0# CAPA 17.9.14 VEJA www.veja.com editora ABRIL edição 2391 – ano 47 – nº 38 17 de setembro de 2014 [descrição da imagem: do lado direito da capa, o desenho, em caricatura, de uma grande boca muito aberta, como gritando, aparecendo lábios vermelhos e dentes, de dentro saindo cobras, lagartos, facas, flechas, etc. Na frente desta bota, em tamanho pequeno, o desenho de Marina Silva, mesmo bem menor que a boca, Marina tem uma postura de enfrentamento, cabeça erguida, punhos fechados.] A FÚRIA CONTRA MARINA Nunca antes neste país se usou de tanta mentira e difamação para atacar um adversário como faz agora o PT. [parte superior da revista, lado direito: foto do ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa] EXCLUSIVO O PT paga a chantagistas para escapar do escândalo da Petrobras. [parte superior, lado esquerdo: foto do relógio da Apple] O RELÓGIO DA APPLE Ao lançar um produto que Steve Jobs adoraria ter feito, a empresa renasce como a mais inovadora do planeta. ______________________________ 1# SEÇÕES 2# PANORAMA 3# BRASIL 4# ECONOMIA 5# INTERNACIONAL 6# GERAL 7# ARTES E ESPETÁCULOS _________________________________ 1# SEÇÕES 17.9.14 1#1 VEJA.COM 1#2 CARTA AO LEITOR – QUANDO O PT CONTROLA A MÍDIA,... 1#3 ENTREVISTA – CÁRMEN LÚCIA – “TEMOS DE TER PRESSA” 1#4 CLAUDIO DE MOURA CASTRO – HÁ DOIS BRASIS NA OBRA DA MINHA CASA 1#5 MAÍLSON DA NÓBREGA – PRESIDENTE: LÍDER OU GERENTE? 1#6 LEITOR 1#7 HUMOR – AGAMENON MENDES PEDREIRA – O PETRÓLEO É DELES! 1#8 BLOGOSFERA 1#1 VEJA.COM BATEU NO EMPREGO O pífio desempenho da economia brasileira — tecnicamente em recessão — ainda não resultou em elevação da taxa de desemprego, e esse tem sido um dos feitos mais alardeados pela presidente Dilma Rousseff em sua campanha pela reeleição. Os últimos dados de criação de vagas apontam, contudo, uma mudança de cenário. De janeiro a agosto deste ano, o saldo de empregos criados foi o mais baixo desde que o PT assumiu o poder. Levantamento feito a pedido do site de VEJA pelo economista Hélio Zylberstajn, da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), mostra que a desaceleração do mercado de trabalho só não se refletiu na taxa de desemprego porque a oferta de mão de obra também está caindo. Entre abril de 2013 e abril de 2014 (o último mês em que o indicador foi calculado pelo IBGE), 528.000 pessoas optaram por não trabalhar. Se ainda estivessem no mercado de trabalho, o desemprego saltaria de 4,9% para 7%. APOSTAS DE CRESCIMENTO Em que áreas o Brasil deve investir em inovação tecnológica hoje para colher frutos daqui a dez ou vinte anos? Reportagem de VEJA ouviu especialistas, entre eles Carlos Américo Pacheco, reitor do ITA, Fábio Gandour, cientista-chefe da IBM Brasil, e Felipe Scherer, consultor em gestão da inovação da Innoscience, que apostam em seis setores: agronegócio, aviação, energia, tecnologia de informação, cosméticos e construção civil. Eles dizem por que e como o Brasil deve concentrar seus esforços e quais seriam os prejuízos de não fazê-lo. ESTRANHA ATRAÇÃO Vídeos com imagens reais de atrocidades, como os dos jornalistas americanos decapitados no Iraque e o do menino que teve o braço arrancado por um tigre no Paraná, ficaram por dias entre os mais vistos na internet. Em reportagem no site de VEJA, psiquiatras, neurologistas e psicólogos explicam de onde vem essa atração irresistível, e aparentemente ilógica, de apertar o play para cenas tão aterradoras. HUMORISMO-VERDADE Autodeclarado "jornalista de caráter duvidoso e passado marrom", Agamenon Mendes Pedreira assina a partir desta edição uma coluna semanal em VEJA e um blog com atualização diária em VEJA.com. Depois de narrar para VEJA e PLACAR as desventuras da seleção na Copa do Mundo — e pedir "Volta pra casa, Brasil!" —, Agamenon estende o olhar para outros temas do noticiário, a começar pela corrida eleitoral. A divisa é a mesma: "Jornalismo-mentira e humorismo-verdade". 1#2 CARTA AO LEITOR – QUANDO O PT CONTROLA A MÍDIA,... ...como no programa de Dilma, produz mentiras, exageros e manipulações. Dilma Rousseff, do PT, tem direito a onze minutos e 24 segundos de tempo de televisão gratuito para fazer sua campanha de reeleição à Presidência da República. Marina Silva, do PSB, tem dois minutos e três segundos. Isso não é certo nem errado. É o que determina a lei eleitoral. Dilma tem mais tempo porque a coligação de partidos que a apoiam é mais numerosa do que a de Marina. Mas o que Dilma fala e o que tem deixado veicular em seu programa eleitoral é de responsabilidade exclusiva dela. Uma reportagem desta edição de VEJA mostra que Dilma e o PT estão preenchendo seus onze minutos e 24 segundos de programa com uma inescrupulosa sucessão de mentiras, exageros, manipulações e acusações falsas a Marina Silva. São imagens e narrações feitas para ludibriar o eleitor, e não para esclarecê-lo sobre os reais pontos fracos da adversária, o que seria altamente desejável em uma campanha eleitoral curta e tão cheia de surpresas quanto a deste ano. Mas não. O PT foge do confronto de ideias. O partido recorre a trucagens baratas em que pratos de comida somem de repente da mesa das pessoas enquanto o narrador explica que é isso que vai acontecer se Marina ganhar e der independência ao Banco Central. Em outra passagem, é o conteúdo dos livros que desaparece em passe de mágica das mãos das crianças, o que o PT assegura ocorrerá com a educação se Marina vencer. O PT deve saber que tipo de eleitor se deixa convencer por esse discurso baseado em premissas falsas e conclusões terroristas. Essa abordagem pode até ter efeitos eleitoreiros, mas desserve a nação e desmoraliza o processo eleitoral. No programa de Dilma, o PT mostra o que é capaz de fazer quando lhe é dada a oportunidade, na plenitude, de exercer o seu tão almejado controle social dos meios de comunicação. E o que o PT produz quando controla a mídia? Mentiras, exageros, manipulações e acusações falsas, que fariam a desgraça de qualquer órgão de imprensa sério e independente. Felizmente vivemos na democracia e VEJA, mais uma vez, cumpre seu papel nela, desmascarando mentiras dadas como verdades. Esse é o nosso compromisso com o leitor, e nele vamos perseverar. 1#3 ENTREVISTA – CÁRMEN LÚCIA – “TEMOS DE TER PRESSA” A recém-empossada vice-presidente do Supremo diz que o Estado é alvo de insatisfações porque é devedor e que o Judiciário tem de acompanhar o ritmo de exigência da sociedade. MARIANA BARROS A mineira Cármen Lúcia Antunes Rocha assumiu no último dia 10 a vice-presidência do Supremo Tribunal Federal, corte que integra há oito anos. Tomou posse ao lado do ministro Ricardo Lewandowski, que assumiu a presidência em substituição a Joaquim Barbosa. De perfil discreto — manteve distância de todas as discussões mais acaloradas travadas por seus colegas durante o julgamento do mensalão —, votou a favor do aborto de fetos anencéfalos, da união civil homossexual e da Lei da Ficha Limpa. De 2012 a novembro do ano passado, foi também a primeira mulher a comandar o Tribunal Superior Eleitoral. Solteira, ela mora sozinha em um apartamento em Brasília, onde faz questão de não ter empregados (cozinha a própria comida e serve ela mesma as visitas) e concedeu a VEJA sua primeira entrevista nos últimos dois anos. O julgamento do mensalão foi um divisor de águas para o STF e seus magistrados, que tiveram uma grande exposição durante o processo. Em que medida isso afetou a instituição? O que acontece conosco hoje é algo que acontece a um juiz desde sempre, especialmente nas pequenas localidades. Tenho um amigo que foi juiz no interior e é fumante. Ele diz que, se fosse comprar fósforos no bar às 10 da manhã, à tarde já haveria um movimento na cidade para tirá-lo do cargo porque ele tinha sido visto mais cedo num bar. O juiz é uma autoridade conhecida, especialmente nas cidades pequenas. Então, a novidade é que essa vigilância agora se estendeu aos tribunais superiores. Trata-se de um processo natural das democracias amadurecidas. Quem exerce um cargo do Estado há que ser alguém que o cidadão saiba quem é. Mas nos Estados Unidos, por exemplo, a exposição dos magistrados da Suprema Corte é bem menor. Aqui, a senhora é parada na rua... Sim. Durante o julgamento do mensalão, muitos me paravam, inclusive para dizer coisas como: "Cármen, aquele ministro lá não gosta de você, tome cuidado". Achavam que, porque discutíamos, vivíamos às turras. A TV potencializa uma ou outra fala, uma discussão ali na hora, mas depois vamos para a sala de lanches, contando casos, e tudo volta ao normal. A transmissão dos julgamentos pela TV foi outro marco na história do tribunal. A senhora é favorável a ela? A TV Justiça não apenas fez com que a comunidade jurídica como um todo pudesse assistir aos julgamentos — do STF e do TSE também —, como permitiu que o vereador ou candidato a vereador do interior do norte de Minas ou do Nordeste pudesse acompanhar o julgamento dele. Foi uma mudança muito grande, realmente. As pessoas passaram a fazer comentários sobre o voto. Os julgamentos da interrupção de gravidez de feto anencéfalo e da demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, por exemplo, tiveram ampla cobertura da imprensa. O ápice desse processo veio com o julgamento da ação penal 470. Uma ação penal, numa cidade do interior, é sempre motivo de muita conversa. Só que, desta vez, isso aconteceu nacionalmente. As transmissões também deram margem a críticas da parte de quem viu no uso da linguagem jurídica pelos magistrados um obstáculo para a aproximação do tribunal com o cidadão. Qualquer um de nós, servidores públicos, é um servidor do povo e, portanto, tem de falar com o povo. No caso dos juízes, a linguagem pode mesmo ser um obstáculo. Eu senti isso mais até quando presidi o TSE. Julgava "embate com efeitos infringentes para alteração nos termos da lei número tal inciso tal" e o vereador de uma cidade lá do interior telefonava e perguntava: "Ministra, eu ganhei ou perdi?". Mas, como digo, ocorre conosco o milagre da transubstanciação jurídica — ou seja, uma palavra nossa torna-se parte da vida de uma pessoa. A palavra prisão, por exemplo, é só uma palavra. Mas, neste momento, vários juízes estão dando suas sentenças, e a palavra prisão passará a ser a vida de algumas pessoas nos próximos dez anos. Temos de ter cuidado para que o outro saiba o que significa cada palavra que usamos e por que estão sendo ditas, pois nós não somos livres para decidir. Como assim? O que existe é o fato e sua comprovação no processo. Nosso papel é ver que lei se aplica à situação. Não há liberdade nisso. É preciso deixar qualquer paixão na geladeira e ir ao tribunal com toda a compaixão do mundo. E separar a paixão da compaixão é um exercício que eu só aprendi na última década (antes de integrar o STF, ela foi procuradora-geral do Estado de Minas). Aquilo que eu quero ou de que gosto não está em pauta. A senhora condenou o ex-ministro José Dirceu por corrupção, mas, como a maioria de seus colegas, absolveu-o da acusação de formação de quadrilha. Em boa parte por isso, ele deve sair da cadeia já no mês que vem. O que diria às pessoas que veem nessa liberação uma prova de que poderosos vão para a cadeia mas não ficam muito tempo lá? A explicação tem de ser dada pelo próprio direito, que existe para punir quem tenha sido condenado, não para promover vinganças segundo conveniências pessoais. Tenho muita fé em que os cidadãos vão entender cada vez com mais clareza que qualquer condenação que ultrapasse o direito é vingança, não justiça. E vingança se tem na barbárie, não na civilização. Se ele cumprir sua pena, terá pago seu débito para com a sociedade. Qual é o maior desafio do Judiciário brasileiro hoje? Temos de ter a mesma pressa da sociedade. Não devemos andar nem tão depressa a ponto de irmos na frente nem tão devagar de forma a ficar para trás. Temos de saber qual o ritmo de exigência da sociedade e como, dentro da lei, promoveremos a reinvenção do Estado, que é a palavra a ser pregada. É preciso uma reinvenção institucional para dar uma resposta eficaz ao cidadão que nos põe lá para que se faça o que é preciso ser feito. O Estado brasileiro é devedor e, sendo devedor, cada vez mais vira alvo de insatisfações. A vida é tão passageira que digo que meu lema é felicidade já, justiça já. Ninguém está com paciência de esperar. O cidadão trabalha e quer ter educação, saúde e justiça rápida, não aceita mais essa realidade que lhe é oferecida. Desconhece, porém, o que leva à demora nas decisões. E o que leva a essa demora nas decisões? Temos um Judiciário artesanal para uma sociedade de massa. Depois da Constituição de 1988, o brasileiro passou a buscar o seu direito, o que é um fenômeno próprio da democracia. Mas hoje a litigiosidade da sociedade brasileira é das maiores do mundo. São 85 milhões de processos para 200 milhões de habitantes e 18.000 juízes. Até os juizados especiais para causas de menor valor perderam agilidade. A saída para esse impasse passaria por restringir o número de processos em tramitação? Não. É preciso que o Judiciário se repense para comportar a cidadania em juízo. Não se podem limitar as possibilidades do cidadão para que ele caiba no Judiciário. E isso precisa ser feito com a quantidade de julgamentos que temos e com a qualidade que exigimos na sua apreciação, porque cada processo trata da vida de uma pessoa. E eles são muitos no STF. Sim. A corte americana julga algumas centenas de processos, enquanto há quase 60.000 no STF. Outro dia eu julguei o caso de um furto de três barras de chocolate. Era necessário ter chegado ao STF? Se era, como proceder? Os juízes brasileiros trabalham muito. Desde que cheguei ao Supremo, há oito anos, não sei o que é ter um trabalho findo. Tenho 2000 processos sob a minha relatoria. Se tiver de pedir algo ao cidadão brasileiro, eu pedirei misericórdia. É uma função difícil, e eu estou tentando acertar, mas sei que a demora na decisão sempre será maior que aquela que quem está esperando é capaz de aguentar. Guimarães Rosa dizia que sorte é merecer e ter alguma coisa. Digo que o brasileiro merece um país justo, e a sorte será sermos capazes de fazer um Brasil justo. O Estado perdeu a capacidade de atender às expectativas da sociedade? Sem dúvida. Estamos maquiando um cadáver, um modelo de Estado que já morreu, da Revolução Francesa. Na campanha de 1919, Rui Barbosa fez um discurso em que conclamava o povo a não continuar a ser um Jeca Tatu, como dizia Monteiro Lobato em Urupês. Nestes 95 anos que se passaram, o povo brasileiro se levantou, pensou e gritou o que queria. Mas o Estado não fez a mudança tão rapidamente quanto se exigiu. Um dos principais problemas das campanhas eleitorais é a "guerra suja" na internet. A senhora, que comandou o Tribunal Superior Eleitoral até o ano passado, acha que a Justiça tem instrumentos para combatê-la? A Justiça Eleitoral manda retirar do ar conteúdos quando se demonstra abuso ou fraude. O problema é que, quando esses conteúdos são retirados, já produziram efeitos. Pode citar um exemplo? Nestas eleições, foi criada uma página supostamente de responsabilidade da campanha de Eduardo Campos. Mas ela entrou no ar antes do início do prazo permitido para a propaganda eleitoral. Na ocasião, nossa suposição foi que havia sido criada por adversários dele porque, caso um candidato não consiga comprovar que determinada postagem não tem nada a ver com ele, isso pode configurar, por exemplo, propaganda antecipada e gerar situações de inelegibilidade. Ainda não se encontrou um marco regulatório para a internet. Outra situação possível numa eleição: se "plantarem" algo que gere uma semente de informação falsa, teremos opções falsas e, por mais livre que seja a escolha, ela já estará fraudada. Esse é o perigo desse tipo de faroeste virtual. A importância do marketing político tem crescido nas últimas campanhas. A senhora considera que há uma valorização exagerada da imagem dos candidatos em detrimento das suas propostas? O presidente Itamar Franco dizia que, se alguém tivesse de lhe dizer como se pentear, ele deixaria de acreditar em si mesmo e não teria coragem de pedir votos ao eleitor. Vivemos em uma sociedade em que a imagem tem tido um valor maior que o da palavra. O eleitor vota no que ele viu e cobra o que não foi capaz de enxergar. A eleição deste ano deve trazer algum avanço em relação às anteriores? Pela primeira vez, ultrapassamos o mínimo exigido por lei de candidatas mulheres. A lei prevê 30%, e temos 31%. Há ainda três candidatas a presidente da República, duas delas com chance de vencer. E, apesar de todos os preconceitos contra a mulher — e falo isso de cátedra —, o brasileiro vê o quadro com naturalidade. Em que situação a senhora sentiu ter sofrido preconceito por ser mulher? Em diversas situações. O preconceito nem sempre se manifesta por gestos ou palavras, às vezes vem num olhar. Uma mulher que use, por exemplo, um carro oficial muitas vezes verá alguém ao lado lançar-lhe um olhar de reprovação, porque pensará que é uma dondoca, e não que detém um cargo. Lembro-me de uma vez em que, sem saber que eu era ministra do STF, um taxista falava mal de uma juíza da corte e concluiu: "Aquilo não é lugar para mulher". E há os que não falam, mas pensam e demonstram esse pensamento, não conseguem segurá-lo. Já sofri e continuo sofrendo preconceito. A senhora estudou em colégio de freira e já disse que passou muitos anos apenas obedecendo. Como se sente mandando agora? Não tenho problema em mandar. Eu brinco que tudo o que as mulheres querem ouvir depois dos 50 anos não é "eu te amo", mas "sim, senhora". Claro que também gostam de ouvir "eu te amo". Mas, se for possível "sim, senhora, eu te amo", aí será maravilhoso. 1#4 CLAUDIO DE MOURA CASTRO – HÁ DOIS BRASIS NA OBRA DA MINHA CASA claudiodemouracastro@positivo.com.br Durante os primeiros anos da USP, por lá andou uma boa leva de sociólogos franceses. R. Bastide e J. Lambert se impressionaram com a chocante diversidade do país. Daí os livros Brasil, Terra de Contrastes e Os Dois Brasis. Na década de 50, o economista Ignácio Rangel falava da "contemporaneidade do não coetâneo", para descrever a convivência no mesmo espaço de camadas sedimentarias, tecnológicas e sociais. Com meus olhos de pesquisador, delicio-me no canteiro de obras da minha casa de campo, pois ele expõe todos esses Brasis em poucos metros quadrados. Mas, como proprietário, pagando as contas, sofro a calamitosa improdutividade dessa barafunda. Lá convivem processos oriundos de séculos diferentes. Comparecem as tribos digitais, desenhando a casa, com uma versão do AutoCAD que só poderia ser a última. O software mágico do calculista faz tudo. Mas não impediu que ele mandasse fazer buracos fundos, em vez de grandes placas para "boiar" a casa no solo de areia. Doeu na conta do banco. A estrutura, em light steel frame, é calculada em outro software sabidíssimo, que alimenta uma máquina ainda mais esperta, que corta, dobra, fura e identifica cada peça. As paredes chegam prontas à obra. Para orquestrar a montagem, só com operários que aprenderam fora do Brasil. Eles chegam de capacete, nível a laser, rádio para ouvir música (horrível!) e micro-ondas para esquentar a marmita. Dada a sua origem modesta, não acertam um só tempo de verbo. Mas sabem trabalhar e têm as ferramentas certas. O contrato prevê multa para cada dia de atraso na entrega. Os furos da laje são feitos com o último modelo de uma espantosa furadeira Hilti. A construção usa Tyvek, OSB, drywall e outros forasteiros. O sol cuidará de esquentar a água e gerar eletricidade. Com um template Excel, calculei a resistência térmica das paredes e telhados. Até aqui, estamos pairando entre o século XX e o XXI. Porém, não há como evitar a chegada a um outro país. Entre arquitetos, construtores e operários, muitas soluções não estão nas prateleiras das lojas, como deveriam. Precisam ser inventadas na hora, com perdas de tempo e resultados precários. Acumulando muitos meses de atraso, o primeiro construtor sumiu, levando parte do adiantamento. O segundo cumpre o prometido, mas seu clã é o retrato da nossa construção civil. O ritmo da reforma é ditado por batizados, ressacas, enterros e um nomadismo atávico. No dia aprazado para recomeçar a obra, a Kombi dos operários quebrou na estrada e o caminhão com os materiais foi parar dentro de uma mineração próxima. O concreto foi enviado no dia e na hora certos. Mas, no caminho, o motor do caminhão fundiu. Observo pedreiros, eletricistas e bombeiros trabalhando. Se o construtor está no seu cangote, a qualidade do serviço é adequada. Mas os materiais e as ferramentas ficam caoticamente espalhados no chão. As de corte costumam estar cegas. Os fios elétricos convidam a choques. Muitos enganos derivam do fato de que não usam papel e lápis para anotar o combinado. Quando têm uniforme, é o da empresa que deixaram — exceto se considerarmos a ubiquidade das sandálias Havaianas. Chama atenção uma diferença cultural: a combinação de imediatismo com falta de visão tecnológica. Diante de uma tarefa, um excelente operário começaria perguntando quais as melhores técnicas e ferramentas para fazer o serviço. Na minha obra, com ferramentas mais especializadas, a produtividade daria um salto. Outras vezes, ali mesmo, seria possível construir gabaritos, apoios e uma infinidade de dispositivos que facilitam o serviço. Minimamente, com as sobras de madeira, poderiam construir mesas de trabalho. Mas é apoiando na coxa que serram o cano. Falta a disposição de economizar em alguma coisa, para comprar ou fazer uma ferramenta mais produtiva. E falta também a determinação de buscar ou inventar tecnologias mais eficazes para cada situação. A Revolução Industrial foi essa busca, levada a um paroxismo. Mas nada disso está no horizonte dos que lá se encontram. Pobreza? Nem tanto. Chegam em automóveis razoáveis. Para nossa visão produtivista, a pobreza está nas suas cabeças. Mas não têm culpa, pois a falta de preparação é fruto do nosso descaso. CLÁUDIO DE MOURA CASTRO é economista 1#5 MAÍLSON DA NÓBREGA – PRESIDENTE: LÍDER OU GERENTE? A ascensão de Marina Silva nas pesquisas suscitou uma discussão sobre as características do presidente da República. Deve ser líder ou gerente? Muitos preferem a segunda qualidade, na linha de nossas tradições centralistas, mas tentarei demonstrar o que considero certo. Marina adota a primeira opinião. Afirmou recentemente que o presidente precisa ter visão estratégica. A atual presidente alia-se à segunda, conforme sua reação à declaração de Marina: "Quem diz isso nunca teve experiência administrativa". Para ela, o presidente tem de "dar conta de tudo", ou seja, "obra de aeroporto, rodovia, ferrovia, porto, Bolsa Família, Minha Casa, Minha Vida". A meu ver, o tempo do presidente — valioso — deve ser investido na articulação política, na interlocução com segmentos da sociedade e na orientação da equipe. Isso é fundamental para construir e ampliar o apoio ao seu programa. Ele (ou ela) é o líder que sabe escolher pessoas, delegar atribuições e confiar a outros as tarefas do dia a dia do governo. No livro Leadership without Easy Answers, Ronald A. Heifetz diz que a teoria sobre liderança política teria surgido, no século XIX, da ideia de que a história é feita por grandes homens e por seu respectivo impacto na sociedade (as mulheres não eram consideradas, então, candidatas à grandeza política). Thomas Carlyle (1795-1881) consagrou a teoria em livro sobre heróis políticos (1840). A ascensão ao poder requereria um conjunto "heroico" de talentos pessoais, habilidades e características físicas. A teoria foi contestada na segunda metade do século XX sob o argumento de que a história depende também de ingredientes além da ação de grandes homens, ainda que estes sejam imprescindíveis. Não se negou o papel do líder nem a ideia de que indivíduos fazem história, mas se reconheceu que diferentes situações requerem distintas habilidades. A meu juízo, o Brasil precisa de líderes políticos transformadores, capazes de empreender reformas e assim ampliar o potencial de crescimento e bem-estar. São pessoas aptas a mobilizar a sociedade e a classe política para enfrentar e resolver problemas, o que implica motivar, seduzir, agregar, organizar, orientar, focalizar. O líder virtuoso precisa ter visão de futuro, habilidade para construir maiorias no Congresso e capacidade para identificar e atacar os problemas mais relevantes de sua época. Rever opiniões, reconhecer erros e considerar novas realidades são igualmente atributos do líder sensato e verdadeiro. Fluência verbal, carisma e capacidade de se comunicar são características requeridas nas modernas democracias de massas, pois é assim que o líder transmite mensagens, ideias e estímulos. Valorizar a experiência administrativa para o exercício do cargo de presidente é menosprezar a boa política. O gerente não responde aos desafios da liderança em países democráticos. Abraham Lincoln e John F. Kennedy, grandes presidentes americanos, não haviam exercido cargos públicos de administração antes de eleitos. Winston Churchill e Margaret Thatcher, os mais importantes primeiros-ministros da Inglaterra no século XX, haviam sido apenas ministros. No Brasil, a experiência de Fernando Henrique em cargo executivo foi a de ministro de Estado por cerca de dois anos. Lula, nem isso. Marina foi ministra por mais tempo do que FHC. O presidente precisa ter qualidades de gestor, mas estas diferem radicalmente das associadas ao cotidiano da administração pública. Cuidar diretamente de obras, programas e outras atividades governamentais não é, definitivamente, a característica esperada de quem exerce o maior cargo do país. Essa é a responsabilidade de seus ministros e, na maioria dos casos, das pessoas escolhidas para gerir os órgãos da administração direta e indireta da União. Não se sabe se Marina possui todas ou as principais qualidades de liderança aqui resumidas. Duvida-se de sua capacidade de formar e manter a maioria parlamentar indispensável à aprovação das medidas previstas em seu programa de governo. Isso ela terá de provar caso se eleja e, depois, assuma o desafiante cargo de presidente da República. Marina não precisa mostrar que é gerente. MAÍLSON DA NÓBREGA é economista 1#6 LEITOR ESCÂNDALO DA PETROBRAS A delação premiada do ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa ("O delator entrega os nomes", 10 de setembro) comprovou o que já era considerado bastante plausível: o PT aparelhou a estatal e a usou para satisfazer os seus interesses quase sempre nada republicanos. Agora resta apurar com rigor a assertiva que consta na delação de que o ex-presidente Lula era ciente da existência desse esquema de corrupção. Vale lembrar que não é a primeira vez que Lula é citado como sabedor da existência de esquemas de corrupção em seu governo. Anteriormente, o empresário Marcos Valério e outras testemunhas fizeram o mesmo em relação ao mensalão que transcorreu durante o seu mandato. JORGE ALBERTO DA CUNHA RODRIGUES Rio de Janeiro, RJ Até quando vamos aturar esse bando de corruptos desviando dinheiro público para contas particulares? Até quando vamos olhar pacificamente essa corja de sanguessugas assaltar o povo brasileiro sem fazer nada? Até quando seremos coniventes com tudo isso? Até quando veremos crianças analfabetas, adultos ignorantes e idosos morrendo em portas de hospital enquanto nossos políticos guardam nossos recursos em polpudas contas particulares no exterior? Até quando vamos tolerar presidente, ministros, senadores e deputados verem sua cara estampada na mídia com provas de sua desonestidade e dizerem que não sabiam de nada ou que isso tudo é uma inverdade. Até quando? Cadê o gigante que tinha "acordado"? Cadê? RICARDO S. GARCIA Santa Rita do Sapucaí, MG A revista VEJA prestou um inestimável serviço ao Brasil ao divulgar as declarações de Paulo Roberto Costa, sobre o uso criminoso da Petrobras num autêntico mensalão 2. Uma organização ilegal se instalou no coração da maior estatal brasileira. Fica a pergunta: alguém tem dúvida de que chegou a hora de privatizar a Petrobras? EDSON GUERREIRO DOS REIS Belém, PA A máfia que tomou de assalto o Brasil nestes últimos anos tem se mostrado a cada dia mais suja. Por detrás das ações políticas e sociais desses governos existe uma ética tão distorcida, com seu exemplo nefasto, que nunca antes na história deste povo houve dano moral igual. JOSÉ LAMARTINE DE ANDRADE LIMA NETO Salvador (BA), via tablete Diante da revelação dos nomes envolvidos no mega-assalto à Petrobras, temo pela nossa democracia. O Brasil não suporta mais tanta corrupção e tamanho desmando governamental. LUDINEI PICELLI Londrina, PR Fui procurado na quinta-feira (4 de setembro) pela revista VEJA para responder sobre minha relação política com o senhor Paulo Roberto Costa. Na ocasião, neguei peremptoriamente qualquer tipo de negociação feita com o senhor Paulo. Apesar disso, a revista publicou apenas que eu "me encontrei com ele por duas vezes". Reafirmo que nunca fiz nenhuma negociação com o senhor Paulo Roberto Costa. Sempre atendi e vou continuar atendendo a imprensa de forma honesta e verdadeira. CÂNDIDO VACCAREZZA Deputado federal (PT-SP) Brasília, DF CARTA AO LEITOR Realmente, "Uma edição memorável" (Carta ao Leitor, 10 de setembro). Acrescento ainda: impecável, corajosa, clara e com um rigor expressivo. Rogo às autoridades competentes uma conclusão sobre o escândalo da Petrobras e, acima de tudo, clamo à sociedade brasileira que compareça à eleição para, por meio do voto consciente, demonstrar nossa indignação com os incontáveis escândalos. Gratidão imensa aos jornalistas de VEJA, que não desistem de nós e nos tratam com respeito e dignidade — muito diferente dos políticos. CARMEM VERONICA ARGARATE São Paulo (SP), via smartphone ELEIÇÕES 2014 Votar em Marina ou em Dilma significa sair do espeto e cair na brasa ("Marina sob fogo cerrado", 10 de setembro). Ainda que Marina tenha deixado o PT quando este foi flagrado fazendo tudo o que sempre condenou, isso não significa que ela tenha mudado a ideologia. Seu pensamento petista continua como sempre foi, invariavelmente contraditório e medíocre. DOMINGOS SÁVIO PEREIRA São Paulo, SP A carência de uma oferta política de qualidade e à altura do desafio de um grande país como o Brasil nos conduz tristemente a pensar no dito de Mark Twain: "Se você falar a verdade, você não precisará se lembrar de nada...". CELSO DE AZEVEDO Versalhes, França LYA LUFT Lya, parabéns pela coragem de abrir o verbo e se opor à avalanche "politicamente correta" que a tudo justifica e repassa a culpa — e consequentemente a responsabilidade — adiante ("Medo e preconceito", 10 de setembro). Não existem soluções únicas e simples para uma sociedade desnorteada como a nossa, mas também não existe mudança sem um primeiro passo. Mais uma vez, parabéns: de um profissional da saúde mental que vem observando alarmado o evoluir de nossa sociedade nas últimas duas décadas: e de um pai de infantes (de 4 e 8 anos) frustrado com a pouca perspectiva de mudança positiva nessa mesma sociedade. WAGNER GESSER Belém (PA), via tabtet Em 2014, percebe-se que o que era de "antigamente" está voltando para a nossa atualidade. As músicas de discoteca, a moda hippie, o pedido de namoro etc. Espero que o respeito ao próximo, a gentileza, o convívio de uma forma elegante, instruída assertivamente, com o diferente também possam voltar à moda. As agressões, sejam elas raciais, sociais, culturais, tornaram-se normais em nossa sociedade, causadas pelo preconceito e pela falta de educação. A escritora Lya Luft escreve de forma magistral sobre esses preconceitos que nos enchem de medo e que nos deixam cada vez mais reclusos, privando-nos de um bom convívio, uma "troca de mundos". O "castigo" de antigamente também deveria voltar à moda. Não falo em punição física, e sim em resgatar o respeito, os valores e os princípios, que nos tempos de hoje estão totalmente invertidos. Na verdade, estão totalmente negligenciados. ADRIANA HELUY Rio de Janeiro, RJ Nestes tempos do politicamente correto, pela primeira vez sou obrigado a discordar de Lya Luft. Quem já foi assistir a um jogo de futebol sabe que o torcedor xinga, grita, esbraveja durante a partida tentando tripudiar, e ao final é o primeiro a pedir autógrafo àquele que xingava. Mais importante hoje seria xingar, humilhar, detonar e execrar aquele corrupto que rouba não apenas o dinheiro público, mas também o hospital, a creche, a escola, a dignidade e a esperança de um povo. JOSÉ RENATO NASCIMENTO São Paulo, SP Vivemos no país da dualidade: apedrejamos quem comete um ato de racismo contra uma pessoa (que, apesar de ser algo repudiável, vale dizer que "piadinhas" do tipo eram "aceitas" até poucos anos atrás...), mas convivemos, com relativa passividade, com a corrupção e com desvios que destroem famílias inteiras de todas as raças deste país e, inclusive, elegemos mais de uma vez os envolvidos nas histórias "suspeitas". Devemos ter firmes (não cruéis) exemplos das atitudes decentes que queremos para o Brasil. No entanto, infelizmente, o preconceito não será eliminado com o fim do xingamento, porque a perversidade costuma ter mais poder no silêncio... PATRÍCIA G. REZENDE Por e-mail PAUL POLMAN A entrevista com o visionário presidente global da Unilever, Paul Polman ("CEO da sustentabilidade", 10 de setembro), é a prova concreta de que o modelo capitalista não é sinônimo de exploração incondicional dos recursos humanos e de esgotamento da natureza. Ele demonstrou que é possível o desenvolvimento econômico aliado à sustentabilidade e à melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores. Polman defendeu o auxílio de iniciativas privadas ao governo no combate a problemas que assolam a sociedade como um todo. MARIANE PADILHA Curitiba, PR É empolgante ver sustentabilidade e estratégia de negócios sendo um só objetivo, de forma prioritária e ainda inovadora, numa empresa tão globalizada. Virei fã de Paul Polman, CEO da Unilever. KARINA BUENAÑO FRANÇA PENIN Belém (PA), via smartphone Paul Polman deixa claro que o verdadeiro crescimento de uma economia está na forma sustentável de gerir seus recursos. PAULO CHIARELLI Porto Alegre (RS), via tablet HOLOFOTE Repudio, com veemência, os termos da nota "O dinheiro sumiu" (Holofote, 10 de setembro). Jamais recebi de quem quer que seja contribuição a ser dividida entre integrantes da bancada do meu partido, além de considerar improvável que qualquer empresário, no Brasil ou no mundo, faça doação de tal monta (30 milhões de reais, segundo a nota). As contribuições para a campanha eleitoral do candidato Lobão Filho, feitas rigorosamente de acordo com a lei, estão declaradas à Justiça Eleitoral. EDISON LOBÃO Ministro de Minas e Energia Brasília, DF APARTAMENTO DE NESTOR CERVERÓ Em nome do escritório Tauil & Chequer Advogados, esclareço, a respeito da reportagem "Conexão Uruguai" (10 de setembro), que o advogado Marcelo Oliveira Mello deixou de fazer parte desta sociedade em junho de 2008. IVAN TAUIL Sócio de Tauil & Chequer Advogados Rio de Janeiro, RJ RON PAUL O americano Ron Paul tem ideias lúcidas e coerentes que explicam o que estamos sofrendo por causa de políticas sociais e econômicas mal traçadas ("O radical libertário", 10 de setembro). Quem sabe nossos candidatos não conseguem um tempinho nas suas respectivas agendas e marcam um bate-papo com Ron Paul? ASTOR JOSÉ PINHEIRO CIRNE Salvador (BA), via tablet Será que Ron Paul não aceitaria naturalizar-se brasileiro e ser ministro de alguma coisa por aqui? ANTÔNIO FREDERICO CHASSERAUX SOUTO CORRÊA Santos (SP), via tablet J.R. GUZZO No artigo "Dinheiro falso" (10 de setembro), o excelente articulista foi bem fundo no âmago da circunstancial presente situação da política adotada pelo PT. Fez-me recordar a Alemanha nazista, quando Goebbels cultivava a persistente filosofia de que "uma mentira tantas vezes repetida acaba por se tornar verdade". Coincidentemente, o mesmo faz o PT: a insistente lavagem cerebral do desavisado eleitor incauto e, preferencialmente, inculto, sem o mínimo índice de discernimento. FERNANDO G. HABIB Salvador, BA Dilma Rousseff recorre, constantemente, ao estudo que houve para a troca do nome da Petrobras para Petrobrax no governo FHC, que infelizmente não vingou, pois ficaria mais forte foneticamente. Mas isso é tolice (mais uma) dela. Fico a pensar por que ela não trocou, então, o nome do lubrificante, da Petrobras, de Lubrax para Lubras? LUIZ ALBERTO PEPINO São Gabriel da Cachoeira (AM), via tablet ALEXANDRE SCHWARTSMAN E O BC Liberdade de expressão é direito fundamental, sagrado, do cidadão e eleitor brasileiro. O Banco Central do Brasil (via seu procurador-geral) deveria envergonhar-se de atacar judicialmente a objetiva, fática e técnica opinião do economista Alexandre Schwartsman sobre os descaminhos recentes do órgão, como bem informou a reportagem "Difamação ou opinião?" (10 de setembro). Atrevo-me a dizer que em qualquer das gestões de Henrique de Campos Meirelles tal descabimento e indignidade não teriam ocorrido para assim macular essa importante autarquia. PAULO KANTOR São Paulo, SP LIVROS Na reportagem "Cidadãos honorários" (3 de setembro), fui identificado como "historiador". Sinto-me lisonjeado, mas na verdade sou apenas jornalista e autor de A História do Brasil nas Ruas de Paris. MAURÍCIO TORRES ASSUMPÇÃO Paris, França PARA SE CORRESPONDER COM A REDAÇÃO DE VEJA: as cartas para VEJA devem trazer a assinatura, o endereço, o número da cédula de identidade e o telefone do autor. Enviar para: Diretor de Redação, VEJA - Caixa Postal 11079 - CEP 05422-970 - São Paulo - SP: Fax: (11) 3037-5638; e-mail: veja@abril.com.br. Por motivos de espaço ou clareza, as cartas poderão ser publicadas resumidamente. Só poderão ser publicadas na edição imediatamente seguinte as cartas que chegarem à redação até 3 quarta-feira de cada semana. 1#7 HUMOR – AGAMENON MENDES PEDREIRA – O PETRÓLEO É DELES! Você me conhece! Sou o jornalista Agamenon Mendes Pedreira. Ao contrário da seleção brasileira, que pagou o maior mico, saí vitorioso da Copa e hoje estou de volta a VEJA para alegria do gerente do banco e dos meus dezessete leitores e meio (não esqueça do anão). Como diria o ERei Roberto Carlos, o maior censor romântico do Brasil: "Eu voltei, voltei para ficar!". Por algum tempo, eu e a Isaura, minha patroa, estávamos na Pindaíba, morando de favor na Rua da Amargura, fundos. Mas, agora que fui recontratado a peso de ouro por este combativo órgão da mídia golpista, resolvi estacionar de vez a minha residência, o Dodge Dart 73 enferrujado, em São Paulo. Bem na frente do prédio da Editora Abril, na Rua do Sumidouro, que fica na Marginal Pitta, quer dizer, Marginal Maluf, quer dizer, Marginal Quércia... ali, sei lá. São Paulo tem muito marginal. Caio de paraquedas no meio da corrida presidencial, onde a coisa está feia. Aliás, muito feia, medonha, afinal de contas a disputa é entre a presidenta Dilma Mocreff e a senadora Magrina Selva. É só a gente olhar bem as duas candidatas pra perceber que ainda não vai ser desta vez que o Brasil vai ter uma mulher na Presidência. Mas elas querem é poder e passam o dia inteiro se xingando. Daqui a pouco o debate na TV vai ser substituído pela luta de candidatas na lama, daquelas com muita baixaria, unhada e puxão de cabelo. Na sua propaganda política, Dilma acusou Marina de ser igual ao Collor. Na verdade, a candidata do PSB se parece muito mais com o ET do Spielberg. Por sua vez, Marina não deixou o insulto barato e disse que a Dilma, na verdade, é o cartunista transformista Laerte fantasiado de homem. E não é só na campanha presidencial que a coisa está feia. A Petrobras parece um filme de horror estrelado por Dilma Karloff, DesGraça Foster e o pavoroso Nosferatu Cerveró. Hollywood já está de olho nessas três monstruosas criaturas porque nunca houve uma atuação tão arrasadora em toda a história do cinema e da indústria petrolífera. Se a Petrobras está perdendo dinheiro no ramo petroquímico, ela pode recuperar seu valor de mercado realizando produções cinematográficas milionárias: Eu Sei o que Vocês Fizeram no Governo Passado, Aperte o Cinto, o Seu Dinheiro Sumiu, A Refinaria Fantasma da Ópera, Se a Minha Diretoria Falasse, Um Dilma de Cão e O Poderoso Checão. Graça Fofoster continua apavorando investidores e acionistas da empresa e já prometeu que vai fazer uma plástica para acalmar o mercado. Para melhorar sua imagem, "Graça" Foster também pretende ir na Ana Maria Braga ensinar receitas de poções mágicas em seu caldeirão. Em sua defesa. “Graça" disse que faz questão de ir todo dia de vassoura pro trabalho e, assim, dar exemplo de economia de combustível. E na semana passada a situação ficou ainda mais horripilante! Quem também está tirando o sono da diretoria da PTbras é o ex-diretor Paulo Roberto Gosta. Em troca da deduração premiada, o X-9, com seu dedo nervoso, prometeu que agora vai dar nome aos Fribois. Paulo Rouberto revelou que era da diretoria de Abastecimento porque abastecia com muitos bilhões a conta de políticos da base criminal do governo. Num depoimento à PF, esse sinistro personagem confessou seus malfeitos: estava envolvido na compra da refinaria de Passagrana, pagou o milionário implante capilar do Renan Calheiros e também superfaturou a tintura de cabelo do ministro Lobão, autor de Vida Bandida. 1#8 BLOGOSFERA EDITADO POR KÁTIA PERIN kperin@abril.com.br COLUNA LEONEL KAZ EDUCAÇÃO O tipo de educação em que o professor aponta possibilidades e os alunos atuam de forma múltipla como leitores, criadores ou inventores de novas realidades é o que o brasileiro merece. O fosso que nos separa dos outros países não pode aumentar ainda mais. www.veja.com/leonelkaz COLUNA REINALDO AZEVEDO ELEIÇÕES Disputas eleitorais são boas oportunidades para que o país escolha que futuro pretende ter. No momento, o Brasil parece presa de um passado que insiste em não passar. Pense nisso na hora de apertar o botão. www.veja.com/reinaldoazevedo NOVA TEMPORADA _ FERNANDA FURQUIM SÉRIE DE TV A série Stalker acompanha a vida de detetives que trabalham na polícia de Los Angeles, com a missão de solucionar casos de assédio sexual. Nos EUA, ela estreia em 1º de outubro, www.veja.com/temporada DE NOVA YORK CAIO BLINDER EUA Na sua excessiva cautela, Obama se revelava até agora um mau leitor das oscilações do estado de espírito dos americanos. Ele é um mau líder, www.veja.com.br/denovayork CIDADES SEM FRONTEIRA SÃO PAULO Num raio de apenas 2,5 quilômetros concentram-se os dez endereços mais caros da maior cidade do país. Embora seja a sexta maior metrópole do mundo e se espalhe por uma gigantesca área de 1522 quilômetros quadrados, São Paulo tem uma pequena Suíça incrustada num estreito eixo que vai do Morumbi à Vila Nova Conceição, bairros da Zona Sul separados pelo Rio Pinheiros. Localizados em ruas bem arborizadas, esses edifícios de altíssimo padrão costumam ter estilo neoclássico, www.veja.com/cidadessemfronteiras SOBRE PALAVRAS CHOPE NA CANECA Chope, "cerveja fresca servida em barril sob pressão" (Houaiss), é uma palavra do início do século XX que o português foi buscar no francês chope, com uma ligeira mas significativa alteração de sentido. Em francês, chope, substantivo feminino, era — e ainda é — o "recipiente geralmente cilíndrico, munido de alça e às vezes de tampa, próprio para beber cerveja", segundo o Trésor de la Langue Française. Ou seja, a palavra chope surgiu para nomear o caneco em que se bebia chope, www.veja.com/sobrepalavras QUANTO DRAMA SERIAL KILLER BRASILEIRO Deve haver assassinos frios e metódicos em todos os cantos do mundo, mas a ficção americana tomou o tipo para si, e tratou de explorá-lo à exaustão na literatura policial, no cinema e na televisão. "Por que não contar uma história assim em português?", questionou-se a autora Glória Perez, pouco antes de criar Eduardo, protagonista perturbado de Dupla Identidade. Com treze episódios, a série estreia no dia 19, com exibição às sextas, sob a direção de Mauro Mendonça Filho. www.veja.com/quantodrama * Esta página é editada a partir dos textos publicados por blogueiras e colunistas de VDA.com ______________________________________ 2# PANORAMA 17.9.14 2#1 IMAGEM DA SEMANA – A MÃO QUE AFAGA É... 2#2 DATAS 2#3 HOLOFOTE 2#4 CONVERSA COM SYLVIA BANDEIRA – ENTRANDO DE CABEÇA NO PAPEL 2#5 NÚMEROS 2#6 SOBEDESCE 2#7 RADAR 2#8 VEJA ESSA 2#1 IMAGEM DA SEMANA – A MÃO QUE AFAGA É... ...a mesma que surpreende; Obama e a inevitabilidade das armadilhas da história. Treze anos e os atentados de 11 de setembro de 2001 já parecem envoltos nas penumbras da história. Treze anos, um número quebrado num ano de comemorações redondas que evocam outras forças poderosas e violentas: os 100 anos do início da I Guerra Mundial; os setenta anos do dia D, o desembarque que virou a II Guerra na frente ocidental. Treze anos e a sensação, incorrera mas inevitável, de uma volta no tempo depois que o presidente Barack Obama, um dia antes de relembrar os mortos de 2001 (o menininho na foto com ele é neto de uma vítima do avião que explodiu no Pentágono), anunciou o que os Estados Unidos vão fazer para combater os fundamentalistas muçulmanos que tomaram uma parte da Síria e do Iraque. É uma versão cautelosa do que o presidente George W. Bush disse que faria para eliminar os fundamentalistas muçulmanos que, aninhados no Afeganistão, tramaram os atentados que mataram 3000 pessoas. Ao contrário da imagem de caubói belicoso criada a partir daí, Bush havia sido eleito com duas propostas simples: melhorar o ensino e diminuir os impostos, ampliando as benesses do mundo aparentemente sem conflitos do pós-comunismo. Obama se considerava eleito, e talvez até ungido, para encerrar o capítulo de intervenções militares nascido na era Bush e aparar as pontas mais protuberantes do império americano. Cada um teve sua trombada com a história, cada um fez coisas que talvez não tivesse cogitado antes. Por causa dos 100 anos do primeiro e pavoroso conflito que incinerou a Europa no século XX, ambos evocam similaridades com os líderes da época, comparados a "sonâmbulos caminhando para o abismo" de uma grande guerra. Ou de pequenas guerras que são inevitáveis ou até necessárias, mas não podem ser vencidas. VILMA GRYZINSKI 2#2 DATAS MORRERAM Emílio Botín-Sanz de Sautuola y Garcia de los Rios, presidente do banco espanhol Santander e responsável por transformá-lo de instituição familiar em um dos maiores grupos financeiros do mundo. Formado em direito e economia, ingressou no Santander aos 24 anos. Assumiu diferentes cargos até alcançar a posição de presidente, em 1986, sucedendo a seu pai. No comando, Botín aumentou a gama de serviços oferecidos a empresas e consumidores, até criar um banco global, líder na zona do euro. Atualmente, o Santander conta com quase 14.000 agências e mais de 180.000 funcionários. A fortuna pessoal de Botín foi estimada em 1,1 bilhão de dólares. Sua filha mais velha, Ana Patrícia, ocupará seu lugar à frente dos negócios. Ela já trabalhava na instituição, cuidando das operações na Inglaterra. Dia 9, aos 79 anos, de infarto, em Madri. Milton Santos de Almeida, o Miltinho, cantor carioca, intérprete do hit Mulher de 30, sucesso nos anos 1960. Integrou o grupo Anjos do Inferno, que chegou a acompanhar Carmen Miranda numa viagem aos EUA. Mas foi só em 1960, com o lançamento de seu primeiro disco-solo, Um Novo Astro, que o artista de voz anasalada alcançou, de fato, a fama. Chamado de Rei do Ritmo, gravou com Chico Buarque, João Bosco, Elza Soares e Ed Motta. Dia 7, aos 86 anos, em decorrência de parada cardíaca, no Rio de Janeiro. Ian Paisley, líder religioso e ativista político que ocupou o cargo de primeiro-ministro da Irlanda do Norte entre 2007 e 2008. Defendia o protestantismo e a união com a Grã-Bretanha. Declarava que jamais faria uma aliança com os irlandeses católicos nacionalistas, mas aceitou dividir o poder com os adversários do partido Sinn Fein. Conhecido como Senhor Não, por sua intransigência, começou a pregar aos 16 anos e fundou a própria igreja aos 25. Dia 12, aos 88 anos, em Belfast. Gerald Wilson, compositor, arranjador e trompetista americano que se dedicou ao jazz durante oito décadas. Iniciou a carreira no fim dos anos 30. Em 1949, fez turnê com Billie Holiday pelo sul dos EUA. Também trabalhou para Duke Ellington, Benny Carter, Ella Fitzgerald e Ray Charles. Em 1990, foi nomeado Mestre do Jazz pelo National Endowment for the Arts — a maior das homenagens concedidas a um jazzista em seu país. Dia 8, aos 96 anos, de pneumonia, em Los Angeles. Giancarlo Bolla, chef italiano, proprietário de um dos restaurantes mais tradicionais de São Paulo, o La Tambouille. Nascido em San Remo, chegou ao Brasil aos 16 anos. Trabalhou como lavador de pratos e garçom. Foi maître do Ca'd'Oro e do Rubaiyat. Em 1971, abriu o La Tambouille. Costumava dizer que o segredo de seus negócios era um só: "Receber os clientes como se eles estivessem na sala de sua própria casa". Dia 10, aos 73 anos, em decorrência de um câncer, em São Paulo. • SEX|12|9|2014 CONDENADO o atleta paralímpico sul-africano Oscar Pistorius por homicídio culposo — quando não há intenção de matar — de sua namorada, a modelo Reeva Steenkamp. Com isso, livrou-se de uma possível prisão perpétua: a pena máxima será de quinze anos. A sentença sairá em 13 de outubro. Pistorius confessou ter atirado em Reeva através da porta do banheiro de sua casa, na madrugada de 14 de fevereiro de 2013, mas argumentou que a confundira com um invasor. 2#3 HOLOFOTE CEARÁ • TEMPORADA DE CAÇA A disputa pelo governo do Ceará está ganhando contornos de guerrilha. Líder nas pesquisas, Eunício Oliveira, candidato do PMDB acusa os irmãos Ciro e Cid Gomes, que apoiam Camilo Santana (PT), de estarem por trás de duas ações para tentar desestabilizá-lo. A primeira foi a invasão de uma de suas fazendas no interior de Goiás. O senador cearense suspeita que o ataque, patrocinado pelo MST, atendeu a uma encomenda política. Depois disso, a esposa dele, Mônica, foi minuciosamente revistada por agentes da Polícia Federal quando se preparava para decolar do aeroporto de Fortaleza. A abordagem, segundo nota da PR seguiu um "procedimento-padrão". ACRE • BOLSO VAZIO O PSD tem apenas um senador. Ele se chama Sérgio Petecão. Eleito no Acre pelo nanico PMN em 2010, ele migrou para o PSD no ano seguinte com a promessa de que poderia contar com os esforços do partido para concorrer ao governo do seu estado em 2014. Por falta de estrutura e de dinheiro, Petecão desistiu da ideia e se empenha num plano bem mais modesto: eleger sua mulher deputada federal. Ainda assim, ele tem enfrentado dificuldades financeiras. Precisa de 100.000 reais para a campanha — e tenta, sem sucesso, encaminhar o pedido ao presidente do seu partido, Gilberto Kassab. "Acabei mandando uma mensagem desaforada para ele: 'Lembre-se de que eu ainda tenho quatro anos de mandato'." • SPRINT FINAL Para manter a tropa motivada, o senador Aécio Neves diz que ultrapassará Marina Silva na semana anterior à realização da eleição. O tucano reproduz, assim, o argumento que era usado pelo então candidato Eduardo Campos, que apostava numa arrancada na reta final para chegar ao segundo turno. Aécio, exatamente como fizera Campos, lembra que Fernando Haddad, em São Paulo, e Antonio Anastasia, em Minas, atropelaram seus adversários a poucos dias da votação. RIO DE JANEIRO • DELES, NÃO O ambiente na cúpula do PP, uma das siglas que aparecem no escândalo da Petrobras, não anda bom. Dias atrás, o deputado Jair Bolsonaro aguardava uma contribuição de 300.000 reais que a direção do partido havia prometido para sua campanha. Na hora de registrar o repasse, porém, o presidente do PP, Ciro Nogueira, destinou ao deputado uma doação feita ao partido por um frigorífico conhecido por suas ligações com caciques petistas. Bolsonaro estrilou. Disse que não queria saber de doação que viesse de empresas ligadas ao PT, e devolveu o dinheiro. O POETA COMUNISTA O Partido Comunista Brasileiro lançou o professor universitário Mauro Iasi à Presidência da República. A um mês das eleições, o candidato ainda não conseguiu atingir sequer o índice de 1% nas pesquisas de intenção de voto. Militante do PT até 2004, ele é um esquerdista à moda antiga, daqueles que defendem "a estatização dos meios de produção" e "a revolução do proletariado" - mas sem perder a ternura. Em 2008, Iasi publicou um livro chamado Meta Amor Fases. Um dos textos chama-se Cristão Molotov: "Certa vez, vi na foto / o guerrilheiro sandinista / pronto para lançar / seu coquetel-molotov / Em seu peito balançava um crucifixo / em sua mão a garrafa de Pepsi-Cola flamejava (...)". Colaboraram Adriano Ceolin, Daniel Pereira e Rodrigo Rangel 2#4 CONVERSA COM SYLVIA BANDEIRA – ENTRANDO DE CABEÇA NO PAPEL No fim de uma temporada de quase quatro anos vivendo no teatro Marlene Dietrich — a diva das pernas legendárias —, ora de fraque, ora de shortinho e meia arrastão, a atriz de 64 anos reflete: "Foi preciso coragem". É preciso ter mais perna ou mais peito, no sentido figurado, para encarar um papel como o de Marlene? Meu marido já disse que eu sou muito metida por cantar em quatro línguas, sem nunca ter cantado antes. Coragem é o principal. Também sinto algumas semelhanças. Ela, dividida entre a Alemanha, os Estados Unidos e depois a França. Eu, filha de pai diplomata, mudando como nômade para onde ele era transferido: Suíça, Guatemala, Estados Unidos, França, Austrália, Chile. Ela foi praticamente criada pelo diretor Josef von Sternberg, que a mandou emagrecer para destacar os ângulos do rosto na tela. Faria um regime eterno, como Marlene? Não mesmo. Não é uma pessoa magra que o público vê. É uma mulher muito bonita. A ambiguidade sexual era outro instrumento de sedução explorado por Marlene, acentuada por roupas masculinas. Alguma inspiração? Marlene seguia seus impulsos sem se preocupar se o alvo era homem ou mulher. Teve até um caso com Édith Piaf. Eu já usei smoking com um saltão e me senti o máximo. Há atrizes que dizem gostar de cultivar as marcas da idade. É desse grupo? Ninguém gosta de envelhecer. É uma questão física: não dá mais para sair do espetáculo e emendar com a galera. Outras alegam que só fazem tratamento com dermatologista e aparecem com o pescoço esticado... Não gosto de procedimentos que deixam a pessoa deformada. Seja fiz algo, está muito sutil. Se? Não é legal falar disso. É como ficar perguntando a idade. Para quê? A propósito, a idade traz mesmo sabedoria? Hoje, tenho um pouquinho mais de tolerância. Aprende-se também a aceitar o outro como ele é. Mas isso tudo demora muito. 2#5 NÚMEROS 33,7 bilhões de dólares deixaram o país de maneira irregular de 2010 a 2012, o dobro do montante de uma década atrás. 92,7% desses recursos saíram ilegalmente através de transações de comércio exterior — pelo subfaturamento do valor declarado de um produto exportado, por exemplo. 7ª é a posição do Brasil no ranking das 144 nações em desenvolvimento que mais têm saída ilegal de dinheiro, segundo a consultoria americana Global Financial Integrity. O país fica atrás apenas de China, Rússia, México, Malásia, Índia e Arábia Saudita. 1,5% do PIB é quanto o Brasil perde com esse fluxo ilegal de recursos, de acordo com o estudo. 2#6 SOBEDESCE SOBE * Qzônio - Com a redução nas emissões de Cf C, a camada que protege a Terra dos raios ultravioleta começou a se recuperar e estará refeita até 2050, de acordo com a ONU. * Separatismo - Impulsionados pelo referendo na Escócia, manifestantes saíram às ruas de Barcelona para pedir que a Catalunha se torne independente da Espanha . * “Dólar na cueca" - Como já virou tradição no PT, um assessor parlamentar, agora a serviço do candidato ao governo do Piauí Wellington Dias, foi pego pela polícia com 180.000 reais escondidos - desta vez sob o banco do carro. DESCE * Loom Bands - Algumas das imitações das pulseiras americanas que viraram mania de crianças e adolescentes no Brasil podem conter substâncias cancerígenas como o ftalato, segundo a associação de consumidores Proteste. * Salário dos professores - O Brasil ficou em penúltimo lugar num ranking da OCDE que comparou os ganhos dos docentes de escolas públicas em 45 países - à frente só da Indonésia. * Meta de inflação - O Banco Central admitiu que apenas em 2016 a taxa deve se aproximar do seu objetivo central, de 4,5% ao ano. 2#7 RADAR LAURO JARDIM ljardim@abril.com.br • ECONOMIA NEGÓCIO (QUASE) FECHADO A família Montenegro está finalizando a operação de venda do Ibope para a WPP, o maior grupo de propaganda e relações públicas do mundo. As negociações entre as duas empresas, que já são sócias em alguns negócios, começaram há catorze meses. Pelo acordo, a família Montenegro, que fundou o Ibope em 1942, passa a ser sócia minoritária, mas continua responsável por tocar a companhia. O anúncio da operação está previsto para ocorrer ainda neste mês. PRATO DE COMIDA O populismo que se viu na semana passada na propaganda eleitoral de Dilma Rousseff tem preocupado o mercado financeiro. Num dos comerciais, apareciam, de um lado, banqueiros risonhos e gananciosos e, do outro, uma família que fica sem ter o que comer. André Esteves, do BTG Pactual, pondera: "O papel de guardião da moeda do BC não pode ser posto em risco por causa do calor da campanha eleitoral. O debate sobre o BC não pode cair no populismo". QUEDA DE BRAÇO O mercado financeiro é unânime: se Dilma Rousseff consolidar uma liderança e se tornar a favorita inconteste, a mudança de patamar da Bovespa (para baixo) e do dólar (para o alto) se dará em velocidade supersônica. Dito de outra forma, o mercado não se deteriorou ainda porque há esperança de derrota de Dilma. • ELEIÇÕES SEM FAVORITOS Num café da manhã promovido em Nova York pelo J.P. Morgan com investidores na sexta-feira 5, FHC disse que Marina Silva e Dilma Rousseff tinham chances iguais de vitória num segundo turno. OLHANDO PARA A FRENTE Na mesma conversa, FHC indicou que o PSDB caminharia para os braços de Marina num segundo turno. RAZÃO VERSAS EMOÇÃO Enquanto isso, Aécio Neves joga sua última cartada. Avalia que a "onda da emoção" está minguando e que uma "onda da razão", que o favoreceria, já deu sinais de se formar. PESO PLUMA A esta altura da campanha, o peso de Marina Silva é de 48 quilos. PANCADA NELA A propósito, na cúpula da campanha do PT não é bem-vinda a expressão "desconstruir Marina". Ali, o verbo é outro. Fala-se em "dessacralizar". A BANCADA DO CUNHA Ao se apresentar a grandes empresas pedindo doações para sua campanha, o notório Eduardo Cunha oferece um trunfo. Garante que carrega consigo uma numerosa bancada de deputados fiéis — não necessariamente peemedebistas, mas uma espécie de "bancada do Cunha". O líder do PMDB nega "veementemente" que peça dinheiro sob tal argumento. QUE DUPLA José Sarney está saindo de cena tão irritado com o PT e Dilma Rousseff que se colocou à disposição de Eduardo Cunha para ajudar a elegê-lo presidente da Câmara em 2015. OBJETO DE DECORAÇÃO A cúpula do PMDB já entendeu sua verdadeira função na caminhada pela reeleição: praticamente nenhuma. Michel Temer anda furioso por não ser ouvido por Dilma Rousseff nem participar dos encontros em que são tomadas as decisões de campanha. Até detalhes da estratégia de comunicação lhe são sonegados. Nas reuniões no Alvorada, Temer tem de disputar os ouvidos da chefe com dirigentes partidários que integram a coligação petista. • LAVA-JATO EM RODÍZIO Para conter vazamentos, há um rodízio entre as equipes da PF que participam dos depoimentos de Paulo Roberto Costa. Assim, ninguém teria a íntegra do que foi falado. Os depoimentos estão sendo gravados, filmados e depois criptografados. HORA DO PÂNICO Acredite: alguns empresários e executivos chegaram a entregar o passaporte aos advogados. O motivo é precaução — e medo. Se houver alguma operação da PF contra seu cliente, o advogado imediatamente apresentará o passaporte à PF, garantindo que o suspeito não vai fugir para o exterior. • BRASIL FORÇOU A BARRA Mais uma para a lista de casos de contabilidade criativa do governo Dilma Rousseff. No fim de 2013, o Ministério do Turismo comemorou a marca de 6 milhões de turistas estrangeiros no Brasil. A Embratur chegou a entregar um certificado à argentina Nadia Panis, que seria a responsável por alcançar o número mágico. O patamar, no entanto, é falso. O recém-lançado Anuário Estatístico do Ministério do Turismo revela que o Brasil recebeu 5.813.342 estrangeiros em 2013. • FUTEBOL EM FAMÍLIA Marco Polo Del Nero, futuro presidente da CBF, arrumou emprego para a irmã da sua nova namorada, a modelo Katherine Fontenele, capa recente de uma revista masculina. Karla Karina tornou-se recepcionista na CBF. Del Nero já havia empregado Katherine como apresentadora do canal de TV da Federação Paulista de Futebol, da qual é presidente desde 2003. • CINEMA E O OSCAR VAI PARA... Uma comissão indicada pelo Ministério da Cultura escolhe na quinta-feira o nome do longa nacional que tentará ser selecionado para a disputa do Oscar 2015 de melhor filme estrangeiro. Dezoito filmes estão na disputa. A lista vai de Getúlio à cinebiografia de Paulo Coelho. • GENTE HOMEM DE NEGÓCIOS O faro de Luciano Huck para bons negócios anda apurado. A Joá, o fundo de investimentos de Huck, registrou um lucro líquido de 8,6 milhões de reais em 2013. A Joá tem participação em mais de vinte negócios — desde o software que opera o sistema de compartilhamento das bicicletas de aluguel que estão no Rio de Janeiro, em São Paulo e em outras capitais até a grife de roupas Reserva e uma distribuidora de filmes, passando pelo Porta dos Fundos, por academias de ginástica, empresas de pulseiras, anéis, óculos e logística. 2#8 VEJA ESSA DITADO POR RINALDO GAMA “Atualmente, o Dalai-Lama é muito popular. Vamos terminar com um Dalai-Lama popular. Se houver um Dalai-Lama fraco, isso só desonrará o Dalai-Lama.” - DALAI-LAMA, líder espiritual do budismo tibetano, ao sugerir, na edição dominical do diário alemão Die Welt, que poderá não ter um sucessor. “Deus não é um mágico, mas um criador.” - PAPA FRANCISCO, em missa na Casa Santa Marta, no Vaticano. “Não colaboro com o inimigo.” - JOSÉ CONEGUNDES DO NASCIMENTO, tenente da reserva, ao responder à convocação para depor na Comissão Nacional da Verdade. “Foi a primeira vez que a Justiça brasileira reconheceu que determinados crimes cometidos durante a ditadura configuram crimes contra a humanidade.” - SILVANA BATINI, procuradora, em nota do Ministério Público Federal sobre a reabertura do caso Rubens Paiva. “Saudamos todos os chilenos no dia que marca a data de fundação do Chile do século XXI.” - Trecho de anúncio publicado no jornal La Tercera por associações militares chilenas em alusão ao aniversário do golpe que, em 11 de setembro de 1973, derrubou o presidente Salvador Allende. "Se eu fosse querer parar o jogo cada vez que me chamassem de macaco ou de crioulo, todos os jogos iriam parar." - PELÉ, comentando, em um evento no Rio de Janeiro, a reação do goleiro Aranha, do Santos, diante das ofensas racistas dirigidas a ele por integrantes da torcida do Grêmio, em partida realizada na capital gaúcha. “Diferentemente do comunismo, um mito capaz de seduzir muita gente com seu sonho igualitarista, o fundamentalismo religioso islâmico, hoje o principal adversário da civilização, só pode convencer os já convencidos." - MARIO VARGAS LLOSA, escritor peruano, Nobel de Literatura, no diário espanhol El País. “A capacidade dos povos dos Estados-membros (da zona do euro) de tolerar desemprego elevado e recessão profunda tem sido notável. Mas não pode ser ilimitada.” - MARTIN WOLF, analista econômico do jornal britânico Financial Times. “Prefiro ser gorda a ser superficial.” - LADY GAGA, cantora e compositora americana, em sua conta em uma rede social. “Eu só aceitaria o Ministério da Defesa.” - PAULA LAVIGNE, empresária, produtora e líder da Associação Procure Saber, brincando, em O Estado de S. Paulo, sobre um eventual convite para participar do governo, no caso de vitória de sua candidata à Presidência, Marina Silva. “Prefiro ser gorda a ser superficial.” - LADY GAGA, cantora e compositora americana, em sua conta em uma rede social “Eu só aceitaria o Ministério da Defesa.” - PAULA LAVIGNE, empresária, produtora e líder da Associação Procure Saber, brincando, em O Estado de S. Paulo, sobre um eventual convite para participar do governo, no caso de vitória de sua candidata à Presidência, Marina Silva LOREDANO EPÍGRAFE DA SEMANA A pretexto da terceira idade, atendida de modo exemplar na Suécia — e ainda precário no Brasil. “A velhice só é honrada na medida em que resiste, afirma seu direito, não deixa ninguém roubar seu poder.” - CÍCERO, escritor e político romano (106-43 a.C.) _____________________________________ 3# BRASIL 17.9.14 3#1 O PT PASSA O TRATOR. E MARINA RESISTE 3#2 O PT SOB CHANTAGEM 3#3 NINGUÉM DESCONFIOU? 3#4 ARTIGO – J.R. GUZZO – JUSTIÇA INJUSTA 3#1 O PT PASSA O TRATOR. E MARINA RESISTE Apavorados diante da perspectiva de deixar o poder, petistas adotam a tática de atacar Marina Silva a qualquer custo. O resultado é uma campanha como nunca antes se viu neste país. MARIANA SARROS E PIETER ZALIS A decisão do PT de passar o trator em Marina Silva foi tomada no dia 1º de setembro em um jantar no hotel Unique, em São Paulo, logo depois do segundo debate entre os candidatos à Presidência, no SBT. Estavam à mesa a presidente e candidata do partido, Dilma Rousseff, o ex-presidente Lula, o marqueteiro João Santana, o ex-ministro Franklin Martins, o ministro Aloizio Mercadante e o presidente do PT, Rui Falcão. Juntos, chegaram à constatação de que o fenômeno Marina era bem mais sustentável do que parecia a princípio. Se nada fosse feito, concluíram, Marina Silva estaria sentada na cadeira de presidente da República pelos próximos quatro anos. "As pesquisas mostravam isso", disse a VEJA um ministro do governo. "Não tínhamos alternativa a não ser partir para cima com tudo." Àquela altura, a candidata do PSB aparecia empatada com Dilma no primeiro turno e 10 pontos à frente no segundo. Lula resumiu o clima reinante e deu a ordem de marcha: "Precisamos reagir e reorganizar a tropa". Como sempre nesses casos, com uma equipe azeitada, acostumada a trabalhar em conjunto há muitas campanhas e conhecedora dos limites éticos, ou da falta deles, não foi preciso ser muito explícito sobre o que precisava ser feito. O próprio diagnóstico do problema embutia sua solução. Marina tinha virado uma entidade sagrada, uma combinação de espírito da floresta com o espírito do capitalismo, metade Chico Mendes, metade Steve Jobs. Decidiu-se que o processo de destruição da candidatura Marina seria eufemisticamente chamado de "dessacralização". Logo a máquina de propaganda petista, comandada pelo veterano e medalhado publicitário João Santana, mostrou a que viera. Em menos de uma semana o resultado começou a aparecer no programa eleitoral de Dilma e nas inserções de televisão e rádio. Nunca se viu na história eleitoral deste país uma combinação tão violenta de mentiras, falsificações, manipulações, exageros e falsas acusações como a despejada pelo PT sobre Marina. A campanha eleitoral de Dilma deixou de lado todos os escrúpulos, esqueceu o debate de ideias e propostas, ignorou, enfim, as decências mais básicas da convivência civilizada entre adversários. Marina foi vestida, então, com o traje da ignomínia e da vergonha que o partido já colocara antes em todos que haviam ousado se interpor entre o PT e o poder. A linguagem da campanha petista contra Marina adotou métodos de "dessacralização" com eco nas campanhas de erradicação do pensamento da Revolução Cultural de Mao Tsé-tung. No programa de Dilma, Marina passou a ser mostrada não como uma candidata sem propostas muito claras e, portanto, difíceis de ser avaliadas e refutadas, mas como uma força aniquiladora e desumana. Não é que a proposta econômica de Marina fora descrita como inadequada para o Brasil ou até boa mas inaplicável. Isso seria elogio. Na campanha do PT, a política econômica de Marina equivaleria a levar os pobres a passar fome. Em um filmete, por meio de um truque de mágico do interior, os pratos de comida desapareciam da mesa diante dos olhos dos esfomeados. Em outro, caricatural, atores fazendo o papel de banqueiros e capitalistas sinistros, mostrados como amigos de Marina, combinavam maldades contra o povo. Marina foi acusada de planejar acabar com o pré-sal e, assim, tirar da educação 1,3 trilhão de reais. Marina foi comparada a Jânio Quadros, o presidente louco que planejou invadir a Guiana e, numa tentativa tonta de obter poderes ditatoriais do Congresso, renunciou, lançando o país em crise profunda, cujos reflexos são sentidos até hoje. Os petistas insinuaram que ela era um Collor de saia, mas Lula mandou cortar essa parte. Fernando Collor, o presidente apeado do poder por corrupção pelo Congresso Nacional, é hoje totalmente identificado com o lulopetismo. São unha e carne. Sem a estrutura nem a experiência da máquina de João Santana, que já elegeu seis presidentes no Brasil e no exterior, o campo de Marina ficou tão paralisado e perplexo diante dos ataques que até parecia que ela estava adotando a "resistência pacífica", a forma de luta de Mahatma Gandhi e de outros profetas da não violência. O sociólogo Diego Brandy, responsável pela propaganda de Marina, caiu de paraquedas na marquetagem política. A verba de que ele dispõe é tão curta que, para economizar, os vídeos que ocupam o parco 1 minuto e 49 segundos do programa da candidata na televisão nem sequer passam pelas obrigatórias pesquisas qualitativas. "Não dá para comparar com a campanha do PT. É como o River do Piauí contra o Barcelona", diz um dos responsáveis pela campanha. Enquanto isso, ao bunker dilmista começaram a chegar os primeiros e animadores resultados da ofensiva. Com base em pesquisas com pequenos grupos, atribuiu-se ao vídeo que dizia "Ser contra o pré-sal é ser contra o futuro do Brasil" o fato de Dilma ter ultrapassado Marina no Rio de Janeiro, estado produtor de petróleo e o terceiro maior colégio eleitoral do país. Na sequência vieram dois filmes de mesma matriz e inspiração. O primeiro dizia que a proposta de conceder autonomia ao Banco Central iria dar poder desmedido aos banqueiros, enquanto a tela mostrava uma família vendo a comida desaparecer de seus pratos. O segundo dizia que a candidata iria tirar dinheiro da educação. No vídeo, novamente, crianças viam sumir as letras das páginas de seus livros. A rusticidade da mensagem, para não falar na sua desonestidade, tem o propósito de atingir sobretudo a classe C emergente no que é um dos seus principais temores: perder o poder de consumo recém-conquistado. A artilharia vai continuar. Um novo "cardápio de infâmias" já está sendo estudado. Para ampliar a vantagem de Dilma no Nordeste, o PT pretende dizer que Marina esvaziará os bancos públicos, como a Caixa Econômica Federal — o que, dirá o PT, afetará o programa Minha Casa, Minha Vida. Outra ideia será afirmar que, se eleita, Marina vai quebrar as indústrias e derrubar os investimentos e o emprego. O pretexto para esse ataque é uma frase de Eduardo Giannetti, conselheiro de Marina para a área econômica, que, em entrevista, disse: "Acho que a indústria deve se preparar para uma operação desmame. Ela está acostumada a chorar e ser atendida". Em outras palavras, Giannetti disse a mesma coisa que Armínio Fraga — o grande nome da área econômica de Aécio Neves —, para quem a economia brasileira está na UTI "e precisa ser desentubada aos poucos". São constatações óbvias de que algo precisa ser feito pois, embora tenha sido amamentada e mantida em estado artificial de vida pelos tubos de Brasília, a indústria brasileira está em ruínas. Marina vai tentar fazer de sua fraqueza um trunfo e continuar repetindo que é alvo de "dois partidos que se uniram" para "uma batalha de Golias contra Davi". Sim, ela se sentiu ferida também pelas críticas de Aécio Neves. Ataques como os que vêm sendo feitos pelo PT contra Marina são um ponto fora da curva na história das eleições brasileiras. Um estudo do cientista político Felipe Borba, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), que analisou a propaganda política em todas as eleições presidenciais de 1989 a 2010, constatou que o candidato que está na frente utiliza em média 3% de seu tempo na TV para bater nos adversários. Levantamento feito por VEJA, com os mesmos critérios utilizados por Borba, mostra que, desde 2 de setembro, Dilma utilizou 15% de sua propaganda para atacar Marina — cinco vezes a média histórica dos líderes da disputa. No fim da semana passada, surgiram sinais de que Marina, "como os caules dos lírios que se dobram ao vento mas não se quebram", resistira bem à campanha de dessacralização. Diz Mauro Paulino, diretor-geral do Datafolha: "Foi a primeira vez que Marina foi exposta em campanha a ataques tão intensos. Mesmo assim, conseguiu manter-se no mesmo patamar, já que oscilou para baixo dentro da margem de erro". AS DIFERENÇAS DE ARTILHARIA DAS CANDIDATAS EXÉRCITOS Dilma – O comitê de campanha tem ao menos 150 funcionários - ocupa dois andares de um prédio e duas casas no Lago Sul, em Brasília. Marina – São 40 profissionais remunerados trabalhando diretamente, em uma estrutura que integra a Rede e o PSB. COMANDANTES Dilma – O baiano João Santana, marqueteiro do PT, já ajudou a eleger seis presidentes, entre eles Lula e Dilma. Marina – O argentino Diego Brandy é especialista em análise de pesquisa e tem pouca experiência com marketing político. Suas maiores vitórias foram em Pernambuco. TEMPO DE TV Dilma – Até 2 de outubro, terá ficado 8 horas no ar — quase a duração da trilogia de O Poderoso Chefão. Serão ainda 246 inserções de 30 segundos cada uma no meio da programação. Marina – Ficará no ar por um total de 80 minutos — menos que um jogo de futebol. Terá apenas 45 inserções até o fim da campanha. PRESENÇA PELO PÁIS Dilma – Tem a máquina do governo nas mãos e, por meio de gestores de programas como o Bolsa Família e o Minha Casa, Minha Vida, presentes em quase todos os municípios, alardeia que os adversários acabarão com as iniciativas. Marina – Tem o apoio de apenas dois candidatos a governador que lideram as pesquisas, em Pernambuco e Roraima. Para ampliar sua presença nos estados, usa as "Casas de Marina", comitês voluntários montados em residências de apoiadores da candidata. DINHEIRO Dilma – Até agora, declarou arrecadação de 123,3 milhões de reais, para uma previsão de gastos de até 298 milhões. Marina – Recebeu doações de 22,1 milhões, com um teto de 150 milhões de gastos. MÁQUINA PARTIDÁRIA Dilma – O PT tem um fundo partidário 2,5 vezes maior que o do PSB e mais que o dobro de filiados. Elegeu 197 parlamentares e 5 governadores nas últimas eleições, além de 619 prefeitos. Marina – O PSB ocupa 102 cadeiras em parlamentos, 5 em governos estaduais e 445 em prefeituras. AS 6 MENTIRAS DE DILMA Na tentativa de tirar votos de Marina Silva, a campanha do PT usa o programa eleitoral na TV para divulgar falsas ameaças que a candidata do PSB representaria. VAI ABANDONAR O PRÉ-SAL Em entrevista, Dilma disse que Marina "ameaça essa grande riqueza nacional" e que essa postura teria "consequências terríveis". Seu programa anunciou em letras garrafais: "Ser contra o pré-sal é ser contra o futuro do Brasil". Marina nunca disse que é contra o pré-sal. SERÁ UM NOVO COLLOR Um programa do PT na TV chegou a comparar Marina com os ex-presidentes Jânio Quadros e Fernando Collor, sugerindo que ela teria uma base parlamentar pequena e que isso leva a "crises institucionais". A comparação foi abandonada depois de ter sido rejeitada até por petistas. É SUSTENTADA POR BANQUEIROS Em entrevista, a presidente disse não ser "sustentada por banqueiros", uma referência a Neca Setúbal. A herdeira do Itaú é educadora e Marina se mantém com o dinheiro que recebe dando palestras. O BC INDEPENDENTE SIGNIFICARÁ MISÉRIA PARA OS BRASILEIROS Um dos programas do PT mostrou uma reunião de banqueiros que ocorria ao mesmo tempo em que uma família jantava. À medida que os primeiros falavam, os pratos da família iam se esvaziando: "A autonomia do BC significaria entregar aos banqueiros um grande poder de decisão sobre a sua vida e a da sua família". A autonomia operacional do BC já foi bandeira de Lula e Dilma. D VAI ACABAR COM O BOLSA FAMÍLIA Embora essa informação não tenha aparecido na propaganda oficial do PT, no Nordeste carros de som alardeiam que Marina vai acabar com o Bolsa Família. Ela defende a manutenção do programa. VAI TIRAR 1,3 TRILHÃO DE REAIS DA EDUCAÇÃO E DA SAÚDE O programa de quinta-feira anunciou que a redução na exploração do petróleo poderia tirar 1,3 trilhão de reais da educação. No vídeo, crianças apareceram lendo livros. Enquanto as alegadas propostas de Marina contra a exploração do petróleo eram enumeradas, as letras dos livros desapareciam e as crianças ficavam cabisbaixas. “Cada vez que a gente abre um debate com a candidata Marina, ela se faz de vítima”. – Dilma Rousseff. "Existe uma estrutura espalhando boatos, é um batalhão de Golias contra Davi" – Marina Silva. Aécio Neves @AecioNeves – 19h Também não concordo com a @dilmabr, quando ela diz que Marina se parece com Collor. Não há semelhança entre nós e o PT nem nas críticas. Aécio Neves @AecioNeves – 19h Disse sim que @silva_marina passou mais de 20 anos no PT. Isso não deveria ofendê-la. É sua trajetória política. Eu me orgulho da minha. COM REPORTAGEM DE DANIEL PEREIRA E BELA MEGALE 3#2 O PT SOB CHANTAGEM Para evitar que o partido e suas principais lideranças sejam arrastados ao epicentro do escândalo da Petrobras às vésperas da eleição, a legenda comprou o silêncio de um grupo de criminosos — e pagou em dólar. ROBSON BONIN O leque de dólares que ilustra esta página foi usado pelo PT para comprar o silêncio de um grupo de criminosos. É parte do pagamento de uma chantagem de que o partido é vítima desde que estourou o escândalo da Petrobras. De posse de um documento e informações que comprovam a participação dos principais líderes petistas num desfalque milionário nos cofres da estatal, chantagistas procuraram a direção do PT e ameaçaram contar o que sabiam sobre o golpe caso não fossem devidamente remunerados. Às vésperas da corrida presidencial, essas revelações levariam nomes importantes do partido para o epicentro do escândalo, entre eles o ex-presidente Lula e o ministro Gilberto Carvalho, um dos coordenadores da campanha de Dilma Rousseff, e ressuscitariam velhos fantasmas do mensalão. No cenário menos otimista, os segredos dos criminosos, se revelados, prenunciariam uma tragédia eleitoral. Tudo o que o PT quer evitar. Dirigentes do partido avaliaram os riscos e decidiram que o melhor era ceder aos chantagistas — e assim foi feito. O PT conhece como poucos o que o dinheiro sujo é capaz de comprar. Com ele, subornou parlamentares no primeiro mandato de Lula e, quando descoberto o mensalão, tentou comprar o silêncio do operador do esquema, Marcos Valério. Ao pressentir a sua condenação à prisão, o próprio Valério deu mais detalhes dessa relação de fidelidade entre o partido e os recursos surrupiados dos contribuintes. Em depoimento ao Ministério Público, ele afirmou que o PT usou a Petrobras para levantar 6 milhões de reais e pagar a um empresário que ameaçava envolver Lula, Gilberto Carvalho e o mensaleiro preso José Dirceu na teia criminosa que resultou no assassinato, em 2002, do petista Celso Daniel, então prefeito de Santo André. A denúncia de Valério não prosperou. Faltavam provas a ela. Não faltam mais. Os dólares serviram para silenciar o chantagista Enivaldo Quadrado, ele próprio participante da engenharia financeira do golpe contra os cofres da maior estatal brasileira — e agora o personagem principal de mais uma trama que envolve poder e dinheiro. Operador ligado ao governista PP, Quadrado é um conhecido personagem do mundo político e das páginas policiais. Há dois anos, foi condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a três anos e seis meses de prisão por lavagem de dinheiro no processo do mensalão. Desde a descoberta do maior esquema de corrupção política da história do país, foi detido duas vezes. A primeira delas em 2008, quando tentava entrar no país com 361.000 euros escondidos na cueca e nas meias. A segunda foi neste ano, por envolvimento no bilionário esquema de lavagem de dinheiro comandado pelo doleiro Alberto Youssef, que tinha como parceiro o ex-diretor da Petrobrás Paulo Roberto Costa. Apesar de ser um criminoso de segunda linha. Quadrado pôs de joelhos o partido do governo, detentor da maior bancada na Câmara dos Deputados e favorito para vencer a próxima corrida presidencial. Isso ocorreu justamente depois de ser liberado pela polícia no âmbito da Operação Lava-Jato. Solto, ele exigiu uma ajuda financeira da cúpula do PT para não incluí-la entre os alvos da investigação sobre a Petrobras. Para garantir que o partido não lhe virasse as costas, deu um ultimato ao tesoureiro do PT, João Vaccari Neto: ou era devidamente remunerado ou daria à polícia os detalhes do documento apreendido com o doleiro Youssef. Não foi preciso muito esforço entre os petistas para mensurar os prejuízos que a revelação causaria ao partido e à candidatura de Dilma Rousseff — sem contar que, dependendo da abrangência da investigação, gente importante ainda poderia terminar na cadeia. Não valia a pena arriscar. O documento era um contrato de empréstimo entre a 2S Participações, de Marcos Valério, e a Expresso Nova Santo André, de Ronan Maria Pinto. O valor desse contrato é de 6 milhões de reais, exatamente a quantia que Valério dissera ao MP que o PT levantara na Petrobras para abafar o escândalo em Santo André. É esse o contrato que prova a denúncia de Valério. É esse o contrato que, em posse de Quadrado, permitia ao chantagista deitar e rolar sobre os petistas. Assinado em 2004, o contrato elucida o trajeto final do dinheiro. Um longo trajeto. Quando depôs ao Ministério Público em 2012, pouco antes de ser condenado a quarenta anos de prisão, Valério contou que, no primeiro mandato de Lula, foi procurado pelo então secretário do PT, Silvio Pereira, com um pedido de ajuda. Na época, o governo estava sendo chantageado por Ronan Maria Pinto, que ameaçava implicar Lula, Gilberto Carvalho e José Dirceu na morte de Celso Daniel. Ronan Maria Pinto insinuava que deporia para reforçar a tese, jamais comprovada pela polícia, de que Celso Daniel foi assassinado ao tentar acabar com um esquema de cobrança de propina comandado pelo PT em Santo André, com a bênção da direção nacional. O empresário queria vender seu silêncio. Ao PT, não restava alternativa a não ser comprá-lo. Valério e amigos poderosos do governo foram convocados para organizar a engenharia financeira da operação. Como no mensalão, simularam uma série de contratos e serviços. Tudo para levantar na Petrobras os 6 milhões de reais exigidos pelo empresário. O caminho do dinheiro obedece à lógica intrincada dos criminosos para dificultar o rastreamento: segundo Valério, o pecuarista José Carlos Bumlai, amigo do ex-presidente Lula, contraiu um empréstimo no banco Schahin e, simultaneamente, usou sua influência para conseguir que a construtora Schahin, ligada ao mesmo grupo empresarial, ampliasse seus contratos com a Petrobras. O empréstimo bancário e os contratos tinham idêntico valor: os 6 milhões exigidos por Maria Pinto. Ao Ministério Público, Valério disse que Bumlai articulou a tramóia diretamente com a direção da Petrobras, cujos cargos-chave eram comandados por petistas. Pelo lado da estatal, segundo Valério, o principal negociador foi Guilherme Estrella, outro amigo de Lula, então diretor da área de exploração e produção. Ele nega: "Esse depoimento é absolutamente inconsistente. Não tive contato com ninguém". Depois de a Petrobras desembolsar o dinheiro, os recursos chegaram às mãos de Marcos Valério. Ele, como deixa claro o contrato, repassou-o a Ronan Maria Pinto. Quadrado ajudou nessa transação ao contratar a empresa que serviu de intermediária, a Remar Agenciamento e Assessoria. É isso que mostra o documento. Ou seja: Quadrado foi partícipe do assalto à Petrobras e, com a prova da roubalheira em mãos, passou a também chantagear o governo, mal que foi remediado com muitas notas de dólares e o compromisso de outras tantas. É isso que o PT quer esconder. Até a Operação Lava-Jato, Ronan Maria Pinto, o PT, o Grupo Schahin e Bumlai não tinham problemas para negar a história. A descoberta do documento pela Polícia Federal desmontou essa estratégia de defesa. Para os agentes, o contrato entre Valério e Maria Pinto era a garantia de uma aposentadoria tranquila para Enivaldo Quadrado. A polícia, porém, já reuniu uma série de evidências contra ele, inclusive registros digitais. Um inquérito deve ser aberto nos próximos dias. Procurado por VEJA, o tesoureiro João Vaccari Neto negou ter realizado pagamentos a Quadrado, mesmo que através de algum emissário: "As prestações de contas do PT são apresentadas ao TSE e estão à disposição das autoridades". O empresário Ronan Maria Pinto negou ter recebido qualquer tipo de repasse de Marcos Valério. Já Quadrado, o chantagista, não quis se manifestar. Antes uma aposta do PT para derrotar os adversários nas eleições, a Petrobras se tornou um problema para o partido. Duas CPIs no Congresso investigam os contratos firmados pela empresa. Conforme VEJA revelou na semana passada, o ex-diretor Paulo Roberto Costa, em depoimentos à Polícia Federal e ao Ministério Público, admitiu integrar um esquema de coleta de propina na empresa cujos beneficiários finais eram políticos de ponta. VEJA apurou doze nomes citados pelo executivo como participantes no caso (veja a reportagem na pág. 72), entre eles João Vaccari Neto, o tesoureiro do PT. A engrenagem clandestina de arrecadação teria começado no governo Lula e avançado no governo atual. A presidente Dilma alega que conteve eventuais "sangrias" na Petrobras ao trocar sua diretoria, em 2012. Ao se defender, ela só não explica por que levou mais de um ano, após tomar posse, para fazê-lo. A chantagem de Quadrado dá uma boa pista do motivo da demora. O PT ainda tinha muitas contas a acertar. O ELO COM O MENSALÃO Em 2012, Marcos Valério, o operador do mensalão, prestou um depoimento em que revelou que o PT usou a Petrobras para levantar 6 milhões de reais para pagar a um empresário que ameaçava envolver o presidente Lula, o ministro Gilberto Carvalho e o mensaleiro José Dirceu no caso do assassinato do prefeito de Santo André Celso Daniel. Dois anos depois, a Polícia Federal apreendeu o contrato de empréstimo que corrobora a informação. CHANTAGEM - O contrato de empréstimo foi apreendido no escritório do doleiro Alberto Youssef. Ele prova que a operação clandestina narrada por Valério de fato ocorreu. Para evitar que isso chegasse ao conhecimento das autoridades, o PT cedeu a mais uma chantagem dos criminosos. CHANTAGEM - No depoimento prestado ao Ministério Público, Marcos Valério contou que foi chamado por Silvio Pereira, então dirigente do PT, para organizar uma operação clandestina: levantar dinheiro para pagar a um chantagista que ameaçava o presidente da República. 3#3 NINGUÉM DESCONFIOU? As revelações do ex-diretor Paulo Roberto Costa geraram reações de surpresa e indignação entre os políticos. Na Petrobras, porém, suas traficâncias eram mais do que conhecidas — e havia muito tempo. RODRIGO RANGEL E MALU GASPAR Em sua última edição, VEJA revelou o conteúdo de uma delação premiada que tem potencial para provocar um terremoto na política nacional. Preso na sede da Polícia Federal em Curitiba, o engenheiro Paulo Roberto Costa, diretor por oito anos do setor de abastecimento da Petrobras, decidiu contar o que sabe sobre o megaesquema de corrupção montado na estatal cujo objetivo era abastecer os cofres de partidos e o bolso de políticos ligados ao governo. Já nos primeiros depoimentos, ele confirmou a parceria com grandes empreiteiras para arrecadar propina e citou como beneficiários um ministro, três governadores, seis senadores e pelo menos 25 deputados federais — entre eles, o ministro Edison Lobão, chefe da área de energia do governo, que tem a Petrobras como jóia da coroa, e os presidentes da Câmara e do Senado, Henrique Alves e Renan Calheiros, além de vários outros lustrados políticos com assento no Congresso Nacional. A repercussão das revelações de Paulo Roberto foi imediata. Os políticos acusados pelo ex-diretor apressaram-se a negar qualquer envolvimento com o esquema criminoso. "A delação premiada, quando usada para encobrir ou ocultar eventuais beneficiários, deve redundar em um agravamento de pena daquele que tentou manipular os rumos da apuração", dizia um texto divulgado pelo gabinete de Renan Calheiros. "Essas são acusações levianas e sem fundamento", afirmou Henrique Alves. O ministro Lobão, em nota, limitou-se a dizer que sua relação com Paulo Roberto Costa era apenas institucional. O presidente do PP, senador Ciro Nogueira, de maneira contundente, anunciou que renunciará ao mandato se ficar provada sua culpa. As declarações de Paulo Roberto Costa atingiram em cheio o governo. O ex-presidente Lula demonstrou muita preocupação com os depoimentos já prestados. A aliados, o petista disse temer que Paulinho, como chamava o ex-diretor, diga que cumpriu uma missão partidária, parte de um projeto maior de poder, levantando recursos para financiar a campanha presidencial dele próprio em 2006 e a de Dilma em 2010. Ou seja: há preocupação com o impacto das informações na reeleição de Dilma e na biografia de seu antecessor. Mais uma vez, Lula responsabilizou a sucessora pela crise política que assombra as gestões petistas. Para ele, a presidente deveria ter impedido o vazamento das declarações prestadas por Paulo Roberto Costa às autoridades. Era obrigação dela, conforme afirmou, exigir do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e da Polícia Federal o respeito ao sigilo dos depoimentos. "Como a Dilma deixa acontecer uma coisa dessas?", criticou o ex-presidente. "É muita trapalhada." A Petrobras tem sido motivo de desgaste entre criador e criatura. Para Lula, Dilma perdeu o controle da situação quando admitiu ter aprovado a compra da refinaria de Pasadena com base num parecer "falho". Com esse gesto de sinceridade, ela teria levado o Planalto para o centro da crise. Agora, ao não conseguir coibir o vazamento da delação, a presidente teria contribuído para que o escândalo entrasse no campo do imponderável, o que representa um risco real de derrota do PT em outubro. Dilma também acusou o golpe. A presidente disse que era preciso, antes de qualquer coisa, ter acesso aos depoimentos e que tomaria as "providências cabíveis". A única providência concreta foi pedir à Polícia Federal que apurasse o vazamento das informações publicadas por VEJA. Do lado oposto, os adversários de Dilma aproveitaram para torpedeá-la. "Não consigo imaginar que as pessoas possam confiar num partido que coloca por doze anos um diretor para assaltar os cofres da Petrobras", disse Marina Silva, do PSB. "Poucas vezes na história deste país assistimos a tanta desfaçatez", disparou o tucano Aécio Neves. A Petrobras é a ponta mais vistosa de uma estrutura grandiosa de corrupção e lavagem de dinheiro descoberta pela Operação Lava-Jato, deflagrada em março. Segundo a polícia, o esquema movimentou 10 bilhões de reais. De um lado, algumas das principais empreiteiras do país injetavam propina em contas de empresas-fantasma e, de outro, o dinheiro saía lavado para políticos e partidos. Aos delegados e procuradores que se revezam para ouvi-lo, Paulo Roberto tem dado detalhes sobre o papel da Petrobras no abastecimento do esquema. Os partidos já citados — PT, PMDB e PP — tinham nichos de negócio na estatal e os contratos fechados rendiam "comissões" que eram distribuídas em seguida. Essa lógica, afirma Paulo Roberto, não se restringia à área que ele comandava. Segundo o delator, funcionava assim também em outras diretorias da estatal. Especialista na área de energia, que comandou no governo Lula, Dilma assegura que nunca soube da existência do esquema. O que a presidente não viu, no entanto, todo o resto da empresa sabia — inclusive a presidente da companhia, Graça Foster, indicada por ela. VEJA teve acesso a um relatório sigiloso que a ouvidoria da estatal apresentou à diretoria executiva e ao conselho de administração. O documento é de janeiro de 2011 e lista denúncias internas de corrupção e tráfico de influência na área de abastecimento, comandada por Paulo Roberto. Em 2010, foram simplesmente 202. A ouvidoria julgou 41 delas como procedentes. Graça Foster teve acesso a todas as informações. Mesmo assim, Paulinho só deixou o cargo muito tempo depois — e ainda influiu na indicação do sucessor. COM REPORTAGEM DE ALANA RIZZO 3#4 ARTIGO – J.R. GUZZO – JUSTIÇA INJUSTA São duas fotos quase iguais, tiradas em lugares que ficam a pouco mais de 11.000 quilômetros um do outro, a primeira num cafundó do Maranhão e a segunda no cenário de terror do Iraque em guerra civil. Ambas foram publicadas no mesmo dia, no mesmo jornal, retratando fatos ocorridos em momentos diferentes — um no começo de agosto, outro em junho deste ano. A foto do Maranhão mostra quatro homens seminus, jogados de bruços no chão, com as mãos amarradas nas costas e a cara enfiada na sujeira da terra; à sua volta, de pé e com armas na mão, estão alguns índios com roupas miseráveis e o rosto coberto por trapos que impedem a sua identificação. A foto do Iraque exibe uma dúzia ou pouco mais de desgraçados em situação quase idêntica; só não aparecem os carrascos, que são "ativistas" de uma organização de assassinos chamada "Exército Islâmico". As vítimas são soldados das Forças Armadas iraquianas. Um deles, num aviso de que a cena não aconteceu na selvageria de outras épocas, mas no mundo tão civilizado em que vivemos, veste a camisa 11 de Özil, o craque da seleção de futebol da Alemanha que acaba de ganhar a Copa do Mundo no Maracanã. Não dá para dizer, pelas fotos, que os índios maranhenses sejam a mesma coisa que os companheiros do Exército Islâmico, cujo programa é converter todo mundo à sua seita da religião muçulmana; para isso, degolam jornalistas estrangeiros, massacram mulheres e crianças e anunciam que vão crucificar os que não aceitarem o seu projeto. Existe, logo de cara, uma diferença essencial entre as duas situações. No caso do Maranhão, os homens deitados no chão estão apenas desaparecidos; no caso do Iraque, estão mortos. Fica muito difícil, de qualquer jeito, fazer de conta que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa; as imagens, publicadas pela Folha de S.Paulo dias atrás, mostram coincidências demais. A crueldade é a mesma. O modo de amarrar é o mesmo. O desprezo pelo ser humano é o mesmo. É idêntica, sobretudo, a degeneração moral presente nos dois momentos — resultado fotograficamente visível da teoria segundo a qual comunidades desfavorecidas pela história, ou seja lá pelo que for, têm direito a tudo quando defendem suas próprias razões. Elas pertencem ao universo dos humilhados e ofendidos; como sua causa é "justa", ficam autorizadas a praticar qualquer tipo de injustiça para fazer o que consideram ser justiça. Não há nada que possa funcionar assim. Um erro, pelo fato de ter sido cometido por um injustiçado, não deixa de ser um erro. No Brasil de hoje, cada vez mais, promove-se o sentimento de que acreditar nisso é coisa retrógrada; a posição moderna, segundo essa espécie de fé, é julgar que um ato é bom ou mau conforme quem o pratica. Dá uma confusão e tanto. No episódio do Maranhão, as normas do pensamento politicamente correto estabelecem que os opressores da fotografia são os pobres-diabos que aparecem jogados no chão; os oprimidos são os índios que os atormentam com armas na mão. Mais esquisito ainda: os que estão por baixo são a elite branca, e os que estão por cima são as classes populares. Será? Sem dúvida, pois os quatro detidos ganham seu sustento como madeireiros clandestinos — e o que poderia haver de pior em matéria de "elites" do que um madeireiro clandestino? É gente que está no fundo do poço: pratica o capitalismo selvagem, agride a natureza e invade terras indígenas. Já os índios estão do lado da virtude e, em consequência, têm o direito de ignorar a lei e cometer atos de vingança contra quem rouba a sua madeira. O pior é que frequentemente os índios brasileiros, do Maranhão ou de outros lugares, não conseguem recorrer à lei para proteger seus direitos — em geral, quando tentam fazer a coisa certa, acabam sem resolver nada. Poucos países têm tantas repartições públicas, empregam tanta gente e gastam tanto dinheiro para proteger índios como o Brasil; quanto mais o governo diz que cuida deles, tanto menos eles são cuidados. Toda essa tropa está longe, em algum escritório onde os chefes se fazem chamar de "doutor'': só vão ver os índios a passeio. A atriz que diz ser sua campeã está gravando alguma novela. A ONG holandesa que os defende está na Holanda. Já o madeireiro está ali mesmo do lado, o tempo todo, e a autoridade mais próxima deixa que cada um cuide de si. É como está agindo agora; não fez nada em relação ao caso dos madeireiros porque "ninguém apresentou queixa". Quanto ao ministro da Justiça, o peixe mais graúdo da área, acredite quem quiser: ao ser informado de que a história tinha vindo a público, pediu um relatório. Na mesma procissão, festeja-se no momento um disparate apresentado como notável avanço no combate ao racismo: a exclusão da equipe de futebol do Grêmio da Copa do Brasil, depois que uma jovem torcedora gremista, identificada e já indiciada em inquérito policial, chamou de "macaco" o goleiro do Santos, num jogo disputado entre os dois clubes em Porto Alegre. As autoridades esportivas responsáveis por essa medida, e todos os que batem palmas para ela, deveriam responder à seguinte pergunta: "É justo punir alguém que não fez nada de errado?". Não, não é, de acordo com o senso de justiça mais elementar. Mas é exatamente isso que está sendo feito no caso do Grêmio, ainda pendente de uma decisão final. Se a punição for confirmada, serão castigados milhares de torcedores gremistas que não ofenderam ninguém. A maioria, por sinal, nem estava no estádio. Como poderiam ser culpados por alguma coisa? Numa consequência ainda mais grosseira, as autoridades esportivas estarão punindo os jogadores do Grêmio, que também não fizeram nenhum insulto ao goleiro do Santos: para tornar a coisa toda mais demente do que já é, muitos deles são negros. No caso dos atletas, haverá um prejuízo profissional concreto e imediato: a Copa do Brasil é importante para a carreira de qualquer jogador de futebol, ao abrir a oportunidade para disputas de prestígio na esfera internacional. A punição ao Grêmio, seus torcedores e seus jogadores manda para o diabo um princípio básico da lei brasileira e do direito universal — todas as penas têm de ser individualizadas, ou seja, só é possível condenar quem praticou pessoalmente algum delito. Não existem punições coletivas, pois é indispensável garantir ao cidadão o direito de só responder pelo que fez, e de nunca pagar por algo que não fez. O desrespeito a essa ideia, essencial para a manutenção das liberdades individuais, significa cometer uma injustiça indiscutível em nome de uma justiça duvidosa — isso sim um insulto a todos. Os defensores da medida alegam que ela se justifica porque serve de exemplo. Tudo bem. Os nazistas, durante a última guerra mundial, gostavam muito de dar esse tipo de exemplo: quando um de seus soldados era morto numa cidade ocupada, e não se sabia quem o havia matado, costumavam fuzilar dez, vinte ou mais moradores escolhidos ao acaso, a título de lição. É bem pior, claro, ir para o pelotão de fuzilamento do que perder um torneio de futebol. Mas o fato é que os nazistas só aplicavam suas penas coletivas quando não conseguiam identificar o culpado; puniam alguns para assustar a todos. Aqui punimos todos para assustar a alguns. ______________________________________ 4# ECONOMIA 17.9.14 PEDALADAS DE MARCHA RÉ O governo atrasa repasses e posterga pagamentos, em uma ciranda de operações suspeitas de violar a Lei de Responsabilidade Fiscal. Ficam cada dia mais evidentes as dificuldades do governo para fechar suas contas no fim de todo mês. Algum tempo atrás a equipe econômica utilizava manobras contábeis para inflar as receitas e adiar o pagamento de contas. Nos últimos meses, o jeitinho ganhou novas proporções. O Tesouro tem atrasado a transferência de recursos que deveriam ser destinados ao pagamento de benefícios do INSS, do seguro-desemprego e do Bolsa Família. Ao segurar esse dinheiro, o governo melhora, provisoriamente, a situação de sua contabilidade. Mas a Caixa Econômica, responsável pelas operações de pagamento, acaba liberando o dinheiro para os beneficiários, que recebem tudo em dia. Ao fim, é como se o banco estivesse emprestando dinheiro ao Tesouro. Essa prática, conhecida como "pedalada fiscal", pode ser irregular, por violar a Lei de Responsabilidade Fiscal, que proíbe os bancos estatais de financiar seus controladores. A suspeita motivou o procurador Júlio Marcelo de Oliveira, do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União, a solicitar uma investigação no Tesouro e no Banco Central. O governo também postergou para o fim do ano os pagamentos de precatórios, historicamente feitos em abril. O Banco do Brasil, responsável pelo crédito agrícola, também sofre com atrasos nos repasses. Além disso, o BNDES acumula um crédito estimado em 35 bilhões de reais com o Tesouro referente a linhas subsidiadas. Graças a uma portaria obscura de 2012, o governo pode reconhecer a dívida até dois anos depois de ela ser apurada. "É um subsídio que não tem aparecido na contabilidade. Significa jogar gastos já realizados para debaixo do tapete", diz o economista Felipe Salto, da consultoria Tendências. O montante retido pelo Tesouro neste ano com suas pedaladas chega a estimados 60 bilhões de reais, segundo cálculos do economista Mansueto Almeida. A conta inclui os precatórios adiados, as transferências para cobrir os juros subsidiados dos bancos públicos e o atraso no pagamento de serviços muitas vezes já executados. Afirma Gil Castello Branco, diretor da ONG Contas Abertas: "O governo já fazia uso de artifícios contábeis desde 2010, mas eles se intensificaram. Com a economia estagnada, a arrecadação não cresce, mas as despesas continuam a subir. Os resultados fiscais são os piores em mais de uma década". Assim, não é surpresa a notícia de que o Brasil recebeu da agência Moodys o alerta de que sua nota de crédito poderá ser rebaixada nos próximos meses. A dívida do país como proporção do tamanho da economia voltou a ter uma tendência de alta, depois de anos de trajetória cadente ou estável. Mesmo com a vitória de Dilma, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, sairá do cargo no fim do ano. Suas pedaladas finais, entretanto, deixarão seu sucessor em uma situação de aperto. MARCELO SAKATE ____________________________________ 5# INTERNACIONAL 17.9.14 A UTOPIA ESCOCESA Iludidos por políticos nacionalistas de esquerda que prometem mais benefícios sociais, os escoceses decidem nesta semana se querem deixar de fazer parte do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte. DUDA TEIXEIRA Aos olhos do mundo, a Escócia está intimamente associada a tradições. Tem o kilt, aquela saia masculina que só cai bem em Sean Connery e deixa o príncipe Philip, duque de Edimburgo e marido da rainha Elizabeth, com ares de rainha-mãe. Tem a gaita de foles, o uísque e o monstro do Lago Ness. Recentemente, juntou-se a essa lista a lenda de que o povo escocês seria mais próspero e que injustiças históricas seriam reparadas se a Escócia se tornasse independente do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte. Na quinta-feira 18, os eleitores do território de 5,3 milhões de habitantes, duas vezes a população de Brasília, serão convidados a decidir em plebiscito se querem ou não deixar de fazer parte da união comandada pela Inglaterra. Nas últimas pesquisas, o "não" aparecia entre 2 e 4 pontos porcentuais acima do "sim", que uma semana antes chegou a estar na frente. Escoceses e ingleses têm diferenças históricas profundas, mas há muito tempo elas são apenas amargas lembranças de um passado remoto. Os dois povos evoluíram em relação simbiótica na união que já dura 300 anos. A ideia da separação também não se explica por motivos práticos. Ao contrário, nenhuma avaliação isenta vê alguma substância nas promessas feitas pelos separatistas escoceses. Não há razões objetivas para dizer que os escoceses têm sido negligenciados. O Reino Unido gasta o equivalente a 5000 reais a mais por ano com um escocês do que com um cidadão da Inglaterra, do País de Gales ou da Irlanda do Norte. Pelo fato de a Escócia ter mais idosos, os custos com aposentadoria no país são 16% maiores que a média nacional. Os escoceses ainda ganham remédios e mensalidades em universidades e centros para a terceira idade, serviços que no resto do Reino Unido são cobrados. Para ganharem votos, os separatistas oferecem ainda mais, como creches gratuitas a todas as crianças. A verba para isso viria do petróleo existente sob o mar territorial da Escócia. As reservas, porém, estão secando. A produção hoje é a metade do que foi há quatro anos. Não haveria dinheiro, portanto, para cumprir essas promessas em caso de independência. Mesmo a simples manutenção do atual padrão de vida é posta em dúvida. "Os escoceses acham que poderão viver em uma utopia socialista em que não precisarão se preocupar com nada, mas não há petróleo suficiente para pagar toda essa conta", diz o historiador americano Bryan Glass, autor do livro The Scottish at Empire's End (A Nação Escocesa no Fim do Império, ainda não publicado no Brasil). Mesmo antes do plebiscito, as incertezas já provocam instabilidade. O líder dos separatistas, Alex Salmond, primeiro-ministro do Parlamento escocês, planeja manter em circulação como moeda oficial de uma Escócia livre a libra esterlina — essa sim uma tradição genuína que circula desde o fim do primeiro milênio e teve como guardião no século XVII sir Isaac Newton, o descobridor das leis naturais, considerado o maior físico de todos os tempos. Londres não vê com bons olhos esse arranjo monetário, e criar outra moeda seria temerário. Salmond precisa da libra e vem pressionando a Inglaterra a aceitar sua proposta com a ameaça de dar um calote na parte da dívida do Reino Unido que foi emitida pela Escócia. Em uma região ainda fortemente traumatizada pela crise financeira de 2008, falar em calote gera ondas de incerteza. Cinco bancos escoceses cogitam mudar a sede para Londres. Contratos de imóveis estão sendo feitos com "cláusula de saída", de modo que os compradores possam desistir do negócio no caso de haver mesmo a independência. Os separatistas encontram maior apoio popular na sua proposta de aderir à União Europeia. Isso é mais fácil dizer do que fazer. Na semana passada, a Comissão Europeia afirmou que a Escócia independente precisaria se recandidatar ao bloco. A entrada só ocorreria após a concordância dos 28 membros, incluindo os que temem o contágio de seus movimentos separatistas internos com a iniciativa escocesa. É o caso da Espanha. "A separação seria um erro que deixaria a Escócia à beira do precipício", diz o historiador Peter Stansky, da Universidade Stanford, nos Estados Unidos. Desunido, o reino de Elizabeth II perderia ainda mais poder de alavancagem em questões mundiais, em que tem se mantido relevante graças aos ainda fortes laços com os Estados Unidos. Inglaterra e Escócia não nasceram unidas. Isso aconteceu em 1707, depois do Desastre de Darien, como ficou conhecida a tentativa do Reino da Escócia de se firmar como potência comercial mundial. Sem possessões territoriais em pontos estratégicos das rotas navais, a Escócia tentou estabelecer-se no Istmo de Darien, no Panamá. Os espanhóis não gostaram da ideia e a expulsaram. A essa altura, porém, o empreendimento tinha levantado de tal forma o orgulho nacional que um quarto de todo o dinheiro em circulação no país fora enterrado no Desastre de Darien. Falida, mas ainda ambicionando um lugar de destaque na economia mundial, a Escócia assinou com a Inglaterra o Ato da União, que colocou os dois povos sob uma única coroa, e, com a fusão das casas parlamentares, foi criado o Parlamento da Grã-Bretanha. Se a independência for concretizada, o impacto de esvaziar o Parlamento da bancada escocesa será forte. Quando se examina a orientação ideológica dos parlamentares escoceses em Westminster, o que se vê é uma bancada fortemente à esquerda, com 41 trabalhistas e apenas um conservador. O separatista Salmond promete a seus conterrâneos que, uma vez separada da Inglaterra, a Escócia "nunca mais terá governos conservadores". Em Londres, o vácuo criado pelo súbito desaparecimento de 41 trabalhistas na Câmara dos Comuns provocaria uma guinada acentuada para a direita, dando aos conservadores da casa uma ampla e segura margem de controle das votações. O Partido Trabalhista, mais à esquerda, teria problemas para conseguir novas maiorias sem o voto escocês, o que facilitaria a vida dos conservadores. Além da perspectiva de debutar na União Europeia com a própria bandeira, favorece a campanha separatista uma mágoa recente com o que teriam sido liberdades tomadas com a economia do país por Margaret Thatcher, a primeira-ministra conservadora (1979-1990) cuja política de modernização, corte de subsídios e contenção do poder excessivo dos sindicatos salvou a Grã-Bretanha da ruína. Em um primeiro momento, o thatcherismo teve um custo social alto. Os escoceses acreditam que para eles a penalização foi ainda mais pesada. Diz o estudioso belga Christophe Crombez: "Thatcher usou a Escócia como laboratório para suas políticas liberais e isso foi especialmente duro para os escoceses, pois eles são mais inclinados a um Estado de bem-estar social". A irritante imparcialidade da rainha Elizabeth II em relação ao plebiscito é outro ponto intrigante do processo separatista. Elizabeth II, por enquanto, está muda. Terá isso a ver com o fato de que os separatistas já garantiram que a família real poderá continuar usando o Castelo de Balmoral, o esplendoroso refúgio de caça em Aberdeenshire, no Mar do Norte? Ou com a manutenção do título de duque de Edimburgo hoje entregue ao príncipe Philip? Parece que do ponto de vista do Palácio de Buckingham pouco importa que tudo mude na relação entre Escócia e Inglaterra, desde que tudo fique do mesmo jeito. ___________________________________ 6# GERAL 17.9.14 6#1 GENTE 6#2 VIDA DIGITAL – A APPLE ACERTA OS PONTEIROS 6#3 ESPORTE – UM GUGA SOBRE AS ONDAS 6#4 ESPECIAL – O MELHOR LUGAR DO MUNDO PARA ENVELHECER 6#5 ESPECIAL – ENQUANTO ISSO, NO BRASIL... 6#6 HUMOR – O RISO CONTRA O PODER 6#7 SAÚDE – O CANABIDIOL NÃO É DROGA 6#1 GENTE JULIANA LINHARES, Com Marília Leoni e Thaís Botelho O PAPEL DO SEGUNDINHO Perder a exclusividade do colo da mamãe é, por enquanto, o maior risco que o pequeno GEORGE corre. O controle das doenças infantis e o fim da era da guerra dos tronos fazem prever que o segundo bebê de KATE e do príncipe WILLIAM não precise ser acionado para emergências históricas. Um legado atribulado: os filhos número 2 que assumiram o trono incluem o tempestuoso Henrique VIII e o desastroso Carlos I, o único rei inglês executado por traição. O caso mais recente foi o do próprio pai da rainha Elizabeth, promovido ao lugar do irmão, que abdicou para se casar com a amante divorciada. Está vendo só como podia ser pior, George? Ou vai continuar fazendo cara de bravinho? PRENDA-ME, SE FOR CAPAZ Mulheres intrépidas que estrelam séries policiais já são um clássico da televisão, mas LUANA PIOVANI não é do tipo que se intimida com precedentes. "Ela é séria, dura, discreta e de poucos movimentos", diz a atriz sobre a policial e psicóloga forense que interpretará no seriado Dupla Identidade, a próxima estreia da Globo. Para incorporar Vera, uma especialista em caçar serial killers (o da série será vivido por Bruno Gagliasso), Luana fez pesquisas no Instituto de Criminalística de São Paulo e na Delegacia de Homicídios do Rio de Janeiro. "O que choca é a falta de empatia e a crueldade deles. Mas não fiquei com medo. No Brasil, temo mais assalto no farol e crime do colarinho branco." Identidade com a personagem? "A sede de justiça está em mim." Um copo d'água, rápido, para os leitores que virem as fotos de Luana na revista VIP. "Elas mostram como dá para passar sensualidade com bom gosto. Vejo tanta coisa constrangedora por aí." MÚSICA PARA OS OLHOS Não desejarás a mulher do próximo, ainda mais se ele for da família. O que seria das novelas se o tabu não fosse trincado? E, se é para quebrar alguma coisa, nada melhor do que convocar o DANIEL ROCHA. Na pele do problemático João Lucas, de Império, ele compreensivelmente desaba diante da jovem amante do pai, a Maria Ísis vivida por Marina Ruy Barbosa. "Eu me inspirei na tese de psicologia que diz que todo menino se apaixona pela mulher que o pai ama", diz o ator, que também belisca um quê de James Dean para compor o papel. Ex-campeão sul-americano de kickboxing, Daniel usa os poderosos gominhos do abdômen para um fim mais sublime: ajudar a sustentar o violino. "Comecei a fazer aula aos 5 anos e toco até hoje." JOGADA PARA CIMA DO TAPETE O que aconteceu com a boa e velha tradição de casais apaixonados famosos tomarem umas e outras e prestarem juras, quase sempre nada eternas, em Las Vegas? Kim Kardashian e Kanye West alugaram uma fortaleza com vista para Florença para uma festa de empalidecer qualquer Médici; Angelina Jolie e Brad Pitt usaram o próprio château na França. GEORGE CLOONEY, que de solteirão empedernido deu para fazer declarações públicas a AMAL ALAMUDDIN, também esboçou um roteiro europeu: papel passado em Londres, festança em Veneza e uma vida eterna de tapetes vermelhos pela frente. Treinada, a advogada de família drusa do Líbano já é: reparem na pose de ombros esticados a ferro para trás. 6#2 VIDA DIGITAL – A APPLE ACERTA OS PONTEIROS Ao lançar um relógio que Steve Jobs adoraria ter feito e certamente usaria, a empresa renasce como a mais inovadora do planeta. FILIPE VILICIC, JENNIFER ANN THOMAS E RAQUEL BEER O Apple Watch, apresentado na semana passada, não é o primeiro de seu gênero, o dos smartwatches, os relógios inteligentes. Mas será visto, no futuro, a partir de seu lançamento, no início de 2015, como o marco inaugural de uma família de produtos, os wearables (vestíveis, em inglês), eletrônicos destinados a funcionar como uma segunda pele. Concorrentes, como a Samsung, mostraram suas versões ao longo do último ano. Nenhuma, porém, teve sucesso. Direto ao ponto: os outros produtos são feios, esquisitões que pelo peso e tamanho rapidamente seriam chamados de trambolhos. O Watch da Apple é um relógio que Steve Jobs (1955- 2011) adoraria ter feito e certamente usaria. Ele precisa ainda passar pelo teste das ruas, mas, pelo que foi visto na extraordinária apresentação feita pelo CEO Tim Cook, que substituiu Jobs no comando da empresa, é um prodígio de tecnologia, design e funcionalidade. Fez, em suma, a Apple renascer como a empresa mais inovadora do planeta. O relógio, além de marcar as horas com precisão suíça, tem tudo o que se esperava de um sucedâneo dos iPods, dos iPhones e dos iPads, e muito mais: navegação intuitiva, um útil GPS, e, como jóia da coroa, o Apple Pay, serviço de pagamento cuja ambição é aposentar os cartões de crédito. O desenho é limpo e elegante, marca registrada do genial inglês Jony Ive, que sempre trabalhou à sombra de Jobs. Os adoradores da Apple, que há muito tempo deixaram de ser um nicho de nerds, acostumados a uma companhia que na mão de Jobs reinventava mercados, como o da indústria fonográfica (com o iPod e o iTunes), o de smartphones (iPhones) e o de tablets (iPads), viam com descrédito a gestão de Cook. O memorável show da semana passada em Cupertino faz a Apple acertar os ponteiros. Ela nunca esteve, a rigor, no ramo da invenção pura, de criar tecnologias do zero. Sua especialidade é a ressurreição, dar fôlego ao que parecia caminhar para a irrelevância. E aí, sim, inovar. Foi o que fez a dupla de fundadores Steve Jobs e Steve Wozniak ao criar o primeiro computador pessoal tal qual o conhecemos, o Apple II, nos anos 70. Existiam computadores domésticos? Sim. Mas havia um que combinasse belo design, tamanho ideal e navegação intuitiva? Não. A lógica se aplica aos outros produtos que deixaram marcas no universo, para usar uma expressão cara a Jobs. Havia tocadores de MP3 em 2001? Sim, mas não um como o iPod. Existiam smartphones antes de 2007? Sim, mas eram irrelevantes até o iPhone. E tablets antes do iPad? Eram peças grandotas de navegação enigmática. O mercado de wearables (além de relógios, abriga tênis e roupas, entre outros aparelhos vestíveis) era quase ficção científica. No último ano foram vendidos 2 milhões de smartwatches no mundo. Para efeito de comparação, no mesmo período saiu das lojas 1 bilhão de smartphones. A consultoria Canalys estima que o Watch fará com que o mercado cresça 300% em 2015. "Muitas vezes, as pessoas não sabem o que querem até que alguém lhes mostre", dizia Jobs, que antes de morrer idealizava o lançamento de outros produtos da categoria smart, a exemplo de TVs. A indagação que se faz, agora, dado que o Apple Watch é gostável, é saber se será necessário. Talvez não. Só o tempo dirá. Mais até do que o relógio e uma nova família de iPhones (os 6, maiores e 25% mais rápidos), o que parece ter a força avassaladora de um dique arrebentado é o Pay, o programa de pagamento sem fio para iPhones e, naturalmente, também para o Watch. Por meio dele, a partir do início de outubro, será possível pagar compras em lojas conveniadas (já são 220.000 nos EUA) sem mexer na carteira. A tecnologia de pagamento móvel existe há mais de uma década, e era adotada em outros smartphones, ou mesmo smartwatches. Mas não pegou, pela resistência de lojistas e bancos em aceitá-la. Como de costume, a Apple chegou para mudar tudo. Além do casamento com dezenas de milhares de lojas, as seis maiores instituições financeiras americanas concordaram em compartilhar dados, e outras cinco devem entrar até o lançamento, em outubro. É um movimento espetacular entrar no mercado — que reagiu com a elevação do valor da Apple na Nasdaq, a bolsa de valores eletrônica — com dois produtos incomparáveis, o Watch e o sistema de pagamento eletrônico. Cook honra o que dizia Jobs a seu respeito: "Temos a mesma visão de mundo. Confiei que ele saberia exatamente o que fazer". Para não deixar dúvidas, Cook decidiu abandonar o "i" em novos produtos, adotado desde o iMac, de dezesseis anos atrás. As novidades não vieram como iWatch, ou iPay. Ao escolher Apple Watch e Apple Pay, Cook carimba a retomada de uma fábrica de ideias que reinventou o modo como brincamos ou trabalhamos. UM COMPUTADOR DE PULSO Os principais recursos do Apple Watch e suas limitações. Preço: a partir de 349 dólares Previsão de lançamento: 2015 Tamanhos: de 38 a 42 milímetros de comprimento Modelos: Regular, esportivo e de luxo (com revestimento de ouro 18 quilates), com dezoito opções de pulseira (de aço, couro ou borracha) ATIVIDADES FÍSICAS Função: mede calorias queimadas, ritmo de pulsação de batimentos cardíacos e distância percorrida Comandos: é só clicar no app na tela do Watch O que resolve: ajuda a acompanhar metas de exercícios físicos; os dados podem ser compartilhados com outras pessoas, como um personal trainer Limitação: diferentemente de pulseiras de exercícios existentes, é preciso avisar quando se começa a atividade física (o relógio não a detecta automaticamente) GPS Função: cria rotas a pé e de carro Comandos: o caminho é traçado por comandos de voz; quando se chega às intersecções, o relógio vibra de formas diferentes, dependendo da direção que deve ser tomada O que resolve: não é preciso desviar a atenção do caminho nem baixar o volume da música do carro ou do iPod para checar as coordenadas (algo útil, por exemplo, para um motorista) Limitação: só funciona em conexão com o iPhone PAGAMENTOS Função: realiza pagamentos com cartões cadastrados no iPhone Comandos: pelo ícone do app Passbook, escolhe-se o cartão, e o pagamento é feito pela aproximação do relógio a uma máquina que ficará no caixa O que resolve: é mais seguro, já que os dados do cartão não são exibidos ao vendedor; em caso de perda do celular, basta bloquear a função do relógio pelo app Buscar iPhone Limitação: pelas funções de smartphone, a bateria não deve durar muito (ainda não foi divulgado quanto), inclusive durante transações (logo, cartões físicos não são dispensáveis). Por enquanto, só operará nos Estados Unidos. TELEFONEMAS E MENSAGENS Função: faz ligações e manda mensagens com áudio, texto, imagens, ou mesmo vibrações e sons das batidas do coração Comandos: tem microfone e alto-falante (é possível ouvir ligações por fones sem fio); as mensagens de texto são narradas (no caso da transmissão das batidas do coração, pressionam-se dois dedos na tela para ativar a função) O que resolve: é uma forma mais rápida de se comunicar em situações que exigem destreza, como ao dirigir Limitação: precisa estar conectado com um iPhone (ele, por si, não tem chip de celular), e para digitar uma mensagem, em vez de apenas narrar, ainda é necessário recorrer ao teclado do smartphone. O EFEITO DA INOVAÇÃO O lançamento dos principais produtos da Apple na última década coincidiu com um aumento do valor da empresa na bolsa de valores Nasdaq, famosa pelos investimentos em tecnologia. Assim que o Watch foi anunciado, as ações voltaram a subir. Valor da empresa em 2001: 7 bilhões de dólares. iTunes 9 de janeiro de 2001 Variação das ações: 2,5% O que revolucionou: a indústria fonográfica iPod 23 de outubro de 2001 Variação das ações: -5,11% O que revolucionou: a indústria fonográfica. O iPod foi uma exceção, e naquele momento as ações caíram. Talvez porque os consumidores não tenham percebido de imediato que o tocador, em combinação com o iTunes, ia muito além de outros aparelhos de MP3. iPhone 9 de janeiro de 2007 Variação das ações: 7,04% O que revolucionou: a telefonia iPad 27 de janeiro de 2010 Variação das ações: 0,51% O que revolucionou: os computadores portáteis Apple Watch 9 de setembro de 2014 Variação das ações: 2,5% O que pretende revolucionar: todas as tecnologias de entretenimento e trabalho que vieram antes dele. 6#3 ESPORTE – UM GUGA SOBRE AS ONDAS O paulista Gabriel Medina, de 20 anos, pode terminar o ano como o primeiro colocado no ranking mundial do surfe, modalidade desde sempre dominada por americanos e australianos. RENATA LUCCHESI, DE SAN CLEMENTE (CALIFÓRNIA) A timidez não cabe no corpo de 1,80 metro e pouco mais de 70 quilos. De boné, óculos de sol, camiseta, bermuda, meias de cano alto e tênis, o paulista Gabriel Medina desfila um tanto quanto desajeitado — e perfeitamente camuflado como um garotão californiano — pelas ruas de San Clemente, a 100 quilômetros de Los Angeles, como quem passeia em Maresias, no Litoral Norte de São Paulo, onde aprendeu a surfar aos 8 anos. Hoje, aos 20 — fará 21 em dezembro —, Bi, como é conhecido, está na crista da onda para se tornar o maior surfista do mundo. Líder do ranking, ele começou a disputar na semana passada a oitava etapa do campeonato da Associação de Surfistas Profissionais (ASP) numa região dos Estados Unidos onde só uma coisa se destaca mais que as suntuosas mansões e as enormes palmeiras: a paixão pelas pranchas a beijar o mar. "A Califórnia é irada. Tem praia, cidade, e o estilo de vida é melhor que o do Brasil", disse o jovem surfista, dias antes da competição que poderia servir de atalho à consagração. Ainda que tenha desempenho ruim na fase americana (na primeira bateria foi mal), ele terá outras três oportunidades até o fim do ano para subir no pódio à frente de uma lenda, Kelly Slater, onze vezes campeão do mundo e uma vez ex-namorado de Gisele Bündchen. Sem o disfarce do guarda-roupa, ao chegar à praia de águas geladas de Trestles, o local da competição, com uma toalha branca enrolada nos quadris, a pele bronzeada, os dentes brancos emoldurados pelo queixo levemente proeminente, as tatuagens nos braços (Deus de um lado, a família do outro), começa a chamar atenção. Vira estrela. Vira o rei das selfies. Dá autógrafos, é cercado por jornalistas, troca o português carregado de sotaque paulistano por um inglês bem razoável. "Ele é o cara mais perigoso no mundo do surfe", publicou no Instagram o próprio Slater, depois de ser derrotado por Medina na final da etapa de Teahupoo, no Taiti. Mesmo que não conquiste o título, Gabriel terá ido mais longe que todos os outros surfistas do Brasil. A melhor posição de um brasileiro foi a do paulista Victor Ribas, terceiro lugar no mundial em 1999. Gabriel já é um fenômeno também de marketing. Hoje, ele tem nove patrocinadores fixos, que lhe rendem um lucro líquido de mais de 1 milhão de reais por ano. A bermuda assinada por Gabriel foi a peça mais vendida nos EUA no verão passado entre jovens de sua idade. "É um garoto bonito, tem uma família muito legal, condições que o tornam querido e popular", diz César Villares, vice-presidente de gestão de talentos da IMX, empresa que cuida da imagem do surfista brasileiro. "O surfe é gigante no Brasil, mas faltava um grande campeão. O Gabriel pode ser um novo Guga." É a gênese de uma rara celebridade brasileira — um esportista de sucesso que não joga futebol, e que hoje, por contrato, é mantido afastado das bolas, para não se machucar. Sua história, na verdade, não difere muito da dos meninos de classe média que trocaram as salas de aula por água salgada e parafina. "Eu falava que, quanto melhor ele surfasse, menos precisaria estudar”, ri o padrasto e treinador, Charles Saldanha, seu grande incentivador e companheiro de viagens até hoje — Gabriel o chama de pai. Entre uma nota ruim e outra, treinava à exaustão, imitava as manobras dos grandes craques, até finalmente criar seu próprio estilo. Mas, afinal, o que Gabriel Medina faz de diferente na onda, a ponto de ter se tornado o surfista mais jovem a conquistar uma etapa do circuito mundial, com 17 anos? Sua especialidade é o flynnstone flip (entenda como funciona a manobra no quadro), um mortal de costas que poucos mortais são capazes de realizar. No YouTube, o vídeo oficial com o espetacular movimento de Gabriel tinha sido visto até a semana passada por 1,4 milhão de pessoas. Os braços longos e as pernas curtas facilitam a acrobacia, mas o que o faz vencedor é seu prazer de competir. O surfista leva a sério até partidas de pingue-pongue e alimenta pequenas corridas com o pai para ver quem chega primeiro ao carro ou ao quarto do hotel. "Antes da final em Teahupoo, falei para o Gabriel que a vitória do Kelly Slater era certa, inclusive para o próprio Kelly. Sabia que essa era uma forma de incentivá-lo; ele tem isso no sangue, quer ganhar tudo", diz Saldanha. Em 2012, Gabriel perdeu a decisão de uma etapa em Portugal por um placar duvidoso (no surfe, os juízes dão notas de acordo com a dificuldade das manobras, a plasticidade dos movimentos, o desfecho, eliminando os placares mais baixos). O brasileiro saiu da água aos prantos, não participou do tradicional banho de champanhe dado no campeão. "Sentia pressão no começo. Agora não sinto mais, mesmo em ondas grandes ou contra adversários fortes", diz. Para Gabriel, atavicamente fechadão, é mais tranquilo enfrentar Kelly Slater do que dar entrevistas. "Na minha primeira vez na TV, tremia e suava. Só conseguia responder com 'ahã' e 'aaã'", conta. Por não poder controlar o avanço da fama, teve de conter a timidez. Hoje, tem o próprio reality show, exibido pelo canal por assinatura Off. "O Teco Padaratz (surfista catarinense) disse certa vez que os americanos e os australianos é que mandam no circuito. A festa é dos caras", diz Jaime Medina, tio e assessor de Gabriel. "Agora o dono da festa é o Gabriel." UMA MANOBRA DE CRAQUE Gabriel Medina faz diferença ao executar com perfeição a flynnstone flip, balizada com o nome do havaiano Flynn Novak e inspirada no backflip do snowboard ou do skate, com uma volta completa sem perder o contato com a prancha. São raros os surfistas capazes de completá-la. 1- Decolagem – Para completar o giro, o surfista precisa deixar a onda em alta velocidade, a pelo menos 50 quilômetros por hora. 2- Projeção - Quanto mais flexionado estiver o corpo do atleta, mais fácil será o movimento de rotação. Por isso, Medina praticamente se agacha na prancha. 3- Altura – Em seu ponto mais alto, Medina fica de 2 a 3 metros acima da crista da onda e dá uma volta completa em menos de um segundo. 4- Equilíbrio - Após dar o mortal de costas no ar, o surfista precisa se equilibrar no mar. Nessa parte é essencial usar a força dos membros inferiores. Fonte: Marcos Duarte, professor de engenharia biomédica da Universidade Federal do abc.) 6#4 ESPECIAL – O MELHOR LUGAR DO MUNDO PARA ENVELHECER Na Suécia, eleita o país-modelo no atendimento aos idosos, os governos bancam ou subsidiam médicos, cuidadores, refeições, corridas de táxi etc. etc. FERNANDA ALLEGRETTI, DE ESTOCOLMO A mesma Suécia que concedeu ao escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez (1927-2014) a maior das honrarias literárias, o Prêmio Nobel, tem se notabilizado por desmentir uma de suas frases mais antológicas: "O segredo de uma velhice agradável consiste apenas na assinatura de um honroso pacto com a solidão". Para os suecos, a terceira idade está longe de ser vivida de modo incontornavelmente solitário — muito menos desagradável. Ao contrário: não há lugar no mundo onde os idosos sejam tão bem assistidos. Além de aposentadoria digna e saúde pública de qualidade, eles têm, gratuitamente ou a um custo baixo, graças a parcerias dos governos com empresas privadas, benefícios como serviços de cuidadores, que chegam a visitaálos sete vezes por dia, entrega de refeições em casa, instalação de alarmes para emergências, táxi para os que já não conseguem mais utilizar transporte coletivo e até mesmo auxílio em atividades básicas do cotidiano, como fazer compras, lavar roupa, limpar a casa ou trocar uma simples lâmpada. Tais infraestrutura e rede de apoio fizeram com que a Suécia alcançasse o topo do ranking Global AgeWatch Index. Trata-se do primeiro indicador que mede a qualidade de vida dos idosos em 91 países, de todos os continentes. Realizado pela HelpAge International — órgão que estuda a terceira idade e é financiado por instituições como a Organização das Nações Unidas e a União Europeia, além do governo inglês —, o levantamento, publicado pela primeira vez no ano passado, leva em conta treze indicadores, agrupados em quatro temas centrais: segurança financeira, que avalia, por exemplo, a abrangência do sistema previdenciário e a incidência de pobreza; saúde; emprego e educação; e, por fim, o que os pesquisadores convencionaram chamar de "ambiente propício", que analisa, entre outras condições, os contatos sociais e o acesso aos meios de transporte público. Depois de levantar e comparar todos esses dados, a HelpAge concluiu ser a Suécia o país ideal para alguém envelhecer. O prodígio se deve à rara combinação entre rigor no uso das finanças públicas e ousadia no âmbito das iniciativas sociais. O país foi pioneiro, por exemplo, na criação de um sistema universal de aposentadoria, em 1913, e a rainha Silvia fundou, há dezoito anos, uma instituição voltada exclusivamente para idosos com demência, que hoje é referência internacional (veja a entrevista com a soberana, filha de mãe brasileira, na pág. 98). No plano privado, um destaque recente é o primeiro asilo do mundo para gays e lésbicas, inaugurado em novembro passado. Na pesquisa da HelpAge, o Brasil aparece na 31ª posição (veja a reportagem na pág. 100). Ainda que a Suécia seja um país rico (a renda per capita é de mais de 58.000 dólares, cinco vezes maior do que a brasileira), relativamente pequeno (tem menos de 450.000 quilômetros quadrados; cabe dentro de Minas Gerais) e de modesta população (9,7 milhões de habitantes, número inferior ao da cidade de São Paulo), sua capacidade de oferecer aos cidadãos um conjunto de benefícios que em boa parte do planeta é luxo surpreende. De acordo com o Banco Mundial, a Suécia gasta em saúde, per capita, o equivalente a 12.000 reais — cinco vezes mais que o Brasil; já com a Previdência, no entanto, o governo despende somente 9% do PIB — aqui são 12%. Para o economista e escritor Klas Eklund, professor da Universidade de Lund, as contas só fecham graças a uma série de reformas feitas ao longo dos anos, especialmente durante a crise que abateu a Suécia na década de 90 e afetou os setores cambial, imobiliário e bancário. "Vimos que estávamos muito vulneráveis e aplicamos reformas em setores que englobam desde a Previdência até os bancos, reduzindo bastante os gastos públicos", explica ele. O aparato do Estado sueco é enxuto. No país, uma monarquia parlamentarista, os políticos não têm direito a carro oficial com motorista nem a viagens em jato privado. Os vereadores não ganham salário; recebem entre 77 e 154 reais por sessão a que são obrigados a comparecer. Nenhum deputado tem secretária ou assessor. Durante a semana, os parlamentares que moram fora da capital passam a noite em cubículos de apenas um cômodo. Nem mesmo o primeiro-ministro tem direito a empregada, e ele já declarou ser o responsável por limpar a casa e lavar a própria roupa. Os suecos prezam a transparência e não toleram a corrupção. Em 1995, Mona Sahlin, então vice-primeira-ministra e favorita a assumir o cargo de premiê, teve de retirar sua candidatura depois que um jornal local revelou que ela havia usado o cartão corporativo para pagar despesas pessoais, incluindo chocolates Toblerone. A própria rainha Silvia, após uma reportagem, vasculhou a suposta atuação de seu pai no Partido Nazista; no final da história, ele pode até ter ajudado um judeu a fugir para o Brasil. Boa parte da gestão dos serviços voltados à população da terceira idade fica a cargo dos 290 municípios. Os condados (21 ao todo) são responsáveis por prover a saúde, enquanto cabe ao governo central e aos parlamentares estabelecer diretrizes e aperfeiçoar as leis. Pode parecer complicado, porém o sistema é tão eficiente que dá ao idoso a prerrogativa da escolha. É possível optar, por exemplo, entre uma empresa pública e outra privada, parceira do município na prestação de determinado serviço. O cidadão que precisa de ajuda com a alimentação pode definir se prefere recebê-la pronta ou se quer que um cuidador o ajude a cozinhar. O objetivo é manter a independência pelo maior tempo possível — estatísticas mostram que um em cada três idosos mora sozinho no país. Só ficam permanentemente nos asilos públicos aqueles que passam a representar um perigo para si próprios e não dividem a casa com mais ninguém. Há também a opção de um sistema misto, em que o indivíduo passa uma parte do mês em sua residência e outra na casa de repouso. Nesse caso, a finalidade é oferecer um intervalo de descanso aos familiares. Um bom exemplo da eficiência sueca na gestão de todo esse aparato são os centros de assistência domiciliar, ou home care, na expressão em inglês. As cidades são divididas em regiões e cada uma delas tem sua própria central. É nessa central que se reúnem os cuidadores responsáveis pelo atendimento aos idosos. Lá é programada dia a dia a agenda desses profissionais e são colocadas as redes de alarme. Todo cidadão que completa 65 anos pode requerer, pelo equivalente a 37 reais por mês, a instalação de um comunicador residencial. Por meio dele, é possível pedir ajuda em caso de emergência (veja no quadro ao lado esse e outros dispositivos tecnológicos de uma "casa ideal" para quem está na terceira idade). A finlandesa Maarit Suopanki é diretora de um centro de assistência domiciliar no bairro de Enskede-Arsta-Vantör, no sul de Estocolmo. Ela e sua equipe, composta de 90% de estrangeiros, têm a função de acompanhar o cotidiano de pouco mais de 200 idosos que moram na região. Vinte pessoas trabalham na central durante o dia e sete à noite. A locomoção entre uma visita e outra é feita de bicicleta e a quantidade de visitas varia de uma a sete, incluindo o período da madrugada, para aqueles mais necessitados. Diz Maarit: "Não adianta tratá-los como crianças. É preciso perguntar a esses senhores e senhoras como eles querem ser cuidados. Se podem continuar na mesma casa, precisamos ajudá-los". O processo para ter direito a esses serviços não leva mais do que cinco dias e pode ser feito on-line ou via telefone. É possível combiná-los entre si. Não há limite, contudo o requerente só consegue aquilo de que de fato necessita. Nem todos os benefícios são gratuitos. A taxa a ser paga é definida de acordo com a renda e os gastos mensais de cada cidadão, mas há sempre um teto. Ninguém pagará mais do que o equivalente a 562 reais mensais para ter assistência domiciliar com cuidadores ou 858 reais para receber em casa todas as refeições. Como a terceira idade começa aos 65 anos em países desenvolvidos, é preciso ter alcançado esse patamar para requerer os serviços. Na Suécia, não há idade mínima para a aposentadoria. Quanto mais tempo o indivíduo contribuir, maior será a soma a que terá direito no futuro. O piso é o equivalente a 2587 reais. Em média, os suecos se aposentam aos 64 anos e 90% complementam a renda com previdência privada. Embora a carga tributária do país esteja entre as mais pesadas do mundo, a população acha que o retorno compensa. O imposto de renda por lá começa em 29%, no entanto quem ganha mais do que o equivalente a 114.000 reais por ano paga de 49% a 60%. Em contrapartida, a população exige que o Estado se responsabilize por serviços incomuns em outras nações, como a saúde bucal até os 19 anos, os estudos acadêmicos até o mestrado — e, claro, o apoio exemplar na velhice. De acordo com uma pesquisa divulgada pelo Ministério da Saúde local, apenas 4% dos suecos estão dispostos a cuidar dos pais idosos. No sul da Europa, essa porcentagem fica entre 70% e 80%. "Não é falta de amor por nossos pais, mas pagamos muito dinheiro ao governo e precisamos continuar produzindo para manter todo esse aparato", diz o advogado Jan Melander, de 44 anos, que semanalmente visita sua mãe em uma casa de repouso. Vinte e seis por cento da população na Suécia já tem mais de 60 anos. O grande desafio em relação à velhice, nas próximas décadas, será o crescimento da parcela de habitantes com mais de 80, a qual deve aumentar 45%. Na eleição geral desta semana, 600 candidatos tinham mais de 80 anos. "Nessa faixa etária, a saúde se deteriora muito rápido e os gastos com cuidados ficam bem mais elevados", diz a demógrafa Lívia Oláh, da Universidade de Estocolmo. "Teremos de melhorar os hábitos para prolongar a qualidade de vida e aumentar a produtividade." O governo já começou a arquitetar meios para cobrir os custos ascendentes. Encomendou à Pensions Myndigheten, entidade responsável pela administração das pensões no país, uma pesquisa para avaliar os efeitos de postergar a aposentadoria para os 75 anos. Manter-se no topo das nações no que se refere ao atendimento aos idosos significará para os suecos ter de trabalhar mais. Contudo, eles parecem preferir isso a se ver obrigados a assinar um pacto honroso com a solidão. AO ABRIGO DO ARCO-ÍRIS Inqbritt Akerberg, 70 anos, e Agneta Sparre, 63, são amigas e moram no primeiro asilo gay do mundo, o Regnbagen, que significa arco-íris em sueco. Inaugurado no fim de 2013, tem 33 moradores e uma lista de espera com sessenta nomes. Inqbritt soube do local por intermédio da filha, fruto de um relacionamento heterossexual do passado. "Somos como uma grande família. Nos fins de semana, tomamos vinho e recebemos visitas." MIMOS DOMÉSTICOS Quando Per Öström, de 85 anos, escuta a cuidadora Eden Kidane chegar, faz questão de recepcioná-la à porta. "Ela me mima", admite. Öström recebe seis visitas diárias de cuidadores. A maioria é feita por Eden, que, quando vai à Eritreia ver a família, faz o aposentado chorar de saudade. Ele mora sozinho e tem ajuda para limpar a casa, fazer caminhadas e ir ao médico. "Nunca parei para pensar se tenho uma boa velhice, mas recebo bons cuidados." ALTO-ASTRAL Foi navegando na internet que o ex-programador de sistemas Thomas Uhrdin de 66 anos, viu o anúncio da Veteranpoolen, uma franquia especializada em recolocar aposentados no mercado de trabalho. Uhrdin preencheu um cadastro contando aquilo que sabia fazer além de sua profissão e logo apareceram clientes querendo contratá-lo para consertar telhados e cercas. "Aprendi esse ofício com meu pai e meu irmão", diz ele. "Procuro trabalhar todos os dias. Não consigo ficar sentado sem fazer nada", garante, animado. A CASA IDEAL PARA OS IDOSOS Desde 2008, pesquisadores do KTH Royal Institute of Technology, em Estocolmo, estudam maneiras de tornar as residências mais amigáveis para a terceira idade. Mantêm em um andar da universidade, referência em engenharia no país, dois apartamentos-laboratório, nos quais fazem experimentações com voluntários e cuidadores. "O envelhecimento da população não pode ser suportado sem tecnologia", diz o engenheiro Stefan Lundberg, professor associado do departamento de tecnologia e saúde. "Nosso objetivo é procurar soluções que proporcionem independência e aliviem o trabalho das famílias." Veja aqui algumas das características da "residência ideal" planejada pelo instituto sueco. Cozinha 1. Fogão que só é acionado ao entrar em contato com metal, para dificultar queimaduras ou mesmo focos de incêndio 2. Exaustor com altura ajustável, que muda de cor, para evitar acidentes 3. Geladeira que produz um alerta sonoro, caso seja deixada aberta 4. Armários com prateleiras que descem e sobem, para facilitar o manuseio de copos e pratos 5. Pia com altura ajustável por controle remoto 6. Louças de cores fortes. Pessoas com algum grau de demência distinguem melhor as fronteiras quando há um contraste de cor Entrada 7. Porta eletrônica, que abre de baixo para cima, como uma persiana Sala 8. Televisor atrelado ao tablet para reproduzir receitas e filmes 9. Se houver tapetes, que sejam de cores fortes e antiderrapantes 10. Mesa para refeições com altura ajustável eletronicamente 11. Sofás com altura similar à de uma cadeira de rodas Quarto 12. Alarme conectado à central de assistência domiciliar. Com microfone de alta potência, acionado por uma espécie de relógio de pulso, o idoso consegue se comunicar com um agente, mesmo distante do equipamento, e pedir ajuda 13. Cama com altura Ajustável, para facilitar a transição entre a cadeira de rodas e o lugar de dormir 14. Andador com sistema de elevador para suspender o idoso caso ele caia. e câmera que o mantém em contato com Banheiro 15. Chuveiro controlado não por torneiras, mas por botões nos quais é possível determinar previamente a temperatura da água e a potência do jato 16. Tampo do vaso e interruptores de cores fortes, como vermelho ou laranja, para facilitar sua localização 17. Banco fixo à parede do chuveiro, para o idoso se sentar e evitar quedas 18. Pia e vaso sanitário com altura ajustável por controle remoto "Paciência e carinho não bastam" Quando Silvia, a rainha da Suécia, entra em algum lugar, invariavelmente as pessoas se levantam. É o que reza o protocolo - mas nenhum sueco faz isso a contragosto. Silvia Renate Sommerlath casou-se com o rei Carl Gustav em 1976, quatro anos depois de conhecê-lo quando trabalhava no cerimonial da Olimpíada de Munique. Nascida em 1943 na Alemanha, filha de um nativo e de uma brasileira, ela morou em São Paulo dos 4 aos 13 anos (aliás, Sua Majestade fala um português irretocável). Ao assumir o trono, seu modo simpático, despojado e caloroso de ser logo derreteu a famigerada frieza escandinava. A entrevista a seguir foi realizada no Silviahemmet, ou Lar da Silvia, fundado há dezoito anos pela rainha e voltado ao tratamento de idosos com demência, problema enfrentado por sua mãe. Além de receber os pacientes, que passam o dia na instituição - localizada em Drottningholm, perto do palácio real, em Estocolmo -, o Silviahemmet forma profissionais para cuidar especialmente de quem sofre de males que afetam a memória, como o Alzheimer, por exemplo. A mãe da senhora sofreu com demência. Esse foi o ponto de partida para a criação do Silviahemmet? Sim. Quando mamãe adoeceu, meu pai tomou a iniciativa de cuidar dela. Eles moravam na Alemanha, longe de mim e de meus irmãos. Então, não notamos que ela estava doente. Só quando papai morreu percebemos que ela não tinha capacidade de se organizar sozinha. Percebi também que os remédios eram muito fortes. Ela não conseguia levantar-se cedo nem andar direito. Na época, os médicos não sabiam muito sobre o assunto. Achavam que toda pessoa de idade era esquecida. Lembro-me de ter perguntado ao médico dela o que eu poderia fazer. A resposta foi que o melhor remédio era a informação. Fiz esse centro pensando nisso. Temos cursos para formar enfermeiras e cuidadores, mas instruímos até motoristas de táxi sobre como lidar com os idosos. No caso das enfermeiras, o curso dura dois anos e quem participa recebe um diploma. Tendo vivido essa situação dentro da própria família, o que a senhora considera mais difícil de enfrentar em relação à demência? É muito difícil para os familiares. É um trabalho pesado. Não é só ter paciência, dar carinho e amor. Tem de ter energia. A ideia do Silviahemmet é também dar um alívio aos familiares. Os idosos passam o dia aqui uma, duas ou até cinco vezes por semana. Fizemos um livro infantil para explicar às crianças por que a vovó ou o vovô não se lembram das coisas ou têm a aparência séria. Muitas vezes o idoso perdeu a capacidade de controlar os músculos e por isso fica com a expressão sisuda. A instituição também oferece informações práticas em relação a organizar uma casa para pessoas com demência. O que pode ajudá-las? Uma vez, minha mãe estava no quarto, passando por um tapete e indo em direção a outro. De repente, entrou em pânico, e eu não sabia o que era. Quando contei ao médico, ele me perguntou a cor do tapete. Era de um azul-esverdeado. Aprendi que, para pessoas com demência, as cores escuras são como um abismo. O médico me orientou a substituir os tapetes da casa por outros de cores vivas, como laranja ou vermelho. Nunca mais o problema se repetiu. A senhora se envolve pessoalmente com os pacientes? Confesso que, no início, eu vinha mais ao centro. Pegava a bicicleta e pedalava até aqui. Hoje, não consigo mais vir tanto quanto gostaria. Continua visitando o Brasil? Todos os anos. Ficamos muito tristes com a notícia da morte de Eduardo Campos. Eu e meu marido o conhecemos através da Childhood (outra instituição da rainha, que, no Brasil, tem um braço em Pernambuco). Ele nos ajudou muito a constituir o centro, que trata de crianças que foram abusadas sexualmente. F.A. 6#5 ESPECIAL – ENQUANTO ISSO, NO BRASIL... Em duas décadas, a população com mais de 65 anos dobrará — e o país continua sem atender à demanda na saúde e sem desarmar a bomba-relógio da Previdência. As irmãs Carmem e Teresinha Furino moram sozinhas em dois cômodos da parte térrea da casa de uma prima, que lhes cobra o imposto predial, em pleno bairro das Perdizes, região de classe média da capital paulista. Carmem, de 86 anos, é quem cuida de Teresinha, de 82, que não consegue mais sair da cama desde 2013, quando foi internada para tratar uma pneumonia. Ela precisa de ajuda para realizar tarefas simples, como alimentar-se. A irmã é quem a auxilia. Do governo, cada uma recebe aposentadoria equivalente a um salário mínimo. Carmem, sempre que precisa, recorre ao SUS; Teresinha tem um modestíssimo plano de saúde. "O dinheiro mal dá para comer", diz Carmem, que paga a uma conhecida para que prepare o almoço e ajude na higiene. Ambas contam com a solidariedade de uma vizinha, que financia sessões com uma fisioterapeuta (a preço camarada) e costuma levar-lhes sopa para o jantar e um bolo diet (as irmãs são diabéticas). Carmem e Teresinha representam, com cruel perfeição, alguns dos maiores receios dos brasileiros em relação à chegada da velhice. VEJA teve acesso, em primeira mão, a um levantamento inédito da consultoria Nielsen sobre envelhecimento, que ouviu 503 pessoas em todo o país. Os dados da Pesquisa Global sobre Envelhecimento mostram que por trás dos medos citados pela população está a ideia de uma velhice desassistida (veja o quadro na pág. ao lado). Os brasileiros têm razões para se preocupar. O país, que já não cuida bem de seus idosos, está envelhecendo com rapidez impressionante. A porcentagem da população com mais de 65 anos dobrará entre 2011 e 2032. Passará de 7% para 14% do total de habitantes. A título de comparação, a França levou mais de um século para ter uma quantidade equivalente de idosos e a Suécia, 85 anos. Desde 1964, o Brasil vive o chamado bônus demográfico, fase em que a força de trabalho é muito maior do que a quantidade de dependentes. Nesse período, que só ocorre uma única vez na história de qualquer nação, não há muitas crianças para educar e o número de idosos que necessita de auxílio ainda é baixo. A maioria dos adultos está em idade produtiva. Acontece que o bônus demográfico do Brasil termina em 2024, e o país pode ficar velho antes de se tornar rico. Disse a VEJA o economista Ronald Lee, professor da Universidade da Califórnia e respeitado demógrafo: "O envelhecimento da população se dá pela combinação de três fatores: queda das taxas de mortalidade infantil, aumento da expectativa de vida e queda da natalidade. O envelhecimento acelerado do Brasil é devido principalmente ao rápido declínio desse último índice". Embora seja óbvio que uma nação com grande contingente de cidadãos idosos precise responder rapidamente a demandas relacionadas à saúde e ao urbanismo, o problema emergente que aqui ganha status de bomba-relógio é a Previdência. O Brasil já privilegia os idosos na transferência de recursos. Gasta com 3 milhões de aposentados do serviço público mais do que com 37 milhões de crianças de até 14 anos que frequentam escolas. Um estudo feito pela seguradora Allianz inseriu o país na segunda posição entre as nações com Previdência menos sustentável. A explicação: os brasileiros se aposentam cedo, em média com 55 anos (quase dez a menos do que na Suécia), e haverá, com o envelhecimento populacional, um número cada vez menor de contribuintes. "Reformas precisam ser feitas", reconhece o ministro da Previdência Social, Garibaldi Alves Filho. "Mas essa não deve ser só uma preocupação dos políticos, e sim de toda a sociedade. Há, no Brasil, uma falta de conhecimento sobre as questões previdenciárias e isso precisa mudar." Apesar de o programa previdenciário brasileiro exigir reformas, ironicamente foi ele o responsável por alçar o país à 31ª posição do ranking de envelhecimento Global AgeWatch, o mesmo que pôs a Suécia no topo. A abrangência do sistema foi imprescindível para praticamente erradicar a pobreza entre os que se situam aqui na terceira idade. Para que o Brasil avance e ofereça um tratamento digno aos idosos, dizem os especialistas, é necessário desonerar a Previdência também nesse sentido, de forma que ela não seja praticamente o único meio de arcar com os custos da velhice, como ocorre com Carmem e Teresinha. F.A. RUGAS DE PREOCUPAÇÃO Ao contrário dos suecos, quem vive no Brasil teme ficar desassistido ao se tornar idoso AS AFLIÇÕES DO BRASILEIRO QUANDO A TERCEIRA IDADE CHEGAR • Perder a agilidade mental 64% • Perder a agilidade física 60% • Não ter dinheiro para cobrir despesas médicas 53% • Não ter dinheiro para viver com conforto 50% • Ser um fardo para familiares e amigos 48% • Ser abandonado 34% QUEM IMAGINA QUE CUIDARÁ DELE NA VELHICE • Cônjuge 41% • Filhos 22% • Profissionais de uma casa de repouso 6% Fonte Nielsen 6#6 HUMOR – O RISO CONTRA O PODER Na nova geração de humoristas brasileiros, ninguém é mais temido pelos políticos que Danilo Gentili. Nascido no ABC paulista, o artista de 34 anos tornou-se algoz da categoria em 2009: como repórter do CQC, chegou a ser expulso do Congresso Nacional, em Brasília. Hoje à frente do talk-show The Noite, do SBT, Gentili mantém a política sob sua mira. Nesta segunda-feira, ele redobrará a artilharia no Politicamente Incorreto, atração na qual interpreta o fictício deputado Atílio Pereira, figurão corrupto que vira candidato a presidente da República. O canal pago FX levará o programa ao ar na mesma faixa de exibição noturna do horário eleitoral na TV aberta. Em conversa com o editor Marcelo Marthe no seu apartamento, em São Paulo, Gentili contou como é difícil fazer humor no Brasil governado pelo PT, denunciou os efeitos perversos do patrulhamento e louvou o valor do riso como antídoto contra o autoritarismo e os malfeitos. Como surgiu a ideia de interpretar um político corrupto em um programa da TV paga que irá ao ar no horário da propaganda eleitoral obrigatória nos canais abertos? Acho importante partir para a confrontação. Hoje, as pessoas pensam que discordar de quem está no poder é um crime. Mas a liberdade de atacar os poderosos é o que faz a democracia. Sou contra a propaganda eleitoral, A Voz do Brasil e qualquer uma dessas imposições estatais. O horário eleitoral virou comércio. Como comediante, há o lado impagável de ver Lula abraçado a Maluf por causa de uns minutos a mais de propaganda. Mas mesmo um palhaço como eu fica desolado. O pior é a movimentação para estender o horário gratuito para a TV paga. Seria terrível. A coisa está muito invasiva. No período da eleição, somos proibidos de fazer piada com os candidatos. Mas não é agora que eles deveriam estar mais expostos ao bombardeio? É como se dissessem: "Eleitor, você veio à feira para comprar frutas, só que não vai poder apalpá-las. Terá de acreditar que estão boas". Recentemente, um dirigente do PT incluiu seu nome em uma espécie de lista negra de jornalistas e apresentadores de TV que seriam inimigos do partido. Isso o incomodou? Como todo rompante de autoritarismo, a lista negra do PT é patética e ridícula — mas deve ser vista como um fato alarmante. Divulgar em seu site oficial uma lista de pessoas que seriam supostamente do mal e inimigas dos pobres diz muito sobre as ideias do partido que governa o país há doze anos. Poxa, o sujeito não é um militante qualquer, é o vice-presidente do PT, Alberto Cantalice. Em outras palavras, ele estava incitando a caça às bruxas: se você for do PT e encontrar essas pessoas na rua, não hesite em tomar providências. É algo que lembra os camisas-negras do fascismo, que saíam pelas ruas da Itália descendo o cacete em quem incomodava Mussolini. O episódio é tão grave assim? É assustador o rumo que as coisas estão tomando no país. Essas mesmas pessoas que diziam combater a censura do regime militar hoje incorrem em práticas autoritárias. Dias depois da divulgação da tal lista, eu estava andando na Avenida Paulista com minha namorada e fui hostilizado por uma militante do PT. Com jeito raivoso, ela começou a me xingar: "Você odeia os pobres, é racista, nazista e inimigo do povo". Mas então dois meninos negros me abraçaram e disseram para ela parar de ser idiota. Eu até tirei uma foto com um deles e postei no Instagram. O dirigente do PT está à frente de uma massa de manobra, dando instruções aos militantes sobre o que fazer com quem incomoda o partido. Está mais difícil fazer humor no Brasil governado pelo PT? É mais difícil, sem dúvida. Inspiração para fazer rir não falta: piadas, afinal, são feitas com o erro, a coisa ruim. Não só a esquerda, como qualquer governo, dá um caminhão de material aos comediantes. Mas o que me assusta é que o espírito autoritário tente inibir qualquer crítica contra esse governo. Eu não vi isso em outros períodos. Cresci vendo Agildo Ribeiro no Cabaré do Barata. Ele tinha bonecos representando o Maluf e o Sarney. Depois, o Collor foi malhado à vontade. Os comediantes faziam a paródia da política na TV, e ficava tudo bem. Hoje, fazer piada com a Dilma ou o Lula é um parto. Tem gente sempre a postos para dizer que você não deve desrespeitar pessoas de trajetória tão legítima etc. Se era banal fazer piada com um presidente em exercício e agora virou tabu, o país só pode ter regredido. A que isso se deve? É patrulhamento mesmo. A prova de que ele existe é ver um dirigente do partido que está no poder divulgar sem pudor sua lista de nomes inconvenientes. Mas vejo outra ameaça. Recentemente, proibiram comerciais voltados para crianças na TV. Esse pessoal sempre bate na tecla de que são medidas pelo bem das pessoas. Primeiro foram o cigarro e a bebida e, pelo jeito, daqui a pouco serão os alimentos calóricos. Os patrulheiros vão eliminando os anunciantes, e, em seu lugar, as emissoras passam a depender mais da propaganda estatal. Aí é que a turma que está no poder se esbalda. Eles podem ligar para um canal e exigir que não se abordem temas espinhosos, sob a ameaça de tirar do ar os anunciantes oficiais. Os políticos brasileiros são mal-humorados? Eles se levam a sério demais. Há um tanto de burrice envolvida nisso. O humor, por natureza, mexe com nosso lado racional. É preciso fazer a conexão entre duas ideias para compreender o que há de engraçado em uma tirada. As pessoas que aceitam piadas sobre si mesmas e riem delas são mais inteligentes. Os humoristas americanos fazem piadas impiedosas, mas os políticos são espertos para entender que rir de si próprios os torna mais populares. Quando o político prefere censurar a embarcar na piada, revela-se a burrice típica de gente autoritária. Dá para imaginar a presidente Dilma Rousseff submetendo-se ao ritual autodepreciativo que George W. Bush ou Barack Obama enfrentaram na TV americana? Eu olho para a cara da Dilma e não acho que ela tenha sequer capacidade de entender o que é uma piada. Você acha que uma presidente que não sabe discursar tem condição de entender a sutileza do humor? Agora, tome o exemplo da Sarah Palin nos Estados Unidos. Quando ela concorreu a vice-presidente, os humoristas a massacraram. O que ela fez? Foi ao programa Saturday Night Live para ouvir tudo na cara. O que o espectador achou disso? Puxa, essa mulher não é burra como eu pensava. Ao contrário da nossa. Marina Silva seria um alvo mais inspirador? Tudo que tiver uma natureza contraditória será um prato cheio. A Marina se diz crente, mas é adepta de uma ideologia eco-marxista que nega Deus. Diz ter saído do PT por desencanto com o partido, mas continua falando de Lula como se o amasse. E tem um ranço petista bem visível. Diz ser uma opção para quem não gosta do PT e do PSDB, mas também que quer governar junto com PT e PSDB. Fala que gosta de trabalhar, mas é política. Dizem que é duro entender as mulheres. No caso da Marina, acho impossível. Em um de seus livros, lê-se a piada: "O Lula bebe tanto que se quiser abastece o Aerolula com xixi". De onde sai a inspiração para tiradas assim? Ah, a piada saiu do Lula mesmo. De eu estar careca de saber que nosso ex-presidente é um bêbado. Foi um tema que fiz questão de incluir em um show que fiz pela internet, já que o Lula quis expulsar do Brasil um repórter do New York Times por falar de sua queda pelo álcool. Quanto mais autoritário é o político, mais se faz necessário tratá-lo sem o mínimo respeito. Não é normal dizer amém, vigiar-se para não falar o que você pensa. O que causa essa anestesia? Às vezes, o cidadão absorve o patrulhamento por osmose, como no experimento da caixa de Skinner: se o rato enjaulado faz movimentos errados, ele leva choques até obedecer. Mas a metáfora que melhor se aplica ao Brasil é a história do sapo e da água quente. Quando o bicho é colocado na água fervente, ele pula. No entanto se for posto em água fria e a temperatura subir devagar, ele não perceberá e morrerá cozido. Assim como o sapo, não estamos percebendo a escalada autoritária. Mas basta reparar na Venezuela para ver aonde podemos chegar. O senhor foi criticado por falar que os judeus temiam a chegada do metrô a um bairro nobre de São Paulo porque "a última vez que chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz". A piada não passou do limite? Como em toda profissão, humoristas são passíveis de erro. Mas o que ocorre muitas vezes nem é que a tirada seja infeliz: basta citar uma minoria para você virar um ser repugnante. A reação é histérica e tem a ver até com analfabetismo funcional. Eu não endossei a perseguição aos judeus. A mensagem era a seguinte: gato escaldado tem medo de água fria. Mas só de citar a palavra "judeu" você está fazendo algo horrível. O Brasil está mais para rir ou para chorar? Está mais para rir. É o que não deixa a gente enlouquecer. Quanto mais opressiva se tornava a vida na União Soviética, mais as pessoas levavam na base da piada, mesmo sob o risco de ser presas por subversão. O humor liberta. 6#7 SAÚDE – O CANABIDIOL NÃO É DROGA O composto da maconha deve ser aprovado no Brasil contra a epilepsia e a esquizofrenia. Mas atenção: é a substância inofensiva da Cannabis, sem relação com os efeitos tóxicos da planta. ADRIANA DIAS LOPES “Finalmente consegui ficar sozinha em casa. Fui para a cozinha e fechei todas as janelas. Peguei a sacola, escondida no armário, e tirei um pé de maconha. Coloquei as folhas, uma por uma, na panela e cobri com azeite. Levei a infusão em banho-maria, por três horas. Obtive dali um líquido oleoso, esverdeado. Fui pegar meu filho Miguel, de 5 anos, que passava o dia com os avós. Preparei o arroz e o feijão e pinguei sobre a comida vinte gotinhas do óleo. Ele comeu normalmente. Poucos minutos depois, seus olhos ficaram vermelhos. Em doze horas, repeti a dose. A vermelhidão se repetiu. Mas, dessa vez, Miguel ficou prostrado, com um sorriso frouxo. Fiquei apavorada e parei com tudo. Nunca mais." Oferecer o óleo da maconha a Miguel foi o último recurso da paranaense Priscila Inocente no desespero em livrar o filho de um dos mais cruéis distúrbios neurológicos, a epilepsia. O menino chegava a sofrer até trinta convulsões diárias. Dada a violência das crises, em algumas ocasiões ele era arremessado contra a parede. Com a alquimia doméstica, Priscila pretendia isolar das folhas da maconha apenas uma substância, o canabidiol, eficaz no controle dos surtos epiléticos. Não deu certo. Miguel ficou sujeito também aos efeitos psicotrópicos da planta. Três meses depois, Priscila recebeu uma remessa de canabidiol dos Estados Unidos, enviada clandestinamente por um amigo. Desde então, diariamente, Miguel é tratado com a substância. São doze bolinhas, cada uma do tamanho de um grão de arroz, diluídas em óleo e tomadas como xarope. As crises foram reduzidas a uma por dia, e bem mais leves. O menino voltou a dormir sozinho. Recuperou a coordenação motora e hoje consegue se divertir com os próprios brinquedos. No próximo ano, Miguel trocará a escola especial por uma regular. Hoje, no Brasil, 600.000 crianças, como Miguel, são portadoras de epilepsia grave, refrataria aos anticonvulsivantes tradicionais. Cerca de 400 famílias usam o canabidiol. Como o produto é proibido no país, a maioria faz como os Inocente e consegue o canabidiol ilegalmente. Somente 58 famílias importaram o composto nos moldes da lei, o que pode demorar cerca de dois meses. Há ainda outra dificuldade. "Infelizmente, muita gente, inclusive médicos, confunde o canabidiol com a maconha droga", disse a VEJA o bioquímico búlgaro Raphael Mechoulam, pesquisador da Universidade Hebraica de Jerusalém e responsável por desvendar a estrutura química da substância, na década de 60. Graciele Pereira enfrentou o medo do neuropediatra de Clara, sua filha de 4 anos, vítima de epilepsia. "Depois que nosso médico se recusou a assinar a papelada para a importação do produto, não nos restou outra saída senão trazer o canabidiol diretamente dos Estados Unidos", diz ela. A menina toma o composto há um mês e meio. Desde então, as crises cessaram. E Clara, que não tinha controle dos movimentos, na semana passada conseguiu segurar um lápis. Até outubro, o Conselho Federal de Medicina (CFM) pretende dirimir dúvidas ou confusões em relação à prescrição terapêutica do canabidiol. Está prevista a votação de uma resolução que oriente os médicos brasileiros sobre o uso do composto. Para que ela entre em vigor, é necessário que quinze dos 28 presidentes dos conselhos regionais deem o o.k.. "A possibilidade de a resolução ser reprovada é remotíssima", diz o psiquiatra Emmanuel Fortes, vice-presidente do CFM. Além da epilepsia, o documento deve indicar o composto também para os casos de esquizofrenia resistentes às terapias tradicionais. A resolução pode incluir a insônia, o Parkinson e a ansiedade na lista das afecções passíveis de tratamento com o composto, porém apenas em casos excepcionais, depois de submetidos a uma avaliação de juntas médicas. Isso porque os estudos sobre o uso do canabidiol para tais doenças ainda estão em estágios iniciais. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) pode tirar o canabidiol da lista das substâncias proscritas para enquadrá-lo no grupo dos compostos controlados, que exigem a retenção da receita médica. O canabidiol é um dos 480 compostos da maconha. Extraído do caule e das folhas da planta, a substância não é psicoativa nem tóxica. O que promove o "barato" do cigarro de maconha é o tetraidrocanabinol (THC), substrato da resina e da flor da Cannabis saúva. É ele o responsável pela alteração de raciocínio, lapsos de memória, perda cognitiva e dependência. A planta usada como droga é manipulada de forma a conter níveis elevados de THC e baixos de canabidiol. Nos Estados Unidos, o composto é liberado em 21 estados, como suplemento alimentar. Sob a forma de pasta, cristais, spray ou gotas, o canabidiol é vendido em farmácias de manipulação ou diretamente com fabricantes. São os próprios produtores que controlam a qualidade de seus produtos. Todos, porém, têm de seguir a regra de não ultrapassar a quantidade de 0,6% de THC nos produtos com canabidiol, de modo a não oferecer riscos ao paciente. Aqui vale lembrar: quando os produtos são misturados nas mesmas proporções, o canabidiol reduz drasticamente os efeitos indesejáveis do THC. Ou seja, o canabidiol não tem nada a ver com a maconha droga. O Brasil sedia um dos mais importantes centros de estudos sobre o canabidiol do mundo. É o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Translacional em Medicina (INCT), coordenado por pesquisadores da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto. Em parceria com a Universidade Hebraica de Jerusalém, o instituto é formado por oito centros de pesquisa, em cinco estados. Estão em andamento 32 pesquisas sobre o assunto, e a previsão é que, em 2015, outras 120 sejam lançadas. Os trabalhos sobre o uso do canabidiol no controle da esquizofrenia são surpreendentes. A doença psiquiátrica se caracteriza como uma das mais refratárias a tratamentos. Foram acompanhados 32 pacientes, tratados exclusivamente com canabidiol. Durante as duas semanas do estudo, chegou-se à remissão dos principais e mais terríveis sintomas da esquizofrenia: os delírios, as alucinações e os problemas de coordenação. Além disso, o canabidiol não apresentou as reações adversas típicas dos antipsicóticos, como tremores no corpo e sonolência. Diz o psiquiatra José Alexandre Crippa, da USP de Ribeirão Preto: "Com o canabidiol, estamos entrando em uma nova era da farmacologia". COMO O CANABIDIOL E O THC AGEM NO CÉREBRO A planta da maconha contém cerca de 480 compostos. Desses, oitenta pertencem à família dos canabinoides, substâncias com capacidade de atuar sobre o cérebro humano. Os canabinoides mais importantes são o canabidiol, inofensivo, e o tetraidrocanabinol (THC), responsável pelo vício e pelos efeitos psicotrópicos da droga. Canabidiol Encontrado, sobretudo, no caule e nas folhas. Compõe cerca de 1% da planta. Não tem nenhum efeito tóxico. THC Presente, principalmente, na resina e na flor da planta, representa cerca de 10% do total de substâncias encontradas na maconha. É o responsável pelos efeitos psicoativos da droga - alteração no raciocínio, na memória e perda cognitiva. ONDE AGEM Os dois compostos atuam no chamado sistema canabinoide, região que abrange o córtex, o sistema límbico, os gânglios da base e o hipocampo. As ações cerebrais das substâncias, no entanto, são distintas. Canabidiol Interfer na metabolização da anandamida, substância associada à regulação dos neurotransmissores dopamina, GABA e glutamato. O canabidiol só entra em ação quando há um desequilíbrio na produção de anandamida, que pode estar alterada na epilepsia e na esquizofrenia. As doenças para as quais o efeito do canabidiol está documentado... • Epilepsia • Esquizofrenia ...e as que estão em estudo • Ansiedade • Transtorno obsessivo-compulsivo • Insônia • Parkinson THC Com ação semelhante à da anandamida, o THC tende a ocupar seu lugar nos processos fisiológicos cerebrais. Por isso interfere no funcionamento da química cerebral - inclusive em pessoas saudáveis. O efeito do composto varia conforme a região do cérebro afetada: • No córtex, atua nos neurotransmissores glutamato e dopamina, alterando o raciocínio e a atenção • No sistema límbico, atua na dopamina, deflagrando os efeitos psicotrópicos da droga • Nos gânglios da base, atua na dopamina, compromete o sistema motor • No hipocampo, age no glutamato, alterando a memória Fontes: Antonio Waldo Zuardi, Jaime Hallak e José Alexandre Crippa, psiquiatras. Francisco Silveira Guimarães, farmacologista da USP de Ribeirão Preto, e Ana Chrystina Crippa, neurologista pediátrica. ______________________________________ 7# ARTES E ESPETÁCULOS 17.9.14 7#1 CINEMA – FASE DE CRESCIMENTO 7#2 CINEMA – BANQUINHO E VIOLÃO 7#3 CINEMA – FALTA COMER MUITO FEIJÃO 7#4 MÚSICA – CAMINHANDO E CANTANDO... 7#5 LIVROS – UMA DISCRETA ARROGÂNCIA 7#6 VEJA RECOMENDA 7#7 OS LIVROS MAIS VENDIDOS 7#8 ROBERTO POMPEU DE TOLEDO – A XACINA DO TESTO 7#1 CINEMA – FASE DE CRESCIMENTO Com o romântico Será que?, Daniel Radcliffe — que ganhou fama como o bruxo Harry Potter — avança na sua bem-sucedida transição para a carreira adulta. MARCELO MARTHE, DA CIDADE DO MÉXICO Em uma tarde de sol forte, crianças e adolescentes — quase 100% do sexo feminino — se aglomeram na entrada de um shopping center no Paseo de la Reforma, avenida elegante da Cidade do México. Em pouco tempo, a horda dribla os seguranças e começa a se concentrar perto das escadas rolantes que dão acesso a um cinema. Tamanha excitação é motivada pela expectativa de que um inglês franzino de 1,65 metro em breve estará no local. Daniel Radcliffe é um velho conhecido da multidão: dos 11 aos 21 anos, o mundo o viu crescer diante das câmeras como protagonista dos filmes da série Harry Potter. Aos 25 anos, Radcliffe está dando mais um passo na sua transformação em estrela adulta. Em Será que? (What If, Irlanda/Canadá, 2013), que estreia no Brasil em 25 de setembro, ele assume o papel de galã de comédia romântica. Para as 5000 fãs que o aguardam, porém, o bruxo dos filmes infantis e o jovem tristonho que vive uma paixão com a amiga Chantry (a loirinha Zoe Kazan) se confundem. A fusão das duas personas faz a coisa ferver. Temendo um tumulto, as autoridades ameaçaram cancelar a première. Só depois de três horas é que Radcliffe deu as caras. Todo comportado, fez questão de ler uma mensagem de agradecimento em espanhol. "Achei importante dar uma satisfação às pessoas que se esforçaram tanto para me ver", disse a VEJA na manhã seguinte (leia a entrevista na pág. 112). Mas o momento mágico ainda estava por acontecer: o cinema vem abaixo na cena em que o ator branquelo aparece pelado, de costas, para um banho noturno no mar. Embora compense as doses de glacê com a delicada melancolia do par romântico, Será que? representa sem dúvida uma piscadela para a geração que brincava de boneca nos tempos de Harry Potter e agora sonha com um rapaz bonitinho para chamar de seu. Mas o novo filme não altera o rumo de sua transição profissional bem-sucedida: na carreira de Radcliffe, a ordem é diversificar. No fim da década passada, quando ainda encarnava o personagem infantil, ele embarcou em um trabalho que muitos viram como tentativa artificial de adicionar conteúdo à imagem: na peça teatral Equus, Radcliffe mostrou pela primeira vez que não tinha pudor em atuar pelado. Os projetos seguintes, no entanto, serviram como um cala-boca aos céticos. Ele fez sucesso com um musical na Broadway. Há dois anos, mandou bem como o jovem viúvo de A Mulher de Preto, filme de terror com a marca do estúdio inglês Hammer. No ano passado, interpretou o poeta beat Allen Ginsberg (1926-1997) em Versos de um Crime. No meio-tempo, contracenou com o calejado Jon Hamm, de Mad Men, em uma série da HBO baseada na obra do escritor russo Mikhail Bulgakov (1891-1940). Em A Young Doctor’s Notebook, os dois atores representam um médico de província em duas fases da vida. Hamm surge como um fantasma que comenta os fatos da vida do homem que se tornaria. Radcliffe se revelou, enfim, um esforçado. Ele poderia ter seguido na zona de conforto dos arrasa-quarteirões juvenis de Hollywood. Mas fez um cálculo inteligente: para construir uma carreira consistente, é preciso dar a cara a bater. Nascido em uma família de classe alta de Londres, o ator leva uma vida prosaica em Nova York, onde às vezes é visto com sua namorada, a atriz Erin Darke. Simpático, falante e chamando atenção pelo tamanho ínfimo das mãos, só não gosta quando tocam em um assunto: seus problemas com o álcool durante as filmagens dos últimos episódios de Harry Potter. Quando o tema é abordado, um assessor que parecia hibernar numa cadeira dá um pulo. Mas Radcliffe o tranquiliza. "Deixa que eu respondo: essa é uma questão de quatro anos atrás sobre a qual já falei tudo o que tinha a declarar", disse ele, sem deixar de sorrir. Com essa segurança mágica, o rapaz vai longe. "É PRECISO ENCARAR RISCOS" O inglês Daniel Radcliffe foi ao México semanas atrás para divulgar o filme Será que?. Depois de levar as fãs à loucura na première da comédia romântica, ele falou a VEJA sobre sua vida pós-Harry Potter. Depois de Harry Potter, seus trabalhos incluíram um filme de terror, uma série da HBO baseada na literatura russa e, agora, uma comédia romântica. A transição de estrela infantil a ator adulto se completou? Eu não iria tão longe. Ainda falta um bocado para chegar lá. Mas considero que as coisas estão indo bem. Não desejo, de modo algum, que as pessoas se esqueçam de mim como Harry Potter. Eu adoro o personagem e sou grato por tudo o que ele trouxe de bom para minha vida. Devo à experiência como Harry Potter a descoberta da minha paixão pela profissão de ator. Mas julgo positivo que já comece a ser visto não só como o rapaz que fez um personagem conhecido, mas também como um ator com luz própria. Com sorte, espero ter a oportunidade de continuar nesse rumo. Fazer trabalhos tão diversificados é essencial, pois as pessoas vão se acostumando a me ver com outros olhos. Quando estreei A Mulher de Preto, a reação de muita gente foi de choque. Falavam de mim como se fosse absurdo que Harry Potter tivesse se transportado para um filme de terror. Já faz alguns anos que eu fiz o último filme da série e as pessoas continuam a me confundir com o personagem. Sei que será assim por muito tempo, mas vejo essas reações com naturalidade. Seu desempenho como ator melhorou muito desde Harry Potter. Como isso ocorreu? Você acha que melhorei mesmo? Obrigado por ser tão generoso. Na verdade, creio que minha evolução teve tudo a ver com a idade. Quando você faz um filme muito jovem, simplesmente não tem ideia da dimensão da tarefa em que está envolvido. Nos primeiros filmes da série, eu não tinha noção do que estava fazendo ali. Depois de virar adolescente, lá pelos 14 anos, passei a ter mais consciência. Só que minha atenção estava toda voltada para as questões típicas daquela fase da vida, como a busca da identidade, os problemas com a aparência e a necessidade de estar entre os amigos. Era difícil me concentrar na interpretação. Fui me tornando um ator mais seguro à medida que fiquei mais velho. Mas também devo muito a outro fator: a experiência de fazer musicais em Londres e na Broadway. Foi no palco que aprendi a lidar melhor com meu corpo e minha voz, além de ficar mais solto. Muitas estrelas infantis não foram capazes de sustentar a carreira depois de crescidas. Que tipo de risco é preciso evitar? Não sei generalizar, sinceramente. No meu caso, creio que um dos fatores que me mantiveram à tona foi que tive um bom começo, como protagonista de uma série de sucesso capaz de alimentar a expectativa positiva. Mas acho que também foi fundamental não ficar parado. Ao investir no teatro e em filmes menos óbvios, creio que transmiti às pessoas a mensagem de que não estava conformado em fazer sempre a mesma coisa. Tão logo o público percebe que você quer se desafiar, você passa a ser encarado de outro jeito. Assumir riscos provoca excitação e curiosidade nas pessoas. Se você der sorte de encontrar dois ou três diretores que ponham fé em seu talento e souber agarrar essas oportunidades com as duas mãos, estará em uma ótima trilha. Evitar riscos, portanto, é uma opção equivocada. É preciso encarar riscos sem medo. Harry Potter foi um símbolo para uma geração que tinha a sua idade nos tempos da série. Como é a experiência de crescer ao mesmo tempo que os fãs? É uma coisa adorável. Ainda hoje, as pessoas se emocionam e dizem palavras incríveis quando me encontram. "Obrigado por ter feito parte de minha infância de forma tão especial" é o que mais ouço. Fico muito tocado quando pais dizem que ajudei a manter a família unida. Quando fiz os filmes, confesso que não tinha a mínima ideia de quanto meu trabalho estava afetando a vida de tanta gente. Eu mesmo, por ironia, não consigo assistir aos dois primeiros filmes da série hoje em dia. É embaraçoso ver como eu era ruim. Em que momento veio a consciência do peso de interpretar Harry Potter? Nunca foi um peso. Mas, com o tempo, fui me dando conta de que o contato com os fãs dos filmes e dos livros tinha um significado diferente para mim e para eles. Não vou me lembrar de muitas pessoas com quem cruzei ao longo daqueles anos, nem as verei nunca mais. Mas com certeza elas continuarão a se sentir íntimas de mim. Assim, percebi que não posso decepcioná-las, ser rude ou impaciente com ninguém, mesmo em um dia em que meu humor não esteja legal. Quando notei isso, captei o exato tamanho da minha responsabilidade: não tenho o direito de quebrar o encanto dos outros. Como é lidar com a fama desde tão cedo? A fama deve ser ignorada tanto quanto você puder. Minha passagem pelo México foi uma loucura. Havia fãs gritando no aeroporto e durante a première de meu novo filme. Nessas horas, se a sua reação for qualquer outra que não seja se esbaldar de rir ao entrar no carro para fugir da bagunça, você provavelmente não nasceu para ser famoso. Se a fama o perturba ou vira um fardo, uma hora você vai desabar. Deve pensar seriamente em trocar de profissão. Mas o contrário pode ser ainda mais perigoso: se você acha que merece a fama, por se julgar alguém iluminado ou muito especial, aí é que estará lascado de fato. Para muita gente, o sucesso se torna uma droga que causa dependência psicológica. Isso é desastroso, pois não há um bem mais efêmero que a fama. Eu sou conhecido hoje por causa de meu trabalho, mas é possível que chegue o dia em que não despertarei o mínimo interesse nas ruas. Com ou sem fama, será preciso tocar a vida adiante. Se a pessoa ignora que a fama não decorre dela, mas sim de sua posição, fica complicado lidar com isso de modo saudável. Como viver as coisas típicas dos 20 e poucos anos — como namorar e ir para a balada — sob os holofotes? Levo uma vida relativamente normal. Tenho de me manter um pouco escondido, claro. Mas, felizmente, nunca tive de recorrer a disfarces. A verdade é que há vários lugares no mundo em que é possível levar uma vida anônima. Londres é assim. E não há cidade mais perfeita para um famoso passar despercebido do que Nova York, onde vivo. Quer dizer, talvez não seja tão simples escapar do assédio na área central da cidade. Mas, na minha vizinhança tranquila e respeitosa, isso tem sido possível até agora. Lá não é tão desafiador ser o ex-Harry Potter. 7#2 CINEMA – BANQUINHO E VIOLÃO É por ser simples assim que o romance-improviso Mesmo Se Nada Der Certo consegue encantar. ISABELA BOSCOV Era um bar em Nova York, a garota é obrigada a subir ao palco e tocar uma de suas composições. A plateia, que gostou do show anterior, está animada. Mas, à medida que Gretta (Keira Knightley) dedilha o violão e canta em sua voz delicada, a atenção do público vai se dispersando: pouco a pouco, aumentam os sons de conversa, de pedidos no balcão, de risadas, de copos tilintando. No último acorde, Gretta estaria sozinha com sua música, não fosse o embevecimento com que um sujeito a alguns metros do palco a está olhando. A história recua então algumas horas até a manhã daquele dia para mostrar por que o sujeito embevecido e muito bêbado — Dan (Mark Ruffalo), um produtor musical caído em desgraça — está ali, e explicar o que é que ele está vendo em Gretta que ninguém mais vê. E recua mais algumas semanas para recompor a trajetória da inglesa Gretta em Nova York, aonde ela chegou para acompanhar o namorado, Dave (Adam Levine, do Maroon 5), que está virando um rock star. Em Mesmo Se Nada Der Certo (Begin Again, Estados Unidos, 2014), que estreia no país nesta quinta-feira, o diretor irlandês John Carney retorna à inspiração de sua estreia, Apenas Uma Vez, uma produção minúscula que estourou grande: assim como no filme de 2006, em que um músico de rua de Dublin e uma pianista checa viviam uma paixão intensa que se manifestava unicamente em sua parceria musical (aliás, autêntica: os intérpretes Glen Hansard e Markéta Irglová levaram o Oscar de canção), agora Keira Knightley e Mark Ruffalo experimentam uma conexão profunda que começa pela música e invade e modifica todos os aspectos da vida deles, mas que provavelmente não poderá existir senão na forma platônica da colaboração artística. Assim como em Apenas Uma Vez, também, o diretor delega muito da realização ao acaso: a luz natural da cidade, seus ruídos, os personagens que estão pela rua e são incorporados à cena, os músicos que tocam de fato o que se está ouvindo (Keira inclusive). E, de novo, conta com o intangível: a reação epidérmica, espontânea e elétrica entre Keira e Ruffalo. Carney, é verdade, namora perigosamente o clichê. Dan está sendo enxotado da gravadora que ele próprio fundou e tornou poderosa; separou-se da mulher e tem uma relação difícil com a filha; e está bebendo demais e fazendo muita bobagem. Como Dan, Gretta se enquadra em todos os requisitos do tipo que encarna: é uma compositora mais talentosa que o namorado mas também uma artista mais "pura" e por isso menos comercial; sofre uma traição que a faz pensar em desistir de tudo; e é salva pela sorte, que na 25ª hora põe em seu caminho o único visionário capaz de entender seu dom. Também Nova York é aqui colocada no seu papel usual de grande inspiradora e, ao mesmo tempo, desafiadora implacável. E no entanto há no diretor uma sinceridade real que contagia a mise-en-scène e o elenco, e que consoa de maneira particularmente forte com Ruffalo. Descabelado, amarrotado e quase nocauteado por seus vários fracassos, Dan ainda assim não se cansa de procurar vestígios da centelha e da beleza que primeiro o encantaram na vida. Descobre que toda forma de amor vale a pena, mesmo quando a voz é pequena. 7#3 CINEMA – FALTA COMER MUITO FEIJÃO Seth MacFarlane acha que é Mel Brooks. Está enganado. A vida de pioneiro do Velho Oeste é uma droga, diz Albert, o fazendeiro covarde de Um Milhão de Maneiras de Pegar na Pistola (A Million Ways to Die in the West, Estados Unidos, 2014): tudo que não é você quer matar você, a medicina é péssima, a higiene é precária, o entretenimento é atroz. Interpretado por Seth MacFarlane com roteiro de Seth MacFarlane e direção de Seth MacFarlane, Albert, claro, não é outro que não o próprio Seth MacFarlane — e o filme que estreia nesta quinta-feira não é senão um longo esquete cômico no qual o recurso do personagem de mentalidade contemporânea que confronta os estereótipos do faroeste será usado à exaustão. Se não a de MacFarlane, pelo menos a de parte da plateia, que lá pela décima repetição da piada talvez comece a achá-la sem graça. No Arizona de 1882, Albert perde a namorada, Louise (Amanda Seyfried), por fugir de um duelo com um pistoleiro. Ela bandeia-se para o lado do almofadinha Foy (Neil Patrick Harris), que enriqueceu com seus tônicos para o bigode, símbolo máximo da macheza do homem da fronteira (para os muito novos: o bigode era item indispensável na toalete gay dos anos 1970). Como só um homem do século XXI se permitiria, Albert choraminga sem parar para o casal de amigos vivido por Giovanni Ribisi e Sarah Silverman — ele um inocente, ela uma prostituta que topa tudo exceto transar com o noivo, porque eles são bons cristãos e têm de se guardar para o casamento (a religião é hipócrita, perceberam?). Mas se anima quando uma loira sensacional aparece na cidade e se enche de gratidão a Albert por ele acidentalmente salvar a vida dela. O que ele não sabe é que Anna (Charlize Theron) é a mulher fujona do bandido Clinch Leatherwood (Liam Neeson), que vai vir atrás do que é seu. A inspiração patente de MacFarlane é Banzé no Oeste, a genial sátira de 1974 do comediante Mel Brooks. Mas ele ainda vai ter de comer muito feijão até chegar lá. Menos de dez anos depois de o sul pegar fogo na luta pelos direitos civis, Brooks fez humor corrosivo com a história de uma cidade do Velho Oeste que ganha um xerife negro expressamente para que os moradores a abandonem e ela fique aberta à especulação. Palavras hoje banidas e piadas de péssimo gosto transbordam: essas grosserias não são nada diante da estupidez do preconceito, diz Brooks, que arremata o filme demolindo sua própria pretensão a fazer denúncia. Tudo que MacFarlane tem a oferecer, em oposição, é conformismo. ISABELA BOSCOV 7#4 MÚSICA – CAMINHANDO E CANTANDO... O disco que recupera uma turnê histórica de Crosby, Stills, Nash & Young confirma a potência da banda que encarnou o espírito contestatório dos anos 60 e 70. SÉRGIO MARTINS, DE NOVA YORK Era 8 de agosto de 1974 e o quarteto Crosby, Stills, Nash & Young se apresentava no Estádio Roosevelt, em Nova Jersey, quando o presidente americano Richard Nixon anunciou que renunciaria ao cargo no dia seguinte. Era o intervalo do show (o grupo, hoje reduzido ao trio Crosby, Stills & Nash, ainda faz questão dessa pausa), mas Granam Nash voltou ao palco para dar a notícia à plateia. "Eu me senti na obrigação de contar que Nixon estava indo embora", recorda ele, quarenta anos depois, em entrevista a VEJA. Infelizmente, o áudio do anúncio de Nash ficou de fora de CSNY1974, uma caixa com CD e DVD que traz os melhores momentos da turnê daquele ano. Ainda assim, a caixa (no Brasil, disponível apenas em versão digital) é o retrato mais fiel do grupo que combinou a militância política e o discurso de amor livre dos hippies com o melhor do folk, do country e do rock americanos — um grupo cuja marca segue presente no rock que se faz hoje (veja o quadro). Como tantos outros roqueiros entre as décadas de 60 e 70, Crosby, Stills, Nash & Young foram inflamados autores de canções de protesto, como Ohio, música-denúncia sobre quatro universitários mortos pela polícia durante protestos contra a Guerra do Vietnã na Universidade de Kent. A rebeldia de Nash vem de casa, ainda que nem sempre tenha tido coloração política: seu pai passou um ano na prisão porque se recusou a dizer de quem tinha comprado uma câmera fotográfica — que fora roubada. Nash usa termos altissonantes para definir seu grupo: "Somos descendentes de uma longa tradição de trovadores que denunciam as injustiças do mundo". Entre os tais trovadores que o influenciaram, cita o cantor folk Woody Guthrie (ídolo também de um certo Bob Dylan). A militância permanece. Em 2006, Crosby, Stills, Nash & Young excursionaram pelo país com a turnê Freedom of Speech, na qual protestavam contra a guerra no Iraque e pediam nada menos que o impeachment do então presidente George W. Bush. Três anos atrás, Graham Nash e David Crosby tocaram para os assentados do movimento Occupy Wall Street. O trio reuniu-se em 1968, durante uma festa na casa de Joni Mitchell. Stephen Stills cantava You Don’t Have to Cry, composição na qual estava trabalhando, e Granam Nash e David Crosby resolveram ajudar nas harmonias vocais. O resultado entusiasmou — e ali mesmo decidiram montar o grupo, que no ano seguinte estreava em disco. Em 1969, o cantor e guitarrista canadense Neil Young — que, como Stills, vinha do grupo Buffalo Springfleld — juntou-se à trupe (até hoje, ele entra e sai regularmente da banda). "No início, fui contra a entrada dele. Young e Stills brigaram muito no Buffalo Springfield", lembra Nash. "Mas Young me disse que não existia uma dupla de guitarristas mais perfeita que os dois." Não é preciso concordar com o programa político de Nash e companhia para admirar sua música. CSNY1974 é o registro de uma das turnês mais vibrantes e espetaculares da história do rock. Em menos de dois meses na estrada, o quarteto fez 31 apresentações por 24 cidades americanas. Nash combinou quarenta músicas desse período num único CD. "O critério adotado foi a qualidade. Se não está no disco, é porque não trazia uma versão que atendia às minhas exigências", diz. A tarefa é mais difícil do que parece, pois os quatro músicos são conhecidos por serem irascíveis. "Somos talentosos e temos um ego enorme. Mas eu contornei essas questões porque sempre fui o mais político", diz Nash (e aqui "político" vai no sentido de "conciliador, disposto a negociar"). No mesmo dia da entrevista, Granam Nash e seus dois parceiros apresentaram parte do repertório do álbum no Beacon Theater, em Nova York. Em quase três horas de espetáculo, Crosby, Stills & Nash, já entrando na faixa dos 70 anos, desfilaram composições sobre amor, igualdade e idealismo hippie (Our House, que Nash fez para a então namorada Joni Mitchell) com a mesma inocência do trio que tocou no Festival de Woodstock, em 1969. Bom, a inocência hoje convive com uma certa amargura geracional: "Republicanos e democratas são a mesma porcaria", vociferou Crosby em um de seus momentos-solo. ...e SEGUINDO A CANÇÃO O legado dos quatro hippies do Crosby, Stills, Nash & Young para a música pop. HARMONIAS VOCAIS Graham Nash diz que Crosby, Stills & Nash nasceu a partir da união vocal do trio na canção You Don’t Have to Cry - a princípio cantada apenas por Stills. Ao lado da mistura de folk, rock e country, o casamento das três vozes (uma solo, outra na harmonia e a terceira cantando por cima da voz principal) se tornou a marca registrada do trio — mais tarde quarteto, com a inclusão do compositor, guitarrista e vocalista Neil Young. Uma receita que tem sido aproveitada, com resultados louváveis, por bandas como Mumford & Sons e Fleet Foxes ENGAJAMENTO O quarteto Crosby, Stills, Nash & Young surgiu nos Estados Unidos em um período conturbado. Não foram os únicos radicais de então, mas ajudaram a consolidar a imagem do roqueiro radical em canções como Ohio, sobre o assassinato de quatro estudantes por policiais na Universidade de Kent, em 1970. Em 2008, a banda excursionou pelos Estados Unidos para protestar contra a Guerra do Iraque. O estilo combativo pode ser percebido nas letras de bandas como Pearl Jam (cujos músicos nunca esconderam sua paixão por Neil Young) e Rage Against the Machine SUPERGRUPO O termo foi criado para definir bandas formadas por integrantes egressos de outros grupos consagrados. David Crosby era guitarrista e vocalista do The Byrds; Stephen Stills era um dos líderes do Buffalo Springfield (de onde saiu também Neil Young); e o inglês Graham Nash veio dos Hollies. Supergrupos são comuns no rock contemporâneo, como provam Chickenfoot, formado por ex-integrantes do Van Halen, por um membro do Red Hot Chili Peppers e pelo guitarrista Joe Satriani, e Them Crooked Vultures, que reúne gente do Led Zeppelin, Foo Fighters e Queens of the Stone Age 7#5 LIVROS – UMA DISCRETA ARROGÂNCIA Um abrangente estudo do crítico italiano Franco Moretti desvenda o caráter do improvável herói dos grandes romances do século XIX: o burguês. JERÔNIMO TEIXEIRA Em uma passagem de um ensaio sobre o Salão de Arte francês de 1859, Charles Baudelaire imagina que a "Alma da Burguesia" se apresenta à sua frente, em seus aposentos — e o poeta de As Flores do Mal diz que só não lançaria sua escrivaninha nas fuças dessa funesta entidade por receio de sujar o tapete. Pouco mais de sessenta anos depois, o modernista brasileiro Mário de Andrade escrevia sua iracunda Ode ao Burguês, na qual cobria de insultos os "temperamentos regulares" da burguesia paulista. Na mitologia revolucionária inventada por Karl Marx e Friedrich Engels no Manifesto Comunista, a burguesia opunha-se, na luta de classes, ao proletariado. Mas, a julgar pelos exemplos de Baudelaire e Mário de Andrade, o inimigo do burguês parece ser não o rude operário, e sim as delicadas almas artísticas. Compreende-se que poetas e poetastros de todos os quadrantes nutrissem horror a esse discreto profissional: nos dias da "arte pela arte" e das renovações modernistas, ele era a encarnação do pior filistinismo e do mais plácido convencionalismo. O burguês é uma criatura prosaica. Quem o confirma é o italiano Franco Moretti, professor de literatura da Universidade Stanford, em O Burguês (tradução de Alexandre Morales; Três Estreias; 248 páginas; 45 reais), enxuto mas abrangente panorama histórico sobre o modo como esse personagem foi apresentado na literatura entre o século XVIII e o início do XX: a prosa é "o estilo burguês no sentido mais amplo. (...) Prosa não como inspiração, mas como trabalho: árduo, incerto, nunca perfeito". A palavra "burguês" é um tanto equívoca (embora mais específica do que "elite", termo que tomou seu lugar no léxico militante contemporâneo). Surgiu, informa Moretti, na França do século XI, designando o habitante livre de cidades medievais. Aos poucos, passou a indicar o membro das classes urbanas médias, que não pertencia nem à nobreza nem ao clero. No pensamento marxista ortodoxo, "burguesia" e "capitalismo" formam um par indissolúvel. Moretti adota certa perspectiva marxista — mas, seguindo historiadores que se devotaram ao tema, concede que não há uma identidade necessária entre o capitalista e o burguês. Abre-se aí uma indecisão teórica: para além do chavão "classe dominante", Moretti não define com clareza o que é um burguês. O autor parece mais interessado no caráter burguês do que no eventual papel da burguesia na história econômica. Até Marlow, o aventureiro que se defronta com o pesadelo colonial do Congo Belga em Coração das Trevas, novela do britânico Joseph Conrad, é apresentado como um típico burguês. Em termos marxistas estritos, isso seria problemático: Marlow, afinal, presta serviços para uma cavilosa companhia colonial — vive, portanto, de "vender sua força de trabalho", como fazem os proletários. É a crença na eficiência e na ética do trabalho que qualifica esse experiente marujo como burguês. Tais qualidades, afinal, fazem parte do ethos burguês, assim como foi definido no clássico estudo do sociólogo alemão Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Em O Burguês, Weber é citado mais vezes, e mais extensamente, do que Marx. Moretti vem renovando os estudos literários com o uso de ferramentas Estatísticas para mapear a evolução de formas e gêneros. O Burguês não traz gráficos como A Literatura Vista de Longe, publicado no Brasil pela editora Arquipélago. Mas há vários levantamentos da ocorrência de palavras-chave ao longo de um romance (é brilhante sua demonstração de que o utilitarismo burguês se imprime até na sintaxe de Robinson Crusoe, do inglês Daniel Defoe), ou em vastos conjuntos de romances. É assim que Moretti chega a algumas características centrais desse improvável herói da literatura: seriedade e eficiência são traços distintivos do burguês, que racionaliza até o prazer — deseja o conforto, mas não o luxo. Como resultado desse gosto pela regularidade cotidiana, no romance do século XIX predomina o que Moretti chama de "enchimentos", ou trechos da narrativa nos quais nada de decisivo acontece: as visitas sociais nos livros da inglesa Jane Austen, ou as refeições compartilhadas por Emma Bovary e seu desavisado marido em Madame Bovary, do francês Gustave Flaubert. A julgar pelos levantamentos de Moretti, a vertigem da Revolução Industrial e a "destruição criativa" própria da dinâmica capitalista ganharam limitada expressão na literatura. No fim do século XIX, o teatro do norueguês Henrik Ibsen, tema do último capítulo do livro, põe em cena a arrogância do empreendedor e examina as zonas morais cinzentas da especulação financeira, aqueles meandros da contabilidade em que o legal e o lícito nem sempre coincidem. Especular, diz Moretti, é olhar ao longe no futuro, e nessa ação se revelaria a "poesia do desenvolvimento capitalista" — expressão de irônico entusiasmo, vinda de um intelectual de esquerda. Conclusão deste resenhista, não de Moretti: Baudelaire, afinal, estava certo, ainda que pelas razões erradas — o espírito do capitalismo não merece ser esmagado. 7#6 VEJA RECOMENDA DVD FILME NOIR (ESTADOS UNIDOS, 1947-1955. VERSÁTIL) • Termo cunhado pelo crítico francês Nino Frank, "filme noir" define os policiais realizados em Hollywood a partir de 1945 até o fim dos anos 50. Fotografados em preto e branco e com luz reduzida — por isso noir, "escuro" —, esses filmes contam histórias de detetives, policiais ou tipos comuns em tramas criminosas mirabolantes, ao longo das quais se enroscam com a inevitável mulher fatal. Esta coletânea reúne seis bons exemplares. A Morte num Beijo (1955), de Robert Aldrich, é considerado influência decisiva para os jovens cineastas franceses da nouvelle vague, como Godard e Truffaut. O Cúmplice das Sombras (1951), de Joseph Losey, é uma crônica da então emergente América suburbana. Samuel Fuller explora a paranóia da Guerra Fria em Anjo do Mal (1953), enquanto Otto Preminger, com Passos da Noite (1950), e Anthony Mann, com Entre Dois Fogos (1948), retratam homens violentos em busca de vingança. E há o clássico Fuga do Passado (1947), de Jacques Tourneur, com Robert Mitchum, o ator noir por excelência, envolvido com a irresistível e perigosa amante de um gângster. DISCO LULLABY AND... THE CEASELESS ROAR, ROBERT PLANT (WARNER) • O inglês Robert Plant é um exemplo de estrela do rock que vem conseguindo envelhecer conservando intacta a majestade. A cada nova empreitada-solo, o ex-cantor do Led Zeppelin comprova o poder de se reinventar sem perder a coerência com seu passado de glória no gogó e no rebolado (a juba platinada também continua impecável). Foi assim com a bem-sucedida investida country de Raising Sand, de 2007, e com seu sucessor voltado ao blues e ao rock básico, Band of Joy, lançado em 2010. O novo álbum de Plant, de 66 anos, é mais intimista que esse último. Além disso, o disco adiciona a seu rol de influências, que vão do folk à música marroquina, flertes com um ritmo eletrônico, o trip hop. Resultado da participação em sua banda do tecladista John Baggott, que já tocou com o Portishead e o Massive Attack, o novo elemento se casa à perfeição com as melodias pungentes entoadas por seu vozeirão rasgado. Mas, uma vez Zeppelin, sempre Zeppelin: as guitarradas no meio de canções como Pocketful of Golden e Turn It Up arrepiarão os fãs da banda. CINEMA 3 DIAS PARA MATAR (3 DAYS TO KILL, ESTADOS UNIDOS/FRANÇA/GRÉCIA/RÚSSIA, 2014. JÁ EM CARTAZ NO PAÍS) • Se o espectador tiver duas horinhas para matar, poderia fazê-lo de formas bem piores que assistindo a este nonsense produzido pelo francês Luc Besson e dirigido por McG (de As Panteras). Kevin Costner, entre aturdido e divertido com o fato de ter se comprometido com o projeto, faz Ethan, um calejado agente da CIA que descobre ter apenas alguns meses de vida. Decidido a passá-los na companhia da ex-mulher e da filha (Connie Nielsen e Hailee Steinfeld), lá vai ele para Paris tentar enfiar-se de novo na vida delas. A ex-mulher não é insensível ao seu charme, mas está furiosa demais para perdoá-lo; a filha mal o conhece, e está numa fase particularmente hostil da adolescência; e o apartamento que ele deixara vazio foi invadido por uma gentilíssima família africana. Não bastasse, surge uma agente vamp (Amber Heard) que o obriga a uma última missão em troca de uma droga experimental que pode salvá-lo. São tantos os gêneros que Besson e McG misturam — comédia, romance, ação, policial, filme de gângster e por aí vai — e tão ridiculamente ténue a ligação entre eles que não resta saída senão seguir o exemplo de Costner: render-se e entreter-se. LIVRO O PESO DA RESPONSABILIDADE, DE TONY JUDT (TRADUÇÃO DE OTACÍLIO NUNES; OBJETIVA; 296 PAGINAS; 39,90 REAIS) • No período entre as duas guerras mundiais, Léon Blum (1872-1950) foi um dos mais importantes políticos do Partido Socialista Francês — chegou a ser primeiro-ministro nos anos 30. Autor de O Ópio dos Intelectuais, uma crítica ao marxismo, Raymond Aron (1905-1983), embora tenha tido sua passagem pela esquerda, consagrou-se como um pensador liberal. Prêmio Nobel de 1957, o filósofo, romancista e dramaturgo Albert Camus (1913-1960) construiu sua obra em torno das escolhas morais do indivíduo confrontado pelo absurdo da existência. São três intelectuais de ideias e preocupações muito diversas. Mas o historiador inglês Tony Judt (1948-2010) reuniu ensaios biográficos sobre o trio em um único livro por uma boa razão: Blum, Aron e Camus foram ilhas de responsabilidade moral entre seus pares, os quais maioritariamente se deixaram seduzir pelo totalitarismo comunista. Este é um belo estudo sobre uma qualidade que deveria ser (mas raramente é) requisito básico dos intelectuais públicos: a independência. EXPOSIÇÃO MOACYR SCLIAR, O CENTAURO DO BOM FIM (EM CARTAZ DE 17 DE SETEMBRO A 16 DE NOVEMBRO NO SANTANDER CULTURAL, EM PORTO ALEGRE) • Contista, cronista, romancista, o gaúcho Moacyr Scliar (1937-2011) publicou mais de setenta livros, entre eles marcos da ficção brasileira moderna como O Centauro no Jardim. Filho de judeus russos que imigraram para o Brasil, Scliar foi a grande voz judaica da literatura nacional e um agudo observador da paisagem urbana (sobretudo de sua Porto Alegre natal). Com curadoria do cineasta Carlos Gerbase e consultoria da professora de literatura Regina Zilberman, esta exposição oferece um passeio pela vida do escritor — a infância no Bom Fim, tradicional bairro judaico de Porto Alegre, e a atividade de Scliar como médico sanitarista estão contempladas entre os núcleos da mostra. É também uma oportunidade de mergulhar no universo ficcional do autor de A Mulher que Escreveu a Bíblia. Alguns de seus personagens mais marcantes — como o Max de Max e os Felinos — são representados por atores em totens digitais. E, para o leitor que não dispensa um vislumbre da oficina do escritor, há manuscritos e datiloscritos de obras como A Guerra no Bom Fim. 7#7 OS LIVROS MAIS VENDIOS FICÇÃO 1- Se Eu Ficar. Gayle Forman. Novo Conceito 2- A Culpa É das Estrelas. John Green. INTRÍNSECA 3- Quem É Você, Alasca? John Green. MARTINS FONTES 4- A Seleção. Kiera Cass. SEGUINTE 5- O Pequeno Príncipe. Antoine de Saint-Exupéry. AGIR 6- Cinquenta Tons de Cinza. E.L. James. INTRÍNSECA O Pequeno Príncipe. Antoine de Saint-Exupéry. AGIR 7- Felicidade Roubada. Augusto Cury. SARAIVA 8- Cidades de Papel. John Green. INTRÍNSECA 9- Cinquenta Tons de Mais Escuros. E.L. James. INTRÍNSECA 10- Divergente. Veronica Roth. ROCCO NÃO FICÇÃO 1- Getúlio 1945-1954. Lira Neto. COMPANHIA DAS LETRAS 2- O Diário de Anne Frank. Anne Frank. RECORD 3- Sonho Grande. Cristiane Corrêa. PRIMEIRA PESSOA 4- Mentes Consumistas. Ana Beatriz Barbosa Silva. PRINCIPIUM 5- O Livro da Psicologia. Nigel Benson. GLOBO 6- O Livro dos Negócios. Vários autores. GLOBO 7- O Demônio do Meio-Dia. Andrew Solomon. COMPANHIA DAS LETRAS 8- A Ilha do Conhecimento. Marcelo Gleiser. RECORD 9- Não É a Mamãe — Para Entender a Era Dilma. Guilherme Fiuza. RECORD 10- O Livro da Filosofia. Vários autores. GLOBO AUTOAJUDA E ESOTERISMO 1- Ansiedade. Augusto Cury. SARAIVA 2- Não Se Apega, Não. Isabela Freitas. INTRÍNSECA 3- De Volta ao Mosteiro. James Hunter. SEXTANTE 4- As Regras de Ouro dos Casais Saudáveis. Augusto Cury. ACADEMIA DE INTELIGÊNCIA 5- O Monge e o Executivo. James Hunter. SEXTANTE 6- Pais Inteligentes Formam Sucessores, Não Herdeiros. Augusto Cury. SARAIVA 7- Sonhos Não Têm Limites. Ignácio de Loyola Brandão. GENTE 8- Casamento Blindado. Renato e Cristiane Cardoso. THOMAS NELSON BRASIL 9- Eu Não Consigo Emagrecer. Pierre Dukan. BEST SELLER 10- O Vendedor Inteligente. Ricardo Lemos. GENTE 7#8 ROBERTO POMPEU DE TOLEDO – A XACINA DO TEXTO A pezar da xuva, muita jente esteve prezente ao ezersisio de jinastíca qe teve lugar no colejio. Omens, mulheres e criansas no fim cantaram o Ino Nasional. Ouve pesoas qe ate xoraram de emosão cuando a festa terminou. Oje qem quiser pode asistir a nova aprezentasão. A impressão é de escombros do que foi outrora a língua portuguesa em sua forma escrita. Como se tivesse sido atingida por uma bomba e alguns destroços irreconhecíveis houvessem sido resgatados da hecatombe. A comparação não é absurda. Tem o efeito de uma bomba a radical reforma ortográfica defendida pelo site Simplificando a Ortografia (simplificandoaortografia.com), criado pelo professor de português Ernani Pimentel. Sua proposta é acabar com letras que não se pronunciam, como o "H" no início de certas palavras e o "U" que se segue ao "Q" em "quintal" e "querido", assim como a duplicidade de representação do mesmo som em "S" e "Z", "SS" e "Ç" ou "G" e "J". Não é uma proposta inovadora. Para citar uma das que já se apresentaram com espírito semelhante no passado, o general Bertoldo Klinger, figura preeminente da Era Vargas, não só formulou a sua como a praticou — ele grafava seus textos segundo as regras que inventou. O general (aliás, jeneral) Klinger, em quem o reformador da língua escrita se misturava ao reformador do povo brasileiro, explicava: "Ortografia é lojica. Lojica é ordem. Sem ordem não a nasão. Logo, não a nasão sem ortografia lojica". O site do professor Ernani Pimentel podia passar por uma excêntrica curiosidade, tal qual a reforma de Klinger, não fossem duas circunstâncias. Primeira: a de Pimentel ter sido nomeado um dos dois coordenadores (o outro é o professor Pasquale Cipro Neto) do Grupo Técnico criado na Comissão de Educação do Senado para discutir o Acordo Ortográfico entre os países de língua portuguesa. Segunda: a de vivermos tempos propícios aos populismos/paternalismos. A "simplificação" da ortografia tem sido enfeitada com o charme mais do que discutível de facilitador da alfabetização e fator de "inclusão social". Essa história tem origem nas discórdias que se seguiram à assinatura, em 1990, do Acordo Ortográfico pelo qual os países de língua portuguesa se comprometeram a unificar suas regras ortográficas. Restrições surgiram em todos os países signatários. No Brasil o acordo deveria entrar em vigor em 2009, e na prática realmente entrou, com sua adoção nas escolas, na imprensa e nas editoras de livros. Oficialmente, no entanto, dadas as divergências com os outros países, a presidente Dilma Rousseff adiou a entrada em vigor para 2016. Nesse vácuo entrou a Comissão de Educação do Senado. Decidiu rediscutir o acordo e criou um grupo de trabalho que tanto pode acabar por confirmá-lo ou rejeitá-lo quanto — o que é pior — propor uma reforma de sua própria iniciativa. Segundo o presidente da comissão, senador Cyro Miranda (PSDB-GO), o acordo teria sido feito "sem ouvir ninguém". A comissão resolveu então "botar ordem na casa", convocando o debate. Daí ao encanto com a proposta do professor Ernani Pimentel foi um passo. "Estou totalmente de acordo com o professor Ernani", declara o senador Cristovam Buarque, membro da Comissão de Educação, segundo se lê no site do professor. Duas audiências públicas serão realizadas pelo Grupo de Trabalho da Comissão de Educação na primeira quinzena de outubro. Espera-se que, nelas, falem mais alto as palavras da professora Marília Ferreira, presidente da Associação Brasileira de Linguística, em carta ao senador Cristovam Buarque: "A ortografia não existe para representar a fala, mas é uma representação abstrata e convencional da língua. Para poder ser de fato funcional, a ortografia deve necessariamente afastar-se da diversidade da fala. Só assim se poderá garantir um sistema ortográfico estável e perene em que haja uma única representação gráfica para cada palavra. É essa representação única que torna possível que a palavra seja reconhecida em qualquer texto, independentemente de suas inúmeras pronúncias no espaço e no tempo". A alternativa é a xacina do testo em língua portugueza. A anarqia. A ecatombe.