebol? Muito mais, naturalmente, e aí entramos num jogo cujo resultado os números não traduzem tão bem, mas a sensibilidade do torcedor registra infalivelmente. Uma Copa inesquecível precisa de gols bonitos, mais que bonitos, obras-primas da arte de mandar a bola para a rede — como aquele de cabeça de Van Persie, o primeiro dos cinco que a Holanda meteu na Espanha. Precisa de goleadores como o alemão Müller, que marcou três vezes já na estreia. É bom que haja surpresas também, quesito no qual, além da goleada inclemente sofrida pela Espanha em seu primeiro jogo, a derrota do Uruguai diante da Costa Rica teve brilho intenso. Como nada disso ocorre por diletantismo, mas é para valer, também ajuda na receita de um grande Mundial que algum sangue metafórico seja logo derramado, como se viu na eliminação da Espanha pelo Chile no Maracanã — a primeira vez na história em que os detentores do título caíram em sua segunda partida. A toda essa atividade é preciso acrescentar a moldura de torcedores quase sempre pacíficos, mas — numa competição na qual os brasileiros ocupam posição curiosamente discreta — empolgados e ruidosos. Em cenário tão positivo, até aquilo que a Copa ainda não mostrou contribui para engordar suas promessas: embora Neymar já tenha marcado dois gols, uma atuação convincente dos donos da casa é o item mais precioso desse estoque potencial. Mesmo com o Brasil jogando pouca bola, porém, uma semana desta apaixonante Copa do Mundo foi mais que suficiente para vencer o mau humor inicial do público brasileiro com o evento (leia a reportagem na pág. 114). Apesar de todos os erros cometidos na preparação, o Mundial do Brasil já é um sucesso. Cabe a pergunta: por quê? A resposta não deve ser buscada na esfera política, que, inevitavelmente envolvida num torneio esportivo dessa dimensão, passa longe do seu centro de interesse (leia a reportagem na pág. 118). A explicação mora sobretudo dentro de campo, mas não é cristalina. Cultores de esquemas táticos começam a dizer que a Copa de 2014 entrará para a história como aquela que marca a transição da hegemonia do futebol baseado na posse de bola — corporificado pela desditosa seleção espanhola, que trouxe ao Brasil uma cópia pálida de si mesma — para o reinado das equipes que propõem um jogo de contra-ataques rápidos e letais, simbolizado pelo lépido atacante holandês Robben. Nesse entrechoque de estilos opostos estaria a explicação para a vulnerabilidade defensiva da velha escola e para o grande número de gols marcados nos campos brasileiros. Seja como for, nenhuma tese estará completa se não levar em conta um fator ao mesmo tempo óbvio e imponderável: tudo isso se passa no país que tem a seleção mais vitoriosa da história e que, para além do clichê, trata o futebol como paixão e esteio de uma certa identidade nacional. Só aqueles que o cronista Nelson Rodrigues chamava de "idiotas da objetividade" negariam que tal ambiente acaba por influenciar os jogadores, na forma de uma motivação adicional. Na quarta-feira 18, o jornalista Barney Ronay escreveu no diário inglês The Guardian que "as coisas parecem diferentes no Brasil. Elas parecem brasileiras: a grama, a luz, a sensação de estar num país realmente vasto, de longe a maior das nações futebolísticas". Talvez não seja só poesia. Segundo Pelé, toda a equipe brasileira estava especialmente determinada a vencer a Copa de 1966 porque ela se realizava na Inglaterra, país natal do jogo. Deu tudo errado, como se sabe, mas a revelação ajuda a entender o que podem estar sentindo os atletas de todo o mundo no "país do futebol". ELOGIOS, SÓ PARA A QUALIDADE DO FUTEBOL Apenas três meses separam a manchete do jornal inglês The Times ("Caos no Brasil faz a Fifa alertar para a 'pior' Copa do Mundo") e a do site do canal americano Fox ("Abertura da Copa do Mundo no Brasil é um sucesso apesar dos obstáculos"). Após o início do evento, o tom apocalíptico da imprensa internacional deu lugar a reportagens mais ponderadas. As críticas, porém, predominam sobre os elogios. De cada três notícias sobre a organização, duas são negativas. O Wall Street Journal, dos EUA, concluiu que a capacidade de planejamento do Brasil é um caso perdido. 7#2 O PESSIMISMO DIMINUIU As pesquisas mostram que aumentou o apoio dos brasileiros à Copa. O governo comemora, mas não sabe como isso vai se refletir nas urnas. DANIEL PEREIRA E RODRIGO RANGEL O governo temia o impacto da Copa do Mundo nas próximas eleições. Assessores presidenciais e petistas diziam que, se o evento desse errado, dentro e fora de campo, Dilma Rousseff seria a principal prejudicada e perderia votos. Os mais pessimistas chegavam a afirmar que uma eliminação precoce do Brasil decretaria a derrota da mandatária nas urnas. Um exagero, mas também um sintoma de que, até a abertura da competição, a esperança perdia para o medo nos gabinetes de Brasília. Depois de uma semana de jogos, o humor dos governistas mudou radicalmente. Eles ressaltam que o índice de atraso nos voos domésticos, devido à ampliação da estrutura dos aeroportos, é inferior ao padrão internacional. Festejam a baixa adesão às manifestações, sobretudo se comparada com a dos protestos de junho do ano passado. E, de quebra, comemoram o sucesso de público e até a média de gols na primeira rodada, a maior desde a Copa de 1958, na Suécia, quando o Brasil conquistou o primeiro de seus cinco títulos mundiais. "A Copa das Copas" exaltada pelo marketing oficial, segundo os auxiliares mais otimistas de Dilma, já seria uma realidade. Na política, como no futebol, não se deve comemorar vitória antes da hora. A euforia momentânea dos governistas está amparada em pesquisas feitas para consumo interno. Elas mostram que, depois da primeira semana de jogos, o apoio à realização da Copa no Brasil passou de 54% para 66%, enquanto a oposição caiu de 39% para 27%. Já a organização do evento é considerada "ótima ou boa" por 56%, "regular" por 31% e "ruim" por 9%. Esse último percentual era de 20% antes da partida de estreia entre Brasil e Croácia. Outro dado confirma a redução do pessimismo relacionado à Copa. Em 11 e 12 de junho, 33% dos entrevistados afirmaram que a Copa estava sendo pior do que o esperado. Nos dois dias seguintes, foram 21%. Agora, são 17%. Esses números injetaram ânimo na campanha à reeleição de Dilma. Há a esperança de que a Copa inverta — ou pelo menos neutralize — o clima de mau humor reinante entre os brasileiros, principalmente em razão da inflação e do desempenho da economia. Nesta semana, o governo fará novas pesquisas para saber se lucrou, e quanto, com o início da competição. O objetivo é saber se a avaliação positiva da presidente e as suas intenções de voto pegaram carona na satisfação com a Copa. Mesmo as manifestações populares, que eram a principal preocupação do governo na área de segurança, frustraram as previsões mais alarmantes. Em São Paulo, pouco antes da abertura da Copa, black blocs tentaram parar uma estação de metrô num protesto que ficou conhecido menos por seu potencial destrutivo e mais por uma cena inusitada: depois de saber que seu filho engrossava o grupo de mascarados, um pai foi até o local, deu um pito público no adolescente e o levou de volta para casa. Os protestos não chegaram perto dos estádios devido ao cordão de isolamento montado pelas forças de segurança. Além disso, foram minguados. De acordo com a Secretaria Extraordinária de Segurança para Grandes Eventos, desde o dia da abertura da Copa até a última quarta-feira foram registradas em todo o país 105 manifestações. Somadas, elas reuniram 26.000 pessoas — ou seja, uma média de 247 por ato. A maior manifestação, em São Paulo, teve apenas 5000 presentes. "Estávamos preparados para qualquer cenário. O que estamos vendo são grupos menores, com algumas pessoas tentando praticar atos de violência, mas nossas forças estão dando conta do trabalho", diz o responsável pela secretaria, o delegado federal Andrei Rodrigues. O Centro Integrado de Comando e Controle, como foi balizada a base de operações montada em Brasília para coordenar as ações de segurança, registrou 288 prisões na primeira semana de Copa, a maioria por crimes como desacato e dano ao patrimônio público. O reforço no efetivo nas cidades-sede gerou um efeito colateral alvissareiro: a sensação de segurança nesses lugares aumentou. No Rio de Janeiro, apenas no réveillon passado ocorreram mais assaltos a turistas que nas últimas quatro semanas inteiras, incluindo a primeira da Copa. Uma prova de que, quando querem, as autoridades conseguem prover serviços que, geralmente, são de péssima qualidade. Essa sensação de bem-estar se reflete nas pesquisas. Ao responderem sobre o que acompanham no noticiário, 47% dos entrevistados citam resultados e jogadores da Copa. As manifestações e a organização do evento aparecem com 23% e 14% de menções. Para os governistas, a presidente está virando o jogo da Copa no campo da opinião pública, um jogo que, ressaltam, está longe de terminar. São muitos os obstáculos pela frente, dos conhecidos, como as obras de infraestrutura atrasadas, aos imprevisíveis. Na semana passada, foi decretado estado de calamidade pública em Natal devido às fortes chuvas que castigaram a cidade. Nada que impedisse a realização do duelo entre Estados Unidos e Gana, que teve o vice-presidente americano Joe Biden na tribuna das autoridades. Até agora, o maior desgaste para a presidente foram os xingamentos disparados contra ela no Itaquerão. Mas até isso foi usado como trunfo pelos governistas. O ex-presidente Lula aproveitou o episódio para reeditar a estratégia petista de dividir o país entre ricos e pobres, entre "nós" e "eles". Para azar do governo, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, sempre ele, pôs essa cantilena estratégica em xeque: "Tinha muito moleque no metrô gritando palavrão que nada tinha a ver com elite branca". Candidata à reeleição, Dilma não quer ouvir vaias nem xingamentos grosseiros. Para evitar novos constrangimentos, continuará longe dos estádios até a final da Copa, no Maracanã, em 13 de julho. Enquanto isso, ela manterá uma equipe de plantão para identificar focos de problema e debelá-los rapidamente. Tudo para manter a euforia crescente entre os torcedores-eleitores às vésperas da grande decisão de 2014. COM REPORTAGEM DE ADRIANO CEOLIN, DANIEL HAIDAR, ALANA RIZZO E GIAN KOJIKOVSKI 7#3 O JOGO DAS CANELADAS Como os candidatos tentam chamar a atenção do eleitor em meio à enxurrada de gols da Copa? Daquele jeito: fazendo crer que têm algo a ver com o sucesso em campo. PIETER ZALIS E BELA MEGALE A presidente Dilma recebeu as vaias mais longas da história. Uma semana depois, ainda dava para ouvir o eco. Até agora, oposicionistas e governistas se empenham em promover a sua narrativa sobre os apupos e xingamentos dirigidos à presidente no Itaquerão. Para os petistas, Dilma é uma "vítima das elites" que movem uma "campanha de ódio" contra o governo e o PT. Para os tucanos e demais oposicionistas, lá vem o PT de novo desfraldar a bandeira do velho antagonismo entre "nós" e "eles". A temperatura da campanha subiu pela soma de dois ingredientes: a temporada de convenções partidárias está aberta — Aécio Neves já fez a sua. Dilma faz neste sábado e Eduardo Campos no próximo fim de semana — e a Copa do Mundo, centro absoluto de todas as atenções, completou a primeira semana. A guerra de narrativas só vira assunto de primeira grandeza pela dinâmica de uma disfunção nacional: os políticos acham que cutucar o adversário com declarações calculadas é fazer política, e os jornalistas políticos acham que publicar declarações calculadas de políticos é fazer jornalismo. Assim, na semana passada, reeditou-se nova rodada de acusações entre Lula e Fernando Henrique. Um ex-presidente (nem precisa dizer qual) disse que o país queria livrar-se dos "corruptos e ladrões" e o outro (todo mundo sabe qual) retrucou acusando o anterior de ter cometido exatamente aquele crime pelo qual a cúpula do seu próprio partido foi parar na cadeia — comprar votos. Na encruzilhada da subpolítica, Campos, o presidenciável do PSB, conseguiu passar incólume ao dizer que não ficava mais "num projeto comandado por um bando de raposas que já roubou o que tinha a roubar". Aliado de primeira hora do PT, Campos apoiou o governo petista de 2002 até o ano passado. Levou apenas onze anos para perceber que havia um bando de raposas roubando? Travada nesses termos, a disputa oferece tudo aquilo por que o eleitor não tem nenhum interesse — e ajuda a tirar a credibilidade dos partidos políticos e esvaziá-los cada vez mais do papel institucional de canalizar as aspirações dos cidadãos. Os sinais de desânimo saltam aos olhos nas pesquisas de opinião pública: 30% do eleitorado está dividido entre indecisos, votos brancos e nulos, uma massa que não se identifica, pelo menos até agora, com nenhum político, nenhum partido, nenhum conjunto de propostas. Segundo a pesquisa mais recente sobre o assunto, 61% dos eleitores são contra o voto obrigatório. É taxa recorde e um sinal evidente de indiferença política. Desatentos ao humor do eleitorado, os políticos fazem o que sempre fizeram em tempo de Copa do Mundo ou fora dele: tentam se associar ao futebol, uma das melhores expressões do sucesso brasileiro. É coisa antiga. Há quem atribua a derrota brasileira para o Uruguai em 1950 à invasão de políticos nos vestiários antes do jogo, querendo tirar foto ao lado dos futuros campeões e tumultuando a concentração dos jogadores. A ditadura militar (1964-1985) fez de tudo para colar sua imagem à conquista do tricampeonato, em 1970, com Medici erguendo a taça Jules Rimet em Brasília e divulgando seu gosto pessoal pelo futebol. Tostão, craque da seleção tricampeã, resumiu o fenômeno com clareza num artigo publicado recentemente: "Sinto-me, às vezes, incomodado quando escuto que a seleção de 1970 foi o ópio do povo e que foi usada pela ditadura. Todos os governos, de todo o mundo, ditaduras e democracias, como a atual do Brasil, fazem o mesmo, ainda mais em uma Copa no próprio país". Apesar da exploração política sistemática, o futebol não rende votos. Sob a democracia brasileira, a seleção ganhou um título mundial (2002) e o governo perdeu. E, quando o governo ganhou nas urnas (1998 e 2010), a seleção perdeu em campo. Mas organizar uma Copa é uma experiência que pode ter algum reflexo político na medida em que expõe a competência, ou não, do governo para exibir o país ao mundo. Na França, sede da Copa de 1998, a popularidade do então presidente Jacques Chirac aumentou 15 pontos percentuais ainda antes do fim do torneio. Na Coreia do Sul, que sediou o Mundial junto com o Japão em 2002, Chung Mong-joon, organizador do evento no lado sul-coreano, teve momentos de glória nas pesquisas como pré-candidato presidencial. No Brasil, o governo vendeu a Copa como sucesso planetário — a Copa das Copas —, enquanto a oposição apostou que seria uma vergonha mundial. As pesquisas mostram que, antes da estreia do torneio, o eleitorado vinha seguindo essa divisão. Entre os eleitores de Dilma, 67% apoiavam a Copa. Entre os eleitores de Aécio, só 42% aprovavam o Mundial no país. Até agora, a Copa não é nem o sucesso modelar do governo nem o fracasso retumbante da oposição. Mas as pesquisas apontam uma queda no pessimismo nacional. No jogo de prós e contras, os presidenciáveis têm sido cautelosos. Depois da vaia no Itaquerão, Dilma deixou a chanceler alemã Angela Merkel sozinha no jogo em que a Alemanha venceu Portugal por 4 a 0, em Salvador. Mas uma ala do PT, julgando que os xingamentos acabaram sendo positivos para a presidente, quer agora que Dilma volte aos estádios. Aécio pretendia fazer um teste de popularidade indo ao jogo entre EUA e Portugal em Manaus, a convite do prefeito Arthur Virgílio. Depois de confirmar a presença na partida, cedeu aos assessores, que discordavam sobre o risco de ir até lá. Campos viu o jogo do Brasil contra o México na casa de Romário, candidato ao Senado pelo PSB, mas cancelou a ideia de postar fotos nas redes sociais assistindo a todos os jogos do Brasil. Ficou com medo de que sua imagem à frente da TV coincidisse com alguma pancadaria em seu estado, Pernambuco. É o trauma de maio, quando postou sua foto a bordo do jatinho em que viajava para São Paulo no momento em que a população aproveitava a greve da polícia para saquear lojas na periferia do Recife. Os fatos sempre explicam mais sobre a política e os políticos que as declarações calculadas. 7#4 CADÊ O 4K? A promessa era transmitir a Copa em altíssima resolução. No Brasil, só um televisor no Rio fará isso — e em apenas três partidas. Em setembro do ano passado, a Fifa afirmou, por meio de um de seus porta-vozes, Niclas Ericson, diretor do órgão responsável pelas transmissões de TV: "O 4K criará uma experiência visual mais bela e excitante para os telespectadores da Copa". A promessa era exibir boa parte das partidas em 4K, resolução quatro vezes maior que a em Full HD. Isso impulsionou, desde então, 2000 brasileiros a gastar mais de 10.000 reais para ter uma TV 4K em casa, capaz de receber o sinal de qualidade. Até o término da primeira fase da Copa, porém, nenhum jogo terá sido gravado nessa qualidade. O torneio não será transmitido em 4K. Ao menos não pela TV brasileira. A japonesa Sony, fabricante das câmeras que gravam as partidas, trouxe ao Brasil uma dúzia de aparelhos aptos a filmar em 8,3 megapixels — a altíssima resolução exigida pelos televisores da nova geração —, a 30.000 dólares cada um (quinze vezes o preço de um similar de Full HD). Na prática, é possível ver, em detalhes, o movimento do gramado, ou o dos fios de cabelo do atacante na hora em que cabeceia a bola para o gol. O problema: só três jogos serão captados com essas câmeras, todos no Maracanã, no Rio de Janeiro. Um das oitavas de final às 5 da tarde do próximo sábado, 28, que nem terá o Brasil em campo. Outro em 4 de julho, nas quartas de final (novamente sem a seleção). E a final, no dia 13, aí quem sabe com o Brasil. Mas o sinal não irá para as casas brasileiras. Irá apenas para um canal japonês e para uma solitária TV no hall do Shopping Leblon, no Rio, em exibição pública. Quem tem uma TV 4K vai ter de se contentar com a transmissão em Full HD. O plano para exibir a Copa em 4K minguou. Quando os primeiros televisores da nova geração chegaram ao mercado nacional, no ano passado, a ideia era ter toda a Copa em 8,3 megapixels. Diante da decepção nas vendas — apenas 0,02% dos aparelhos de TV comercializados é desse tipo —, a Globo, a responsável pelas transmissões, não se sentiu motivada a aprimorar sua estrutura para suportar o pesado sinal de 4K, que congestionaria a rede atual. O projeto mudou. Até o começo do ano a proposta era transmitir para alguns bares cariocas. Não deu certo e, no início da Copa, veio a decisão final, bem mais modesta: passar três partidas ao vivo no shopping do Rio. Desde os anos 70, quando o rádio foi substituído pela TV como a principal forma de transmitir a Copa, fabricantes lançam televisores de última geração em sincronia com o Mundial. Em 1970, quando a seleção se consagrou tricampeã, a bola da vez eram os aparelhos em cores. Em 2002, o ano do Brasil pentacampeão, chegaram as TVs HD. Na última Copa, em 2010, a sensação eram as 3D. Os modelos em três dimensões não tiveram sucesso, representam dois em cada 100 aparelhos vendidos, e quem comprou um não verá a Copa em 3D (a tecnologia não é usada nas gravações). E em 4K? Agora, a Fifa diz que só em 2022, no Catar — quando já estarão nas lojas as TVs 8K, com o triplo de pixels na tela. CARLO CAUTI 7#5 VAI SER BOM, NÃO FOI? Os gastos dos turistas e da festa dos torcedores favorecem o comércio, mas o legado para a economia não passará de um bem-estar efêmero e com data para terminar. MARCELO SAKATE E BIANCA ALVARENGA Na defesa da realização da Copa do Mundo no Brasil em cadeia nacional de televisão, há duas semanas, a presidente Dilma enfatizou o ganho econômico: "A Copa gera negócios, injeta bilhões de reais na economia, cria empregos". A experiência de outros países demonstra que sediar grandes eventos esportivos, como a Copa e a Olimpíada, não é, em si, garantia de ganhos econômicos duradouros. Diz o polonês Stefan Szymanski, professor de gestão do esporte da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, e coautor do livro cujo título é uma combinação em inglês de futebol (soccer) e economia (economics), Soccernomics: "Os brasileiros não devem esperar um legado significativo. Em geral, projetos relacionados à Copa não produzem impactos relevantes e duradouros". Szymanski dá como exemplo o aumento de turistas estrangeiros no Brasil, cujos gastos não vão chegar a se equiparar às despesas para atraí-los. Com a construção e a reforma de estádios, o governo brasileiro gastou cerca de 8 bilhões de reais. Os brasileiros e os 600.000 estrangeiros devem desembolsar aqui nas quatro semanas da Copa perto de 6,7 bilhões de reais. Nada muito expressivo em relação ao PIB anual brasileiro, de 5 trilhões de reais. Empurrado pelas compras dos estrangeiros em visita ao Brasil, o consumo em bares e restaurantes neste mês e em julho deve aumentar em 3 bilhões de reais, o equivalente a 25% em relação ao mesmo período do ano passado. Adicionalmente, mais de 3 milhões de brasileiros vão viajar entre as cidades-sede, movimentação que também favorece o aumento do consumo. No entanto, como alerta Szymanski, esses números vão acabar confirmando que existe uma tendência de superestimar as projeções. Diz o estudioso polonês: “O que mais vi em eventos anteriores em outros países foram pesquisas com exageros, bancadas por governos e setores interessados, como a indústria da construção civil ou do turismo". Os efeitos da Copa 2014 sobre a aviação comercial brasileira dão razão a Szymanski. A oferta de assentos realmente aumentou 10% nas rotas aéreas entre as doze cidades-sede do Mundial, mas diminuiu nos demais destinos. A explicação vem do fato de que a Copa esfriou a demanda proveniente das viagens a negócios e de participação em grandes feiras, a maioria antecipada ou adiada para depois do apito final na decisão de domingo, dia 13 de julho, no Maracanã. O impacto da Copa sobre a indústria brasileira é francamente negativo. A combinação das paradas nas fábricas durante os jogos da seleção brasileira com a queda nos pedidos explica a decisão de muitos empresários industriais de conceder férias coletivas. Mas não sejamos tão duros, avaliando a Copa apenas por seus efeitos contábeis. Szymanski concorda: "As pessoas amam ver a Copa do Mundo em seu próprio país, e essa sensação de bem-estar compensa". O EFEITO COPA O turismo deverá atrair 6,7 bilhões de reais para a economia - um incentivo bem-vindo, mas modesto para um PIB total superior a 5 trilhões de reais. TURISMO - Mais de 3 milhões de brasileiros e 600.000 estrangeiros circularão pelas cidades-sede. Cada turista do exterior deve gastar, em média, 4150 reais, e o brasileiro, 1355 reais. Nos primeiros quatro dias de Copa, os estrangeiros gastaram 27 milhões de dólares em compras com cartão. EMPREGOS - Estima-se que se criarão 175.000 vagas formais temporárias. No setor de hospedagem e alimentação, serão 37.000 postos, dos quais até 15% podem ser efetivados, especialmente no Nordeste. BARES E RESTAURANTES - O faturamento em junho e julho deve aumentar 25% em relação ao mesmo período de 2013, totalizando 12 bilhões de reais. Nos dias de jogo do Brasil, a expectativa é que haja um crescimento de 70% da receita com as vendas. INDÚSTRIA - Um terço das fabricantes de equipamentos eletrônicos e eletrodomésticos vai parar durante a Copa. Algumas montadoras de carros também programaram férias coletivas. A produção industrial deverá cair nesse período. MICROS E PEQUENAS EMPRESAS - Segundo o Sebrae, desde 2011, já se acertaram contratos no valor de 380 milhões de reais, com a prestação de serviços e o fornecimento de produtos a empresas maiores nas áreas de turismo, varejo, construção civil e vestuário, entre outras. A estimativa é que o montante alcance 500 milhões de reais até o fim da Copa. AVIAÇÃO - As companhias ampliaram em 10% (645.000 assentos) a capacidade entre as doze cidades-sede. Mas a expectativa é que não haja um aumento expressivo no faturamento, por causa da queda no turismo de negócios. SOCCERNOMICS NA COPA 2014 O polonês Stefan Szymanski é coautor do livro Soccernomics e avaliou o impacto econômico em países que organizaram Copa do Mundo e Olimpíada. A conclusão: a economia pouco ganha. Que legado os brasileiros devem esperar da Copa do Mundo? Não muito grande. A Copa e a Olimpíada falham em criar efeitos econômicos relevantes. Os investimentos na construção de estádios, por exemplo, são modestos em relação ao total do orçamento de um país como o Brasil. Mas não existem estudos que estimam o retorno financeiro de bilhões de dólares? São estudos preparados por consultorias pagas pelo governo dos países-sede ou pela indústria da construção ou do turismo. Ou seja, por organizações que terão ganhos com o evento. A maior parte dos estudos independentes mostra que o retorno é pequeno. O que pode ser feito para ampliar esse retorno? Não há muito mais a fazer. Há um ganho para os clubes brasileiros. O público nos campeonatos nacionais sobe de 15% a 20% nos cinco anos seguintes à disputa da Copa. Ela pode aumentar o apelo do campeonato brasileiro no resto do mundo. Mas não muito além disso. Existe alguma outra forma de benefício? O futebol é o esporte mais popular do mundo. As pessoas amam a ideia de ver a Copa em seu país. Elas desviam a atenção dos problemas do dia a dia. Mas, tão logo os jogos acabem, os brasileiros voltarão a demonstrar a sua insatisfação com tanto desperdício na organização. 7#6 O FURA-FILA DIGITAL Um programa de computador criado por hackers dribla a segurança do site oficial da Fifa e abre um atalho para a compra de ingressos. VEJA testou. Funciona. LESLIE LEITÃO, DO RIO DE JANEIRO Assim que o juiz turco Cuneyt Cakir apitou o final de jogo entre Brasil e México, no Castelão, outro silvo — que poderia ser uma sirene estridente, um toque de despertador ou mesmo a inexpressiva música-tema da Copa — começou a soar em milhares de smartphones e computadores espalhados pelo mundo. Cadastrados em um programa chamado Scorpyn Ticket Scanner, os donos dos aparelhos estavam recebendo alertas com um aviso: às 18h07, a Fifa havia posto à venda uma nova remessa de 667 ingressos de categoria 4 para a última partida da seleção na primeira fase, na segunda-feira 23, em Brasília, contra Camarões. Os cadastrados na artimanha eletrônica ganharam a corrida e deixaram para trás as dezenas de milhares de torcedores que, um tanto decepcionados, colecionam frustrações desde que começaram as vendas de assentos para as partidas da Copa, em agosto do ano passado. O Scorpyn, desenvolvido por hackers, fura a fila digital da Fifa. Dá a notícia de que novos ingressos podem ser comprados com minutos de antecedência em relação aos mortais que só saberão depois — e essa diferença de tempo é garantia de que a compra vingará. No fim da noite e início da madrugada do dia 18, VEJA acompanhou uma transação por meio do Scorpyn. Com o programa baixado, as mensagens de comunicação de novas remessas de ingressos para os jogos selecionados começaram a pipocar. Foram vinte ofertas diferentes à disposição em seis horas. Uma das muitas mensagens, recebida à 0h57, informou que dois bilhetes de categoria 3 estavam à disposição para o duelo Equador x França, no dia 25, no Maracanã. Ao aceitar a oferta, o usuário foi colocado, automaticamente, dentro da página de compra de ingressos da Fifa (veja o quadro ao lado). Rapidamente, a compra foi concluída por 180 reais. No início da tarde do dia seguinte, no posto oficial da Fifa no Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, o ingresso foi retirado (por ter nascido de acesso irregular, foi devolvido à Fifa). Ao mesmo tempo em que VEJA acompanhava a aquisição furando a espera, outro consumidor postou- se diante de um computador para tentar comprar o mesmo ingresso, de mesma categoria, para o mesmíssimo jogo. Não conseguiu. É crime? Do ponto de vista do comprador, não, visto que o sistema usa os dados da Fifa apenas para abrir um atalho — a aquisição em si é 100% legal, dentro das regras estabelecidas pela entidade suíça. Mas há, na largada, um imenso problema: o acesso a um bilhete de Copa do Mundo por meio de um site que não seja o da Fifa joga por terra toda a proteção das informações de quem compra ali e fere o discurso de total segurança da entidade. "Se é possível ter acesso ao banco de dados de ingressos, provavelmente há uma brecha para visualizar também o conteúdo de cadastros de quem compra. É uma falha de segurança seriíssima", avalia um dos dois especialistas em segurança da internet consultados por VEJA nesta reportagem, que pediu para não ser identificado temendo represálias. Criado em 2011, o Scorpyn apresenta seu software como uma ferramenta que permite a digitalização contínua e automática de bilhetagem para verificar, a cada cinco segundos, a disponibilidade desses ingressos para jogos da Copa. Quem atravessou meses tentando comprar ingressos pela internet aprendeu a utilizar o botão F5, que renova as páginas e faz aparecer os bilhetes disponíveis, reiniciando o processo de compra. No caso do Scorpyn, uma vez indicada a disponibilidade, a pessoa é encaminhada diretamente à página imediatamente anterior à compra final, a etapa de colocação de letras e números do captcha, aquele sisteminha chato, com imagem distorcida, de verificação de segurança. Um botão do Scorpyn permite reativar a página, mas, diferentemente do F5, não faz tudo voltar à estaca zero. O consultor de cibersegurança da empresa carioca QG Security, Davidson Veiga, foi outro que analisou o sistema a pedido de VEJA. "Há uma prova cabal de que o programa tem acesso ao conteúdo de informações da Fifa", diz Davidson. Ele se refere, em especial, ao número de bilhetes disponíveis por setor. Na tentativa de comprar um ingresso para determinada partida, o sistema informa o número de assentos existentes para cada setor, informação que não é divulgada oficialmente em hipótese alguma. Na manhã de 13 de junho, por exemplo, um dia antes de a bola rolar para Costa Rica x Uruguai, em Fortaleza, o site oficial informava haver grande disponibilidade de entradas para a categoria 1 e média disponibilidade para a categoria 2. O Scorpyn trazia números exatos: 781 e 103 lugares abertos em cada setor, respectivamente. A conexão do sistema da Fifa que gerência a venda de ingressos para jogos da Copa de 2014 é fornecida por uma das empresas de internet mais respeitadas dos Estados Unidos, a Akamai Technologies, com sede em Cambridge, Massachusetts, que também tem como clientes empresas como Microsoft, Yahoo!, MySpace e NBA, a bilionária liga americana de basquete. Como não há nenhuma relação ou parceria entre Fifa e Scorpyn, é possível afirmar que os hackers tiveram acesso ao sistema que deveria ser seguro e, a partir disso, passaram a ter informações do banco de dados de ingressos da Fifa. O criador do software, cujos registros aparecem no site da empresa godaddy.com, identificou-se como Faisal Saleem, da cidade de Jedá, na Arábia Saudita. Com o apelido Scorpyn78, ele criou, em 25 de fevereiro deste ano, também um tópico de discussão em um fórum de debates chamado Bigsoccer para atender a sugestões e reclamações de usuários do programa desenvolvido para driblar a Fifa. Na manhã do último dia 17, os internautas debatiam sobre a melhor maneira de continuar conseguindo comprar entradas. Um deles, identificado como Rom Antico, que se declara torcedor do Nancy, da França, tentava, às 7 horas da manhã, adquirir entradas para o jogo de quartas de final em Brasília, no próximo dia 5 de julho. Primeiro, reclamou, em tom de brincadeira, da quantidade de avisos que o Scorpyn enviava a cada instante que a Fifa punha ingressos no balcão. "Esse som do alerta vai me levar à loucura", escreveu, para depois ressaltar que estava "rindo alto". Quando conseguiu resolver o problema técnico que enfrentava — silenciar o treco —, anunciou ao grupo a compra de quatro entradas para o jogo que desejava. Dos 68 tíquetes postos à venda naquele momento, Rom pescou quatro e carimbou seu passaporte num dos jogos decisivos da Copa. A Fifa diz que há vários sites criados para tentar adquirir ingressos de maneira privilegiada, mas que "não é possível fazer essa compra por meio de nenhum outro portal que não seja o da entidade". É informação aparentemente correta, porque a compra realmente é finalizada no site oficial. Mas, para os especialistas em segurança cibernética consultados por VEJA, a ferramenta, além de invadir a base de dados cadastrais da Fifa, pode se tornar um perigoso e valiosíssimo instrumento na mão de cambistas. "Depois de instalado o programa, a pessoa passa a receber alertas a todo instante. Cada CPF consegue comprar quatro bilhetes por partida em sete jogos. São 28 ingressos. Pode ter certeza de que teve gente brincando de ganhar dinheiro na Copa", afirma um dos especialistas ouvidos por VEJA. A Fifa sempre mostrou muita preocupação com ingressos falsos (e nessa batalha saiu vitoriosa, com não mais do que trinta falsificações, sempre descobertas, para cada 45.000 tíquetes por jogo). Também fechou o cerco, com o apoio da polícia brasileira, aos cambistas, inclusive os que põem seus tesouros à venda pela internet (um ingresso de França e Equador, este que foi comprado pelo Scorpyn por 180 reais, era vendido a 1300 na última quarta-feira). Houve prisões de bucaneiros de ingressos, mas muitos deles estão por aí. No entanto, os cartolas suíços parecem ter negligenciado o risco de hackers aprontarem uma peça — e o torcedor comum segue perdido, parado na fila digital. O consolo para quem está na espera, confrontado com a esperteza propiciada pelo Scorpyn: se muita gente começar a usar o programa, antes de ele ser (e se for) desmantelado, nascerá uma nova espera eletrônica, e o placar ficará igual ao de Brasil e México, no zero a zero, sem vencedores. O PASSO A PASSO DO PROGRAMA FACILITADOR DE INGRESSOS 1- O comprador faz normalmente seu cadastro no site de aquisição de ingressos da Fifa. 2- Um software chamado Scorpyn Scanner 2014 é instalado num computador com sistema operacional Windows (não funciona com máquinas da Apple). 3- Em uma das abas há a lista de todos os jogos e a quantidade de ingressos disponíveis. É apenas uma referência para escolher as partidas e seguir em frente. 4- Em outra tela, o comprador filtra as partidas que deseja. Seleciona o modo de alerta de ingressos disponíveis, por e-mail ou som. Ao aviso de que há bilhetes, basta clicar em outra aba. Ela leva o usuário direto ao site da Fifa - e já depois das fases iniciais de preenchimento de dados. É um atalho. Nesse momento dá-se a vantagem em relação aos que esperam na fila digital sem usar o truque eletrônico. 5- A derradeira etapa: a compra com cartão de crédito ou boleto, como faria qualquer cidadão, mesmo sem usar o Scorpyn. 6- Com um documento de identidade e o papel impresso com a confirmação da compra, o usuário pode retirar o ingresso num dos postos da Fifa. UM CLÁSSICO JOGO DE EMPURRA As primeiras rachaduras na segurança da Copa do Mundo aconteceram no mais internacionalmente badalado dos palcos, o Maracanã. Na quarta-feira 18, mais de 100 torcedores chilenos aproveitaram a fragilidade de um portão lacrado apenas por uma cinta plástica para invadir as dependências do estádio, uma hora antes da partida entre Espanha e Chile. Na área de imprensa, os arruaceiros quebraram portas de vidro e derrubaram divisórias. Mesmo no gramado houve confusão, com chilenos subindo as pequenas escadas que separam a arquibancada do campo em busca de lugares aparentemente desocupados. Três dias antes, no domingo em que Messi marcou seu primeiro gol no Mário Filho, na vitória da Argentina por 2 a 1 sobre a Bósnia, cerca de trinta argentinos pularam o muro que separa o Maracanã de uma das avenidas que o circundam. Resultado dos dois dias: 87 chilenos e dez argentinos presos. A maioria conseguiu escapar. Os invasores detidos foram autuados em flagrante, mas liberados sob a condição de deixarem o Brasil em 72 horas. A federação chilena de futebol estuda banir os identificados das partidas da liga local. No dia seguinte à confusão, as autoridades prometeram intensificar a segurança no entorno dos estádios, o que já foi possível perceber em outras arenas da Copa, como no Itaquerão, em São Paulo. O discurso é de "integração" de esforços, mas o diretor de segurança da Fifa, Ralf Mutschke, fez questão de dizer que nesse quesito a parte que cabe à entidade é menor; a responsabilidade é do Comitê Organizador Local e das polícias do município e do estado, para não fugir da tradição de um clássico jogo de empurra. Do ponto de vista dos abusados torcedores, embora nenhuma agressão se justifique e eles devam ser punidos, é forçoso ressaltar que reagem por terem sido frustrados na busca inócua de bilhetes que somem nos labirintos eletrônicos do site oficial de vendas da Fifa. 7#7 GENTE JOGOS VORAZES * Um show com e sem bola, o espetáculo do futebol e sua galáxia de personagens estelares parece ter sido escrito por roteirista de seriado americano: uma guinada dramática por episódio. Fora propaganda oficial ensinando brasileiros a ser brasileiros (recebam bem os turistas, seus bobinhos) e os gols abduzidos justamente na partida em que todos mais os queríamos, teve tudo o que se pode desejar: mulheres lindas, poderosas, encrencadas, engraçadas ou tudo isso junto ao mesmo tempo. Sem contar croatas peladões, alemães embaladões e máscaras de Maradona. Ou era ele mesmo cheio de plásticas? * Os indomáveis tabloides ingleses nos deram as wags (acrônimo para esposas e namoradas), e o incontrolável italiano MÁRIO BALOTELLI nos deu a que provavelmente é a mais bela delas, FANNY NEGUESHA. Alguns não concordarão, mas reconhecerão que nenhuma das concorrentes conseguiu um pedido de casamento durante a Copa e talvez poucas tenham saído tão frustradas em seu papel. "Nem no dia do pedido eles puderam dormir juntos." Os dirigentes da Itália não deixam que os familiares fiquem com os jogadores mais do que duas horas durante o jantar", disse o guia Andrea Mereghetti, que cuida das wags italianas. Em Fanny, Balotelli, que é filho de imigrantes ganeses e judeu cultural, como os pais adotivos italianos, encontrou uma parceira igualmente variada: seu patrimônio genético inclui congoleses, belgas, ruandeses e egípcios. Já a graça das chuteiras, uma de cada cor, não foi em louvor do multiculturalismo. Nem do amor. Foi do patrocinador. * Quem mais poderia inventar que foi barrado no Maracanã se não MARADONA? E quem mais pediria a um canal esportivo pagamento não contabilizado, fora algumas chicas, como revelou o redator-chefe de VEJA Lauro Jardim? Rejeitada a proposta, continuou só com o programa que está gravando agora no centro de imprensa no Rio, pago ao nada desprezível cachê de 12 milhões de euros anuais pela televisão venezuelana ("Viva Chávez!", "Viva Maduro!"). E resolveu trazer de Buenos Aires uma das loiras falsas que o cercam, VERÓNICA OJEDA, mãe de seu filho DIEGUITO, à qual até recentemente processava para reaver bens. Outra dessas encrencadas, Rocío Oliva, anda por TVs argentinas dizendo que apanhava dele e outras baixarias impublicáveis. * Não fique brava, fique magra, poderia aconselhar a colegas a primeira-ministra alemã ANGELA MERKEL, que já sofreu sua cota de vaias — imerecidas — em outras latitudes, de ingratos com calos nas cordas vocais de tanto dizer besteira. Aqui, comemorou despatrulhada a Blitzkrieg futebolística da sua seleção e os mais de 10 quilos perdidos por recomendação médica — a poder, o que mais poderia ser?, de disciplina férrea — depois que sofreu um acidente de esqui, em dezembro. A política de austeridade deu tão certo que as roupas de Merkel estão proporcionando uma das melhores sensações que uma mulher pode ter no mundo: dançam no corpo. Além do apoio da chefe de governo, que é autenticamente louca por futebol, a seleção alemã demonstrou ter o melhor programa de relações públicas entre os concorrentes. Mas nem precisava dançar o lepo-lepo, bastava reconhecer de cara a superioridade da Leitkultur da Bahia, onde vive o melhor, o mais belo, o mais artístico e o mais bem colocado povo do mundo. * Diante de argentinas turbinadas, colombianas espevitadas e toda a vasta diversidade biológica feminina local — sem contar a Fanny Neguesha —, nem um biquíni rosa-choque conseguiu restituir COLEEN ROONEY ao lugar que ela normalmente ocupa na hierarquia das wags em terras inglesas. Ela chegou com os filhos Kay e Klay, dezoito malas e a intenção de ficar trancada na suíte de 2630 reais de diária no hotel mais fervilhante do Rio. Viajou de jatinho a São Paulo para assistir à batalha perdida da Inglaterra. * Fortes, tatuados e bem situados, a imagem inesquecível que os jogadores croatas deixam — pelo menos entre admiradoras de futebolistas — foi a de alguns deles, como VEDRAN CORLUKA, brincando ao natural na piscina do hotel onde ficaram hospedados, na Praia do Forte, na Bahia. Quando as fotos, feitas por fotógrafos estrangeiros, circularam, o bravo e bonitão técnico Niko Kovac decretou estado de sítio: nenhum de seus jogadores voltaria a falar com a imprensa porque estavam muito abalados. "Só dois tiraram a roupa; mas isso, na Croácia, é uma coisa cultural. Lá, os homens se beijam no rosto; não têm muito esse pudor", contemporiza o vereador Alexandre Rossi, responsável pela recepção dos croatas na cidade. "Vamos armar uma partida entre eles e as crianças da vila", propõe. Só uma peladinha. RAINHAS DE COPAS Duas rainhas, duas seleções, duas emoções e duas mulheres muito diferentes. No mesmo dia em que o rei Juan Carlos abdicou em favor do filho, agora FELIPE VI, e a seleção espanhola perdeu sua coroa, a nova rainha consorte LETIZIA parecia tensa. Relaxou no dia seguinte e até beijou o marido na histórica cerimônia de ascensão ao trono, mas a ex-jornalista de televisão e republicana esquerdista é considerada mesmo fechada e controladora. Igualmente perfeccionista, mas sorridente e simpática, a rainha MÁXIMA festejou em Porto Alegre com o marido, o rei WILLEM-ALEXANDER da Holanda, a segunda vitória da seleção laranja. Ex-economista do mercado financeiro internacional e discriminada inicialmente na Holanda por ser filha de um ministro da ditadura de ultradireita argentina, Máxima conquistou a boa vontade dos holandeses e sorrisos encantados de visitantes ilustres. Mas fica a dúvida: por quem ela torcerá se a Holanda terçar armas com a Argentina na Copa? * A taça do mundo é dela. Ou quase: GISELE BÜNDCHEN não vai entregar a taça, mas ficará coladinha nela. Sua participação no final apoteótico (ou apocalíptico?) é bancada pela Louis Vuitton, a grife francesa de bolsas e malas que produziu o estojo no qual a taça ficará acomodada. Feito a mão no ateliê de Asnières, tal como o escrínio que envolve o troféu do America's Cup, a mais badalada competição de vela oceânica do mundo, o estojo será apenas conduzido por Gisele. A modelo virá com o marido, o jogador de futebol americano Tom Brady, e receberá cerca de 800.000 reais pela participação promocional. A associação da LV com a Fifa data de 2010. Antes do início da Copa, Gisele posou para várias das revistas de moda mais conhecidas do mundo, incluindo a Elle alemã, em que apareceu envolta no pavilhão pátrio. * O empate com o México deixou muitos brasileiros perplexos, danados da vida ou quase sem palavras. Não a apresentadora LUCIANA GIMENEZ, que tuitou: "Vai uma marguerita?". Confundir o nome da pizza italiana com a bebida mexicana foi embaraçoso? "Errei mesmo. Eu precisava de um ombudsman para o meu Twiter. Mas, se tivesse, ele não ia ser tão engraçado", assume, coberta de razão. Desde que começou a publicar pérolas sobre futebol em sua página, ela ganhou mais 30.000 seguidores. "Eu bem que podia comentar os jogos ao lado de Galvão Bueno", provoca Luciana. Isso é só para avisar a Patrícia Poeta. 7#8 NÃO TEM MAIS SURPRESA No futebol globalizado, é raro encontrar um grande jogador que não tenha enfrentado um craque de outra seleção ao menos uma vez. O resultado: já não há mais o espanto dos nomes que saltam do nada para a glória. ALEXANDRE SALVADOR, DE TERESÓPOLIS Se a Fifa decidisse interromper a Copa do Mundo apenas por um dia para a realização de um amistoso entre Bayern de Munique e Manchester United no Maracanã, os dois clubes nem precisariam enviar delegações da Alemanha ou da Inglaterra. Cada um desses times tem catorze jogadores convocados em catorze seleções. Daria, enfim, para montar um onze completo e ainda pôr três jogadores no banco de reservas — o Manchester até técnico teria à disposição, já que o holandês Louis van Gaal é o atual treinador da seleção de seu país. A Premier League inglesa tem 114 jogadores de 28 países na Copa. Fica à frente da Série A italiana, com 81 convocados de 21 países. Bósnia, Costa do Marfim, Gana e Uruguai são as seleções mais globalizadas, com apenas um atleta atuando em casa (a contrapartida é a Rússia de Putin, com todos os 23 jogadores atrelados ao futebol russo). A seleção de Felipão tem apenas quatro jogadores no Brasileirão. Bem-vindo. portanto, ao Babel F.C., um espetacular torneio paralelo. Do ponto de vista da qualidade do futebol, qual o efeito de todos os onze titulares do Brasil contra o México terem jogado ao menos uma vez na Europa, de 2010 a 2014, contra um oponente de seleção forte, e no caso de Daniel Alves, do Barcelona, por exemplo, ter enfrentado dezoito vezes Cristiano Ronaldo, do Real Madrid? Uma resposta, um tanto óbvia mas fascinante: já não há mais sustos e ineditismos. Improvável é lermos uma descrição como a feita por Nelson Rodrigues em torno da estreia de Garrincha na Copa de 1958, contra a Rússia: "Na sua indignação impotente, o adversário olhava Garrincha, as pernas tortas de Garrincha e concluía: 'Isso não existe!'. E eu, como os russos, já me inclino a acreditar que, de fato, no domingo Garrincha não existiu. Foi para o público internacional uma experiência inédita". Até a Copa de 1978, na Argentina, todos os jogadores brasileiros que foram convocados para os onze Mundiais até então disputados vestiam a camisa de clubes brasileiros. Os primeiros a quebrar esse tabu foram Falcão e Dirceu, os únicos "estrangeiros'' no time de Telê Santana que disputou a edição de 1982, na Espanha. "Fui para a Roma em 1980 e, naquela época, os clubes não liberavam seus jogadores para as eliminatórias. Era o capitão do Telê, mas não podia jogar", disse a VEJA Falcão, hoje técnico e comentarista de futebol. O espanto de descobertas de craques, desconhecidos, foi substituído pela qualidade. Diz Tostão, centroavante da seleção de 1970 (todos jogavam no Brasil) e craque da crônica esportiva: "A Copa hoje é uma repetição das grandes partidas que vemos na Europa. O torcedor deve estar se deliciando". A frequência de encontros, com intensa troca de informações, faz quase todo mundo jogar do mesmo jeito: a maioria das seleções vai a campo com o hoje clássico esquema 4-2-3-1, ou seja, quatro defensores, dois volantes, três meias mais avançados e um único atacante fixo. Antes da intensa migração, antes do domínio dos campeonatos europeus nas emissoras de televisão a cabo, antes de um torcedor mirim brasileiro muitas vezes preferir Messi a Neymar, descobria-se o que preparavam os inimigos de maneira quase romântica. "Na Copa de 70, tínhamos um observador que ia aos jogos e treinos dos adversários, mas ele não tinha instrumentos como os de hoje", diz Tostão. "Na semifinal, entre Alemanha e Itália, o (Carlos Alberto) Parreira, que era preparador físico, foi ao jogo com uma câmera fotográfica. Fez fotos como um louco. Depois as levou à concentração e mostrou a sequência de lances." Foi dessa forma que o Brasil descobriu, por exemplo, que o lateral-esquerdo italiano Rosato faria marcação individual sobre o ponta-direita Jairzinho. Munido dessa informação, Zagallo resolveu avançar Carlos Alberto Torres — decisão que colaborou para o quarto e antológico gol brasileiro, quando ainda havia surpresas. COM REPORTAGEM DE RENATA LUCCHESI 7#9 HUMOR – MENDES PEDREIRA – AGAMENON OU VAIA OU RACHA! A chapa está quente, o bicho está pegando e a Copa está bombando! Os pessimistas de plantão, a imprensa golpista e as redes antissociais diziam que #NAOVAITERCOPA, mas a verdade é que Deus é brasileiro e o papa é argentino! O Todo-Poderoso deu uma mãozinha de cal nos estádios inacabados mas, mesmo assim, Deus, coitado, não conseguiu comprar nenhum ingresso pro Mundial e teve que apelar pros cambistas, entre os quais eu, Agamenon Mendes Pedreira, me incluo. Está tudo funcionando no padrão Pifa de precariedade, e a nossa Copa tupiniquim está dando show de bola! A revista inglesa The Erronomist disse que a Copa no Brasil ia ser o maior mico. A revista da elite branca britânica mais uma vez errou as suas previsões catastróficas para o Mundial e acabou pisando na bola. Imediatamente, a respeitada publicação internacional levou um cartão amarelo do árbitro japonês que roubou o pênalti pro Brasil. A seleção brasileira não está empolgando, mas, mesmo assim, o povão aguarda ansiosamente o próximo jogo: é a única chance que brasileiro tem de comer Camarões fora de feriado. Pra vocês que não são da elite branca e nunca foram à escola, eu explico: Camarões é um país africano situado na região do Cardápio e a sua capital é Caruru. Ao norte Camarões faz fronteira com a Moqueca, e ao sul faz divisa com Bobó. O técnico camaronês já anunciou a escalação do escrete camarinho para o jogo de segunda: Muamba, Guimba, Cafofo, Bagunça, Caramba, Lambança, Marafo, Marofa, Abará, Mafuá, Umbanda e o maior craque do time: o artilheiro Macumba. Mas, como dizia Neném Prancha, "se Macumba ganhasse jogo, o campeonato africano terminava empatado". O time da Família Scolari não é despacho de macumba, mas também está numa encruzilhada. Neymar Jr., o Neymarketing, e Dani Alves têm que parar com essa mania de fazer parte da elite branca e parar de pintar o cabelo de louro. Hulk, o Jogador Melancia, também precisa recuperar o seu equilíbrio emocional e colocar a cabeça no lugar. Ou será a bunda? O que falta no time do Brasil é um armador. Por que o Felipão não convocou alguém da Odebrecht, da Mendes Júnior ou da Queiroz Galvão, onde não faltam empreiteiros com essas características técnicas? Já o Fred deveria sair da seleção e entrar na equipe olímpica de natação, porque até agora é o que tem feito de melhor: nada. O que também preocupa o torcedor brasileiro na seleção é o excesso de faltas: falta time, falta criatividade, falta meio de campo e falta gol. INFRIN GENTE JOAQUIM BARBOSAFRO Por falar em arbitragem, quem está fora da Copa é o presidente do Supremo Tribunal de Futebol, o juiz Joaquim Barbosafro, que vai se aposentar. Assustado com os disparos da tropa de elite dos advogados mensaleiros, Barbosa resolveu pedir pra sair. Sair da relatoria do caso. No seu histórico (e histérico) mandato, o juiz mostrou ao país que a Justiça farda mas não talha e, de goleada, condenou os mensaleiros do PT (Partido da Tranca) à cadeia. Eu não sei por que os apenados petistas não querem pagar sua etapa no regime fechado: o que esses caras mais gostam é de regime fechado. Eles não adoram Cuba, Venezuela, Bolívia, Irã e Coreia do Norte? Além do mais, todos foram condenados por corrupção e peculato, com exceção de Jacinto Lamas, que foi sentenciado por trocadilho inafiançável. Com a saída de Joaquim Barbosa, o STF, Supremo Tribunal de Forno, volta a colocar a pizza na fornalha. A pizza vai ficar no lugar da batata dos mensaleiros que estava assando no mesmo forno. Agora Josef Dirceu (e sua turma muito louca que se meteu em muitas trapalhadas) vai ter um novo julgamento, e o juiz vai ser aquele japonês que roubou o pênalti pró Brasil. No fundo, no fundo, eu admiro o espião cubano Josef Dirceu, um homem corajoso e destemido que trocou de sexo para poder penetrar disfarçado no Brasil em plena ditadura. Ditadura brasileira, que acabou, e também ditadura cubana, que está em cartaz até hoje. Segundo o novo relator, o ministro Luis Roberto Pastoso, o grande Josef Dirceu é um "ponto fora da Cuba". SOBE * Futebol ostentação * Bruna Marquezine para o quarto do Neymar * Ochoa, o goleiro mexicano DESCE * Pai João Santana, marqueteiro oficial da Copa * A bunda do Hulk * Dostoievski, o trágico goleiro russo VEJA BEM “No Brasil, a lei existe para ser comprida.” MINISTRO RUI JOAQUIM BARBOSA DATAGAMENON CORRUPÇÃO NA COPA 5% dos corruptos fazem por 10%, fora os acréscimos 85% dos políticos ladrões fizeram "selfie" na hora de roubar 10% dos empreiteiros acham que a comissão deveria ser de 20% 7#10 CRAQUES NA REDOMA Campeões mundiais andavam de Kombi, pagavam aluguel e estavam sempre à mão para atender torcedores e repórteres. Transformados em celebridades, hoje as milionárias estrelas da bola vivem sua fama globalizada cercadas de assessores e agentes. CARLOS MARANHÃO, DE FORTALEZA Era fácil para um repórter entrevistar Pelé quando ele reinava absoluto no futebol, consagrado com a conquista de três Copas, dois títulos de campeão mundial de clubes e já com mais de 1200 gols no currículo. Bastava esperá-lo chegar, em torno das 4 da tarde, por uma entrada lateral do estádio da Vila Belmiro, em Santos. Ele mesmo vinha dirigindo seu Mercedes. Sozinho, sem segurança, sem ninguém para lhe abrir a porta, estacionava o carro na rua. "Tudo bem, passa depois lá no vestiário", ele respondia ao pedido, que nem tinha sido agendado previamente. Os autógrafos para algum fã de plantão eram assinados ali mesmo, na calçada, rapidamente mas com um mínimo de atenção. Terminado o treinamento, mal saído do banho, Sua Majestade atendia o jornalista enquanto se enxugava. Uma cena parecida com essa seria impensável no futebol de hoje, em que os jogadores se comportam, vivem e são tratados como celebridades de difícil acesso. Durante toda a duração da Copa, vários deles dão apenas uma ou duas entrevistas coletivas, sentados diante das logomarcas dos patrocinadores, e raramente concedem exclusivas. Quando isso acontece, falam para a televisão. No caso dos brasileiros, o privilégio, por força de contrato de direitos de transmissão, é quase sempre da Rede Globo. Cerca de meia hora depois de terminadas as partidas, eles passam por um corredor em direção ao ônibus que os levará de volta para o hotel ou o aeroporto. É a chamada zona mista, em que repórteres credenciados se acotovelam junto a cerquinhas e às vezes imploram por rápidas declarações. Ela foi criada na Copa de 1994 e a partir daí implantada nos principais estádios ao redor do mundo. Nenhum jogador é obrigado a parar, e muitos seguem em frente, impávidos, carregando nécessaires de grife e com fones de ouvido que os protegem das perguntas. Foi o que fez o português Cristiano Ronaldo na segunda-feira, em Salvador, depois que sua seleção apanhou de 4 dos alemães: marchou firme em direção ao ônibus da delegação, sem se deter, como um táxi em noite de chuva. Na terça, encerrado o jogo em que o Brasil empatou com o México por 0 a 0, na Arena Castelão, de Fortaleza, ninguém seguiu o mau exemplo de CR7. Sob o impacto de um resultado que nenhum dos comandados de Felipão previa, eles deram declarações rápidas e cuidadosas, escoltados por três assessores da CBF. Desde a invenção desse método de entrevistas superficiais e tumultuadas, nunca mais jornalistas puderam entrar em um vestiário para procurar os jogadores sem a barreira dos funcionários encarregados de resguardá-los. Hoje em dia, qualquer jogador de nível de seleção ou de um grande clube brasileiro — para não falar dos que atuam na Europa — tem pelo menos um assessor de imprensa, não raro dois ou três, que serve de intermediário, ou de escudo, como se preferir, entre ele e a mídia. Em outras palavras, para colocar as coisas como elas são: entre o jogador e seus fãs, que em última análise estão para o futebol como o contribuinte de impostos está para o governo, pois são eles que pagam a conta ao adquirir ingressos, dar audiência à TV e consumir os produtos que anunciam. "Isso começou comigo, em 1990, quando me tornei assessor de imprensa do Flamengo e organizava as entrevistas", afirma o carioca Rodrigo Paiva, que mais tarde passou a trabalhar para os atacantes Romário e Ronaldo. Desde 2001, ele exerce essa função na seleção brasileira. "Hoje em dia qualquer jogador tem o seu", diz. "Só o Neymar dispõe de um escritório com umas trinta pessoas para atendê-lo." A assessora do astro, Helena Passarelli, que se tornou seu anjo da guarda no período em que ele defendia o Santos, não confirma esse número. Sexto jogador mais rico do mundo, aos 22 anos, com um patrimônio estimado em 243,6 milhões de reais, o camisa 10 mora em uma mansão de 1000 metros quadrados em Barcelona. Pelé, quando voltou internacionalmente consagrado da Suécia com a faixa de campeão mundial, em 1958, continuou residindo em uma pensão perto da Vila Belmiro. Ele tinha 17 anos. Mais velho daquele fabuloso escrete, o lateral- esquerdo Milton Santos vivia com a família em um apartamento alugado e pegava lotação para ir treinar no Botafogo. O incomparável Garrincha ainda não tinha carro. Até o início da década de 90, nem jogadores nem clubes empregavam assessores de imprensa. A mudança não poderia ter sido mais radical. Antes expostos e disponíveis, os jogadores entraram em uma redoma dourada. As gerações projetadas na era do rádio em geral não ganhavam o suficiente para enriquecer — e, quando ganhavam, eram muitas vezes mal aconselhadas na hora de investir. Elas deram lugar aos futebolistas que iriam se beneficiar com a exposição na TV, os contratos publicitários e os patrocínios das multinacionais que souberam associar sua imagem ao mais popular e universal dos esportes — beneficiando os principais ídolos. Diz o paulista J. Hawilla, ex-repórter de rádio que preside a Traffic, uma das maiores empresas de marketing esportivo do país: "O motor da transformação foi o dinheiro. Há vinte ou trinta anos, os principais clubes europeus começaram a obter altos lucros com patrocinadores, direitos de transmissão e comercialização de suas marcas, sobretudo depois que milionários russos e árabes entraram no mercado. Parte desses recursos foi repassada aos jogadores, cujos salários se multiplicaram. Vieram os assessores, agentes e empresários, e com eles os nossos craques viraram celebridades globais. Da Europa, o processo foi exportado para o Brasil". Do ponto de vista dos superjogadores, tamanha transformação equivale à descoberta do pote de ouro no fim do arco-íris. Cristiano Ronaldo, com um salário anual de 51,7 milhões de reais, acumula um patrimônio de meio bilhão de reais. O argentino Messi está em um patamar semelhante. Ao lado das fortunas que foram brotando da grama, o bilionário futebol do século XXI consolidou uma globalização que tem na Copa a sua vitrine mais vistosa. É com a camisa de cada seleção que os craques reconquistam a própria nacionalidade perante os torcedores. No resto do tempo, espalham- se pelas arenas do planeta bola. Assim, dos 736 jogadores inscritos neste Mundial, 114 — o que daria para escalar dez times —, ou 15% do total, atuam na Inglaterra. O Bayern de Munique, sozinho, forneceu catorze jogadores que estão competindo no Brasil. E é o Brasil um dos países que mais refletem o fenômeno. O torcedor precisa puxar pela memória para lembrar dos tempos em que todos os convocados vinham de equipes do Rio, São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre. Foi o que aconteceu no tricampeonato de 1958/1962/1970. A realidade agora é outra. Dos 23 atletas reunidos por Felipão, dezenove foram chamados do exterior. Até 1974, a seleção brasileira preparava-se para ir à Copa concentrada no espartano hotel Retiro dos Padres, no bairro carioca de São Conrado. "Contando, ninguém acredita. O hotel tinha um único telefone, que ficava na cozinha e era de manivela", recorda o atual coordenador técnico Carlos Alberto Parreira. "Nós nos revezávamos para ligar." Os jogadores saíam dali para os treinamentos no clube Itanhangá dentro de Kombis. Hospedados em hotéis luxuosos e transportados em um multicolorido avião fretado, com traslados em belos ônibus pintados de verde e amarelo, eles não podem ter saudade de um universo que não conheceram. Se estão mais isolados e muito menos acessíveis, ficaram cada vez mais ricos e, como protagonistas, ajudam a fazer do futebol, com sua arte e estrelismo, o espetáculo fantástico que nestes dias deixa o mundo hipnotizado. O TRIO DE OURO CRISTIANO RONALDO Real Madrid Fortuna: 450 milhões de reais O jogador mais rico do mundo Além do salário anual líquido de 51,7 milhões de reais, o português fatura alto com seus quinze contratos publicitários. Mora com seu filho, um motorista-segurança e duas empregadas no condomínio La Finca, na capital espanhola. A mansão tem sala de cinema, duas piscinas e cinco suítes, além de uma curiosa câmara de crioterapia para regeneração muscular, que custou mais de 100.000 reais. Carros: um Bugatti Veyron, avaliado em 3,5 milhões de reais; uma Ferrari 599 GTO, de 2,5 milhões; e um Lamborghini Aventador, de 2,8 milhões. LIONEL MESSI Barcelona Fortuna; 426,4 milhões de reais O 2º jogador mais rico do mundo O salário anual do argentino chega a 60,9 milhões de reais. No ano passado, faturou mais de 128 milhões de reais em contratos publicitários. Vive em Barcelona com a mulher e o filho. Pretende se mudar em breve. Messi mandou construir uma mansão em formato de estádio de futebol. Em 2013, ele adquiriu uma casa em Gavà Mar, cidade litorânea próxima a Barcelona, para presentear os pais, no valor de 10 milhões de reais. NEYMAR Barcelona Fortuna: 243,6 milhões de reais O 6º jogador mais rico do mundo Para administrar sua carreira, emprega um grupo de pelo menos vinte pessoas, incluindo os funcionários da NR Sports, empresa do pai. Tem doze contratos publicitários. Reside com o pai e o amigo Gilmar Araújo Ferreira, o Gil Cebola, misto de empresário e faz-tudo, em uma propriedade de 1000 metros quadrados em Barcelona. Entre os muitos carros que já passaram pela garagem de Neymar estão um Audi Q5, um Porsche Panamera Turbo e um Volvo XC60. Ele é dono de uma lancha que custou 15 milhões de reais. COM REPORTAGEM DE RENATA LUCCHESI 7#11 A DÚVIDA COMO HÁBITO Saber com precisão se a bola ultrapassou ou não a linha de gol talvez seja o limite máximo de uso da tecnologia no futebol. Daí para a frente haverá sempre muita grita, porque a tradição, com todas as suas imperfeições, moldou o torcedor à eterna polêmica da mesa de bar. O chute do atacante francês Benzema bateu numa das traves e a bola correu na direção contrária. Ao tentar agarrá-la, o goleiro hondurenho Valladares se atrapalhou, e a Brazuca supostamente entrou no gol. O juiz, o brasileiro Sandro Ricci, recebeu um alerta sonoro no relógio de pulso menos de um segundo depois do lance e correu para o meio de campo: 2 a 0 para a França, que venceria por 3. No telão do Beira Rio, em Porto Alegre, veio o tira-teima. A primeira imagem mostrou o toque da bola na trave e o aviso "no goal" em vermelho. Em seguida, viu-se a bola a menos de 1 centímetro da cal, do lado de dentro, e "goal". A torcida vaiou. Foi tudo tão rápido que muita gente não entendeu por que, depois da indicação inicial negativa, veio uma positiva. Pela primeira vez na história das Copas, a tecnologia desenvolvida para detectar o gol funcionou — mas foi incapaz de encerrar as celeumas. O treinador de Honduras. Luís Suárez, deu uma de neoludita e provocou: "Na primeira decisão da máquina não foi gol, na segunda foi. Não sei com qual ficar, qual é a verdade". Para o técnico francês Didier Deschamps, claro, porque saiu vencedor, "a tecnologia é uma coisa boa". Os dirigentes da Fifa, incomodados com a guerra de palavras e o mal-entendido no estádio, decidiram que a partir de agora, quando houver dois lances duvidosos — a bola que bate aqui, depois ali —, só o último será levado ao telão. Os doze estádios da Copa têm catorze câmeras instaladas, sete para cada lado do campo. O custo de instalação foi de 500.000 reais por arena. As câmeras registram a bola com imagem 3D, tratada por um software, e mandam a mensagem para o árbitro. A margem de erro, segundo a empresa responsável pelo equipamento, a alemã GoalControl, é de 5 milímetros (para efeito de comparação, o raio da bola mede 11 centímetros). É um sistema muito parecido com aquele usado nas partidas de tênis, em que a bolinha toca muito rente à linha com grande frequência. Os tenistas têm o direito de pedir três desafios por set, e um quarto na disputa do tie-break, quando acharem ter sido punidos por uma decisão equivocada do juiz, então resolvida pela tecnologia. Não é possível imaginar que Rafael Nadal seja eliminado de Roland Garros ou Wimbledon porque um dos árbitros não conseguiu enxergar se a bola que voava a 200 quilômetros por hora encostou na linha. Na NBA, a milionária liga de basquete, e no futebol americano, os juízes param o jogo para ver o replay em lances capitais. No futebol sempre foi diferente, com as polêmicas — Maradona fez ou não fez o gol com a mão? A bola de Hurst na final de 1966 entrou ou não? — servindo de molho para eternas discussões. Não se trata de louvar a máxima de que "roubado é mais gostoso", quando há dúvidas. Não é isso, evidentemente não, mas tudo indica que o limite da tecnologia no futebol é mesmo o lance de gol. Muito dificilmente teremos o apoio da ciência para ter certeza se foi ou não foi pênalti em Fred na estreia do Brasil contra a Croácia. É possível que seja apenas questão de hábito, mas o torcedor está acostumado com decisões equivocadas (e, insista-se, não se trata de louvar a contrafação, mas apenas de registrar a possibilidade de erros ocorrerem democraticamente para os dois lados de uma partida de futebol). Torcedor algum jamais deixou de ir ao estádio mesmo depois de seu time ter sido vítima de algum erro (doloso ou culposo) do trio de arbitragem. A polêmica faz parte do espetáculo, como já anotou o ex-presidente da Fifa João Havelange, numa de suas únicas frases ainda palatáveis publicamente. Imaginemos uma situação futura em que as tecnologias sejam tão exatas, tão infalíveis em suas marcações, que contraditá-las só seria possível com o uso de outra tecnologia ainda mais precisa. Isso ocorre nos Estados Unidos quando o sujeito é multado por excesso de velocidade pelo radar da polícia. Os motoristas recorrem com a apresentação de dados do seu próprio GPS, que é bem mais acurado do que o equipamento da polícia. O futebol tem uma boa parte de arte, condição que o torna magnético, extraordinariamente popular. Imagine um robô capaz de esculpir um David ainda melhor do que Michelangelo, mas a obra fica tão perfeita, tão perfeita, que só outro robô é capaz de apreciar suas qualidades. O alcance da tecnologia no futebol deve ser limitado aos padrões humanos: nada melhor que nossos reflexos, a velocidade do nosso olhar, recursos de todo juiz bem treinado e honesto, para fazer o jogo andar ou parar — a não ser na linha de gol, porque a tecnologia lançada nesta Copa é irreversível. _____________________________________ 8# GUIA 25.6.14 8#1 CALENDÁRIO EXTRACURRICULAR 8#2 LÓGICA ON-LINE 8#3 LIVROS X GAMES 8#4 VALE A PENA INVESTIR NO MANDARIM? 8#1 CALENDÁRIO EXTRACURRICULAR COM O FIM DAS FÉRIAS, RECOMEÇA A PROCURA DOS PAIS POR CURSOS EXTRACURRICULARES PARA OS FILHOS. ALÉM DE EVITAREM TARDES INTEIRAS DEDICADAS AO VIDEOGAME E ÀS REDES SOCIAIS, OS COMPROMISSOS FORA DA SALA DE AULA PODEM BENEFICIAR O FUTURO PROFISSIONAL DA CRIANÇA. "As tarefes extracurriculares são vantajosas sob vários aspectos. Melhoram a saúde física, mental e emocional e ainda favorecem a organização do tempo. Com um cronograma de atividades, a criança aprende a se organizar em função do calendário", diz Teresa Messeder Andion, diretora da Associação Brasileira de Psicopedagogia (ABPP). Oferecer ao filho um cardápio variado de estímulos também ajuda a identificar afinidades. Mas não se deve ocupar o espaço da lição de casa, da leitura e, claro, das brincadeiras. Os especialistas consultados por VEJA recomendam até três atividades extracurriculares que não ultrapassem o período de duas horas diárias. Para os menores de 6 anos, as obrigações devem se restringir a no máximo uma hora, duas vezes por semana. A seguir, as atividades extras que podem ser incorporadas à agenda dos filhos neste segundo semestre, divididas por faixa etária. ANTES DOS 6 ANOS Novas atividades: natação e inglês Por quê: adquirir o hábito de movimentar o corpo desde cedo é fundamental, e a natação é o esporte mais indicado. "Por ser um esporte completo, ela estimula a ativação de áreas cognitivas do cérebro", diz Mauro Muszkat, neuropediatra e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Além disso, a criança aprende a se virar na água, o que pode prevenir acidentes na piscina do condomínio. O aprendizado de um segundo idioma entre 4 e 6 anos - de maneira lúdica, por meio de sons e brincadeiras - é favorecido pelo processo acelerado de desenvolvimento do cérebro nessa faixa etária, o que consolida mais rapidamente as novas informações. "O inglês é o principal idioma no mercado corporativo, e a fluência nessa língua é indispensável para a ascensão na carreira", explica Flávia Queiroz, gerente executiva da Page Talent, unidade dedicada ao recrutamento de estagiários e trainees da consultoria Page Personnel. ENTRE 7 E 9 ANOS Novas atividades: robótica, futebol, esporte individual, teatro, instrumento musical Por quê: a partir dessa idade a criança consegue se concentrar por mais tempo em uma única atividade, pois as áreas do cérebro relacionadas à atenção começam a amadurecer. Nessa fase, aulas de robótica ajudam a estimular o raciocínio lógico e matemático dos pequenos. No esporte, as modalidades individuais, como tênis e judô, ensinam conceitos de disciplina e respeito ao adversário, enquanto os jogos coletivos, de preferência o futebol, reforçam a importância do trabalho em equipe. "As atividades devem não só explorar a capacidade física como também permitir a convivência com outras crianças", diz Guilherme do Val Toledo Prado, professor da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). As aulas de teatro, além de desinibir os mais tímidos e melhorar a desenvoltura ao falar em público - habilidade que pode contar pontos em uma dinâmica de grupo, por exemplo -, incentivam o interesse da criança por assuntos culturais. Por fim, o aprendizado de um instrumento musical favorece a concentração, a criatividade e a memória. ENTRE 10 E 12 ANOS Novas atividades: segundo idioma estrangeiro, esporte coletivo, xadrez, circo Por quê: estudos recentes mostram que, além de facilitar o ingresso no mercado de trabalho e a ascensão profissional, o aprendizado de idiomas pode trazer vantagens adicionais: ele aumenta a inteligência e retarda em vários anos o desenvolvimento de demências. Se é o futuro profissional que está na mira na hora da matrícula, o espanhol é o primeiro da fila. "Depois do inglês, ele é sem dúvida o idioma mais usado no mercado de trabalho global", diz Flávia Queiroz, da Page Talent. Os esportes coletivos, como vôlei e basquete, ensinam a criança a respeitar regras e a lidar com a derrota sem se deixar abater. Já o xadrez desenvolve a capacidade de planejamento e de tomada de decisões e ainda ativa a concentração e a memória. Das aulas de circo podem sair atividades recreativas benéficas, como perna de pau e acrobacia, que promovem a percepção corporal e o equilíbrio A PARTIR DOS 13 ANOS Novas atividades: voluntariado e esportes competitivos escolhidos pelo filho Porquê: "Entre os 12 e os 20 anos, a área do cérebro associada à regulação emocional está em franco desenvolvimento. Nessa fase, é fundamental experimentar diversos papéis sociais, assim como aprender a responsabilidade de cuidar e planejar e treinar a autonomia e a independência", diz Mauro Muszkat, da Unifesp. Portanto, é nesse período que os pais devem estimular os filhos a exercer trabalhos voluntários, aprendendo a cooperar e a pôr os interesses de outras pessoas acima dos seus. Na pré-adolescência, os esportes coletivos são um bom investimento, pois ensinam o valor de trabalhar em prol da equipe, de disciplinar-se para melhorar o desempenho e atingir metas e de conviver com diferentes personalidades - e não só com os amigos do grupo, que têm os mesmos interesses. 8#2 LÓGICA ON-LINE Estimular o gosto dos pequenos pelas exatas não é das tarefas mais fáceis. Atualmente, dois renomados projetos de ensino on-line gratuitos visam a incentivar o aprendizado de programação e matemática. Segundo Denis Mizne, diretor executivo da Fundação Lemann, que traduz os conteúdos no Brasil, o tempo mínimo de dedicação aos estudos varia conforme o ritmo de aprendizado do aluno. "Em nosso programa de implantação da Khan Academy nas escolas públicas, recomendamos pelo menos duas horas por semana para cada criança", exemplifica. Khan Academy (khanacademy.org.br) Criada em 2008 pelo matemático Salman Khan, guru do ensino on-line nos Estados Unidos, a plataforma com foco no ensino de matemática é destinada a todos os públicos: da criança que está fazendo as primeiras continhas ao adulto interessado em matemática avançada. A plataforma mapeia o que a criança sabe e, a partir daí, propõe desafios para desenvolver suas habilidades na resolução de problemas. Scratch (scratch.mit.edu) A ferramenta ajuda os pequenos a exercitar a criatividade e a programar as próprias histórias interativas, jogos e animações. É indicada para maiores de 8 anos, mas também pode ser usada por adultos que queiram iniciar o aprendizado de lógica de programação. Foi lançada em 2006 pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT, e está no Brasil em sua versão completamente traduzida desde maio deste ano. 8#3 LIVROS X GAMES Nas horas vagas, surge o dilema: os pais querem que o filho dedique algum tempo à leitura, mas ele insiste em jogar videogame. Veja, a seguir, o que sugerem os especialistas para minimizar os conflitos familiares. LEITURA - O estímulo à leitura deve partir não só da escola, mas principalmente e acima de tudo dos pais. A educadora e psicóloga Ana Paula de Freitas diz que o primeiro passo para incentivar uma criança a ler é dar a ela acesso aos livros desde cedo – e há opções para a familiarização começar literalmente no berço. "Existem livros para todas as faixas etárias. Para os bebês, há aqueles próprios para banheira. Na fase seguinte, a criança pode ganhar livros com textura, por exemplo", sugere Ana Paula. A leitura noturna diária na companhia dos pais ajuda a despertar o interesse dos pequenos pelos livros. VIDEOGAME - Menores de 7 anos deveriam evitar os jogos eletrônicos, pois só a partir dessa idade o cérebro da criança está preparado para controlar seus impulsos e reagir aos estímulos do jogo no momento certo. O videogame também promove a brincadeira entre crianças de diferentes faixas etárias, o que pode causar problemas para os menores. "Uma criança pequena que jogar com uma maior ficará frustrada por não conseguir acompanhar o jogo. Isso a tornará ansiosa", afirma Mauro Muszkat, neuropediatra da Unifesp. Se não for possível afastar os filhos do videogame, uma boa saída é trocar os jogos com frequência. "Há games de luta, de estratégia, de ação, de raciocínio. Essa diversidade é boa para a criança", comenta Guilherme Prado, da Unicamp. E as regras para o tempo gasto no videogame são imprescindíveis: imponha (e cumpra sua imposição) no máximo uma hora por dia. 8#4 VALE A PENA INVESTIR NO MANDARIM? Segundo o Banco Mundial, a China pode, ainda neste ano, ultrapassar os Estados Unidos e assumir o posto de maior economia do mundo. Outro dado importante: "A China é hoje o principal parceiro comercial do Brasil, e essa relação tende a crescer. Em especial para profissionais que ingressarão no mercado de importação e exportação, o mandarim pode ser um importante diferencial no currículo - desde que, é claro, o inglês também seja fluente", diz Flávia Queiroz, gerente da Page Talent, unidade de recrutamento de estagiários e trainees da Page Personnel. Para chegar à fluência, quanto mais cedo começarem as aulas, melhor: o mandarim é mesmo dificílimo. As crianças, nesse caso, saem em larga vantagem: além da sua facilidade em aprender novas línguas, elas não têm preconceito com nenhuma e podem ser estimuladas por meio de desenhos animados falados no idioma, por exemplo. _______________________________________________ 9# ARTES E ESPETÁCULOS 25.6.14 9#1 MÚSICA – UM PRA CÁ, DOIS PRA LÁ 9#2 LIVROS – O CRIME DE ORIGEM 9#3 CINEMA – ONDE HÁ FUMAÇA... 9#4 SHOWBIZ – MISSA DAS MASSAS 9#5 VEJA RECOMENDA 9#6 OS LIVROS MAIS VENDIDOS 9#7 ROBERTO POMPEU DE TOLEDO – IMAGINA NA COPA 9#1 MÚSICA – UM PRA CÁ, DOIS PRA LÁ Três roqueiros cantam as dores do fim do casamento em seus novos álbuns. Para o bem ou para o mal, eles dão continuidade a uma tradição tão antiga quanto a música pop: os discos de divórcio. SÉRGIO MARTINS E MARCELO MARTHE Em meio a um processo de divórcio, o cantor americano Marvin Gaye (1939-1984) pretendia fazer daquele limão azedo a limonada perfeita para um homem infeliz no casamento. Estava trocando Anna Gordy, dezessete anos mais velha que ele e irmã do dono de sua gravadora, a Motown, por um piteuzinho cuja idade era igual a essa diferença quando o conheceu — Janis Hunter, de 17 anos. Mas faltou combinar com a ex: num litígio que se arrastou por anos, Anna exigia uma parte substancial dos bens de Gaye. O juiz tomou uma decisão salomônica: ele que gravasse um novo álbum única e exclusivamente para pagar a fatura. Assim nasceu o mais célebre exemplar de uma modalidade profícua na música pop: o disco de divórcio. Lançado em 1978, Here, My Dear é uma suíte musical em que Gaye usa de ironia para desancar a ex. Mais de trinta anos depois, três jovens roqueiros voltam a valer-se da música para tratar da separação em seus novos discos (veja ao lado). O esquisitão Jack White vitupera contra a suposta ingratidão da ex, a modelo Karen Elson, em sua segunda empreitada-solo, Lazaretto. Dan Auerbach, vocalista do Black Keys, tira do barraco conjugal — ele e a mulher, Stephanie Gonis, se acusaram de coisas cabeludas — o combustível do oitavo álbum do grupo, Turn Blue. O líder do Coldplay, Chris Martin, canta o final insosso de seu relacionamento insípido com a atriz Gwyneth Paltrow no mais recente CD da banda, Ghost Stories. Enquanto os casamentos morrem, os discos de divórcio continuam vivos e chutando — principalmente o derrière dos ex. A desilusão amorosa é uma fonte de inspiração tão antiga quanto a própria música popular. E, igualmente, uma constante universal. O que seria dos sambistas brasileiros se não existisse a propalada dor de cotovelo? A expressão, aliás, foi posta em voga por um especialista nessa matéria na vida pessoal. Vítima de traições e abandonos mil, o compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues converteu em versos o seu "sentimento da cornitude", como definiu o poeta Augusto de Campos. Na nova música country americana, o mesmo sentimento sustenta um negócio rentável: a loirinha Taylor Swift domina como ninguém a arte de extrair hits de suas muitas desventuras amorosas. Seu sucesso comprova: mais vale um disco de ouro na mão que ter a seus pés namorados bonitinhos mas que se revelam cafajestes. Do lamento banal à peça de vingança engenhosamente urdida, a música demonstrou ter muitas utilidades para artistas em processo de separação (veja ao lado). O disco pode, por exemplo, ser um palanque para quem busca implorar pela volta do amor perdido. Expoente do R&B radiofônico, o cantor americano Robin Thicke lançará em julho um álbum balizado em homenagem à ex, Paula. É a tentativa de reatar um casamento que desandou por causa do mau comportamento de Thicke: depois de traí-la, ele quer seu perdão. Bem mais comum, porém, é a música devotada a destilar ódio ou desprezo por um ex. No disco MDNA, de 2012, Madonna posa de superior ao cineasta inglês Guy Ritchie, de quem tinha se separado quatro anos antes. Roberto Carlos cantou as alegrias e dores de seus casamentos de forma tão sutil quanto incisiva. "Em várias canções, ele expõe publicamente o momento que estava vivendo. Canta o que sente", diz Paulo César de Araújo, seu biógrafo censurado. No fim das contas, o que separa um grande disco de divórcio do reles chororô é a capacidade do artista de expor sua impotência diante do desmoronar de um relacionamento. Bob Dylan mesclou versos confessionais a metáforas para falar de modo cifrado da derrocada de seu casamento, em meados dos anos 70. Mas, na essência, o que transparece em cada faixa do disco Blood on the Tracks é uma melancolia cristalina. Foram os roqueiros do Fleetwood Mac os responsáveis pela mais ruidosa expiação coletiva de um divórcio na história da música. Já em seu título, o disco Rumours (Boatos) alimentava a curiosidade voyeurística do público pela desgraça nos casamentos dentro da banda hippie. No teste da voltagem emocional, Jack White deixa a desejar. Se Lazaretto tem a pegada roqueira que se espera desse Willy Wonka alternativo, as letras pecam por certa falta de sinceridade. Bem mais divertido é acompanhar seu divórcio bafônico nos sites de fofocas. A ex o acusou de ameaçá-la por e-mail. Numa das mensagens, sobrou até para Dan Auerbach, do Black Keys: White mostra-se uma arara com a possibilidade de a mulher matricular seus filhos na escola em que estuda a filha do rival. Ciúme? Que nada: ele diz que não suportaria conviver, em reuniões de pais, com um "imitador barato". Embora não menos lascado em seu casamento, Auerbach vai melhor na música: Turn Blue é o libelo de um macho deprimido pela constatação de que se casou com uma criatura, digamos, problemática. Na disputa dos discos de divórcio, Chris Martin ocupa um lugar constrangedor. No novo CD do Coldplay, o marmanjo sensível não sabe se chora ou celebra a liberdade da ex. Na vida ou na música, é assim: cada casamento, uma sentença. ATÉ QUE O DISCO OS SEPARE Sete utilidades que os artistas extraíram da música na hora de lidar com seus martírios amorosos. CELEBRAÇÃO DA "CORNITUDE" Não foi por desconhecimento de causa que o gaúcho Lupicínio Rodrigues (1914-1974) popularizou a expressão "dor de cotovelo": sua sina era ser traído e abandonado de forma sistemática pelas mulheres. Mas o sambista converteu as frustrações em letras antológicas. No clássico Nervos de Aço, ele narra o flagrante de uma amante "nos braços de um tipo qualquer”. FATURAR COM A DESILUSÃO Do cantor John Mayer ao ator Jake Gyllenhaal, a estrela country Taylor Swift coleciona más experiências com os homens. Seus namoricos são efêmeros, e ela levou fora até por telefone. Mas a loirinha sabe transformar o azar no amor em sorte nas paradas: as músicas para os ex são chamarizes fundamentais de seus discos. MOSTRAR QUEM É O (A) TAL Madonna se separou do cineasta inglês Guy Ritchie em 2008. Quatro anos depois, a calculista pop star fez valer o ditado segundo o qual vingança é prato que se come frio. Em faixas do álbum MDNA, ela desanca o ex sem cair no chorará de mulher ferida: com ar superior, ainda que fingido, assegura que nem ligou para o fim da relação. RECLAMAR DA EX Num videoclipe jurássico exibido no Fantástico em 1979, não à toa Roberto Carlos canta seu então novo sucesso, Desabafo, com cara de poucos amigos. Ainda que de modo velado, a música ecoa o processo de separação do cantor e sua primeira mulher, Nice. Certos versos entregam seu estado de espírito: "Você é mais que um problema / É uma loucura qualquer”. PAGAMENTO DA FATURA O americano Marvin Gaye (1939-1984) fez um disco só para bancar uma separação. Literalmente: a renda de Here, My Dear, de 1978, serviu para aplacar a raiva e o apetite por grana de sua ex, Anna Gordy. Gaye pagou o que devia - mas, com genial ironia, usou as letras para se vingar da mulher. DESABAFO POÉTICO O álbum Blood on the Tracks marcou a ressurreição criativa do americano Bob Dylan na década de 70. Mas é também um belíssimo retrato da ruína de um casamento. Avesso à exposição de sua vida privada e com medo de melindrar a mulher, Sara, Dylan reformulou várias letras para falar de seu estado de melancolia conjugal de forma cifrada. EXPIAÇÃO COLETIVA Em meados dos anos 70, o quinteto ripongo Fleetwood Mac era uma bomba-relógio emocional: os dois casais dentro do grupo passavam por um processo de desintegração. As lamentações gerais foram canalizadas para as faixas de Rumours, seu disco de maior sucesso - tão carregado de sinceridade e pungência que permanece arrepiante até hoje. 9#2 LIVROS – O CRIME DE ORIGEM Em A Primeira História do Mundo, Alberto Mussa parte de um assassinato cometido no Rio de Janeiro do século XVI para iluminar os mitos e a história do Brasil colonial. JERÔNIMO TEIXEIRA O enredo toma como base um fato histórico: Francisco da Costa, serralheiro, foi assassinado a flechadas no Rio de Janeiro, em junho de 1567, dois anos após a fundação da cidade e menos de quatro meses depois de o fundador Estácio de Sá morrer em consequência de um ferimento na guerra com índios tamoios. Não será exato, porém, afirmar que o novo livro do carioca Alberto Mussa, 53 anos, seja um romance histórico. A Primeira História do Mundo (Record; 240 páginas; 35 reais) evita, com inteligência, as convenções do gênero. Não existe na obra o esforço de descrever o Rio do século XVI da perspectiva de seus moradores; tampouco se leem diálogos vazados em um artificial português de época. O romance apresenta-se como uma espécie de ensaio — na convergência de história, antropologia e romance policial — escrito por um autor do século XXI que pesquisou minuciosamente o processo que as autoridades abriram para investigar este que deve ter sido o primeiro homicídio na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. As ações e motivações de dez suspeitos são sucessivamente examinadas, e, entre uma e outra consideração detetivesca, vão se acumulando aventuras de bandeirantes portugueses, descrições da precária vida no Brasil Colônia, reconstituições (ou reinvenções) de mitos indígenas, anedotas de caçadas e histórias fantásticas. Mussa, que já se dedicara a romances policiais situados no passado em O Trono da Rainha Jinga e O Senhor do Lado Esquerdo, tem mão firme para urdir narrativas de natureza tão diversa em um conjunto multifacetado, plural, colorido, mas coeso. Um apêndice do livro traz uma útil cronologia dos grandes eventos da criação do Rio de Janeiro — França Antártica, expulsão dos franceses, Confederação dos Tamoios etc. O interesse do narrador, porém, recai mais sobre o mito do que sobre a história. Evento que mal ocupa notas de rodapé na historiografia colonial, o assassinato de Francisco da Costa torna-se o nó lendário em torno do qual se enredam os anseios e ambições da cidade nascente. No posfácio, Mussa diz que descobriu o caso em um dicionário biográfico de povoadores e colonizadores do Rio. Nessa fonte factual (com a qual toma várias liberdades), achou também o provável pivô do crime — uma femme fatale: a mameluca Jerônima Rodrigues, a mulher mais desejada e disputada da cidade, que preteriu dois fidalgos para se casar com o serralheiro. As lendas de tesouros inestimáveis ocultos no interior do continente e de tribos de amazonas, que tanto mobilizaram os primeiros aventureiros portugueses, são referidas com uma ambivalência malandra do narrador: embora afete a postura cética de quem examina com objetividade crendices do passado, ele também se deixa encantar por esses mitos propulsores do esforço colonizador. A elucidação da autoria do crime ampara-se em fundamentos díspares, assimétricos: o pensamento selvagem dos indígenas, a cosmologia do italiano Dante em sua Divina Comédia e o raciocínio detetivesco da escritora inglesa Agatha Christie. É uma solução mirabolante — mas pouco importa: nas páginas finais de A Primeira História do Mundo, o leitor já está inescapavelmente enredado pela narrativa de Alberto Mussa. 9#3 CINEMA – ONDE HÁ FUMAÇA... ..nem sempre há fogo, mostra Como Treinar o Seu Dragão 2 Se Toy Story 3 ficou com a veneração e Frozen, com o recorde de bilheteria, o prêmio de originalidade, frescor e encanto para uma animação recente deveria ir para Como Treinar o Seu Dragão. No filme de 2010, o garoto Soluço, magrinho e fraquinho, consertava com uma prótese rudimentar a cauda de um dragão que ele próprio tentara abater — era só nisso, em abater dragões, que pensavam os vikings de sua aldeia, Berk — e conquistava a amizade dele. Tudo às escondidas: se seu pai e os demais aldeões desconfiassem que ele andava confraternizando com o inimigo, sabe-se lá que desgraça poderia acontecer. Na melhor das hipóteses, Soluço, que já era uma vergonha para seu povo guerreiro, passaria a ser considerado também um traidor. Mas, por outro lado, se os vikings de Berk soubessem que maravilha é ir às alturas no lombo de um dragão, talvez até mudassem de ideia (e, claro, no final mudavam, mas não sem antes travar uma batalha na qual Soluço perdia uma perna, ficando igualzinho ao seu dragão manco). Uma aventura inebriante e uma ode ao poder da imaginação para desmontar as arbitrariedades do mundo adulto, Como Treinar o Seu Dragão fazia mais do que divertir os adultos que acompanhassem as crianças ao cinema: transportava-os, inteiros e intactos, para a sua própria infância. Já Como Treinar o Seu Dragão 2 (How to Train Your Dragon 2, Estados Unidos, 2014), em cartaz no país, provoca no espectador outro tipo de sentimento típico da infância: a decepção sem fim, como se toda a sua alegria e expectativa se espatifassem em pleno voo contra um dos rochedos de Berk. É bem documentada a síndrome do número 2 (ou 3, ou 4) — as armadilhas criativas que os imperativos comerciais vão plantando no caminho das continuações. O filme pequeno virou sucesso? Então é preciso torná-lo grande, amplificando cada elemento à potência máxima. Eram deliciosos os voos de Soluço no dragão Banguela no primeiro filme; aqui eles têm de ser desvairados. O garoto, com toda a sua timidez, escondia uma independência admirável de opinião. Aqui, assim, é preciso que ele se revele heroico. Os dragões antes estavam apenas se sentindo ameaçados? Então agora eles estão tragicamente à beira da extinção. Já a história, essa ficou reduzida a fumacinha: a mania de grandeza e o proselitismo ecológico conseguiram, mais uma vez, extinguir aquele fogaréu alegre da criatividade. ISABELA BOSCOV 9#4 SHOWBIZ – MISSA DAS MASSAS Com vendas de CDs e livros na casa dos milhões, Reginaldo Manzotti junta-se ao elenco brasileiro de padres-artistas — ainda que não goste de se definir assim. BRUNO MEIER No meio do show, o cantor desce do palco e vai em direção a uma senhora em prantos na primeira fila. Pega na mão dela e conversa brevemente. Uma massa de pessoas se espreme contra a grade de segurança para chegar mais perto do astro. Mais tarde, suado e cansado, a caminho do hotel. Reginaldo Manzotti explica a razão do gesto: "Fiquei com peninha dela". Caridade cristã: Manzotti é mais um dos padres-cantores que atraem multidões para seus shows e missas. No ano passado, reuniu 1,6 milhão de pessoas numa praia de Fortaleza, naquela que é considerada a terceira maior missa rezada no Brasil — perde apenas para as celebrações dos papas João Paulo II, em 1997, e Francisco, em 2013. Manzotti, 45 anos, faz programas de rádio e TV, sempre em uma linguagem direta e informal, pontuada de gírias peculiares ("Sou sussa", define-se, querendo dizer sossegado, descomplicado). Como outros padres carismáticos (veja o quadro), Manzotti também é autor best-seller: seus sete títulos venderam um total de 2,8 milhões de cópias. Há um mês, de novo em Fortaleza, em um centro de eventos, 12.000 fiéis leitores prestigiaram o lançamento de Milagres, primeira parte de uma planejada trilogia religiosa lançada pela editora Agir com tiragem inicial de 300.000 exemplares. "Sou didático e simples sem ser raso. Compreendo que o povo não consegue absorver muito conteúdo", diz o padre, que não gosta de se definir como um artista mas orgulha-se de receber o assédio cotidiano dos fãs (num almoço com a reportagem de VEJA, foi interrompido três vezes por gente que busca soluções para problemas pessoais ou de saúde, ou deseja apenas uma foto com Manzotti). E, como típico artista, é cioso do que os críticos sentenciam: "Diziam que eu era um padre meteoro, uma lata vazia sem conteúdo. Deus confirma que não sou". Religião e espetáculo sempre estiveram na vida de Manzotti. Aos 9 anos, ele já participava do teatro da igreja em sua cidade natal, Paraíso do Norte, no Paraná. A vocação se impôs aos 11, quando escreveu uma carta para sua paróquia, escondido dos pais, expressando o desejo de se tornar padre. Um ano depois, estava no seminário. Com 17 anos, em uma montagem da Paixão de Cristo, acumulou várias funções — da direção ao figurino — e, claro, fez o papel de Jesus. "A comunicação é um dom de Deus. Deus bagunçou comigo", diz. A música foi fundamental para que Manzotti enchesse paróquias de Curitiba, onde mora e prega atualmente. "Percebi que as pessoas vinham mais quando sabiam o que íamos tocar." Ecumênico na música, ele vai do reggae ao sertanejo. As composições, diz, vêm por inspiração divina. "Não é como baixar o santo, mas a música brota quando Deus quer." O padre cuida bem da aparência, e garante que não se trata do pecado capital da vaidade: "Cuidar do corpo é um ato de amor a Deus", diz. Nas missas, veste batina, mas em celebrações especiais vai de jeans justo, camisa social com mangas dobradas e colarinho de padre. "Sei usar coisa boa. A manga da camisa, por exemplo, não pode passar dos 70 centímetros. Aprendi em casa que sapato marrom não combina com cinto preto." Viajar é um dos prazeres de Manzotti. Em 2007 ele foi para o Egito e, em 2009, para a Índia, e adorou andar entre muçulmanos e hindus. "Vai me dizer que Deus não está lá? Está. Não existe fé naquele povo? Existe, sim, às vezes mais do que entre a gente." Manzotti diz até que, se não fosse católico, seria muçulmano: "Fora os fundamentalistas, os muçulmanos são monoteístas muito sérios, que vivem 24 horas por dia sua religião". Ele considera que, no Brasil, a "indiferença religiosa" é um problema mais grave que a migração de católicos para igrejas evangélicas. Mesmo assim, não deixa de atacar a "teologia da prosperidade" das rivais: "É uma coisa perigosa. Eles acabam se tornando mercenários". Diferentemente de outros padres pop, que se mantêm distantes de temas políticos, Manzotti gosta de uma crítica inflamada no meio da pregação. Na apresentação em Fortaleza, disse coisas como "gosto de futebol, mas o que nos roubaram para construir os estádios da Copa é um absurdo" ou "nós, brasileiros, não precisamos de bolsa, nem de esmola. Precisamos de emprego". Os fiéis aplaudiam. A missa de Manzotti é mesmo um show. O REINO DOS PADRES Os representantes do clero católico que são fenômenos de venda - em disco e livro Marcelo Rossi, 47 anos Sempre de batina, é o maior dos padres carismáticos no Brasil. Andou com um visual meio abatido recentemente, depois de fazer uma dieta maluca só de hambúrgueres Livros: 10 milhões de exemplares com Ágape, o livro mais vendido do país; Kaírós vendeu 2,1 milhões Discos: 14 milhões de cópias Curtidas no Face: 1,6 milhão Reginaldo Manzotti, 45 anos Faz um gênero mais politizado, com críticas a programas do governo. Nos discos, vai do samba ao sertanejo, e é fã de Guns N'Roses, Alanis Morissette, Caetano Veloso e Lulu Santos ("mais das letras que da pessoa") Livros: 2,8 milhões de exemplares com sete livros. Feridas da Alma, seu maior sucesso, vendeu 750.000 cópias Discos: 1 milhão de CDs e cerca de 500.000 DVDs Curtidas no Face: 3,3 milhões Fábio de Melo, 43 anos É o padre gato: vaidoso, gosta de grifes e cuida da beleza. Seus livros de autoajuda religiosa têm uma pegada lírico-sentimental Livros: 700.000 exemplares com cinco títulos lançados pela Planeta, mais 270.000 de livros em parceria com Gabriel Chalita Discos: 2 milhões de CDs e 200.000 DVDs Curtidas no Face: 2,9 milhões Juarez de Castro, 44 anos Boa-pinta e articulado, é outro padre galã. Em São Paulo, para se locomover entre missas e compromissos de estúdio, rádio e TV, anda de moto Livros: 200.000 exemplares com dois títulos lançados pela Leya. Nas Asas da Esperança, pela Alaúde, vendeu 90.000 cópias Discos: 600.000 cópias com cinco discos Curtidas no Face: 208.000 9#5 VEJA RECOMENDA DVD CABARET (ESTADOS UNIDOS, 1972. CLASSICLINE; VENDA EXCLUSIVA PELA LIVRARIA CULTURA) • Adaptação do musical de John Kander e Fred Ebb (por sua vez inspirado em Adeus a Berlim, livro do escritor inglês Christopher Isherwood), Cabaret foi o melhor momento artístico de Liza Minnelli (que ganhou o Oscar de atriz) e Bob Fosse (Oscar de direção). Liza, no auge da beleza e da perfeição técnica, consegue convencer o público de que não passa de uma performer medíocre — a americana Sally Bowles, que tenta a vida num cabaré decadente de Berlim. O coreógrafo e cineasta Fosse, entre um e outro número brilhante de dança, desvenda o que se esconde por trás do sorriso e da maquiagem dos performers do tal cabaré: a decadência econômica e moral da Alemanha dos últimos anos da República de Weimar, logo antes da ascensão do nazismo. Em Cabaret não há personagens nobres nem finais edificantes: é um musical cínico e tão falso quanto o sorriso do mestre de cerimônias, interpretado com maestria por Joel Grey (outro Oscar, como ator coadjuvante). Mein Herr, cantada por Liza, e a desesperada (ainda que, na aparência, festiva) Willkommen, interpretada por Grey e Liza, são de pular do sofá e aplaudir de pé. LIVROS CULPA, DE FERDINAND VON SCHIRACH (TRADUÇÃO DE MILTON CAMARGO MOTA; RECORD; 176 PÁGINAS; 32 REAIS) • Renomado advogado alemão, Ferdinand von Schirach usou a experiência profissional — entre seus clientes há de ex-espiões da Stasi, a infame polícia secreta da falecida Alemanha Oriental, a empresários internacionais — em Crimes, seu primeiro livro de contos, que já vendeu mais de 1 milhão de exemplares em todo o mundo. Culpa retoma o mesmo formato, com quinze narrativas breves que põem em xeque não só a natureza dos delitos cometidos como a responsabilidade de quem os cometeu. Os textos são fragmentados com cortes cinematográficos (o livro foi transformado em série na TV alemã); os personagens se comunicam com olhares, gestos e poucas palavras; e a violência está em toda parte. Há uma jovem estuprada durante as comemorações do aniversário de uma cidadezinha, uma dona de casa que usa o roubo como agente rejuvenescedor e um velho que aluga a cozinha de seu apartamento a traficantes de heroína. Nem sempre a justiça será feita. Não à toa, o autor utiliza como epígrafe uma frase de Aristóteles: "As coisas são como são". O VALOR DO RISO, DE VIRGÍNIA WOOLF (TRADUÇÃO DE LEONARDO FRÓES; COSACNAIFY; 512 PAGINAS; 52 REAIS) • "Tão logo nos esquecemos de rir, vemos coisas fora de proporção e perdemos nosso senso de realidade", diz a escritora inglesa Virgínia Woolf (1882-1941) no ensaio que dá título a esta coletânea selecionada pelo poeta e ensaísta Leonardo Fróes. São textos, na maioria inéditos no Brasil, produzidos entre 1905 e 1940 e publicados em jornais e revistas dos quais Virgínia era colaboradora assídua — como o Guardian e o New York Herald Tribune. A autora dos romances Orlando e Mrs. Dalloway se dedica aqui a dissecar assuntos diversos a partir de um olhar original e moderno e de uma escrita primorosa. Nas suas considerações argutas e sempre bem-humoradas, Virgínia resenha as memórias da atriz francesa Sarah Bernhardt, dá conselhos práticos em Como Se Deve Ler um Livro?, traça um retrato tragicômico do Belo Brummell — célebre fashionista do século XIX — e relata a sensação de terror impotente diante das bombas despejadas pelos alemães sobre a Inglaterra na II Guerra. É a mordacidade britânica destilada com propósitos artísticos e, apesar do espírito de época, ainda surpreendentemente atual. DISCO CINEMA VIVALDI: THE FOUR SEASONS, RECOMPOSED BY MAX RICHTER (DEUTSCHE GRAMMOPHON/UNIVERSAL) • Composta em 1725 pelo veneziano Antonio Vivaldi (1678-1741), As Quatro Estações é uma das mais populares peças do período barroco, quase ao ponto de se tornar um clichê. Estima-se que tenha passado das 500 gravações em disco — e já foi tema até de comercial de xampu. Max Richter, compositor alemão naturalizado na Grã-Bretanha, apresenta aqui uma espécie de versão 2.0 da criação de Vivaldi. Um tanto distante do exercício virtuosístico de violino característico do original, a versão de Richter soa minimalista. Alguns dos movimentos são precedidos por efeitos eletrônicos e bases pré-gravadas que lembram as obras do início de carreira do americano John Adams — como se pode observar no movimento de abertura. O solo de violino de Verão é calcado nos trabalhos do estoniano Arvo Pärt. outro nome de peso da música contemporânea. As traquinagens musicais de Richter não tiram o prazer da audição dessas novas Quatro Estações. Principalmente porque elas são executadas pelo violinista inglês Daniel Hope, que tem a dose exata de técnica e sensibilidade musical. CINEMA O HOMEM DUPLICADO (ENEMY, CANADÁ/ESPANHA, 2013. JÁ EM CARTAZ NO PAÍS) • Diretor dos melodramas de alto impacto Incêndios e Os Suspeitos, o canadense Denis Villeneuve agora parte para um registro que se poderia definir como "viajandão", numa veia entre David Lynch e David Cronenberg. No filme adaptado do romance homônimo de José Saramago, Jake Gyllenhaal é Adam Bell, um professor de história solitário que, certo dia, ao alugar um filme, descobre que um dos atores é um duplo seu. Depois de alguma pesquisa, Adam localiza o sósia: é Anthony Claire, que tem uma jovem esposa grávida com quem não anda muito bem e está metido em certas atividades subterrâneas. Ninguém, nem Helen (Sarah Gadon), a esposa grávida, nem Mary (Mélanie Laurent), a amante eventual de Adam, parece ser capaz de distingui-los. Eles próprios, aliás, parecem atingidos pela confusão de identidades. Fotografando Toronto sob uma doentia luz amarelada e às vezes valendo-se de elementos fantásticos (uma tarântula será um símbolo recorrente), Villeneuve distorce não só a cidade como também o senso de orientação da plateia, em uma experiência que nem sempre se explica mas que nunca deixa de intrigar. 9#6 OS LIVROS MAIS VENDIDOS FICÇÃO 1- A Culpa É das Estrelas. John Green. INTRÍNSECA 2- Cidades de Papel. John Green. INTRÍNSECA 3- Quem É Você, Alasca? John Green. MARTINS FONTES 4- A Guerra dos Tronos. George R.R. Martin. LEYA BRASIL 5- O Teorema de Katherine. John Green. INTRÍNSECA 6- A Escolha. Kiera Cass. SEGUINTE 7- A Fúria dos Reis. George R.R. Martin. LEYA BRASIL 8- O Festim dos Corvos. George R.R. Martin. LEYA BRASIL 9- A Dança dos Dragões. George R.R. Martin. LEYA BRASIL 10- A Tormenta de Espadas. George R.R. Martin. LEYA BRASIL NÃO FICÇÃO 1- A Estrela que Nunca Vai Se Apagar. Esther Earl. INTRÍNSECA 2- Demi Lovato – 365 Dias do Ano. Demi Locato. BEST SELLER 3- O Réu e o Rei. Paulo Cesar de Araújo. COMPANHIA DAS LETRAS 4- Sonho Grande. Cristiane Corrêa. PRIMEIRA PESSOA 5- 1889. Laurentino Gomes. GLOBO 6- O Livro da Psicologia. Nigel Benson. GLOBO 7- Guia Politicamente Incorreto do Futebol. Jones Rossi e Leonardo Mendes Junior. LEYA BRASIL 8- Assassinato de Reputações. Romeu Tuma Jr. E Claudio Tognolli. TOPBOOKS 9- 1808. Laurentino Gomes. PLANETA 10- O Diário de Anne Frank. Anne Frank. RECORD AUTOAJUDA E ESOTERISMO 1- Ansiedade. Augusto Cury. SARAIVA 2- Eu Me Chamo Antonio. Pedro Gabriel. INTRÍNSECA 3- Casamento Blindado. Renato e Cristiane Cardoso. THOMAS NELSON BRASIL 4- Pais Inteligentes Formam Sucessores, Não Herdeiros. Augusto Cury. BENVIRÁ 5- Não Se Apega, Não. Isabela Freitas. INTRÍNSECA 6- Eu Não Consigo Emagrecer. Pierre Dukan. BEST SELLER 7- Kairós. Padre Marcelo Rossi. PRINCIPIUM 8- Foco. Daniel Goleman. OBJETIVA 9- O Monge e o Executivo. James Hunter. SEXTANTE 10- A Magia. Rhonda Byrne. SEXTANTE 9#7 ROBERTO POMPEU DE TOLEDO – IMAGINA NA COPA 1- Imagina na Copa. De tanto imaginarmos, esquecemos do principal: que Copa é um congregado-monstro de estrangeiros em férias, e, como tal, com o compromisso primeiro de divertir-se. O bom humor dos estrangeiros sufocou o mau humor nacional. Não há desorganização ou falta de infraestrutura que derrube o ímpeto de quem vem para festejar. O clima entre os estrangeiros contagiou os nacionais e, pelo menos nestes primeiros dias, o que se teve foi o Brasil em suspenso, flutuando no ar entre um outono de todos os descontentamentos e uma campanha eleitoral que se anuncia sangrenta. 2- O maior gol contra do jogo de abertura não foi o do lateral Marcelo. Foi o da turma do xingamento contra Dilma. A presidente, que entrara em campo derrotada de goleada pelos desenganos nos preparativos para o evento, ali virou o jogo. Saiu como a mártir da selvageria vip. O PT ainda terá muito a aproveitar do inglório episódio. 3- Considerado todo o elenco da atual seleção brasileira, apenas um jogador tem apelido — Hulk. Nota-se ao mesmo tempo a tendência para a identificação com nome e sobrenome (Daniel Alves, Thiago Silva) ou nomes duplos (Luiz Gustavo, David Luiz). O fenômeno talvez reflita a influência do modo europeu de chamar os craques (e as pessoas em geral) ou talvez consista numa tentativa de mobilização, contra os nomes com origem na vida de moleques, mal saída do ambiente da senzala, como Didi, Pelé ou Garrincha. 4- Já os nomes da seleção portuguesa, do goleiro Rui Patrício ao meio-campo João Moutinho, conduzem aos romances portugueses do século XIX. O insuperável Fábio Coentrão podia ser um cunhado do padre Amaro ou um dos pretendentes à morgadinha dos Canaviais. Duas Copas atrás Portugal contava com um jogador que, sem medo de ser feliz, se chamava Luís Boa Morte. 5- Arena era o local em que os romanos assistiam aos gladiadores estriparem-se entre si ou ser estripados pelas feras. Estádio era onde os gregos encenavam as competições esportivas, entremeadas de danças e torneios de poesia. O local em que se jogava futebol era estádio; agora é arena, uma moda que não nasceu no Brasil — foi importada e aqui oficializada pela poderosa Fifa. A truculência romana venceu a graça grega, um espelho dos nossos tempos. 6- Jogador careca já entra em campo perdendo. Não tem penteado moicano, fios pintados de amarelo nem espanador a coroar-lhe o cocuruto. Poderia quem sabe arriscar uma tatuagem na careca, mas isso, salvo engano, ninguém ainda tentou. Acresce que parece velho e que infelizmente seja mentira que elas gostem mais deles. O holandês Robben tinha contra si esse rol de improbabilidades, ao abraçar a carreira de futebolista. No entanto, é o homem-flecha da Copa, o orgulho da classe e prova de que há futuro mesmo para craques que jamais seriam convidados para anúncios de cuecas. 7- Mestres-escolas implacáveis mostram-se os avaliadores da atuação dos jogadores nos jornais. Robben acabou com a Espanha, e recebeu 9 da Folha de S.Paulo. Outro holandês, Van Persie, fez gol candidato a mais bonito da Copa e ganhou também 9. Um avaliador convidado, o publicitário Washington Olivetto, deu também 9 a Robben e rebaixou Van Persie a 8,5. Ô Washington, que mais será preciso fazer para ganhar 10? O goleiro Ochoa, do México, que fez milagres contra o Brasil, também ganhou 9 da Folha e do convidado, dessa vez Serginho Groisman. Parece que precisaria caprichar mais. 8- A Espanha dos últimos anos caracterizou-se por um jogo morrinha, o mesmo que antigamente no Brasil se chamava de "jogar de lado". Foi campeã em 2010 ganhando quatro dos sete jogos por 1 a 0, perdendo um (Suíça, por 0 a 1), e aplicando contra a inofensiva Honduras seu maior placar (2 a 0). No Barcelona, do qual foi importado, o estilo funciona porque uma hora a bola sobra para Messi, que, ao contrário, joga em direção ao gol. Agora, junto com a eliminação da Espanha, caem de quebra, para o bem do futebol, o injustificado prestígio do jogo sonolento e o fetiche da "posse de bola". 9- O mau desempenho do Brasil contra o México ressuscitou o fantasma do "imagina na Copa". Imagina na próxima etapa da Copa, se o Brasil for logo eliminado. Imagina a Copa no Brasil sem o Brasil.