0# CAPA 8.10.14 VEJA www.veja.com.br Editora ABRIL edição 2394 – ano 47 – nº 41 8 de outubro de 2014 [descrição das imagens: ocupando centro da capa, foto de Marina Silva e Aécio Neves. Estão de frente, aparecendo do tronco para cima. Marina tem o braço esquerdo flexionado para cima, com dedo indicador levantado. Aécio Neves, com mão esquerda, aponta para frente. Fundos da foto é o cenário usado pela TV Globo no último debates dos candidatos à presidência.]A CARTADA FINAL Marina Silva e Aécio Neves travaram no debate da Globo o último duelo para decidir quem enfrenta Dilma Rousseff no segundo turno. EDIÇÃO ESPECIAL ELEIÇÕES 2014 [parte superior da capa] DIABETES O alívio da medição da glicose sem picada PETROLÃO Doleiro promete entregar material que “vai chocar o país” JOAQUIM BARBOSA A OAB nega ao ex-ministro o registro profissional que mensaleiro preso tem ______________________________ 1# SEÇÕES 2# PANORAMA 3# ESPECIAL ELEIÇÕES 8.10.14 4# BRASIL 5# INTERNACIONAL 6# GERAL 7# ARTES E ESPETÁCULOS _________________________________ 1# SEÇÕES 8.10.14 1#1 VEJA.COM 1#2 CARTA AO LEITOR – O QUE NÃO MUDA 1#3 ENTREVISTA – EDUARDO JORGE – O CANDIDATO SINCERO 1#4 LYA LUFT – O BRASIL QUE PODEMOS TER 1#5 LEITOR 1#6 BLOGOSFERA 1#1 VEJA.COM VEJA.COM NAS ELEIÇÕES Neste domingo, mais de 142 milhões de brasileiros estão aptos a escolher presidente, governador, senador, deputado federal e estadual. O site de VEJA acompanha a votação Brasil afora, o dia dos candidatos, a apuração em tempo real e a divulgação dos resultados. À frente de TVeja, Joice Hasselmann apresenta e analisa as principais notícias em parceria com colunistas da revista e do site e repórteres espalhados pelas principais praças eleitorais. VEJA.com lança também uma página que mostra como a disputa repercute no Facebook, Twitter, Google+ e Instagram. Elaborada pela empresa de monitoramento Scup, a ferramenta mostra a distribuição das postagens em cada rede, os temas mais associados aos políticos e os assuntos com maior repercussão no primeiro turno das eleições de 2014. A VOLTA DO NOVELÃO Império está recuperando a audiência da faixa das 9, devastada pela letargia de Em Família. E faria ainda melhor, não fosse o horário eleitoral obrigatório, que dispersa o público antes de a novela começar. Reportagem no site de VEJA mostra por que a novela vem se consolidando como a melhor do horário desde que o fenômeno Avenida Brasil saiu do ar, há dois anos. A CIÊNCIA DA INTELIGÊNCIA FÍSICA Um ramo inovador da psicologia tem mostrado que o ambiente age de forma poderosa na mente humana. De acordo com a teoria da inteligência física, temperaturas, texturas, cores, luzes, sons e cheiros são decisivos em nossas atitudes e até avaliações morais. Por exemplo: sentar numa cadeira macia nos torna mais flexíveis em negociações. A psicóloga israelense Thalma Lobel, autora do livro Sensation (inédito no Brasil), explica ao site de VEJA de que maneira o conhecimento sobre fatores que acreditamos ser irrelevantes pode melhorar nossa interação com os outros. O IGNORANTE RACIONAL Juros, inflação, dívida pública, balança comercial: os principais indicadores pioraram em 2014, mas muitos eleitores parecem alheios à deterioração do cenário econômico. A explicação, segundo o cientista político Marcus André Melo, é que as eleições são definidas, em grande parte, pelo chamado "ignorante racional". "É um eleitor para quem a palavra macroeconomia não tem o menor sentido", explica. "Ele faz um cálculo racional de sua situação salarial e profissional. E, dentro de suas limitações, seu voto é coerente. Só a educação pode mudar seu comportamento." 1#2 CARTA AO LEITOR – O QUE NÃO MUDA Durante os últimos três meses, os brasileiros foram apresentados pelos candidatos à Presidência da República a uma série de promessas de mudanças. A viabilidade e a eficiência delas foram exaustivamente debatidas pelos candidatos e avaliadas por especialistas durante a campanha. VEJA reservou este espaço, porém, para lembrar ao presidente que assume o cargo em 1º de janeiro de 2015 algumas coisas que, indiferentes ao seu talento, capacidade de trabalho e apoio parlamentar, não mudam. Umas são partes integrantes do funcionamento da economia no mundo civilizado, outras são conquistas irreversíveis da sociedade brasileira ou características atemporais da espécie humana desde tempos imemoriais: • A bolsa de valores vai despencar e a cotação do dólar disparar sempre que chegar a altos níveis a desconfiança das forças produtivas no governo. • Ser confiável continuará sendo a única maneira de angariar confiança. • A inflação vai subir sempre que houver mais dinheiro e crédito na economia do que produtos ofertados para consumo. • A melhor maneira de combater a inflação será com uma taxa básica de juros nem alta nem baixa, mas adequada. • O maior beneficiário da inflação será o governo, que poderá adiar o pagamento de suas dívidas enquanto a moeda se desvaloriza. A inflação, o mais cruel dos impostos, age como um Robin Hood às avessas, tirando dos pobres para dar aos ricos. • Os governos, mesmo os bons, não produzem um centavo de riqueza. Todo o dinheiro gasto pelo governo brasileiro continuará vindo dos impostos que os cidadãos produtivos e as empresas que os empregam pagam. • A livre-iniciativa e a democracia representativa ainda serão a combinação mais harmônica e produtiva para o progresso material e moral. Essa combinação tem o nome de "sociedade aberta", e nela existe liberdade de expressão e a informação flui sem intervenção do governo. • As sociedades abertas continuarão sendo mais saudáveis e menos corruptas do que as estatizantes. • Mercado e governo não são excludentes. São complementares. Sem regras justas do governo, o mercado degenerará em monopólios e abusos contra o consumidor. Sem o mercado, o governo tenderá ao poder absoluto e ao totalitarismo. • As pessoas continuarão se diferenciando por temperamentos, interesses, habilidades intelectuais, buscas espirituais e modos de vida peculiares. Pessoas têm valores distintos, e mesmo aquelas que se identificam darão peso diferente aos valores que compartilham. Continuará, portanto, sendo uma violência um grupo político qualquer tentar inculcar seus valores a todos os brasileiros. • A desigualdade social e econômica continuará sendo resultado direto da oferta desigual de educação. Ela não diminuirá sem a difusão da educação de qualidade. Também não muda o compromisso de VEJA com seus leitores e com o Brasil de continuar sendo os olhos e os ouvidos da nação na fiscalização do poder, na denúncia da corrupção e dos abusos. Sobre o busto do fundador da Abril, Victor Civita: a nossa missão A Abril Está Empenhada em Contribuir para A Difusão de Informação, Cultura e Entretenimento, O Progresso da Educação, A Melhoria da Qualidade de Vida, O Desenvolvimento da Livre Iniciativa e O Fortalecimento das Instituições Democráticas do País 1#3 ENTREVISTA – EDUARDO JORGE – O CANDIDATO SINCERO O candidato sincero do PV diz por que deixou o PT em 2003, considera um erro seu partido não ter apoiado ninguém em 2010, não gosta de marqueteiros e prefere respostas francas. MARIANA BARROS Se apenas os usuários das redes sociais votassem neste domingo, o candidato a presidente da República pelo PV, Eduardo Jorge, 64 anos, teria bem mais do que 1% das intenções de voto. Suas participações nos debates — e uma coleção de frases diretas e francas — o transformaram no candidato mais popular da internet. Nascido em Salvador, viveu até os 18 anos em uma praia quase deserta de João Pessoa, estudou em colégio católico e pegou em armas na ditadura (mais precisamente, o revólver furtado do avô). Tornou-se médico sanitarista, deputado estadual, constituinte, três vezes deputado federal e secretário municipal de São Paulo em quatro gestões (PT, PSDB e DEM). Mora na mesma casa que comprou ainda nos anos 1980, na Vila Mariana. Lá, concedeu a seguinte entrevista a VEJA. Nos debates presidenciais, o senhor chamou atenção por falar sem rodeios e ir direto ao ponto. O que, na sua opinião, impede os outros candidatos de fazer o mesmo? O comando da política pelos marqueteiros. Os candidatos que se submetem a esse comando, de tão maquiados, acabam com dificuldade de se mover. Estão o tempo todo fazendo o cálculo milimétrico dos votos que terão e falando de acordo com o que apontam as pesquisas qualitativas (feitas a partir de conversas com pequenos grupos de eleitores). Isso é triste, porque a liderança política deve ter uma posição de vanguarda. Essa interferência dos marqueteiros é muito evidente nos bastidores dos debates? Ah, sim. Alguns chegam com verdadeiras enciclopédias na mão, tudo o que o candidato tem de falar está lá escrito. Até mesmo o pronunciamento final, que tem só um minuto, está escrito ali. Será que o marqueteiro da presidente Dilma não pode deixá-la falar nem ao menos nesse minuto? Para dizer ao menos alguma coisa que venha do coração dela? Mas não é só a Dilma. Vários outros levam um monte de fichinhas, parece que vão colar na prova. É uma perda da verdade, da espontaneidade. Qual o prejuízo que essa perda de espontaneidade acarreta? O prejuízo é que o político abre mão da possibilidade de conversar com o povo e explicar sua posição — que eventualmente pode ser uma posição minoritária. Mas, se ele tem confiança nela e confiança na democracia, poderá argumentar e convencer as pessoas a mudar de opinião. Esse é o papel do líder político. Pode ser que ele não consiga na primeira vez, mas vai plantar uma semente e continuar avançando naquela direção. Veja o que aconteceu na campanha de 2010. Dilma Rousseff e José Serra (então candidatos à Presidência pelo PT e pelo PSDB) ficaram como malabaristas andando naquela corda bamba na questão do aborto (ambos disseram ser contra a legalização da prática). Estamos cansados de saber que duas pessoas ilustradas, viajadas e politizadas como essas não pensam o que falaram. Não pensam. Mas mandaram que dissessem aquilo porque calcularam os votos. Foi um exemplo de estelionato eleitoral? Essa expressão é você quem está usando. Eu nunca uso palavras agressivas. Desde que me tornei gandhiano (adepto do gandhismo, corrente político-religiosa baseada nos ensinamentos do líder indiano Mahatma Gandhi) não posso fazer isso. Não uso mais ironia nem palavras rudes. Quando eu era deputado, tinha a ajuda da minha secretária para me vigiar — ela chamava minha atenção sempre que eu fazia uma ironia. Gandhi diz isto: "Sou adversário das suas ideias, mas não posso fazer nada que o fira nem que o diminua como pessoa". Mas em quase todos os debates o senhor teve alguma rusga com a candidata do PSOL, Luciana Genro. Ela tem fixação em mim, não posso fazer nada Ela que vá buscar seus votos, pelo amor de Deus, e me deixe com os meus. É possível vencer na política sendo sincero? Acho que sim. Se você tem argumentos e eles são bons, é possível. E, depois, de que adianta ganhar sem ser verdadeiro? Veja o caso da presidente Dilma. Ela é mulher, de formação revolucionária, e no governo dela acontecem casos como os da Jandira e da Elisângela dia sim, dia não (Jandira Magdalena dos Santos Cruz e Elisângela Barbosa morreram depois de fazer aborto em clínicas clandestinas do Rio de Janeiro). Como ela se sente sabendo que esses casos acontecem porque, de certa forma, se mantém uma lei reacionária e cruel como essa em relação às mulheres que interrompem a gravidez? Dilma é a primeira presidente mulher, de origem socialista revolucionária. Deve ser triste para ela tolerar essa situação sem fazer nenhum gesto. Ela pode não ficar indignada, mas triste deveria ficar. Vou citar uma frase sua de 2003, da sua carta de desfiliação do PT: "O PT foi e continuará sendo um importante partido para o bem e para o mal do Brasil". O senhor saiu porque percebeu que o partido seria um mal para o país? Eu perdi a confiança na direção do PT. Notei que ela havia sido tomada por aquele sentimento que põe o partido acima do povo e acima da nação. E aquilo era inconcebível para mim. Eu não podia dizer às pessoas que confiavam em mim que aquela direção levaria o país a algum lugar democrático. E isso não quer dizer que os petistas não tenham feito coisas boas para a democracia. Foram importantes para a inclusão social, assim como o PSDB foi importante para a saúde. Mas a síntese dessa visão hegemonista e gramsciana é totalmente autoritária e antidemocrática. Se o senhor não votasse em si mesmo, em quem votaria? Isso é uma forma delicada de perguntar sobre o segundo turno, o que eu não posso responder agora. E tem algum candidato em quem o senhor não votaria de jeito nenhum? É a mesma coisa. Mas uma coisa eu digo: eu, Eduardo Jorge, já sei em quem vou votar no segundo turno. Não a entidade candidato, mas eu. Não sou dono do PV e o diretório vai se reunir para definir isso. Porque parece que eu não vou para o segundo turno mesmo... De qualquer forma, vamos tomar uma posição e eu vou defender a minha. Então o PV já decidiu que vai apoiar um candidato no segundo turno, ao contrário do que ocorreu em 2010? Não apoiar ninguém em 2010 foi um absurdo. Tínhamos 20 milhões de votos, poderíamos decidir a eleição para A ou para B. Mas preferimos reunir todo mundo e dizer: "O povo não gostou da gente". Aí, ficamos com raiva e fomos para casa. Como foi que isso aconteceu? Essa era a posição da candidata (Marina Silva, hoje na coligação liderada pelo PSB). Ela bateu o pé e a direção do PV, erradamente, cedeu. Vão dizer que eu estou brigando com a Marina de novo. Mas a responsabilidade não foi só dela, foi da candidata e da direção do partido. Armaram uma reunião soviética para consagrar essa posição. Eu estava na primeira fila e fui o único que levantou a mão. As caras se fecharam todas para mim, queriam que fosse uma decisão unânime. Considero essa posição erradíssima e antidemocrática. O PV é construtivo, quer cooperar para avançar, seja qual for a matriz dos outros partidos. Retirar-se de cena é que não pode. Por que o PV não conseguiu captar como eleitores os manifestantes de junho? Falta enraizamento ao partido. Não conseguimos estabelecer uma atuação forte nos estados. Isso terá de ser reformulado internamente. Vamos ver como faremos. Até onde o PV almeja chegar? Não sei se o PV inteiro concorda comigo, mas eu acho que, se tivermos de 6% a 8% do eleitorado, ajudaremos barbaramente o Brasil. Não é que eu espere ter isso nesta eleição; eu espero algum dia atingir esse patamar. O PV é um partido de vanguarda, não de pretensões hegemonistas como os grandes partidos socialistas e capitalistas. Primeiro, porque não é de matriz capitalista nem socialista. O pessoal da esquerda, que tem fixações dogmáticas, não se conforma com isso. O PV surgiu para criticar as mazelas do capitalismo e do socialismo, até porque nenhum dos dois respeitou os limites da natureza. Seremos o que é o PV alemão, um partido que é o mais organizado, forte e preparado e nunca passou de 8% do eleitorado. Só que, com sua capacidade de dialogar com partidos conservadores e socialistas, vai impulsionando a Alemanha, que é hoje o país mais avançado no desenvolvimento sustentável. Os PVs deveriam sempre ter esse papel. Por isso não estou tão preocupado com quanto atingiremos desta vez. O senhor defende a legalização da maconha. Já a experimentou alguma vez? Nem cigarro eu fumei durante a minha vida. Nunca precisei recorrer a drogas para ter fortes emoções e uma grande imaginação. Depois, sou médico. Sei que todas essas substâncias ilícitas fazem muito mal à saúde. Sua campanha é pequena. Quanto pretende gastar? Mandei uma carta ao TSE comprometendo-me a gastar menos de 10 milhões de reais, e na verdade devemos chegar a, no máximo, 4 milhões de reais. O peso maior é com o escritório de advogado que temos de contratar para conseguir seguir corretamente a legislação, que é intrincadíssima. Qualquer coisa que você erre, mesmo que seja de boa-fé, lá vem multa. Outro gasto grande é com televisão. Embora tenhamos apenas um minuto, gastamos. Temos de ter estrutura. Se houver outra campanha, quero gastar menos ainda. Por que o senhor considera que gastar menos é melhor? Porque isso significa menos comprometimento com gente para financiar a campanha. Também não aceitamos doação de empresa, eu não quero. Empresa não deve se meter a financiar político; isso é outro ponto de distorção da legislação. Quanto menos você gastar, mais livre será. Doação de pessoa física, da qual sou a favor, é algo complicadíssimo, infelizmente. Eu tive de ir pessoalmente dezenas de vezes ao Banco do Brasil, porque é preciso assinar isso e aquilo. É burocratizado demais, o que é uma pena, pois é algo bom que deveria ser preservado. Também acho que, quanto menor for o valor da doação da pessoa física, mais valiosa será. Dez reais, 15 reais... Mas a burocracia torna infernal esse tipo de doação. Qual é seu projeto pessoal para estes próximos quatro anos? No dia 6, termina minha licença e eu reassumo meu cargo como médico de saúde pública concursado pelo Estado. Sempre me preocupei em ter minha profissão para que pudesse, se necessário, voltar para ela. Isso me permitiu votar sempre de acordo com minha consciência, já que minha independência sempre foi algo fundamental para mim — apesar da minha formação marxista revolucionária, penso que há limites na disciplina e na autoridade partidária. Tanto é assim que, nos anos em que fui deputado, toda vez que achei que a direção tomou a decisão errada votei com a minha consciência. Então, agora vou reassumir meu cargo como médico e aguentar lá até os 70 anos, para me aposentar com o valor integral. Enquanto isso, pretendo continuar influenciando o diretório nacional, o segundo turno e ajudar nossos deputados no Brasil todo. Posso fazer isso porque não trabalho todos os dias da semana, meu contrato é de 24 horas semanais. Mas candidatura minha, por enquanto, não haverá. O senhor não parece exatamente alguém que esteja louco para sair da política. Não desgosto da campanha e do contato das pessoas, acho isso uma festa. Mas ser confrontado e amado exige muito emocionalmente. Como corresponder a esse carinho? É preciso ter muito afeto para dar. É muita gente que gostou de mim. É até emocionante. Mas encerro agora minha participação nesse processo e vamos pensar no segundo turno. 1#4 LYA LUFT – O BRASIL QUE PODEMOS TER A gente pode ter o Brasil que quiser, o país que merecemos pelo nosso trabalho, sonho, luta, esperança e valor. Pelo sofrimento de milhões. Depende do que a gente quer, realmente. Quero um país onde as ruas não sejam um campo de batalha, mas de seguir para o trabalho, para a escola, fazer compras, voltar para casa, se sentir seguro. Quero um país onde as casas e edifícios não sejam fortalezas nas quais nos refugiamos amedrontados. Quero um país onde multidões sem casa e sem trabalho não precisem se manifestar, seja com paz, seja com violência, mas todos tenham naturalmente abrigo, salário, dignidade. Quero um país onde as instituições não sejam desmanteladas, onde líderes e governos nos dêem espaço e nos honrem com sua postura e ações. Onde "corrupção" seja uma palavra estranha, não esse pão nosso de cada dia que é agora que só nos faz perder a confiança naquilo que deveria ser o nosso estímulo. Quero um Brasil justo, esperançoso, progressista, onde o primeiro avanço seja o da dignidade de seu povo, dos mais privilegiados aos mais despossuídos, pois assim, com o tempo, não haverá mais despossuídos: todos poderemos produzir com contentamento, segurança e paz, em qualquer lugar, em qualquer nível, da mais sofisticada tecnologia, da mais avançada ciência, ao mais simples mas essencial trabalho nas casas, nas indústrias, nas lojas, nos portos, nas estradas, nos hospitais, nos mercados, nas bancas de jornal, na direção de um ônibus ou de um táxi. Para isso, quero antes de tudo um Brasil onde haja escolas para todos, porque povo educado é povo informado, lúcido, e feliz. Podem ser modestas, não precisam de grandes bibliotecas ou mirabolantes envios ou promessas de computadores: precisam, para começar, de paredes, assoalho, mesas e cadeiras, livros, uniformes, banheiros limpos, merenda que não foi roubada e professores satisfeitos, isto é, com salário honrado e dignidade. Também quero escolas protegidas de traficantes e de violência interna. Aliás, quero um Brasil onde o narcotráfico não tenha importância nem poder. Quero um país onde velhos, grávidas, crianças e carentes não tenham de ficar meses à espera de uma consulta, parir ou morrer na maca ou no chão do corredor, ou voltar para casa com filhinho doente nos braços, com a informação de que não há nem o mais simples remédio para ajudar. Quero um Brasil onde ser médico não é ser explorado, mas dignificado. Onde ser professor não é ser humilhado, mas honrado. Quero um Brasil onde não se minta iludindo o povo ingênuo com promessas que, ano após ano, se acumulam como castelos de areia, onde não nos tratem com mentiras óbvias mas respondam à nossa confiança com obras reais, com ações visíveis e concretas, movidas por um verdadeiro interesse e empenho por este lugar e esta gente, muito além do desejo de poder. Quero um Brasil onde haja real democracia, onde não se persiga quem expõe sua opinião, onde não se planeje amordaçar a imprensa, onde todos sejam ouvidos e tratados com cortesia, e atendidos dentro do possível, sem populismo nem autoritarismo, sem grosseria, sem ironia nem sarcasmo, sem desonra nem medo. Pois o medo, a ameaça, o suborno, a exploração da fraqueza, da credulidade ou da indigência são o contrário da democracia. Quero um país integrado no contexto global mais civilizado, não obtuso e à margem, não ofuscado pela ideologia ou caprichos, não alardeando um ufanismo descabido e pobre, mas aberto ao intercâmbio com os países mais avançados, mais livres e mais justos, sendo ouvido, respeitado, e admirado por vencer a alienação e o atraso. Quero o Brasil que em poucas horas poderemos criar com um gesto simples chamado "voto": escolhendo lúcida e conscientemente quem nos representa e quem nos governa, quem pode nos levar à posição que desejamos e de que necessitamos. Pois merecemos sentir alegria, orgulho, segurança e ânimo com o Brasil que estamos a cada dia construindo, e queremos igualar aos melhores entre todos. Depende de nós. 1#5 LEITOR DISPUTA PRESIDENCIAL Esta eleição para a Presidência da República é uma das mais disputadas dos últimos tempos no Brasil e a mais imprevisível. Às vésperas da votação, permanece a dúvida sobre quem escolher para presidente ("Eles vão decidir a eleição", 1º de outubro). RUVIN BER JOSÉ SINGAL São Paulo, SP A disputa pelo voto dos indecisos fica cada vez mais acirrada. Quanto maior o poder de convencimento do candidato, maior a chance de ganhar os eleitores e chegar mais perto da Presidência. A nós, eleitores, cabem a coerência e a responsabilidade, essenciais antes da efetiva escolha de quem nos representará e conduzirá o destino do Brasil. PAULA REGINA COSTA DE OLIVEIRA São Paulo, SP Pior que "órfão" de Aécio Neves é ser refém do PT. Marina Silva e Dilma Rousseff são farinha do mesmo saco. A diferença a favor de Dilma é que ela é um desastre já consumado na economia doméstica, na cristalização da impunidade e na mediocridade da política externa. A outra é uma incógnita quanto à extensão dos estragos possíveis, dados o DNA petista e a radicalidade religiosa, espreitando o Estado aparelhado pelos companheiros. O desânimo venceu a esperança. JOSÉ PAULO FERREIRA Campo Grande, MS Vamos às urnas para mostrar que o Brasil quer e exige mudança real. Muda, Brasil, urgente! JOSÉ RENATO NASCIMENTO São Paulo, SP São favas contadas a vitória de Dilma na eleição. É lamentável que, além do voto de cabresto — de portadores de bolsas-misérias, malandros etc —, o eleitor brasileiro não esteja atento à profundidade do poço ao qual a administração petista conduziu este Brasil, culminando com a sua pretendida reeleição, certamente num estado de falência, à mercê de sua total incompetência administrativa. Mas, com tudo isso para acontecer — eu fico tranquilo —, vai chegar a hora de os militares novamente ajuntarem os cacos. CURT HEISE Blumenau, SC As campanhas eleitorais são uma demonstração de disparidade entre quem está no poder, com a máquina pública sob seu controle, e quem tenta vencer com propostas. Isso é observado pelas doações feitas aos candidatos, conforme a reportagem "A farra do doador fisiológico" (1º de outubro). Não se trata de doações, e sim de investimentos para colher no futuro resultados como contratos, projetos, licenças etc. Nossa legislação eleitoral precisa melhorar. Necessitamos urgentemente de uma reforma política! ANTONIO PEREIRA DE CARVALHO FILHO Piripiri, PI Assusta a normalidade com a qual empresas financiam a campanha eleitoral dos candidatos com maior percentual de ascensão ao poder. As ideologias tornam-se escassas diante de interesses e vantagens pessoais. Esse fato nos revela a triste realidade que enfrentamos — sem titubear ou arrebatar. Cegos na descrença, esquecemos o poder de uma nação. VITÓRIA BERTICELLI BASSO Curitiba, PR ESCÂNDALO DA PETROBRAS A reportagem "O núcleo atômico da delação" (1º de outubro), ao mesmo tempo em que nos deixa indignados com os desmandos cometidos pelos detentores do poder contra a Petrobras, nos entristece por mostrar que a candidata Dilma Rousseff, sustentada pelos articuladores de tais desmandos, ainda lidera a corrida presidencial. A falta de ética está impregnada na alma da população, que parece não se incomodar com tais fatos, provados e comprovados, principalmente graças ao trabalho independente de veículos como VEJA. JOSÉ ELIAS AIEX NETO Foz ao Iguaçu, PR A excelente reportagem de VEJA esclarece a correlação entre fatos e personagens deste escândalo e traz à tona uma vergonha que somente o Brasil é capaz de produzir. O que me desanima é ver tudo isso revelado e saber que não temos mais Joaquim Barbosa no Supremo Tribunal Federal. Os ministros Celso de Mello, Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello terão de digladiar com Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli, entre outros... Pobre Brasil. FERNANDO CÉSAR CORREA CORDEIRO MATOSINHOS Congonhas, MG DILMA E OS TERRORISTAS Metaforicamente, poderíamos dizer que a presidente Dilma Rousseff ("Só Dilma quer papo com o terror", 1º de outubro) "perdeu a cabeça" ao sugerir em seu discurso na abertura da Assembleia-Geral da ONU o diálogo com os bárbaros do Estado Islâmico. Entretanto, Dilma poderia perdê-la, literalmente, se sua sugestão fosse levada em conta e a tivessem convidado para participar do intento por ela proposto. ENI MARIA MARTIN PE CARVALHO Botucatu, SP O pensamento político esquerdista, fracassado mundialmente em todas as suas práticas, continua em pleno voo cego conduzindo a mente embrutecida do governo brasileiro. Esse mar de irracionalidade agora resolveu envergonhar-nos perante a opinião pública internacional, através de suas assertivas obscurantistas. Pobre povo brasileiro! LUIZ ADRIANO PREZIA CARNEIRO São Bernardo ao Campo, SP Presidente Dilma, a senhora conseguiu realizar, no momento em que dirigiu a "sua" palavra ao resto do mundo na Assembleia da ONU, algo que nenhum brasileiro gostaria que ocorresse: a perda da dignidade brasileira. Através de VEJA, e por tantos outros meios, vimos sua verdadeira "militância": mentiras para se sustentar no "poder pelo poder", uso indevido da máquina pública em sua campanha, círculo vicioso de verbas usurpadas do contribuinte para manter o grupo que lhe dá sustentação. Sou brasileiro, pago meus impostos e não quero que a senhora volte a me governar, porque minha dignidade não está à venda. JESUS EDUARDO MENDONÇA Rio Claro, SP Então... por que Dilma, em vez de optar pela luta armada, não procurou dialogar com os militares no período da ditadura no Brasil? CÉLIO ROMERO Por e-mail CARTA AO LEITOR Recebi minha esperada revista VEJA e, por mim, bastaria que ela contivesse o editorial "No século errado" (Carta ao Leitor, 1º de outubro), no qual é tão bem retratado o conluio que a presidente Dilma Rousseff mantém com o terror em sua defesa equivocada do Isis. Ela está, de fato, no século errado; mas nada que não possamos corrigir. MARILENE MARTINS Formosa do Rio Preto, BA FISCALIZAÇÃO NOS AEROPORTOS Lendo a reportagem "Cerco no desembarque" (l2 de outubro), sobre as novidades da Receita Federal nos aeroportos brasileiros, não consegui parar de pensar: o Brasil seria um país tão bom se tudo funcionasse como a Receita Federal. Imagine o Sistema Único de Saúde (SUS) com tamanha eficiência... HENRIQUE SCHEFFER Gravataí, RS JOÃO PEREIRA COUTINHO Parabenizo o cientista político português João Pereira Coutinho pela clareza de raciocínio na entrevista das páginas amarelas "Vamos viver e deixar viver" (1º de outubro), ao apontar a incoerência entre querer um Estado grande e concordar que em todos os partidos há muitos corruptos. A entrevista põe todos nós — e especialmente o PT — na berlinda. Como, depois de admitir que até eles não estão livres da corrupção interna, continuar criticando as privatizações e achando que o Estado deve permanecer administrando grandes capitais empresariais como Petrobras, Correios e Caixa Econômica Federal? Seria mais racional fazer privatizações e restringir a atividade do Estado ao que está previsto constitucionalmente, ou admitir má intenção ao desejar a gestão dessas empresas. DEROALDO BOIDA DE ANDRADE Salvador, BA A frase "Quando o Estado se torna uma gigantesca babá, que sustenta os cidadãos desde o berço até a cova, cria-se obviamente uma situação insustentável", do cientista político português João Pereira Coutinho, alerta para um futuro que os beneficiários dos programas assistencialistas do governo infelizmente não conseguem enxergar. NEIDE MEDEIROS A. AMORIM Mossoró, RN João Pereira Coutinho comenta que é pouco legítimo que o governo se aproprie da riqueza das pessoas como o faz nos níveis atuais. Trabalhamos cinco meses só para pagar impostos. A arrecadação nos três níveis já ultrapassou l trilhão de reais. É muito dinheiro! Todos sabemos que, quanto maior a arrecadação, maior o desperdício, a corrupção, a roubalheira. A solução é reduzir o tamanho do Estado, paquidérmico, ineficiente e perdulário, e diminuir a carga tributária, deixando parte dos recursos com a sociedade que produz, gera empregos produtivos e riqueza. EDSON GUERREIRO DOS REIS Belém, PA CRIME Causou profundo mal-estar e estranheza na comunidade judaica a forma como VEJA SÃO PAULO reportou a tentativa de assassinato do médico Anuar Ibrahim Mitre por seu paciente Daniel Edmans Forti, que acabou se suicidando ("Tragédia no consultório", 24 de setembro). Ao assinalar que Forti era de uma família judia paulistana, o autor seguramente induziu a leitura de que o crime poderia ser explicado pela origem étnica do criminoso. Essa interpretação está longe de ser desproposital. Ela se justifica pelo ressurgimento, de tempos em tempos, do preconceito racial contra o povo judeu e fica bem clara se substituída no texto a menção à família judia pela menção a uma família católica ou árabe ou a povos de países do Saara. Em tragédias dessa natureza, não é normal a imprensa fazer referência ou atribuir importância a fatores como raça, cor, religião etc. relacionados aos personagens nelas envolvidos. Esse detalhe, obviamente, pouco ou nada acrescentaria à notícia diante da violência do fato em si, de inegável repercussão e interesse dos leitores. Daí o nosso estranhamento e preocupação! CLÁUDIO LOTTENBERG Confederação Israelita do Brasil PARA SE CORRESPONDER COM A REDAÇÃO DE VEJA: as cartas para VEJA devem trazer a assinatura, o endereço, o número da cédula de identidade e o telefone do autor. Enviar para: Diretor de Redação, VEJA - Caixa Postal 11079 - CEP 05422-970 - São Paulo - SP: Fax: (11) 3037-5638; e-mail: veja@abril.com.br. Por motivos de espaço ou clareza, as cartas poderão ser publicadas resumidamente. Só poderão ser publicadas na edição imediatamente seguinte as cartas que chegarem à redação até 3 quarta-feira de cada semana. 1#6 BLOGOSFERA EDITADO POR KÁTIA PERIN kperin@abril.com.br RADAR LAURO JARDIM Segurança Depois das tentativas de invasão de hackers em seu sistema de computadores, o Itamaraty redobrou os cuidados. Agora, os servidores precisam passar por um "curso" a distância para conseguir acessar o e-mail de um terminal remoto, www.veja.com/radar ESPELHO MEU LÚCIA MANDEL Beleza Quase toda mulher se incomoda muito com pelos no rosto. Em algumas, eles são uma característica genética, mas em outras os pelos são consequência de alterações hormonais, como a síndrome de ovários policísticos. www.veja.com/espelhomeu COLUNA REINALDO AZEVEDO Delação Paulo Roberto Costa, o ex-diretor da Petrobras que fez um acordo de delação premiada, saiu da cadeia. Isso quer dizer que há muita gente com receio... de ir para a cadeia, www.veja.com/reinaldoazevedo DE NOVA YORK CAIO BLINDER Hong Kong No meio do caminho do capitalismo autoritário made in China há um pedregulho democrático. É o movimento que se alastra por Hong Kong. Momento histórico, comovente, www.veja.com/denovayork IMPERDÍVEL THE BIG BANG THEORY Os nerds de The Big Bang Theory voltaram para o oitavo ano da série em 29 de setembro, às 20 horas, no canal pago Warner, para revelar o que aconteceu com Sheldon (Jim Parsons). Ao fim da sétima temporada do seriado, o cientista deixa o apartamento que divide com Leonard (Johnny Galecki) para partir em viagem, decepcionado com o volume de mudanças que estava acontecendo ao seu redor: o noivado de Leonard e Penny (Kaley Cuoco) e a consequente decisão do amigo de mudar de casa, o fechamento por tempo indefinido da loja de revistas de histórias em quadrinhos de Stuart (Kevin Sussman) e a repentina implicância da universidade onde trabalha com seu campo de estudo. A série cômica mais vista atualmente nos Estados Unidos está garantida para mais duas temporadas, www.veja.com/imperdivel NOVA TEMPORADA BLACK MIRROU A série Black Mirror utiliza o humor negro para mostrar a forma como a sociedade lida com a paranoia tecnológica. A série estreou em 2011 e teve boa receptividade de crítica e de público. Mesmo sem uma terceira temporada anunciada, o Channel 4, da Inglaterra, garantiu a produção de um especial de Natal, com o título de Black Mirror: Yuletide. No elenco do especial está Jon Hamm, de Mad Men. www.veja.com/novatemporada QUANTO DRAMA! IMPÉRIO "Conheci várias Beatriz e convivo com algumas. Tenho profunda admiração por essas mulheres que fazem esse tipo de escolha — apaixonam-se por homens que fogem ao padrão habitual do marido e, desde que eles as queiram, decidem viver essa opção a qualquer preço. E sinto que elas são felizes. Veja bem, não estou falando das que casam sem saber e, quando descobrem que o marido gosta de homens, levam um choque terrível. A história de Beatriz é outra — ela escolheu Cláudio mesmo sabendo da outra opção dele." Aguinaldo Silva, autor da novela Império, sobre a personagem interpretada por Suzy Rego, em entrevista ao blog Quanto Drama! www.veja.com/quantodrama * Esta página é editada a partir dos textos publicados por blogueiras e colunistas de VEJA.com _____________________________________ 2# PANORAMA 8.10.14 2#1 IMAGEM DA SEMANA – ATÉ QUANDO, LENIN? 2#2 DATAS 2#3 HOLOFOTE 2#4 CONVERSA COM ANA PAULA PADRÃO – A CHEFE DOS CHEFS 2#5 NÚMEROS 2#6 SOBEDESCE 2#7 RADAR 2#8 VEJA ESSA 2#1 IMAGEM DA SEMANA – ATÉ QUANDO, LENIN? Vão-se as estátuas, mas a Ucrânia dividida carrega o peso da história "Em 1919, quando impôs seu regime à Ucrânia, Lenin deu a ela, para acalmar os ânimos, várias províncias. Historicamente, essas províncias jamais pertenceram à Ucrânia." Com o dom supremo da simplicidade, o escritor-profeta Alexander Soljenitsin resumiu assim o confronto que hoje opõe as duas partes que, vistas de fora, em quase nada diferem: os ucranianos históricos, descendentes dos que sofreram os maiores horrores do comunismo, e os de origem russa, cujos antepassados foram cortados da terra-mãe como prêmio de consolação. Num cessar-fogo que tem menos do primeiro componente e mais do segundo, os dois lados atualmente contemplam o impossível: uma solução que acomode as queixas dos "russos", sem alterar a atual integridade territorial. Os pró-Rússia estão consolidados nas duas maiores cidades separatistas, Donetsk e Luhansk. Entre combates, nacionalistas se dedicam a uma tarefa aparentemente interminável: derrubar estátuas de Lenin. Segundo um jornal de Kiev, mais de 160 já tombaram desde a ruptura iniciada com os protestos do fim do ano passado. A última, um monstrengo de 10 metros de altura, caiu na cidade de Kharkiv. "Sofro ao escrever isso, pois a Ucrânia e a Rússia estão misturadas no meu sangue, no meu coração e nos meus pensamentos", anotou Soljenitsin em Arquipélago Gulag, "Mas a ampla experiência com amigos ucranianos nos campos me mostrou como é profunda a mágoa que têm. Nossa geração não se livrará de pagar pelos erros de nossos pais." VILMA GRYZINSKI 2#2 DATAS MORRERAM Gabrielle Aghion, fundadora da Chloé, grife francesa de moda. Filha de uma rica família egípcia, herdou da mãe o gosto por roupas. Depois de se casar com Raymond Aghion, sua paixão de infância, Gaby, como ficou conhecida, mudou-se para Paris. Um dia, em 1952, comprou tecidos e fez seis vestidos — começava ali a história da Chloé, assim batizada para homenagear uma amiga. Ao longo dos anos, a marca se destacou por sua jovialidade. Discreta, Gaby nunca foi tão famosa quanto os estilistas que passaram pela maison, como Karl Lagerfeld e Stella McCartney. Em 1985, a empresária vendeu a grife, hoje parte do conglomerado de luxo suíço Richemont, mas manteve-se próxima do núcleo de criação. Dia 27, aos 93 anos, em Paris. Miguel Boyer, ministro da Economia, da Fazenda e do Comércio da Espanha durante o primeiro governo de Felipe González (1982-1985). Nascido na França durante o exílio da família, que fugia da Guerra Civil Espanhola, foi militante socialista desde os anos 60. Ficou conhecido como "superministro". A Espanha acabava de sair de uma ditadura e, durante seu mandato, Boyer reduziu a inflação e os gastos públicos. Foi o responsável também por tirar restrições de horário para o comércio e permitir que donos de imóveis decidissem sobre a duração de contratos de locação. Dia 29, aos 75 anos, de embolia pulmonar, em Madri. Nicolae Corneanu, bispo ortodoxo que colaborou com a Securitate, a polícia secreta romena, durante o governo do ditador comunista Nicolae Ceausescu (1965-1989). Em 1999, assumiu, após ser preso, que foi recrutado como informante. "Claro que cometi um erro. Cedi à pressão", disse. Corneanu cooperou para a excomunhão de padres que se opunham ao regime. Seus críticos diziam que, em troca de colaboração, o bispo ascendeu dentro da Igreja. Ainda assim, a confissão rendeu a Corneanu a simpatia de seus conterrâneos. Conhecido pela tolerância com os homossexuais e com a Igreja Católica Romana, em 2006 ajudou o presidente Traian Basescu a preparar um relatório sobre os abusos da era comunista. Dia 28, aos 90 anos, em Bucareste. • TER|30|9|2014 ENCERRADAS as atividades da rede social Orkut, a primeira usada em larga escala pelos brasileiros. Criada em 2004 pelo engenheiro turco Orkut Buyukkokten, rapidamente se popularizou no Brasil. O Orkut chegou a ter quase a metade de seus usuários localizada no país e, por sete anos, foi o líder em seu segmento. O Google, dono da rede social, apontou o crescimento de outros serviços como causa para desativar a ferramenta. Sabe-se, no entanto, que foi a chegada do Facebook que esvaziou o Orkut. Os internautas poderão aplacar a saudade das famosas comunidades da rede em uma espécie de museu on-line que está sendo criado pelo Google. PRESO o nadador Michael Phelps por dirigir alcoolizado e em alta velocidade. O atleta, que já havia cometido delito semelhante em 2004, foi levado à delegacia de Baltimore, autuado e liberado em seguida. Phelps terá de responder judicialmente pelos crimes. • QUA|1º|10|2014 PREMIADO o publicitário brasileiro Washington Olivetto, no Clio Lifetime Achievement. Trata-se do prêmio mais importante do segmento, nos Estados Unidos. O troféu é dado àqueles que tiveram papel de destaque no desenvolvimento da área. A cerimônia aconteceu em Nova York, no restaurante Cipriani. 2#3 HOLOFOTE ACRE • RELAÇÃO DE (DES)CONFIANÇA O PCdoB é aliado histórico do PT no Acre — como ocorre, aliás, em grande parte do país. Há anos comunistas acrianos tentam fugir do papel de coadjuvantes. O maior exemplo é o casal Edvaldo Magalhães e Perpétua Almeida. Em 2010, ele foi candidato ao Senado na chapa dos irmãos Jorge e Tião Viana. Os petistas foram eleitos e ele não. Agora, em 2014, é a vez da mulher de Magalhães, a deputada Perpétua. Como o marido, ela tenta conquistar uma cadeira no Senado em uma aliança com o PT. De acordo com as pesquisas, Perpétua deverá ser derrotada da mesma forma que o marido. O casal queixa-se de que os irmãos Viana não se esforçam muito, por receio de estarem alimentando futuros adversários. • MENOR QUE O PREVISTO O Partido Social Cristão (PSC) nunca acreditou que Pastor Everaldo pudesse vencer a eleição presidencial. No máximo, o desempenho do candidato lhe permitiria negociar bem seu apoio no segundo turno e, quem sabe, até garantir uma eventual participação no próximo governo. O cálculo era o seguinte: se na pré-campanha Everaldo detinha 3%, no fim do primeiro turno chegaria a 8% dos votos — cacife suficiente para reivindicar um ministério importante. O pastor não deve passar de 1%. Revendo os planos, o PSC, agora, se esforça para manter ao menos as doze cadeiras que tem hoje na Câmara dos Deputados. RIO GRANDE DO NORTE • TRAIÇÃO ANUNCIADA Presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Eduardo Alves (PMDB) entrou na campanha pelo governo do Rio Grande Norte apresentando-se como o preferido dos poderosos da República. Esse discurso, no entanto, tem sido desmontado por sucessivas traições de petistas graúdos. O ministro Gilberto Carvalho foi ao estado articular com movimentos sociais — e, com discrição, contra Alves. Já o ex-presidente Lula gravou um depoimento para a propaganda eleitoral de Robinson Faria (PSD), adversário do peemedebista. Aliado de Dilma Rousseff, Alves não estrilou em público porque pode ser obrigado a disputar um segundo turno contra Faria. Se isso ocorrer, pedirá aos caciques do PT neutralidade e, de quebra, um pouco mais de lealdade. PERNAMBUCO • MONTEIRO X MONTEIRO A corrida eleitoral causou um racha numa das mais tradicionais famílias de Pernambuco. Candidato a deputado federal, o empresário Monteiro está pedindo voto, na disputa pelo governo, a Paulo Câmara (PSB), cujo principal rival é o senador Armando Monteiro Neto (PTB). Em desvantagem nas pesquisas, Armando está fulo da vida com o primo Fernando. Para sorte do clã, o ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) José Múcio Monteiro entrou em campo fazendo as vezes de bombeiro. Múcio é um especialista na arte de conciliar interesses opostos. Até o acidente que matou o ex-governador Eduardo Campos, o ministro se dedicava a manter aberto o diálogo entre o socialista e o ex-presidente Lula. • PARA REFRESCAR No embalo dos preparativos para o primeiro turno das eleições, funcionários do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) receberam um pedido inusitado do presidente da corte, José António Dias Toffoli. O ministro incumbiu os assessores de verificar a possibilidade de colocar um chuveiro em seu gabinete. Pedido de juiz costuma ser entendido como ordem. Mas havia um problema. Oscar Niemeyer, autor do projeto arquitetônico do TSE, previu um banheiro exclusivo para cada um dos sete ministros, mas não pensou na possibilidade de alguém precisar tomar um banho entre uma sessão e outra. Para driblar as dificuldades técnicas e evitar os transtornos que uma obra provoca, a solução encontrada pelos funcionários foi instalar no banheiro um boxe pré-moldado - com o chuveiro embutido. Colaboraram Adriano Ceolin, Daniel Pereira e Rodrigo Rangel 2#4 CONVERSA COM ANA PAULA PADRÃO – A CHEFE DOS CHEFS Após deixar a bancada dos telejornais, ela apresenta o Masterchef, programa que busca um novo talento da culinária por meio de provas que são avaliadas por jurados nada doces . É preciso entender de cozinha para fazer um programa como o seu? Eu sou uma cozinheira amadora, muito mais do que qualquer um dos participantes do programa. Cozinho nos fins de semana, mas me interesso pelo assunto e leio bastante a respeito. É bom saber alguma coisa de técnica culinária, mesmo que seja minimamente, como no meu caso. Seria difícil entender o crescimento de cada participante se eu só fritasse ovo. Além de cozinhar, você come? Sempre fui magra. Basicamente, como pouco, e meu peso está sempre entre 48 e 49 quilos. Fazer um programa de comida não é um problema porque não tenho de provar os pratos. Belisco um ou outro. Não fica com pena de alguns candidatos? De jeito nenhum. A crueldade na versão brasileira do Masterchef foi amainada. Nas versões internacionais, o festival de humilhação é muito pior. Mesmo com as reações pouco amainadas do chef Erick Jacquin? Os comentários ácidos dele são divertidos. O clima de tensão é dado mais por técnicas de edição, com pausas dramáticas e a música que sobe, como nas novelas. Lá dentro, é mais divertido do que tenso. Seria aprendiz de alguém como ele? Basicamente, não seria aprendiz de cozinheira porque não é o meu talento. Prefiro continuar cozinhando só para o marido. Mudar para o entretenimento, como no seu caso e no de Fátima Bernardas, e como será o de Patrícia Poeta, é um jeito de permanecer por mais tempo na TV? Eu não decidi fazer uma mudança para o entretenimento. Minha grande decisão foi não fazer mais bancada de telejornal. Sempre deixei claro que não era minha atividade predileta. É comum almejar esse posto, porque ele é nobre. Mas ser nobre é uma coisa, ser divertido é outra 2#5 NÚMEROS 2,05 vezes mais ganha, ao longo da vida, quem tem diploma universitário nos Estados Unidos do que quem concluiu apenas o ensino médio, segundo um estudo do instituto Brookings que analisou oitenta profissões. 1,19 milhão de dólares, em média, recebem em sua carreira os americanos que concluíram o ensino universitário, contra os 580.000 dólares que ganham os que não fizeram faculdade A profissão mais bem remunerada naquele país é a de engenheiro químico: 2,11 milhões de dólares durante a vida de trabalho. 2,5 vezes mais recebe, no Brasil, o profissional que tem diploma de acordo com dados da OCDE - o país é o segundo com maior disparidade salarial entre 32 nações analisadas. O Chile é o primeiro. 8459 reais mensais, em média, ganha um médico, o profissional mais bem remunerado no Brasil segundo um estudo do Ipea que analisou 48 carreiras. 2#6 SOBEDESCE SOBE * Petróleo - Até o mês que vem, os Estados Unidos deverão se tornar o maior produtor mundial de petróleo, ultrapassando a Arábia Saudita, conforme indicam dados da Agência Internacional de Energia. * Chuvas - Elas finalmente voltarão a cair regularmente no Sudeste no fim deste mês, segundo o Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos. * Taxa de embarque - O valor cobrado dos passageiros, hoje de 21 reais nos voos domésticos e de 74 reais nos internacionais, vai subir 7,93% nos aeroportos administrados pela Infraero. DESCE * Fauna - As populações de peixes, pássaros, mamíferos, anfíbios e répteis diminuíram 52% entre 1970 e 2010, muito mais rápido do que o previsto anteriormente (28% entre 1970 e 2008), informou a WWF. * Cerveja sem álcool - A Ambev foi multada em 1 milhão de reais pela Justiça de Santa Catarina por omitir que a Kronenbier tem 0,3% de álcool em sua composição. * Serviço secreto - A revelação de que o homem armado que invadiu a Casa Branca há duas semanas passou por cinco barreiras de segurança derrubou a diretora do órgão americano, Julia Pierson. 2#7 RADAR LAURO JARDIM ljardim@abril.com.br • BRASIL DO OUTRO LADO... Paulo Roberto Costa tinha em seus genros, Márcio Lewkowicz e Humberto Mesquita, aliados de alta conta para suas estrepolias. Ambos, como PRC, foram denunciados na esteira da Lava-Jato. Agora, sigilos telefônicos enviados à CPI da Petrobras mostram o acesso de Lewkowicz a parcela importante do nicho de atuação do sogro. ...DA LINHA Documentos revelam cerca de sessenta telefonemas entre Lewkowicz e as empreiteiras Odebrecht, Andrade Gutierrez e Queiroz Galvão, de 2009 a 2013. Lewkowicz também mantinha contato com gente da Petros, o fundo de pensão da Petrobras: estão registradas pelo menos 21 ligações em 2012 e 2013. Há ainda sete telefonemas da Transpetro para o enrolado genro de PRC, dois anos atrás. VONTADE DE MELAR Os excelentes criminalistas contratados pelas empreiteiras e fornecedoras da Petrobras ainda estão empenhados até a medula em achar brechas para acabar com a delação premiada de PRC e Alberto Youssef. CACHIMBO DA PAZ João Roberto Marinho e Eduardo Cunha tiveram um longo encontro há duas semanas, tendo como palco a casa de um amigo de ambos, o empresário Luiz Affonso Otero. • ELEIÇÕES COM PAPO Sem alarde, Marcelo Odebrecht reuniu-se com Marina Silva em 5 de setembro, em São Paulo. SEM PAPO Marina Silva, em compensação, disse "não" a um pedido de conversa feito pela JBS. NUVENS CARREGADAS Há um certo consenso de que, se as delações premiadas de Paulo Roberto Costa e de Alberto Youssef vazarem antes do segundo turno, a possibilidade da reeleição de Dilma Rousseff diminuirá poderosamente. Faz todo o sentido. Se, no entanto, as delações vazarem apenas em 2015, desenha-se da mesma forma um tenebroso cenário para uma Dilma reeleita: um primeiro ano de governo de crise intensa. Juntará a econômica com a política, pois todos os implicados têm relação com o governo. • GOVERNO CABO DE GUERRA O que Dilma Rousseff disse a blogueiros governistas há duas semanas — que quer fazer a "regulação econômica da mídia" — é de fato uma decisão tomada por ela. Não é factoide para tentar amedrontar a imprensa na reta final de campanha. O alvo principal é a Globo, mas não só. NÃO É SIMPLES Só que, para mudar certas leis, ela terá de convencer o Congresso. • ECONOMIA HUMOR DO MERCADO 1 Um grande banco estrangeiro fez em setembro uma pesquisa com 100 gestores de fundos de renda variável sobre como a Bovespa se comportará em 2015. Deu o seguinte: se a oposição ganhar, o Ibovespa ficará, na média, em 65.000 pontos. Se Dilma Rousseff se reeleger, essa média cairá para 45.000 pontos. Hoje, a Bovespa patina em 53.000 pontos. HUMOR DO MERCADO 2 Há, porém, uma ressalva em relação ao prognóstico com Dilma. Se ela nomear uma equipe econômica palatável ao mercado financeiro, a previsão naturalmente mudará — para cima, claro. ÀS COMPRAS Apesar do mau humor geral, o mercado de fusões e aquisições está aquecido no Brasil. Há sobretudo um interesse externo em empresas líderes de mercado. • LIVROS ESTILO AMAZON A Amazon está perdendo dinheiro nestes seus primeiros 45 dias de vendas de livros físicos no Brasil — mas ninguém esperava que fosse ocorrer algo diferente. É o estilo Amazon de fazer negócios. Os descontos dados são de pelo menos 25%. Em 70% dos livros, a Amazon oferece os menores preços, embora o varejo on-line esteja tentando alcançar os valores ofertados pela empresa de Jeff Bezos. As vendas da Amazon, porém, estão abaixo do que as editoras esperavam, segundo estimativas do mercado. • GENTE FORÇA NA PERUCA Sabe quem Eike Batista acaba de nomear para a diretoria de sua holding EBX? Alessandro Corona. E quem é Corona? O italiano é sócio da franquia brasileira da Tricosalus, a empresa de tratamento capilar à qual Eike recorreu anos atrás em sua luta contra a calvície. 2#8 VEJA ESSA EDITADO POR RINALDO GAMA “As pessoas querem o espetáculo, mas a primeira coisa que querem saber é qual foi o resultado do jogo.” - DUNGA, técnico da seleção brasileira, em O Estado de S. Paulo. “É exagerado dizer que uma pessoa é racista porque chamou alguém de macaco num estádio. Xingar é coisa do jogo.” - ROGER MOREIRA, vocalista e compositor da banda Ultraje a Rigor, em entrevista a PLAYBOY de outubro. “Nosso chefe da comunidade de inteligência, Jim Clapper, reconheceu que eles subestimaram o que estava se passando na Síria.” - BARACK OBAMA, presidente dos EUA, referindo-se, no programa 60 Minutes, da CBS, aos erros de avaliação em torno da real ameaça representada pelo Estado Islâmico (EI). “Você arruinou nossa vida.” - OZANA RODRIGUES VIANA, a brasileira cujo filho belga, Brian de Mulder, luta na Síria ao lado das forças do EI, dirigindo-se a Fouad Belkacem, líder da organização islamista Sharia para a Bélgica, durante o julgamento do grupo, acusado de recrutar estrangeiros para a causa, realizado em Antuérpia. “Schettino dando palestra e eu numa função administrativa. Este é um país que pune seus servidores.” - GREGORIO DE FALCO, oficial da Marinha italiana, no diário La Republica; por ocasião do naufrágio do Costa Concordia (2012), ele ordenou ao capitão Francesco Schettino, responsável pela tragédia e que se ausentara do local, que voltasse a bordo. De Falco foi afastado de seu cargo, enquanto o capitão recebeu convite para participar de um seminário. “Criamos um sistema de diagnóstico que transforma problemas cotidianos e normais da vida em transtornos mentais." - ALLEN FRANCÊS, professor emérito da Universidade Duke, que dirigiu durante anos o Manual Diagnóstico e Estatístico (DSM), uma espécie de bíblia da psiquiatria, no jornal espanhol El País. “Não é hoje que vou parar de lutar pelo povo brasileiro.” - JAC SOUZA DOS SANTOS, ex-secretário de Agricultura de Combinado (TO), em coletiva à imprensa, um dia depois que, munido de arma de brinquedo e bombas falsas, fez de refém o mensageiro de um hotel em Brasília; após mais de sete horas de negociações, acabou se entregando. “Desvio de dinheiro é natural e intrínseco ao serviço público.” - CID GOMES (Pros), governador licenciado do Ceará, ao sair em defesa de Camilo Santana (PT), que concorre à sua sucessão, no caso de um escândalo que envolve recursos para a construção de sanitários públicos. “O STF não pode ser o estuário de todos os processos que tramitam no país.” - LUÍS ROBERTO BARROSO, ministro do Supremo Tribunal Federal, em debate realizado na Fundação Getulio Vargas, em São Paulo. “Aqui todo mundo me conhece como Vagner. Mas descobri que o Hitler chama mais atenção.” - HITLER VAGNER CÂNDIDO DE OLIVEIRA (PR), vereador de Juiz de Fora que decidiu se candidatar a deputado estadual usando seu primeiro nome; de acordo com a Folha de S.Paulo, ele disse não conhecer muito da história do nazismo, mas depois da eleição "tentará" ver um filme sobre o Fuhrer. “Em todo governo, nós, artistas, somos chamados na última hora, ou nem isso.” - MARIETA SEVERO, atriz, no Valor Econômico. EPÍGRAFE DA SEMANA A pretexto das eleições e da importância do voto “A democracia não corre, mas chega segura ao objetivo.” - J.W. GOETHE, escritor alemão (1749-1832) . _____________________________________ 3# ESPECIAL ELEIÇÕES 8.10.14 3#1 O ÚLTIMO LANCE 3#2 UMA ELEIÇÃO A CADA SEMANA 3#3 RETRATOS FALADOS PARA OS ELEITORES 3#4 A ECONOMIA EM SUSPENSE 3#5 NADA É IMPOSSÍVEL 3#6 O ANTIMARQUETEIRO DE MARINA 3#7 VELHOS CONHECIDOS 3#8 L’ÉTAT C’EST MOI 3#1 O ÚLTIMO LANCE No debate da Rede Globo, a três dias do primeiro turno, Aécio surge com a faca entre os dentes, Dilma fica na defensiva e Marina se diz atacada por todos. MARIANA BARROS, BELA MEGALE E PIETER ZALIS “Vocês entregaram a nossa maior empresa, e isso quem diz é a Polícia Federal, a uma quadrilha, a uma organização criminosa que lá se instalou. O diretor está preso." - Aécio Neves para Dilma Rousseff “Os governos dos quais o senhor era líder quebraram o país três vezes. A taxa de desemprego era de 18%, e a taxa de juros na gestão Armínio Fraga era de 45%. Os senhores colocaram o Brasil de joelhos diante do FMI.” – Dilma Rousseff para Aécio Neves “Eu fui atacada injustamente pelo PT, e também fui atacada injustamente por seu partido. E, pela primeira vez na história deste país, os dois se juntaram para tentar me desconstruir.” – Marina Silva para Aécio Neves. Foi o debate mais acirrado da campanha eleitoral até agora. O encontro dos candidatos à Presidência da República organizado pela Rede Globo na quinta- feira ocorreu a três dias da realização do primeiro turno da mais disputada eleição desde a redemocratização e horas depois de o Datafolha apontar empate técnico entre os dois segundos colocados, Marina Silva (PSB) e Aécio Neves (PSDB) — ela com 24% das intenções de voto, ele com 21%. Com tanto em jogo, os candidatos se comportaram à altura do valor do prêmio. Para a petista Dilma Rousseff, que manteve os 40% do levantamento anterior, o encontro representou a última chance de liquidar a fatura no primeiro turno. Para Marina e Aécio, foi o lance derradeiro de uma disputa com grande chance de continuar depois de domingo e da qual um dos dois sairá ungido oponente da petista, enquanto o outro irá para casa lamber as feridas da derrota. Dilma Rousseff, de blazer branco, esforçou-se quanto pôde para parecer simpática. Fugiu do confronto e passou a maior parte do tempo defendendo as realizações de seu governo. Marina, rouca, aparentava cansaço e manteve o semblante tenso. Ao contrário do que fez nos debates anteriores, abriu mão das falas propositivas e não economizou nos ataques: com a candidata do PT, seu alvo mais frequente, chegou a bater boca com os microfones desligados, apesar das admoestações do mediador, William Bonner, de que seu tempo estava esgotado. Aécio Neves veio armado até os dentes e, com uma insuspeita disposição para a briga, foi o que mais disparos desferiu. Usou praticamente todo o seu tempo na primeira metade do debate para atacar Dilma. Até as 20 horas de domingo já será possível saber qual dos dois candidatos ficou de pé para enfrentar o provável segundo round da eleição. Se a oponente de Dilma for Marina Silva, é certo que sua coligação estará batendo às portas do PSDB na manhã seguinte em busca de apoio — apoio que ela hesitou até a última hora em dar aos tucanos em São Paulo. Na semana passada, aliados afirmavam que os principais erros da ex-ministra foram colocar o seu propalado "purismo" acima das articulações partidárias e desprezar palanques influentes na suposição de que apenas a imagem da "nova política" seria suficiente para conduzi-la à vitória. "Marina quis entrar numa guerra sem soldados e sem pegar em armas", diz um deles. Esses mesmos aliados, no entanto, acreditam que ela tem ao menos dois trunfos para superar eventuais ressentimentos tucanos. O primeiro é a proximidade que vem cultivando com o ex-governador de São Paulo José Serra (chegou a declarar que gostaria de tê-lo em sua equipe de governo) e o segundo é o compromisso de acabar com a reeleição — o que poderia facilitar a adesão do próprio Aécio e também do candidato à reeleição ao governo de São Paulo, Geraldo Alckmin, ambos possíveis candidatos ao Planalto em 2018. Se for Aécio a ir ao segundo turno, os tucanos apostam que ele próprio conduzirá as conversas com vistas ao apoio de Marina. Argumentará que a ex-ministra já "mudou de lado" ao atacar Dilma e que seria uma contradição não se posicionar agora, repetindo o "erro de 2010", quando, com quase 20 milhões de votos no primeiro turno, optou pela "neutralidade" e recusou-se a apoiar o candidato José Serra. Walter Feldman, ex-tucano e um dos coordenadores da campanha da ex-ministra, é tido como figura central para que essa aproximação dê certo. Sete de cada dez eleitores assistiram pelo menos em parte a um dos debates das eleições presidenciais de 2010, segundo estudo conduzido pela cientista política Luciana Veiga, da Unicamp. Historicamente, o último encontro é o que tem maior audiência — na média das duas últimas eleições, o embate às vésperas do primeiro turno alcançou 30 pontos no Ibope, o que equivale a mais de 1,5 milhão de famílias com a TV ligada. Na eleição presidencial mais apertada e imprevisível da história do Brasil, as duas horas em que os candidatos ficaram contra a parede em rede nacional podem ter um peso decisivo no resultado de domingo. COM ALEXANDRE HISAYASU, JOÃO PAULO MARTINS E LUCAS SOUZA LEMBRANÇAS DO PRIMEIRO TURNO A troca de ataques pesados, sobretudo do PT contra o PSB, marcou a primeira fase da eleição. No vale-tudo da campanha, nem a linha abaixo da cintura foi poupada. Dilma ataca Marina BC INDEPENDENTE CAUSARÁ MISÉRIA NO BRASIL A propaganda da petista na TV mostrava a comida sumindo dos pratos de uma família que jantava ao mesmo tempo em que banqueiros se reuniam: "A autonomia do BC significaria entregar aos banqueiros um grande poder de decisão sobre a sua vida e a da sua família. Você quer dar a eles esse poder?". Marina ataca Dilma O GOVERNO COLOCOU LADRÕES NA PETROBRAS Também na TV, o PSB de Marina mostrou manchetes de jornais e revistas sobre o escândalo na estatal, enquanto o locutor dizia: "O Tribunal de Contas da União chegou a pedir que Dilma responda pelo rombo na empresa". Em entrevista, Marina afirmou que o PT colocou "um diretor para assaltar os cofres da Petrobras". Aécio ataca Marina MARINA SE CALOU SOBRE O MENSALÃO No início de setembro, o tucano acusou Marina de silenciar diante do caso quando era filiada ao PT: "Onde estava Marina? Ministra de Estado. Se indignou? Pediu pra sair? Não. Continuou como ministra, nos brindou com um obsequioso silêncio". COMO ELES USARAM O TEMPO DO DEBATE Aécio foi o que passou mais minutos no ataque, seguido por Marina, enquanto Dilma optou por ficar na defensiva. DILMA Tempo gasto Soluções: 2’19’’ (minutos); 11,7% Ataque: 5’ (minutos); 25% Defesa: 5’37’’ (minutos, 28,3% Realizações: 6’56’’ (minutos); 35% MARINA Tempo gasto Soluções: 4’13’’ (minutos); 27,2% Ataque: 9’02’’ (minutos); 58,4% Defesa: 1’13’’ (minutos, 7,8% Realizações: 1’02’’ (minutos); 6,6% AÉCIO Tempo gasto Soluções: 4’14’’ (minutos); 20,9% Ataque: 9’57’’ (minutos); 50% Defesa: 1’01’’ (minutos, 5,1% Realizações: 4’48’’ (minutos); 24% 3#2 UMA ELEIÇÃO A CADA SEMANA Perto do primeiro turno, um deputado do PT admite em vídeo que o partido usou o seu "dedo forte" nos Correios para favorecer a candidata Dilma em Minas. É o último escândalo da disputa mais imprevisível da história do Brasil. PIETER ZALIS E BELA MEGALE Nunca houve no Brasil uma eleição como esta. Desde a redemocratização, não se via um primeiro turno com resultado tão imprevisível (há nada menos que três cenários possíveis para domingo: vitória definitiva da petista Dilma Rousseff, sua ida para o segundo turno com Marina Silva, do PSB, e sua ida para o segundo turno com o tucano Aécio Neves). A eleição deste ano é também a mais apertada desde que, em 1989, o petista Lula ficou à frente do pedetista Leonel Brizola por 454.000 votos. Neste domingo, Marina e Aécio vão para o páreo cabeça a cabeça — segundo a pesquisa Datafolha divulgada na última quinta-feira, a vantagem da candidata do PSB sobre o tucano é de apenas 3 pontos, o que configura empate técnico. Por fim, o pleito presidencial de 2014 já entrou para a história como o único a apresentar três viradas antes do primeiro turno (veja o gráfico na pág. 66). Tucanos torcem para que uma quarta esteja por vir. Na terça-feira, o jornal O Estado de S. Paulo revelou um vídeo em que o deputado estadual Durval Ângelo (PT-MG) é aplaudido num encontro de funcionários dos Correios em Belo Horizonte ao afirmar em discurso que Dilma Rousseff só atingiu 40% das intenções de voto em seu estado porque contou com "um dedo forte dos petistas dos Correios". No encontro, estava presente o presidente da estatal, Wagner Pinheiro. Ex-sindicalista, filiado ao PT de Campinas (SP) e nomeado para o cargo pela presidente Dilma, Pinheiro foi também presidente da Petros, o fundo de pensão dos funcionários da Petrobras. O deputado Durval Ângelo, que fez o discurso, é o coordenador político da campanha do candidato ao governo de Minas pelo PT, Fernando Pimentel. No dia seguinte à divulgação do vídeo, o candidato do PSDB, Aécio Neves, anunciou que sua campanha já investigava a suspeita de que os Correios vinham atrasando deliberadamente a entrega de panfletos eleitorais tucanos com o propósito de favorecer Dilma e Pimentel. Aécio afirmou que seu comitê reuniu mais de 600 relatos telefônicos de eleitores que não receberam os panfletos em Minas — o tucano contratou os Correios, em 25 de agosto, para entregar o material até 10 de setembro em 100% dos endereços de cerca de metade das cidades do estado. "Estão querendo fraudar as eleições em Minas Gerais", acusou. A estatal negou que tenha boicotado o envio de material eleitoral do PSDB e a presidente Dilma atribuiu a acusação tucana ao "momento eleitoral". Aécio entrou com uma representação contra a campanha do PT na Justiça Eleitoral, mas, segundo o ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral Torquato Jardim, é muito difícil que o caso tenha consequências jurídicas para a petista. "O vídeo mostra o que parece ser uma conduta proibida, mas a jurisprudência brasileira exige que fique provado que o candidato sabia do esquema. E será difícil provar que a presidente tinha conhecimento das ações dos Correios, ao menos antes do primeiro turno." Na campanha tucana, a expectativa é que, ainda que a Justiça não tenha tempo de julgar o episódio, o eleitor o fará. E, diante da pequena diferença que separa Aécio de Marina, isso poderia provocar uma reviravolta nas intenções de voto. Seria mais uma numa eleição já cheia delas. Num período de dois meses, um dos principais partidos envolvidos na disputa teve de substituir seu candidato, morto em acidente aéreo; o adversário mais forte da candidata favorita perdeu o lugar para a candidata recém-chegada; a favorita despencou e a nova candidata disparou, para logo depois tudo se inverter novamente. A morte trágica do ex-governador Eduardo Campos e a entrada de última hora de Marina Silva na disputa foram acontecimentos de alto impacto, mas, sozinhos, não explicam tantas mudanças na cabeça dos eleitores. Para analistas e cientistas políticos ouvidos por VEJA, a sucessão de vai- vens é consequência, sobretudo, do embate entre dois sentimentos do eleitor: o de rejeição à classe política e o de desejo de mudança. O diretor-geral do Datafolha, Mauro Paulino, resume a tese: "A junção dessas duas percepções, de certa forma contraditórias, gerou principalmente no eleitor de renda baixa e da nova classe média uma sensação de insegurança". Explica Paulino: "As conquistas materiais desse eleitor se estagnaram nos últimos anos, o que enfraqueceu a candidatura do governo. A oposição, no entanto, não passou a confiança de que ele não perderia o que já conquistou. Nesse dilema, o eleitor oscilou". Os dados que ilustram esta página mostram os altos e baixos da disputa. Eles são o resultado do cruzamento de 46 pesquisas registradas na Justiça Eleitoral. Com base nesse material, o estatístico Neale El-Dash, do site Polling Data, calculou as probabilidades que cada candidato tem, ou já teve, de vencer a eleição, assim como a chance de haver segundo turno. O resultado mostra uma montanha-russa eleitoral. Neste domingo, ela fará sua primeira parada. A MONTANHA-RUSSA DA ELEIÇÃO 2014 Como oscilaram nos últimos dois meses as chances de cada candidato vencer a eleição, segundo cálculos do Polling Data, com base no cruzamento das principais pesquisas de intenção de voto divulgadas até agora. 22 DE AGOSTO Com a morte de Eduardo Campos, em 13 de agosto, Marina Silva entra em cena. As primeiras pesquisas mostram que ela tem mais chance de ganhar de Dilma Rousseff do que Aécio Neves, até então o adversário mais forte da petista. Dilma: 56% Marina: 32% Aécio: 12% Probabilidade de haver um segundo turno: 71% 4 DE SETEMBRO Três semanas depois da tragédia que matou Campos e ainda poupada de ataques dos adversários, Marina cresce em todas as pesquisas e tem 70% de chance de se tornar presidente da República. É o pior momento de Dilma. Marina: 0% Dilma: 29% Aécio: 1% Probabilidade de haver um segundo turno: 82% 22 DE SETEMBRO A ofensiva pesada da campanha petista e a larga vantagem do partido do governo na TV surtem efeito e reequilibram o jogo entre as favoritas. Aécio Neves assume o papel de coadjuvante na disputa. Dilma: 51% Marina: 48% Aécio: 1% Probabilidade de haver um segundo turno: 90% 2 DE OUTUBRO Na reta final para o primeiro turno, o cruzamento de 46 pesquisas, incluindo a do Datafolha da última quinta-feira, mostra que Dilma é novamente quem tem mais chance de vencer a eleição. Dilma: 69% Marina: 24% Aécio: 7% Probabilidade de haver um segundo turno: 98% 3#3 RETRATOS FALADOS PARA OS ELEITORES Longe de exibirem uma oratória arrebatadora, Dilma, Marina e Aécio se desdobram para construir uma imagem positiva a partir de seus discursos. RINALDO GAMA “Não é um discurso. É uma vida." Chama atenção o fato de um dos pronunciamentos mais célebres da campanha presidencial de 2014 — feito por Marina Silva durante um comício realizado no mês passado em Fortaleza — trazer consigo uma espécie de aversão a algo que integra a própria natureza da política. Ao fazer a distinção entre "discurso" e "vida", a candidata do PSB procurava reiterar a distância que a separaria de seus adversários, a fim de se legitimar como a verdadeira "expressão da mudança", o "novo", em oposição ao continuísmo, o "velho". E isso a partir da premissa de que, em política, o "discurso" exprime a mentira — enquanto "uma vida" não se pode inventar. Curiosamente, no entanto, a intervenção de Marina só provocou o efeito avassalador que se verificou porque seguiu uma diretriz básica da retórica, a arte do bem falar: o discurso será tão mais convincente quanto mais o orador puder transmitir uma imagem confiável de si. Sistematizada pelos sofistas, a retórica teve em Aristóteles (384-322 a.C.), gigante da filosofia da Grécia antiga, um incontornável estudioso, e no ateniense Demóstenes (384-322 a.C.) e no latino Cícero (106-43 a.C.) sua autêntica personalização. Segundo Aristóteles, autor de uma obra notável sobre o assunto, o ethos, a imagem que o orador constrói de si mesmo, consistiria no primeiro dos elementos-chave para convencer uma plateia. "É ao caráter moral (do orador) que o discurso deve quase todo o seu poder de persuasão", escreveu ele. As outras variáveis seriam o páthos, ou seja, a capacidade de a palavra falada "levar o auditório a uma certa disposição de espírito" (emoção); e o lógos (domínio da razão), instância referente ao próprio discurso, "no que diz respeito ao que ele demonstra ou parece demonstrar". Naturalmente, todos os políticos buscam transmitir uma imagem confiável de si. É preciso, porém, observar como esse ethos opera em consonância com o páthos e o lógos. Seja como for, está-se falando sempre em nível de discurso. "O discurso político não esgota, de forma alguma, todo o conceito político, mas não há política sem discurso", anota o linguista francês Patrick Charaudeau no livro intitulado justamente Discurso Político. Se não há política sem discurso, é claro que, para conquistar votos, cada político buscará marcar um discurso original. "No caso de Dilma Rousseff, Marina Silva e Aécio Neves, a 'imagem' construída por meio das campanhas apresenta distinções claras, o que contraria uma fala do senso comum de que políticos são todos iguais. A política se faz exatamente nesse confronto entre a imagem de si e a imagem que o outro quer atribuir — e, na busca pelo equilíbrio dessa equação, todos vão fazendo seus malabarismos", explica Vanice Oliveira Sargentini, professora do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos e coordenadora do Laboratório de Estudos do Discurso. Neste ano, tal malabarismo, segundo Emmanuel Publio Dias, especialista em marketing político e professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (SP), foi agravado pela tragédia ocorrida com o governador de Pernambuco Eduardo Campos. "Todos os discursos tiveram de ser revistos", sublinha ele. O rearranjo acabaria dando o norte verificado nas campanhas — pelo menos neste primeiro turno. Na análise de Vanice Oliveira Sargentini, a construção da imagem de cada um é cristalina: "Dilma cultiva o ethos do didatismo. Marina, por sua vez, constrói de si a imagem de vítima, que passa por dificuldades que somente quem tem muito esforço consegue superar. Já Aécio reforça a imagem de ser apenas mais um entre o povo. Entretanto, ainda que ele fale das ruas, sua fala não se confunde com a de um cidadão comum. E, em relação ao conteúdo do seu enunciado, conduz a um dizer propositivo" (leia falas dos três que acompanham as fotos aqui publicadas). Para além dessas características do ethos de cada um dos candidatos, é notória a ênfase dos respectivos discursos nos outros dois elementos constituintes de sua retórica. Sob essa perspectiva, Aécio e Marina se colocam em pontos opostos: ele, sublinhando o lógos (diversas vezes, o senador se posicionou como o autêntico representante da razão nessa disputa); ela, pontuando o páthos (quer dizer, empenhando-se em provocar um arrebatamento passional, emotivo). No caso de Dilma, a intenção de privilegiar o lógos (dispositivo útil ao didatismo) chocou-se, muitas vezes, contra o que se convencionou chamar de "dilmismo" — uma certa dificuldade da petista em transmitir com clareza o que pretende dizer. Longe de exibir uma oratória extraordinária, que marcou a trajetória de um Carlos Lacerda, por exemplo, não apenas Dilma como Marina e Aécio têm no discurso uma limitação que as campanhas se bateram para superar. Nenhum deles revelou pleno domínio dos fundamentos da arte do bem falar. Podem-se procurar os verdadeiros presidenciáveis por meio de sua retórica? "O discurso político é, por excelência, o lugar de um jogo de máscaras", acredita Patrick Charaudeau. "Toda palavra pronunciada no campo político deve ser tomada ao mesmo tempo pelo que ela diz e não diz." "Tem uma coisa em economia que se chama índices antecedentes e os índices que evidenciam como é que é a situação atual. O que que são os índices antecedentes, por exemplo? A quantidade de papelão que é comprada, a quantidade de energia elétrica consumida, a quantidade de carros que são vendidos. Todos esses índices indicam uma recuperação no segundo semestre, vis-à-vis ao primeiro." - Dilma Rousseff Característica: culto à sapiência e ao didatismo, que, muitas vezes, resulta no chamado "dilmismo" - falta de clareza e de concordâncias, raciocínios tortuosos, que não se concluem. "Tudo o que minha mãe tinha para oito filhos era um ovo e um pouco de farinha e sal com umas palhinhas de cebola picadas. (...) Eu me lembro de ter olhado para o meu pai e minha mãe e perguntado 'Vocês não vão comer?'. E minha mãe respondeu: 'Nós não estamos com fome'. E uma criança acreditou naquilo. Mas eu depois entendi que eles há mais de um dia não comiam." - Marina Silva Característica: uso da própria trajetória de vida como elemento capaz de emocionar a audiência ou a plateia e desconcertar os adversários. "Nós vamos ter uma política de fronteira e de controle de entrada de drogas diferente dessa que está aí. (...) Nós só estabeleceremos negociação, parcerias e apoios a esses países quando eles começarem a atuar internamente, dentro das suas fronteiras, para coibir a produção de drogas." - Aécio Neves Característica: esforço em passar a ideia de uma postura propositiva, clara e racional, evidenciando que só se chegará a um ponto se cumpridas determinadas condições. COM REPORTAGEM DE FERNANDA ALLEGRETTI 3#4 A ECONOMIA EM SUSPENSE Empresários e investidores aguardam o desfecho da eleição, temerosos da manutenção da política econômica centralizadora e hostil aos mercados. MARCELO SAKATE Avaliada pelo humor dos investidores e dos especuladores, a atual disputa eleitoral brasileira revela uma particularidade. Em vez da alternância de poder, desta vez é a manutenção do atual governo que causa apreensão e desperta incertezas. A tensão pré-eleitoral exibe um substrato claro. Caso vença Marina ou Aécio, espera-se uma correção de rumo na administração da economia que dê novo alento aos investimentos. Em um cenário de mais quatro anos de Dilma, ao contrário, existe pouca clareza sobre se haverá mudanças ou se a presidente, mesmo com a já anunciada substituição de Guido Mantega na Fazenda, promoverá ajustes favoráveis ao setor privado. Em sua campanha, a atual presidente pouco fez para dirimir incertezas sobre como será o seu segundo mandato e alimentou ainda mais a desconfiança com a radicalização de suas diatribes contra bancos e investidores estrangeiros. Embora o desempenho econômico dos últimos quatro anos tenha sido pífio, não foi feito nenhum mea-culpa pela equipe econômica nem pela sua comandante. No discurso oficial, não se sabe se por autoengano ou se por manipulação das evidências, o Brasil encerrará quatro anos gloriosos em 2014 (veja o quadro na pág. ao lado). A verdade é que foram engendrados desequilíbrios profundos na economia, que, se não revertidos quanto antes, trarão resultados indigestos ainda no próximo governo. Um estudo recente evidencia como o Brasil, apesar das conquistas inequívocas na última década, avançou modestamente na comparação com seus pares emergentes em critérios como crescimento, investimento, inflação, produtividade, distribuição de renda e escolaridade. Não por acaso, um estudo dos economistas Vinícius Carrasco, João M.P. de Mello e Isabela Duarte foi denominado "A década perdida: 2003-2012", numa referência ao sentimento de que o país poderia ter avançado muito mais, beneficiado que foi por um choque de renda externo (a valorização de matérias-primas exportadas). Um dos poucos pontos positivos foi a criação de vagas de trabalho e a queda no desemprego, mas mesmo essa conquista está sob risco, porque foi baseada, em grande parte, na bolha do consumo inflamada pelo governo. A hesitação de Dilma contrasta com o senso de urgência de que a economia brasileira precisa. Os números mais recentes das contas do governo mostram que a situação é mais grave do que se pensava e que o próximo presidente, independentemente de quem for, enfrentará um quadro de desequilíbrio fiscal que não será resolvido rapidamente. O baixo crescimento derrubou as receitas, mas as despesas continuam a subir. O resultado dessa equação é um saldo fiscal de apenas 48 bilhões de reais no acumulado em doze meses, o equivalente a 0,9% do PIB. Trata-se do pior resultado da série histórica, iniciada em 2002. O mais grave é que esse dado só foi obtido graças a manobras contábeis ou receitas extraordinárias. Um truque consiste em transferir títulos públicos ao BNDES, com o objetivo de reforçar o seu fôlego para emprestar. Mas há um segundo propósito, revela o economista Mansueto Almeida: inflar o ganho do banco com os juros. Sobem assim o pagamento de dividendos ao Tesouro e o recolhimento de impostos. Em 2007, o BNDES detinha menos de 1 bilhão de reais em títulos públicos. Em junho passado, o montante somava 78 bilhões de reais. De acordo com Mansueto, excluídas manobras como essa, o governo teria registrado, na verdade, um déficit de 14 bilhões de reais (0,3% do PIB), e isso antes dos gastos com o pagamento dos juros da dívida pública. A combinação desse quadro com o baixo crescimento da economia explica o fato de a dívida do setor público ter voltado a crescer e atingido, em agosto o maior patamar em dois anos e meio. Há razões objetivas que explicam por que isso é ruim: dívida mais alta e crescente se traduz em taxas de juros mais elevadas que o governo tem de pagar ao captar dinheiro por meio da venda de títulos públicos. E isso afeta ainda mais o equilíbrio fiscal e tira dinheiro que poderia ser investido ou aplicado em programas sociais, por exemplo. Mas, em vez de atacar o problema, o governo prefere a estratégia de negação da realidade. "Não há indícios de que a presidente Dilma tomará espontaneamente a decisão de fazer mudanças profundas na economia. Mas essa recusa não significa que não haverá ajustes", diz Tony Volpon, chefe de pesquisa para mercados emergentes das Américas do banco Nomura. Segundo ele, o próprio mercado acaba assumindo o papel. "Como é típico de mercados emergentes, o principal mecanismo de ajuste é a taxa de câmbio", afirma o economista. Um real mais fraco se traduz na queda dos salários reais, devolvendo competitividade ao país; e, num primeiro momento, na alta da inflação, exigindo juros mais altos e, consequentemente, crescimento menor. A mudança no câmbio já começa a ser testemunhada. No último mês, o dólar teve uma valorização de 11,2%, e o Ibovespa, o principal índice de ações do país, encerrou com queda de 13,5%. Para quem investe pensando a médio e longo prazo, previsibilidade é uma pré-condição. É exatamente aí que reside uma das principais críticas ao governo Dilma: o voluntarismo atropelou a racionalidade, como se observou no setor elétrico. A vontade do governo de reduzir na marra a tarifa de energia, com a imposição de novos contratos às empresas, resultou em um desequilíbrio de 61 bilhões de reais que cai na conta de empresas e consumidores, conforme estimativa recém-concluída do Tribunal de Contas da União (TCU), além de ter gerado um ambiente de insegurança jurídica. O voluntarismo na redução dos juros também saiu pela culatra, a aumentar a inflação e reduzir os investimentos produtivos — ao contrário do almejado pelo governo. Foram os resultados mais evidentes de um governo que procurou, desde o primeiro momento, refundar os alicerces básicos da ciência econômica. Não funcionou. Curiosamente, tanto Marina como Aécio pouco souberam explorar as falhas evidentes na política econômica. Não apresentaram ideias claras sobre quais seriam os benefícios práticos na vida das pessoas de executar reformas e ajustes na economia. Ficaram presos em rebater as acusações e distorções propaladas pela campanha governista. Palavras como inovação e produtividade, as duas pedras angulares do desenvolvimento, foram raridade em suas falas e entrevistas. Na análise feita por VEJA, de mais de 60.000 palavras ditas por Aécio em treze entrevistas, produtividade aparece uma única vez, e inovação, sete. Marina, em mais de 23.000 palavras em oito entrevistas a jornais e TVs, citou cinco vezes produtividade e duas vezes inovação. Nisso, ao menos, Dilma se saiu melhor que os adversários. Falou onze vezes em produtividade e seis vezes em inovação, em mais de 41.000 palavras ditas em dez entrevistas. O PALANQUE E O MUNDO REAL Os dados objetivos nem sempre corroboram o discurso de Dilma sobre a economia. CRESCIMENTO A propaganda: "A crise nos atingiu, de forma mais aguda, nos últimos anos. Tal fato decorre da persistência, em todas as regiões do mundo, de consideráveis dificuldades econômicas, que impactam negativamente nosso crescimento." A realidade: no governo Dilma, a economia mundial avançou em uma velocidade maior do que nos quatro últimos anos de Lula — quando o Brasil cresceu mais. 2007-1010 (média anual) Crescimento mundial +3,2% Crescimento do Brasil +4,6% 2011-1014 (média anual) Crescimento mundial +3,4% Crescimento do Brasil +1,7% INVESTIMENTOS A propaganda: "Resistimos às piores consequências da crise, como a paralisia do investimento. Mantivemos os investimentos em infraestrutura". A realidade: a taxa de investimento caiu em nove dos catorze trimestres do governo Dilma. Desde 2011, a taxa, como proporção do PIB, recuou de 19,5% para 16,5. INFLAÇÃO E CONTAS PÚBLICAS A propaganda: "Não descuidamos da solidez fiscal e da estabilidade monetária". A realidade: quando assumiu, Dilma herdou um setor público que economizava o equivalente a 2,7% do PIB - o chamado superavit primário. Nos últimos meses, essa poupança desapareceu. O superavit acumulado em doze meses caiu para 0,9% do PIB. A inflação, enquanto isso, permanece próxima ao limite superior da meta (6,5%). PETRÓLEO A propaganda: "A média de produção de petróleo cresceu 50% entre 2002 e 2013". A realidade: a produção média do país aumentou 39% no período mencionado. Nos três primeiros anos do governo Dilma, a produção caiu 1,5%. Pior: com Dilma, as importações de petróleo subiram 20% e as de derivados, 12%. BNDES A propaganda; "Eu acho que é um factoide falar em política das campeãs nacionais. Das 1000 maiores empresas (do país), 783 têm financiamento do BNDES, e essas 783 empresas é que respondem por 84% do investimento na indústria.” A realidade: as grandes empresas, aquelas com faturamento anual superior a 300 milhões de reais e, portanto, em condições de negociar e buscar dinheiro no mercado e em bancos privados e públicos, receberam 60% de tudo o que o BNDES desembolsou nos últimos três anos. Foi um montante equivalente a 294 bilhões de reais. TENSÃO ELEITORAL NOS MERCADOS DÓLAR (2/OUT) 2,49 reais • A maior cotação desde dezembro de 2008 • Variação (no último mês) +11% IBOVESPA (2/OUT) 3.518 pontos • O nível mais baixo em quatro meses • Variação (no último mês) -13,5% 3#5 NADA É IMPOSSÍVEL Com altas doses de ilusionismo visual e semântico, o marqueteiro João Santana leva mais uma vez Dilma Rousseff à condição de favorita. DANIEL PEREIRA Nascido em Tucano e com carreira de sucesso a serviço do PT, o baiano João Santana é um otimista nato quando exerce o papel de marqueteiro. No ano passado, poucos meses depois das manifestações de junho e da queda do apoio popular a Dilma Rousseff, ele previu uma reeleição tranquila da presidente, que não seria ameaçada pelos adversários, tachados por ele de "anões". A realidade tratou de desmenti-lo, ele admitiu o erro de prognóstico sobre os rivais e, de quebra, suspendeu as declarações públicas. Nada que lhe abalasse o ânimo. Desde o começo da propaganda eleitoral, Santana afirma que são reais as chances de Dilma vencer no primeiro turno. Sobre um eventual segundo turno, revela o mesmo estado de espírito. É voz corrente entre analistas e políticos que Dilma enfrentará dificuldades numa derradeira rodada de votação, sobretudo se for contra a ex-ministra Marina Silva, que terá o mesmo tempo de propaganda eleitoral da petista. Santana discorda. "Muito tempo é bom para quem tem o que mostrar. A Marina não tem", declarou numa conversa recente. Por causa desses cenários, governistas costumam ironizar o marqueteiro. As pesquisas dele, dizem os colegas, comprovam justamente aquilo que ele quer comprovar. Santana seria, no marketing político brasileiro, uma espécie de Pangloss, o otimista incorrigível criado por Voltaire no clássico Cândido, para quem tudo estava sempre o melhor possível. Uma comparação injusta e, de certa forma, sintomática da ciumeira que o baiano provoca no entorno de Lula e Dilma. Diferentemente de Pangloss, Santana não é resignado nem inocente. Pelo contrário, usa todas as armas possíveis para superar as dificuldades. Em épocas de disputa política e eleição, faz o "diabo" se necessário — e essa é uma das razões da permanência do PT no poder, mesmo com a sucessão de escândalos de corrupção, e da recuperação da presidente Dilma nesta reta final da corrida presidencial. Como ocorreu no auge do escândalo do mensalão, Santana, mais uma vez, virou o jogo a favor de seus chefes. O marqueteiro assumiu a condição de protagonista nos governos petistas depois de o colega Duda Mendonça admitir que recebera no exterior, via caixa dois, pelos serviços prestados à campanha de Lula em 2002. O então presidente e o PT estavam nas cordas. Era real o temor de um processo de impeachment. Convocado às pressas, Santana chegou com um discurso pronto para reagir à crise. Foi dele a ideia de insinuar que, caso a oposição tentasse apear Lula do poder, os movimentos sociais e as classes mais pobres sairiam às ruas para defendê-lo, cindindo o país. Eis o embrião do discurso do "nós" contra "eles", que serviu de alicerce para as campanhas vitoriosas de Lula em 2006 e de Dilma em 2010. Em abril passado, Santana mantinha a fé nessa mesma cantilena e na previsão de vitória em primeiro turno. Mas, como Dilma caía nas pesquisas, resolveu testar uma munição um pouco mais pesada, a ser usada caso a dificuldade momentânea da presidente perdurasse ou voltasse no futuro. Foi quando o PT lançou a campanha do medo da volta ao passado, numa referência indireta ao PSDB, até então a principal ameaça à reeleição de Dilma. Criticada pela oposição, a peça acabou vetada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mas foi muito bem assimilada em pesquisas qualitativas com grupos de eleitores. Era o que importava para Santana. Seu teste dera o resultado esperado, a artilharia estava aprovada e, mais importante, pronta para ser disparada no momento oportuno. Esse momento chegou quando Marina abriu uma vantagem de 10 pontos percentuais sobre Dilma nas projeções de segundo turno. A ofensiva do medo voltou à cena, mas com um alvo diferente. Sob a influência de Lula e do ex-ministro Franklin Martins, o Santana paz e amor, que previa uma campanha olímpica no fim de 2013, deu lugar ao Santana que faz o diabo — e este foi à luta. Com base em mensagens aprovadas previamente por eleitores, mesmo que mentirosas ou deturpadas, ele acusou Marina de quase tudo — desde pretender tirar a comida da mesa dos brasileiros até entregar o país aos banqueiros. Assim, "dessacralizou a santa", como dizem os petistas, e devolveu a Dilma o favoritismo. Para o PT, João Santana, por enquanto, é o cara. 3#6 O ANTIMARQUETEIRO DE MARINA Adepto do Daime, "Toinho do Acre" é misto de amigo e guru. Há três meses, o acriano Antonio Alves, 57 anos, deixou a casa que construiu com as próprias mãos nos arredores de Rio Branco, a rotina de leituras de Gramsci e os chás de ayahuasca (ele é adepto da doutrina do Santo Daime) para passar uma temporada em São Paulo mergulhado em mais uma campanha de Marina Silva. Os dois se conheceram quando ela era estudante de história na Universidade do Acre e ele havia acabado de retornar ao estado depois de ter sido jubilado do curso de arquitetura na Universidade de Brasília. Era um período em que Toinho, como é conhecido, dividia o tempo entre partidas de xadrez, rodas de violão e os discursos políticos inflamados que fazia como líder da organização trotskista Liberdade e Luta (Libelu). Desde então, esteve ao lado de Marina todas as vezes em que ela concorreu a um cargo eletivo — uma mistura de guru, amigo e marqueteiro (ele abomina o último título). Em 1994, quando foi eleita senadora, Marina convocou Toinho para orientá-la no planejamento estratégico de seu mandato. O bonde já estava andando quando o acriano desembarcou em Brasília e a primeira coisa que fez foi mandar parar tudo: "Está errado. Marina não deve mirar o interior do Acre, precisa ser conhecida em Nova York. De lá, a mensagem chegará ao estado". A partir dali, a senadora ganhou agenda internacional, e as palestras que começou a ministrar mundo afora passaram a ser revisadas por Toinho, apontado por amigos como o melhor intérprete do "marinês". "Ele escreve do jeito que ela fala. Sabe usar as expressões rebuscadas e jogos de palavras de que Marina gosta", diz um deles. "Muita coisa do que Marina formula é em conjunto com ele. Pensam juntos", afirma o jornalista e amigo Altino Machado. É da autoria de Toinho, por exemplo, o conceito de "florestania" (mistura de floresta e cidadania) e ideias como as "cicleatas", passeatas de bicicleta que organizou na campanha ao governo do Acre de Jorge Viana (PT). Marina reconhece a influência de Toinho nas suas decisões, mas prefere dizer que conta com um "conselheiro político". Sua queda nas pesquisas levou aliados a procurar marqueteiros profissionais para atuar num provável segundo turno. Paulo de Tarso, que trabalhou com ela na campanha de 2010, chegou a ser sondado. Mas até agora ninguém passou pelo crivo da ex-senadora. BELA MEGALE E MARIANA BARROS 3#7 VELHOS CONHECIDOS O discurso da mudança deu a tônica a estas eleições, mas em dois terços dos estados brasileiros devem sair vitoriosos políticos que estão ou já estiveram no governo. SILVIO NAVARRO Depois dos protestos de 2013, mudança e renovação tornaram-se palavras de ordem nas eleições deste ano. Às vésperas da votação, contudo, as pesquisas feitas nos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal apontam para cenários mais bem descritos pela palavra continuidade. Na reta final, dois terços das disputas têm como favoritos governadores em busca da reeleição, candidatos que representam a atual gestão ou políticos de oposição que já governaram o estado no passado. Só um terço dos estados tem na dianteira um político que nunca ocupou o Executivo ou que não conta com o apoio do atual governador. "As pessoas querem mudança, mas sem perder benefícios que associam aos governantes. É o que causa essa situação", diz o cientista político David Fleischer, da Universidade de Brasília (UnB). Segundo os institutos de pesquisa, onze candidatos que hoje estão no poder detêm a dianteira na corrida. Quatro deles devem vencer já no domingo: Geraldo Alckmin (SP), Raimundo Colombo (SC), Beto Richa (PR) e Paulo Câmara (PE). Outros dois — Marconi Perillo (GO) e Tião Viana (AC) — também estão perto de alcançar a reeleição na rodada inicial. A eles, somam-se sete nomes que, na oposição neste ano, pertencem à velha guarda: seis foram governadores no passado, e Renan Filho (PMDB), em Alagoas, é fruto da aliança de velhas raposas — do pai, o senador Renan Calheiros, com Fernando Collor de Melo. O pelotão dos veteranos poderia ser ainda maior se a Lei da Ficha Limpa não tivesse barrado José Riva (MT), José Roberto Arruda (DF) e Neudo Campos (RR) — os dois últimos lideravam as pesquisas até deixarem o páreo. Se o que as sondagens indicam se confirmar nas urnas, o PMDB, partido que simboliza a chamada "velha política", poderá sair das eleições como campeão em número de estados conquistados: oito. O principal é o Rio de Janeiro, onde o governador Luiz Fernando Pezão lidera. PSDB e PT têm boas chances de eleger seis e cinco governadores, respectivamente. As disputas em São Paulo e Minas Gerais têm reflexos no embate nacional entre os partidos. Desalojar o PSDB do governo paulista era um anseio petista que será frustrado: a quase certa reeleição de Alckmin no primeiro turno deve fazer com que os tucanos ultrapassem a marca de duas décadas no comando da mais rica e populosa unidade da federação. O troco pode vir em Minas Gerais, o segundo maior colégio eleitoral, onde o petista Fernando Pimentel abre larga dianteira sobre Pimenta da Veiga, correligionário do ex-governador e presidenciável tucano Aécio Neves. Destaque das eleições de 2010, quando faturou seis estados e exibiu musculatura no Nordeste, o PSB deve encolher e ostentar como vitrine expressiva Pernambuco, onde o favorito é o novato Paulo Câmara, afilhado político do ex-governador Eduardo Campos. A vizinha Bahia, por sua vez, pode ser a tábua de salvação do DEM — e outro exemplo de eleição marcada por um retorno. O democrata Paulo Souto, que venceu eleições em 1994 e 2002, tem boas chances de conquistar o terceiro mandato, batendo o petista Rui Costa, o homem de confiança do atual governador, Jaques Wagner. "Nas eleições regionais, os grupos políticos têm muito peso", diz o cientista político Luiz Felipe D'Avilla, presidente do Centro de Liderança Pública (CLP). "Os nomes ainda têm mais poder que as instituições." PARANÁ BETO RICHA (PSDB) x ROBERTO REQUIÃO (PMDB) Cenário: Richa é favorito à reeleição, beneficiado pelo fracasso da candidatura da ex-ministra Gleisi Hoffmann (PT) e pelo índice de rejeição de Requião. O que está em jogo: ao lado de São Paulo, o Paraná é hoje um reduto do PSDB no país - território onde o PT não vence . SANTA CATARINA RAIMUNDO COLOMBO (PSD) x PAULO BAUER (PSDB) Cenário: Colombo deve ser reeleito no primeiro turno. O que está em jogo: pode ser o único estado administrado pelo PSD. RIO GRANDE DO SUL TARSO GENRO (PT) x ANA AMÉLIA LEMOS (PP) Cenário: Tarso Genro, o atual governador, recuperou terreno na reta final da campanha e ultrapassou Ana Amélia. O que está em jogo: com histórico de não reeleger seus governadores, o eleitorado gaúcho vive uma acirrada eleição. ESPÍRITO SANTO PAULO HARTUNG (PMDB) x RENATO CASAGRANDE (PSB) Cenário: Hartung tem chances reais de vencer no primeiro turno. O que está em jogo: Casagrande se elegeu em 2010 com apoio de Hartung, que já administrou o estado duas vezes. O desmoronamento da aliança deve tirar do PSB uma de suas vitrines. MINAS GERAIS FERNANDO PIMENTEL (PT) x PIMENTA DA VEIGA (PSDB) Cenário: o candidato tucano joga as últimas fichas para impedir uma vitória do petista no primeiro turno. O que está em jogo: a vitória do PT no estado de Aécio Neves (PSDB) pode ser a mais dura do país para o PSDB. RIO DE JANEIRO LUIZ FERNANDO PEZÃO (PMDB) x ANTHONY GAROTINHO (PR) Cenário: a campanha começou com quatro candidatos competitivos e acaba polarizada entre o atual governador, Pezão, e Garotinho. O que está em jogo: é o principal estado administrado pelo PMDB no país. SÃO PAULO GERALDO ALCKMIN (PSDB) x PAULO SKAF (PMDB) Cenário: o tucano deve ser reeleito no primeiro turno. O que está em jogo: a hegemonia do PSDB no maior estado do país e o fortalecimento de Alckmin como alternativa do partido para a disputa presidencial de 2018, caso Aécio Neves não vença as eleições deste ano. MATO GROSSO DO SUL DECÍDIO AMARAL (PT) x REINALDO AZAMBUJA (PSDAB) Cenário: o candidato da situação, Nelsinho Trad (PMDB), não decolou, abrindo espaço para o crescimento de Delcídio, que lidera com folga. O que está em jogo: eleito, Delcídio ganha novo status no PT. GOIÁS MARCONI PERILLO (PSDB) x ÍRIS REZENDE (PMDB) Cenário: Perillo pode alcançar o quarto mandato no estado. O que está em jogo: desde 1999, Perillo manda no estado. Esteve fora do governo entre 2006 e 2010, quando seu então apadrinhado Alcides Rodrigues exerceu o cargo. DISTRITO FEDERAL RODRIGO ROLLEMBERG (PSB) x JOFRAN FREJAT (PR) Cenário: com altíssima rejeição, o atual governador, Agnelo Queiroz (PT), foi ultrapassado na reta final por Frejat, herdeiro do ficha-suja José Roberto Arruda, e deve ficar fora do segundo turno. O que está em jogo: uma derrota simbólica e vexatória para o PT. Alvejado por denúncias de corrupção, Agnelo deve ser um caso raro de candidato à reeleição que não alcança o segundo turno. MATO GROSSO PEDRO TAQUES (PDT) x LUDIO CABRAL (PT) Cenário: Taques foi quem mais se beneficiou com a renúncia do ficha-suja José Riva (PSD), que embolava a disputa. O que está em jogo: o PDT volta a ter um governo – mas é a ala do partido que nunca se alinhou ao PT que saí fortalecida. ACRE TIÃO VIANA (PT) x TIÃO BOCALOM (DEM) Cenário: Viana lidera a corrida e pode vencer no primeiro turno. O que está em jogo: a hegemonia do PT, que administra o estado desde 1999. AMAZONAS EDUARDO BRAGA (PMDB) x JOSÉ MELO (Prós) Cenário: Braga mantém a dianteira, mas a eleição caminha para o segundo turno. O que está em jogo: com a vitória, Braga, que já governou o estado duas vezes, passa a medir forças com o atual prefeito de Manaus, Arthur Virgílio (PSDB), cuja gestão é bem avaliada. AMAPÁ WALDEZ GÓES (PDT) x LUCAS BARRETO (PSD) Cenário: Góes lidera, mas Barreto e o atual governador, Camilo Capiberibe (PSB) - que amarga altos índices de rejeição -, estão em empate técnico no segundo lugar. O que está em jogo: a vitória de Góes, que já administrou o estado duas vezes, será um prêmio de consolação para seu aliado José Sarney, cujo grupo tende a ser derrotado no Maranhão. PARÁ SIMÃO JATENE (PSDB) x HELDER BARBALHO (PMDB) Cenário: Jatene e Helder, filho de Jader Barbalho, representam as duas correntes políticas mais fortes do estado. O que está em jogo: a vitória, para o PSDB, será uma demonstração de força, uma vez que o Pará tem mais de 5 milhões de votos. Barbalho, que hoje desfruta apenas uma fração do prestígio que já teve no Senado, dará a volta por cima elegendo seu filho. RORAIMA CHICO RODRIGUES (PSB) x ANGELA PORTELA (PT) Cenário: não há pesquisas que permitam prever o desfecho da eleição. Estima-se que Angela e Rodrigues estejam em vantagem depois que o favorito Neudo Campos (PP) foi barrado pela Lei da Ficha Limpa e lançou a mulher, Suely, na disputa. O que está em jogo: a vitória no menor colégio eleitoral do país, com 300.000 eleitores, não tem peso nacional. RONDÔNIA EXPEDITO JÚNIOR (PSDB) x CONFÚCIO MOURA (PMDB) Cenário: Expedito Júnior aparece na dianteira, com tendência de segundo turno. O que está em jogo: numa eleição em que o PSDB pode não estar presente no segundo turno da disputa presidencial, o mandato nos estados ganha peso para a legenda. TOCANTINS MARCELO MIRANDA (PMDB) x SANDOVAL CARDOSO (SD) Cenário: o ex-governador Miranda deve vencer no primeiro turno. O que está em jogo: o sucesso de uma manobra eleitoreira. O governador Wilson Siqueira Campos e seu vice renunciaram neste ano, entregando o governo a Cardoso - que se comprometeu a devolver o favor em 2018. ALAGOAS RENAN FILHO (PMDB) x BENEDITO DE LIRA (PP) Cenário: Renan Filho está à frente na disputa, mas um terço do eleitorado se diz indeciso ou não tem candidato. O que está em jogo: a vitória da aliança entre os senadores Renan Calheiros (PMDB) e Fernando Collor de Melo (PTB). BAHIA PAULO SOUTO (DEM) x RUI COSTA (PT) Cenário: Souto lidera e pode vencer no primeiro turno. O que está em jogo: eleito, Souto vai dar cara, ao lado do prefeito de Salvador, ACM Neto, ao "carlismo renovado" - e fará do estado o principal reduto do DEM no Brasil. MARANHÃO FLÁVIO DINO (PCdoB) x LOBÃO FILHO (PMDB) Cenário: Dino pode vencer no primeiro turno. O que está em jogo: o fim da era Sarney no estado. Será o único governo ocupado pelo PCdoB. PERNAMBUCO PAULO CÂMARA (PSB) x ARMANDO MONTEIRO (PTB) Cenário: a trágica morte do ex-governador Eduardo Campos, em agosto, catapultou a campanha de Paulo Câmara (PSB), seu afilhado político, que virou a eleição e lidera. O que está em jogo: pode ser a principal vitória do PSB no país, palanque importante para Marina Silva na disputa presidencial, caso ela chegue ao segundo turno. RIO GRANDE DO NORTE HENRIQUE EDUARDO ALVES (PMDB) x ROBINSON FARIA (PSD) Cenário: Alves desponta, mas o cenário está aberto. O que está em jogo: a vitória projeta nacionalmente o atual presidente da Câmara dos Deputados. CEARÁ EUNÍCIO OLIVEIRA (PMDB) x CAMILO SANTANA (PT) Cenário: o quadro é de empate técnico - Eunício lidera, mas a candidatura petista deu um salto nas últimas semanas. O que está em jogo: Eunício pode impor uma derrota ao grupo político dos irmãos Ciro e Cid Gomes, que administram o estado e apoiam o candidato do PT. PARAÍBA CÁSSIO CUNHA LIMA (PSDB) x RICARDO COUTINHO (PSB) Cenário: com o apoio de catorze partidos, Cunha Lima lidera e tenta seu terceiro mandato no estado contra Coutinho, o atual governador. O que está em jogo: para o PSDB, manter uma vitrine no Nordeste. Para o PSB, um revés implica o encolhimento do partido em relação às eleições de 2010. PIAUÍ WELLINGTON DIAS (PT) x JOSÉ FILHO (PMDB) Cenário: numa disputa entre dois ex-aliados, Dias deve conquistar já no primeiro turno seu terceiro mandato no estado. O que está em jogo: a vitória mostra o peso eleitoral do Bolsa Família, que atende 48% dos piauienses. SERGIPE JACKSON BARRETO (PMDB) x EDUARDO AMORIM (PSC) Cenário: candidato à reeleição, Barreto lidera, mas a tendência é de segundo turno. O que está em jogo: para o PMDB, manter um governo que é seu e não prejudicar a conta que pode fazer da sigla a campeã em estados conquistados neste ano. Para o PSC, a oportunidade única de vitória. 3#8 L’ÉTAT C’EST MOI Tal como Luís XIV, que encarnava o próprio Estado, nossos principais candidatos, mesmo quando dizem o contrário, estão sempre presos à ideia de que o Estado tem solução para tudo e para todos. ANDRÉ PETRY Em sua última coluna para o jornal O Globo, o escritor baiano João Ubaldo, morto em julho, tratou de uma obsessão brasileira: a ideia de que o Estado é a fonte de todas as soluções, mesmo para aquilo que nem sabíamos que se constituía num problema. Sob o título "O correto uso do papel higiênico", Ubaldo satirizou a onipotência estatal, que vive criando normas e regulamentos "para nos proteger dos muitos perigos que nos rondam, inclusive nossos próprios hábitos e preferências pessoais". Agora, na reta final da campanha presidencial, essa obsessão brasileira esteve em plena evidência, com os principais candidatos demonstrando — mesmo quando querem dizer o contrário — sua excessiva fé no poder do Estado e do governo de resolver tudo. Os candidatos falam como se fossem, eles próprios, a própria encarnação do Estado, mais ou menos como Luís XIV, o rei que cunhou a célebre frase "L’État c'est mói" (O Estado sou eu), para ilustrar seu poder incontrastável na França monárquica. Em julho, numa entrevista à TV, a presidente Dilma Rousseff disse: "Nós vamos manter o emprego, aqui no Brasil, em alta e o desemprego em baixa". Há duas semanas, também em entrevista à TV, o tucano Aécio Neves, questionado sobre suas políticas para favorecer o crescimento econômico, respondeu assim: "Nossa candidatura é a que permitirá que o Brasil cresça." Como se vê, os candidatos pensam que o governo cria emprego, que o governo comanda a economia e a faz crescer. Marina Silva, a candidata do PSB, apresentou ideias que, de início, foram tomadas como propostas para cancelar a tutela estatal sobre os trabalhadores e as indústrias. Disse que, eleita, pretendia "atualizar" as leis trabalhistas, aparentemente ampliando a autonomia de patrões e empregados nos dissídios coletivos. Também prometeu "desmamar" a indústria, sugerindo que a deixaria atuar sem a proteção maternal de incentivos fiscais. Era tudo o contrário do que parecia, como a candidata fez questão de esclarecer. "Desmamar", na verdade, significa "qualificar melhor" as isenções fiscais, de modo a cobrar uma contrapartida da indústria em favor do governo. E "atualizar" a legislação do trabalho queria dizer "manter os direitos já conquistados e ampliar aqueles que os trabalhadores ainda precisam conquistar". Nenhum dos três candidatos, nem mesmo Dilma, que reza pela cartilha do PT, se diz estatista ou estatizante. Nenhum defende a estatização de bancos ou hospitais. Aécio e Marina, sobretudo, apresentam-se como políticos do mercado, da iniciativa privada. Todos, porém, estão sempre vidrados em Brasília, no governo, no Estado, como se daí viessem todas as soluções para o Brasil e seu povo. Contabilizando-se a frequência com que cada candidato, em entrevistas e discursos, pronunciou as palavras "governo" e "mercado", tem-se uma matemática surpreendente: Aécio, logo Aécio, que se posiciona como o político capaz de acalmar os mercados, falou nada menos que 638 vezes em "governo" e 24 em "mercado". Dilma, em tese a mais estadocêntrica, falou bem menos em "governo" (150 vezes) e quase o mesmo que Aécio em "mercado" (23 vezes). Marina, outra que se apresenta como amistosa à iniciativa privada, falou 104 vezes em "governo" e só quatro em "mercado". A insistência dos candidatos pode parecer apenas receio de perder voto de um eleitorado que equaliza governo com salvação. Mas, por trás desses números, esconde-se uma visão de mundo na qual o Estado é o centro de todas as coisas: cria empregos, move a economia, abraça os pobres, os trabalhadores e os industriais, e protege os cidadãos dos "muitos perigos que nos rondam". O Estado, claro, é resultado do avanço civilizatório. Apesar da globalização, que enfraqueceu parte de suas funções clássicas, os estados nacionais exercem papéis essenciais nas sociedades democráticas — da proteção aos mais vulneráveis à aplicação de uma política externa. Só não criam um centavo de riqueza, e todo o dinheiro que os governos gastam vem dos impostos pagos por cidadãos produtivos e por empresas que os empregam. Portanto, o Estado está abaixo — e não acima — da sociedade. Comportando-se como personificação do Estado e fonte de todo o poder, os candidatos reforçam o histórico vício nacional de pedir socorro ao governo — seja para o que for. Marina gosta de denunciar as forças políticas que querem "um pedaço do Estado para chamar de seu". Em entrevista, Dilma disse que sem os bancos públicos, como Caixa, Banco do Brasil e BNDES, "não saem rodovia, ferrovia, porto, aeroporto. Não sai VLT. Esquece, porque não sai". É verdade, pois os bancos públicos dão empréstimos para obras de infraestrutura e cobram juros mais acessíveis, mas só é verdade porque queremos que seja assim. Não é um imperativo universal. O conflito entre o individualismo e a sociedade governada nasceu junto com o próprio Estado. Mas a sociedade que não abre o olho acaba tendo um Estado que lhe ensina o correto uso do papel higiênico. TRÊS GRAÇAS - Da esq. para a dir., Aécio, Marina e Dilma, em pinturas que retratam Luís XIV: olhando de perto, eles até que ficam bem com os paramentos de um rei que se dizia o próprio Estado. _________________________________________ 4# BRASIL 8.10.14 4#1 O COFRE DE PANDORA 4#2 ELE PODE... ... MAS ELE NÃO PODE 4#1 O COFRE DE PANDORA O doleiro Alberto Youssef quer entregar os documentos e as provas definitivas contra os corruptos e corruptores que atuavam na Petrobras. Ele afirma que o material, longe do alcance das autoridades, "vai chocar o país". ROBSON BONIN Durante muito tempo, o doleiro Alberto Youssef e o engenheiro Paulo Roberto Costa formaram uma dupla de sucesso nos subterrâneos do governo. Enquanto Paulo Roberto usava suas poderosas ligações com os altos escalões do poder e o cargo na diretoria de Abastecimento da Petrobras para desviar milhões dos cofres da estatal, Youssef encarregava-se de gerenciar a bilionária máquina de arrecadação que era usada para abastecer uma trinca de partidos e corromper políticos importantes. Paulo Roberto era o articulador, o cérebro da organização. Youssef, o caixa, o banco. Um apontava os caminhos para assaltar a estatal. O outro era o encarregado dos malabarismos contábeis para fazer o dinheiro chegar aos destinatários da maneira mais segura possível, sem deixar rastros. Em março deste ano, quando a Polícia Federal deflagrou a Operação Lava-Jato, que tinha o objetivo de desarticular um esquema de lavagem de dinheiro, a dupla caiu na rede. O que ninguém imaginava — nem mesmo os policiais — é que, a partir das informações dadas pelos dois criminosos, uma monumental engrenagem de corrupção, talvez a maior de todos os tempos, começaria a ruir. VEJA revelou que Paulo Roberto Costa, o primeiro a assinar o acordo de delação com a Justiça, entregou às autoridades o nome de mais de trinta políticos envolvidos no esquema de corrupção na Petrobras, entre eles três governadores, seis senadores, um ministro de Estado e pelo menos 25 deputados federais, além de Antonio Palocci, o coordenador da campanha presidencial de Dilma Rousseff em 2010, que pediu 2 milhões de reais ao esquema. O ex-diretor forneceu o nome dos corruptos que se locupletavam do dinheiro desviado e das empreiteiras que contribuíam com a arrecadação da propina — um golpe já considerado letal na estrutura da organização criminosa. Se as revelações do ex-diretor — muitas ainda desconhecidas — já provocaram um cataclismo, o que está por vir promete um efeito ainda mais devastador. Alberto Youssef, o caixa, decidiu seguir o parceiro e contar o que sabe. E, nas palavras do próprio doleiro, o que ele sabe "vai chocar o país". Além de confirmar que o dinheiro desviado da Petrobras era usado para sustentar três dos principais partidos da base aliada — PT, PMDB e PP —, Youssef se colocou à disposição para fechar o elo da cadeia de corrupção, fornecendo as contas no exterior, as datas de remessa e os valores repassados a políticos e autoridades que ele tinha como clientes. Youssef disse às autoridades que, durante o tempo em que operou o banco da quadrilha, por quase uma década, tomou o cuidado de esconder em um local seguro documentos que mostram a origem e o destino das cifras bilionárias que movimentou. É o que ele garante ser a verdadeira contabilidade do crime — um inventário que está escondido em um cofre ainda longe do alcance das autoridades brasileiras. O acervo é tão completo que incluiria até os bilhetes das viagens que demonstrariam o que os investigadores já apelidaram de “money delivery", o dinheiro entregue em domicílio. A delação de Alberto Youssef ainda precisa ser admitida pela Justiça, como foi a de Paulo Roberto, transferido para a prisão domiciliar na última quarta-feira. Pelas informações do ex-diretor, a Polícia Federal já sabe que as grandes empreiteiras se comprometiam a repassar 3% do faturamento dos contratos que assinavam com a Petrobras. O dinheiro chegava ao caixa de Youssef por meio de simulação de serviços, em malas ou em depósitos no exterior. O doleiro era o encarregado de distribuí-lo. No caso da parceria que ele mantinha com Paulo Roberto, os "clientes" eram políticos do PT, do PMDB e do PP. Os papéis guardados no cofre registram em detalhes as várias entregas em espécie que foram feitas em Brasília, transferências bancárias diretas entre os envolvidos e compensações em contas secretas no exterior. Alberto Youssef já sinalizou aos investigadores que os seus segredos podem adicionar muitos personagens novos ao escândalo. "Ele diz ter elementos que mostram muita gente importante envolvida até o pescoço nas tramóias da Petrobras. O conteúdo tem um potencial 100 vezes maior que o do Paulo Roberto", diz uma pessoa que ouviu as primeiras revelações do doleiro. Os documentos inéditos guardados por Alberto Youssef podem inaugurar uma nova fase nas investigações da Polícia Federal. Apesar de ainda não ter dado à polícia mais detalhes sobre a identidade dos envolvidos, o doleiro já confirmou que um dos nomes de sua lista é o do secretário nacional de Finanças do PT, João Vaccari Neto. O tesoureiro petista também foi citado nos depoimentos de Paulo Roberto Costa. Ele seria o "contato oficial" nas diretorias sob influência do partido. O esquema de desvios também atuaria nas diretorias de Serviços e Internacional, comandadas, respectivamente, por Renato Duque e Nestor Cerveró. Procurado por VEJA, João Vaccari Neto disse que conheceu Alberto Youssef em uma "situação social" e que, depois de apresentados, eles se encontraram pelo menos três vezes "em aeroportos e outros lugares públicos", mas nunca, segundo Vaccari, para tratar de recursos para o PT. "Todas as doações que o PT recebe são feitas na forma da lei e declaradas à Justiça Eleitoral", disse o secretário. A fase inicial do processo de delação de Youssef começou na última quinta-feira. Combinadas com o que a polícia já apurou e com o que Paulo Roberto Costa contou, as revelações do doleiro devem mostrar, segundo os investigadores, que era praticamente impossível que um esquema dessa magnitude tivesse funcionado na Petrobras sem que ninguém da cúpula da estatal ou do governo tivesse conhecimento. Outro episódio ainda misterioso que deve emergir desses depoimentos diz respeito a contrato de empréstimo de 6 milhões de reais firmado em 2004 pelo operador do mensalão, Marcos Valério, e pelo empresário Ronan Maria Pinto, envolvido num caso de chantagem contra o ex-presidente Lula, o ministro Gilberto Carvalho e o mensaleiro José Dirceu. Conforme VEJA revelou há três semanas, o documento, apreendido pela PF no escritório de Youssef, pertencia ao mensaleiro Enivaldo Quadrado, que também trabalhava com o doleiro. A polícia já sabe que Quadrado usava o documento para extorquir o PT. Vaccari, também nesse caso, operava como contato financeiro do partido e foi o responsável por viabilizar os dólares que compraram o silêncio de Enivaldo Quadrado. Por mais bombásticos que sejam os crimes descobertos pelas autoridades até o momento — envolvendo grandes empreiteiras, políticos influentes e partidos do núcleo do governo —, nem os próprios agentes que estão em contato com o doleiro conseguem dimensionar até onde foram suas relações com o poder na última década. As revelações que Youssef guarda na memória, amparadas pelos documentos escondidos em seu cofre, podem dar uma nova dimensão à Operação Lava-Jato. Nas conversas preliminares que teve, Alberto Youssef deixou transparecer que suas informações aprofundarão ainda mais o fosso de corrupção encontrado na Petrobras e em outros órgãos do governo. O advogado responsável pela negociação do acordo de delação do doleiro, Antonio Augusto Figueiredo Basto, não quis detalhar a evolução das negociações com a Justiça. "Só vamos nos pronunciar depois que o acordo estiver homologado", disse ele. Se o doleiro falar — e provar — tudo o que sabe, a Lava-Jato pode entrar para a história do país como o mais duro golpe já aplicado contra o crime organizado. 4#2 ELE PODE... ... MAS ELE NÃO PODE Condenado a sete anos de prisão por corrupção, o mensaleiro José Dirceu mantém ativo seu registro na OAB e até trabalha num escritório de advocacia,... ...enquanto o ex-ministro Joaquim Barbosa, relator do processo do mensalão, teve seu pedido de registro impugnado pela OAB, e, por ora, está impedido de exercer a profissão. HUGO MARQUES A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) tem um vasto histórico de excelentes serviços prestados ao país. No auge da ditadura militar, ousou desafiar os poderosos de plantão, protestando contra as prisões arbitrárias de civis e as torturas praticadas pelo regime dos generais. Em 1984, durante o movimento das Diretas Já, a entidade liderou as grandes manifestações pela volta da democracia. O pedido de impeachment do então presidente Fernando Collor foi protocolado no Congresso pelas lideranças da OAB. Embora represente exclusivamente os advogados, a Ordem sempre foi considerada uma trincheira de defesa das instituições republicanas e, por isso, goza de um prestígio quase inabalável. De uns tempos para cá, porém, alguns de seus dirigentes têm feito um esforço hercúleo para dilapidar esse patrimônio, construído ao longo de mais de oitenta anos. O exemplo mais grotesco dessa cruzada se deu na semana passada. Numa atitude sem precedentes, o presidente da seção brasiliense da OAB, Ibaneis Rocha, apresentou à própria entidade um recurso para impedir que Joaquim Barbosa, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, revalide sua carteira de advogado. Joaquim, como se sabe, deixou marcas indeléveis em sua passagem pela Suprema Corte. A principal delas, como relator do processo do mensalão, que mandou para a cadeia a antiga cúpula do PT e mais uma penca de aliados que se juntaram num esquema destinado a comprar apoio político com dinheiro proveniente de corrupção. Por sua atuação no processo, Joaquim ganhou legiões de admiradores, mas também muitos inimigos, principalmente entre os advogados dos réus. Durante e após o julgamento, foi duramente atacado por claques raivosas. Recebeu até ameaças de morte. Agora, aposentado, o ex-ministro faz planos para retomar o exercício da advocacia — quer se especializar na emissão de pareceres jurídicos. Como no Brasil advogados precisam necessariamente do registro na OAB para atuar, Joaquim pediu à entidade que revalidasse o seu, que estava inativo desde quando ele ingressou no serviço público. Trata-se de uma formalidade, um procedimento burocrático pelo qual passam, sem nenhum sobressalto, quase todos os juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores que deixam a toga. Em geral, basta pedir o registro que a OAB concede. Não para Joaquim. A depender do presidente da OAB do Distrito Federal, o ex-ministro não será atendido — e por uma razão, digamos, surreal. Ibaneis Rocha alega que Joaquim não tem "idoneidade moral" para exercer a advocacia. Ele afirma que, ao longo de sua atuação como ministro do Supremo, Joaquim teria ofendido várias vezes a categoria dos advogados. Para uma entidade que um dia combateu as arbitrariedades do autoritarismo, é um escárnio. Ao longo de quatro páginas de seu pedido de impugnação, Ibaneis cita episódios em que Joaquim teria afrontado o exercício da profissão. A lista inclui algumas pérolas, como uma sessão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em que Joaquim declarou em tom de piada que advogados costumam acordar tarde. Há outros episódios supostamente mais gravosos — e todos eles, ironicamente, relacionados ao processo do mensalão. É o caso de uma declaração pública do ex-ministro classificando como "ação entre amigos" a decisão de um advogado de Brasília de dar emprego ao mensaleiro José Dirceu. O petista, por sinal, é provavelmente o exemplo mais gritante do criterioso zelo da OAB quando o assunto é autorizar ou não a emissão de suas carteiras funcionais. Condenado a sete anos de prisão e obrigado a se recolher toda noite a uma cela, ele está com seu registro de advogado regular. Já Joaquim Barbosa, relator do processo que mandou Dirceu para a cadeia, periga não conseguir o seu. O que explica a diferença de tratamento? Estaria a OAB, historicamente habituada a confrontar o poder, se transformando numa entidade chapa-branca, aparelhada por interesses partidários? Advogado de sindicatos e conhecido por manter laços estreitos com petistas de Brasília, Ibaneis Rocha nega que sua iniciativa contra Joaquim seja retaliação. "Não entendo o motivo pelo qual ele quer pertencer a esta classe", diz. E condenados, como José Dirceu, podem? "Para cassar o registro, o crime tem de ser considerado infamante." Ah, bom! _____________________________________ 5# INTERNACIONAL 8.10.14 JOSHUA E O GOLIAS O garoto de 17 anos que lidera os protestos por eleições diretas em Hong Kong é destemido, mas Pequim não pretende ceder. FELIPE CARNEIRO Joshua Wong era apenas um bebê de 8 meses quando Hong Kong, uma próspera colônia inglesa, foi devolvida à China, em 1997. Pelo acordo que garantiu a transferência, Hong Kong seria governada por Pequim, mas manteria por cinquenta anos certa autonomia, além de direitos democráticos inexistentes na China comunista. Wong, portanto, integra a primeira geração da ilha a crescer totalmente sob o jugo de Pequim. Aos 17 anos, ele não tem idade para votar, mas está quase lá e entende muito bem o que significa esse direito. Franzino e de fala rápida, é ele quem tem insuflado os jovens que há duas semanas ocupam as ruas do centro de Hong Kong a pedir mais direitos políticos do governo chinês. O primeiro grande protesto liderado por Wong, há dois anos, aconteceu quando o governo local tentou impor um plano de educação "patriótica", ou seja, com conteúdo ditado pelo Partido Comunista. A iniciativa foi deixada de lado e Wong tornou-se uma celebridade. Na semana passada, seu discurso atraiu mais de 100.000 pessoas contra a decisão de Pequim de escolher os candidatos que disputarão a primeira eleição direta para chefe executivo de Hong Kong, marcada para 2017. Wong foi preso e detido por quarenta horas. Solto, reuniu-se com os amigos a tempo de juntar-se a um protesto na cerimônia dos 65 anos da China comunista, na quarta-feira passada. Para se proteger da repressão do regime, Wong trata de relativizar o seu papel de liderança. "O herói do movimento é cada um dos cidadãos de Hong Kong", disse ele. Inicialmente, a polícia reagiu lançando spray de pimenta e gás lacrimogêneo contra a manifestação pacífica de alunos secundaristas e universitários. Disciplinados e ordeiros — eles não deixaram de fazer o dever de casa, não pisaram na grama e reciclaram o lixo acumulado durante a ocupação do centro da cidade —, os estudantes acabaram ganhando a simpatia da população mais velha, mais permeável às regras ditadas por Pequim e mais conciliadora (veja o quadro ao lado). Sem conseguir que a multidão voltasse para casa, o governo de Hong Kong optou por suspender o enfrentamento e ensaiou alguma negociação. A probabilidade de uma repressão nos moldes do que aconteceu na Praça da Paz Celestial, em 1989, quando 1000 manifestantes foram mortos, hoje é menor. A China é um país muito mais integrado ao mundo do ponto de vista econômico e diplomático. Um novo massacre certamente não ajudaria Pequim a defender seus interesses internacionais. Por outro lado, o governo comunista não pode ceder aos meninos e às meninas de Hong Kong, sob o risco de o exemplo inspirar protestos no restante do país. Há outros motivos para duvidar que a China volte atrás e permita uma democracia plena com sufrágio universal no território. A promessa de manter a fórmula de "um país, dois sistemas", que garante Judiciário independente, liberdade de expressão e direito de protesto, acaba em 2047. Além disso, Hong Kong vem sendo absorvida pelo restante da China em outras áreas. Em 1997, a região autônoma representava 16% do PIB chinês. Hoje não passa de 3%. Metade de suas exportações toma o rumo do continente. A imprensa é livre, mas aos poucos os principais veículos têm passado às mãos de empresários fiéis ao regime comunista. Ao longo dos anos, houve um estímulo à imigração para a ilha — de cidadãos escolhidos a dedo, naturalmente —, de modo que um em cada dez habitantes de Hong Kong hoje é originário da China continental. "Hong Kong sempre falou a língua do dinheiro e a China é um mastodonte econômico que não pede licença para chegar aonde quer", diz a economista Yan-yan Yip, presidente do centro de estudos Civic Exchange, de Hong Kong. UMA CAUSA, DUAS GERAÇÕES A repressão aos estudantes de Hong Kong, que ainda não causou vítimas fatais, suscitou uma comparação inevitável com o massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989. Naquele ano, o governo chinês enviou tanques e soldados do Exército da Libertação Nacional ao centro de Pequim para conter uma manifestação que denunciava a falta de liberdade e os problemas econômicos. Entre os milhares de detidos estava um dos líderes, Wang Dan. Ele cumpriu dois mandados de prisão, de quatro e de onze anos, exilou-se nos Estados Unidos e agora vive em Taiwan, a ilha que resistiu à expansão da China comunista. Ao analisar o que acontece em Hong Kong, Wang vê semelhanças. "As demandas são as mesmas", disse ele em entrevista ao site da BBC. Sua experiência nas prisões do regime comunista, contudo, não dá espaço a ilusões: "Não acho que o governo chinês vá ceder aos pedidos dos manifestantes". Sua falta de esperança é de toda uma geração, diferente daquela que protesta atualmente em Hong Kong. Enquanto os mais novos sonham alto e não se intimidam em exigir a renúncia dos governantes, os mais velhos temem perder liberdades que seriam inimagináveis no restante da China. "Há um embate geracional. Os jovens são inconsequentes e querem rupturas imediatas. Os adultos tentam mudanças negociadas e graduais porque prezam aquilo que já conquistaram", diz o cientista político americano John Lewis, da Universidade Stanford. _______________________________________ 6# GERAL 8.10.14 6#1 GENTE 6#2 EDIPEMIA – NÃO HÁ MOTIVO PARA PÂNICO 6#3 NEGÓCIOS – IMPORTAR PARA CRESCER 6#4 INOVAÇÃO – EXCLUSIVO – ELA VIA BELEZA NAS MÁQUINAS 6#5 EDUCAÇÃO – DO ZERO AO TOPO DO RANKING 6#6 BELEZA – VEM CÁ, CINTURA FINA 6#7 COMPORTAMENTO – O HOMEM MAIS FELIZ DO MUNDO 6#8 SAÚDE – CHEGA DE DAR O SANGUE 6#1 GENTE JULIANA LINHARES. Com Marília Leoni e Thaís Botlho BELEZA ESCONDIDA Não é nada que se compare à eterna disputa entre flamengos e valões, mas a Bélgica fictícia encarnada por GIOVANNA LANCELLOTTI também terá muito bate-boca. Ela será irmã de Israel, Afeganistão e Itália na próxima novela das 7, Alto Astral. "As brigas familiares são engraçadíssimas. É só gritaria entre os 'países'", descreve. Para virar Bélgica, ela terá de abrir mão dos atributos naturais mostrados na foto ao lado. "Perdi 3 quilos e adotarei trejeitos desengonçados, pois, além de má, ela é o patinho feio da trama." Outros clássicos do gênero "como enfear atrizes lindas" serão os óculos de grau e os cabelos presos. E uma certa tatuagem em árabe que fez no pé? "Fiz com o Caio Castro e era para significar 'muso', mas saiu errado." Pensa em corrigir? "Jamais, representa nossa amizade. Demos muita risada." FESTIVAL DE VENEZA Corpo de modelo, guarda-roupa de estrela, currículo de projeção internacional e uma negra cabeleira tão prodigiosa quanto milimetricamente escovada até sob o vento da lancha na qual desfilou pelo Grande Canal, seguida por uma armada de paparazzi quase do tamanho da frota veneziana na batalha de Lepanto. Está certo, a comparação com o combate naval de 1571 é um pouco exagerada, mas o mundo ainda está se recuperando do deslumbramento provocado por AMAL ALAMUDDIN, libanesa radicada em Londres, em seus quatro dias de festanças de casamento (as roupas ao lado, incluindo o romântico vestido de noiva de Oscar de la Renta, foram avaliadas em 290.000 reais). Ah, sim, o noivo foi um tal de GEORGE CLOONEY. A DIETA DA RAINHA Os primeiros 100 dias do rei Felipe da Espanha e de sua mulher, LETIZIA, foram em ritmo de campanha eleitoral: fizeram cinco viagens ao exterior, abriram as portas do palácio para um público mais variado e em todas as ocasiões tentaram mostrar uma imagem mais acessível. Felipe também proibiu qualquer membro da casa real de fazer negócios particulares — uma encrenca, desde que a irmã e o cunhado se afundaram em maracutaias. O objetivo é recuperar o prestígio da monarquia. A popularidade da ex-jornalista Letizia, criticada no passado pela magreza e aparente tensão, está em alta, e ela parece mais confortável como rainha consorte. Só não peçam que relaxe na dieta: na semana passada, ela apareceu com o mesmo vestido cor de vinho usado em 2009 num encontro com Carla Bruni, sem nem 1 grama a mais. 6#2 EDIPEMIA – NÃO HÁ MOTIVO PARA PÂNICO O primeiro caso de ebola fora da África, nos Estados Unidos, assusta, mas o risco de o vírus se disseminar é baixíssimo. A notícia de que o ebola saíra da África e chegara aos Estados Unidos foi recebida com alarde. Não há, no entanto, motivo para pânico. É improvável que o vírus se dissemine de forma tão rápida e letal como aconteceu no oeste africano — desde março, 7178 pessoas foram infectadas e 3338 morreram. Até o fim da semana passada, havia apenas um contaminado em território americano, o motorista liberiano Thomas Eric Duncan. Sem nenhum sintoma da contaminação por ebola, no último dia 19, ele embarcou em Monróvia, na Libéria, rumo a Dállas, no Texas, para visitar parentes. Nove dias depois, Duncan foi internado em estado crítico no Hospital Presbiteriano do Texas. Até a quinta-feira 2, ele permanecia em isolamento. Duncan foi contaminado ao prestar socorro a Marthalene Williams, de 19 anos, sua vizinha em Monróvia. Grávida de sete meses, a jovem morreu em 16 de setembro (veja o quadro abaixo). Seu irmão, Sonny Boy, com quem Duncan também teve contato, sucumbiu ao ebola na quarta-feira passada. De modo a evitar que o vírus se alastre, é preciso identificar e monitorar todos aqueles que tiveram contato com Duncan depois do início dos sintomas. Pelos cálculos dos especialistas, eles somam 100 pessoas. Esse número poderia ser menor. Dois dias antes de ser internado, Duncan procurou o hospital, mas foi dispensado. Diz Tom Frieden, diretor do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC): "É possível que alguém que tenha tido contato com o paciente venha a desenvolver os sintomas da doença nas próximas semanas. Mas não há dúvida de que vamos parar por aí". A melhor estratégia de combate ao ebola é a identificação e o isolamento dos doentes, de modo a quebrar a cadeia de transmissão do vírus. "A situação foge ao controle quando começam a ocorrer os chamados casos secundários, aqueles sem relação direta com o primeiro paciente", diz o infectologista Artur Timerman. Não custa lembrar que o ebola não é de transmissão fácil. Ele não passa pelo ar, apenas pelo contato com os fluidos corporais do doente. Ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, e também no Brasil, na África o ebola encontrou o cenário ideal para sua proliferação. Além da falta de equipamentos básicos de proteção contra o vírus, há escassez de profissionais de saúde e de leitos para cuidar dos doentes. Soma-se a isso o estigma associado ao ebola. As pessoas não acreditam na existência do vírus e evitam buscar tratamento. Se nada for feito, a previsão é que até janeiro o ebola contamine 1,4 milhão de pessoas na África. NATALIA CUMINALE DE MONRÓVIA PARA DALLAS 15 de setembro Thomas Eric Duncan prestou socorro à vizinha Marthalene Williams, de 19 anos, grávida de sete meses. A jovem morreu vítima do ebola, em Monróvia, na Libéria. 19 de setembro Duncan embarcou para Dallas, nos Estados unidos, para visitar parentes. Ele não apresentava sinais da doença. 28 de setembro Em estado crítico, Duncan foi internado no Hospital Presbiteriano do Texas. 1º de outubro Sonny Boy, irmão de Marthalene Williams, morreu em Monróvia. 6#3 NEGÓCIOS – IMPORTAR PARA CRESCER O aumento no consumo brasileiro incentivou a compra de produtos estrangeiros, como roupas e bebidas — e a principal porta de entrada deles no país são os portos de Santa Catarina. BIANCA ALVARENGA A indústria de vestuário é uma das mais protegidas no Brasil. Os importados, para entrar no país legalmente, pagam tarifas de 35%. Existem também sobretaxas destinadas a evitar o ingresso de artigos como os tênis de origem chinesa. A política do governo de encarecer o custo mundo, no lugar de reduzir o custo Brasil, não vem dando certo. A despeito de todas as salvaguardas, as importações de roupas e calçados continuam em alta. A indústria brasileira não conseguiu acompanhar o ritmo da demanda, entre outros motivos, porque ficou caro produzir no Brasil. A produção de têxteis pouco cresceu nos últimos quatro anos, enquanto as importações triplicaram. Basta olhar as etiquetas das principais lojas brasileiras. É elevada a probabilidade de a peça de roupa ter sido feita na China, na Índia ou em Bangladesh. É assim em praticamente toda parte do mundo, mas no Brasil, onde as confecções sempre tiveram grande importância na produção e na criação de empregos, a importação de origem asiática conseguiu ganhar espaço rapidamente, e de maneira prematura, graças às ineficiências estruturais do país. A principal porta de entrada no Brasil para os produtos têxteis é o complexo portuário de Navegantes e Itajaí, no litoral de Santa Catarina. Por ali chegam, em contêineres, desde tecidos e linhos até casacos, malhas e camisas. Sob administração privada, da companhia Portonave, os terminais catarinenses atraíram grandes clientes, devido à maior eficiência e menor burocracia em relação às operações feitas em Santos. Entre as empresas que fazem importações pela Portonave, aparecem grandes redes do varejo nacional, como Renner, Hering e Havan, além do Grupo Angeloni, a maior rede de supermercados de Santa Catarina. Seus terminais são importantes também para a exportação de alimentos, de empresas como a JBS, a BRF e a Bunge. Até recentemente, o governo catarinense incentivava as importações com isenção parcial ou total do imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS). Uma resolução aprovada pelo Senado em 2012 deu fim a essa vantagem, ao impor uma alíquota fixa de 4% de ICMS para todos os estados. Ainda assim, os terminais de Santa Catarina não perderam negócios. "As condições operacionais e a infraestrutura especializada foram capazes de atrair e manter as empresas aqui", diz o diretor- superintendente da Portonave, Osmari Ribas. "Houve, na verdade, um aumento nas importações." A Havan, originária de Brusque, cidade que tem o título de capital têxtil do Brasil, é um exemplo de rede voltada ao consumo cuja expansão depende das mercadorias importadas. Fundada nos anos 80 por dois sócios, inicialmente com uma loja de têxteis, nos anos 90 apostou na abertura da economia e nas importações para ampliar a oferta de mercadorias. A sua vocação para a venda de produtos estrangeiros, ao lado dos têxteis catarinenses, foi evidenciada pela estratégia de chamariz imaginada pelos seus fundadores: fazer a fachada das lojas à semelhança da Casa Branca. A primeira unidade com esse visual é de 1994. Dois anos mais tarde, outra ideia para atrair a atenção dos fregueses: erguer, diante das lojas, uma réplica da Estátua da Liberdade. Era o tempo de dólar baratinho, e a rede importava de brinquedos e utensílios domésticos a equipamentos eletrônicos. Por anos, suas lojas se concentravam em Santa Catarina e no Paraná. A partir de 2012, a Havan começou sua expansão para outros estados, chegando a Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e ao interior de São Paulo. Hoje são mais de setenta unidades, com faturamento anual superior a 2 bilhões de reais. O Grupo Angeloni, a principal rede de supermercados catarinense e a 10ª maior do Brasil, é outro cliente da Portonave, valendo-se da importação para ampliar a quantidade de mercadorias oferecidas em suas 27 lojas, em Santa Catarina e no Paraná. Para a também catarinense Hering, sinônimo de camisetas no Brasil, o aumento das importações foi a saída para reabilitar sua saúde financeira. A empresa nasceu como uma fábrica têxtil, em 1880, em Blumenau. Só começou a abrir lojas próprias em 1993, com a primeira Hering Family Store. Desde então, perdeu o perfil de indústria e buscou expandir sua marca por meio de franqueados. Atualmente, 60% das roupas vendidas nas lojas Hering são feitas em Goiás. Apenas 30% da produção se concentra em fábricas próprias, e outros 45% vêm dos fornecedores terceirizados. Os 25% restantes chegam às prateleiras vindos da Ásia. A indústria têxtil queixa-se com frequência — e certa razão — da enxurrada dos importados, mas o fato é que, nas atuais condições, as fábricas nacionais perderam competitividade. "A capacidade produtiva da indústria têxtil é muito reduzida. Na prática, isso significa que o varejista precisa dividir a demanda entre centenas de pequenas empresas para entregar às lojas uma única coleção", diz Edmundo Lima, da Associação Brasileira do Varejo Têxtil (Abvtex). Essa é uma realidade ligada ao perfil da indústria têxtil, composta majoritariamente de pequenas e médias empresas. Segundo dados do Instituto de Estudos e Marketing Industrial (Iemi), existem 25.700 unidades produtoras de vestuário, e a média de funcionários é inferior a 70. É um reflexo da disfunção tributária e da legislação trabalhista, que restringe o avanço das empresas. Sem escala, a indústria não consegue competir e fica para trás. A saída, ao menos para os varejistas, é importar a competitividade dos asiáticos — e aproveitar a eficiência dos terminais catarinenses. Itajaí é um porto originalmente do século XIX, mas foi ampliado ao longo do século passado. Sua modernização aos padrões internacionais ocorreu entre 2008 e 2010. Já Navegantes é um porto moderno, inaugurado em 2007. Para evitar os gargalos, dispõe de um estacionamento para mais de 150 caminhões. Não se formam filas que impeçam o acesso ao pátio. Foi o primeiro porto brasileiro a aparecer entre os melhores do mundo em publicações especializadas. Seu modelo de expansão é similar ao dos portos americanos, que, ao atingir 60% de capacidade, iniciam projetos de ampliação. Afirma Ribas, da Portonave: "Estamos sempre nos antecipando à demanda. Não podemos tolerar os gargalos, o que significaria uma queda no padrão de qualidade e de produtividade". 6#4 INOVAÇÃO – EXCLUSIVO – ELA VIA BELEZA NAS MÁQUINAS A paixão de Ada Lovelace, a única filha legítima do poeta Lord Byron, considerada a primeira programadora de computador do mundo. WALTER ISAACSON VEJA publica com exclusividade um capítulo do novo livro do jornalista americano Walter Isaacson, o biógrafo de Steve Jobs. OS INOVADORES — UMA BIOGRAFIA DA REVOLUÇÃO DIGITAL será lançado nos Estados Unidos no próximo dia 7. No Brasil, o volume chega às livrarias no fim do mês, editado pela Companhia das Letras. Em maio de 1833, aos 17 anos, Ada Byron esteve entre as jovens que foram apresentadas à corte real britânica. Os membros da família estavam preocupados com o modo como ela iria se comportar, pois era de natureza independente e se irritava com facilidade, mas ela acabou agindo, segundo sua mãe, "toleravelmente bem". Entre as pessoas que Ada conheceu naquela noite estavam o duque de Wellington, que ela admirou pela conduta simples, e o embaixador francês Talleyrand, de 79 anos, que lhe pareceu "um macaco velho". Única filha legítima do poeta Lord Byron, Ada havia herdado o espírito romântico do pai, característica que sua mãe tentava equilibrar fazendo com que ela recebesse aulas de matemática. A combinação produziu em Ada um amor pelo que ela chamou de "ciência poética", que unia sua imaginação rebelde ao encanto que sentia pelos números. Para muitos, entre eles seu pai, as sensibilidades espiritualizadas da era romântica se chocavam com a empolgação técnica da Revolução Industrial. Mas Ada ficava confortável na interseção entre as duas eras. Assim, não foi surpresa que sua estreia na corte, apesar do glamour da ocasião, tenha causado menos impressão nela do que sua participação, poucas semanas depois, em outro evento grandioso da temporada londrina: um dos saraus noturnos organizados por Charles Babbage, um viúvo de 41 anos que era uma celebridade da matemática e da ciência e que havia se estabelecido como um luminar do circuito social de Londres. "Ada gostou mais de uma festa em que esteve na quarta-feira do que de qualquer outra reunião no grand monde", disse a mãe dela a uma amiga. "Lá ela encontrou algumas pessoas das ciências — entre elas Babbage, que a encantou." Os saraus de Babbage, que recepcionavam até 300 convidados, reuniam lordes de fraque e damas de vestidos com brocados, escritores, industriais, poetas, atores, políticos, exploradores, botânicos e outros "cientistas", uma palavra que os amigos de Babbage haviam cunhado havia pouco. Ao levar acadêmicos das ciências para esse elevado reino, disse um renomado geólogo, Babbage "teve êxito em esclarecer qual era o grau de prestígio que a ciência deveria ter na sociedade". As noites incluíam danças, leituras, jogos e palestras com o acompanhamento de vários tipos de frutos do mar, carne, aves, bebidas exóticas e sobremesas geladas. As damas encenavam tableaux vivants, em que se vestiam com figurinos para recriar quadros famosos. Astrônomos montavam telescópios, pesquisadores mostravam suas invenções elétricas e magnéticas, e Babbage permitia que os convidados brincassem com seus bonecos mecânicos. A parte principal da noite — e um dos muitos motivos para que o anfitrião organizasse as recepções — era a demonstração que ele fazia de um modelo de parte de sua Máquina Diferencial, uma engenhoca mecânica gigantesca usada para cálculos que ele estava construindo em uma estrutura à prova de fogo ao lado de sua casa. Babbage mostrava o modelo de maneira bastante dramática, acionando a manivela enquanto a máquina calculava uma sequência de números e, justo quando a audiência começava a se entediar, mostrava como o padrão de repente mudava com base nas instruções que haviam sido codificadas na máquina. Os que ficavam especialmente intrigados eram convidados a atravessar o jardim e a visitar os estábulos, onde a máquina completa estava sendo construída. A Máquina Diferencial de Babbage, que conseguia resolver equações de polinômios, causava diferentes impressões nas pessoas. O duque de Wellington comentou que ela podia ser útil para analisar as variáveis que um general podia enfrentar antes de ir para a batalha. A mãe de Ada, Lady Byron, ficou maravilhada com a "máquina que pensava". Quanto a Ada, que depois iria fazer a célebre observação de que as máquinas nunca poderiam de fato pensar, um amigo que esteve com eles na demonstração relatou: "A senhorita Byron, mesmo sendo jovem, compreendeu sua operação e viu a imensa beleza da invenção". O amor de Ada tanto pela poesia quanto pela matemática levou-a a ver beleza em uma máquina de computação. Ela era um espécime da era da ciência romântica, que se caracterizava por um entusiasmo lírico pela invenção e pela descoberta. Esse foi um período que trouxe "intensidade imaginativa e empolgação para o trabalho científico", segundo escreveu Richard Holmes em The Age of Wonder. "A força que movia isso era um ideal comum de compromisso intenso, e até imprudente, com a descoberta." Em resumo, era uma época semelhante à nossa. Os avanços da Revolução Industrial, entre os quais o motor a vapor, o tear mecânico e o telégrafo, transformaram o século XIX mais ou menos do mesmo modo que os avanços da Revolução Digital — o computador, o microchip e a internet — transformaram o nosso século. No coração de ambas as revoluções estavam inovadores que combinavam imaginação e paixão com tecnologia assombrosa, uma mistura que produziu a ciência poética de Ada e que o poeta Richard Brautigan, no século XX, chamaria de "máquinas de graça amorosa". Ada herdou do pai o temperamento poético e insubordinado, mas ele não era a fonte do amor dela por máquinas. Ele era, na verdade, um ludita. No primeiro discurso que fez na Câmara dos Lordes, em fevereiro de 1812, aos 24 anos, Byron defendeu os seguidores de Ned Ludd, que estavam protestando contra os teares mecânicos. Com desprezo sarcástico, Byron ironizou os donos de moinhos de Nottingham, que defendiam um projeto de lei que tornaria a destruição de teares automatizados um crime punível com a pena de morte. "Essas máquinas para eles foram uma vantagem, na medida em que tornaram obsoleta a necessidade de empregar muitos operários, que em consequência foram deixados passando fome", declarou Byron. "Os operários rejeitados, na cegueira de sua ignorância, em vez de se rejubilar com essas melhorias em artes tão benéficas à humanidade, julgaram-se sacrificados em nome de melhorias mecânicas." Duas semanas depois, Byron publicou os dois primeiros cantos de seu poema épico Childe Harold's Pilgrimage, um relato romantizado de suas andanças por Portugal, Malta e Grécia, e, como ele observaria mais tarde, "acordei um dia e me descobri famoso". Bonito, sedutor, problemático, protegido pela família e dado a aventuras sexuais, ele estava vivendo a vida de um herói byroniano ao mesmo tempo que criava o seu arquétipo na poesia. Ele se tornou o queridinho dos meios literários de Londres e era celebrado em três festas por dia, sendo a mais memorável uma suntuosa dança matinal organizada por Lady Caroline Lamb. Lady Caroline, embora casada com um poderoso aristocrata político que mais tarde se tornou primeiro-ministro, se apaixonou perdidamente por Byron. Ele a achava "magra demais", mas com uma ambiguidade sexual pouco convencional (ela gostava de se vestir como um jovem pajem) que considerava excitante. Eles tiveram um caso tumultuado, e depois que o romance terminou ela o perseguiu de maneira obsessiva. É famosa a declaração de Lady Caroline de que ele era "louco, louco e perigoso de conhecer", o que era verdade. E o mesmo valia para ela. Na festa de Lady Caroline, Lord Byron também percebeu uma jovem mulher reservada que estava, segundo ele se lembraria, "vestida de modo mais simples". Annabella Milbanke, de 19 anos, vinha de uma família rica e cheia de títulos. Na noite anterior à festa, ela lera Childe Harold, que lhe tinha despertado sentimentos mistos. "Ele é muito cheio de maneirismos", escreveu. "Ele se destaca sobretudo no delineamento de sentimentos profundos." Ao vê-lo no salão durante a festa, Annabella teve sentimentos perigosamente conflitantes. "Não procurei ser apresentada a ele, porque todas as mulheres o estavam cortejando de maneira absurda e tentando merecer o chicote de sua sátira", ela escreveu para sua mãe. "Não desejo um lugar em seu leito. Não apresentei nenhuma oferenda no templo de Childe Harold, embora não me recuse a conhecê-lo caso a ocasião surja." Essa ocasião, mais tarde, de fato surgiu. Depois de lhe ser apresentado formalmente, Byron concluiu que ela daria uma esposa adequada. Isso era, no caso dele, uma rara mostra de superação do romantismo pela razão. Em vez de causar sentimentos passionais nele, Annabella parecia o tipo de mulher que podia domar esses sentimentos e protegê-lo de seus excessos — assim como ajudar a pagar suas muitas dívidas. Sem muito entusiasmo, ele a pediu em casamento por carta. Ela, sensata, recusou. Ele se afastou e passou a ter companhias bem menos apropriadas, entre as quais sua meia-irmã, Augusta Leigh. Mas depois de um ano Annabella retomou o namoro. Byron, cada vez mais endividado e tentando encontrar um modo de frear seus ímpetos, se não viu romance no possível relacionamento, viu nele racionalidade. "Nada pode me salvar senão um casamento, e um casamento rápido", admitiu para a tia de Annabella. "Se sua sobrinha estiver disponível, terá minha preferência, caso contrário, escolherei a primeira mulher que não pareça que vai cuspir no meu rosto." Havia vezes em que Lord Byron não era um romântico. Ele e Annabella se casaram em janeiro de 1815. Byron deu início ao casamento à sua moda byroniana. "Possuí Lady Byron no sofá antes do jantar", ele escreveu sobre o dia de seu casamento. O relacionamento ainda estava ativo quando eles visitaram a meia-irmã dele dois meses depois, já que foi nessa época que Annabella engravidou. No entanto, durante a visita ela começou a suspeitar que a amizade entre o marido e Augusta ia além do relacionamento fraternal, ainda mais depois de ele ter se deitado no sofá e pedido às duas que o beijassem alternadamente. O casamento começou a desandar. Annabella tinha tido aulas de matemática, o que Lord Byron achava divertido, e durante o período de namoro ele havia brincado com o próprio desdém que sentia pela exatidão dos números. "Eu sei que 2 mais 2 são 4 — e ficaria feliz de provar isso, se pudesse", escreveu, "embora deva dizer que, se por qualquer tipo de processo eu pudesse fazer com que 2 mais 2 fossem 5, isso me daria muito mais prazer." Antes, de maneira afetuosa, ele a havia apelidado de "Princesa dos Paralelogramos". Mas, quando o casamento começou a azedar, ele sofisticou a imagem matemática: "Somos duas retas paralelas prolongadas ao infinito lado a lado que nunca se encontrarão". Depois, no primeiro canto de seu poema épico Don Juan, ele debochou de Annabella: "Sua ciência favorita era a matemática (...). Ela era um cálculo andante". O casamento não foi salvo pelo nascimento da filha deles, em 10 de dezembro de 1815. Ela foi balizada de Augusta Ada Byron, sendo o primeiro nome o da excessivamente amada meia-irmã de Byron. Quando Lady Byron ficou convencida da perfídia do marido, passou a chamar a filha pelo nome do meio. Cinco semanas depois, ela pôs seus pertences em uma carruagem e foi para a casa de campo de seus pais com a menina Ada. Ada jamais voltou a ver o pai. Lord Byron deixou o país em abril, depois de Lady Byron, que escrevia cartas de maneira tão calculada que chegou a ser alcunhada por ele de "Medeia Matemática", ameaçá-lo dizendo que exporia os supostos casos incestuosos e homossexuais como um modo de garantir um acordo de separação que deu a ela a custódia da filha. Lady Byron queria ter certeza de que Ada não ficaria igual ao pai, e parte da sua estratégia foi fazer com que a garota estudasse matemática de maneira rigorosa, como se isso fosse um antídoto contra a imaginação poética. Quando Ada, aos 5 anos, mostrou preferência por geografia, a mãe deu ordens para que a disciplina fosse substituída por aulas adicionais de aritmética, e a governanta logo informou, orgulhosa: "Ela faz somas de cinco ou seis linhas com precisão". Apesar desses esforços, Ada desenvolveu algumas das inclinações do pai. Na adolescência, teve um caso com um de seus tutores, e, quando os dois foram pegos e o tutor foi banido, ela tentou fugir de casa para ficar com ele. Além disso, apresentava variações de humor que a levavam de sentimentos de grandeza ao desespero, e sofria de várias doenças tanto físicas quanto psicológicas. Ada aceitou a convicção da mãe de que uma imersão na matemática poderia ajudar a domar suas tendências byronianas. Depois de sua ligação perigosa com o tutor, e inspirada pela Máquina Diferencial de Babbage, ela decidiu por conta própria, aos 18 anos, começar uma nova série de aulas. "Devo parar de pensar em viver por prazer ou autogratificação", escreveu para seu novo tutor. "A aplicação dedicada e intensa a assuntos de natureza científica hoje parece ser a única coisa que impede que a minha imaginação corra solta (...). Parece que a primeira coisa a fazer é um curso de matemática." Ele concordou com a receita: "Você está certa em supor que seu recurso mais importante e sua principal salvaguarda no momento estão em um caminho de estudo intelectual sério. Para esse objetivo, não há nenhuma disciplina comparável à matemática". Ele receitou geometria euclidiana, seguida de uma dose de trigonometria e de álgebra. Isso devia curar qualquer um, ambos pensavam, da possibilidade de ter paixões artísticas ou românticas em excesso. O interesse dela pela tecnologia aumentou quando a mãe a levou em viagem aos distritos industriais britânicos para ver novas fábricas e maquinário. Ada se interessou em especial por um tear automático que usava cartões perfurados para direcionar a criação dos padrões de tecido desejados, e desenhou um croqui de como a máquina funcionava. O famoso discurso de seu pai na Câmara dos Lordes defendera os luditas, que haviam quebrado teares como esses em razão de seu receio do que a tecnologia poderia causar à humanidade. Mas Ada teve um sentimento poético em relação a tais equipamentos e viu a conexão com aquilo que um dia seria chamado de computadores. "Esse maquinado me lembra o de Babbage e a joia de mecanismo que ele criou", ela escreveu. William King tinha destaque social, segurança financeira, uma inteligência quieta e era tão taciturno quanto Ada era excitável. Como ela, estudava ciência, mas seu foco era mais prático e menos poético: seu interesse principal estava nas teorias sobre rotação de colheitas e nos avanços técnicos relativos à criação de animais. Ele pediu Ada em casamento poucas semanas depois de conhecê-la, e ela aceitou. Lady Byron, por motivos que apenas um psiquiatra seria capaz de sondar, decidiu que era necessário contar a William sobre a tentativa de fuga que Ada fizera com seu tutor. Apesar disso, William mostrou-se disposto a ir em frente com o casamento, que aconteceu em julho de 1835. "Bom Deus, que de maneira tão misericordiosa deu a você a oportunidade de se afastar dos caminhos perigosos, deu a você um amigo e um guardião", escreveu Lady Byron para a filha, acrescentando que ela devia usar essa oportunidade para "dar adeus" a todas as suas "peculiaridades, aos seus caprichos e ao seu egoísmo". Em 30 de junho de 1836, Babbage fez uma anotação no que ele chamava de "Livro de Rabiscos", que representaria um marco na pré-história dos computadores: "Sugeria um tear de Jacquard como substituto para os tambores". Usar cartões perfurados em vez de tambores de aço significava que um número ilimitado de instruções podia ser dado. Além disso, a sequência de tarefas podia ser modificada, tornando assim mais fácil a criação de uma máquina de propósito geral que fosse versátil e reprogramável. Poucas pessoas, porém, viam a beleza da nova máquina proposta por Babbage, e o governo britânico não mostrou disposição para financiá-la. Não importava quanto tentasse, Babbage conseguiu gerar poucas notícias na imprensa popular e em revistas científicas. Mas ele encontrou uma entusiasta. Ada Lovelace apreciou plenamente o conceito de uma máquina de propósito geral. Mais importante, visualizou um atributo que podia torná-la de fato impressionante: a máquina tinha potencial para processar não só números como quaisquer notações simbólicas, incluindo notações musicais e artísticas. Ada viu a poesia dessa ideia, e passou a incentivar os outros a ver a mesma coisa. Ada enviou muitas cartas a Babbage, algumas das quais quase atrevidas, embora ele fosse 24 anos mais velho do que ela. Em uma delas, Ada descreveu o jogo solitário composto de 26 bolinhas de gude, em que o objetivo é fazê-las executar saltos de modo que reste apenas uma. Ela havia dominado o jogo, mas estava tentando extrair uma "fórmula matemática (...) da qual a solução dependa, e que possa ser posta em linguagem simbólica". Então ela perguntava: "Serei imaginativa demais para você? Acredito que não". O objetivo dela era trabalhar com Babbage como sua divulgadora e como sócia, a fim de tentar conseguir apoio para a construção da Máquina Analítica. "Estou muito ansiosa para falar com você", ela escreveu no início de 1841. Na busca por apoio para sua Máquina Analítica, Babbage aceitou um convite para discursar no Congresso de Cientistas Italianos em Turim. Quem fazia as anotações era um jovem engenheiro militar, capitão Luigi Menabrea, que mais tarde seria primeiro-ministro da Itália. Com a ajuda de Babbage, Menabrea publicou uma descrição detalhada da máquina, em francês, em outubro de 1842. Um dos amigos de Ada sugeriu que ela traduzisse o artigo de Menabrea para o Scientific Memoirs, um periódico dedicado a artigos científicos. Estava ali a oportunidade para obsequiar Babbage e para mostrar seus talentos. Quando terminou o trabalho, ela informou a Babbage, que ficou agradecido, mas também em certa medida surpreso. "Perguntei por que não tinha ela mesma escrito um artigo original sobre um tema que conhecia tão intimamente", disse ele. Ada respondeu que isso não lhe havia ocorrido. Na época, mulheres não costumavam publicar artigos científicos. Babbage lhe sugeriu que acrescentasse algumas anotações ao trabalho de Menabrea, projeto que Ada abraçou com entusiasmo. Ela começou a trabalhar em uma seção que chamou de "Notas da tradutora", que acabou tendo 19.136 palavras, mais do que o dobro do tamanho do artigo original de Menabrea. Assinadas com um "A.A.L.", que significava Augusta Ada Lovelace, suas "Notas" se tornaram mais famosas que o artigo e estavam destinadas a fazer dela uma figura icônica na história da computação. À medida que Ada trabalhava nas anotações em sua casa de campo em Surrey no verão de 1843, ela e Babbage trocavam dezenas de cartas, e quando chegou o outono eles já haviam se encontrado várias vezes depois de ela ter voltado para casa, na Praça St. James, em Londres. Um debate secundário referente a uma particularidade acadêmica, marcado por questões de gênero, surgiu em relação a quanto do pensamento exposto nas notas era de Ada e quanto era dele. Em suas "Notas", Ada explorou quatro conceitos que teriam ressonância histórica um século mais tarde, quando o computador afinal nasceu. O primeiro era o de uma máquina de propósito geral, que pudesse não apenas desempenhar uma tarefa preestabelecida, mas que pudesse ser programada e reprogramada para desempenhar uma gama ilimitada e mutável de tarefas. Em outras palavras, ela visualizou o computador moderno. Esse conceito estava no cerne de sua "Nota A", que enfatizava a distinção entre a Máquina Diferencial original de Babbage e a nova Máquina Analítica que ele estava propondo. "A função particular cuja integral a Máquina Diferencial foi construída para tabular é [sinal de diferença simétrica]7ux = 0", ela começou, explicando que o objetivo da máquina era a computação de tabelas náuticas. "A Máquina Analítica, pelo contrário, não é meramente adaptada para tabular os resultados de uma ou de outra função específica, mas para desenvolver e tabular quaisquer funções." Isso foi feito, ela escreveu, pela "introdução na máquina do princípio que Jacquard inventou para regular, por meio de cartões perfurados, os mais complicados padrões na fabricação de tecidos brocados". Mais do que o próprio Babbage, Ada percebia a importância disso. Significava que a máquina poderia ser o tipo de computador que hoje conhecemos: o tipo de máquina que não faz meramente uma tarefa específica, mas que pode ser uma máquina de propósito geral. Ela explicava: Os limites da aritmética foram ultrapassados no momento em que surgiu a ideia de aplicar cartões. A Máquina Analítica não é o mesmo que as simples "máquinas de calcular". Ela tem uma posição totalmente própria. Ao permitir que um mecanismo combine símbolos em geral, em sucessões de variedade e extensões ilimitadas, estabelece-se uma ligação única entre as operações concretas e os processos mentais abstratos. Essas frases são um pouco confusas, mas vale a pena lê-las com atenção. Elas descrevem a essência dos computadores modernos. E Ada deu vida ao conceito com floreios poéticos. "A Máquina Analítica tece padrões algébricos assim como o tear de Jacquard tece flores e folhas", ela escreveu. Quando Babbage leu a "Nota A", ficou empolgado e não fez mudança alguma. "Suplico que você não modifique isso", ele disse. O segundo conceito de Ada digno de nota partiu dessa descrição de uma máquina de propósito geral. Suas operações, ela imaginava, não precisavam ser limitadas à matemática e aos números. Usando a ideia de De Morgan sobre a extensão da álgebra para uma lógica formal, ela notou que um equipamento como a Máquina Analítica podia armazenar, processar e agir sobre qualquer coisa que pudesse ser expressa em símbolos: palavras, lógica, música e qualquer outra coisa que pudesse usar símbolos para ser transmitida. Para explicar essa ideia, ela definiu de maneira detalhada o que era uma operação de computador: "Pode ser desejável explicar que, pela palavra 'operação', queremos dizer qualquer processo que altere a relação mútua de duas ou mais coisas, seja essa relação de que tipo for". Uma operação de computador, ela escreveu, podia alterar a relação não apenas entre números, mas entre quaisquer símbolos que estivessem relacionados de maneira lógica. "Ela pode agir sobre outras coisas além de números, desde que as relações mútuas fundamentais entre os objetos possam ser expressas pelas relações da ciência abstrata das operações." A Máquina Analítica podia, em teoria, até desempenhar operações sobre notações musicais: Supondo, por exemplo, que as relações fundamentais entre os sons emitidos na ciência da harmonia e da composição musical sejam suscetíveis de uma expressão desse gênero e de tais adaptações, a máquina poderia compor peças de música elaboradas e científicas de qualquer grau de complexidade. Era o conceito definitivo da "ciência poética" típica de Ada: uma peça musical elaborada e científica composta por uma máquina! O pai dela teria estremecido. Esse insight se tornaria o conceito fundamental da era digital: qualquer peça de conteúdo, de dados ou de informação — música, texto, imagens, números, símbolos, sons, vídeo — podia ser expressa em formato digital e manipulada por máquinas. Nem mesmo Babbage viu isso plenamente; ele se concentrou nos números. Mas Ada percebeu que os algarismos nas rodas dentadas podiam representar outras coisas, além de quantidades matemáticas. Assim, ela deu o salto conceitual das máquinas que eram apenas calculadoras para aquelas que hoje chamamos de computadores. Doron Swade, um historiador da computação especializado no estudo das máquinas de Babbage, declarou que esse é um dos legados históricos de Ada. "Se estamos observando a história e procurando um ponto de transição, então essa transição foi feita de maneira explícita naquele artigo de 1843." A terceira contribuição de Ada, na sua nota final, a "Nota G", foi descrever em detalhes, passo a passo, o funcionamento daquilo que hoje chamamos de programa de computador ou algoritmo. O exemplo que ela usou foi de um programa para computar números de Bernoulli, uma série infinita de extrema complexidade que, sob formas diferentes, desempenha um papel na teoria dos números. Para mostrar como a Máquina Analítica podia gerar números de Bernoulli, Ada descreveu uma sequência de operações e depois elaborou um gráfico mostrando como cada um seria codificado na máquina. Ao longo do caminho, ela ajudou a inventar os conceitos de sub-rotina (uma sequência de instruções que desempenha uma tarefa específica, como computar um cosseno ou calcular juros compostos, e que pode ser inserida em programas maiores se necessário) e um loop recursivo (uma sequência de instruções que se repete). Isso se tornou possível graças ao mecanismo do cartão perfurado. Eram necessários 75 cartões para gerar cada número, ela explicou, e então o processo se tornava iterativo, já que o número era posto de novo no processo para gerar o próximo número. "Será óbvio que os mesmos 75 cartões variáveis podem ser repetidos para a computação de cada número sucessivo", escreveu Ada. Ela visualizou uma biblioteca de sub-rotinas usadas com frequência, algo que seus herdeiros intelectuais, entre os quais mulheres como Grace Hopper, em Harvard, e Kay McNulty e Jean Jennings, na Universidade da Pensilvânia, criariam nos anos 1950. Além disso, como a máquina de Babbage tornava possível dar saltos para a frente e para trás na sequência de cartões de instrução com base nos resultados parciais que ela havia calculado, isso estabelecia o fundamento para o que hoje chamamos de lógica condicional, a mudança para um caminho diferente de instruções caso sejam encontradas determinadas condições. Babbage ajudou Ada com os cálculos de Bernoulli, mas as cartas mostram que ela estava por demais envolvida com os detalhes. "Estou obstinadamente atacando e esmiuçando até o menor detalhe os modos de deduzir os números de Bernoulli", ela escreveu em julho, apenas semanas antes de sua tradução e suas notas serem impressas. "Estou tão desalentada por ter entrado neste incrível atoleiro e nesta amolação com esses números que não tenho como fazer isso hoje (...). Estou em um fascinante estado de confusão." Quando resolveu esse problema, Ada acrescentou uma contribuição que era essencialmente dela mesma: uma tabela e um diagrama que mostravam com exatidão como o algoritmo podia ser levado ao computador, passo a passo, incluindo dois loops recursivos. Tratava-se de uma lista numerada de instruções que incluíam registros de destinação, operações e comentários — algo que seria familiar a qualquer programador de C++ hoje. "Trabalhei sem parar e com bons resultados o dia todo", ela escreveu para Babbage. "Você ficará extremamente admirado com a tabela e com o diagrama. Eles foram feitos com o máximo zelo." Consultando todas as cartas, fica evidente que ela mesma construiu a tabela; a única ajuda veio do seu marido, que não entendia de matemática, mas estava disposto a passar tinta metodicamente por cima daquilo que ela havia escrito a lápis. "Neste momento Lord L está fazendo a gentileza de passar tinta em todo o trabalho para mim", ela escreveu a Babbage. "Precisei fazer isso a lápis." Foi sobretudo por causa desse diagrama, que acompanhava os processos complexos de geração de números de Bernoulli, que Ada recebeu de seus fãs a honra de ser chamada de "a primeira programadora de computador do mundo". É um pouco difícil defender isso. Babbage já havia inventado, pelo menos em teoria, mais de vinte explicações de processos que a máquina podia eventualmente desempenhar. Mas nenhum deles havia sido publicado, e não havia uma descrição clara do modo como sequenciar as operações. Portanto, é justo dizer que a descrição do algoritmo e a programação detalhada para a geração de números de Bernoulli foram o primeiro programa de computador a ser publicado. E as iniciais ao fim do artigo eram as de Ada Lovelace. TRADUÇÃO DE BERILO VARGAS, LUCIANO VIEIRA MACHADO E PEDRO MAIA SOARES 6#5 EDUCAÇÃO – DO ZERO AO TOPO DO RANKING Muriel Summers, a diretora que resgatou sua escola do fundo do poço e fez dela campeã nos Estados Unidos, ensina que é preciso escancarar os muros acadêmicos e romper com velhos dogmas para alcançar a excelência. CINTIA THOMAZ Alunos desmotivados e rebeldes, sem a mínima vontade de aprender. Professores desrespeitados, sem o mínimo interesse em ensinar. Pais ausentes e distantes, sem a mínima disposição de intervir. Prédio feio, triste, degradado. O cenário que a diretora Muriel Summers encontrou na A.B. Combs, escola de ensino fundamental da cidade americana de Raleigh, na Carolina do Norte, é tristemente familiar nos muitos pontos do planeta onde a educação patina — aí incluído o Brasil. A A.B. Combs, porém, teve a sorte de contar com Muriel, uma senhora de 58 anos, baixinha, de voz suave, mas rara determinação para romper com antiquados dogmas sobre a sala de aula. Ela procurou ajuda, engajou pais, alunos e professores e, em pouco mais de uma década, desenvolveu um método de ensino que catapultou a A.B. Combs do fundo do poço para o primeiro lugar entre as escolas públicas dos Estados Unidos no prestigiado ranking do Departamento de Educação americano. Também foi o colégio que mais atraiu alunos em 2013 — uns 200 ainda aguardam por uma chance de se sentar numa daquelas carteiras. "O que fiz? Primeiro, eu me indignei com o descalabro que vi. Depois, fui entender o que dava certo fora dos muros escolares, em geral tão fechados", dispara Muriel. Ela foi beber de fonte que costuma fazer tremer a turma da pedagogia: o mundo dos negócios. Leu muito, estudou muito, falou com especialistas e, certa vez, topou com o guru americano Stephen Covey (1932-2012), consultor de grandes CEOs e do então presidente Bill Clinton. É de Covey, cujo best-seller 7 Hábitos das Pessoas Altamente Eficazes repousa na prateleira da autoajuda corporativa, a frase: "Aquilo que é senso comum não é prática comum". Foi nesse espírito, com iniciativas simples, por vezes até revestidas de um certo ar pueril — mas certeiras —, que Muriel ventilou em suas salas de aula ideias que não costumam habitar o universo escolar. A primeira, e talvez a mais fundamental delas, é que a criança precisa ter à frente uma meta bem definida e de prazo tangível — e que saiba disso. Na A.B. Combs, cada qual define junto com o professor os próprios objetivos (as "metas individuais", como no jargão do mercado). Traduzindo para uma classe de alunos de 7 anos: uns ambicionam ler mais rápido, outros querem somar palavras ao idioma estrangeiro que estão aprendendo ou ainda subir na escala da tabuada, só para citar alguns dos alvos mais comuns. Eles traçam então um plano e estipulam o tempo para executá-lo sob a batuta do professor — que, por sua vez, personaliza como pode a lição de casa, incentivando os pendores de cada um. Em aula, ora se sentam lado a lado alunos de interesses muito parecidos, ora diametralmente opostos, para que se exercite desde cedo uma habilidade requerida em toda parte: a capacidade de trabalhar com eficiência em equipe. Mas que não se confundam os métodos de Muriel com o excesso de liberdade que tanto fere o rigor acadêmico. Em sua escola, matéria tem começo, meio e fim, os estudantes são constantemente avaliados (as notas, inclusive, estão lá em cima) e disciplina é item inegociável. "Nessa fase, deve-se aprender de tudo, mas também já ir polindo os talentos que começam a se revelar em cada um", diz a enérgica diretora, que esnoba: "Nas minhas turmas, o aluno não deixa de fazer os deveres porque vê sentido naquilo". Básico, sim, mas também raro. A trilha para a excelência sugerida por ela encontra eco em certas rodas de educadores atentos à moderna discussão sobre o estímulo na escola a este rol de habilidades ditas não cognitivas: foco, resiliência, espírito de time, liderança, e por aí vai. Soa mesmo como um receituário de recursos humanos, mas acadêmicos de alta estirpe pensam que tem tudo a ver com o novo papel escolar. "Precisamos começar a desenvolver essas capacidades de maneira sistemática e ordenada na escola, para podermos usufruir os benefícios delas para valer", afirma o especialista americano Charles Fadel, autor do livro 21st Century Skills (As Habilidades do Século XXI). Físico e estudioso das questões da pedagogia no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Robert Resnick enfatiza: "O objetivo é formar gente capaz de pensar bem, encontrar caminhos originais e inovar". Um grupo na OCDE — organização que reúne os países mais desenvolvidos e produz o mais respeitado ranking mundial do ensino — está justamente imerso em uma pesquisa para encontrar meios objetivos para avaliar tais habilidades. Enquanto isso, a obstinada Muriel já disseminou seu método em quase 2000 escolas de 36 países (no Brasil, é oferecido pela Abril Educação, do grupo que edita VEJA, e está prestes a ser adotado em toda a rede do município paulista de Osasco). Numa recente visita ao país, a ex-enfermeira, que há três décadas vive atormetada pelos assuntos do magistério, resumiu: "Esse negócio de ensinar crianças é a minha vida". 6#6 BELEZA – VEM CÁ, CINTURA FINA Uma parte daquela curvinha sedutora é uma bênção genética. O resto é suor mesmo: dieta, exercícios bem dirigidos e, para ficar bem na foto, uma espremidazinha. THAÍS BOTELHO Alfred Hitchcock certa vez disse que uma mulher com cintura fina, ressaltada por um vestido bem cortado, é um "vulcão soltando fumaça". O problema é que para soltar esse fogo interior as opções são limitadas. A primeira é dar sorte na loteria genética e nascer com o tipo físico de Paula Fernandes. E a disciplina também. Para manter seus esbeltos 58 centímetros de cintura, ressaltados por uma coleção de mais de 100 corseletes, a cantora faz 2500 abdominais por semana (e não adianta alegar falta de tempo: se preciso, ela vai de madrugada para a ginástica). A segunda opção, antecedida pela predisposição natural, é não fazer nada daquilo que na vida contemporânea contribui para curvar as costas, projetar o abdômen, enfraquecer a musculatura profunda, aumentar o peso e, com tudo isso, dilatar a cintura: alimentação rica em calorias, horas de trabalho diante do computador, horas de locomoção na posição sentada, horas de dispositivos eletrônicos na cama. Talvez ajude dormir de macaquinho modelador durante anos, como fez a modelo Rayanne Morais, com seus 55 centímetros, mas não existe nenhum especialista que recomende. Em homens e mulheres, a configuração corporal acinturada veio como consequência das transformações exigidas pela dura tarefa de andar sobre dois pés. As nádegas se projetaram e uma rede muscular se desenhou para segurar os órgãos internos e dividir a carga exercida sobre nossa sacrificada coluna. Nesse processo, os machos da espécie desenvolveram um olhar hitchcockiano sobre aquela curva acima dos quadris que emite um dos sinais mais evidentes de feminilidade. Segundo a psicologia evolutiva, que procura no comportamento humano traços desenvolvidos para contribuir para a perpetuação da espécie, a cinturinha envia aos homens mensagens sobre características desejáveis na mulher. Seja porque mostra que ela é jovem e, portanto, fértil; seja porque indica que não está grávida de um competidor. Míseros centímetros podem interferir no projeto. "Mulheres com quadris mais próximos das costelas tendem a ter cintura reta, pois não há espaço para uma curvatura. Isso vale inclusive para as magras", diz Cláudio Novelli, fisiologista do exercício. Esculpir a cintura e adjacências com exercícios requer conhecimento básico dos quatro músculos que compõem a região abdominal e de como devem ser trabalhados. O conjunto reto abdominal é a dupla cordilheira que desce pelo centro do corpo. Bem exercitados e sem nenhuma capa de gordura sobre eles, esses músculos formam os gominhos frontais, mais acentuados nos homens — por isso, as ondulações muito ressaltadas podem criar nas mulheres uma silhueta masculinizada. O grupo dos oblíquos, externos e internos, dispostos lateralmente em formato de V, pede dosagem mais equilibrada ainda. São eles que, muito esculpidos, criam o "corpo de academia", enxuto e bem trabalhado, mas quadrado. "Meu truque é não malhar muito os oblíquos", ensina Paula Fernandes. "Não quero ganhar músculo nessa região para não perder o formato curvilíneo." O músculo transverso do abdómen é o mais profundo. Com suas fibras horizontais, parece literalmente um cinto muscular. Para saber onde fica, basta lembrar onde a barriga "dói" quando se dá uma boa e intensa risada. Segundo os especialistas, o indicado é que cada três séries de exercícios que trabalham o músculo reto e o transverso sejam acompanhadas de apenas uma para os oblíquos. A cintura "ideal" depende da relação que ela tem com a largura dos quadris (veja o quadro na página seguinte), mas para as modelos existe uma regra inabalável. "Desde a década de 40, quando as primeiras agências apareceram nos Estados Unidos, 60 centímetros são o limite ideal. Correspondem ao número 38", diz Liliana Gomes, dona da agência Joy. Existem até sílfides como a modelo sul-africana Candice Swanepoel, com 58 exíguos centímetros, mas uma mulher curvilínea como a atriz Juliana Paes pode equilibrar seus 71 centímetros, com tremendo sucesso, devido ao tipo corporal mais amplo. Em termos de saúde, porém, a elasticidade de medidas não é infinita: 88 centímetros são o limite. "Medida maior pode indicar a presença de gordura visceral, a que fica dentro dos órgãos e tem correlação com doenças coronárias e cardíacas", diz Ricardo Zanuto, doutor em fisiologia humana. Mesmo que as mulheres não engordem visivelmente nem engravidem, a circunferência da cintura tende a dilatar-se com a idade. Segundo um estudo americano, entre os 45 e os 52 anos, a cintura feminina aumenta em média 5 centímetros. A alteração decorre, entre outros fatores, da deficiência dos hormônios sexuais, que influenciam na constituição e manutenção da massa magra. "Há ainda uma redução das catecolaminas, hormônios fundamentais no processo de quebra de gordura", diz Ricardo Zanuto. A única cirurgia plástica indicada para reduzir a cintura é a clássica abdominoplastia. Combinada com a lipoaspiração, é um procedimento de grandes proporções, com um corte na altura das cesarianas, porém bem maior. Até os espíritos mais fortes tremem só de ouvir um resumo da operação. "Fazemos a lipo, depois aproximamos os músculos da frente do abdômen em até 7 centímetros e os suturamos. Atamos também os músculos laterais que estejam distendidos e ainda tiramos uma faixa de pele da região da cintura", descreve Osvaldo Saldanha, diretor da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. Nem um único médico sério aceita sequer falar da possibilidade da remoção do último par de costelas, uma intervenção especulada no caso de corpos inacreditáveis como o da "boneca humana" Valeria Lukyanova, a ucraniana que se dedica a alterações físicas extremas — ela mesma atribui os 46 centímetros aos princípios do respiratorianismo, uma seita que substitui a alimentação pela luz do sol e pelo ar. Obviamente não existem soluções mágicas, nem sequer os substitutos modernos dos espartilhos do passado, que espremem enquanto em uso, sem alterar a composição corporal. "Aos 10 anos, minha mãe já me incentivava a usar faixas modeladoras", diz Rayanne Morais. Mas vejam o que ela faz que realmente conta: "Corro 10 quilômetros por dia e substituí todos os doces por açaí, uma vez por semana". Até um talento vocal excepcional como o de Paula Fernandes pode ser projetado pela imagem de uma cinturinha de pilão. "Acho que estabeleci uma marca", diz ela. "As pessoas já me conhecem pela cintura fina." ELAS SÃO QUASE IGUAIS Americanos gostam de mulheres com seios grandes, asiáticos suspiram com rostos redondos e mãos pequeninas, latinos... bem, todo mundo já entendeu. Os estereótipos sobre preferências estéticas funcionam porque têm alguma relação com a realidade, mas em qualquer tempo, lugar e cultura existe um fator em comum: os homens consideram sexualmente mais atraentes as mulheres de cintura fina. Entre estas, as mais valorizadas são as que têm uma relação cintura-quadris (RCQ) de 0,7. Ou seja, esse é o resultado da divisão da circunferência da cintura pela medida dos quadris. O precursor desses estudos foi Devendra Singh, um indiano que se dedicou à psicologia evolutiva na Universidade do Texas. Há um consenso entre os estudiosos que pesquisam as proporções femininas: as mulheres mais atraentes aos olhos dos homens são aquelas cuja medida da cintura corresponde a 70% da circunferência dos quadris. Numa de suas pesquisas iniciais, Singh mostrou a 106 homens fotos de mulheres com diferentes características e medidas. Deu o número mágico: 0,7. O antropólogo e pesquisador Barnaby Dixson, da Nova Zelândia, posteriormente aperfeiçoou o método: expôs fotos da mesma mulher, com as medidas de quadris, busto e cintura alteradas digitalmente. Câmeras infravermelhas rastrearam o movimento que os olhos dos participantes faziam pelas fotos. As mais olhadas foram as que tinham a mesma RCQ. "É provável que essa medida envie um sinal biológico para os homens indicando que aquela mulher é a que tem maior capacidade de produzir uma prole saudável", concluiu Dixson. Isso explica por que mulheres com tipos físicos bem diferentes, como a esguia modelo Behati Prinsloo e a explosiva celebridade Kim Kardashian, sejam consideradas tão desejáveis: têm quase a mesma RCQ. Ou não precisava explicar? BEHATI PRINSLOO • Cintura 62 cm • Quadris 89 cm • Proporção 0,69% KIM KARDASHIAN • Cintura 67 cm • Quadris 102 cm • Proporção 0,65% 6#7 COMPORTAMENTO – O HOMEM MAIS FELIZ DO MUNDO Quando tinha apenas 26 anos, o francês MATTHIEU RICARD decidiu abandonar a tese de doutorado em biologia molecular no renomado Instituto Pasteur para se dedicar a uma vida de contemplação como monge budista. O apreço pela ciência, porém, nunca foi esquecido. No começo dos anos 2000, ele se uniu a uma equipe de pesquisadores da Universidade de Wisconsin para investigar o efeito da meditação no cérebro. Três horas dentro de uma máquina de ressonância magnética e 256 sensores monitorando partes do cérebro resultaram em uma constatação surpreendente. Pesquisadores tabelaram a felicidade em uma escala de 0,3 (muito infeliz) a -0,3 (muito feliz), de acordo com a movimentação, ou não. das regiões do cérebro que ativam as emoções positivas ou negativas. O índice obtido pelo monge foi -0,45. A repercussão da notícia fez com que os jornais europeus colassem um apelido em Ricard, o de "o homem mais feliz do mundo", e dali para virar best-seller, com o relato de suas experiências em linguagem sempre fácil, plena de lugares-comuns inteligentes, foi um pulo. Nesta semana, ele participará no Rio de um evento do TED (sigla para Tecnologia. Entretenimento e Design), organização americana sem fins lucrativos que promove ideias inovadoras. RAQUEL BEER O senhor é mesmo o homem mais feliz do mundo? Sou feliz, mas não tenho os dados a respeito dos outros 7 bilhões de pessoas no mundo. Ganhei essa fama porque fui o primeiro a participar do teste destinado a medir a movimentação cerebral das pessoas que meditam — mas resultados muito parecidos com os meus foram identificados em outras 25 pessoas com experiência em meditação. A verdade é que o título pode ser de qualquer um que busque a felicidade no lugar certo. Que lugar seria esse? Não há uma fórmula mágica. Devemos desmitificar a meditação: não se trata de sentar embaixo de uma árvore e sentir alegria espiritual, mas de treinar a mente. Há momentos em que nos sentimos felizes, mas eles não duram mais que quinze segundos, até pensarmos em outra coisa. Tente prolongá-los por mais tempo, cinco, dez minutos, ou por períodos menores por mais vezes ao dia. Se conseguir se concentrar, poderá fazê-lo no ônibus ou mesmo no intervalo do trabalho. Outros pensamentos vão aparecer, mas traga gentilmente a sua mente de volta, fazendo com que desapareçam, como um pássaro que cruza o céu. Há quem se confunda e busque a felicidade em sensações prazerosas, sem perceber que se agarrar a elas é a receita para a exaustão, e não para a felicidade. Os prazeres, portanto, são nossos inimigos? Não há nada de errado com os prazeres, o problema é pensar que a repetição dessas sensações garante a felicidade. Imagine um bolo de chocolate, por exemplo: uma fatia é deliciosa; duas matam a fome; três deixam você enjoado. Ouvir a sua canção favorita por 24 horas sem intervalo se torna uma tortura. O prazer muitas vezes se transforma em algo desagradável. A felicidade não é uma sensação, mas sim um jeito de ser. Mas um pouquinho de tristeza não faz bem? Muitos dos grandes poemas, músicas e romances são fruto do sofrimento de seus autores. Um mundo sem emoção, nesse aspecto, seria um tanto sem graça. Esse é um pensamento tolo. É como olhar para o mar ou para uma linda floresta e sentir saudade do trânsito de uma grande cidade. Não é uma questão de ficar imune a emoções, mas de mudar a forma de lidar com elas. É necessário que as pessoas sofram para que consigam identificar o motivo dessa dor: muito apego, muito medo? E então encontrar o remédio. O sofrimento acontece de qualquer maneira, a questão é o que você faz com ele: se vê como vítima, ou o usa como catalisador de uma transformação pessoal. A ideia de que o sofrimento é a única fonte de inspiração também é incorreta. Bach não era deprimido e escreveu algumas das obras mais bonitas de todos os tempos. Como podemos usar o sofrimento de forma positiva? Sofrimentos nunca são desejáveis, mas é possível transformar a dor em desespero, ou usá-la para progredir. Uma estratégia é se voltar ao altruísmo, fazer coisas significativas para os outros, em vez de se focar na sua dor. Assim, você não perderá o senso de direção e realização na vida. A meditação também ajuda a desenvolver uma força interna que nos torna mais resistentes à tristeza, porque percebemos que ela é causada por fatores externos, sobre os quais não temos controle. Isso não quer dizer ficar indiferente. É como o mar: uma tempestade afeta a superfície do oceano, mas suas profundezas permanecem calmas. O Brasil, conhecido por seu povo alegre, ficou em oitavo lugar no ranking de países com mais suicídios da Organização Mundial de Saúde. Uma pesquisa divulgada no começo do ano mostra que 21% dos jovens do país têm sintomas de depressão. Qual é a explicação? O Brasil talvez esteja se aproximando do padrão europeu. Na Europa, a idade média da primeira depressão da vida nos últimos dez anos caiu de 27 para 16 anos. Há vários motivos: desigualdade, falta de oportunidades, de educação e de estrutura, coisas que podem conduzir qualquer um ao desespero. Outra explicação é a busca de satisfação pelo materialismo. Existem vários estudos que provam que o consumismo não traz felicidade verdadeira. Se o consumista tem tudo o que quer e mesmo assim não é feliz, ele não vê significado na vida e pode ficar deprimido. Para ser feliz, é preciso buscar valores intrínsecos ao ser humano, não materiais. Um estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico levantou dez fatores essenciais para a felicidade, e em primeiro lugar está a qualidade das relações humanas. Isso não quer dizer ter muitos amigos, mas sim ter pessoas com quem se pode contar. A quantidade crescente e interminável de amigos feitos nas redes sociais é uma boa-nova para as relações humanas? Há muitas formas de usar uma ferramenta, como é o caso da internet. O mesmo martelo que constrói a casa pode derrubá-la. Isso também vale para a web. Sites de crowdfunding, o financiamento coletivo, por exemplo, podem ajudar a construir escolas em lugares sem recursos. O problema é que, em geral, os internautas mais novos usam as redes sociais para se comunicar e esquecem que aquilo não substitui uma conversa verdadeira, a amizade real, ficar junto de alguém. Estudos mostram que esses sites também aumentam o narcisismo. Pensar só em você não o fará feliz porque tudo parecerá uma ameaça. Você perderá tempo pensando no que as pessoas falam a seu respeito e se esquecerá de que o mundo é feito para 7 bilhões de pessoas. Somos todos interdependentes, a felicidade não convive com o egoísmo. 6#8 SAÚDE – CHEGA DE DAR O SANGUE A aprovação de um medidor de glicose que dispensa as picadas nos dedos é a mais recente conquista da medicina para aumentar a adesão dos pacientes ao tratamento do diabetes. CAROLINA MELO Com 370 milhões de vítimas no mundo, 13,4 milhões delas no Brasil, o diabetes é uma daquelas doenças que exigem um controle rigorosíssimo. O bom tratamento começa com o monitoramento preciso das taxas de glicose na corrente sanguínea — só assim é possível determinar as doses ideais de insulina, o hormônio responsável por levar a glicose para dentro das células, onde ela é transformada em energia. Apesar de todos os avanços na área, os aparelhos para a medição de glicose ainda exigem do doente um furo no dedo e uma gota de sangue. Pode não parecer, mas a rotina é incômoda. A maioria dos diabéticos tem de espetar o dedo não uma, mas duas, três e até quatro vezes por dia. Por causa das picadas, 30% dos pacientes não monitoram a glicemia como deveriam. Diz o endocrinologista Freddy Eliaschewitz, diretor do Centro de Pesquisas Clínicas (CPClin), em São Paulo: "Alguns doentes preferem tomar direto a injeção de insulina a fazer o controle da glicemia". As consequências podem ser graves, como uma crise severa de hipoglicemia, com desmaios e confusão mental. Desde o fim da década de 90, profissionais dos mais respeitados centros de pesquisa em diabetes do mundo buscam uma forma de amenizar o dia a dia dos diabéticos. Pois bem, a boa-nova é um medidor contínuo de glicose que dispensa o uso de sangue em todas as suas etapas. Aprovado recentemente pela Emea, a agência europeia de medicamentos, o dispositivo deve chegar ao Brasil e aos Estados Unidos em 2015. Desenvolvido pelo laboratório Abbott, o novo aparelho é uma evolução dos medidores contínuos de glicose, lançados no fim dos anos 2000 (veja o quadro abaixo). O artefato mede a quantidade de glicose no fluido intersticial — um líquido transparente que fica entre as células do corpo — encontrado abaixo da derme, uma das camadas mais superficiais da pele. A concentração de glicose obtida a partir do fluido intersticial apresenta um delay em relação às medições feitas no sangue. Isso porque a glicose demora até quarenta minutos para sair dos vasos sanguíneos e chegar ao fluido intersticial. O grande diferencial do novo medidor é a presença de uma enzima capaz de unificar as informações do sangue com as do fluido intersticial. Sem a tal enzima, os aparelhos mais antigos necessitavam de sangue para ajustar as duas glicemias. Ou seja, os doentes não se livravam das picadas. Do tamanho de uma moeda de 1 real, o sensor funciona como uma espécie de patch, colado na pele do doente. À prova de água, só deve ser trocado duas vezes por mês, uma inovação recebida com entusiasmo pelos especialistas. Um aparelho parecido com um smartphone faz a leitura dos dados a uma distância de até 4 centímetros, inclusive por cima da roupa. Se um diabético tem de medir a glicemia em uma reunião de trabalho, por exemplo, ele não precisa se retirar para picar o dedo — basta passar o sensor por cima da roupa no local de trabalho. A cada leitura, o paciente terá acesso à evolução das taxas de glicose, minuto a minuto, nas últimas oito horas. "A partir desse histórico, é possível estabelecer se são necessárias ou não alterações nas doses de insulina", diz o endocrinologista Walmir Coutinho, diretor de ensino e pesquisa do Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia do Rio de Janeiro. Além disso, com esses dados, é possível até promover mudanças no estilo de vida do paciente. Se um doente apresenta, por exemplo, um pico de glicemia pela manhã, sempre no mesmo horário, ele pode descobrir que isso ocorre devido a um determinado hábito alimentar naquele momento do dia. É a medicina caminhando rumo ao controle extremamente preciso do diabetes. E, melhor, sem dor. COMO FUNCIONA O NOVO APARELHO 1- Do tamanho de uma moeda de 1 real, o sensor é colocado no braço do paciente. O aparelho pode ficar até catorze dias. 2- Um microfilamento de 0,4 milímetro de diâmetro vai a 5 milímetros de profundidade da pele e entra em contato com o fluido intersticial, encontrado entre as células e rico em glicose. 3- Esse microfilamento transporta a glicose até o sensor, que, por meio de uma enzima, calcula a taxa glicêmica. 4- Um leitor eletrônico, parecido com um smartphone, capta as informações do sensor e as traduz para o paciente. A EVOLUÇÃO NO MONITORAMENTO DO AÇÚCAR Anos 30 • Exame de urina Utilizavam-se reagentes químicos que, em contato com a urina, indicavam a taxa de glicose no sangue. Inconveniente - Para ser detectada na urina, a glicose precisa estar acima de 180 - um quadro bastante arriscado para os diabéticos. Anos 60 • Glicosímetro com reagentes O primeiro teste sanguíneo era feito a partir das tiras reativas; Inconveniente – Era necessária uma quantidade elevada de sangue do dedo (0,03 mililitro) para obter glicose em quantidade suficiente. Anos 80 • Glicosímetro com metodologia eletroquímica A análise da glicose no sangue é feita por meio de reações eletroquímicas. Inconveniente – As picadas no dedo continuam sendo necessárias, mesmo utilizando menos sangue – 0,001 mililitro. Anos 2000 • Monitoramento contínuo de glicose Dispensa o uso de sangue para medir a glicose. Assim como o novo aparelho, analisa o fluido intersticial, que é o líquido encontrado entre as células e que contém glicose. Inconveniente – A máquina precisa ser calibrada com o sangue do paciente – ou seja, as picadas no dedo continuam necessárias. ________________________________________ 7# ARTES E ESPETÁCULOS 8.10.14 7#1 LIVROS – VÍTIMAS DA MODA 7#2 LIVROS – UM TRIBUNO DA RAZÃO 7#3 CULTURA – O HORROR E O HUMOR 7#4 TELEVISÃO – AI, QUE LOUCURA! 7#5 VEJA RECOMENDA 7#6 OS LIVROS MAIS VENDIDOS 7#7 J.R. GUZZO – SEM VOZ E SEM VEZ 7#1 LIVROS – VÍTIMAS DA MODA Curioso e indiscreto, Champagne Supernovas fornece mexericos aos fashionistas e explica aos leigos como um trio de rebeldes democratizou o estilo. MÁRIO MENDES Em 1992, um rapaz chamado Alexander McQueen apresentou uma coleção inspirada nos assassinatos de Jack, o Estripador, à banca que avaliava os trabalhos de conclusão do curso de moda na prestigiosa escola Central St. Martins, de Londres. Uma modelo de 19 anos sardenta e sem glamour, a também inglesa Kate Moss, estreou como garota-propaganda de uma campanha milionária dos jeans Calvin Klein. E Marc Jacobs, um jovem estilista americano contratado da grife de luxo Perry Ellis, fez um desfile inspirado na estética grunge — o visual xadrez e desabado dos roqueiros, grafiteiros e skatistas de Seattle, Los Angeles e Nova York. Depois disso, nada mais foi como antes na moda. Essa é a tese defendida com empenho pela jornalista americana Maureen Callahan — especialista em cultura pop e ex-editora do New York Post — em seu livro Champagne Supernovas, lançado nos Estados Unidos no início de setembro, durante a Semana de Moda de Nova York, onde deu o que falar. É fato consumado que a moda anda em círculos: o último grito de hoje estará ultrapassado na semana que vem, só para voltar, um tantinho depois, adaptado ao novo momento. Essa engrenagem de eterno retorno — que às vezes é sacudida por explosões de invenção e criatividade — nos últimos tempos entrou num ritmo frenético: todas as décadas do século passado já foram revisitadas e relidas à exaustão, sobretudo o brilho hedonista dos anos 70 e a opulência nouveau riche dos 80. Mas ainda resta rever aquele breve momento fin-de-siècle em que o rigor das passarelas se fundiu com a displicência das ruas e o que era marginal foi encampado pelos conglomerados do setor, transformando a moda em um negócio bilionário global. "Não vemos o surgimento de nenhuma tendência realmente nova desde os anos 90, com o grunge", disse Maureen a VEJA, explicando por que se propôs a escavar a cena fashion do período e elegeu o trio em questão como o principal agente de mudança. "Eles não foram apenas os primeiros nessa troca de guarda: são os únicos que continuam relevantes hoje — talvez até mais do que naquele momento", avalia. Segundo a autora, Kate, com sua aparência de garota comum, demoliu o fenômeno das supermodelos — aquelas moças chamadas Linda Evangelista ou Naomi Campbell que não saíam da cama por menos de 10.000 dólares por dia. Jacobs inverteu o jogo, democratizando o elitismo das passarelas. E McQueen, acima de tudo, além de estilista agressivo e extravagante, tornou-se um artista. Misto de análise de a comportamento, narrativa geracional e reportagem sensacionalista, Champagne Supernovas (título emprestado de uma canção da banda inglesa Oásis) não decepciona o leitor familiarizado com seus personagens — nem, menos ainda, o leigo fashion à procura apenas de uma boa fofoca e escândalos cabeludos. Nascido em um bairro pobre na zona leste de Londres, filho de um taxista e de uma dona de casa, Lee Alexander McQueen era um garoto tímido, com dentição precária e problemas de peso que abandonou a escola na adolescência por sofrer bullying em tempo integral. No entanto, sempre foi ambicioso e consciente de seu talento, a ponto de conseguir um emprego de costureiro na prestigiosa Savile Row — a tradicional rua da alta-alfaiataria inglesa — e uma vaga na concorrida Central St. Martins na base da cara e da coragem. Sua coleção de formatura, repleta de referências violentas e sanguinolentas, chamou a atenção da excêntrica editora de moda da Vogue britânica, Isabella Blow, que comprou todas as peças. Por ter sido a grande incentivadora e a maior influência na carreira de McQueen (ela insistiu que ele usasse apenas o nome do meio, Alexander, por óbvias razões de grandeza), Issie, como era conhecida pelos amigos, entra no livro como uma espécie de quarto mosqueteiro. Assim como seu protegido, Isabella enfrentava demônios particulares: era a feia circulando em um meio que supervaloriza as aparências, tinha muito menos dinheiro do que seu modo de vida perdulário exigia e se ressentia da infertilidade que a impedia de dar um filho ao marido, um nobre falido. O relacionamento entre o estilista e a editora era tão intenso que eles se definiam como "amantes sem sexo". E, como uma amante traída (McQueen a deixou de fora de um negócio milionário), Issie entrou numa espiral de doença e depressão que culminaria com seu suicídio, em 2007 — um desfecho que teve efeito devastador sobre McQueen. Também de origem humilde, Kate Moss é de Croydon, subúrbio do sul de Londres, e teve uma adolescência complicada pela separação dos pais, que nunca foram exatamente presentes. Descoberta aos 14 anos por um olheiro quando passava férias em Nova York, Kate foi adotada pelas publicações alternativas inglesas — e invariavelmente fotografada por Corinne Day, uma rebelde que desprezava a estética perua das supermodelos. Modelo e fotógrafa ficaram amigas inseparáveis, dividindo um apartamento barato e o gosto por baladas, álcool, sexo e drogas. A amizade durou até Kate conhecer o sucesso como garota Calvin Klein, quando passou a circular entre os ricos e famosos, namorando celebridades como o ator Johnny Depp. Desde então, cada um de seus passos — e tropeços — tem sido acompanhado pelo público. Marc Jacobs veio de um lar abastado — seu pai era alto executivo da mega-agência de talentos William Morris —, mas teve uma mãe esquizofrênica, de quem foi separado na infância. Cresceu em meio aos embalos noturnos de Manhattan e, garoto, já frequentava o alucinado Studio 54. Estudou moda na Parsons School, trabalhou numa butique famosa e chegou a ter seu próprio negócio antes de ser contratado como garoto prodígio pela marca Perry Ellis. Era uma esperança de rejuvenescimento para a empresa, que, no entanto, logo se apressou em demiti-lo: a coleção grunge, hoje um paradigma, foi no momento de seu lançamento um fracasso de crítica e de vendas. Champagne Supernovas atinge o ponto alto quando os personagens se tornam celebridades e a autora os acompanha pelos bastidores da indústria e nos porões mundanos onde se entregaram ao prazer e conheceram o desespero. Contratados a peso de ouro pelo conglomerado francês de luxo LVMH, McQueen e Jacobs tiveram de lidar com responsabilidades e pressões corporativas que simplesmente desconheciam. O inglês tentou, sem sucesso, modernizar a glamourosa maison Givenchy (acabou se transferindo para o grupo rival, o Kering, que é dono da marca Alexander McQueen até hoje). Já o americano foi mais feliz ao tirar a poeira da tradicional Louis Vuitton. Mas o excesso de trabalho foi proporcional à quantidade de substâncias ilícitas que ambos consumiam de dia e de noite. "Eles tinham tanto dinheiro que ninguém via razão para acabar com a festa", conta uma testemunha ocular dos acontecimentos. Como modelo fetiche da dupla, Kate estava sempre por perto, aproveitando cada minuto. McQueen se suicidou em 2010 — o consumo de drogas aumentou depois da descoberta de que era HIV positivo —, e seu trabalho hoje é visto por muitos como uma manifestação de arte contemporânea. No ano passado, Marc Jacobs encerrou a colaboração com a Louis Vuitton, porém mantém a própria grife e é um dos nomes mais respeitados da moda atual. Apesar de todos os escândalos em que se envolveu, Kate, aos 40 anos, é uma das modelos mais admiradas e requisitadas da indústria, além de um ícone perene. Diz Maureen Callahan: "Eles ampliaram nossa noção do que é bacana, belo, estiloso, e tornaram a moda mais inclusiva e divertida". O champanhe, portanto, continua borbulhando. 7#2 LIVROS – UM TRIBUNO DA RAZÃO O cientista político Bolívar Lamounier cria uma fértil tipologia dos intelectuais públicos — e critica as tendências antiliberais que eles tantas vezes abraçam. EDUARDO WOLF O filósofo russo-britânico Isaiah Berlin é responsável por uma das classificações mais célebres do mundo intelectual. Partindo de um aforismo do poeta grego Arquíloco ("A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa muito importante"), o ensaio O Ouriço e a Raposa (1953), dedicado a Leon Tolstoi, dividia escritores e pensadores entre aqueles que organizam sua visão de mundo a partir de um único princípio central ordenador capaz de tudo explicar (os ouriços) e aqueles que se entregam ao exame e à compreensão de uma ampla variedade de temas e de experiências, sem jamais sentir a tentação de tudo reduzir a um esquema exclusivo e excludente (as raposas). Platão, Dante, Dostoievski e Marx seriam ouriços; Aristóteles e Shakespeare, raposas. E Tolstoi representaria o dilema entre uma e outra figura. O novo livro do cientista político brasileiro Bolívar Lamounier, Tribunos, Profetas e Sacerdotes (Companhia das Letras; 264 páginas; 46 reais), tem mais de um parentesco com a empreitada de Berlin. Lamounier também oferece ao leitor uma classificação dos intelectuais — ou, mais especificamente, dos intelectuais públicos, que se dedicam à reflexão e à ação políticas. Com o fôlego dos grandes ensaístas de história das ideias — outra familiaridade com Berlin —, Lamounier delineia as figuras do tribuno, intelectual vocacionado para as intervenções em causas pontuais; do profeta, que anuncia, com suas ideias, um novo mundo a seus seguidores; e do sacerdote, que zela pela "linha justa" da doutrina. Para além do aspecto geral do ensaio histórico, sobressai no livro o trabalho do political scientist à moda anglo-saxã que Lamounier é por formação e por atividade profissional. Dessa combinação resulta muito da fluência informada, do comentário repleto de dados, que sempre se lê com proveito e com prazer ao longo da obra. É assim que comparecem diante do leitor o poeta Federico Garcia Lorca, exemplarmente um tribuno por sua defesa dos ciganos na Espanha no período do entreguerras, e o escritor russo Alexander Soljenitsin, também tribuno por excelência no combate à tirania soviética; o filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau e o líder bolchevique Vladimir Lenin, irmanados em seu espírito de profetas a anunciar um novo mundo (cujos resultados calamitosos conhecemos todos); e figuras aparentemente tão díspares como o pensador alemão Martin Heidegger e o sociólogo brasileiro Oliveira Viana, cada qual a seu modo exercendo o papel de sacerdote, ambos marcados pelo desejo e pela ambição de dirigir consciências — não à toa Heidegger foi mais do que aliado e entusiasta do nazismo, e Viana, do Estado Novo de Getúlio Vargas. O livro, porém, não salta de intelectual para intelectual. A arquitetura da obra é montada a partir da tensão entre duas tradições políticas: liberalismo e antiliberalismo. Com a ressalva de que o liberalismo econômico nem sempre vem conjugado com o liberalismo político (a China é um bom exemplo), o autor elege quatro países para servirem de "casos" para seu estudo da atividade dos intelectuais. A Rússia e a Alemanha aparecem como países de tradição francamente antiliberal, em oposição aos Estados Unidos, exemplarmente liberais. Uma das surpresas da análise é o caso do Brasil, que, segundo o autor, tem um veio liberal mais forte do que se pensa — garantido pela continuidade de certos traços constitucionais que nos acompanham desde a Carta de 1824 —, em que pesem as reiteradas incursões pelo autoritarismo. Completando a análise brasileira, Lamounier examina a obra do "sacerdote" Oliveira Viana e do "antiprofeta" liberal (expressão do autor) Sérgio Buarque de Holanda, com vantagem justa e inequívoca para o último. Se é verdade que o autor de Raízes do Brasil se sai bem no quadro final, é preciso, contudo, ressaltar a triste figura que, no geral, os intelectuais fazem no livro. Aliás, diante do ingênuo estranhamento que algumas pessoas revelam ao deparar com renomados intelectuais brasileiros, dentro e fora das universidades, prestando (ainda) continência ao autoritarismo latino-americano do castrismo e do chavismo, ou aceitando o sequestro da história e a falsificação da realidade promovidos pelo petismo encastelado no poder, as análises de Lamounier valem como duplo antídoto. Primeiro, por não deixarem dúvida quanto ao fato de as inclinações antiliberais e expressamente autoritárias não terem sido exceção na história intelectual do Ocidente. Pelo contrário: da cumplicidade voluntária com o stalinismo (o crítico húngaro Georg Lukács é o arquétipo dessa atitude) ao entusiasmo antissemita do hitlerismo (não esqueçamos de Heidegger), a indecência foi regra. Mas também por uma razão menos sombria: a análise do caso dos Estados Unidos aponta para a possibilidade de grandes transformações rigorosamente dentro dos critérios da democracia representativa constitucional, o que configura todo um outro tipo de atuação do intelectual — não o servilismo em face de ideologias assassinas, mas o engajamento na tarefa do esclarecimento público e a dedicação a melhorar a vida das comunidades políticas aqui e agora, sem as falsas promessas de um "amanhã radiante" que foram a profissão de fé da esquerda marxista. Aliás, não foram: são. Ainda bem que o "tribuno" Bolívar Lamounier, em boa hora, vem oferecer seu antídoto. 7#3 CULTURA – O HORROR E O HUMOR O novo romance do inglês Martin Amis tratou o Holocausto em veia cômica e acabou recusado na Alemanha e na França. Não se trata de censura nem de patrulha, mas de um caso de hipersensibilidade histórica. JERÔNIMO TEIXEIRA Ao lado dos companheiros de geração Ian McEwan e Julian Barnes, Martin Amis, 65 anos, é um dos mais reputados escritores contemporâneos da Inglaterra. Ele tem uma preocupação muito particular com os pesadelos totalitários do século XX. É autor de uma espécie de ensaio biográfico sobre Stalin, Koba, the Dread (Koba, o Terrível, sem edição no Brasil), e tratou dos horrores do gulag soviético no romance Casa de Encontros. O episódio crucial do engenhoso romance A Seta do Tempo tem lugar no campo de concentração de Auschwitz, às vezes referido como Kat Zet (da sigla KZ, de Konzentrationslager, ''campo de concentração", em alemão). The Zone of Interest (algo como "zona sensível"), seu mais recente romance, publicado em agosto na Inglaterra e na semana passada nos Estados Unidos, transcorre mais uma vez no Kat Zet. Um dos protagonistas é um alemão que trabalha no campo. Passados quase setenta anos da queda do nazismo, um romance narrado por um nazista (aliás, não muito convicto) não deveria causar desconforto. No entanto, as editoras regulares de Martin Amis na França e na Alemanha recusaram The Zone of Interest. Há, em torno do episódio, uma cortina de evasivas. O jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung disse que, nos círculos literários do país, sabe-se que a Hanser, editora local de Amis, considerou que o romance tratava o Holocausto de forma "frívola"; em entrevista ao jornal The New York Times, um representante da editora diz que, na verdade, a casa apenas constatou que Amis não vende bem no país. Parece claro, porém, que o romance cutucou um nervo muito elétrico da sensibilidade europeia. No campo da cultura, pelo menos, ainda não se encerraram as reparações da guerra. Para limpar o terreno, é bom estabelecer com clareza o que não está em jogo. Não se trata de censura. Editoras têm pleno direito de recusar esta ou aquela obra. Na França, a tradicional Gallimard, que já publicara obras de Amis, recusou The Zone of Interest — e de imediato uma editora menor, a Calmann- Lévy, abocanhou o contrato (em tempo: no Brasil, o livro será publicado, no ano que vem, pela Companhia das Letras). Também não se vê nesse caso a vigilância puritana da correção política. Não foi o barulho militante que travou a publicação do livro de Amis, mas o discreto (às vezes, talvez, hipócrita) decoro que ainda se exige em torno das vítimas do nazismo. Essa espécie de hipersensibilidade mostra-se cambiante e incoerente: foi a Gallimard, afinal, que lançou As Benevolentes, romance do americano (que escreve em francês) Jonathan Littell, narrado por um cínico oficial nazista. O problema talvez não seja tanto o protagonismo dado aos carrascos, mas o tom cômico — ainda que de um humor frio e cerebral — do livro de Amis. Nas primeiras páginas, Golo Thomsen, o herói, flerta com a mulher do comandante do Kat Zet. Os dois fumam, e ela comenta que o cigarro ajuda a dispersar o cheiro (entenda-se, o cheiro que vem dos crematórios de Auschwitz). A tensão sexual, a amenidade do jardim, a ligeireza do comentário sobre o odor da morte — todos esses elementos destoam da gravidade esperada de uma obra sobre o genocídio. Resenhas do romance têm lembrado, a propósito, a ideia (também ela muito controversa) da "banalidade do mal", levantada pela filósofa alemã Hannah Arendt a propósito de Adolf Eichmann, o militar e burocrata nazista que comandou toda a complexa logística da Solução Final. Não terá sido esta a primeira vez em que o tema é tratado com mão leve. O descerebrado A Vida É Bela, filme do comediante italiano Roberto Benigni, retratou o campo de concentração com lirismo kitsch e levou o Oscar de melhor filme estrangeiro de 1999. O cineasta americano Quentin Tarantino, que esteve sob fogo cerrado por seu retrato da escravidão nos Estados Unidos em Django Livre, também pisou terreno sensível no filme anterior, Bastardos Inglórios, violenta história de guerra e vingança judaica com a inequívoca marca pop do diretor. Mas o filme ganhou o selo de aprovação da Liga Antidifamação, organização americana que exerce o papel de vigilante do antissemitismo. No início deste ano, a Liga exigiu desculpas da comediante Joan Rivers, morta no mês passado, quando ela elogiou o vestido provocante da modelo alemã Heidi Klum: "A última vez em que se viu um alemão tão ardente foi quando eles empurravam judeus para dentro dos fornos". Joan Rivers, judia, não se desculpou. No Brasil, em 2011, em episódio similar, o humorista Danilo Gentili desculpou-se por um comentário feito no Twitter sobre a oposição a uma estação de metrô por parte de moradores de um bairro paulistano com forte presença judaica: "Entendo os velhos de Higienópolis temerem o metrô. A última vez que chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz". Essas piadas podem ser reprovadas por sua grosseira insensibilidade, mas não por antissemitismo. Tampouco se levantou contra The Zone of Interest nenhuma suspeita dessa ordem. E é um tanto mais difícil falar, aqui, em insensibilidade, pois há que considerar as mediações da ficção: a crueza da cena de paquera ente o herói do livro e a mulher do comandante é banal, mas também funciona como crítica à banalidade daqueles que servem a um regime genocida. Não é casual que o livro de Amis tenha enfrentado resistência na Alemanha e na França. O primeiro país carrega a culpa histórica pelo Holocausto, e a França por um longo tempo silenciou sobre a vergonha do colaboracionismo (tema muito bem analisado pelo historiador Tony Judt em Pós-Guerra — e também, pela via da ficção, pelo romancista W.G. Sebald em Austerlitz). Artistas alemães, porém, já se valeram da frivolidade para expor e purgar a responsabilidade nacional. Nos anos 60, Anselm Kiefer apresentou Ocupações, série de fotos nas quais aparecia em várias localidades europeias com o braço erguido na típica saudação nazista. Era uma acusação à cultura alemã, mas em perigoso terreno limítrofe — facilmente sua performance poderia ser confundida com apologia. Ottmar Hörl repetiu (ou diluiu) a provocação em 2009, com a frivolidade escandalosa da pop art: a instalação Dança com o Demônio apresentava uma multidão de anões de jardim com o braço erguido. Houve quem pedisse a censura, pois símbolos nazistas são proibidos na Alemanha. Venceu, porém, a compreensão de que ali o gesto tinha sentido satírico. Pode ser uma sátira de difícil aceitação, como também o é a cena ficcional de uma mulher que acende o cigarro para dispersar o desagradável cheiro dos cadáveres. Mas é prerrogativa — talvez obrigação — de escritores e artistas encenar o inaceitável. 7#4 TELEVISÃO – AI, QUE LOUCURA! O esquizofrênico da novela das 9 e o psicopata de Dupla Identidade levam os problemas mentais ao horário nobre. Mas, quase sempre, a coisa não tem pé — nem cabeça. MARCELO MARTHE Meses atrás, o ator Paulinho Vilhena fez um corte de cabelo mucho loco, vestiu roupas de louco e foi conviver com os internos de um hospital psiquiátrico carioca. Era parte do mergulho — para usar um clichê teatral — em seu personagem na novela Império. Com topete moicano e caretas que fazem jus à escola surfista de atuação, ele dá vida a Salvador, esquizofrênico que pinta quadros e é explorado por um ex-colega de prisão. O estágio no hospital é descrito por Vilhena como um processo de "observação ativa". Foi bom? "Foi ótimo. Os pacientes não me tinham como um ser estranho: a gente gritava palavras sem sentido e depois ficava em estado de catototonia (traduzindo: catatonia)", diz ele. Há três semanas, o esquizofrênico da novela das 9 ganhou a companhia de outro tipo com problemas mentais no horário nobre. Na série Dupla Identidade, exibida às sextas-feiras, Bruno Gagliasso vive Edu, jovem sedutor que esconde um segredo: de noite, ele vira um assassino com crueldade similar à dos serial killers da ficção americana — é patente, aliás, o esforço da noveleira Gloria Perez em emular as séries CSI e Dexter. O psicopata tem cara e jeito de doido. Tecnicamente, sua condição não é definida como doença, e sim como um transtorno de personalidade. Mas o detalhe não altera um fato: a teledramaturgia da Globo anda uma loucura. Os dois atores acumularam certo conhecimento de causa em papéis de garotos maluquinhos da TV. Entre outros tipos abilolados, Vilhena representou um arqueólogo gago que denotava lentidão mental em Morde & Assopra, trama das 7 exibida em 2011. Antes de virar psicopata, Gagliasso enfrentou a esquizofrenia como o Tarso de Caminho das índias, folhetim de 2009 da mesma Gloria Perez. Ele até que não está de matar em Dupla Identidade. Mas o entorno queima seu filme. Embora se tenha de reconhecer que a autora se dá melhor em séries do que em novelas, seria demais pedir que Gloria Perez abdique de suas glorices. Na insólita escalação do elenco, a cereja do bolo é Luana Piovani na pele de psiquiatra forense. Se a doutora se referir, com pose séria, a uma prova de balística, o espectador desavisado pode achar que se trata de um novo esporte em voga no Leblon. A psiquiatra Vera é também porta-voz daqueles chavões típicos das histórias de Gloria: "Psicopatas matam porque se sentem seguros. Psicopatas têm o controle nas mãos". Sério? Luana, assim você me mata! O psicopata Edu é uma criação primorosa perto do esquizofrênico de Império. O noveleiro Aguinaldo Silva inspirou-se no holandês Vincent van Gogh — sim, Van Gogh — ao bolar um pintor atormentado que não tem consciência do valor da própria obra. O papel estava vago até o diretor Rogério Gomes, o Papinha, interceder por seu amigo de surfe Vilhena (favor retribuído na semana passada, quando o ator salvou o diretor de um afogamento na Praia de Grumari). "Rogério queria que o Paulinho fizesse um personagem certinho. Fui contra. Mas, quando sugeriu o pintor esquizofrênico, pensei: bingo!", conta Aguinaldo Silva. Vilhena diz que, além de mergulhar no hospital psiquiátrico, buscou referência em uma lembrança de infância: "Convivi com o irmão de um grande amigo que tinha síndrome de Down. Sei que não é a mesma coisa que a esquizofrenia, mas há muitas coincidências". Ao pintar, Salvador fala sozinho, revira os olhinhos, bate a cabeça na parede e se lambuza todo. "Esquizofrênicos não seriam capazes de pintar quadros durante o surto. É um estado caótico da mente", diz o psiquiatra Guido Palomba. Nas novelas, claro, isso é o de menos. Cada um pinta e borda como pode. 7#5 VEJA RECOMENDA DISCO ART OFFICIAL AGE, PRINCE, E PLECTRUMELECTRUM, PRINCE & 3rdEYEGIRL (WARNER MUSIC) • Se houvesse um cargo específico para cada figura no panteão do pop, Prince mereceria o título de "misturador-geral de gêneros e ritmos". Do rock ao funk, passando pelo folk e pelo R&B, Prince tem capacidade inigualável para fundir referências em trabalhos sempre respeitáveis do ponto de vista criativo, embora de resultado desigual. Em resumo, ainda que Prince erre a mão, estará muito à frente da concorrência — e, quando ele acerta, produz abalos sísmicos. Seus dois novos discos marcam o reatamento com a Warner, gravadora com a qual travou uma guerra há coisa de vinte anos. A boa notícia: os CDs revelam um Prince de volta ao estado de graça. Prolífico como de praxe, ele trafega por dois terrenos distintos. Em Art Official Age, a pegada é de funk, R&B e eletrônica — a linha de baixo da primeira faixa é de quebrar a cintura na pista de dança. Parceria com sua banda feminina, a 3rdEyeGirl, PlectrumElectrum flerta com o hard rock. E tome guitarras na veia. CINEMA O ÚLTIMO CONCERTO (A LATE QUARTET, ESTADOS UNIDOS, 2012. JÁ EM CARTAZ) • Peter (Christopher Walken), o violoncelista de um quarteto de cordas que está já há mais de duas décadas na ativa, anuncia aos colegas que o concerto inaugural da próxima temporada será seu último: a doença de Parkinson impede que ele prossiga. O equilíbrio do conjunto rompe-se então de maneira estrepitosa: não bastasse a dificuldade de encontrar um substituto para Peter, o segundo violinista, Robert (Philip Seymour Hoffman, em um de seus últimos filmes), exige que Daniel (Mark Ivanir), o primeiro violinista, passe a alternar sua primazia com ele — mas a violista Juliette (Catherine Keener) não está do lado de Robert, seu marido, e sim do ultraexigente e ultradisciplinado Daniel. Que acrescentará ao impasse ao se envolver com a filha dos dois (Imogen Poots), uma jovem violinista. Graves diferenças pessoais e artísticas terão assim de ser negociadas enquanto eles ensaiam o Quarteto para Cordas Nº 14 Opus 131 de Beethoven, cuja execução demanda uma análise quase que talmúdica. Em sua estreia na direção, o israelense-americano Yaron Zilberman se vale das excelentes atuações de Hoffman, Walken e Ivanir para contrapor as necessidades dos indivíduos às do grupo a que eles pertencem. LIVROS O ÚLTIMO HOMEM NA TORRE, DE ARAVIND ADIGA (TRADUÇÃO DE VERA RIBEIRO; NOVA FRONTEIRA; 400 PÁGINAS; 39,90 REAIS) • Não há um pingo de encanto e romantismo na Índia do escritor e jornalista Aravind Adiga. O Tigre Branco, seu romance de estreia, era um retrato desencantado do país, narrado por um emergente social que se valia dos meios mais sórdidos para ascender. Vencedor do prêmio Man Booker de 2008, o título vendeu dezenas de milhões de exemplares no mundo. No mesmo ano, a coletânea de contos Entre Assassinatos reafirmou seu pessimismo, com personagens que iam de mendigos a empresários. Lançado em 2011 na Índia, O Último Homem na Torre novamente traz a visão crítica que consagrou o autor: o ar é poluído, há ratos em todo canto e os prédios crescem na mesma velocidade com que nascem seus habitantes. O foco agora está num condomínio de Mumbai. O lugar é cercado de favelas, mas há harmonia entre seus moradores — até a chegada de um magnata do mercado imobiliário com uma proposta irrecusável para todos, menos para o aposentado Masterji, que se bate com a ideia de destruir o lugar. TOMO CONTA DO MUNDO, DE DIANA CORSO (ARQUIPÉLAGO; 272 PÁGINAS; 45 REAIS) • Com vasta experiência em consultório, atendendo sobretudo crianças e adolescentes, a psicanalista Diana Corso tem voltado sua lente freudiana também para as obras de ficção. Com o marido, o também psicanalista Mário Corso, escreveu Fadas no Divã, dedicado à análise de histórias infantis, e Psicanálise na Terra do Nunca, que examina livros, filmes e séries do universo pop. Tomo Conta do Mundo não tem um eixo temático: trata-se de uma coletânea de crônicas publicadas no jornal Zero Hora e nas revistas TRIP e VIDA SIMPLES (da Abril, que também publica VEJA). Como é próprio do gênero, os temas são variados: a angústia das mães que trabalham e tentam acompanhar a vida escolar dos filhos, as listas de livros e filmes que temos de ler e ver antes de morrer, ou o deleite de ler Thomas Mann enquanto um gato disputa o espaço do colo com A Montanha Mágica. O tom é de conversa direta e franca, sem afetação nem jargão. O título do livro vem de um texto de Clarice Lispector, e o texto final, este inédito, é um ensaio sobre outra escritora que deu voz muito particular a personagens femininas, Virginia Woolf. DVD A NOITE DOS GENERAIS (THE NIGHT OF THE GENERALS, INGLATERRA/FRANÇA, 1967. CLASSICLINE) • Uma prostituta é assassinada na Varsóvia ocupada pelos nazistas, em 1942. Mas que importância pode ter esse único cadáver quando milhões morriam nos campos de batalha e de concentração da II Guerra? Para o major Grau (Omar Sharif), que investiga o crime, é a oportunidade de fazer a justiça entrar por uma fresta em um mundo em que ela não é desejada. A dificuldade: uma testemunha viu o uniforme (mas não o rosto) do assassino — e ele é um general alemão. Os três suspeitos, portanto, são os superiores de Grau: o cínico Gabler (Charles Gray), o comparativamente compassivo Kahlenberge (Donald Pleasence) e o implacável Tanz (Peter O’Toole), o único do trio que é nazista fervoroso. A trama terá desdobramentos em Paris, em 1944, e até no pós-guerra, quando um inspetor francês (Philippe Noiret) leva adiante o trabalho de Grau. Com grandes atuações (ainda que a afetação de O’Toole pareça um tanto datada), o filme é, para além de sua irretocável trama detetivesca, um poderoso drama moral. 7#6 OS LIVROS MAIS VENDIDOS FICÇÃO 1- Se Eu Ficar. Gayle Forman. Novo Conceito 2- A Culpa É das Estrelas. John Green. INTRÍNSECA 3- O Pequeno Príncipe. Antoine de Saint-Exupéry. AGIR 4- Eternidade por um Fio. Ken Follet. ARQUEIRO 5- Maze Runner – Correr ou Morrer. James Dashner. VERGARA & RIBA 6- Quem É Você Alasca? . John Green. WMF MARTINS FONTES 7- Divergente. Veronica Roth. ROCCO 8- Cidades de Papel. John Green. INTRÍNSECA 9- Felicidade Roubada. Augusto Cury. SARAIVA 10- Maze Runner – Prova de Fogo. James Dashner. VERGARA & RIBA NÃO FICÇÃO 1- Aparecida. Rodrigo Alvarez. GLOBO 2- Guga — Um Brasileiro. Gustavo Kuerken. SEXTANTE 3- Getúlio 1945-1954. Lira Neto. COMPANHIA DAS LETRAS 4- Guia Politicamente Incorreto da História do Mundo. Leandro Narloch. LEYA BRASIL 5- Mentes Consumistas. Ana Beatriz Barbosa Silva. PRINCIPIUM 6- O Livro da Psicologia. Nigel Benson. GLOBO 7- Sonho Grande. Cristiane Corrêa. PRIMEIRA PESSOA 8- O Diário de Anne Frank. Anne Frank. RECORD 9- 1889. Laurentino Gomes. GLOBO 10- O Livro dos Negócios. Vários autores. GLOBO AUTOAJUDA E ESOTERISMO 1- Ansiedade. Augusto Cury. SARAIVA 2- Não Se Apega, Não. Isabela Freitas. INTRÍNSECA 3- De Volta ao Mosteiro. James Hunter. SEXTANTE 4- As Regras de Ouro dos Casais Saudáveis. Augusto Cury. ACADEMIA DE INTELIGÊNCIA 5- O Monge e o Executivo. James Hunter. SEXTANTE 6- Manual do Empreendedorismo. Bruno Caetano. GENTE 7- Sonhos Não Têm Limites. Ignácio de Loyola Brandão. GENTE 8- Casamento Blindado. Renato e Cristiane Cardoso. THOMAS NELSON BRASIL 9- Pais Inteligentes Formam Sucessores, Não Herdeiros. Augusto Cury. SARAIVA 10- Louco por Viver. Roberto Shinyashiki. GENTE 7#7 J.R. GUZZO – SEM VOZ E SEM VEZ Digamos que o leitor desta página, que estará votando ou já votou nas eleições de 5 de outubro, não seja índio, quilombola nem pertença a nenhum outro grupo que se apresenta como oprimido. Há grandes chances, também, de que não seja sem terra, sem teto nem invasor de propriedade alheia, rural ou urbana — e que não more numa "comunidade", favela, cortiço, debaixo de um viaduto nem num abrigo para indigentes. É muito provável que não seja surdo, mudo, gago, anão nem portador de deficiências físicas. Não é beneficiado por cotas de nenhum tipo. Não cheira pó, não injeta droga na veia, não fuma crack nem vive nas cracolândias das cidades brasileiras. Não recebe o Bolsa Família nem se inscreve no MSTS para furar a fila do Minha Casa Minha Vida. Não toca fogo em ônibus e não interrompe avenidas com barreiras de pneus queimados para protestar contra algo que desaprova. Não é presidiário. Não está condenado por infração ao Código Penal nem fugindo de nenhuma ordem de captura, nacional ou da Interpol. Nunca tem problemas com a polícia nem queixas contra o comportamento de policiais. Não é "ativista", como se combinou chamar os delinquentes que saem à rua para expressar sua opinião com foguetes, pedradas ou coquetéis molotov. Não é black bloc. Não conhece Sininho. Esse cidadão, quando olha um pouco em volta de si, descobre que está sozinho. Foi obrigado a votar para presidente da República, governador de estado e mais uma porção de gente que sustentará com seu dinheiro pelos próximos quatro anos. Milhares de candidatos pediram seu voto durante meses. Teve de aguentar o infame "horário eleitoral". Mas ninguém está pensando nele; sua existência, aliás, nem foi notada pelos políticos que querem governá-lo, todos eles obcecados em demonstrar que são os campeões de um Brasil do qual ele não faz parte. Como sempre ocorre, os candidatos e as caríssimas equipes de propaganda que contratam para decidir o que devem dizer em sua campanha escolheram nesta eleição, mais uma vez, ignorar os brasileiros que não consideram seus "clientes" — toda aquela parte da população que cuida da própria vida sem esperar ajuda do cofre público, paga imposto, cumpre a lei, não dá trabalho e não exige nenhuma atenção especial para si. Para agravar seu abandono, criou-se nos últimos doze anos a ficção segundo a qual esses brasileiros que vivem em silêncio são inimigos dos "pobres" e de tudo o que se chama de "causas populares", "movimentos sociais" e outras farinhas do mesmo saco. Na visão do atual governo e da esquerda nacional, eles são "privilegiados"; representariam "1% da população", ou algum disparate estatístico parecido, e por isso não deveriam ter direito a nada. Seu bem-estar, maior ou menor, que foi conquistado unicamente por seu esforço individual e méritos próprios, é visto como infração grave. O evangelho do governo ensina que tudo aquilo que têm foi tirado dos pobres. Seu grande pecado é não serem miseráveis. O problema não acaba aí. O provável leitor mencionado no início deste artigo também é culpado de não ser uma porção de outras coisas, além das que já foram citadas acima. Ele não é empreiteiro de obras públicas nem dono de frigoríficos que respiram por aparelhos financeiros do governo — e que são capazes de doar mais de 100 milhões de reais aos candidatos à Presidência da República. Não está à procura de sua identidade sexual nem se considera vítima de alguma perseguição contra as minorias. Não recebe pensão do Erário por se julgar prejudicado durante o regime militar. Não anda de helicóptero, não viaja em jatinhos de empresários e não é fornecedor da Refinaria Abreu e Lima. Não influi em nada na Petrobras e jamais pôs os pés em seu edifício-sede. Não está entre os 20.000 novos milionários, ou perto disso, que o Brasil produz a cada ano. Não se trata em hospitais públicos nem põe seus filhos na rede escolar do Estado, embora pague os impostos que lhe dão direito a esses serviços. Não briga em campos de futebol e nunca chamou ninguém de "macaco". Passa a vida inteira sem ser recebido por uma autoridade pública. Seria razoável que o cidadão aqui descrito, neste momento de escolher quem vai para a Presidência de seu país, perguntasse: "Quem cuida de mim?". Não receberia resposta alguma, é claro. Está na lista dos indesejáveis ou dos suspeitos da trindade Lula-Dilma-PT, e até agora pouco ou nada ouviu em sua defesa por parte dos candidatos da oposição — não em voz alta, nem à luz do sol. Seu futuro é incerto.