0# CAPA 10.9.14 VEJA www.veja.com Editora ABRIL Edição 2390 – ano 7 – nº 37 10 de setembro de 2014 [descrição da imagem: foto do rosto de Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Petrobras. Toda a capa está em fundo preto, e o rosto de Paulo Roberto esta em vermelho e preto. Somente a córnea de seus olhos está branca.] EXCLUSIVO ESCÂNDALO DA PETROBRAS O DELATOR FALA * O nome dos políticos envolvidos no megaesquema de corrupção: governadores, senadores, deputados federais e um ministro * O dinheiro sustentava a base aliada do PT no Congresso * Houve propina na compra da refinaria de Pasadena Paulo Roberto Costa ex-diretor da Petrobrás [canto superior esquerdo da capa: foto do rosto de Nestor Cerveró] NESTOR CERVERÓ A nebulosa história da compra de um apartamento de 7,5 milhões de reais. [canto superior esquerdo da capa: foto do rosto de Meire Poza] MEIRE POZA As ameaças à contadora que revelou a participação das empreiteiras em negócios criminosos. ______________________________ 1# SEÇÕES 2# PANORAMA 3# BRASIL 4# ECONOMIA 5# INTERNACIONAL 6# GERAL 7# ARTES E ESPETÁCULOS _________________________________ 1# SEÇÕES 10.9.14 1#1 VEJA.COM 1#2 CARTA AO LEITOR – UMA EDIÇÃO MEMORÁVEL 1#3 ENTREVISTA – PAUL POLMAN – O CEO DA SUSTENTABILIDADE 1#4 LYA LUFT – MEDO E PRECONCEITO 1#5 LEITOR 1#6 BLOGOSFERA 1#1 VEJA.COM TVEJA NAS ELEIÇÕES Desde que adquiriu o direito de escolher seu governador, em 1990, a população do Distrito Federal não tinha uma campanha tão acirrada quanto a deste ano, pontuada por reviravoltas e impasses. É nesse clima que cinco postulantes ao governo do DF se enfrentam na segunda (8), em debate promovido por VEJA e VEJA BRASÍLIA. Os cinco candidatos mais citados nas principais pesquisas de intenção de voto — José Roberto Arruda (PR), Agnelo Queiroz (PT), Rodrigo Rollemberg (PSB), Toninho do PSOL e Luiz Pitiman (PSDB) — já confirmaram presença. O encontro começa às 19 horas e será transmitido ao vivo por TVeja • VEJA entrevista os principais candidatos a cargos executivos e legislativos na eleição deste ano. A série de programas teve início com o tucano José Serra, que disputa uma vaga no Senado por São Paulo, e terá sequência com seus adversários Eduardo Suplicy (PT) e Gilberto Kassab (PSD). Nos próximos dias, a jornalista Joice Hasselmann também conversa com alguns dos candidatos a governador, como Paulo Câmara (PSB), que disputa o cargo em Pernambuco. • Acompanhe a programação diária de TVeja, com a análise das principais notícias da corrida eleitoral, sempre com a participação de repórteres e colunistas da revista e do site. MATA PRESERVADA A bióloga brasileira Cristina Banks-Leite, da universidade inglesa Imperial College London, coordenou um estudo sobre como preservar a Mata Atlântica brasileira. O programa em vídeo VEJA Ciência mostra que a pesquisa faz algo raro ao propor medidas de sustentabilidade que conciliam os interesses econômicos com os esforços dos ambientalistas. O BRASIL NO ROTATIVO Com a inflação corroendo a renda e as parcelas de financiamentos abocanhando o orçamento das famílias, não é de estranhar que o consumo tenha crescido apenas 4,2% no primeiro semestre - o segundo pior resultado desde 2006. Os brasileiros estão comprando menos porque estão mais endividados. E, com os juros mais altos, as dívidas estão mais caras. Financiar um bem não é algo ruim. Mas a população não está confiante em que conseguirá pagar suas dívidas. Outro fator que desperta medo é o mercado de trabalho. Os números do Caged apontam uma tendência perversa: a criação de vagas tem caído sistematicamente ao longo do ano. Reportagem do site de VEJA mostra como as famílias estão tendo de reverter a onda de consumo e cortar gastos para manter os bens que conquistaram. 1#2 CARTA AO LEITOR – UMA EDIÇÃO MEMORÁVEL VEJA traz nesta edição uma tríade de "furos" — no jargão jornalístico, as informações exclusivas e altamente relevantes obtidas por repórteres. Um desses furos apenas já seria um feito. Três fazem desta VEJA uma edição memorável. E não apenas pela importância das revelações, mas pela qualidade da apuração demonstrada nos três casos. A primeira reportagem indica que o governo Dilma Rousseff pode estar na iminência de enfrentar um escândalo de proporções semelhantes às do mensalão. Ela antecipa informações bombásticas que o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa deu à polícia como parte do seu acordo de delação premiada, prestes a ser homologado pela Justiça. A Petrobras, disse PRC, foi usada nos governos de Lula e Dilma Rousseff como instrumento de corrupção para canalizar recursos para as campanhas de três partidos e dar dinheiro a uma fileira de políticos que inclui três governadores, seis senadores, um ministro e pelo menos 25 deputados federais. O ex-diretor disse ainda que a compra da refinaria de Pasadena foi usada para fazer caixa dois para campanhas eleitorais e premiar com propina alguns dos participantes do negócio. A segunda reportagem mostra que uma offshore aberta no Uruguai em nome de laranjas comprou um apartamento avaliado em 7,5 milhões de reais em Ipanema onde o também ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró morou durante os últimos cinco anos. O negócio foi fechado em 2008, no auge do litígio entre a Petrobras e os belgas em torno de Pasadena. A última reportagem da tríade revela que a contadora Meire Poza recebeu ameaças veladas do advogado de um grupo de construtoras envolvidas com o doleiro Alberto Youssef, sobre quem ela havia dito a VEJA ser um "banco de dinheiro sujo". Uma gravação obtida pelo repórter Robson Bonin atesta as pressões. No caso de Cerveró, a transação milionária que o ex-diretor da área internacional da Petrobras tentou camuflar foi comprovada pelo repórter Thiago Prado com base em documentos. Já as informações sobre a delação premiada de PRC foram obstinadamente cruzadas pelo editor Rodrigo Rangel com fontes diretas, tendo cada uma delas revelado uma parte do depoimento e confirmado detalhes passados por outra — de forma que, ao final, Rangel conseguiu ter em mãos um resumo fiel do conteúdo principal de 42 horas de conversa de PRC com os delegados da PF e procuradores. VEJA se orgulha da excelência de seu jornalismo. Mas se orgulha, sobretudo, de mais uma vez cumprir o papel da imprensa livre: lançar luz onde as sombras teimam em avultar. 1#3 ENTREVISTA – PAUL POLMAN – O CEO DA SUSTENTABILIDADE O presidente global da Unilever quer reduzir a emissão de gases de efeito estufa, diminuir a pobreza no mundo, promover os direitos humanos e ainda lucrar com todas essas conquistas. TATIANA GIANINI O holandês Paul Polman assumiu o comando da multinacional de bens de consumo anglo-holandesa Unilever em janeiro de 2009. Desde então, anunciou mudanças ousadas, como a meta de dobrar o tamanho da companhia até 2020 e, ao mesmo tempo, cortar pela metade a emissão de gases causadores de efeito estufa. O esforço inclui medidas como a menor produção de lixo e o maior uso de energia hidrelétrica. Com quase 180.000 funcionários em todo o mundo, a companhia faturou 65,4 bilhões de dólares no ano passado, cerca de 25% mais do que em 2009. Durante uma visita ao Brasil na semana passada para acompanhar uma ação de marketing em Santo Antônio do Pinhal, no interior de São Paulo, Polman falou a VEJA. O senhor lançou um plano para dobrar o tamanho da Unilever. Por outro lado, fala em reduzir pela metade o impacto ambiental de seus produtos. Dá para conciliar as duas coisas? Muitas companhias acreditam que estão fazendo o bem apenas por cumprir o que manda a legislação de meio ambiente. Há ainda as que, quando estão ganhando muito dinheiro, decidem fazer filantropia ou alguma ação pontual de sustentabilidade. É o que eu chamo de página 2 do relatório anual. Dessa maneira, elas realizam atividades importantes, mas que não são suficientes. Sempre acreditei que problemas da sociedade como a pobreza, as mudanças climáticas e os direitos humanos são de grande dimensão e por isso exigem muito trabalho para ser resolvidos. O governo não consegue lidar com todas essas questões sozinho. A iniciativa privada precisa ajudar. Meu objetivo tem sido mostrar que nossa empresa deve se colocar a serviço da sociedade para ajudar a tirar indivíduos da pobreza e cuidar da natureza. Nosso sucesso vai depender de quanto conseguiremos melhorar a vida das pessoas. Como trabalhamos com bens de consumo, temos de garantir que cada uma de nossas marcas faça uma contribuição positiva para a sociedade e para o ambiente. Todo o óleo de palma utilizado na fabricação do nosso sabonete Dove, por exemplo, é explorado de maneira sustentável, sem provocar desmatamento. Em Cali, na Colômbia, temos uma fábrica de detergente que só usa energia hidrelétrica. Como reduzir o impacto ambiental sem aumentar os custos? Precisamos pensar como tornar nossos modelos mais sustentáveis, porque o custo de deixar as coisas como estão tem um peso alto. Nossas unidades de produção têm de consumir menos água, menos pesticidas e gerar menos lixo. A Unilever gasta anualmente 50 milhões de euros para levar seus resíduos até aterros sanitários em caminhões. Acabei de voltar da cidade turca de Rize, no Mar Negro. O chá que vendemos é cultivado nas montanhas dessa região. Trata-se de um trabalho duro, geralmente feito por mulheres. Mas elas não estavam fazendo isso de modo sustentável e não tinham nenhum conhecimento sobre como melhorar a produção. Pior: como cultivavam as plantas de forma errada, a produção estava em declínio. Nós iniciamos um programa de apoio a essa comunidade, que passou a usar menos pesticidas e menos litros de água para plantar o chá. O resultado foi um produto de melhor qualidade para nossos consumidores e custos mais baixos. Sua empresa está conseguindo bater as próprias metas? Queremos melhorar a saúde e o bem-estar de 1 bilhão de pessoas, mas sabemos que não podemos fazer isso em poucos meses. Por isso, estabelecemos no passado um prazo de dez anos. Em quatro já decorridos, a parcela de nossas matérias- primas de origem sustentável passou de 10% para 48% do total. Queremos chegar a 100%. Para isso, precisamos adaptar toda a nossa cadeia de fornecedores, que também vende a outras indústrias, o que torna essa missão mais difícil. Dá muito trabalho, sim, mas, se não fizermos um esforço, os negócios pagarão o preço. Uma análise pormenorizada e global deve ser feita com cuidado. Será que temos um bom negócio a fazer na Palestina? E no Mali? Um país que tem conseguido alcançar resultados invejáveis nessa área é a China. Para o governo de Pequim, poluição e meio ambiente têm sido temas prioritários. A China? Há muita gente por lá questionando se o PIB não deveria ser encarado de outra maneira. Em vez de olhar a riqueza produzida, fala-se em medir a qualidade da vida, do ar, da água, da educação. No 12º Plano Quinquenal do governo chinês, há um capítulo bastante progressista sobre mudanças climáticas. Na Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas que será realizada no Peru, em novembro, eu ficaria feliz de ver os chineses falando disso. Foi formada dentro da Unilever uma equipe específica para cuidar do tema da sustentabilidade? Não acredito nisso. Esse assunto deve ser tratado em todo o negócio. As empresas que geralmente têm um departamento de responsabilidade social colocam ali funcionários perto de se aposentar, que ninguém sabe exatamente o que fazem. Em vez disso, todos os nossos executivos incorporaram a questão da sustentabilidade como algo estratégico. Somente quando todos mudam sua maneira de pensar é que conseguimos fazer as transformações que queremos e de que necessitamos. Uma das candidatas à Presidência da República no Brasil é Marina Silva, que foi ministra do Meio Ambiente durante o governo Lula. Que prioridades um governo focado na sustentabilidade deveria ter, na sua opinião? Não sou brasileiro e respeito o processo democrático no país. Obviamente, Marina já pode se considerar uma grande campeã, já que veio de uma origem muito humilde. Sua luta em defesa da Amazônia brasileira foi reconhecida pela WWF (em 2008, Marina ganhou a medalha Duque de Edimburgo, prêmio concedido pela ONG ambientalista WWF). Ela sabe que, se destruirmos a natureza, acabaremos com nós próprios. O Brasil precisa encontrar um jeito de crescer economicamente e de forma sustentável. Existem grandes oportunidades para fazer isso. Quando visitei supermercados pelo país, percebi que os produtos são todos muito volumosos. Se o governo aprovasse uma lei exigindo que certas mercadorias, como detergentes, fossem mais concentradas, isso reduziria os custos de logística. Seria possível colocar mais produtos no caminhão e, assim, gastar menos combustível. Isso é feito em países da Europa e nos Estados Unidos. A indústria brasileira é uma das que mais perderam competitividade na última década. A Unilever deixou de investir aqui por causa isso? Não, porque nós continuamos crescendo por aqui. O Brasil é um mercado grande, e temos conseguido ser eficientes dentro dele. Mas, de fato, os custos trabalhistas estão em ascensão, e o Brasil enfrenta o desafio de se tornar mais competitivo no mercado externo. A longo prazo, precisamos nos certificar de que esses custos não subirão muito a ponto de prejudicar a produtividade e, com ela, o nosso negócio. Por que o senhor diz que o capitalismo precisa evoluir? O ex-primeiro-ministro inglês Winston Churchill disse uma vez que "a democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras que foram tentadas". Digo o mesmo sobre o capitalismo, o melhor sistema já inventado. Conheci muitas economias controladas pelo Estado. Onde não há competição, são sempre os cidadãos que acabam sofrendo. Nos anos 1930, o presidente americano Franklin D. Roosevelt criou o New Deal, um programa de medidas sociais, para reduzir o impacto da crise sobre as camadas mais pobres da população. Roosevelt entendeu que o país precisava trabalhar mais para o bem-estar comum e que para isso eram necessárias mudanças como a implantação de sistemas de aposentadoria e saúde. O que estamos tentando fazer na Unilever é encontrar esse balanço novamente. É uma forma diferente do capitalismo. Em 2013, criamos o Time B, que reúne catorze líderes mundiais influentes, como o indiano Ratan Tatá e o inglês Richard Brandson, para montar um plano B para o capitalismo. O senhor foi o primeiro executivo a se tornar CEO da Unilever sem previamente ter sido funcionário da empresa. Como foi romper esse paradigma? Havia certo ceticismo sobre trazer alguém de fora. Na época, ouvi alguns comentários sobre por que não promoveram gente da empresa. Nessas horas, para alguém na minha situação, o importante é ter em mente que você foi procurado no mercado exatamente para fazer algo diferente do que estava sendo realizado. Então, antes de mudar qualquer coisa, procurei entender muito bem o que estava funcionando e o que não estava. Meses antes de assumir o cargo, estudei a trajetória da companhia, seus valores e as razões que fazem da Unilever uma empresa bem-sucedida. A parte difícil foi ter de aprender rapidamente muitas coisas que os que trabalhavam lá já sabiam. Ter conseguido fazer isso foi extremamente importante para ganhar o respeito dos demais, que viram e reconheceram meu comprometimento. Em sua primeira semana no cargo, o senhor anunciou uma série de medidas polêmicas. Entre elas, a decisão de deixar de divulgar resultados a cada trimestre. Qual foi o motivo? Precisávamos mostrar ao mercado e aos nossos funcionários que faríamos as coisas de forma diferente. Uma empresa não pode conduzir seus negócios por trimestres. Se ela faz isso, começa a tomar decisões de curto prazo que não condizem com sua estratégia de negócios de longo prazo. Na nossa empresa, a preocupação em satisfazer as expectativas dos investidores a cada noventa dias fazia com que a companhia investisse menos do que o necessário em pessoas, em pesquisa e desenvolvimento, em sistemas de tecnologia de informação, em fábricas. Também deixamos de divulgar as expectativas financeiras, o que no jargão corporativo é conhecido por guidances. Era algo estúpido. Não faz muito sentido uma empresa tomar decisões a todo momento baseando-se nessas previsões. A terceira coisa que fizemos foi mudar progressivamente nosso sistema de remuneração, que agora é muito mais focado no desempenho de nossos executivos e em como eles atingem ou não as metas de longo prazo. A mesma lógica vale para mim. Em grandes empresas como a Unilever, a duração média de um CEO no cargo é de 4,5 anos. Já estou nessa função há quase seis anos, e a pergunta que mais escuto nos corredores é quanto tempo mais eu vou ficar. Esse tipo de indagação é um absurdo. As questões com as quais empresas como a Unilever precisam lidar são complexas e demandam mais tempo para ser solucionadas. Como essas novidades foram recebidas pelo mercado? Logo após o anúncio do fim dos relatórios trimestrais e das expectativas financeiras, o valor de nossas ações caiu 8%. A queda refletia uma desconfiança generalizada. Para muitos, as corporações que deixam de divulgar essas informações necessariamente escondem más notícias. No entanto, sabíamos que, se seguíssemos o caminho planejado, isso, com o tempo, se refletiria nas ações. Foi o que aconteceu. De 2009 para cá, o valor dos papéis dobrou. Houve alguma alteração no perfil dos acionistas? O lado positivo dessa mudança é que nos aproximamos dos investidores que realmente têm afinidade com a estratégia da empresa e nos afastamos daqueles que não queremos. Nossos acionistas são os fundos de pensão e as fundações de porte, que visam ao longo prazo. É um pouco a estratégia do investidor americano Warren Buffett. Nosso relacionamento com a comunidade financeira também foi aprimorado. Quando publicávamos relatórios trimestrais, muitas das discussões eram estúpidas. Se havia queda nas vendas de sorvete, por exemplo, tínhamos de dar uma explicação, como uma mudança inesperada na temperatura do planeta. Ao focarmos o longo prazo, passamos a ter uma visão mais estratégica do nosso negócio. 1#4 LYA LUFT – MEDO E PRECONCEITO O tema é espinhoso. Todos somos por ele atingidos de uma forma ou de outra, como autores ou como objetos dele. O preconceito nasce do medo, sua raiz cultural, psíquica, antropológica está nos tempos mais primitivos — por isso é uma postura primitiva —, em que todo diferente era um provável inimigo. Precisávamos atacar antes que ele nos destruísse. Assim, se de um lado aniquilava, de outro esse medo nos protegia — a perpetuação da espécie era o impulso primeiro. Hoje, quando de trogloditas passamos a ditos civilizados, o medo se revela no preconceito e continua atacando, mas não para nossa sobrevivência natural; para expressar nossa inferioridade assustada, vestida de arrogância. Que mata sob muitas formas, em guerras frequentes, por questões de raça, crença e outras, e na agressão a pessoas vitimadas pela calúnia, injustiça, isolamento e desonra. Às vezes, por um gesto fatal. Que medo é esse que nos mostra tão destrutivos? Talvez a ideia de que "ele é diferente, pode me ameaçar", estimulada pela inata maldade do nosso lado de sombra (ele existe, sim). Nossa agressividade de animais predadores se oculta sob uma camada de civilização, mas está à espreita — e explode num insulto, na perseguição a um adversário que enxovalhamos porque não podemos vencê-lo com honra, ou numa bala nada perdida. Nessa guerra ou guerrilha usamos muitas armas: uma delas, poderosa e sutil, é a palavra. Paradoxais são as palavras, que podem ser carícias ou punhais. Minha profissão lida com elas, que desde sempre me encantam e me assombram: houve um tempo, recente, em que não podíamos usar a palavra "negro". Tinha de ser "afrodescendente", ou cometíamos um crime. Ora, ao mesmo tempo havia uma banda Raça Negra, congressos de Negritude... e afinal descobrimos que, em lugar de evitar a palavra, podíamos honrá-la. Lembremos que termos usados para agredir também podem ser expressões de afeto. "Meu nego", "minha neguinha', podem chamar uma pessoa amada, ainda que loura. "Gordo", tanto usado para bullying, frequentemente é o apelido carinhoso de um amigo, que assim vai assinar bilhetes a pessoas queridas. Ao mesmo tempo, palavras como "judeu, turco, alemão" carregam, mais do que ignorância, um odioso preconceito. De momento está em evidência a agressão racial em campos esportivos: "negro", "macaco" e outros termos, usados como chibata para massacrar alguém, revelam nosso lado pior, que em outras circunstâncias gostaríamos de disfarçar — a grosseria, e a nossa própria inferioridade. Nesses casos, como em agressões devidas à orientação sexual, a atitude é crime, e precisamos da lei. No país da impunidade, necessitamos de punição imediata, severa e radical. Me perdoem os seguidores da ideia de que até na escola devemos eliminar punições, a teoria do "sem limites". Não vale a desculpa habitual de "não foi com má intenção, foi no calor da hora, não dêem importância". Temos de nos importar, sim, e de cuidar da nossa turma, grupo, comunidade, equipe ou país. Algumas doenças precisam de remédios fortes: preconceito é uma delas. "Isso não tem jeito mesmo", me dizem também. Acho que tem. É possível conviver de forma honrada com o diferente: minha família, de imigrantes alemães aqui chegados há quase 200 anos, hoje inclui italianos, negros, libaneses, portugueses. Não nos ocorreria amar ou respeitar a uns menos do que a outros: somos todos da velha raça humana. Isso ocorre em incontáveis famílias, grupos, povos. Porque são especiais? Não. Simplesmente entenderam que as diferenças podem enriquecer. Num país que sofre de tamanhas carências em coisas essenciais, não devíamos ter energia e tempo para perseguir o outro, causando-lhe sofrimento e vexame, por suas ideias, pela cor de sua pele, formato dos olhos, deuses que venera ou pessoa que ama. Nossa energia precisa se devotar a mudanças importantes que o povo reclama. Nestes tempos de perseguição, calúnia, impunidade e desculpas tolas, só o rigor da lei pode nos impedir de recair rapidamente na velha selvageria. Mudar é preciso. 1#5 LEITOR CORRIDA PRESIDENCIAL O verdadeiro motivo de milhões de brasileiros anunciarem o voto em Marina Silva ("Quem segura esta mulher?", 3 de setembro) é o fato de ela representar um sopro de honestidade diante de tanto descaramento que temos visto. Um ódio surdo contra a corrupção está rugindo nas massas. Só não ouve quem não quer. ZILDA MARIA LEAL Dourados, MS Marina pode não ter consistência política, mas também não tem as famosas "amarras" que impedem as decisões de que o Brasil precisa para deslanchar de vez. JOSÉ WALTER DA SILVA Arapiraca, AL A população está querendo alguém diferente para governar o Brasil, e quem está conseguindo passar essa imagem é Marina Silva. Grande parte das pessoas que vão votar na Marina não tem noção do plano que a candidata possui para o país: apenas estão certas de que é com ela que irão. Este é o resultado que a classe política atual está produzindo no Brasil. Torço para que esse movimento chegue também aos estados, e, daqui a dois anos, aos municípios. Espero que a classe política atual faça uma reflexão, do presidente da República ao vereador. RONALDO SENA DE MORAES Presidente da Câmara Municipal Ibirarema, SP A "maquiagem" com que a presidente Dilma Rousseff relata os fatos sobre o que realmente ocorre no Brasil parece ser sua atual bandeira, tendo por base as evasivas com que responde às questões formuladas pelos jornalistas. Se Dilma deseja realmente permanecer no cargo, por que não é tão segura e não convence? JESUS EDUARDO MENDONÇA Rio Claro, SP Marina Silva é o "pulo no desconhecido" da eleição. Mas, convenhamos, se não for possível o Aécio Neves (PSDB), o mais preparado, então que seja ela. É melhor a incerteza da Marina do que a certeza — já conhecida — da Dilma e do PT. RAIMUNDO JOSÉ DE A. FREITAS Manaus, AM Sem desmerecer as grandes qualidades da mulher, da política e presidenciável, tenho certas reservas sobre as pessoas às quais as forças do universo parecem reservar um lugar de destaque e uma missão neste país gigante e mal administrado há décadas. As oportunidades, pós-tragédias e "salvadoras'' ou "míticas", também assim se apresentaram a José Sarney, Fernando Collor, Lula e Dilma Rousseff... E deu no que deu! Ainda mais a Marina, tida como renovadora e novidade, tendo de se "adaptar" ao sistema político-partidário vigente e às mais diversas conveniências de quem não tem, historicamente, compromisso mínimo com as necessidades do povo. Era o que muita gente queria para outra pessoa de bem: Joaquim Barbosa. JOÃO ALVES DE ARAÚJO Promotor de Justiça de Igarassu e Olinda (PE) Será que o Brasil está preparado para mais uma aventura? Depois de doze anos de PT no governo, o país merecia um projeto de desenvolvimento de verdade. FERNANDO RAMIREZ São Paulo (SP), via tablet Respeito a história da candidata Marina Silva, mas, para colocar o Brasil nos eixos, temos de ser mais racionais do que emocionais. Marina tem até o fim do mês para apresentar ao Brasil os principais nomes que vão compor um futuro governo PSB, caso contrário boa parte do seu eleitorado na dúvida ficará com Aécio Neves, que, a meu ver, é o que apresenta melhores condições para assumir a Presidência... SANTELMO TAVARES PINHEIRO São Luís, MA Precisamos de um líder democrático, forte, experiente, em quem a nação confie, para promover rapidamente as reformas de que o Brasil precisa. Os problemas do país são complexos, requerem ação enérgica, inteligente e eficaz. Não podemos nos iludir com um plano confuso, dúbio, como a "nova política" proposta por Marina, que me parece mais eleitoreiro e superficial do que real e poderia ter um preço alto. A moeda seriam os cargos, o que pode resultar em mais um loteamento do governo, com 39 ou quem sabe uns cinquenta ministérios para amparar todos os associados. Esse filme eu já vi a partir de 2002 e o resultado não foi bom para o Brasil. Chega de perder tempo. Nosso atraso em relação ao mundo desenvolvido é enorme, principalmente na infraestrutura, segurança e educação. PEDRO RONALDO PEREIRA Florianópolis, SC CARTA AO LEITOR A Carta ao Leitor "Eleição em rito sumário" (3 de setembro) afirma, com razão, que, se o debate político no Brasil fosse frequente e não se limitasse ao período de algumas semanas antes da eleição, "o eleitor teria chance de escolher melhor'". Ocorre que no Brasil vivemos uma democracia sedentária, pois os partidos políticos, que deveriam mantê-la viva e saudável, não cumprem seu papel. Nos anos ímpares consomem toda a sua energia nas disputas internas e nos anos pares, eleitorais, só cuidam de garantir minutos no horário gratuito. Resultado: temos uma democracia preguiçosa e gorda, sempre exposta ao contágio dos vírus do populismo, da demagogia e do marketing de ocasião. OSVALDO MARTINS Rio de Janeiro, RJ ROBERTO POMPEU DE TOLEDO Em seu artigo "Que há numa palavra" (3 de setembro), Roberto Pompeu de Toledo abordou com muita propriedade um tema que sempre chamou minha atenção desde a posse da atual ocupante da Presidência da República: o uso da flexão forçada da palavra presidente no feminino, como forma subserviente de manifestar adesão à detentora do poder. Veja-se o esmero com que altas personalidades da nossa vida pública se esforçam para usar sempre a palavra "'presidenta". Felizes aqueles que compartilham o idioma do bardo, pois jamais se defrontarão com esse tipo de controvérsia. Seja homem, mulher ou animal, "he", "she", "it" será sempre "president". JOSÉ ANTÔNIO GAETA MENDES Taubaté, SP O TCU E O PLANALTO Antes de votar, todo cidadão deveria tomar conhecimento da reportagem "'Eu sei bem a quem devo"" (3 de setembro). A farta documentação exposta pelos jornalistas Robson Bonin e Hugo Marques não deixa dúvida de que a presidente Dilma Rousseff, desde 2008, vem adotando tráfico de influência junto ao Tribunal de Contas da União (TCU). A pouco menos de um mês das eleições, VEJA presta mais um grande serviço ao Brasil, revelando em detalhes como funciona o "toma lá dá cá" entre a Casa Civil da Presidência da República e o órgão cuja função precípua seria investigar o próprio governo. LEVI BRONZEADO DOS SANTOS Guarabira, PB BENJAMIN STEINBRUCH A entrevista com o presidente da Fiesp, Benjamin Steinbruch ("O Brasil pode bater no muro", 3 de setembro), aborda um tema complexo e Steinbruch nos deixa claro o que é necessário para que o país consiga atrair novamente os investimentos estrangeiros que estão fugindo: o Brasil precisa fazer reformas (política, fiscal, trabalhista). Tomara que muitos brasileiros tomem o pensamento de Steinbruch como metodologia para votar e eleger o candidato que melhor consiga representar e solucionar os problemas do nosso país pelos próximos quatro anos. PEDRO CORDEIRO POVOA CUPERTINO Viçosa, MG ALFÂNDEGA Com relação à nota "De portas abertas" (Holofote, 3 de setembro), a Polícia Federal esclarece que o controle realizado na área de alfândega não é de responsabilidade do órgão. Essa atribuição é coordenada e executada pela Receita Federal do Brasil. LEONARDO LIMA Chefe substituto da Divisão de Comunicação Social da Polícia Federal Brasília, DF EDUCAÇÃO Em relação à reportagem "O dinheiro sumiu no ar" (3 de setembro), esclareço que não tive nenhuma participação, formal ou informal, na indicação e/ou na aprovação dos investimentos realizados pelos fundos de pensão junto ao grupo Galileo. Por um curto período — posteriormente a essa transação —, ocupei posição no conselho do Galileo, em razão de minha experiência como gestor de empresas na iniciativa privada, e colaborei naquela ocasião para os esforços em busca do equacionamento das dificuldades por que passava a instituição, infelizmente sem o sucesso planejado, em decorrência de fatos alheios à nossa vontade. Como empresário e cidadão, entendo que toda e qualquer denúncia deve ser rigorosamente apurada, em nome do interesse público e da transparência, iniciativa que sempre contará com minha total colaboração e apoio. MILTON LYRA Por e-mail A proposta para o Postalis investir no grupo Galileo foi encaminhada ao fundo quando eu ocupava o cargo de diretor financeiro. Ela obedeceu à tramitação tradicional, segundo a política de investimento do Postalis. A decisão ocorreu de forma colegiada. Reitero que minha entrada no conselho do Galileo não caracterizou conflito de interesses pela regra vigente. ADILSON FLORÊNCIO DA COSTA Ex-conselheiro do grupo Galileo Brasília, DF NELSON JÚNIOR Interessantíssima a entrevista com o pastor Nelson Júnior ("Paciência, amor", Conversa, 3 de setembro), líder do movimento EEE - Eu Escolhi Esperar. Apoio integralmente. Sou pedagoga em escola pública das séries finais do ensino fundamental e vejo quanto a sexualidade precoce tem sido prejudicial para nossas crianças e adolescentes. Meu filho de 23 anos fez essa opção ("Eu Escolhi Esperar"), casou em janeiro deste ano e é muito feliz. CINTIA F. MAMEDI CARVALHO Rebouças, PR Num tempo de tantas inversões de valores, a campanha Eu Escolhi Esperar surge como uma luz para o resgate dos princípios de formação de famílias, que são o bem mais precioso da sociedade brasileira. Eu escolhi esperar, e posso afirmar, categoricamente, que valeu a pena! O primeiro beijo entre mim e meu noivo aconteceu no nosso casamento — e foi maravilhoso! Tenho um casamento feliz e sem marcas negativas do passado. SIMONE MESSINA GOMEZ Santa Maria, RS Visto a camisa desse movimento, pois sei quão importante na minha vida é a integridade de me preservar até o casamento. ANA CAROLINA MOREIRA TERTO Rio de Janeiro, RJ Demonstrar apoio à campanha Eu Escolhi Esperar é reafirmar um valor que gerações passadas desprezaram. Sexo só no casamento não é algo ultrapassado, mas uma vereda eterna. ROBSON GOULART DE OLIVEIRA Palmas, TO CORREÇÃO: a foto do prédio da Universidade Gama Filho publicada na reportagem "O dinheiro sumiu no ar" (3 de setembro) não é do câmpus que funcionava no centro do Rio de Janeiro, como diz o texto, mas da ex-sede de Piedade. PARA SE CORRESPONDER COM A REDAÇÃO DE VEJA: as cartas para VEJA devem trazer a assinatura, o endereço, o número da cédula de identidade e o telefone do autor. Enviar para: Diretor de Redação, VEJA - Caixa Postal 11079 - CEP 05422-970 - São Paulo - SP: Fax: (11) 3037-5638; e-mail: veja@abril.com.br. Por motivos de espaço ou clareza, as cartas poderão ser publicadas resumidamente. Só poderão ser publicadas na edição imediatamente seguinte as cartas que chegarem à redação até 3 quarta-feira de cada semana. 1#6 BLOGOSFERA EDITADO POR KÁTIA PERIN kerin@abril.com.br COLUNA REINALDO AZEVEDO SÃO PAULO Ainda faltam 851 dias para São Paulo se libertar de Fernando Haddad. Poderiam ser apenas 850, mas 2016 é ano bissexto, e o alcaide nos deve mais esta: tomou um dia a mais da nossa liberdade. No dia em que esse senhor deixar a prefeitura, imaginem quanta área hoje inútil — das faixas exclusivas — será liberada para o trânsito! www.veja.com/reinaldoazevedo COLUNA RODRIGO CONSTANTINO MANTEGA Guido Mantega disse que a proposta defendida por Marina Silva de reduzir crédito dos bancos públicos é "temerária" e poderia paralisar os investimentos e a economia. Ele fez as críticas durante entrevista em São Paulo, mas acho que estava em Marte. A economia brasileira já está em recessão, ministro! www.veja.com/rodrigeconstantiiio DE NOVA YORK CAIO BLINDER UCRÂNIA A Ucrânia está em uma zona cinzenta, sendo disputada pelo Ocidente e pela Rússia, embora o empenho de Moscou para lutar por seus interesses seja muito maior e muito mais arriscado do que o do Ocidente. A Rússia, afinal, tem muito mais a perder se a Ucrânia se bandear para o outro lado. www.veja.com/denovayork SOBRE IMAGENS DMITRI KESSEL Russo de nascimento, Dmitri Kessel (1902-1995) emigrou para os Estados Unidos nos anos 1920. Em mais de seis décadas como fotógrafo, boa parte do tempo para a revista Life, cobriu a II Guerra Mundial e viajou por todo o mundo. Na edição de 5 de abril de 1948, a Life publicou uma reportagem de onze páginas sobre o crescimento da cidade de São Paulo. Ilustrada com fotografias de Kessel, seu título era "A Chicago da América do Sul trabalha duro e constrói rápido". www.veja.com/sobreimagens QUANTO DRAMA CORA E PERPÉTUA A Cora de Drica Moraes é a encarnação moderna e urbana da inesquecível Perpétua que Joana Fomm interpretou em Tieta, novela que Aguinaldo Silva escreveu em 1989 com base no romance Tieta do Agreste, de Jorge Amado. Recalcadas e más por causa disso, as personagens fazem rir do rancor. Mas são plantadas em contextos absolutamente distintos. Aguinaldo mostra que a hipócrita Santana do Agreste imaginada por Jorge Amado pode estar no interior nordestino dos anos 70 ou, agora, logo ali em Santa Teresa. NOVA TEMPORADA CHIPS NO CINEMA Quem foi criança na década de 70 acompanhou as aventuras dos patrulheiros rodoviários Jon Baker (Larry Wilcox) e Frank Poncherello, mais conhecido como Ponch (Erik Estrada), em Chips. A série, criada por Rick Rosner, foi exibida pela rede NBC entre 1977 e 1983. Cultuada por milhares de fãs, Chips está na lista da Warner Brothers como uma das produções da TV que podem migrar para o cinema. www.veja.com/novatemporada • Esta página é editada a partir dos textos publicados por bloguaros e colunistas de VEJA.com ________________________________________ 2# PANORAMA 10.9.14 2#1 IMAGEM DA SEMANA – BISCOITINHOS SEPARATISTAS 2#2 HOLOFOTE 2#3 DATAS 2#4 CONVERSA COM FÁTIMA MERGULHÃO – UM PROJETO DE RENDA MÁXIMA 2#5 NÚMEROS 2#6 SOBEDESCE 2#7 RADAR 2#8 VEJA ESSA 2#1 IMAGEM DA SEMANA – BISCOITINHOS SEPARATISTAS Todos perdem se a Escócia aprovar a independência, mas encrencas do passado alimentam a turma do contra. O que este senhor rubicundo de aparência inofensiva pode ter em comum com os sinais mais estridentes da atual desordem mundial, representados pelos cortadores de cabeça de Alá que tomaram um pedaço da Síria e do Iraque e pelo sinistro projeto putiniano de criação de um novo império russo? Alex Salmond é o primeiro-ministro da Escócia e está botando para assar a batata do Reino Unido. Como grande defensor do voto a favor da independência, contrariou as expectativas e o senso comum. O separatismo está crescendo e se aproxima do dia 18 com o vento a favor: as últimas pesquisas mostram que encurtou a distância em mais de 20 pontos. Na semana passada, 53% dos eleitores tendiam a preferir continuar como parte do complicado arranjo político que constitui o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, uma criação historicamente recente, de apenas três séculos; e 47% pensavam em escolher a separação. As consequências econômicas e políticas da independência escocesa, uma opção perfeitamente democrática e legítima (ao contrário do separatismo catalão, constitucionalmente vetado), têm um tremendo potencial de desestabilização. Teoricamente, poderiam levar a uma nova crise uma Europa ainda mal das pernas. Mas foi justamente o clima de prognósticos catastróficos que ajudou a insuflar a legendária teimosia dos escoceses. Paul McCartney, David Bowie e J.K. Rowling, a criadora de Harry Potter, para ficar nas maiores celebridades de raízes escocesas, apelaram em nome do unionismo com autonomia, que seria uma forma de superação dos ressentimentos históricos com uma relação que no passado foi de domínio inglês. Um voto antitribal faria uma simbólica contribuição para um mundo transtornado por brutais pulsões nacionalistas e político-religiosas, mas a turma do saiote xadrez pode preferir o aye, a velha forma escocesa de dizer sim. VILMA GRYZINSKI 2#2 HOLOFOTE CEARÁ • CADÊ A BURRA? Ex-ministro da Fazenda e da Integração, o hoje apenas secretário da Saúde do Ceará, Ciro Gomes (Prós), sempre gostou de frases de efeito. Em 2002, foi candidato a presidente pelo PPS e caiu em desgraça após dizer que sua então mulher, a atriz Patrícia Pillar, tinha como função de campanha "dormir com ele". Neste ano, Ciro e sua família trabalham para eleger Camilo Santana (PT) governador. Indagado sobre as dificuldades do afilhado petista, Ciro afirmou que, se em quinze dias o quadro eleitoral não fosse revertido, ele daria "uma burra" aos jornalistas. O prazo vence nesta semana. Na última pesquisa, Eunício Oliveira, o candidato da oposição, ainda aparece 8 pontos à frente de Camilo. • O DINHEIRO SUMIU Um importante financiador de campanha resolveu telefonar para integrantes da bancada do PMDB para checar se tinham recebido suas respectivas partes de uma doação de cerca de 30 milhões de reais que fizera ao partido. Não tinham — e deu confusão. O empresário contou que o dinheiro fora entregue ao ministro de Minas e Energia, Edison Lobão. O que teria acontecido? No partido corre a versão de que o destino da bolada seria a campanha de Lobão Filho, o primogênito do ministro, que é candidato pelo PMDB ao governo do Maranhão. Irritados, parlamentares em grupo procuraram o senador José Sarney (AP) e pediram ajuda para resolver o imbróglio. SÃO PAULO • DEU BRANCO Candidato a vice-presidente na chapa de Aécio Neves (PSDB), o senador Aloysio Nunes Ferreira ficou irritado com o governador Geraldo Alckmin por causa de uma peça publicitária da campanha reeleitoral tucana em São Paulo. Aloysio não gostou da estratégia de atingir Paulo Skaf (PMDB) com ataques diretos ao ex-governador Luiz Antonio Fleury, que comandou o estado entre 1991 e 1994. Nesse período, Aloysio era o vice-governador. O pior foi a resposta que Aloysio recebeu da equipe da campanha tucana: "A gente não sabia". A rixa entre Alckmin e Aloysio é antiga. • A LEALDADE DO EX A presidente Dilma Rousseff recuperou terreno nas pesquisas, mas ainda sofre com as críticas dos colegas de PT. Lula, que não gostou da comparação feita entre Marina Silva e Fernando Collor, já avisou à sucessora que não baterá na candidata do PSB, que foi sua ministra e teve longa história política no partido. E Collor, seu antigo desafeto, hoje é um aliado de primeira hora. O ex-presidente e os petistas de São Paulo, que mandam na legenda, reclamam de que não são ouvidos pela coordenação de campanha e afirmam que Dilma precisa conversar com pessoas além de João Santana e Aloizio Mercadante. • AVISO À NAVEGANTE Os governos do PT sempre premiaram a fidelidade canina de Ideli Salvatti. Ela foi líder do governo no Congresso, ministra da Pesca e de Relações Institucionais e, atualmente, dá expediente como ministra dos Direitos Humanos. Sem força política para disputar um mandato, a polivalente Ideli estava preparada para assumir uma cadeira no Tribunal de Contas da União (TCU) depois das eleições. Seria a derradeira recompensa a tantos anos de serviços prestados ao partido. Seria, não fosse um detalhe: a sinecura foi acertada com Dilma quando a reeleição era considerada uma barbada. Caso a presidente perca a disputa, parlamentares e autoridades do TCU dizem que a indicação de Ideli será devidamente rejeitada. 2#3 DATAS MORRERAM Sérgio Rodrigues, considerado sinônimo de design brasileiro e um dos principais responsáveis por sua divulgação no exterior. Nascido no Rio de Janeiro em 1927, era sobrinho do dramaturgo Nelson Rodrigues. Começou a carreira como arquiteto — formou-se pela Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil (a atual UFRJ) —, mas migrou para o design por acreditar que sua profissão também deveria se preocupar com a mobília de um imóvel. Sua criação mais reverenciada, a poltrona Mole, surgiu em 1957. A obra integra a coleção permanente do MoMA, de Nova York. Trabalhos de Rodrigues podem ser encontrados nos mais diferentes ambientes — do Itamaraty, em Brasília, à casa da atriz Kim Novak, em Hollywood, Estados Unidos. Dia 1º, aos 86 anos, de complicações causadas por um câncer de próstata, no Rio de Janeiro. Joan Rivers, comediante e apresentadora americana famosa por seus comentários ácidos e farpas disparadas contra celebridades. Nascida no Brooklin, usava episódios do próprio cotidiano em suas piadas. Chegou a brincar com o suicídio do marido: "Depois que Edgar se matou, saí para jantar com Melissa (a filha). Olhei para o cardápio e disse: 'Se seu pai estivesse aqui e visse esses preços, ele se mataria novamente'". Dia 4, aos 81 anos, em Nova York. Yves Carcelle, que transformou a Louis Vuitton em uma das grifes de luxo de maior prestígio do mundo. À frente da marca, comandou uma agressiva estratégia de expansão para a Ásia e outros mercados emergentes. Parisiense, formado em matemática, Carcelle iniciou sua carreira em uma companhia nada glamourosa, que vendia produtos de limpeza. Dia 31, aos 66 anos, em Paris. Pedro Rubens, que fez fotos para mais de 100 capas de VEJA e foi diretor do estúdio da Editora Abril. Paulistano, começou a se interessar por seu futuro ofício na adolescência. Colaborava frequentemente com instituições ligadas a crianças. Dia 1º, aos 58 anos, de câncer, em São Paulo. QUA|3|9|2014 DECRETADA a prisão preventiva de Carlos Eduardo Sundfeld Nunes, o Cadu, assassino do cartunista Glauco e de seu filho Raoni, em 2010, e agora suspeito de matar o motorista de um carro durante um assalto. Ele nunca chegou a ser julgado pelo crime de quatro anos atrás, porque foi considerado inimputável pela Justiça por ser esquizofrênico. Depois de passar três anos em uma clínica psiquiátrica, estava livre desde agosto do ano passado. EXCLUÍDO da Copa do Brasil o Grêmio, em decorrência de racismo manifestado por sua torcida. A decisão, inédita, foi anunciada pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva como punição aos insultos dirigidos ao goleiro Aranha, do Santos, durante jogo em Porto Alegre. O clube gaúcho vai recorrer. O Grêmio já havia expulsado os sócios envolvidos no episódio e banido a torcida organizada; ainda assim, sua exclusão da Copa foi definida por unanimidade. Não faltaram críticas ao STJD, acusado de "demagógico". A torcedora Patrícia Moreira negou ser racista e pediu desculpas a Aranha. QUI|4|2014 NASCEU Rose Dorothy, primeira filha da atriz americana Scarlett Johansson, com seu noivo, Romain Dauriac, jornalista francês. Scarlett deu à luz em Nova York. O segundo nome da menina homenageia uma das avós da atriz. 2#4 CONVERSA COM FÁTIMA MERGULHÃO – UM PROJETO DE RENDA MÁXIMA Dona das lojas Fátima Rendas, presentes em aeroportos do Brasil, ela teve o estilo artesanal elegante divulgado em todo o país desde que a candidata Marina Silva apareceu na TV com uma de suas roupas. Sente que ajudou no aprimoramento do estilo de Marina? Ela é cliente lia algum tempo, mas eu só a encontrei uma vez. Acho que a blusa que ela escolheu para usar na entrevista ao Jornal Nacional ficou melhor do que um blazer. A renda renascença é nobre. A viúva de Eduardo Campos, Renata, também apareceu com um bolero de sua marca. A senhora virou a estilista oficial do PSB? Não posso dizer isso. Não fui contratada, eles apenas reconhecem nosso trabalho. Isso é maravilhoso; estou radiante. Uma blusa como a usada por Marina custa em torno de 1800 reais. Por que os preços são tão salgados? Dou emprego a mais de 250 mulheres do município de Pesqueira, em Pernambuco. Usamos cambraia de linho, que é um tecido caro, e há peças que levam mais de seis meses para ficar prontas. Por que quase todas as suas lojas estão em aeroportos? Meu foco é um público com olhar aguçado, que ainda ajuda na divulgação internacional do produto. Tive essa ideia há mais de vinte anos. Não pensa em seguir os passos de Martha Medeiros, que também trabalha com rendas do Nordeste, e abrir lojas em pontos mais acessíveis? Vamos abrir uma loja de rua em São Paulo no ano que vem. Mas gosto de fazer tudo com cautela. Renda engorda? Tenho clientes que usam até tamanho 4G. Nas roupas para elas, uso linha mercerizada, mais fina, para que a renda não arme. É possível deixar de imaginar uma roupa para Marina usar numa hipotética posse em Brasília? Comecei a pensar nessa possibilidade, embora não queira forçar a barra. Ela é muito séria. Mas acho que mandaria um vestido de renascença. 2#5 NÚMEROS 94 denúncias de fraude em urnas eletrônicas, nenhuma delas comprovada, foram contabilizadas nas últimas eleições no Brasil por grupos que contestam a sua confiabilidade. 25 barreiras de segurança digital têm as urnas eletrônicas brasileiras. Os votos passam por dez etapas de conferência apenas na fase de transmissão para o sistema central da Justiça Eleitoral. 12.000.000 de linhas de código de programação têm essas urnas, o que indica a complexidade do sistema e a dificuldade de penetrá-lo - é quatro vezes o que há no software de um drone militar, por exemplo de linhas de código . 27ataques foram realizados por hackers voluntários no último teste das urnas, antes das eleições de 2012. Nenhum deles conseguiu fraudar os resultados. 2#6 SOBEDESCE SOBE * EMAGRECEDORES - A venda de inibidores de apetite do grupo das anfetaminas foi liberada pelo Congresso. Estava proibida desde 2011 no Brasil porque a Anvisa considera os riscos maiores que os benefícios. * FICHAS SUJAS - Mesmo condenados pela Lei da Ficha Limpa, Paulo Maluf e José Roberto Arruda continuam liberados para fazer campanha, já que ainda podem recorrer à Justiça Eleitoral. * COMBATE AO EBOLA - Cientistas japoneses desenvolveram um teste capaz de detectar a doença em trinta minutos, um quarto do tempo atual. DESCE * GUIDO MANTEGA - Ao declarar que o titular da Economia estará fora num eventual segundo mandato, Dilma Rousseff transformou-o no primeiro ministro em exercício demitido do seu governo * CENSO - Por falta de dinheiro, o IBGE adiou por dois anos a contagem da população, feita uma vez por década. * MALAYSIA AIRLINES - A companhia aérea, que registrou dois acidentes recentes com mais de 500 mortos, teve de desculpar-se por promoção que perguntava aos passageiros "o que gostariam de fazer antes de morrer". 2#7 RADAR LAURO JARDIM ljardim@abril.com.br • ELEIÇÕES ENCRENCA NA CERTA Um problema adicional, entre tantos outros, que a queda do jato de campanha de Eduardo Campos está causando: como o avião não estava devidamente regularizado para funcionar como táxi-aéreo, a seguradora está pondo obstáculos para pagar indenizações. OS ANÕES CRESCERAM Em outubro passado, João Santana previu a vitória de Dilma Rousseff no primeiro turno e cunhou uma frase de efeito sobre os candidatos de oposição. Dizia, então, Santana: "Ocorrerá uma antropofagia de anões. Eles vão se comer, lá embaixo, e ela, sobranceira, vai planar no Olimpo". Onze meses depois, o que se vê é que os anões cresceram e a eleição não só vai para o segundo turno como tem uma "anã" como favorita. BUSCA DE NOMES 1 Os marineiros que estão conversando com empresários e com o mercado financeiro sonham com Pérsio Árida na equipe econômica de Marina, se ela for eleita. Já houve uma sondagem. BUSCA DE NOMES 2 A propósito, Walter Feldman e Álvaro de Souza têm dito aos banqueiros e empresários que já estão sondando pessoas para compor a equipe econômica e de governo de Marina, embora a palavra final seja da candidata. BUSCA DE NOMES 3 A alguns desses empresários, pedem sugestões também para os escalões médios do governo. O ELO PERDIDO Como Marina Silva não respondeu até agora de onde vai tirar dinheiro para aumentar os gastos do governo federal com saúde de 7% para 10% do PIB, os economistas que entendem do riscado começaram a fazer suas próprias contas. Vários deles chegaram, por meios diferentes, à mesma conclusão. Como os gastos públicos são bastante engessados e a economia que a melhora na eficiência da máquina pública pode gerar é lenta e ainda difícil de medir, a solução, pelo menos num primeiro momento, é ressuscitar a Cide (0,4% do PIB) e a CPMF (1,5% do PIB) e rever as desonerações fiscais (1% do PIB). Pode ser apenas coincidência, mas a soma dá exatamente os 3% do PIB que Marina precisa ganhar para cumprir sua promessa. EM CAUSA PRÓPRIA Tivesse o histriônico Levy Fidelix, candidato a presidente da República pelo PRTB, alguma chance de vitória na corrida eleitoral, os adversários certamente atacariam o conflito de interesses na sua principal proposta de governo - o já folclórico Aerotrem. Além de dono da Aerotrem TR e de marcas como "monotrilho" e "transrapid", que registrou no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi), Fidelix é consultor da Intamin, empresa suíço-alemã de trens de alta velocidade. • ECONOMIA PARA QUE PRESSA? A conclusão de Angra 3 estava prevista para maio deste ano, de acordo com o primeiro relatório do PAC, de 2008. Há três meses, o governo admitiu que a usina ficaria pronta em 2018. Na semana passada, um novo anúncio oficial adiou a inauguração para julho de 2019. VIVA O BLOQUEIO Em agosto, o Brasil aumentou em 48% a venda de carne para a Rússia em comparação com o mesmo mês do ano passado. O motivo é um só: o bloqueio russo à importação de carne dos EUA, União Europeia e Austrália em resposta às sanções econômicas impostas por causa da ação de Vladimir Putin na Ucrânia. PELA ÓTICA DOS FUNDOS GLOBAIS Marina Silva está sendo tratada por muitos investidores internacionais como uma espécie de Narendra Modi, o primeiro-ministro da Índia, que tomou posse há quatro meses. Ou seja, alguém sobre quem os investidores tinham muitas interrogações, mas que encarnava uma mudança necessária. Lá, a bolsa de valores subiu 20% na reta final do processo eleitoral e 15% logo depois do anúncio da vitória de Modi. • INTERNACIONAL COM O PERONISMO Duda Mendonça será o marqueteiro de Sérgio Urribarri, governador da província de Entre Rios, um dos preferidos de Cristina Kirchner à sua sucessão, em 2015. Urribarri está contratando Duda para tocar a campanha interna, dentro do Partido Justicialista, que escolherá o candidato à Presidência. Na Argentina, as prévias são abertas a todos os eleitores, mesmo os não filiados ao partido. • FUTEBOL BOLA QUADRADA A ressaca da Copa ainda é pesada: no mercado publicitário ninguém quer saber de jogador de futebol para garoto-propaganda de nada. • LIVROS CAMINHO INVERSO A trilogia After, escrita pela americana Anna Todd, superou em agosto a marca de 1 bilhão de leituras na plataforma eletrônica de publicação Wattpad. Seguindo uma tendência de mercado, os três volumes também serão lançados agora em livro físico nos EUA e no Brasil. Aqui, o primeiro sai em novembro pela editora Paralela. GENTE VISTA PARA O MAR Patrícia Poeta está fechando a compra de um apartamento na Avenida Vieira Souto, defronte ao mar de Ipanema, por 23 milhões de reais. O atual proprietário é o empresário Georges Sadala, o Gê, que teve há dois anos um rápido instante de notoriedade quando foram divulgadas fotos de uma festa de amigos de Sérgio Cabral em Paris em que todos — Sadala inclusive — dançavam alegremente com guardanapo na cabeça. 2#8 VEJA ESSA EDITADO POR RINALDO GAMA “O Erasmo Carlos sozinho pensa diferente do Erasmo com o Roberto. O Erasmo, quando pensa sozinho, ele viaja muito, cara.” – ERASMO CARLOS, compositor e cantor, no UOL; ele disse ainda que "nunca vê" Roberto Carlos, com quem não compõe há oito anos. “Não existem muitas pessoas que podem dizer que há um verbo criado a partir de seu nome. Mas Paulo Maluf pode. 'Malufar' significa roubar dinheiro público.” - TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL, em campanha contra a corrupção; nela, Maluf - que teve a candidatura à reeleição para deputado federal indeferida pelo TRE, por ser "ficha-suja", mas apresentou recurso que será julgado pelo TSE - é chamado de "Sr. Propinas". “Se eu quiser, ocupo Kiev em duas semanas.” - VLADIMIR PUTIN, presidente da Rússia, em conversa telefônica com o presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, segundo revelou na semana passada o diário italiano La Repubblica; a assessoria de Putin disse que a frase foi tirada de contexto. “Acho que morro antes de me aposentar.” - AL PACINO, ator americano, falando ao jornal O Globo, durante o 71º Festival de Veneza, no qual foram incluídos dois de seus trabalhos mais recentes, Manglehorn, de David Gordon Green, e The Humbling, de Barry Levinson. “Não sou metódico, só tenho pequenas obsessões.” - AMYR KLINK, navegador, que há trinta anos cruzou o Atlântico a remo, em O Estado de S. Paulo. “Juntaram-se duas potências.” - DIEGO ARMANDO MARADONA ex-craque e ex-técnico da seleção argentina de futebol, referindo-se a si mesmo e ao papa Francisco, após encontrá-lo no Vaticano; o ex-jogador, no entanto, surpreendentemente, declarou que o pontífice é "ainda maior" do que ele. “Quando assisto ao VT do jogo, eu me vejo em campo, mas meu corpo não tem a sensação de ter estado lá.” - CHRISTOPH KRAMER, volante alemão que teve apagada sua lembrança da partida final da Copa, entre seu país e a Argentina, após a lesão decorrente de um choque com o zagueiro Garay que o tirou do gramado aos 31 minutos do primeiro tempo. “Chávez nosso que estais no céu, na terra, no mar e em nós, os delegados. Santificado seja teu nome. Venha a nós teu legado para levá-lo aos povos daqui e de lá. Dai-nos hoje tua luz para que nos guie a cada dia e não nos deixes cair na tentação do capitalismo.” - TRECHO DA ORAÇÃO DO DELEGADO, versão chavista, como se vê, do pai-nosso, lançada durante evento do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV); mais de 80% dos venezuelanos são católicos. EPÍGRAFE DA SEMANA A pretexto dos debates políticos e campanhas eleitorais “Aquele que se sabe profundo esforça-se por ser claro; aquele que gostaria de parecer profundo à multidão esforça-se por ser obscuro.” - FRIEDRICH NIETZSCHE, filósofo alemão (1844-1900). _______________________________________ 3# BRASIL 10.9.14 3#1 O DELATOR ENTREGA OS NOMES 3#2 CONEXÃO URUGUAI 3#3 CONTADORA É AMEAÇADA 3#4 EU TE AJUDO E VOCÊ ME AJUDA 3#5 MARINA SOB FOGO CRUZADO 3#1 O DELATOR ENTREGA OS NOMES O ex-diretor Paulo Roberto Costa lista mais de trinta políticos envolvidos com a corrupção na Petrobras e põe o governo no centro de um escândalo de proporções idênticas às do mensalão. RODRIGO RANGEL O engenheiro Paulo Roberto Costa já foi um dos homens mais poderosos da República. Indicado pelo mensaleiro José Janene (PP), ele ocupou a diretoria de Abastecimento e refino da Petrobras entre 2004 e 2012. Nesse período, passaram por seu gabinete decisões sobre aluguel de plataformas e navios, manutenção de gasodutos e construção de refinarias — e, junto com elas, interesses bilionários que despertavam a atenção de governos, parlamentares e empreiteiras. Paulinho, como era chamado pelo ex-presidente Lula, soube servir a tantos e tão variados senhores que, como de costume, logo passou a ser cortejado por eles. No Congresso, PT, PMDB e PP disputavam sua paternidade, tratavam-no como um afilhado dileto e elogiavam sua eficiência. Paulo Roberto era um exemplo a ser seguido, segundo seus padrinhos políticos. Foi assim até março deste ano, quando a Polícia Federal prendeu o ex-diretor sob a acusação de participar de um megaesquema de lavagem de dinheiro comandado pelo doleiro Alberto Youssef. Antes festejado, Paulo Roberto passou a assombrar os partidos, transformando-se num fantasma capaz de implodir candidaturas de relevo e jogar o governo no centro de um escândalo de corrupção de proporções semelhantes às do mensalão. E isso aconteceu. As investigações já haviam revelado a existência de uma ampla rede de corrupção na Petrobras envolvendo funcionários da empresa, grandes empreiteiras, doleiros e políticos importantes. Funcionava assim: para terem acesso aos milionários contratos da estatal, as empreiteiras eram instadas a reverter parte de seus lucros aos cofres da organização. O dinheiro, depois de devidamente lavado por doleiros, era distribuído entre os políticos e os partidos da chamada base de sustentação do governo. Apesar das sólidas evidências que surgiram, faltava o elo mais importante da cadeia: a lista dos beneficiados, os corruptos, o nome de quem recebia ou se locupletava de alguma forma do esquema de arrecadação de propina. Não falta mais. Por medo de ser apontado como o único e principal responsável pelo esquema de corrupção que superfaturou e desviou recursos de projetos da Petrobras, Paulo Roberto topou negociar os termos de um acordo de delação premiada, instrumento legal pelo qual acusados têm direito à redução de pena ou até mesmo ao perdão judicial se colaborarem com as investigações, e identificou aqueles que seriam seus mais influentes parceiros. Uma série de depoimentos do ex-diretor à Polícia Federal explica essa reviravolta e ajuda a esclarecer por que Paulo Roberto era tão admirado quando despachava na Petrobras e, agora, já atrás das grades, é tão temido na Praça dos Três Poderes. Colhidos desde o dia 29 de agosto, eles renderam mais de quarenta horas de conversas gravadas e, mais importante, deram aos delegados e procuradores um cardápio de políticos que, segundo o ex-diretor, se refestelaram nos poços bilionários da Petrobras. Aos investigadores, ele disse que três governadores, seis senadores, um ministro de Estado e pelo menos 25 deputados federais embolsaram ou tiraram proveito de parte do dinheiro roubado dos cofres da estatal. A alta octanagem das declarações provocou, de imediato, uma mudança na estratégia de investigação. Por envolver políticos detentores de foro privilegiado, que só podem ser processados nos tribunais superiores, o assunto passou a ser acompanhado pelo gabinete do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, e pelo Supremo Tribunal Federal (veja o quadro na pág. 65). Nos últimos dias, VEJA obteve detalhes de uma parte significativa das declarações prestadas pelo ex-diretor. Paulo Roberto acusa uma verdadeira constelação de participar do esquema de corrupção. É o caso dos presidentes da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), e do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), além do ministro de Minas e Energia, Edison Lobão (PMDB-MA). Entre os senadores estão Ciro Nogueira (PI), presidente nacional do PP, e Romero Jucá (PMDB-RR), o eterno líder de qualquer governo. Já no grupo de deputados figuram o petista Cândido Vaccarezza (SP) e João Pizzolatti (SC), um dos mais ativos integrantes da bancada do PP na Casa. O ex-ministro das Cidades e ex-deputado Mário Negromonte, também do PP, é outro citado por Paulo Roberto como destinatário da propina. Da lista de três governadores citados pelo ex-diretor, todos são de estados onde a Petrobras tem grandes projetos em curso: Sérgio Cabral (PMDB), ex-governador do Rio, Roseana Sarney (PMDB), atual governadora do Maranhão, e Eduardo Campos (PSB), ex-governador de Pernambuco e ex-candidato à Presidência da República, morto no mês passado em um acidente aéreo. Pelo acordo, Paulo Roberto se comprometeu a detalhar o envolvimento de cada um dos políticos no esquema. Até por isso, estima-se que, para esgotar o que ele tem a dizer, pelo menos mais três semanas de depoimentos serão necessárias. Sobre o PT, ele afirmou que o operador encarregado de fazer a ponte com o esquema era o tesoureiro nacional do partido, João Vaccari Neto, cujo nome já havia aparecido nas investigações como personagem de negócios suspeitos do doleiro Alberto Youssef. Ao elaborar a lista de políticos e partidos envolvidos e empreiteiras que participavam do esquema (veja reportagem na pág, 70) e descrever a maneira como a propina era transposta de um lado para outro por vias clandestinas, Paulo Roberto Costa vem ajudando os investigadores a montar um quebra-cabeça cuja imagem, ao final, lembrará em muito outro grande escândalo recente da política: o esquema funcionou a pleno vapor nos últimos três governos do PT e tinha como objetivo manter intacta e fiel a base de sustentação no Congresso Nacional. Ao irrigar o caixa das siglas aliadas e o bolso de seus integrantes, a engrenagem ajudava a manter firme as alianças. Qualquer semelhança com o mensalão, portanto, não é mera coincidência — com a diferença de que, agora, as cifras giram na casa dos bilhões. Nas declarações que forneceu à polícia, Paulo Roberto não mede esforços para mostrar quanto era poderoso na estrutura criminosa. Já nas primeiras oitivas, ele fez questão de dizer que, na época em que era diretor da Petrobras, conversava frequentemente com o então presidente Lula — e costumava tratar com ele de assuntos da companhia. "Por várias vezes, tratei diretamente com o presidente Lula", declarou, numa das primeiras conversas com os investigadores. Da caixa de segredos de Paulo Roberto ainda há muito mais a sair. Ele se comprometeu a detalhar o conteúdo das conversas com o ex-presidente. Os depoimentos têm sido colhidos por temas — e um deles, já programado, servirá para esclarecer um assunto que virou emblema da barafunda em que a Petrobras foi metida: a controversa compra da refinaria de Pasadena, no Estado americano do Texas. A estatal brasileira, como se sabe, gastou 1,2 bilhão de dólares num complexo que, pouco antes, havia sido arrematado por 42,5 milhões. Junto com Nestor Cerveró, seu colega de diretoria, Paulo Roberto foi um dos responsáveis por costurar o negócio. Em conversas preliminares, o agora delator admitiu aquilo de que já se desconfiava: segundo ele, a operação de aquisição de Pasadena também serviu para abastecer o caixa de partidos e para pagar propina a alguns dos envolvidos na transação. Nos próximos dias, Paulo Roberto prestará um depoimento específico sobre o assunto, em que deverá contar como o negócio foi engendrado e como o dinheiro pago a mais pela Petrobras foi parar em mãos erradas. O delegado encarregado do inquérito sobre Pasadena, que corre em Brasília, irá a Curitiba especialmente para ouvir o ex-diretor. Até meados da semana passada, ele não havia feito nenhuma acusação formal contra a presidente e candidata à reeleição Dilma Rousseff, mas, sempre que havia alguma menção a ela, demonstrava mágoa profunda, e lembrava que na base das operações estão os políticos que apoiam o governo. Aos mais próximos, por mais de uma vez ele se queixou da postura da petista. O argumento sempre foi o mesmo: ela ataca publicamente ex-diretores da Petrobras sem considerar que, politicamente, era beneficiária das engrenagens clandestinas que funcionavam na companhia, uma vez que o dinheiro sujo proveniente de lá ajudava a bancar a base de sustentação do governo no Congresso. Por que o ex-diretor resolveu contar o que sabe? A pessoas próximas ele confidenciou que não gostaria de repetir a história de Marcos Valério, o operador do mensalão, condenado a quarenta anos de cadeia enquanto os cabeças do esquema já estão à beira de deixar a prisão. A saída, então, foi partir para a delação premiada. O primeiro depoimento foi prestado na sexta-feira 29 de agosto. Desde então, as sessões para ouvi-lo têm sido diárias. No prédio da Polícia Federal em Curitiba, Paulo Roberto Costa vem sendo interrogado por delegados e procuradores. Os depoimentos são registrados em vídeo — na metade da semana passada, já havia pelo menos 42 horas de gravação. Ao final de cada sessão, todo o material é lacrado. Os arquivos são criptografados para evitar vazamentos. Tamanho cuidado não é por acaso: as revelações que emergem dos depoimentos de Paulo Roberto são explosivas e têm potencial para causar um terremoto político em Brasília. Já nos primeiros depoimentos, ele esmiuçou a lógica que predominava na assinatura dos contratos bilionários da Petrobras. Admitiu, pela primeira vez, que as empreiteiras contratadas pela companhia tinham, obrigatoriamente, de contribuir para um caixa paralelo cujo destino final eram partidos e políticos de diferentes legendas da base aliada do governo. Em outras palavras, Paulo Roberto confirmou a existência de um megaesquema de cobrança de propina que funcionava no coração da maior companhia da América Latina — e confessou que a sua poderosa diretoria estava a serviço da engrenagem criminosa. O esquema se estendia, segundo ele, a outras diretorias da Petrobras, e cada partido tinha seus encarregados de fazer a interligação entre os negócios e a política. O ex-diretor citou o PP, o PMDB e o PT como os principais beneficiários do propinoduto. Pouco antes de topar a delação premiada, Paulo Roberto fez chegar a seus velhos conhecidos uma declaração assustadora, especialmente para aqueles cujos nomes estarão nas urnas nas eleições de outubro. "Se eu falar, não vai ter eleição", disse. Perguntado pelos investigadores sobre o que queria dizer com a declaração, fez um pequeno reparo: "Pode até ter eleição, mas o estrago será grande". E começou a contar o que sabia. SOB O GOVERNO DELES Segundo Paulo Roberto Costa, o esquema na Petrobras funcionou ao longo dos dois governos Lula e adentrou no governo Dilma Rousseff. Assim como no mensalão, a distribuição de dinheiro servia para garantir que os partidos aliados continuassem a apoiar o Palácio do Planalto no Congresso Nacional. Paulo Roberto diz que, por várias vezes, despachou diretamente com Lula. Procurado, o ex-presidente não se manifestou. Até o fechamento desta edição, a presidente Dilma Rousseff também não havia comentado o assunto. *Foi o ex-presidente Lula quem alojou Paulo Roberto Costa na poderosa diretoria de Abastecimento da Petrobras. O ex-diretor, indicado inicialmente pelo PP, continuou no cargo nos dois primeiros anos do governo da presidente Dilma Rousseff* O MINISTRO Titular da pasta de Minas e Energia, o peemedebista Edison Lobão é citado por Paulo Roberto como um dos beneficiários do esquema montado na Petrobras. Por meio da assessoria do ministério, Lobão disse que sua relação com o ex-diretor sempre foi institucional. Ele nega ter recebido dinheiro de Paulo Roberto Costa. * O maranhense Edison Lobão assumiu o Ministério de Minas e Energia ainda no governo Lula e foi mantido por Dilma*. O TESOUREIRO Paulo Roberto Costa disse à polícia e ao MP que João Vaccari Neto, secretário nacional de finanças do PT, era quem fazia a ponte entre o partido e o propinoduto da Petrobras. Em nota enviada a VEJA, João Vaccari afirmou que "nunca encontrou o senhor Costa para tratar de doação financeira ou mesmo de qualquer outro assunto relativo ao PT". * Não é a primeira vez que o petista João Vaccari Neto, sucessor do notório Delúbio Soares, tem o nome envolvido em escândalos de corrupção*. OS SENADORES O presidente do Senado, Renan Calheiros, não se manifestou sobre a acusação de Paulo Roberto Costa. O senador Ciro Nogueira, presidente do PP, disse que conheceu Paulo Roberto em eventos do partido e negou ter recebido dinheiro: "Assumi o PP em abril de 2013, quando Paulo Roberto já não era mais diretor". Jucá nega ter se beneficiado do esquema: "Só tinha contato com o Paulo Roberto em solenidades. Nunca tive intimidade para conversar sobre arrecadação". * Renan Calheiros (PMDB-AL), Ciro Nogueira (PP-PI) e Romero Jucá (PMDB-RR): o trio integra a lista de seis senadores que, segundo o ex-diretor Paulo Roberto Costa, se beneficiaram do esquema de corrupção incrustado na Petrobras*. OS DEPUTADOS "Nunca pedi nem recebi do Paulo Roberto nenhum tipo de ajuda. A Petrobras é petista", afirmou Henrique Alves. "Só estive com ele umas duas vezes", disse Cândido Vaccarezza. Negromonte e Pizzolatti não responderam. * Em sentido horário, Mário Negromonte (PP-BA), que trocou o Congresso por uma vaga no Tribunal de Contas dos Municípios baiano, e os deputados João Pizzolatti (PP-SC), Cândido Vaccarezza (PT-SP) e Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), presidente da Câmara*. OS GOVERNADORES Cabral diz que sua relação com Paulo Roberto sempre foi institucional e que nunca recebeu dinheiro dele. A governadora Roseana Sarney diz o mesmo. *Sérgio Cabral (PMDB), que deixou o governo do Rio em abril, Roseana Sarney (PMDB), em fim de mandato no Maranhão, e o ex-governador de Pernambuco Eduardo Campos, morto em acidente aéreo no mês passado: em comum entre os três citados por Paulo Roberto, o fato de seus estados abrigarem grandes obras da Petrobras*. EM BUSCA DOS INALCANÇÁVEIS O instrumento da delação premiada, se bem aplicado, pode demolir organizações e punir criminosos que se mantêm inalcançáveis pelos métodos convencionais de investigação. Mal usado, pode servir aos bandidos como arma para atingir inimigos ou destruir reputações. Na década de 80, a Itália era refém do crime organizado. As máfias controlavam empresas e tinham representantes infiltrados nos mais altos escalões da política. A oferta de perdão judicial aos delatores ajudou a desmontar a gigantesca estrutura que subjugava o Estado, Uma experiência semelhante será testada com Paulo Roberto Costa. O ex-diretor se ofereceu para fazer o acordo de delação premiada. Os termos precisam ser chancelados por um juiz. Os responsáveis pelo caso entenderam que o melhor caminho era levá-lo diretamente ao Supremo Tribunal Federal, dado o grande número de acusados com foro privilegiado. A tarefa caberá ao ministro Teori Zavascki, que também deverá relatar eventuais processos decorrentes da investigação. Pelo acordo, Paulo Roberto se obriga a contar o que sabe, identificar seus parceiros de crime. Se as informações prestadas forem consideradas úteis, no fim do processo ele poderá ser beneficiado com uma redução de pena ou até mesmo o perdão judicial. Ao longo da delação, além de ouvirem o que o réu tem a dizer, os investigadores se encarregam de cruzar as informações com outras provas do processo. A ideia é que, no final, eles tenham elementos suficientes para levar todos os envolvidos a julgamento. Paulo Roberto também se comprometeu a abrir mão dos bens que acumulou com dinheiro desviado e a pagar uma multa. Enquanto durar a delação, ele ficará preso em uma cela isolada, mas pode ser libertado tão logo seja encerrada a fase de depoimentos. 3#2 CONEXÃO URUGUAI Documentos revelam a nebulosa história da compra de um apartamento de 7,5 milhões de reais em que Nestor Cerveró morou durante cinco anos. THIAGO PRADO O ex-diretor internacional da Petrobras Nestor Cerveró tem se revelado um especialista em omissões. Em 2006, apresentou ao conselho de administração da empresa um resumo referente à compra da refinaria de Pasadena, nos EUA, sem as cláusulas que beneficiavam a Astra Oil, a sócia belga no negócio. No mesmo período em que se arrastaram a bilionária compra e o posterior litígio entre a Petrobras e sua sócia, Cerveró trabalhou também para não dar transparência a outra transação — desta vez imobiliária. VEJA teve acesso a documentos que detalham a compra de um apartamento avaliado hoje em 7,5 milhões de reais na Zona Sul do Rio de Janeiro. Trata-se do local onde Cerveró e sua mulher moraram durante os últimos cinco anos. Não foi um negócio usual de aquisição de um imóvel. A transação envolveu a abertura de uma empresa offshore no Uruguai, o uso de um laranja para representá-la no Brasil e a criação de uma sede-fantasma em uma cidade litorânea do Rio de Janeiro. Todo esse aparato para a compra do apartamento ocorreu quase simultaneamente a uma série de gastos milionários da estatal com a transação de Pasadena e a contratação de escritórios de advocacia. O nebuloso enredo tem início em 2008 com a abertura em Montevidéu da Jolmey Sociedad Anônima. Oficialmente, ela está em nome de um fundo de investimentos, representado pelo advogado uruguaio Oscar Rachetti. No dia 28 de agosto daquele ano, o advogado Marcelo Oliveira Mello recebeu uma procuração para representar e administrar a empresa no Brasil. Como Rachetti chegou a Mello? O advogado brasileiro afirma apenas que foi procurado por um escritório de advocacia uruguaio que representava investidores — e aceitou a tarefa. Mello, numa das inúmeras coincidências dessa história, conhece Cerveró de longa data. Tem no currículo uma passagem pelo departamento jurídico da Braspetro, extinta subsidiária da Petrobras, mais tarde incorporada pela área internacional da estatal, na qual Cerveró deu as cartas entre 2003 e 2008. Depois, foi sócio do escritório de advocacia Tauil, Chequer & Mello, que é parceiro do Thompson & Knight, responsável pela defesa da Petrobras em processos que envolvem Pasadena. Em 2008, a estatal chegou a gastar 7,9 milhões de dólares com a sua defesa no litígio com a Astra Oil. Após a contenda com os belgas, uma decisão judicial obrigou a Petrobras a comprar os 50% da Astra. Foi justamente um pouco depois desse festival de gastos da estatal — mais exatamente em março de 2009 — que a Jolmey resolveu apostar no mercado imobiliário carioca. A Jolmey comprou por 1,5 milhão de reais, de acordo com a escritura, um apartamento na Rua Nascimento Silva, em Ipanema — o imóvel é avaliado pela prefeitura do Rio de Janeiro em 7,5 milhões de reais. Três meses depois (olha a coincidência dando as caras de novo nesta história imobiliária), um contrato de locação assinado por Mello em nome da offshore foi firmado com Patrícia, a mulher de Cerveró. Foi, segundo os envolvidos, um lance do acaso. Patrícia estava em busca de um apartamento, e a imobiliária ofertou justamente aquele de propriedade da Jolmey. "Repassei para a administradora encontrar alguém. Foi coincidência a Patrícia alugar", afirma o advogado. O casal não se encantou à toa com o imóvel. De fato, era um belo apartamento. Por 3.650 reais mensais, os dois passaram a usufruir um dúplex não muito distante da Praia de Ipanema com cerca de 300 metros quadrados e piscina. Mello tem na ponta da língua uma justificativa para a compra do imóvel pela Jolmey: "O objetivo era criar um portfólio de investimentos residenciais para executivos empresariais". O problema é que, desde 2008, a offshore fez um único investimento imobiliário no Brasil — justamente o apartamento ocupado pela família Cerveró. Recentemente, o ex-diretor da área internacional da Petrobras e seus parceiros começaram uma operação para apagar, ou ao menos embaralhar, as digitais da Jolmey no Brasil. Há cinco meses, quando o escândalo de corrupção na estatal estava no auge, Mello fez uma alteração contratual na offshore. Desligou-se da sociedade e mudou a sede brasileira da empresa do Centro do Rio para a cidade de Saquarema. No endereço, está uma casa abandonada, onde nenhum proprietário foi visto recentemente, de acordo com afirmação dos vizinhos. Ao dizer adeus à Jolmey, Mello entregou a sua cota a um certo Selson Ferreira. VEJA também localizou Ferreira. Ele trabalha como auxiliar administrativo em um escritório de contabilidade em Niterói. Nervoso, inicialmente negou que tivesse alguma participação na empresa. Confrontado com documentos, pediu auxílio ao chefe, Armando Bento. Sua tentativa de explicação não fica de pé. Disse Bento: "O Marcelo (Mello) pediu e nós fizemos. Mas você deveria falar com ele. Te peço para não me procurar mais". Assim, não esclareceu por que um funcionário seu assumiu a representação de uma empresa uruguaia criada apenas para comprar o apartamento em que os Cerveró passaram a morar. No mês passado, o ex-diretor internacional da Petrobras e sua mulher deixaram o apartamento da Rua Nascimento Silva. Edson Ribeiro, advogado de Cerveró, afirma que a mudança ocorreu porque seu cliente precisava economizar. "Ele está com pouco dinheiro desde que saiu da Petrobras e deixou de receber salário de executivo", diz. Não foi o primeiro movimento de Cerveró para se desvincular do seu patrimônio. Em junho, buscando fugir do bloqueio de bens pedido pelo Tribunal de Contas da União (TCU), doou três apartamentos aos dois filhos. Até o momento, o maior revés para os diretores que participaram da compra de Pasadena foi uma decisão tomada em julho pelo TCU. O tribunal condenou onze diretores da Petrobras a devolver 792 milhões de dólares por prejuízos causados pelo negócio. Cerveró é acusado de fazer um relatório falho e incompleto para o Conselho de Administração da Petrobras, ao qual cabia aprovar a compra da refinaria. Na próxima quarta-feira, 10, Cerveró falará a deputados e senadores na CPI mista da Petrobras. Será o terceiro depoimento dele ao Congresso sobre o caso Pasadena. Trata-se de uma excelente oportunidade para entender por que a compra do apartamento em que o ex-diretor internacional da Petrobras morou durante cinco anos teve de ser tão camuflada. Com a palavra, mais uma vez, Cerveró. 3#3 CONTADORA É AMEAÇADA Testemunha-chave da polícia, Meire Poza foi procurada por um homem que se apresentou como advogado das empreiteiras envolvidas com Alberto Youssef. A conversa foi gravada. ROBSON BONIN As máfias são sociedades secretas que crescem à sombra do Estado, nutrem-se do crime, espalham tentáculos pelas instituições oficiais e se protegem empregando a violência. À medida que avançam as investigações da Polícia Federal sobre os negócios criminosos do doleiro Alberto Youssef, tornam-se mais evidentes os sinais de que uma organização ilegal se instalou no coração da maior estatal brasileira, a Petrobras. Um esquema que envolve políticos, partidos e algumas das maiores empresas do país. Há dois meses, a contadora Meire Poza colocou-se na linha de fogo entre os criminosos e a polícia. Ela, que comandou a engenharia financeira da quadrilha por quase quatro anos, que sabe quem pagou, quem recebeu, quem é corrupto, quem é corruptor, decidiu mudar de lado e colaborar com as investigações. A máfia, porém, não costuma perdoar traição. Há duas semanas, Meire entregou à Polícia Federal uma gravação que pode criar sérios problemas a quatro grandes empreiteiras do país. Nela, um homem identificado como Edson tenta convencer a contadora a aceitar os serviços de um escritório de advocacia contratado pelas empreiteiras envolvidas no escândalo de desvio de dinheiro de obras da Petrobras. O encontro aconteceu na noite de 22 de julho deste ano, em um shopping de São Paulo. A gravação não deixa dúvidas sobre as más intenções do grupo, claramente incomodado com o avanço das investigações da polícia, e muito preocupado com a colaboração de Meire. A intenção é intimidá-la. Edson, um suposto advogado, se diz representante das empreiteiras Camargo Corrêa, OAS, UTC e Constran. A conversa, gravada pela contadora, começa descontraída, amigável, e vai evoluindo para a ameaça. Prestativo, ele se põe à disposição para ajudar, dar apoio jurídico, mas a oferta é recusada. Em um tom de voz linear, o emissário passa a revelar os verdadeiros propósitos do encontro: "Sabemos que tem uma filha, que são somente vocês duas", diz. No mesmo tom linear, lembra que Meire pertence a um "grupo fechado" e que, como pessoa de confiança de Alberto Youssef, não pode sair desse grupo ou recusar a ajuda de seus clientes. E vai ao ponto central do problema: "Dona Meire, o importante é não falar demais! De repente, uma palavra mal colocada pode ser perigoso, pode ser prejudicial". Meire tenta se esquivar das ameaças, diz que está começando a não gostar do rumo da conversa, mas o advogado é ainda mais direto: "A senhora pode, sem querer, ir contra grandes empresas, políticos, construtoras. As maiores do país, a senhora entendeu?". Percebendo um sinal de nervosismo na contadora, ele avança, pergunta se Meire acha que ainda tem alguma coisa a acrescentar para a polícia e que tipo de acordo ela pretende fazer. Ela diz que não sabe como procederá. E o advogado vai direto ao ponto mais uma vez: "A gente não pode deixar que a senhora não aceite essa ajuda". Diante da pressão, Meire finalmente reage. Afirma que se sente ameaçada, que não quer ajuda das empreiteiras e encerra a conversa com um recado: "O senhor provavelmente vai estar lá com os seus clientes, com a Camargo (Corrêa), com a UTC, com a Constran, com a OAS... Manda todo mundo ir tomar...". A polícia ainda tenta descobrir a verdadeira identidade de Edson. Meire Poza contou que conheceu o porta-voz das ameaças no escritório do advogado Carlos Alberto da Costa Silva, segundo ela o responsável por coordenar uma equipe de advogados contratados pelas empreiteiras. Procurado, ele confirma ter recebido Meire Poza em seu escritório para tratar da Operação Lava-Jato. "Essa moça me procurou para pedir ajuda. Ia prestar depoimento à polícia e queria aconselhamento jurídico. A única coisa que fiz foi indicar um colega para acompanhá-la." Costa Silva foi preso na Operação Anaconda, em 2003, acusado de participar de um esquema de venda de sentenças judiciais em São Paulo. E o tal Edson? "Não conheço, nunca ouvi falar." A memória, ao que parece, não é o ponto forte do advogado. Meire Poza contou que foi apresentada a Costa Silva depois de procurar as empreiteiras para cobrar uma dívida de 500.000 reais que elas tinham com Alberto Youssef antes da prisão do doleiro. As empreiteiras prometeram saldá-la, mas queriam que a contadora se comprometesse a manter silêncio sobre as relações com o grupo — e indicaram Costa Silva para cuidar do acordo. "Adoraria atuar por esses grandes clientes, mas infelizmente não atuo." Em nota encaminhada a VEJA, a UTC, que também controla a Constran, confirmou que o escritório de Costa Silva, ao contrário do que ele disse, presta, sim, serviços jurídicos ao grupo. Se houve a ameaça, a empresa desconhece e garante que nada teve a ver com isso. A Camargo Corrêa negou qualquer envolvimento com o advogado ou com a contadora. A OAS não se manifestou. O cerco não se restringiu à ameaça. Meire tomou a decisão de entregar a gravação à polícia depois de descobrir que um de seus e-mails fora invadido duas semanas atrás. "Quem acessou meus dados pessoais tomou o cuidado de modificar o número de celular da conta. Acho que fizeram isso para que eu soubesse da invasão. Foi um recado de que eles têm meus dados pessoais e sabem onde eu moro. Fiquei muito assustada", disse a contadora. Desde que virou testemunha da Polícia Federal nas investigações sobre a quadrilha de Youssef, Meire Poza tornou-se um perigo real para os envolvidos, principalmente os corruptores. Ciente disso, ela avisa que já buscou proteção policial. AOS MOLDES DA MÁFIA Meire Poza gravou a conversa entre ela e um advogado que se identificou como Edson. A APROXIMAÇÃO "SABEMOS QUE TEM UMA FILHA" Meire - O que o traz aqui tão longe, doutor? Edson - Então, dona Meire. Nós estamos preocupados com a senhora. Meire - Comigo, vocês estão preocupados? Qual o motivo, doutor, para vocês estarem preocupados comigo? Edson - Não estamos entendendo o motivo pelo qual a senhora recusa a nossa ajuda. Meire - Doutor, sinceramente, eu também não estou entendendo o motivo de vocês insistirem tanto em me ajudar. Edson - Veja só: estamos preocupados com a senhora, com a sua situação, afinal, a senhora é a única mulher dentro desse processo todo. Meire - Não. Tem a Nelma (Kodama, doleira). Edson - Sim, sabemos que tem uma filha, que são somente vocês duas, e é por isso que a gente insiste nessa ajuda. Meire - Doutor, eu entendi. Agradeço muito a preocupação de vocês, mas eu vou me sentir muito mais confortável se eu ficar com o meu advogado, que eu conheço há anos, é da família, está há muito tempo comigo, não vai me cobrar. O MEDO "QUE TIPO DE ACORDO A SENHORA PENSA EM FAZER?" Meire - Doutor, quisera eu ter do Beto toda a confiança que vocês acham que ele depositava em mim. Edson — Diz uma coisa: que tipo de acordo a senhora pensa em fazer, dona Meire? Meire - Eu não sei. Edson - Acha que ainda tem alguma coisa a acrescentar para a polícia? Meire - Eu não sei, doutor. Nunca se sabe. Eu não sei se vou fazer acordo. Vocês estão falando de acordo. Foi o doutor Carlos que falou para fazer acordo. Depois, ele acha que eu não devo fazer acordo. Depois, vem o doutor Aloisio e fala que eu não posso fazer acordo. Eu não sei. Eu nem fui intimada nem prestei depoimento, não sei nem como funciona isso. A MAFIA "A SENHORA FAZ PARTE DE UM GRUPO FECHADO DE PESSOAS" Edson - Dona Meire, eu quero que a senhora entenda que a senhora faz parte de um grupo fechado de pessoas. Meire - Imagina! Edson - Faz parte, faz parte. Faz, faz, faz, sim! Meire - Nem no grupo da igreja. Edson - Sabe, essas pessoas se ajudam entre si. São poucas pessoas privilegiadas que se ajudam. Meire - É, mas eu não estou nesse grupo. Eu posso garantir que não estou nesse grupo. Edson - E nós nos ocupamos integralmente desse caso. Além do que, a senhora faz parte de um dos principais núcleos. Então, a gente não pode deixar que a senhora não aceite essa ajuda. A AMEAÇA "O IMPORTANTE É NÃO FALAR DEMAIS" Edson - A senhora entrou num grupo... Meire - Não entrei em grupo nenhum. Edson - E agora não dá para sair assim, sabe? Ninguém quer ser prejudicado nesse momento. Meire - Estou começando a não gostar do rumo dessa conversa. Edson - É verdade, é verdade. De repente, uma palavra mal colocada pode ser perigoso, pode ser prejudicial. Meire - Eu não to gostando do rumo que você está dando a essa conversa. Edson — Dona Meire, o importante é não falar demais! Meire - É a segunda vez que a gente fala, e estou com a mesma sensação da primeira vez que nós falamos. Eu to achando que vocês estão me ameaçando. OS ENVOLVIDOS "GRANDES EMPRESAS, POLÍTICOS, CONSTRUTORAS" Edson - Não, não leve por esse lado, não. É só uma questão de alertar para cuidados que devem ser tomados, a senhora entende? Meire - É, mas eu não to gostando do rumo que está tomando. Edson — A senhora pode, sem querer, ir contra grandes empresas, políticos, construtoras. As maiores do país, a senhora entendeu? Meire - Eu não entendi, porque eu não sei o que vocês acham que eu sei, doutor. Edson - É por isso que uma palavra mal colocada, errada, pode prejudicar. Por isso a gente insiste na ajuda, que é para orientar. Meire - Doutor, eu entendi... Deixa eu te falar uma coisa. Não põe a mão em mim que eu não gosto! Edson - Desculpa. Meire -Tem três coisas que me irritam profundamente e até agora você fez as três: você falou da minha filha, vocês estão me pressionando, estão me ameaçando. Edson - Não, não existe pressão. Desculpa, dona Meire. Não pense assim. Meire - Doutor, essa é nossa última conversa. Vamos parar por aqui que está melhor. Edson - Não, não, vamos com calma, toma mais uma água. Meire - Eu não quero a ajuda de vocês. Eu já falei que eu não quero dinheiro. A única coisa que eu quero é esquecer tudo isso e tocar a minha vida. OS CORRUPTORES "MANDA TODO MUNDO IR TOMAR NO..." Edson - Dona Meire, a senhora está equivocada. Eu tenho certeza de que a senhora vai mudar de ideia! Meire - Não vou mudar de ideia. Eu quero que você diga isso para os seus clientes, que eu agradeço muito e que eu dispenso. (...) Edson - Desculpa, não era essa a intenção. Meire - Antes que eu me esqueça, o senhor vai me fazer uma outra gentileza: o senhor provavelmente vai estar lá com os seus clientes, com a Camargo (Corrêa), com a UTC, com a Constran, com a OAS... Edson - Pois não, pois não. O.k. Meire - Manda todo mundo ir tomar no...! Edson - Não, não faz isso 3#4 EU TE AJUDO E VOCÊ ME AJUDA O Tribunal de Contas da União vai investigar troca de favores entre o ministro Walton Alencar e o Palácio do Planalto. ROBSON BONIN E HUGO MARQUES Em sua última edição, VEJA revelou documentos que mostram que o ministro Walton Alencar converteu seu gabinete numa espécie de posto avançado do Palácio do Planalto dentro do Tribunal de Contas da União (TCU). Nomeado para fiscalizar as ações do Poder Executivo, o ministro aparece num conjunto de mensagens interceptadas pela Polícia Federal fazendo exatamente o oposto do que a liturgia do seu cargo recomenda. Walton servia aos interesses do governo com raro afinco, repassando informações privilegiadas à então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, e seu braço-direito na pasta, Erenice Guerra. Exposta com riqueza de detalhes, a troca de favores entre Walton e a Casa Civil levou entidades respeitadas a cobrar providências do TCU, que, na semana passada, anunciou a abertura de um processo para investigar o ministro. Trocadas durante o segundo mandato do presidente Lula, período em que Walton chegou a presidir o TCU, as mensagens mostram que a parceria rendeu frutos ao ministro. Graças à ajuda de Dilma Rousseff e de Erenice Guerra, Walton conseguiu reunir o apoio de pelo menos trinta autoridades políticas — incluindo senadores, governadores e lideranças do Congresso — para convencer o governo a indicar sua mulher, Isabel Gallotti, ao cargo de ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Nas mensagens, o ministro chegou a pedir orientações sobre como realizar o lobby junto ao presidente: "Devo entrar no cone de sombra? Devo procurar mais apoios? Quem? Ministros do STF, por exemplo?" — e fazia questão de registrar sua gratidão ao apoio da mulher mais importante do governo: "Não tenho palavras para a ministra Dilma! Ela aguentou tudo sozinha. Eu sei bem a quem devo por estar no jogo. Mas um pouco mais de respaldo não faz mal". No esforço para concretizar seu projeto pessoal, Walton cumpriu tarefas de interesse do Planalto. Ele antecipava decisões, dava conselhos informais aos advogados do PT e ainda dificultava o trabalho da oposição, que, sem saber da sua dupla atividade, procurava o TCU para auxiliá-la em investigações contra o governo. Confrontado com as mensagens, o ministro negou, em nota, ter usado o cargo para fazer campanha pela indicação de sua mulher ao STJ. O lobby de Walton Alencar, porém, está fartamente comprovado nas mensagens obtidas pela polícia. Apenas em uma delas, de 21 de junho de 2008, ele repassa a Erenice Guerra uma lista em que cita nada menos do que 22 autoridades graduadas a quem ele estava pedindo apoio. E agradece: "Erenice, obrigado por tudo! Até agora, este é o meu resumo da situação. Os apoios devem estar, de pouco em pouco, se manifestando!". O texto mostra que o ministro tinha muitos apoios. Do vice-presidente da República a governadores de sete estados, passando por deputados federais, senadores e ministros de Estado — políticos que, pela natureza dos cargos que ocupam, Walton pode ter de um dia fiscalizar e julgar. Apesar de as mensagens não deixarem dúvida quanto à natureza dos negócios tratados entre ele e o Palácio do Planalto, as revelações de VEJA provocaram reações opostas entre os ministros do TCU. Enquanto uma parte pressionava o presidente do tribunal a abrir processo, outro grupo reuniu-se para render homenagens a Walton Alencar. Puxada pelo subprocurador do Ministério Público junto ao TCU Lucas Furtado, para quem Walton é "uma pessoa a quem todos devem ter em alta consideração", a bateria de elogios foi acompanhada por outros três ministros. O ministro Bruno Dantas tratou Walton como um "defensor do fortalecimento das instituições" e o ministro Benjamin Zymler classificou as revelações feitas por VEJA de "sobressaltos da vida". Para o ministro José Múcio, "a conduta de Walton é o melhor referencial que nós temos no TCU". 3#5 MARINA SOB FOGO CRUZADO Adversários intensificam ataques e fazem uma pergunta ecoar no mercado: ela é capaz de governar? Marineiros lançam contraofensiva para convencer empresários de que sim. MARIANA BARROS E MALU GASPAR A semana foi de chumbo grosso para Marina Silva. O tucano Aécio Neves criticou o "conjunto de contradições" que, segundo ele, a candidata do PSB representa. A petista Dilma Rousseff comparou-a ao ex-presidente Fernando Collor, do "partido do eu sozinho". Mesmo sob fogo cerrado, Marina terminou a semana do tamanho que começou — colada a Dilma no primeiro turno e à frente dela no segundo. Integrantes de sua campanha, no entanto, avaliam que a ex-senadora deve perder em breve de dois a três pontos dos 34 que marcou no último Datafolha. A queda seria resultado do seu pouco tempo de TV e da subida no tom dos ataques — que apenas começaram. Ao investir nas contradições de Marina, Aécio lembrou que ela estava no PT quando o partido foi contra a Lei de Responsabilidade Fiscal e o Plano Real e que silenciou no mensalão. As críticas do tucano vieram na carona da escorregada que a campanha pessebista havia dado no fim de semana. Pressionada pelo pastor evangélico Silas Malafaia, a chapa de Marina retirou o apoio à criminalização da homofobia e ao casamento gay do programa de governo apresentado 24 horas antes. Marina alegou que a inclusão do texto havia sido um equívoco de sua equipe, mas o estrago, sobretudo nas redes sociais, a essa altura já estava feito. Já o ataque desferido pela campanha de Dilma teve alcance maior, embora tenha sido considerado indevido até por petistas — Collor, afinal, não era conhecido nacionalmente antes de assumir o governo de Alagoas, não caiu por falta de apoio no Congresso, mas por causa da corrupção, e, ao contrário de Marina, tinha, sim, base parlamentar, sustentada pelo PMDB. Ocorre que a comparação encontrou eco numa preocupação real. Setores do empresariado e do mercado financeiro que já haviam assimilado as propostas econômicas de Marina passaram a questionar sua capacidade de governar. Na cabeça de integrantes desses setores — hostis a Dilma e para os quais Marina representa a "descompressão petista", como disse o diretor de um fundo de investimento — passaram a rondar questões como: uma vez vencedora, como serão as suas relações com o Congresso? Quem será seu articulador político? Ela teria condições de garantir a chamada governabilidade? Nas conversas, cunhou-se até um axioma segundo o qual "está mais fácil para Marina ganhar o páreo eleitoral do que governar". Seu partido, o PSB, tem apenas 24 dos 513 deputados e, numa projeção otimista, conseguirá chegar a cinquenta nesta eleição. Com esse apoio apenas, seria pouco provável aprovar qualquer projeto controverso — e impossível fazer passar, por exemplo, o fim da reeleição, uma das principais promessas de Marina. Na tentativa de desanuviar esses temores, cardeais marineiros deram início há duas semanas a uma ofensiva no mercado financeiro. Nesta semana, eles se encontram com 500 dos principais agentes de fundos de investimentos e bancos em São Paulo. O discurso é que ela terá mais facilidade para governar que Aécio ou Dilma, uma vez que o tucano enfrentaria furiosa oposição petista e a presidente vive às turras com o Congresso. Os principais interlocutores de Marina com o setor financeiro, seu coordenador de campanha, Walter Feldman, e seu tesoureiro, o ex-presidente do Citibank Álvaro de Souza, já estiveram no Bank of America/Merrill Lynch para conversa com a cúpula da instituição. Empresas de shoppings e de construção também receberam os marineiros. O grupo tem reuniões marcadas também no GP Investimentos, do bilionário Jorge Paulo Lehman, no Bradesco e no Citibank. As pesquisas mostram que, até agora, Marina tem vencido as desconfianças. Mas o fato de outra se levantar a cada vez que uma é superada apenas atesta a constatação de que a candidata à Presidência da República pelo PSB é, em aspectos fundamentais, uma quase desconhecida. O Brasil tem quatro semanas para decifrá-la. VALEI-ME, PADRINHO Com a consolidação de Marina no topo das pesquisas, Dilma Rousseff surgiu na semana passada ao lado de Lula, e Aécio Neves escudou-se no ex-presidente Fernando Henrique Cardoso para acabar com os boatos de que desistiria da candidatura. ____________________________________ 4# INTERNACIONAL 10.9.14 4#1 COMO SE PERDE UM FILHO PARA O TERROR 4#2 O RADICAL LIBERTÁRIO 4#1 COMO SE PERDE UM FILHO PARA O TERROR Mais de 2000 jovens europeus se uniram a grupos jihadistas do Oriente Médio. Bons alunos e com boa família, eles agora pegam em armas e cometem atentados. NATHALIA WATKINS, DE TOULOUSE “Ao pai e à mãe do Nicolas, seu filho fez uma operação explosiva com um caminhão no vilarejo inimigo de Homs. Que Deus o aceite como mártir." Essa mensagem, escrita em francês, foi enviada para Dominique Bons, de 60 anos, em dezembro passado. Apenas cinco meses antes, ela fora pega de surpresa ao ver o filho Nicolas, de 30 anos, em um vídeo na internet em que afirmava ser membro do grupo terrorista Estado Islâmico. Conhecido como um garoto calmo que jogava bola como atacante, gostava de andar de bicicleta e cuidava bem da avó de 88 anos, Nicolas começou a estudar o Corão por conta própria. Converteu-se em 2010. A mãe, que vive em Toulouse, no sul da França, é ateia e conversava esporadicamente com o filho sobre religião. "Ele me dizia que queria uma virgem. Eu respondia que isso estava difícil de encontrar hoje em dia", diz Dominique, militar aposentada. Com o tempo, o rapaz parou de fumar maconha. Em março de 2013, ele e o meio-irmão Jean Daniel, de 22 anos, disseram aos pais que viajariam de férias para a Tailândia. Nunca mais voltaram. Jean Daniel morreu durante uma batalha perto da cidade síria de Aleppo, quatro meses antes de Nicolas explodir-se em um atentado em Homs. "Não vi nenhuma prova de que meu filho morreu. Espero que tudo isso seja mentira", diz a mãe. Em três anos de guerra civil, mais de 2000 europeus se juntaram a grupos terroristas na Síria, incluindo a Frente Al Nusra e o Estado Islâmico, que quer criar um califado sem fronteiras regido pela lei islâmica. Nesse intento, eles escravizam milhares de meninas, exterminam minorias religiosas, extorquem a população das cidades e degolam os que consideram infiéis ou apóstatas. Na semana passada, um jihadista encapuzado e com sotaque britânico usou uma faca para decapitar Steven Sotloff, o segundo jornalista americano morto assim em duas semanas. Ambas as cenas foram colocadas na internet. Só da França, cerca de 700 jovens se uniram aos perpetradores dessas barbaridades. O que leva adolescentes com 15 anos ou mais a tomar um trem ou um avião escondidos da família e levar uma vida radical nos confins do Oriente Médio é um enigma que começa a ser desvendado. A eles, a versão preguiçosa de que seriam filhos de imigrantes muçulmanos com dificuldade de assimilação no mundo ocidental não se aplica. Muitos são de boa família, que há muitas gerações vive na Europa e se beneficia das vantagens do Primeiro Mundo, como escolas e hospitais gratuitos. "Entre 500 perfis que estudamos, vimos que eles são todos bons alunos. Não é o mesmo perfil de gente inculta que ia para a Al Qaeda há cinco anos", diz Mathieu Guidère, especialista em geopolítica e Islã da Universidade de Toulouse. Como outros jovens, eles têm o desejo de mudar o mundo. Os meninos costumam ser mais religiosos e nutrem com mais intensidade esse desejo de mudança. As meninas são mais novas e querem apoiar os homens, formando famílias. Em algum momento, todos acabam sendo usados pelos extremistas que os ajudam a se radicalizar e depois os atraem para uma armadilha no exterior. Há alguns anos, o meio pelo qual os extremistas entravam em contato com os candidatos europeus eram as mesquitas. Atualmente, esse serviço é feito pela internet em escala muito maior. Os terroristas organizam concursos com prêmios pelo Facebook. As meninas precisam divulgar mensagens religiosas e acumular o maior número de "curtidas". O prêmio para a campeã costuma ser um jilbab, vestido longo e com manga comprida. Os organizadores então parabenizam as finalistas e ganham a confiança delas. Em seguida começam a dar-lhes conselhos sobre sua vida pessoal e semeiam a cizânia nas famílias. Dizem que seus pais não cuidam bem delas e que são infiéis, porque não praticam o Islã como deveriam. "Nesse momento, elas começam a pensar em casar com um militante até que decidem mesmo fazê-lo", diz um funcionário do Centro de Prevenção contra o Sectarismo relacionado ao Islã, na França, e que pediu anonimato. Um dia, a francesa Sarah Ali Mehenni, de 17 anos, recebeu um jilbab pelo correio em sua casa, em Lézignan-Corbières, 200 quilômetros ao sul de Avignon. A jovem é filha de um francês descendente de argelinos, muçulmano não praticante, e de Severine, que nunca aderiu ao islamismo. Há dois anos, a menina decidiu se converter. A radicalização culminou com a partida dela em março para a Síria, onde se casou com um tunisiano de 35 anos. O irmão mais velho, Jonathan, de 22 anos, explicou a Sarah que o Islã proíbe o casamento sem o consentimento dos pais, mas ela ficou contrariada. "Ela mudou completamente a interpretação do texto e não escuta nada que dizemos", conta Jonathan. A família se comunica com Sarah por meio de uma conta de Facebook anônima criada por ela e, de vez em quando, por telefone via satélite. "Ela manda fotos com a picape do marido e diz que ele compra perfume Chanel para ela. Fala que está feliz, mas não acredito", diz Jonathan. A mãe, Severine, que ficou em depressão desde a partida da filha, lembra que Sarah dizia querer trabalhar com ajuda humanitária na Síria. "Ela não está auxiliando ninguém", diz Severine. A maioria desses jovens tem a chamada "síndrome humanitária". Eles se interessaram pelo Oriente Médio depois de ver notícias sobre a morte de mulheres e crianças na Síria. Ao pesquisarem sobre o assunto, entram em contato com extremistas e perdem a capacidade de fazer uma interpretação lógica do tema. Em vez de se afastarem dos terroristas, juntam-se a eles. Como a internet não tem fronteiras, os terroristas conseguem adeptos em todos os países. Um em cada quatro é estrangeiro. Para aumentar o poder de atração, o grupo tornou-se mais flexível. O Estado Islâmico não exige que o novo integrante saiba o Corão de cor, mas propõe-se a ensiná-lo junto com as técnicas militares. A lei islâmica, sharia, é aplicada gradativamente com os novatos. "Foi o lugar mais internacional a que já fui na minha vida. Vi americanos, chineses e coreanos. Escutei gente falando português, mas não consegui distinguir se eram brasileiros", diz Foad el Bathy, de 37 anos, que fez duas viagens neste ano para tentar resgatar a irmã Nora, de 16 anos, que se uniu à frente Nusra, ligada à Al Qaeda. Na meia hora que teve ao lado de Nora na Síria, ele a viu magra e pálida. Os dois choraram copiosamente. Foad perguntou se ela queria voltar. Nora bateu com a cabeça na parede, repetindo "não posso, não posso''. O irmão acredita que ameaçaram matá-lo caso ela aceitasse ir embora. Nora fugiu de casa, em Avignon, no sul da França, em janeiro. Ela gostava de assistir ao Disney Channel e a seriados americanos, e saía com as amigas para o shopping. Hoje fala com a família por telefone em ligações esparsas. Nora não pode voltar, mas outros 200 que se arrependeram já conseguiram fazer esse caminho. O mais perigoso, contudo, é aqueles que retornaram e não se arrependeram e podem cometer atentados na Europa. Neste ano, políticos da França e da Inglaterra começaram a falar em reter o passaporte dos jihadistas para impedi-los de ir até o epicentro do terror. "É muito complicado fazer algo assim. Em uma democracia, ninguém pode ser preso por ter ideias radicais. Reter um passaporte sem provas concretas ou limitar o acesso à informação é difícil", diz o cientista político italiano Lorenzo Vidino, da Universidade de Zurique. 4#2 O RADICAL LIBERTÁRIO Na política brasileira, uma das maneiras de ofender um adversário em campanha consiste em acusá-lo de defender o Estado mínimo. Mesmo a ideia de privatizar estatais ineficientes e corruptas é estranha ao discurso da maioria dos candidatos. Nos Estados Unidos, esse constrangimento não existe. O ceticismo e a desconfiança em relação ao governo vêm desde a independência. A versão mais atualizada e radical desse sentimento é o movimento Tea Party, que encontra eco ideológico no republicano RON PAUL. Ele pede o fim do banco central americano, do imposto de renda, dos programas sociais e das intervenções militares no exterior. Médico ginecologista, Ron já cumpriu três mandatos como deputado e por três vezes tentou a Casa Branca. Com carregado sotaque texano, ele conversou com o editor Duda Teixeira por telefone antes de embarcar para o Fórum Liberdade e Democracia de São Paulo, marcado para 9 de setembro. Eis como pensa um legítimo defensor do Estado mínimo. SER LIBERTÁRIO "Acredito na liberdade individual. Cada um tem o direito à sua vida e a usufruir o fruto do seu trabalho. Nisso, o governo não deve jamais interferir. O princípio básico de um libertário é que um cidadão não pode iniciar uma agressão contra outro. Se alguém não gosta do estilo de vida de seu vizinho, isso não lhe dá o direito de fazer qualquer coisa, não importa quão ridículo o outro seja. Se bebe demais, fuma demais, isso é problema só dele. Por extensão, um libertário jamais fará algo contra a imprensa apenas porque está publicando algo do qual ele discorda. No plano internacional, nenhum país está autorizado a usar a força contra outro só porque o considera imperfeito. Somos totalmente contra o conceito de guerra preventiva, aplicado pelo ex-presidente George W. Bush. Atitudes desse tipo são muito perigosas. Um governo não deve jamais iniciar uma ação violenta, nem contra outras nações nem contra seus próprios cidadãos." IMPOSTO DE RENDA "Da mesma maneira que uma pessoa não pode entrar na minha casa e roubar o que eu tenho, governos não têm autorização para fazer isso. É o que eles têm feito por meio do imposto de renda. A ideia prevalente é que o governo é nosso dono e por isso tem o direito de ficar com tudo o que ganhamos. Por algum motivo, decidiu nos deixar com uma parte. Rejeito isso. Mesmo se o imposto fosse de apenas 1%, esse comportamento seria questionável. Sem essa intromissão, haveria muito mais prosperidade e empregos. Nos Estados Unidos não existia imposto de renda até 1930 e tudo funcionava muito bem. É claro que seria necessário mudar o modelo. Não poderíamos ter o Estado de bem-estar que temos hoje, nem mesmo o dinheiro necessário para ser a polícia do mundo. Mas acho que não deveríamos ter essas duas coisas de nenhum jeito." BOLSA FAMÍLIA "Não há exemplo no mundo de um programa social, como esse do Brasil, que tenha sido bem-sucedido simplesmente distribuindo recursos do governo. Nos Estados Unidos, quanto mais se tenta ajudar o pobre, mais se prejudica o pobre. Como o governo não tem dinheiro sobrando esses gastos ampliam o déficit nas contas. A solução, então, é emprestar a juros altos ou imprimir dinheiro. O que vem em seguida é inflação, cujo alvo primordial são aqueles com menos recursos. Quando estive no Congresso, vi políticos bem-intencionados votando a favor de programas sociais que eu sabia serem ruins. Argumentavam com sinceridade que não podemos deixar as pessoas sem ajuda, na sarjeta. Isso é perigoso porque eles não entendem que, ao aumentar os gastos, o que fazem a longo prazo é elevar a inflação e, com isso, destruir a classe média. Nos Estados Unidos, é o que está sendo feito há quatro décadas." EDUCAÇÃO PÚBLICA "Há uma única cidade americana em que legalmente todas as escolas devem ser públicas: a capital, Washington. O governo gasta mais dinheiro lá do que em qualquer outro lugar. São cerca de 20.000 dólares por ano para cada estudante. O resultado desse investimento é que há mais crime na cidade e o pior sistema de ensino. Quando o orçamento acaba, os burocratas então pedem mais dinheiro. A questão é que não há relação" entre gastar mais e uma educação de qualidade. O que acontece quando o governo investe mais é que os sindicatos dos professores e os diretores ganham mais dólares. E só. Sem falar que as escolas públicas têm a agenda do governo. Jamais vão ensinar, por exemplo, algumas coisas que eu digo. A meu ver, as pessoas devem ter o direito de se livrar desse tipo de instrução. Melhor do que isso seria ensinar os próprios filhos em casa. Muitos pais têm conseguido fazê-lo ao custo de 5.000 dólares por ano e com a vantagem de determinar o currículo de seus filhos, sem interferência do Estado." COTAS "Reservar vagas nas universidades federais para estudantes de escolas públicas é algo que nunca vai dar certo. O nível da educação certamente cairá. O correto seria recompensar os que são mais capazes. Um jovem que queira ser um neurocirurgião deve ser incentivado a estudar, e não o contrário. Não faz sentido dar privilégios a uma pessoa apenas porque ela pertence a um grupo ou a outro. Isso só acontece porque os políticos amam distribuir privilégios. Sabem que isso os ajudará a se reeleger. As cotas têm sido um fracasso nos Estados Unidos e não são solução para nenhum país." BANCO CENTRAL "Uma economia não pode funcionar direito quando uma instituição determina o valor das coisas. Foi essa uma das principais razões do desastre das economias socialistas, em que os governos se apoderaram da produção e ditaram os preços. O que o Fed (Federal Reserve, o banco central americano) faz é dizer qual é o valor do dinheiro, dos juros. Por isso, deve ser abolido. A informação que os preços fornecem é crucial e não pode ser deturpada. Quando o Fed se mete onde não deve e diz qual deve ser o juro, o que faz indiretamente é destruir a economia. Além disso, quanto mais problemas o Fed acha que tem, mais regras cria. É por isso que o mundo está em uma depressão profunda." ORIENTE MÉDIO "Quem deve tomar conta dos terroristas do Estado Islâmico são os poderes locais, como o Iraque, a Síria, o Irã e Israel. Não é responsabilidade dos americanos. A história nos mostrou que todas as guerras são travadas por meio da inflação. A impressão maior de dinheiro eleva o custo de vida. O padrão de vida cai. A produtividade volta-se para armas com capacidade de destruição, em vez de construir coisas boas. A guerra sempre causa problemas econômicos." ______________________________________ 5# ECONOMIA 10.9.14 DIFAMAÇÃO OU OPINIÃO? O BC abriu queixa-crime contra um economista por considerar seus comentários ofensivos. A juíza não aceitou a ação, mas cabe recurso. O economista Alexandre Schwartsman é um dos críticos mais mordazes do governo. Em artigos, entrevistas e nos relatórios distribuídos aos clientes de sua consultoria, ele desanca com ironia (nem sempre fina) os descaminhos da política econômica que resultaram no estado de crescimento baixo e inflação elevada. "Volta, pibículo!" pediu ele em sua coluna na Folha de S.Paulo, na semana passada, saudoso dos tempos em que o crescimento não era espetacular, mas ao menos não havia recessão. A atual diretoria do Banco Central (BC) merece, com frequência, comentários ásperos por ter, segundo ele, "jogado a toalha" no que se refere ao objetivo de manter a inflação próximo da meta de 4,5%. Para o BC, entretanto, Schwartsman ultrapassou os limites da análise econômica em declarações que apareceram em duas entrevistas divulgadas neste ano. Em uma delas, publicada pelo Brasil Econômico de 27 de janeiro, o economista disse que "o BC é subserviente e submete-se às determinações do Planalto" e "é só olhar para a gestão do BC para saber que é temerária". Em outra entrevista, ao Correio Braziliense de 27 de abril, declarou que "o BC faz um trabalho porco e, com isso, a incerteza aumentou". O procurador-geral do BC, Isaac Sidney Ferreira, considerou os comentários ofensivos à imagem da instituição e apresentou, na Justiça Federal, uma queixa-crime contra Schwartsman, sob a acusação de difamação, delito previsto no artigo 139 do Código Penal. A pena pode chegar a um ano de detenção, mas, por se tratar de um crime contra funcionário público, pode ser acrescida em um terço. Na petição, encaminhada em maio, o procurador-geral argumenta que o economista excedeu, "em franca e deliberada demasia, o seu direito de expressão, ao fazer declarações nocivas à reputação do Banco Central". Uma audiência de conciliação foi marcada para 20 de agosto. O advogado de Schwartsman, Jair Jaloreto, sustentou que seu cliente "jamais teve a intenção de difamar alguém nem instituição alguma" e apenas "expressou sua opinião como expert em economia e finanças, calcada em fatos e dados". Por isso, não aceitava fazer nenhuma retratação. A juíza federal Adriana Delboni Taricco decidiu-se por rejeitar a queixa-crime. Na sua avaliação, as críticas "de fato se mostraram bastante contundentes, porém faz-se necessário salientar que não ultrapassaram os limites do mero exercício de sua liberdade de expressão". Schwartsman, de 51 anos, ocupou uma diretoria no BC durante três anos, no governo Lula, e foi colega do atual presidente da instituição, Alexandre Tombini. Para o seu advogado, o processo contra o economista teve motivação política, sob o intuito de intimidar "vozes críticas". "Felizmente, os poderes constituídos conseguem resistir de forma independente", disse Jaloreto. O procurador Ferreira negou o caráter intimidatório. "O BC sempre terá pleno respeito ao direito de crítica, mas nunca havia deparado com insultos nem assaques desse tipo", afirmou ele a VEJA. "Não se trata de uma crítica técnica, a qual é sempre bem-vinda. Entendemos que houve crime contra a honra da instituição", completou, não descartando a possibilidade de recorrer da decisão. O BC tem o direito de se ofender. Mas, ao processar seu crítico, sujeita-se a uma inevitável e pouco abonadora comparação. Em julho, uma analista do Santander foi demitida depois de ter divulgado um relatório em que afirmava que o fortalecimento de Dilma Rousseff nas pesquisas seria negativo para o investimento em ações. GIULIANO GUANDALINI _______________________________________ 6# GERAL 10.9.14 6#1 GENTE 6#2 SOCIEDADE – O SOSSEGO DÁ VEZ AO MEDO 6#3 SAÚDE – UM PRÊMIO PARA SAIR DO CRACK 6#4 AGRICULTURA – OS CAMPEÕES DE PRODUTIVIDADE 6#5 DEMOGRAFIA – FOFINHOS, MAS EM BAIXA 6#6 TECNOLOGIA – BEM-VINDO À ERA DOS HOMENS BIÔNICOS 6#1 GENTE JULIANA LINHARES. Com Marília Leoni IMAGEM É QUASE TUDO Olhar ou não olhar? Dois conjuntos de imagens, opostas em todos os aspectos, mas com a mesma capacidade de agitar as redes, criaram alguns dilemas éticos na semana passada. Maiores no caso das chocantes cenas de decapitação do jornalista Steven Sotloff. Vê-las contribui para o clima de terror mundial que os ultra-fundamentalistas do Isis querem criar ou ajuda a compreender as abominações que defendem? A discussão ética talvez tenha sido um pouco menos dramática no caso da captura na nuvem digital das fotos íntimas de uma centena de mulheres lindas e famosas, a mais conhecida delas a atriz JENNIFER LAWRENCE. Enquanto FBI, Apple e advogados buscavam culpados, muita gente clicou sem medo de ser feliz. E constatou: Jennifer corresponde mesmo à sua imagem de atrevida, nada preocupada em demonstrar classe. E fica muito bem nas fotos. V DE VINGANÇA. E DE VEXAME A raiva de uma mulher traída, e ainda por cima humilhada aos olhos do mundo, só pode ser descrita em poucas palavras por Shakespeare. Já num livro de 320 páginas, a francesa VALÉRIE TRIERWEILER teve um bocado de espaço para envenenar ainda mais o ambiente tóxico que cerca a vida privada do ex-marido, o presidente Francois Hollande, desde a exposição de seu caso semissecreto com uma atriz. Ele mentiu sobre a traição e é um caso clássico de esquerdista que só gosta de pobres teoricamente — na prática, chama-os de "desdentados". Enfim, nenhuma grande novidade, ainda mais para um presidente que já está no fundo do poço de espantosos 87% de desaprovação popular. Além de passar recibo de ressentida, Valérie deu a impressão de que teve a trabalheira toda só para contar que Hollande vive mandando mensagens pelo celular, pedindo para voltar. Se ela aceita... ELA REQUEBRA E O MUNDO PARA Alguém duvida que KIM KARDASHIAN é uma das mulheres mais inteligentes do mundo? Quando ela começou a aparecer em público, em 2006, era apenas a amiga morena de Paris Milton, a loira fútil que surgia em toda parte fazendo biquinho. Já tinha os salientes atributos que ajudaram a projetá-la, mas o principal é que não só absorveu como aprimorou a arte de ser famosa sem fazer absolutamente nada de especial. A amizade acabou, Paris eclipsou-se e Kim, com nariz, maçãs do rosto, lábios e estilo reestruturados, está solidamente plantada no topo do universo das celebridades. De corselete preto, saia transparente e marido, Kanye West, a tiracolo, foi à festa de uma revista que a elegeu a mulher do ano. Ou talvez do século, por implantar o modelo calipígio num ambiente povoado só por sílfides. TOMA UM CALMANTINHO, MARIA O que Caio Blat e MARIA RIBEIRO, casal na vida real, pensam quando estão na novela como o casal José Pedro e Danielle, de Império? Maria responde: "Quando brigo com ele em cena, somos eu e o Caio brigando em casa. E rimos muito se estamos brigados e temos de fazer cenas de sexo". Que são várias, picantes e usadas pela esposa fictícia para manipular o marido. No papel da enjoada ex-moça do tempo que ascendeu socialmente, ela entra em choque com a sogra, a intimidante Lília Cabral, mas ainda não cruzou com o ex-marido Paulo Betti, intérprete de um ressentido blogueiro de fofocas. Participante do programa Saia Justa e borbulhante de outras atividades, Maria assume: "Sou ansiosa, tenho medo de avião e penso muito. Ando com ansiolítico na bolsa". 6#2 SOCIEDADE – O SOSSEGO DÁ VEZ AO MEDO A polícia enfim capturou integrantes da lendária quadrilha carioca que há uma década assalta as propriedades de ricos e famosos — mas os cabeças continuam a zombar da lei. LESLIE LEITÃO Encravado na serra fluminense, a 100 quilômetros do Rio de Janeiro, o Vale das Videiras, na região de Itaipava, é um conhecido refúgio de fim de semana dos cariocas. Nos últimos meses, porém, a quietude deixou o vale, que se converteu no mais novo alvo de uma lendária quadrilha do Rio — o bando da família Caetano. A gangue ganhou projeção por seguir a trilha dos ricos e famosos (entre eles o ex-presidente da CBF Ricardo Teixeira e o cineasta Murilo Salles), assaltar suas propriedades de forma escancarada e ainda zombar da lei, incentivando as vítimas a prestar queixa na delegacia. Manteve-se impune por quase uma década, tornando-se o mais longevo grupo de assaltantes na ativa em todo o estado. Recentemente, ele saiu das sombras do submundo quando nove dos vinte integrantes foram capturados — mas os três cabeças continuam livres e capitaneando assaltos por toda parte. Em pouco mais de um ano, foram 81 liderados pelos Caetano. Um conjunto de inquéritos sobre o bando, vasto material ao qual VEJA teve acesso, revela sua truculência e desfaçatez. Eles assaltam à luz do dia. Selecionam os alvos com base no que extraem de redes de informantes nas cidadezinhas. O butim preferencial é dinheiro, por isso só invadem casas ocupadas, onde reviram tudo e submetem as vítimas a horas de tortura. "Com base nas informações que levantam, eles esperam até que haja gente dentro das propriedades, porque o objetivo principal é arrecadar dinheiro vivo", afirma o delegado Mário Arruda, titular da delegacia do município de Resende, que começou a desmantelar a quadrilha depois de assaltos em sua região. Uma vez dentro da residência, eles mantêm os ocupantes sob a mira de armas. Costumam fugir nos carros das famílias. O fato de assaltarem propriedades por todo o estado explica sua impunidade por tanto tempo — como os crimes eram pulverizados entre várias regiões, levou tempo para que alguma delegacia empreendesse esforço concentrado para perseguir os bandidos. Um dos assaltos mais violentos ocorreu no início da noite de 2 de maio deste ano, quando duas famílias vizinhas do Vale das Videiras ficaram reféns dos criminosos por mais de seis horas. Em uma das casas estava o cineasta Salles, que em seu depoimento revelou ter sido "ameaçado o tempo todo" pelos criminosos. Levaram até fogão e máquina de lavar roupa. Diante do perigo, a associação de moradores contratou segurança armada — a cota é de, em média, 1000 reais por proprietário — e instalou câmeras por todo lado, manifestações do clima de medo típico de cidades grandes que o pacato Vale das Videiras ainda não havia experimentado. Fazem parte da ficha corrida do bando a invasão da residência de Ricardo Teixeira em Piraí, em 2010, e o roubo de oito armas da fazenda de um bicheiro carioca no ano passado. Neste ano, os bandidos atacaram um sítio alugado para um grupo de russos — chegaram animadíssimos com a informação de que lá havia jóias (levaram um relógio de 60.000 euros) e mais de 200.000 reais em espécie. O último assalto de que se tem notícia, com o bando já desfalcado por prisões, aconteceu no fim de junho no município de Rio Bonito. O alvo foi a fazenda Itatiba, do presidente da Assembleia Legislativa fluminense, Paulo Melo (PMDB). Dois policiais militares que faziam a segurança reagiram e acabaram baleados; o próprio Melo fraturou o pé ao pular um muro para se esconder. O tiroteio fez com que os criminosos recuassem para a mata próxima, mas não os desanimou: eles invadiram outra fazenda, fizeram a família refém, tomaram banho, comeram, roubaram o dinheiro e, só então, fugiram. Ao atacar a fazenda Itatiba, a família criminosa voltava às suas origens, Rio Bonito, a cerca de 80 quilômetros do Rio de Janeiro. Daquela área rural pontilhada de fazendas e sítios de veraneio, a gangue ampliou sua atuação para todo o estado — sempre invadindo o mesmo tipo de residência em regiões distantes umas das outras, evitando mobilização mais vigorosa tanto da polícia local quanto dos moradores. A estratégia deu certo por quase dez anos, até as primeiras prisões acontecerem, em maio deste ano. O líder do bando, Milton Rodrigo Caetano, de 29 anos, o Sargento, chegou a ser detido em 2009, mas fugiu pouco depois. Ele coleciona onze mandados de prisão expedidos pela Justiça de vários municípios. Seus homens de confiança são o irmão Bruno, 27, e o primo Flavio, 41, também foragidos. Com o produto do roubo, costumam viajar, sobretudo para praias. E, com a desfaçatez costumeira, postam constantemente fotos nas redes sociais. No momento, os Caetano estão recolhidos, reagrupando-se e aclimatando-se a uma realidade que não conheciam: a de ter a polícia em seu encalço. 6#3 SAÚDE – UM PRÊMIO PARA SAIR DO CRACK Uma terapia baseada na recompensa financeira da abstinência apresenta resultados animadores no tratamento dos dependentes da droga mais devastadora. ADRIANA DIAS LOPES Um milhão de brasileiros são usuários de crack. Metade deles está com a vida devastada pela droga. A outra metade é composta, em grande parte, de pessoas que, em breve, também terão sucumbido ao vício. Pouquíssimos conseguem interromper o uso. Diz o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp): "Não existe droga mais refratária à intervenção médica do que o crack". Busca-se, incansavelmente, uma saída para esse beco. Uma técnica baseada na recompensa financeira da abstinência tem apresentado resultados animadores. O método, conhecido no jargão da psicologia como de incentivos motivacionais, acaba de ser testado pela primeira vez em pacientes brasileiros. Conduzido por pesquisadores da Unifesp e financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, o trabalho ambulatorial envolveu 65 dependentes de crack. A maioria consumia a droga pelo menos cinco vezes por semana. Os voluntários foram divididos em dois grupos. O primeiro foi submetido apenas ao tratamento-padrão, feito com remédios e apoio psicológico para controlar a síndrome de abstinência e as doenças psiquiátricas associadas ao uso da droga, como ansiedade e depressão. O segundo grupo, além dos cuidados tradicionais (psicoterapia e medicamentos), foi submetido à técnica de incentivos motivacionais. Três vezes por semana, os dependentes passavam por exames de urina. Em caso de resultado negativo para a presença do crack, eles recebiam um cupom a ser trocado por roupas, créditos para o celular e até comida em lojas previamente determinadas pelos pesquisadores. O valor do cupom subia conforme aumentava o tempo em que o paciente se mantivesse longe do vício. Ao longo dos três meses do estudo, os voluntários receberam até 1000 reais. No grupo dos incentivos motivacionais, 20% dos voluntários mantiveram-se longe da droga por doze semanas. Entre os pacientes tratados com psicoterapia e medicamentos, ninguém chegou às doze semanas sem recaída. A maioria (80%) conseguiu manter-se abstinente por, no máximo, duas semanas. Uma taxa de sucesso de 20%, a princípio, pode parecer pequena. Mas é extraordinária em se tratando de usuários de crack. Bastam seis vezes consecutivas de uso para que 70% dos consumidores se tornem dependentes. Depois de fumada, em quinze segundos a droga mergulha no cérebro, levando a uma concentração altíssima de dopamina, a substância do bem-estar e do prazer. A sensação é de extrema euforia. O recurso da recompensa financeira no tratamento de dependentes químicos é usado desde meados da década de 90, mas com usuários de cocaína — droga com o mesmo princípio ativo do crack, mas com menor potencial de vício. Em 1991, o psiquiatra americano Stephen Higgins, da Universidade de Vermont, realizou o mais reputado estudo sobre o assunto: 80% dos dependentes de cocaína ficaram sem usar a droga por doze semanas. O índice de abstinência a longo prazo também foi altíssimo, chegando a 70% — o dobro do verificado com as terapias tradicionais. A chave para o sucesso da terapia à base de incentivos motivacionais está no fato de que o dependente é tratado como criança. Faz todo o sentido. O cérebro do usuário de droga tem, em alguma medida, características infantis. No processo natural de desenvolvimento, uma das últimas regiões cerebrais a amadurecer é o córtex pré-frontal, área associada à razão e à tomada de decisões. No cérebro do dependente químico, essa região é uma das porções mais afetadas pela droga, especialmente o crack. Com isso. o usuário perde o discernimento e a capacidade de planejamento. Sem freio, ele não consegue pensar nos riscos a que se submete ao dar mais uma tragada no cachimbo de crack. O que importa é o prazer ligeiro (e fugaz) proporcionado pelas pedras de pasta de cocaína. É nessa dinâmica do imediatismo que a terapia dos incentivos motivacionais se encaixa. "A lógica, basicamente, consiste em substituir o bem-estar imediato da droga por outro tipo de prazer instantâneo", diz André Constantino Miguel, psicólogo responsável pelo estudo da Unifesp. Nos Estados Unidos, a técnica de incentivos motivacionais já é utilizada em 30% dos dependentes químicos em tratamento. O método é pago pelas seguradoras de saúde. Nos consultórios particulares, é comum o paciente entregar ao médico um cheque caução no início do tratamento. O valor é devolvido paulatinamente, conforme os resultados dos exames de urina comprovem a abstinência. A prática de controle adotada pelos pesquisadores brasileiros da Unifesp revela-se como uma extraordinária janela de esperança contra a sombra do crack. O NOVO TRATAMENTO É MAIS BEM-SUCEDIDO... (recompensa financeira da abstinência) 20% dos pacientes mantiveram-se longe da droga por 12 semanas ...DO QUE O TRATAMENTO-PADRÃO (psicoterapia e medicamentos) Ninguém conseguiu se manter abstinente por 12 semanas . O MECANISMO DE AÇÃO DA DROGA O crack interrompe a reabsorção natural de dopamina, aumentando em até 900% a concentração da substância no cérebro. Níveis elevados de dopamina comprometem a comunicação neural sobretudo com o córtex pré-frontal, área da tomada de decisões, que deveria inibir o consumo da droga. O núcleo accumbens e a região ventral tegumentar são as áreas cerebrais com a maior concentração de dopamina, substância associada à sensação de prazer. A recompensa financeira da abstinência estimula as conexões neurais do córtex pré-frontal em direção à região do cérebro conhecida como núcleo accumbens, o que reduz o impulso pelo crack. 6#4 AGRICULTURA – OS CAMPEÕES DE PRODUTIVIDADE Graças a quarenta anos de pesquisas, a produção de grãos, liderada pela soja, bate recordes seguidos. A evolução das técnicas de cultivo e das sementes anuncia um novo salto para o setor. ANA LUIZA DALTRO O paranaense João Paulo Kümmel Anção, de 33 anos, é o campeão de produtividade no cultivo de soja em Mato Grosso. Formado em direito, o atual administrador da fazenda da família seguiu os passos do avô na utilização intensiva de tecnologia para obter o máximo de suas terras. Usando uma variedade da tecnologia Intacta, semente transgênica desenvolvida pela Monsanto especialmente para o campo brasileiro, ele e o primo Rafael Kümmel Lhamas Ferreira, que também trabalha na fazenda, chegaram a colher mais de noventa sacas por hectare em algumas áreas. Na média, foram 63,5 sacas por hectare na última safra, acima da produtividade geral de 51 sacas obtida pelos agricultores do estado. "Planejamos, em breve, chegar a 75 sacas por hectare", estima João Paulo. Se a meta for alcançada, os primos conseguirão se aproximar das melhores fazendas do Paraná, atualmente ainda mais produtivas. O descendente de portugueses José Eduardo da Fonseca Sismeiro, por exemplo, chegou a uma média superior a setenta sacas por hectare em suas terras em Goioerê (PR), a 520 quilômetros de Curitiba. Mesmo sem usar variedades transgênicas, ele conseguiu ser um dos líderes em produtividade ao utilizar tudo o que é mais moderno da chamada agricultura de precisão — que conta com o auxílio da informática para preparar adequadamente cada pedaço de solo a ser cultivado. A agricultura voltada para a exportação é uma ilha de produtividade cercada pela estagnação geral da economia brasileira. As vendas no mercado internacional somaram cerca de 100 bilhões de dólares no ano passado, um valor nunca antes alcançado. As projeções para 2014 indicam mais um ano extremamente favorável, com previsão de uma nova colheita recorde. Apesar das dificuldades históricas com a infraestrutura precária de transporte e armazenamento, a agricultura, sobretudo dentro da porteira da fazenda, continua a dar saltos produtivos. No caso da soja, a commodity mais importante para as transações comerciais brasileiras, o total colhido aumentou 500% nos últimos 35 anos, contra um crescimento de 250% na área cultivada, segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Esse ganho de produtividade foi possível graças à incorporação das melhores tecnologias disponíveis, importadas e desenvolvidas nos laboratórios brasileiros. A primeira etapa — conquistar o cerrado — decorreu, em grande parte, do trabalho da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), fundada em 1973. A região central do país, onde se concentra a produção, possuía um solo ácido demais e pouco fértil. Foi preciso desenvolver cultivares (o nome técnico das sementes na agronomia) capazes de vingar sob o clima tropical. Com origem na China, a soja é uma leguminosa típica de áreas temperadas. Antes do melhoramento genético das sementes, o sul do Brasil era o único lugar onde ela se adaptava. Nos últimos quarenta anos, a Embrapa registrou 1400 cultivares. Parcerias com empresas como a Monsanto (com a qual a Embrapa desenvolve soja com genes de tolerância ao herbicida glifosato e genes de resistência a insetos) e a Basf (com a qual trabalha na elaboração de soja resistente a outros herbicidas), além de institutos de pesquisa do Japão, também têm ajudado. Mas não se trata apenas de uma questão de solo. Nas áreas mais férteis do planeta (na Argentina, no Meio-Oeste dos Estados Unidos e na Ucrânia), o clima é mais frio e a neve se encarrega de livrar a terra de boa parte das ervas daninhas e das pragas. Nas áreas tropicais brasileiras, o grande problema são os insetos, e combatê-los é um dos objetivos centrais da nova geração de sementes. É preciso lembrar, no entanto, que a tecnologia no campo não se restringe às sementes. A agricultura de precisão, cartilha seguida por todos os fazendeiros com altos índices de produtividade, diz respeito a todo um sistema de produção que inclui táticas de adubação e correção do solo, de planejamento e execução de plantio, de rotação de culturas e de recuperação de pastagens. Goiano morador em Mato Grosso há 29 anos, Luiz Divino da Silva trabalha como gerente-geral das atividades do Grupo Mutum, um dos pioneiros na ocupação agrícola de Mato Grosso e outro exemplo da aplicação das melhores técnicas de manejo. Nas décadas de 70 e 80 foram iniciados na região da fazenda do grupo pesquisas e experimentos na área agrícola, com o plantio de cultivos como soja, milho, arroz e feijão. Hoje o grupo produz soja, milho, sorgo e algodão. Uma curiosidade: o Grupo Ribeiro Participações, dentro do qual se encontra o Grupo Mutum, é o responsável pela implantação do internacionalmente reconhecido projeto urbanístico da Riviera de São Lourenço, no litoral paulista. Todos esses impressionantes avanços poderiam sugerir que a busca constante por ganhos de produtividade é o único desafio da agricultura brasileira, mas a realidade passa longe disso. Diversos gargalos limitam o aumento da produção, e não por culpa apenas da infraestrutura precária. Silva, do Grupo Mutum, se queixa, por exemplo, das amarras impostas pelas leis trabalhistas. Durante a colheita, os funcionários gostariam de poder fazer mais horas extras para, obviamente, ganhar mais, algo que seria do interesse também dos produtores. Faria todo o sentido para ambas as partes que se trabalhasse mais na fase de colheita e menos nos demais períodos. A legislação, entretanto, não oferece nenhuma possibilidade de negociação entre patrão e empregados, e dá-se a economia equivocadamente engessada. Os produtores buscam, dentro de suas possibilidades, contornar as deficiências do setor público. O centro de Nova Mutum, por exemplo, é ligado às suas principais propriedades rurais graças a uma estrada pavimentada com recursos dos próprios fazendeiros. Antes disso, qualquer chuva mais forte os deixava isolados. A estrada, muito apropriadamente balizada de Rodovia de Produção, é mantida hoje com as receitas geradas pelas praças de pedágio ali existentes. Nos tempos de estrada de terra, os Kummel chegavam a ter de utilizar um pequeno avião monomotor para transportar mantimentos para a fazenda. Agora, pelo asfalto novinho, chegam trabalhadores e insumos, e saem a soja e o milho que ajudam a alimentar o Brasil — e o mundo. FÉ NA CIÊNCIA “Aprendi com meu avô a ser um entusiasta de novas tecnologias. Ele foi sempre um pioneiro”, diz JOÃO PAULO KÜMMEL ANÇÃO, advogado de formação e responsável, ao lado do primo RAFAEL, pela administração de uma das fazendas mais produtivas do país, em Nova Mutum, a 240 quilômetros de Cuiabá. Eles fizeram testes com sementes transgênicas em parceria com a multinacional americana Monsanto, em um acordo selado pelo avô Paulo Kümmel. AGRICULTURA DE PRECISÃO JOSÉ EDUARDO DA FONSECA SISMEIRO colhe em média setenta sacas de soja por hectare em Goioerê, no Paraná, bem acima da média nacional. Um dos segredos está na tecnologia de análise e preparação do solo. Por meio do GPS e de um software, a máquina aplica a quantidade correta de fertilizantes e elementos necessários para cada faixa de terreno. "Para produzir, é preciso investir." CERRADO DESBRAVADO O Grupo Mutum foi um dos pioneiros no desbravamento do cerrado mato-grossense. A colonização da cidade por fazendeiros gaúchos ocorreu a partir de 1968, quando a Embrapa ainda nem existia. Atualmente, são cultivados ali soja, milho, sorgo e algodão, aos quais se somam as atividades de pecuária e piscicultura, tudo sob a administração de LUIZ DIVINO DA SILVA, que, há 29 anos, trocou Goiás por Mato Grosso. A cidade de Nova Mutum nasceu dentro de uma porção dos 169.000 hectares das terras do grupo, com o objetivo de dar moradia aos trabalhadores. TECNOLOGIA DE SEMENTES O banco de germoplasma da Embrapa Soja, sediado em Londrina (PR), com mais de 30.000 tipos de semente, é um dos três maiores do mundo, com variedades naturais e transgênicas do Brasil e de outros países. Os pesquisadores desenvolvem variedades resistentes a pragas e a condições climáticas adversas, como a estiagem prolongada. Uma das técnicas é o cruzamento entre diferentes variedades, cujo desenvolvimento é avaliado na estufa e no campo. 6#5 DEMOGRAFIA – FOFINHOS, MAS EM BAIXA A perspectiva de um Brasil onde logo haverá mais idosos do que jovens obriga os hospitais a correr para se adaptar aos novos tempos: eles estão fechando suas maternidades para ampliar o atendimento às doenças típicas da velhice. CÍNTIA THOMAZ O Brasil tal qual o conhecemos caminha rapidamente para uma mudança radical, impulsionada por uma curva — aquela segundo a qual, em 2030 (meros dezesseis anos à frente), haverá mais idosos do que jovens no país. Em outras palavras, o futuro pode ser róseo, mas será mais enrugado. Isso porque, de um lado, os casais estão esperando mais para ter filhos e, quando resolvem tê-los, param em um ou dois, ou não conseguem ter nenhum, porque aguardaram demais. De outro, os idosos fazem mais exercícios, alimentam-se melhor, dispõem de tratamentos cada vez mais sofisticados para as mazelas próprias da idade e vivem muito mais. Em vários países, a supremacia quantitativa do estrato de cima da pirâmide etária já é realidade. Aqui ela ainda está a meio caminho, embora seja visível, por exemplo, na infinidade de farmácias e cabeleireiros (para as senhoras, um compromisso semanal sagrado) e na baixa procura por obstetrícia e pediatria, especialidades que em outros tempos eram carros-chefe nas faculdades de medicina. Recentemente, as duas pontas se encontraram no ramo dos negócios, área sensível às transformações da sociedade: diversos hospitais decidiram simplesmente fechar a maternidade — desde sempre a vitrine e o chamariz para atrair clientes — para dar lugar aos centros especializados em tratar os males da velhice. O reflexo da inversão da curva populacional sobre os hospitais já vem sendo sentido há anos no mundo desenvolvido. Nos países que dispõem de serviço público abrangente, o fenômeno se disfarça: na Inglaterra, nenhuma maternidade fechou suas portas, mas as existentes viram minguar recursos e pessoal, deixando centenas de pacientes sem atendimento. Nos Estados Unidos, onde predomina a rede particular, todos os estados vêm registrando declínio no número de centros hospitalares voltados para bebês. "Nas últimas décadas, muitas maternidades encerraram suas atividades. Os hospitais estão se concentrando nos serviços que dão dinheiro, porque, se não agirem assim, deixam de existir", diz o consultor americano Sam Steinberg. No Brasil, um cálculo muito adotado pelo setor mostra que uma maternidade só se viabiliza como negócio se fizer pelo menos 300 partos por mês. O prejuízo anual de uma casa de saúde que não chegue a esse patamar mínimo gira em torno de 1 milhão de reais — daí a leva de fechamentos de maternidades nos grandes centros. Afetado exatamente por esse quadro, o Hospital Santa Catarina, de São Paulo, anunciou que, em outubro, vai cerrar as portas de sua tradicionalíssima maternidade, há 35 anos instalada na Avenida Paulista. "As altas taxas de ocupação e a expressiva demanda por leitos hospitalares relacionadas ao progressivo envelhecimento da população brasileira foram fatores decisivos para essa decisão", justificou a diretoria, em comunicado. Antes dele, fecharam sua maternidade o São Camilo, também em São Paulo (estado que contabilizou dezessete outras baixas em maternidades nos últimos cinco anos), o Barra D'Or, no Rio de Janeiro, e o Vita, em Curitiba, entre os mais conhecidos. Até um monumento como a Santa Casa de Belo Horizonte, em atividade há 98 anos, faz campanha em prol da sobrevivência dessa ala do hospital. Quando não são fechadas, perdem vagas: um levantamento do Conselho Federal de Medicina mostra que, nos hospitais privados, 223 leitos obstétricos e pediátricos foram extintos ou transferidos para outras especialidades entre 2010 e 2013. Como efeito colateral, disparou a procura por instituições exclusivamente dedicadas a gestantes: juntas, as maternidades Santa Joana e Pró Matre, em São Paulo, realizam uma média de 2400 partos por mês. Enquanto eliminam berçários, os hospitais inflam os departamentos que atendem idosos. E não sem motivo: o retorno financeiro costuma ser o triplo do obtido com o atendimento às tenras idades. O próprio Santa Catarina, ao tornar público o fechamento da maternidade, anunciou investimentos de mais de 40 milhões de reais em especialidades como oncologia, cardiologia e ortopedia — aquelas procuradas pela população mais velha. "Acompanhar o envelhecimento da população é o desafio do século na nossa área, pois a mudança é rápida e precisamos nos adaptar no mesmo ritmo", alerta José Antonio de Carvalho, gerente de pacientes crônicos do Hospital Albert Einstein, onde as doenças típicas da velhice respondem por mais de 60% dos novos investimentos. No Einstein, a maternidade ainda é lucrativa — contabiliza uma média de 380 partos por mês. Mesmo assim, um andar inteiro está sendo preparado para cuidar exclusivamente de outro gerador de tratamentos caros, cuja demanda anda nas alturas nestes tempos de acentuadas transformações demográficas: as gestações de alto risco, frequentes em mães mais velhas, grupo cada vez mais numeroso. Outra amostra de que, nos hospitais, saúde, demografia e negócios viraram aspectos indissociáveis. CAMINHO TRAÇADO Projetada para o futuro, a curva demográfica mostra um Brasil com menos bebês e muito mais idosos (em milhões) 1960 Número de crianças (de zero a 4 anos): 11 Número de idosos (acima de 60 anos): 3 1980 Número de crianças (de zero a 4 anos): 16 Número de idosos (acima de 60 anos): 7 2000 Número de crianças (de zero a 4 anos): 16 Número de idosos (acima de 60 anos): 14 2010 Número de crianças (de zero a 4 anos): 14 Número de idosos (acima de 60 anos): 20 2020 (projeção) Número de crianças (de zero a 4 anos): 10 Número de idosos (acima de 60 anos): 29 Fonte: Censo/IBGE 6#6 TECNOLOGIA – BEM-VINDO À ERA DOS HOMENS BIÔNICOS A chegada ao mercado dos exoesqueletos foi ansiosamente aguardada por deficientes físicos, que podem voltar a andar com essas inovações. Mas as máquinas também são úteis a todos, por possibilitar a superação de nossos limites físicos naturais. JENNIFER ANN THOMAS Em 2012, o capitão da Marinha americana Derek Herrera foi atingido por tiros de terroristas do Talibã, durante uma patrulha no Afeganistão. Em consequência, perdeu o movimento das pernas. Há três meses, Herrera voltou a andar. Sua caminhada foi possível graças ao exoesqueleto ReWalk, o primeiro equipamento do tipo a ser aprovado, em junho deste ano, para uso doméstico nos Estados Unidos. Ele possibilita a paraplégicos levantar-se, andar, sentar-se e subir e descer escadas. É um sucesso de vendas. Apesar do preço restritivo, de 69.500 dólares, não coberto por planos de saúde (restrição que deve cair no próximo ano), foram comercializadas cerca de 100 unidades, em três meses. Na semana passada, a fabricante israelense, também chamada ReWalk, anunciou que deve abrir até o fim do ano seu IPO (oferta pública inicial, no termo em inglês) na bolsa de valores americana Nasdaq. Pretende levantar ao menos 50 milhões de dólares em ações, o que fará com que a companhia valha cerca de 200 milhões de dólares. Em paralelo, empresas tradicionais, a exemplo da japonesa Honda e da americana Lockheed Martin, especialista em tecnologia militar, entram no mercado. Em 2014, os exoesqueletos saem dos centros de pesquisas acadêmicas e militares para entrar no cotidiano da sociedade. São inovações capazes de recuperar a capacidade motora de deficientes, mas também de possibilitar a uma pessoa plenamente apta ultrapassar limites físicos naturais. Para os 65 milhões de cadeirantes do mundo, a chegada ao mercado do primeiro exoesqueleto representa o início da aposentadoria da cadeira de rodas. E, evidentemente, a esperança de voltar a andar. "As pernas mecânicas se comportam da forma como era quando eu andava", disse, emocionado, John Dawson-Ellis, que perdeu o movimento dos membros inferiores em 2009, em um acidente de moto, e foi um dos primeiros a testar o ReWalk, ainda em clínicas. Até agora, paraplégicos e tetraplégicos dependiam de uma tecnologia desenvolvida há mais de 2500 anos: a cadeira de rodas. Há registros de versões primitivas em desenhos em vasos gregos que datam de 500 a.C. Em 1595, o rei Filipe II, da Espanha, ficou preso a uma delas depois de desenvolver gota, doença inflamatória que causa dores extremas nas articulações. No século XX, as cadeiras de rodas foram modernizadas, com modelos motorizados e dobráveis, e até hoje essa tecnologia é a mais utilizada por paraplégicos e tetraplégicos. Isso está prestes a mudar. O termo exoesqueleto significa, literalmente, esqueleto exterior. A inovação é inspirada na natureza. Animais como grilos, tartarugas e aranhas possuem versões biológicas. O primeiro equipamento artificial, movimentado a gás, data de 1890 e foi fabricado por um engenheiro russo. Custou uma fortuna para ser desenvolvido, e só podia ser utilizado por pessoas sem deficiências. As pesquisas ficaram praticamente estagnadas até 1965, quando a General Electric criou o primeiro exoesqueleto com funções práticas, o Hardiman, para o Exército americano. A proposta não era a utilização por deficientes, mas sim o aprimoramento das capacidades físicas de soldados. Os braços das vestes robóticas levantavam 700 quilos de carga. O problema é que a General Electric não conseguiu habilitar o Hardiman para ser controlado pelo corpo humano. Os complexos comandos tinham de vir de computadores, e era preciso ter noções de programação para executá-los. Nas últimas cinco décadas, foram três os empecilhos para a popularização: o preço das vestes, de dezenas de milhões de dólares; a dificuldade de controlá-las; e a necessidade de baterias imensas para energizá-las. Era preciso investir muito dinheiro para avançar. Em 2001, o governo americano, incomodado com a onda terrorista da Al Qaeda, investiu 50 milhões de dólares em um plano para criar vestes militares que simulassem qualquer movimento humano, alimentadas por baterias simples. A Lockheed Martin criou um protótipo que permitia que um soldado carregasse 91 quilos, sem o uso de sua força, por distâncias de até 20 quilômetros, o limite da bateria do exoesqueleto. Agora, acaba de ser apresentada uma versão comercial. Trabalhadores braçais, como os da construção civil, têm a fadiga muscular reduzida em até 300%, o que deve aumentar sua produtividade em 27 vezes. Estudos do uso de exoesqueletos por deficientes físicos correram em paralelo às aplicações militares. No início dos anos 2000, um dos maiores nomes dessa área foi o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, pesquisador da Universidade Duke, nos Estados Unidos. Ele avançou em suas pesquisas ao conseguir recriar no cérebro, com o apoio de próteses, a sensação cerebral do toque. Nicolelis, porém, decepcionou seus pares em 12 de junho deste ano, ao apresentar um exoesqueleto considerado ultrapassado (até por ele mesmo, há dois anos), na abertura da Copa do Mundo no Brasil. O neurocientista prometia fazer um paraplégico comandar a máquina com estímulos de implantes neurais, o que não conseguiu realizar. A meta não foi alcançada por ele, mas outros grupos de cientistas, como um da Universidade Brown, obtiveram êxito em 2012. Para muitos pesquisadores, a melhor solução para ajudar os deficientes não é um exoesqueleto completo, mas sim a recriação de partes do corpo, extensões mecânicas, a exemplo de olhos, ouvidos, braços e pernas biônicos. É o caso de Hugh Herr, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (o MIT), que comercializa, por sua empresa, a BiOM, próteses desenhadas de acordo com a necessidade do usuário (veja, na pág. ao lado, a entrevista com Herr). Para si mesmo, deficiente desde a adolescência, fabricou pernas mecânicas de modo a poder praticar seu esporte favorito, o alpinismo. No início deste ano, Herr apresentou uma versão que recuperou os movimentos fluidos de uma dançarina que havia perdido uma das pernas, depois de ser atingida por uma das duas bombas do atentado na Maratona de Boston de 2013, no qual terroristas mataram três pessoas e feriram 264. Diz Herr: "É inadmissível que, como seres pensantes e criadores, aceitemos deficiências físicas ou mesmo limitações impostas pela natureza, quando podemos enfrentar esses obstáculos com nossa tecnologia". Tecnologia que se mostra cada vez mais acessível. Foi para provar isso que o hacker americano James Hobson exibiu, na semana passada, um exoesqueleto que fabricou em casa, ao custo de poucos milhares de dólares. Com sua roupa robótica, alimentada por uma bateria similar à de um carro e com design inspirado no herói Homem de Ferro, ergueu halteres de 80 quilos, sem esforço. Como o ReWalk, o primeiro exoesqueleto doméstico, dá a paraplégicos a oportunidade de andar de novo PREÇO 69.500 dólares PESO DO EQUIPAMENTO 2,3 quilos * Os comandos "em pé", “andar", "subir", "descer" e "sentar" são dados por um controle no pulso * O exoesqueleto se move com a energia de uma bateria recarregável levada como uma mochila e com duração de até 24 horas • Para usá-lo, é preciso ter entre 1,60 e 1,90 metro de altura e pesar até 100 quilos * Peso sentido pelo usuário. O total é de 20 quilos EM PÉ Ao acionar essa função, o dispositivo emite um aviso sonoro de três bipes e as pernas mecânicas levantam o usuário em cinco segundos, mas a pessoa precisa se apoiar em muletas para não perder o equilíbrio ANDAR • O paraplégico seleciona "andar" no controle, posiciona-se em uma inclinação de 6 graus para a direção para a qual quer ir e balanceia seu peso de uma perna para a outra, utilizando as muletas — de forma similar a uma caminhada convencional • O exoesqueleto se move a 20 centímetros por segundo, um quinto da velocidade média de uma caminhada, e finaliza o movimento quando usuário deixa o torso reto SUBIR E DESCER ESCADAS As pernas mecânicas se dobram e realizam o movimento apropriado para subir degraus SENTAR Ao escolher esse modo, o equipamento emite um aviso sonoro de três bipes e as pernas mecânicas fazem o movimento contrário ao de ficar de pé DEMASIADAMENTE HUMANO O americano Hugh Herr foi obrigado a deixar o sonho de ser alpinista profissional quando teve amputadas as pernas, aos 17 anos, em decorrência de um acidente em uma escalada. Depois do baque inicial, transformou a deficiência em desafio. Herr se dedica ao desenvolvimento de próteses que devolvem capacidades motoras a deficientes e permitem a pessoas aptas a superação de limites. Professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (o MIT), consagrou-se em sua área. Entre as suas criações, desenvolveu próteses, com lâminas no lugar de pés, que permitiram seu retorno às escaladas. Qual foi a reação dos outros atletas à sua volta ao alpinismo? Primeiro, viram como um ato de coragem e não paravam de me elogiar. Passadas algumas competições, começaram a me provocar, dizendo que eu trapaceava. Seria injusto competir comigo por causa de minhas próteses especiais, desenvolvidas para a escalada, que permitiriam acesso a trilhas inalcançáveis para os outros. Além disso, o metal não cansa, diferentemente dos músculos humanos, o que me dá resistência muito, muito maior nas provas. Concordo que a máquina turbina o corpo humano, mas também foi necessário muito treinamento para voltar a escalar. Como as próteses superam o corpo humano? É usual utilizar a tecnologia para aumentar nossas capacidades. O avião, o carro, o trampolim, todos fazem isso, em essência, ao permitir o voo, a locomoção rápida por terra, ou ainda que pulemos a alturas inimagináveis antes do advento das tecnologias certas para isso. O avanço que presenciamos agora, com exoesqueletos e membros biônicos, é o da integração à fisiologia humana. Máquina e homem, combinados, se mostram cada vez melhores do que sozinhos. Já temos um exemplo desse tipo de conexão, com os computadores. Sós, nada fazem, pois precisam de alguém para programá-los. E nós, com os computadores, nos tornamos melhores, pois passamos a ter memórias estendidas. Essas inovações já superam o corpo humano, a ponto de uma perna mecânica ser melhor que uma biológica? Sim e não, ao mesmo tempo. Ainda não conseguimos imitar a invejável versatilidade dos membros naturais. Com suas pernas, é possível andar, pular, correr, escalar, dirigir um carro, pedalar uma bicicleta, nadar. Preciso de várias próteses diferentes, cada uma adaptada para uma atividade, se quiser praticar tantas ações. Já conseguimos criar próteses capazes de superar humanos em algo muito específico. Mas não uma que permita que voltemos a viver normalmente. Essa é a grande missão, que devemos cumprir em breve. É possível imaginar um futuro em que mesmo quem não tem deficiência escolha usar extensões biônicas para o próprio corpo? Tradicionalmente, a tecnologia muda o conceito do que é normal. Ter algo artificial no corpo, para melhorá-lo, pode vir a se tornar aceitável por todos. Mas há questões morais importantes em relação a isso. Se a pessoa tem um membro artificial, ela continua sendo humana? A maioria responderá que sim. E se ela tem quatro membros artificiais? Alguns talvez respondam que não. Quão longe poderemos ir, antes de nos tornarmos seres puramente artificiais? Acredito que, por mais avançadas, ou presentes, que sejam, as tecnologias jamais acabarão com nosso sentimento de humanidade. DO CAMPO DE BATALHA... A americana Lockheed Martin começou criar em 2001 exoesqueletos que aprimoram as capacidades físicas de soldados ...PARA AS FÁBRICAS Neste ano, a inovação ganhou uma versão para uso civil, que aumenta a força e reduz a fadiga de trabalhadores braçais. ______________________________________ 7# ARTES E ESPETÁCULOS 10.9.14 7#1 TELEVISÃO – VÍDEO POR TODO LADO 7#2 ARTE – POBRISMO DE BUTIQUE 7#3 CINEMA – BATIDA CARIOCA 7#4 VEJA RECOMENDA 7#5 OS LIVROS MAIS VENDIDOS 7#6 J.R. GUZZO – DINHEIRO FALSO 7#1 TELEVISÃO – VÍDEO POR TODO LADO Uma pesquisa realizada pelo Google mapeia os hábitos ao espectador brasileiro em uma nova paisagem com inúmeras opções (e telas) para quem deseja ver televisão. BRUNO MEIER O Hitler interpretado pelo suíço Bruno Ganz no filme A Queda! passa uma carraspana no Estado-Maior nazista, mas a legenda malandra diz que ele está comentando o vergonhoso placar de 7 a 1 do jogo Alemanha x Brasil. O ator Benedict Cumberbatch toma repetidos baldes de água gelada na cabeça — parte de uma campanha internacional que molhou e gelou outras tantas celebridades, de Mark Zuckerberg a Gisele Bündchen, todas empenhadas em levantar fundos para a pesquisa sobre a esclerose lateral amiotrófica, uma devastadora doença degenerativa (a campanha levantou mais de 100 milhões de dólares). Menos ambicioso e sem nada de filantrópico, o vídeo de um garoto pilotando um carrinho de rolimã no interior de Santa Catarina tornou-se "viral", com mais de 2 milhões de visualizações, e consagrou o bordão “taca-lhe pau nesse carrinho, Marcos'". Corta para aquele já ancestral aparelho que ainda ocupa o centro de muita sala de estar — o televisor. Exibido a partir de abril, o programa humorístico Tá no Ar: a TV na TV levantou o humor da Rede Globo ao exibir Marcelo Adnet e Marcius Melhem em esquetes rápidos, com cortes bruscos para simular a troca de canal compulsiva do espectador que conta com centenas de canais na TV por assinatura. No ingrato horário de meia-noite, às quintas-feiras, o programa registrou média de 10 pontos de audiência. Mas acabou sendo visto e revisto, de fato, pela internet: no portal da Globo, estourou em acessos, superando até as novelas. Poucos serão os brasileiros que não viram pelo menos uma das imagens mencionadas até aqui. Sete entre dez usuários regulares da internet — e eles representam 51% da população brasileira — assistem a vídeos on-line. O maior site de vídeos do mundo, o YouTube, tem o Brasil, com 60 milhões de visitantes únicos por mês, como seu segundo maior consumidor, atrás apenas dos Estados Unidos. Só em 2013, o aumento de visualizações no YouTube no país foi de 18%, maior que nos Estados Unidos (que regrediu 1%) e na Inglaterra (11%). Também supera o crescimento médio mundial (3%). Interessado nesses números robustos, o Google (que tem o YouTube entre suas várias subsidiárias) fez uma pesquisa abrangente sobre como os brasileiros consomem vídeo. Durante três meses, 1500 homens e mulheres de 14 a 55 anos, residentes em São Paulo (a cidade e o interior do estado), Rio de Janeiro, Recife, Salvador e Porto Alegre, foram entrevistados ao vivo e pela internet. A amostra pretende ser representativa dos 127 milhões de brasileiros que consomem vídeo regularmente. Em média, eles vêem 22 horas de TV semanais e oito horas de conteúdo on-line. O Google concluiu que 24% deles — fatia que somaria 30 milhões de pessoas — já passam na internet metade do seu tempo dedicado aos conteúdos audiovisuais. Os pesquisadores traçaram três perfis de consumidores de vídeo (veja o quadro ao lado). "As maiores diferenças não estão na faixa etária ou na localização geográfica. Um adolescente pode ser noveleiro e um idoso pode ser muito conectado. O que faz a diferença nos hábitos são a renda, a escolaridade e o acesso à tecnologia", diz Maria Helena Marinho, gerente de pesquisa de mercado do Google. Como atestam as categorias definidas pela pesquisa, quanto maiores a escolaridade e a renda, maior o consumo pela internet. A nova paisagem audiovisual vem sendo reformulada por tecnologias cada vez mais portáteis (tablets e smartphones), além de gadgets e serviços que permitem ao espectador ver o que ele deseja no horário que lhe convém (gravadores digitais, empresas de venda de filmes e séries à la carte, transmissão de vídeos por streaming). No Brasil e no mundo, o aparelho de TV ainda é a maior porta de entrada de conteúdo audiovisual, mas a concorrência é forte. O país tem 276 milhões de celulares e quase 11 milhões de tablets. Com 1,3 bilhão de visualizações, o canal campeão de audiência no YouTube brasileiro, o infantil Galinha Pintadinha, é um exemplo claro do crescimento de acessos por dispositivos móveis: 30% de suas visualizações já são feitas por celular, e outros 9,5% vêm dos tablets. Em 2013, os clipes da Galinha vistos por esses meios eram 280.000 por dia; hoje, são 800.000. O Google tinha um interesse especial em saber que parcela dos brasileiros já busca mais vídeo na internet do que na TV. A resposta superou a expectativa: uma parcela correspondente a 12% dos espectadores assiste, em média, a 19,7 horas semanais on-line, contra 10,4 horas de televisão. Os diferentes meios — TV aberta, TV por assinatura e internet — servem a diferentes propósitos. Em 70% dos casos, o espectador associa jornalismo diário à TV aberta, que também é o meio favorito para quem deseja ver esporte, reality shows e, obviamente, novelas. Quase metade dos que buscam programas para crianças opta pelos canais da TV paga — e nesse segmento, apesar da potência da Galinha Pintadinha, o YouTube perde feio. A TV paga (que fechou julho com 19,08 milhões de assinantes) também é a preferida quando se deseja ver séries, shows e programas de gastronomia. O universo dos videogames, por outro lado, é gigantesco nos vídeos on-line: são 30 milhões de assinantes de canais sobre games no Brasil. Entre os que gostam do gênero, 48% buscam a internet, contra 13% da TV paga e pífios 7% da aberta. No humor, a TV aberta ainda lidera, com 48%, mas a internet já quase encosta nela, com 32%. Dos dez principais canais brasileiros do YouTube em número de assinantes, sete são humorísticos. A liderança nesse setor é do profissionalíssimo Porta dos Fundos, cujo sucesso ensejou uma onda de sites de comédia. Nessa leva, entraram do escrachado Galo Frito (com 5,8 milhões de assinantes) ao Desimpedidos, que faz graça sobre o mundo dos esportes. No YouTube, há também uma impressionante variedade de shows musicais, e o espectador já sabe disso: 59% buscam on-line as apresentações de seus artistas favoritos. Aulas e programas de ciência, como os do canal Manual do Mundo, também são muito procurados no portal de vídeos. Uma notícia surpreendente, e boa: Brasil, Estados Unidos e Inglaterra são os três países em que esse segmento tem mais audiência. Para melhor atender a essa demanda, há um ano foi lançado no Brasil o YouTube.com/edu, portal que reúne e organiza os vídeos educativos. As produções caseiras e os vídeos amadores ainda são, claro, a maior parte do que se põe no YouTube. Mas, ao lado disso, há uma forte profissionalizacão do vídeo para a internet, como se vê nos exemplos destacados ao longo desta reportagem. O Google destacou um time de cinco especialistas do mercado de entretenimento para dar consultoria estratégica a 35 grandes canais brasileiros do YouTube. Outros 6500 canais que teriam algum potencial são acompanhados de forma mais distante: não há atendimento pessoal, mas a empresa manda 2 e-mails. "O relevante não é o vídeo que se torna viral mas logo depois some. O que nos entusiasma são os canais feitos por pessoas criativas, por contadores de histórias, gente que se dispõe a investir nessa produção", diz Álvaro Paes de Barros, diretor de conteúdo do YouTube. Os eleitos pelo Google são remunerados pela publicidade postada antes dos vídeos. E o comercial feito para o YouTube criou uma nova pressão sobre os publicitários: como o usuário pode "pular" o anúncio depois dos cinco primeiros segundos, o desafio é convencê-lo a ver a coisa toda. Estima-se que aqui apenas 15% das pessoas assistam aos comerciais do começo ao fim. Aqueles segundinhos iniciais são, portanto, decisivos: nesse curto período, é preciso fazer, na definição de Eco Moliterno, diretor de criação da agência Africa, a "propaganda da propaganda". Para os produtores de vídeo que têm a ambição de se profissionalizar — ou, pelo menos, de ter um número mais expressivo de views —, o YouTube montou um manual do criador. Há dicas para fisgar o espectador logo no início da produção e para dar ao seu vídeo um título que "pegue". A análise de informação também é vital. Com base nos dados do YouTube Analytics, que examina o tempo médio que os usuários permanecem vendo um vídeo, um canal brasileiro de culinária fez uma mudança importante. Os números mostravam que os espectadores largavam o vídeo quando os apresentadores começavam a comer os pratos preparados — e por isso o momento da degustação foi adiado bem para o final. E ainda mal se está desbravando esse novo mundo de muitas telas. NAÇÃO DIGITAL * Há 70 milhões de espectadores de vídeo on-line no Brasil – 13% de crescimento em relação a 3012. * O brasileiro que conta com conexão com a internet ocupa, em média, 27% de seu consumo de vídeo na rede. * No último ano, o número de brasileiros que usam multitela – por exemplo, veem TV com o tablete na mão – cresceu de 30 para 40 milhões. COMO OS BRASILEIROS VÊEM VÍDEO Uma pesquisa do Google sobre os hábitos do espectador brasileiro - de TV e de vídeos pela internet - dividiu o público em três grandes categorias. OS LIGHT VIEWERS Essa parcela abrange 24% do total de brasileiros conectados, ou 30 milhões de pessoas. Descontente com a programação da TV aberta brasileira, esse grupo já passa metade de seu tempo de consumo de vídeo na internet .Também procura serviços sob demanda, como o Now e o Netflix. Sua grande queixa: a banda larga brasileira ainda é ruim, o que dificulta o acesso aos vídeos. Horas de vídeo por semana TV 7,6 Internet 7,8 A que classe social eles pertencem? 9% estão na classe A 45% estão na classe B 46% estão na classe C A renda média familiar desse grupo é de 3270 reais 19% têm diploma universitário. O que eles gostam de ver? Séries, documentários e programas de gastronomia, ciência e tecnologia. Também adoram jogos, educação (incluindo aulas) e vídeos tutoriais. André de Oliveira, 32 anos, administrador, São Paulo Oliveira desdenha a programação da TV aberta: "Aíão tem nada que preste". Sua maior fonte de informação está na rede WhatsApp, na qual compartilha comentários e notícias com amigos. "Não tenho tempo de ver telejornal", diz. Ele assiste, no computador, aos vídeos do grupo Porta dos Fundos. Também vê séries na TV por assinatura - sempre com o notebook no colo. OS MEDIUM VIEWERS Essa parcela abrange 33% do total de brasileiros conectados, ou 41,9 milhões de pessoas. Dos três grupos, é o mais jovem. O celular é a tela de preferência. Os integrantes dessa categoria comunicam-se em redes sociais e aplicativos como o WhatsApp, nos quais buscam os vídeos "virais" do momento. Quando param na frente da TV, estão acompanhados de uma segunda tela, seja de celular ou tablete. Horas de vídeo por semana TV 45,1 Internet 7,1 A que classe social eles pertencem? 6% estão na classe A 39% estão na classe B 55% estão na classe C A renda média familiar desse grupo é de 3081 reais 20% têm diploma universitário. O que eles gostam de ver? Programas de humor, novelas, séries, música, shows, reality shows. Brenno Danho, 19 anos, estudante, Rio de Janeiro O mural dos amigos de Danho no Facebook é repleto de vídeos - a maioria deles, admite, é bobagem. Ele se queixa da falta de wi-fi na universidade em que estuda. "Recebo vídeos a toda hora, mas nem sempre consigo vê-los, porque não posso estourar meu limite de internet no celular." Assiste a séries como Game of Thrones, Glee e Doctor Who no computador. Na TV aberta, o programa favorito é The Voice, da Globo. OS HEAVY VIEWERS Essa parcela abrange 43% do total de brasileiros conectados, ou 54 milhões de pessoas Seus integrantes passam 80% do tempo de consumo de vídeo na W. O Google divide essa categoria em dois subgrupos: o daqueles que buscam a liberdade de ver o que querem na hora em que querem, valendo-se dos gravadores digitais, e o dos espectadores tradicionais, que vêem TV junto com a família. Horas de vídeo por semana TV 37,1 Internet 9 A que classe social eles pertencem? 4% estão na classe A 36% estão na classe B 60% estão na classe C A renda média familiar desse grupo é de 2884 reais 15% têm diploma universitário. O que eles gostam de ver? Filmes, séries, documentários, shows, programas de saúde e beleza, games e ciência e tecnologia. NÃO É BRINQUEDO Com 5,8 bilhões de visualizações, o canal PewDiePie, do sueco Felix Kjellberg, de 24 anos, tem o maior número de assinantes no mundo: 30 milhões de usuários. O tema? Games. No Brasil, dos 100 canais com maior número de seguidores, 33 são sobre jogos, e reúnem um total de 30 milhões de assinantes. O fluminense Eduardo Faria, de 33 anos, é dono do maior dos canais brasileiros desse gênero, o Venom Extreme, com 450 milhões de visualizações. Nos seus programas, Faria joga, comenta e reage com o personagem que está em ação - se ele leva um tiro no game, grita. De sua casa em Teresópolis, produz, grava e edita sozinho os vídeos que atualiza diariamente. Com um público concentrado entre os 10 e os 14 anos, ele não se permite falar palavrão. "Quando algo surpreendente acontece, digo apenas 'caraca, sou bom'", diz. Para alcançar o público infantil, criou também o canal Diário de um Leitão, cuja estrela é seu buldogue inglês. O YouTube ainda não é um terreno fértil para a programação infantil: 49% das pessoas que procuram programas para seus filhos continuam a fazê-lo na TV paga, segundo a pesquisa do Google. No entanto, a internet brasileira já conta com um grande fenômeno: a Galinha Pintadinha, criada em 2006 pelos produtores paulistas Marcos Luporini e Juliano Prado. Com vídeos de canções populares dirigidos a crianças de até 4 anos, o Galinha Pintadinha permanece o canal mais visto do Brasil, com mais de 1,3 bilhão de visualizações em apenas 34 vídeos. O sucesso é internacional: o canal em espanhol, Gallina Pintadita, alcançou 1,2 milhão de visualizações diárias. Há dois anos, os donos do Galinha Pintadinha diziam a VEJA que estavam longe de ficar ricos, e continuavam a comer pão com mortadela. "Hoje, a mortadela já é importada", brinca Juliano Prado. PIADA DE FUTEBOL O Porta dos Fundos é um marco do profissionalismo na produção de vídeos para a internet. Em dois anos de existência, o grupo humorístico alcançou 1 bilhão de visualizações. A força do negócio permitiu que os cinco sócios originais contratassem a argentina Juliana Algañaraz, até então da Endemol Brasil, para ser a CEO da empresa. "A turma deixou a ideia de produção entre amigos para virar geradora de conteúdos", diz Juliana. Os esquetes que até aqui só eram exibidos on-line vão ganhar a TV por assinatura, com um programa na Fox a partir de outubro - e a ideia deve ser exportada para um canal aberto de Portugal. Conhecido na internet como Kibe Loco, Antonio Tabet, um dos criadores do Porta dos Fundos, tem mais um canal no YouTube, o esportivo Desimpedidos. Lançado em junho de 2013, ele foi planejado em oito meses e montado com estrutura profissional similar à do grupo humorístico. Como sócios de Tabet estão o consultor esportivo André Barras, o apresentador Felipe Andreoli e o jogador Kaká. "Faltava um canal que mostrasse aquilo que cerca os jogos, como a movimentação das torcidas. É um papo leve, sem nada de coxinha", diz Barras. O canal foi puxado pela Copa do Mundo: sua página do Facebook, até então curtida por 150.000 pessoas, bateu em 1 milhão. O Desimpedidos pretende ser apenas a ponta de um negócio chamado Network, rede de canais apoiada por um fundo de investimento privado, que lançará em breve programas de skate, surfe e automobilismo, este com Rubens Barrichello. QUEM SABE ENSINA "Oi, minhas vaidosas lindas." Assim começa o programa de Camila Coelho, que ensina técnicas de maquiagem. Aos 26 anos, ela tem o principal canal de beleza do YouTube no Brasil, com mais de 146 milhões de visualizações. Radicada em Boston, Camila chegou aos Estados Unidos aos 14 anos e, quatro anos depois, começou a trabalhar como maquiadora numa loja de departamentos. Inaugurou seus vídeos em 2010, com produção bem caseira: a iluminação dependia do sol que entrava pela janela do apartamento. Hoje, seu canal e seu site de comportamento contam com anunciantes, que pagam merchandising ou contratam campanhas específicas - ela já fez looks (para usar a linguagem das blogueiras de moda) para uma marca brasileira em Cannes e protagonizou uma websérie para uma empresa de cosméticos. "Ajudo as pessoas a ficarem mais bonitas e melhoro a autoestima delas", diz. Camila enquadra-se em um gênero popular no YouTube: vídeos tutoriais, que ensinam a realizar tarefas práticas, como dar nó na gravata ou trocar a resistência do chuveiro. Numa vertente também prática, mas com finalidade educativa, o jornalista paulista Iberê Thenório, de 32 anos, criou, com a colaboração da mulher, a terapeuta Mariana Fulfaro, um canal para exibir experiências de química e física - o vídeo mais acessado, com 6 milhões de cliques, ensina a congelar água em um segundo. Thenório também começou de forma amadora, em seu apartamento de 35 metros quadrados em São Paulo. "Era uma loucura. O tripé, a câmera e as experiências ficavam debaixo da cama", diz. Hoje, seu Manual do Mundo tem 2,3 milhões de assinantes (70% deles, homens entre 18 e 24 anos). Foram contratados dez colaboradores e uma casa foi alugada para a gravação e a edição dos programas. Nos últimos três anos, a procura por vídeos de educação no Brasil aumentou em mais de 270%. 7#2 ARTE – POBRISMO DE BUTIQUE Sobra discurseira política e falta arte de verdade na nova edição da Bienal de São Paulo. Feias, aborrecidas e baratas — eis o tripé que resume as obras engajadas da mostra. MARCELO MARTHE E MÁRIO MENDES Nas páginas policiais dos jornais de Belém do Pará, imagens de jovens bandidos surgem com desoladora fartura. Na 31ª edição da Bienal Internacional de São Paulo, com abertura neste sábado, dia 6, sete dessas figuras roubam a cena. Mas calma, não se trata de nenhum arrastão: são só grandes retratos de delinquentes anônimos que tomam duas paredes do prédio da Bienal. O mural do paraense Éder Oliveira se impõe como o item mais marcante entre os 250 trabalhos de artistas de 34 países não apenas por suas dimensões. A obra sintetiza certa corrente estética celebrada no evento: o "pobrismo''. Pode-se defini-la como um angu de caroço em que cabem a militância em prol das minorias, a denúncia de supostas injustiças sociais e o ataque contra os inimigos de sempre, do capitalismo ao papa. Não faltam exercícios de relativização moral típicos do marxismo jacu. "Chamados corriqueiramente pela imprensa de bandidos ou criminosos, a maior parte desses retratados são caboclos", lê-se no texto de apresentação da obra de Oliveira. Ora, o fato de um bandido ser sueco ou caboclo não faz dele menos criminoso, cara-pálida. As coisas funcionam assim no mundo real, mas não tão corriqueiramente no universo paralelo habitado pelos curadores (que também apreciam o primo-irmão do pobrismo, o "coitadismo"). O pecado estaria só em opiniões ingênuas ou posições políticas rasteiras, não fosse um detalhe que o público logo descobre: a arte "pobrista" é profundamente chata. A nova Bienal consegue ser mais intragável que as duas fracas versões anteriores. O único que se salva é um estranho nesse ninho da demagogia: o polonês Edward Krasinski (1925-2004), autor de esculturas que flutuam com rigor e leveza em uma sala escura. O tom de sermão político já havia sido anunciado, dias antes da abertura, com a notícia dos 55 artistas que se rebelaram contra a presença de Israel entre os patrocinadores — o conflito com os palestinos na Faixa de Gaza estava então no auge. Mas o problema não consiste em abordar política ou pobreza na arte. Entre as glórias do Renascimento Nórdico estão as pinturas de mendigos e camponeses miseráveis do flamengo Pieter Bruegel, o Velho (1525-1569). A denúncia da opressão inspirou uma obra-prima modernista como o painel Guernica, criado por Pablo Picasso nos anos 30, em reação à Guerra Civil Espanhola. Em vez de dar ao tema tratamento digno, o pobrismo contemporâneo parte de uma premissa preconceituosa: se é para falar de pobre, tem de ser feio e com cara de barato. Sacar de ideias pobres é dever de todo artista pobrista. Os incautos que se derem ao trabalho de subir a escada rolante que leva a uma videoinstalacão boboca do canadense Mark Lewis saberão do que se trata. Materiais pobres também são a regra. Uma das obras consiste em uma casinha de madeirite que lembra um barraco de favela (ops, favela não: comunidade). A indigência técnica é mais uma chaga. O maranhense Thiago Martins de Melo fala de "mártires" da Amazônia lançando mão de uns totens — bons para assustar criancinhas — de material reciclado, além de telas de cor berrante com a face de vultos reverenciados como o líder seringueiro Chico Mendes (1944-1988). É um barateamento grotesco dos murais pintados pelo mexicano Diego Rivera no começo do século XX. O elemento que dá liga ao "pobrismo", por fim, é a pobreza de espírito. O ataque ao catolicismo perpetrado pelo coletivo argentino Etcétera, com base na obra do compatriota León Ferrari (1920-2013), é de uma primariedade indecente. Há imagens da Virgem e caveiras cobertas de baratas. O visitante pode subscrever um abaixo-assinado que pede ao papa a abolição do Inferno (?!). Na sala ocupada pelo coletivo, nada é mais emblemático que uma montagem na qual a capa do L’Osservatore Romano, jornal oficial do Vaticano, é coberta por preservativos... Ooooh! Como peça de militância, a malcriação seria perfeitamente legítima. Mas isso não a credencia como exemplo de grande arte. Esperar tanto do "pobrismo'', aliás, já seria demais. O que alimenta a tendência não é o desejo dos artistas de alcançar o sublime, mas a necessidade de grande parte do público de expiar o peso da consciência. Seu fã é em geral o bem-nascido que acha bacana ver documentários de Eduardo Coutinho e se arrepia com o populismo enrolado do rapper Criolo. Pobres de verdade não se reconheceriam no pobrismo. Ironicamente, o mote da mostra é "a Bienal do invisível". Porém, não há nada mais concreto e palpável do que esse pobrismo de butique. 7#3 CINEMA – BATIDA CARIOCA Em Rio Eu Te Amo, histórias e personagens se misturam aleatoriamente como num drinque de cachaça com groselha. O filme de episódios, reunindo três ou mais diretores, foi moda no cinema italiano dos anos 60 e rendeu pelo menos um clássico: Boccaccio 70 (1962). Tratava-se de uma ação entre amigos, com grandes realizadores, como Fellini e Visconti, exercitando-se em narrativas breves com as estrelas de então, como Sophia Loren e Alain Delon. Esse formato foi resgatado de maneira ambiciosa pela franquia Cities of Love, que teve início em 2006 com Paris Eu Te Amo, no qual 22 cineastas de diferentes nacionalidades contavam histórias de amor usando as várias regiões da cidade como cenário e inspiração. Dois anos depois, Nova York Eu Te Amo reuniu onze diretores. Agora, a franquia se transfere para o Brasil com número idêntico de autores. Se os filmes anteriores foram comparados respectivamente a um suflê e a uma sessão de terapia, Rio Eu Te Amo (Brasil/Estados Unidos, 2014), que estreia nesta quinta-feira, fica mais para a esquisitice de cachaça com groselha. Mistura doce e amargo, tem momentos de tola euforia e provoca o porre inevitável. No episódio de abertura, de Andrucha Waddington, Fernanda Montenegro é a mendiga que explica ao neto (Eduardo Sterblitch, do Pânico na Band) por que prefere viver nas ruas a voltar para um lar de classe média. O mexicano Guillermo Arriaga pesa a mão no conto do boxeador (Marcio Rosário) que perdeu um braço em um acidente e tem ainda de lutar pela vida de sua mulher (Laura Neiva), uma modelo que ficou paraplégica. Na visão do coreano Sang-soo Im, vampiros caem no samba no Vidigal, enquanto um astro de cinema (Ryan Kwanten, de True Blood) convence seu motorista carioca (Marcelo Serrado) a escalar com ele o Pão de Açúcar, com as mãos nuas, na história dirigida pelo australiano Stephan Elliott — do purpurínico Priscilla, a Rainha do Deserto. O porre fica por conta dos casais aborrecidos: John Turturro dirige e estrela o episódio do marido que, a um só tempo, faz juras de amor e destrata a mulher (Vanessa Paradis, envelhecida), e Carlos Saldanha não empolga com a crise de um casal de bailarinos (Bruna Linzmeyer e Rodrigo Santoro), que discute a relação durante um pas de deux. Destacando-se na paisagem conhecida — que também tem escultura de areia, voo de asa-delta e menino de rua — está o italiano Paolo Sorrentino. Da poesia e do cinismo de A Grande Beleza, ele mantém apenas o segundo ingrediente ao acompanhar a ida à praia de um velho rico e doente (Basil Hoffman) com sua bem mais jovem e mimada esposa (Emily Mortimer). É uma injeção de vigor antes do próximo destino no roteiro de Cities of Love, a chinesa Xangai. MÁRIO MENDES 7#4 VEJA RECOMENDA BLU-RAY AS AVENTURAS DE PEABODY E SHERMAN (MR, PEABODY & SHERMAN, ESTADOS UNIDOS, 2014. FOX/SONY) • Um tantinho pedante, mas com coração de ouro, o cão Mr. Peabody nunca achou uma família que se interessasse em tirá-lo do canil: estava sempre mergulhado nos livros e não tinha o menor jeito para fazer gracinhas. Mr. Peabody, então, decidiu preencher essa lacuna com ciência, cultura e esportes, transformando-se em um dos maiores gênios do planeta. E, já célebre e rico. tornou-se pai adotivo do garoto Sherman, um menino alegre que, no entanto, no primeiro dia de escola, entra numa briga feia com a coleguinha Penny — se o pai dele é um cão, então ele deve ser um cachorrinho, provoca maldosamente a garota. Mr. Peabody promove um jantar de reconciliação que vai virar uma bagunça: Sherman e Penny entram sem autorização na máquina do tempo de Mr. Peabody, metendo-se em apuros no Egito antigo, na Guerra de Tróia e por aí vai. Primeiro trabalho de Rob Minkoff como diretor de um desenho desde seu sucesso estratosférico O Rei Leão, esta animação tem óbvios intuitos pedagógicos, não só nas suas lições de história como também nos seus ensinamentos sobre tolerância. CINEMA ERA UMA VEZ EM NOVA YORK (THE IMMIGRANT, ESTADOS-UNIDOS, 2013. ESTREIA NO PAÍS NESTA QUINTA-FEIRA) • Em quase todos os seus filmes — Fuga para Odessa, Caminho sem Volta, Os Donos da Noite —, o diretor James Gray explorou seu fascínio com os códigos peculiares das comunidades de imigrantes estabelecidas em Nova York. Aqui, porém, ele apanha esse fenômeno na origem. Em 1921, a polonesa Ewa (Marion Cotillard) é separada da irmã tuberculosa pelas autoridades de imigração de Ellis Island e colocada na fila da deportação: não só teve contato com uma doente contagiosa como protagonizou um episódio obscuro de "imoralidade" no navio que a levou até os Estados Unidos. E salva pelo dúbio Bruno Weiss (Joaquin Phoenix), que cobra um preço alto pelo favor, prostituindo Ewa. A imigrante, porém, tem um desejo feroz de assumir o controle de sua situação, seja por meio dos tios poloneses já radicados na cidade — que a traem de maneira inesperada —, seja através do galante Orlando, o Mágico (Jeremy Renner), o primo que Bruno detesta. Era uma Vez em Nova York compõe, assim, um conjunto curioso com os outros filmes de Gray: em vez de deter-se sobre as regras tribais das comunidades, analisa o pavor e o desespero dos que são apartados delas. DISCO TURN BLUE, THE BLACK KEYS (WARNER) • Consagrado no circuito dito independente americano, The Black Keys conquistou o grande público com El Camino. Produzido pelo DJ Danger Mouse, o disco de 2011 acrescentava um certo polimento pop ao rock vibrante e visceral dos trabalhos anteriores da dupla formada pelo baterista Patrick Carney e pelo guitarrista e cantor Dan Auerbach. Turn Blue, novamente com produção de Danger Mouse, é tão chacoalhante quanto o disco anterior. A faixa Fever reproduz a animação de Lonely Boy, hit de El Camino, com um toque a mais de sensualidade e malícia, e Gotta Get Away é um rock'n'roll com irresistível pulsação retro. Mas há também faixas em que o duo, em vez de entrar rachando, escolhe a lenta construção de climas e sonoridades. Weight of Love começa suave, com um violão acústico, e ganha peso e distorção aos poucos — a voz de Auerbach só entra lá pelos dois minutos, depois de um lancinante solo de guitarra. "Não se entregue ao peso do amor", diz a letra, que parece ecoar o turbulento fim do casamento de Auerbach — tema que reaparece em In Our Prime. LIVROS 4 CONTOS, DE E.E. CUMMINGS (TRADUÇÃO DE CLÁUDIO ALVES MARCONDES; COSACNAIFY; 48 PÁGINAS; 39,90 REAIS) • O americano Edward Estlin Cummings (1894-1962) é um poeta inconfundível. O vezo de usar apenas letras minúsculas em seus poemas, que assinava como e.e. cummings, é a marca mais óbvia, mas há inovações mais profundas — o modo, por exemplo, com que ele parece dissolver a sintaxe da língua inglesa. Mas, neste livro publicado postumamente, Cummings é, antes de um criador de novas formas verbais, um pai encantado que inventa histórias de ingênua fantasia para a filha. Três desses quatro contos foram escritos, nos anos 20, para a menina: O Velho que Só Perguntava "Por quê?". A Casa que Comeu Torta de Mosquito e A Menininha Chamada Eu. Em 1924, porém, a primeira mulher de Cummings divorciou-se dele e em seguida mudou-se, com um novo marido, para a Irlanda. A filha foi criada sem saber do pai, com quem só se reencontrou nos anos 40, quando ela mesma já tinha um filho. É então que Cummings produz O Elefante e a Borboleta, uma doce história de amizade que parece espelhar o encontro do poeta com o neto. DIÁRIO DE INVERNO, DE PAUL AUSTER (TRADUÇÃO DE PAULO HENRIQUES BRITTO; COMPANHIA DAS LETRAS; 216 PÁGINAS; 44 REAIS, OU 31 REAIS NA VERSÃO DIGITAL) • "É um fato incontestável que você não é mais jovem", lê-se nas primeiras páginas deste fragmentário livro de memórias. Eis aí o sentido do título: o inverno é a velhice (ainda que o autor também diga que, às vésperas de completar 64 anos, não chegou ainda ao que se chama de ''idade avançada"). O escritor americano Paul Auster examina sua idade madura, revisita a infância, relembra as mulheres que amou e especula sobre a morte. Autor afeito a prestidigitações narrativas, Auster cria certo distanciamento emocional ao falar de si mesmo sempre na segunda pessoa. Mas não há menos dor e humanidade porque o personagem é um "você" e não um "eu": na composição da figura da mãe, morta em 2002, Auster mostra que é um narrador consumado e um memorialista desassombrado. Talvez não seja um livro tão poderoso quanto A Invenção da Solidão, de 1982, que se centrava na figura do pai do autor — mas quem admirou aquela obra vai se sentir obrigado a ler este novo volume autobiográfico. 7#5 OS LIVROS MAIS VENDIDOS FICÇÃO 1- A Culpa É das Estrelas. John Green. INTRÍNSECA 2- Se Eu Ficar. Gayle Forman. Novo Conceito 3- Quem É Você, Alasca? John Green. MARTINS FONTES 4- Cinquenta Tons de Cinza. E.L. James. INTRÍNSECA 5- Cinquenta Tons de Liberdade. E.L. James. INTRÍNSECA 6- O Pequeno Príncipe. Antoine de Saint-Exupéry. AGIR 7- A Seleção. Kiera Cass. SEGUINTE 8- Felicidade Roubada. Augusto Cury. SARAIVA 9- A Guerra dos Tronos. George R.R. martin. LEYA BRASIL 10- Cidades de Papel. John Green. INTRÍNSECA NÃO FICÇÃO 1- Getúlio 1945-1954. Lira Neto. COMPANHIA DAS LETRAS 2- Mentes Consumistas. Ana Beatriz Barbosa Silva. PRINCIPIUM 3- Sonho Grande. Cristiane Corrêa. PRIMEIRA PESSOA 4- O Livro dos Negócios. Vários autores. GLOBO 5- O Diário de Anne Frank. Anne Frank. RECORD 6- O Livro da Psicologia. Nigel Benson. GLOBO 7- A Ilha do Conhecimento. Marcelo Gleiser. RECORD 8- Demi Lovato – 365 Dias do Ano. Demi Lovato. BEST SELLER 9- O Livro da Filosofia. Vários autores. GLOBO 10- O Demônio do Meio-Dia. Andrew Solomon. COMPANHIA DAS LETRAS AUTOAJUDA E ESOTERISMO 1- Ansiedade. Augusto Cury. SARAIVA 2- Não Se Apega, Não. Isabela Freitas. INTRÍNSECA 3- O Que Falta para Você Ser Feliz? Dominique Magalhães. GENTE 4- De Volta ao Mosteiro. James Hunter. SEXTANTE 5- As Regras de Ouro dos Casais Saudáveis. Augusto Cury. ACADEMIA DE INTELIGÊNCIA 6- Pais Inteligentes Formam Sucessores, Não Herdeiros. Augusto Cury. SARAIVA 7- O Monge e o Executivo. James Hunter. SEXTANTE 8- Casamento Blindado. Renato e Cristiane Cardoso. THOMAS NELSON BRASIL 9- Sonhos Não Têm Limites. Ignácio de Loyola Brandão. GENTE 10- Eu Não Consigo Emagrecer. Pierre Dukan. BEST SELLER 7#6 J.R. GUZZO – DINHEIRO FALSO Governos que mentem para o público o tempo todo acabam mais cedo ou mais tarde mentindo para si mesmos e, pior ainda, acreditando nas mentiras que dizem; o resultado é que sempre chegam a uma situação em que não sabem mais fazer a diferença entre o que é verdadeiro e o que é falso. Eis aí onde veio parar o governo da presidente Dilma Rousseff nestes momentos decisivos da campanha eleitoral. Muito pouco do que está dizendo faz nexo — resultado inevitável do hábito, desenvolvido já há doze anos, de navegar com o piloto automático cravado na contrafação dos fatos e na falsificação das realidades. Entre atender à sua consciência e atender a seus interesses, o governo jogou todas as fichas na segunda alternativa, ao se convencer de que seria muito mais proveitoso tapear o maior número possível de brasileiros com a invenção de virtudes do que ganhar seu apoio com a demonstração de resultados. Não compensa: para que fazer toda essa força se dá para comprar admiração, cartaz e votos com dinheiro falso? Foi o que concluíram, lá atrás, os atuais donos do país. Agora, como viciados em substâncias tóxicas, vivem na dependência da embromação; está muito tarde para mudar, e a única opção é continuar mentindo até o dia das eleições. Sua esperança é que a maioria dos eleitores, como acontece com frequência, ache mais fácil acreditar do que compreender. Para se ter uma ideia de onde foram amarrar nosso burro: o estado-maior da campanha de Dilma considerou que sua vitória mais importante no primeiro debate entre os candidatos foi ter escapado "de todas as perguntas difíceis". É triste. Quando a verdade é substituída pelo silêncio, ensina o poeta Ievgeni Ievtushenko, o silêncio torna-se uma mentira — talvez seja, aliás, sua modalidade mais eficiente. A partir daí, vale tudo, e por conta disso os brasileiros têm ouvido as coisas mais extraordinárias por parte do governo. Os candidatos da oposição, sobretudo Aécio Neves, foram publicamente acusados, por exemplo, de já terem decidido fazer uma recessão econômica se forem eleitos; no mesmo momento, comicamente, saíram os resultados da economia nos primeiros seis meses de 2014, mostrando que o Brasil andou para trás nos dois primeiros trimestres do ano. Ou seja: a recessão que os adversários iriam provocar no futuro já está sendo praticada pelo governo Dilma no presente. Na média dos seus quatro anos, por sinal, será o pior desempenho econômico do Brasil desde o presidente Floriano Peixoto. Diante dos canais de concreto em ruínas na obra de transposição do Rio São Francisco, que, segundo as mais solenes promessas do ex-presidente Lula, estaria pronta em 2010, depois em 2012 e hoje é um mistério em termos de prazo, Dilma disse em sua propaganda eleitoral que a culpa do atraso é da "curva do aprendizado" — ou seja, pelo que dá para entender, ainda não aprendemos a fazer direito esse tipo de coisa. Ainda? O Canal de Suez está pronto desde 1869, o do Panamá desde 1914: será que já não deu tempo de aprender? A Ferrovia Norte-Sul, que vem sendo construída pelos governos Lula-Dilma desde 2005, e que foi inaugurada mais uma vez em maio, contínua fechada ao tráfego de trens, por falta de equipamentos — para piorar, ladrões vêm roubando os trilhos. São os únicos, além das empreiteiras, para quem a ferrovia tem tido alguma utilidade. O programa de formação de mão de obra técnica, descrito como "o maior do mundo", formou até agora mais de 100.000 recepcionistas e manicures — o triplo do número de mecânicos. Em suma: já nem é mais um caso de mau governo. É anarquia. Um dos diretores mais influentes da Petrobras durante o governo do PT, tão graduado que assumiu 24 vezes a presidência da empresa em substituição aos titulares, está na cadeia desde março, entalado em espetaculares denúncias de corrupção: foi figura-chave na tenebrosa compra da refinaria americana de Pasadena e está no centro da investigação sobre as negociatas na construção da Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, um pesadelo cujo custo final pode passar dos 20 bilhões de dólares. Indagada a respeito, Dilma nada respondeu. Preferiu dizer que o grande problema da empresa foi a sugestão, feita no governo Fernando Henrique, de trocar o nome da Petrobras para "Petrobrax" — apenas uma ideia tola, de vida curtíssima e sem importância nenhuma. E a economia parada? "Eu criei 5,5 milhões de empregos", diz a candidata. Como assim — "eu criei"? Uma mentira começa com o ato de fazer o que é falso parecer verdadeiro. Acaba deste jeito: em alucinação.