0# CAPA 28.1.15 VEJA www.veja.com Editora ABRIL Edição 2410 – ano 48 – nº 4 [descrição da imagem: capa tem fundo em tons de cinza escuro para preto. No lado esquerdo, uma grande torneiro, e na boca da mesma, uma lâmpada, com apenas sinal de luz nos filamentos internos da lâmpada. Todo resto em preto.] ESPECIAL A AMEAÇA DO DUPLO APAGÃO Água e luz no Brasil são irmãs siamesas, na alegria e na tristeza. Por isso, a estiagem no Sudeste vai atormentar milhões de brasileiros neste ano. GUIA • 15 PERGUNTAS E RESPOSTAS PARA ALIVIAR OS IMPACTOS DA CRISE [outros títulos na parte superior da capa] PETROLÃO Empresário com passe livre no Planalto de Lula é o mais novo investigado. ARGENTINA A morte misteriosa do procurador que denunciou Cristina Kirchner. _______________________ 1# SEÇÕES 2# PANORAMA 3# BRASIL 4# ECONOMIA 5# INTERNACIONAL 6# GERAL 7# ESPECIAL – O BRASIL SEM ÁGUA SEM LUZ 8# ARTES E ESPETÁCULOS _____________________________ 1# SEÇÕES 28.1.15 1#1 VEJA.COM 1#2 CARTA AO LEITOR – UM PROBLEMA DE TODOS NÓS 1#3 ENTREVISTA – ROBERT LUSKIN – LÁ A JUSTIÇA É IMPECÁCEL 1#4 MAÍLSON DA NÓBREGA – AS POUCAS CHANCES DE UMA REFORMA POLÍTICA 1#5 LEITOR 1#6 BLOGOSFERA 1#1 VEJA.COM OTIMISMO, ESSE NOSSO INIMIGO Livros de autoajuda pretenderam por décadas ensinar o segredo para a realização dos desejos. Ele pode ser resumido assim: "Imagine seu sonho realizado, e o universo vai conspirar a seu favor" A realidade contesta diariamente essa crença. A psicóloga alemã Gabriele Oettingen também. Autora do livro Rethinking Positive Thinking (Repensando o Pensamento Positivo), recém-lançado nos Estados Unidos, ela afirma, depois de vinte anos de estudos, que a disposição para ver as coisas pelo lado bom e esperar sempre desfechos favoráveis na verdade atrapalha a realização dos sonhos, pois vende a ideia de conquistas sem trabalho árduo. "Para que alcancemos nossas metas de vida, devemos confrontar nossos desejos com obstáculos reais, ajustando expectativas e descobrindo nossos limites", diz Gabriele em entrevista a VEJA.com. A VÁRZEA NO SÉCULO XXI A urbanização das cidades e a profissionalização do esporte não acabaram com uma instituição brasileira: o futebol de várzea. Em campos surrados, craques do terrão faturam entre 100 e 300 reais por partida. Eles levariam duas décadas para ganhar o que Neymar recebe em uma partida. VEJA.com acompanhou a final de um torneio em São Paulo - a Copa Leidiane, que reuniu 96 equipes que disputavam 5000 reais - e constrói em texto e fotos um retrato da várzea. PROPAGANDA EM SEIS SEGUNDOS As mentes criativas do universo digital encontraram no Vine uma nova ferramenta para entreter a audiência e fazer dinheiro. O aplicativo faz vídeos curtíssimos, que não podem passar de seis segundos de duração. Um time de jovens habilidosos vem compartilhando no app vídeos apoiados no humor e no aparente improviso: gigantes como Coca-Cola e Disney aprovaram a ideia e já encomendam as micropropagandas. Um desses realizadores é o brasileiro Lucas Rangel, de 17 anos, que fatura em média 30.000 reais por mês. "Esses vídeos fazem sucesso porque estão afinados com o gosto do público adolescente", diz o publicitário Rafael Gaino. ATE QUANDO SER UM VESTIBULANDO? Nesta semana, serão divulgados os nomes aprovados pelo Sisu, sistema de seleção de alunos de universidades públicas. Vai começar um drama. Quase 3 milhões de estudantes se inscreveram, mas só há 205.000 vagas. Muitos, portanto, vão deparar com um dilema; matricular-se em uma instituição privada ou dedicar mais um ano aos estudos? Para ajudar os vestibulandos a sair dessa encruzilhada, VEJA.com ouviu professores, coordenadores de cursos preparatórios e outros especialistas, que dizem o que os estudantes devem considerar na hora da decisão. 1#2 CARTA AO LEITOR – UM PROBLEMA DE TODOS NÓS As conquistas tecnológicas da civilização nos deram a sensação de termos domado definitivamente os humores da natureza. A calefação nos países de clima frio, o ar condicionado nos trópicos, as obras contra enchentes nas metrópoles, a irrigação de terras áridas em clima de deserto e a melhoria no grau de acerto das previsões meteorológicas — tudo isso somado deu ao Homo sapiens a arrogância típica dos dominadores. De tempos em tempos, porém, o mundo natural nos lembra de nossa imensa fragilidade. São momentos em que as populações se curvam diante das "forças colossais da natureza", que o célebre historiador francês Fernand Braudel, morto em 1985, via como vetores de insurreições populares mais fortes do que as ideologias revolucionárias. Nos Estados Unidos, no ano passado, um vórtice polar, bolsão furioso de gelo e vento, imobilizou em casa dezenas de milhões de americanos por vários dias. Em 2012, o furacão Sandy matou 53 pessoas em Nova York, fechou a bolsa de valores por dois dias seguidos e causou prejuízo econômico de mais de 10 bilhões de dólares. Um ano antes, no Japão, a combinação de um terremoto e um tsunami, ambos de violência raramente vista, provocara o desastre nuclear de Fukushima, o segundo maior da história. Uma reportagem especial desta edição de VEJA analisa em profundidade e sob diversos ângulos uma dessas manifestações incontroláveis da natureza sobre o Brasil, a estiagem que já dura dois anos na Região Sudeste, onde se concentram grandes reservatórios de água para consumo e geração de energia. Ao contrário de furacões, tempestades de neve, tsunamis e terremotos, erupções repentinas que libertam de uma hora para outra forças de destruição descomunais, as estiagens vão se instalando aos poucos. Mas seus efeitos podem ser igualmente desestabilizadores. Desde outubro de 2013 as chuvas têm ficado abaixo da média histórica na região. Neste momento, com dois terços do mês de janeiro já passados, choveu no Sudeste apenas um quarto do esperado para o primeiro mês do ano. É inevitável, assim, que a crise suba as escadas, entre pela sala, se espalhe pelos quartos e banheiros dos apartamentos e casas de milhões de brasileiros. O sentimento natural nessas horas é de indignação com os governos em todos os níveis. Sim, as autoridades têm sua parcela de culpa na crise que se avizinha. Quem já sofre e sofrerá seus efeitos corre a buscar culpados. Se não há como negar que boa parte do problema se deve à falta de planejamento, inação, incompetência e corrupção dos governantes, a indignação não é suficiente. O momento é muito mais de tolerância, cooperação e engenhosidade individual, de modo que, coletivamente, atravessemos os meses difíceis que teremos pela frente. Se cada um dos brasileiros passar a consumir metade da água e da energia elétrica a que se acostumou nos tempos de abundância, a crise será superada em menos tempo e com menos sofrimento. 1#3 ENTREVISTA – ROBERT LUSKIN – LÁ A JUSTIÇA É IMPECÁCEL Um dos maiores criminalistas dos Estados Unidos afirma que as investigações do petróleo em seu país serão profundas e podem levar a uma severa punição de empresas brasileiras. MALU GASPAR O criminalista Robert Luskin é um personagem típico de Washington: integrante do primeiro time da advocacia americana, circula entre republicanos e democratas com a mesma desenvoltura e conhece como poucos os meandros da burocracia governamental. Mas, apesar de ter ganho notoriedade defendendo clientes famosos — Karl Rove, ex-assessor do presidente George W. Bush acusado de divulgar informações contra uma agente da CIA, e o ciclista Lance Armstrong, alvo de um escândalo de doping —, sua maior especialidade é a lei que pune corporações internacionais por pagar propina para obter contratos, o Foreign Corrupt Practices Act. Além de dar aulas sobre o tema na Universidade de Georgetown, em Washington, Luskin, 64 anos, ex-promotor formado em Harvard, já defendeu dezenas de multinacionais em inquéritos do gênero. Nesta entrevista a VEJA, ele informa que as investigações sobre o petrolão nos Estados Unidos vão desvendar toda a extensão do esquema. Até empresas que não atuam lá, entre elas algumas das empreiteiras, poderão ser alcançadas pelas pesadas punições estabelecidas pela lei americana. As investigações sobre o escândalo da Petrobras nos Estados Unidos podem atingir empresas brasileiras que pagaram propina para obter contratos? É bem possível. Os Estados Unidos interpretam a lei de forma bastante abrangente. Se a empresa contraiu um empréstimo aqui, se alguma transação financeira foi intermediada por instituições bancárias americanas ou um dos envolvidos é americano, o governo pode decidir entrar no caso. Foi o que ocorreu com a petroleira francesa Total, investigada por ter pago milhões em propinas a um funcionário público no Irã. Não havia praticamente nada que ligasse a história aos americanos, mas um único pagamento, justamente o primeiro, de 500.000 dólares, foi feito a partir de uma conta bancária nos Estados Unidos. O governo passou a investigar o escândalo, e a Total foi multada em 398 milhões de dólares. A empresa até poderia ter enfrentado o governo em um processo judicial alegando falta de legitimidade, mas preferiu selar o acordo porque, se perdesse, o custo seria bem mais alto do que a multa. No caso Petrobras, a quanto podem chegar as multas? Não se pode dizer antes que se saiba exatamente em que projetos houve negociata, quanto de propina foi pago e qual o ganho obtido. É a partir desses dados que se calculam não apenas a multa mas também eventuais penas de prisão. Para chegar a um número, o Departamento de Justiça e a Securities and Exchange Commission (SEC, o órgão fiscalizador do mercado americano) vão se juntar e aprofundar a investigação. Foi esse o procedimento no caso da Alstom. A apuração começou por um episódio ocorrido na Indonésia e foi ganhando vulto à medida que avançava. A multa à multinacional francesa foi de 772 milhões de dólares. A mesma força-tarefa vai ser acionada no escândalo Petrobras. No final, acho muito provável que as empresas brasileiras envolvidas façam acordo e aceitem encerrar o caso pagando a multa. Por que as empresas tendem a fazer acordo? É difícil imaginar uma companhia com ações na bolsa americana litigando contra Washington em um caso de corrupção. Nenhuma fez isso até hoje, porque perder nos tribunais significaria ser impedida de vender ações, ver seus executivos banidos do mercado e receber multas e sanções financeiras muito maiores do que a organização seria capaz de suportar. Litigar nesses casos pode custar à empresa a própria sobrevivência. No caso da Petrobras, uma questão controversa diz respeito às responsabilidades da presidente da estatal, Graça Foster, e da presidente do Brasil, Dilma Rousseff, ex-presidente do conselho de administração. Ambas dizem que não sabiam de nada. Esse argumento seria acolhido em cortes americanas? Depende de como as investigações vão evoluir. À luz da lei anticorrupção, o simples fato de ter estado no comando de uma empresa no período em que os crimes foram cometidos, ou de ter falhado em identificá-los, não configura crime. Muitos executivos alegam não saber de nada e saem ilesos. Para que sejam acusados, é preciso provar que tiveram conhecimento do esquema e não o coibiram ou que participaram dele de alguma forma. Por essa razão, o Departamento de Justiça trabalha sempre com o objetivo de conseguir testemunhas, e-mails e documentos. Funcionários públicos ou políticos que tenham recebido propina no caso Petrobras podem vir a ser punidos nos Estados Unidos? Essa é uma questão interessante. Ninguém sabe ao certo. Vejo o caso Petrobras como um teste para a lei americana. Ela nasceu para punir os corruptos. Seu texto, porém, não é claro quanto à culpabilidade de quem recebe o dinheiro. A própria Petrobras pode tentar escapar de punições alegando ter sido vítima. O governo americano já desenvolveu várias teses sobre como agir nessas situações, mas até hoje elas não foram postas à prova. Se for mesmo adiante, o caso brasileiro representará uma chance de definir o escopo da lei anticorrupção nos Estados Unidos. Há outras leis regulando as empresas nos Estados Unidos, como a Sarbanes- Oxley, que pune crimes financeiros e contra o mercado de capitais. A Petrobras e seus executivos podem ser enquadrados nela? Certamente. É com base nessa lei que os investidores estão processando a Petrobras aqui. Nesse caso, a punição é civil, e não criminal. Pagam-se multas vultosas, mas na prática ninguém tem ido para a cadeia por causa da Sarbanes-Oxley. Depois de passar por uma investigação desse tipo, como uma empresa consegue se recuperar junto aos investidores? Ela tem de provar que é digna de confiança e merece uma segunda chance, adotando uma política muito mais severa de controle e de governança. A Petrobras acaba de criar uma diretoria de governança. É suficiente? A criação de uma área de fiscalização e governança é uma das providências que o Departamento de Justiça exige de empresas atingidas por escândalos de corrupção. É o mínimo. Existe um manual sobre o que fazer para evitar novos episódios, com uma lista ampla de iniciativas e controles que devem ser adotados para reduzir as vulnerabilidades sobre as quais a corrupção viceja. É preciso aparelhar-se para evitar novos crimes. Não tenho dúvidas de que a Petrobras vai por esse caminho. A lei anticorrupção americana é considerada eficiente? É fato que as grandes companhias americanas têm um nível de transparência que não existia quando a lei entrou em vigor, há quase quatro décadas. Graças a ela, a iniciativa de se meter em negócios escusos raramente parte do topo da organização, mas de funcionários menos graduados, da área de vendas ou de escritórios regionais. As empresas refinaram os processos de controle, aprenderam a identificar mais rapidamente os desvios e desenvolveram mecanismos para coibi-los. A lei americana claramente estabeleceu um padrão. Casos como o da Alstom reverberam em todo o ambiente corporativo, fazendo com que executivos mal-intencionados avaliem, antes de se meterem em uma negociata, se seus ganhos superam os riscos de ser pegos. Quais as maiores fragilidades da lei americana contra a corrupção? Uma de suas limitações é permitir que o peso das multas recaia sobre os acionistas, já que o dinheiro sai do caixa da empresa, e não do bolso dos executivos culpados. Eles é que deveriam arcar com todas as consequências de seus atos. Outra questão emerge não da lei americana em si, mas de sua comparação com as dos demais países. Existe uma enorme disparidade entre as penas dadas nos Estados Unidos e as adotadas no resto do mundo. Vários países, é verdade, criaram leis mais parecidas com a nossa, que pune fortemente, mas não a ponto de quebrar empresas infratoras. As leis aqui nos Estados Unidos visam a coibir o crime, dando às empresas a chance de reformar seus procedimentos. A lei anticorrupção brasileira entrou em vigor no ano passado. Em geral, quanto tempo leva para que esse tipo de iniciativa comece a ter impacto? Não há resultados imediatos. Isso é um fato da vida nesses casos. A lei francesa precisou de uma década para se fazer sentir e provocar uma mudança positiva no ambiente de negócios. A rapidez da transformação no Brasil vai depender de como a lei será aplicada — se para todos ou de forma seletiva. Se valer só para poucos, de nada adiantará, e o resultado desastroso será a perda de respeito por parte da sociedade. Cabe à sociedade mobilizar-se. Parece ingénuo dizer isso, mas um dos fatores que mais impulsionaram a aplicação de leis anticorrupção em muitos países foi a sensação de cansaço, de intolerância da população com a repetição impune desse tipo de crime. A corrupção é um mal inevitável? Não vejo assim. O nível de corrupção na Ucrânia, por exemplo, é muito superior ao da Alemanha. Mas não acredito que os ucranianos sejam naturalmente mais corruptos que os alemães. Em qualquer lugar, muitas pessoas são tentadas a ganhar dinheiro de maneira ilegal. O grau de corrupção de um país, porém, dependerá das leis, da sua aplicação e da qualidade das instituições que zelam por elas. O fato de o Brasil ter atualmente casos graves e recorrentes de corrupção é reflexo da falta de uma legislação eficiente e, não se pode esconder, de uma certa cultura de leniência de parte substancial da sociedade. Que setores são mais expostos à corrupção? Há uma piada muito repetida entre advogados americanos que resume bem a questão. Perguntam a um famoso assaltante de bancos por que, afinal, ele se especializou em roubar bancos. Ele responde: porque é lá que o dinheiro está. Determinados setores da economia e certos tipos de negócio estão mais sujeitos à corrupção justamente por oferecer recompensas mais altas. De acordo com minha experiência, a indústria do petróleo, com seus lucros fabulosos, é um desses setores mais propensos a abrigar a corrupção. Nesse caso, por depender de concessões, autorizações e licenças do governo. O mesmo se passa com grandes projetos de infraestrutura patrocinados pelo Estado. Onde quer que haja somas vultosas trocando de mãos em negócios que envolvam o Estado e o setor privado, o risco de ocorrer corrupção será alto. Alguns de seus casos mais famosos acabaram em acordos, como aquele em que, depois de passar anos negando, o ciclista Lance Armstrong confessou ter se dopado. Como se chega à conclusão de que o melhor é capitular? Não posso falar sobre casos específicos como o de Lance, mas afirmo que essa nunca é uma decisão do advogado. O réu jamais vai agradecer ao encarregado de sua defesa por tê-lo convencido a se declarar culpado. Ele só o faz quando está preparado. É muito pessoal. Eu sempre informo sobre os riscos e exponho claramente as escolhas em jogo. Já houve ocasiões em que o cliente preferiu fazer acordo quando, por mim, eu teria levado o caso a julgamento. O senhor sabia que Lance Armstrong estava mentindo? De maneira alguma posso responder a essa pergunta. Posso dizer apenas que enfatizo aos clientes a necessidade de eles me contarem absolutamente tudo. O criminalista americano Edward Williams dizia: "Defendo meus clientes da culpa legal. O julgamento moral deixo para a majestosa vingança de Deus". Quais são os limites morais do advogado criminal? Depende de quem você é. Se aceito um caso, é claro que tenho o dever de defender integralmente os interesses do cliente. Nunca julgo meus clientes, mas sigo uma regra quando me pedem para fazer coisas com as quais não concordo ou quando alimentam expectativas de desfecho que não julgo razoáveis. Eu sugiro à pessoa ou à empresa que procure um profissional que possa atendê-la mais de acordo com suas pretensões. 1#4 MAÍLSON DA NÓBREGA – AS POUCAS CHANCES DE UMA REFORMA POLÍTICA A discussão sobre a reforma política voltou à tona. Dilma a citou no recente discurso de posse. Líderes políticos a secundaram. Sobre o tema, podem-se fazer quatro afirmações: 1) ela não é a "mãe de todas as reformas," como se diz; 2) não é possível mudar completamente o sistema político de um só lance; 3) não faz sentido um plebiscito para a reforma, como quer a presidente; 4) dificilmente sairão grandes mudanças no atual governo. A ideia da "mãe de todas as reformas" contém um pressuposto equivocado, o de que reformas como a tributária, a trabalhista e a previdenciária não saem por causa da fragmentação do sistema partidário, propenso ao fisiologismo e às negociações típicas do presidencialismo de coalizão (hoje mais de cooptação). A tese cai diante das reformas dos governos tucanos: na previdência, no sistema tributário e em normas para permitir a privatização nas áreas de telecomunicações e energia. Nos governos petistas, as alterações continuaram: a nova Lei de Falências, a reforma do Judiciário e a previdência privada dos servidores públicos. Em democracias, reformas políticas, especialmente as estruturais, não acontecem de uma só vez, principalmente se as mudanças aumentarem o risco de reeleição dos que devem aprová-las — os parlamentares —, salvo se houver pressão da opinião pública e liderança política, como ocorreu na Inglaterra no século XIX. As respectivas ideias circularam por mais de dois séculos até que amadurecessem e fossem demandadas em grandes movimentos de rua. Daí saiu a Grande Reforma de 1832. Vieram depois as reformas de 1867 e 1884. Foram extintos os "distritos podres" e se concedeu o direito de voto a todos os homens (às mulheres, somente em 1928). Reduziram-se injustiças, distorções e a corrupção. Gary Cox analisou as mudanças no livro The Efficient Secret (1987), cujo título se inspirou na mesma expressão de Walter Bagehot, editor-chefe da revista The Economist, dita em 1865. Significava governo de gabinete forte em um sistema de partidos. Por implicarem difíceis negociações, reformas políticas não podem ser feitas por plebiscitos, que compreendem respostas binárias — sim ou não — a questões de fácil entendimento, tais como escolher entre monarquia e república, presidencialismo e parlamentarismo, e semelhantes. Essas consultas não servem para temas como voto proporcional ou distrital (puro ou misto), formas de financiar campanhas e outros que não podem ser traduzidos em perguntas simples. Reformas políticas costumam ser lentas e incrementais. O Brasil confirma a experiência internacional e desmente a ideia de que o sistema político não se altera. Exemplos são o voto eletrônico, a perda de mandato na troca de partido e a Lei da Ficha Limpa. Para efetuar tais reformas, exigem-se forte liderança política e capacidade de articulação do chefe do governo e de outros atores de excepcional qualidade. Por isso, elas começam por temas menos complexos e insuscetíveis de recusa parlamentar. Nos anos 1990, em que existiam tais condições, surgiram a cláusula de barreira, para inibir a proliferação de partidos, e a proibição de coligações em eleições parlamentares, para reduzir muitas das distorções do sistema partidário. Infelizmente, o STF as considerou inconstitucionais — um grande equívoco, na visão de respeitados analistas políticos. Assim, o melhor seria voltar a discutir esses dois temas, que não enfrentam coalizões de veto poderosas. Os partidos nanicos, os perdedores, não reúnem força política para bloqueá-los. O ex-presidente Fernando Henrique sugeriu o voto distrital inicialmente restrito aos municípios. O valor dessa iniciativa está em permitir um teste sobre a validade do voto distrital e em evitar sua rejeição pela Câmara. Os deputados não se sentiriam ameaçados no legítimo interesse de renovar seus respectivos mandatos. Mesmo assim, reformas menos complexas não dispensam forte liderança no Executivo, no Legislativo e nos partidos. Tal ingrediente está infelizmente em falta neste momento. O mais provável, pois, é que a reforma política passe em branco no atual governo. Mais uma vez. Sua aprovação ficaria para próximos períodos. 1#5 LEITOR GOVERNO DILMA Todos os presidenciáveis em 2014, em consenso com os eleitores, confirmaram a necessidade de mudanças. A presidente Dilma Rousseff, como candidata, negou que tivessem de ser relevantes na área econômica, mas, eleita, nomeou o credenciado Joaquim Levy como ministro da Fazenda para executá-las, porém sem se associar a nenhuma providência que possa macular sua marqueteira aura de benemérita do social. Para isso puxou a orelha do ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, quando ele verbalizou sobre o salário mínimo. Resguarda-se assim de ser solidária com medidas impopulares que estão a se acumular no colo de Levy. Tão logo essas medidas restabeleçam a credibilidade no Brasil, e torcemos para que Levy tenha tempo para isso, ele será alijado por ter praticado os sacos de maldades. Na próxima eleição voltarão os enganadores sacos de bondades prometidos nas eleições de 2014. O plano de poder é usar os eficazes, embora amorais, ensinamentos de Maquiavel. Esperamos, para o bem do país, que seja abortado o último ato ("As promessas e a realidade", 21 de janeiro). CARLOS ANTONIO NOGUEIRA FILHO Rio de Janeiro, RJ Pelo menos desta vez foi bom Dilma não manter suas promessas de campanha, as quais eram amenas demais para estancar a sangria existente. Não há mágica: o Brasil precisa de medidas duras e austeras para sair do atoleiro em que se encontra. JULIANA PISETTA Foz do Iguaçu, PR As promessas versus a realidade da presidente Dilma eram de esperar. Estava evidente que aqueles discursos políticos faziam parte da incrível arte petista de ludibriar eleitores ignorantes para continuar no poder, disseminando os tentáculos da corrupção, corroendo as nossas economias, dizimando a credibilidade econômica do país e criando duvidosos e custosos ministérios para todos os companheiros e companheiras de "luta"... Era óbvio que a economia do país não aguentaria tamanho desaforo nos números maquiados que o governo petista insistia em demonstrar. Pensando bem, sorte de Aécio Neves de não ter pegado essa verdadeira bomba petista e dar motivos para o lado vermelho da força tripudiar sobre esse inevitável descalabro. ROBERTO TADASHI SHIHONMATSU Itupeva, SP A simbólica capa de VEJA, contrapondo azul a amarelo, ensina como ler o discurso da presidente Dilma — que fala a linguagem aprendida na cartilha do PT. ELIZIO NILO CALIMAN Brasília, DF Capa que merece nota 1000! Parabenizo VEJA por mostrar a verdade aos cegos! ROSI CAMPBELL Volta Redonda, RJ “A presidente Dilma está literalmente de cabeça pra baixo entre as promessas de campanha e a realidade no Brasil” RUDSON COELHO Fortaleza, CE REFINARIA DE PASADENA Diferentemente do que interpreta a reportagem "Só faltou absolver" (21 de janeiro), com base em e-mails trocados por diretor desta empresa e ex-diretor da Petrobras, a planejada reforma da refinaria de Pasadena não "seria da Odebrecht, por decisão dos empreiteiros". Em 2006, a Odebrecht foi procurada pela Petrobras para saber se tinha interesse em participar do processo de seleção de empresas que disputariam o projeto de modernização da refinaria, localizada nos Estados Unidos. A Odebrecht manifestou interesse de participar desse processo de seleção, que, como sempre ocorre na relação de décadas entre esta empresa e a Petrobras, seguiria as normas legais. A Odebrecht consultou outras empresas do setor para constituir um consórcio para disputar o projeto, para agregar competências e mitigar riscos, conforme prática de mercado em projetos públicos e privados. As demais construtoras não manifestaram interesse em participar da concorrência. A Petrobras acabou não dando prosseguimento ao projeto e nenhuma obra nesse sentido foi realizada à época. Portanto, a matéria está equivocada no modo em que foi apresentada. ZACCARIA JÚNIOR Diretor de Comunicação Odebrecht Engenharia Industrial São Paulo, SP AVI TUSCHMAN Ciência vai, ciência vem, e continuamos praticamente no mesmo barco. No século XVIII, Montesquieu, em O Espírito das Leis, sustentava que países de clima quente favoreciam a sujeição, quase fatal, de seus habitantes à escravidão e ao despotismo (modo de justificar, naquele momento, o domínio de uma região dita mais desenvolvida sobre outra, pré-civilizada). A explicação tinha evidente ranço biológico: o ar quente relaxa a extremidade das fibras do corpo por onde circula o sangue, convidando à lassidão e ao conformismo. Agora, como se vê na entrevista com o antropólogo americano Avi Tuschman ("A ideologia e os genes", 21 de janeiro), o conservadorismo e a tendência a posições políticas mais à direita são "fortemente relacionados a climas mais quentes". Terá esse antropólogo lido o pensador ilustrado francês e, ainda, Madame de Staël, que separava a literatura do norte da literatura do sul, afirmando que a primeira era superior pelo fato de ser aquela parte do globo a mais fria e penumbrosa, mais vocacionada, segundo seu entendimento, para o bom desempenho da imaginação criadora? Creio não ser inteligente dar ouvidos a pesquisas recentes que têm cheiro de naftalina antes de aprofundar a questão. Pode até ser muito perigoso isso. ROBERTO SARMENTO LIMA Maceió, AL REAÇÃO AO TERRORISMO A maior prova de que o atentado ao semanário Charlie Hebdo teve efeito inverso do pretendido aconteceu na França, no domingo 11. Em um encontro emocionante, no qual mais de 3 milhões de pessoas foram às ruas homenagear os mortos, o fundamentalismo e o extremismo pereceram ante a indignação europeia. Laços humanos se apertaram em torno de um ideal de liberdade, que, naquele solo revolucionário, parece brotar nos momentos mais difíceis. Em suma, não houve vingança do profeta. A satisfação em um plano espiritual jamais se completaria. Surgiu, sim, o manto da solidariedade pairando acima da república mais significativa da história, formada contra um regime ainda mais tirânico e conspirador. Apesar do massacre infligido aos cartunistas, é bonito observar que ainda existe esperança neste mundo. A civilidade venceu ("A Europa contra o mal", 21 de janeiro). GABRIEL BOCORNY Porto Alegre, RS Sou severo quando leio artigos sobre a temática árabe-islâmica, notoriamente pela minha ascendência. Surpreendi-me positivamente quando fiz a leitura da análise sobre os acontecimentos em Paris. VEJA foi contundente, profunda e claramente justa na abordagem, sem escorregar no apelo a estereótipos nem desmerecer os que mais sofrem com a mazela do terror — os próprios muçulmanos. MOHAMAD JEHAD ALI TAYEH São Leopoldo, RS Em tempos de intolerância e extremismos religiosos, os artigos especiais de VEJA sobre terrorismo foram muito oportunos. Mas me surpreendeu uma colocação feita no texto "O profeta da tolerância" (21 de janeiro). O autor atribui aos protestantes calvinistas a crença de que no mundo há pessoas "já escolhidas por Deus para ser salvas, por mais terríveis os crimes e pecados cometidos por elas", o que seria uma "camisa de força determinista". Sou protestante presbiteriana há décadas (ou seja, pertenço à tal "vertente calvinista" do protestantismo), bem como sou leitora de VEJA há décadas. Um leitor que desconheça o calvinismo terá, pelo que foi publicado, uma visão distorcida. Je suis Charlie, je suis calviniste... MÁRCIA MARIA R. DE R. PIRES Por e-mail LYA LUFT Belo o artigo "Também sou Charlie" (21 de janeiro), da escritora Lya Luft. Também sou pela liberdade de expressão, pelo livre pensamento, contra a omissão e o posicionamento pífio do governo brasileiro. MANOEL PAIVA Manaus (AM), via tablet JOÃO CARLOS MARTINS Embora esteja vivendo um momento mágico na minha vida aos 74 anos como maestro, pianista e educador, entendo e respeito a posição da revista VEJA na minha entrevista (Conversa, 14 de janeiro), sobre o meu erro de ter participado de uma campanha política há 25 anos. Essa é a função da imprensa livre. JOÃO CARLOS MARTINS São Pauto, SP Correções: * ao contrário do que consta na nota "Vida dura" (Radar, 21 de janeiro), a UTC não tinha contrato com a Pemex para a construção de uma plataforma de petróleo, * A foto publicada na reportagem ''É dele, sim'' (21 de janeiro) não é de Julio Camargo, mas de Augusto Ribeiro de Mendonça Neto. Ambos são executivos da Toyo Setal. * Lassan Bathily é malinês, e não malaio, como publicado na reportagem "A Europa contra o mal" (21 de janeiro). PARA SE CORRESPONDER COM A REDAÇÃO DE VEJA: as cartas para VEJA devem trazer a assinatura, o endereço, o número da cédula de identidade e o telefone do autor. Enviar para: Diretor de Redação. VEJA - Caixa Postal 11079 - CEP 05422-970 - São Paulo - SP: Fax: (11) 3037-5638; e-mail: veja@abril.com.br. Por motivos de espaço ou clareza, as cartas poderão ser publicadas resumidamente. Só poderão ser publicadas na edição imediatamente seguinte as cartas que chegarem à redação até a quarta-feira de cada semana. 1#6 BLOGOSFERA EDITADO POR KÁTIA PERIN kperin@abril.com.br DE NOVA YORK CAIO BLINDER BARACK OBAMA Obama quer cimentar um legado de populismo econômico como o presidente que não apenas tirou o país da recessão mas diminuiu a desigualdade de renda. Com isso, ele quer fixar os termos do debate político e ideológico com vistas às eleições de 2016, emplacando Hillary Clinton na Casa Branca. www.vejaabril.com.br/blog/nova-york BLOG REINALDO AZEVEDO DILMA SUMIU Cadê a presidente da República? Sumiu! Escafedeu-se! Tomou chá de sumiço. Quando é que um país mais precisa de líderes? Quando passa por um aperto. Para os momentos de festa, qualquer zé-mané serve. Com 21 dias de mandato, a presidente petista já pode disputar o recorde dos estelionatos eleitorais. E tudo se dá sem nenhuma explicação. Joaquim Levy que se vire. www.veja.abril.com.br/blog/reinaldo VEJA MERCADOS GERALDO SAMOR MÚSICA O Shazam, aplicativo que identifica a música que está tocando ao redor, acaba de levantar 30 milhões de dólares em um novo investimento que eleva a avaliação da empresa para 1 bilhão de dólares. Os recursos serão usados para entrar em novos mercados e adicionar outras funções à tecnologia do Shazam, que já tem mais de 100 milhões de usuários ativos. www.veja.abril.com.br/blog/mercados SOBRE IMAGENS 70 ANOS DE IWO JIMA Um dos eventos mais sangrentos e emblemáticos da II Guerra Mundial completará setenta anos em fevereiro: a Batalha de Iwo Jima. Foram 36 dias de luta e cerca de 30.000 mortos. (...) Quem cobriu a batalha pela revista Life foi o fotógrafo W. Eugene Smith, que mais tarde se tornaria um dos ícones da fotografia documental. www.veja.com/sobreimagens SOBRE IMAGENS PARA PEZAO, CALOR E "TORMENTA" Mesmo que um de seus sentidos figurados permita fazê-lo, usar "tormenta", uma palavra cuja primeira acepção é "tempestade violenta", em referência a uma situação de calor extremo e chuvas escassas soa no mínimo deslocado. Tão deslocado quanto, por exemplo, chamar-se Pezão um governador de Estado. IMPÁVIDO COLOSSO ENERGIA MUITO CARA O ranking que mede o custo da energia para a indústria, divulgado pela Firjan, mostra que o valor desse insumo no Brasil é de 402,26 reais por MWh, 46% superior à média internacional, de 275,74 reais por MWh. Em 2014, o Brasil ocupava a 11ª posição no ranking. Agora é o sexto, o que significa que a situação piorou. www.veja.abril.com.br/blog/impavido-colosso * Esta página é editada a partir dos textos publicados por blogueiros e colunistas de VEJA.com ________________________________________ 2# PANORAMA 28.1.15 2#1 IMAGEM DA SEMANA – EM NOME DOS PAIS 2#2 DATAS 2#3 CONVERSA COM MARÍLIA MORENO – SEGREDOS DO TAPETE VERMELHO 2#4 NÚMEROS 2#5 SOBEDESCE 2#6 RADAR 2#7 VEJA ESSA 2#1 IMAGEM DA SEMANA – EM NOME DOS PAIS A roda da vingança que envolve Israel, Hezbollah e Irã dá mais uma volta. O nome do menino pintado para a guerra é Ahmad e a mensagem escrita em seus olhos diz uma só palavra: vingança. E a vingança certamente virá. Ahmad é filho de Mohamad Issa, um dos mais importantes comandantes militares do Hezbollah, o misto de milícia e partido xiita do Líbano. Issa foi morto num ataque israelense, por helicóptero e drones, que fez um strike no alto alto-comando do Hezbollah e do Irã na Síria, cujo regime depende desses aliados estrangeiros para sobreviver. Estavam também no comboio de três veículos, perto da fronteira com Israel, o general iraniano Mohamed Ali Allahdadi e Jihad Mugniyeh, um rapaz com cara de nerd e missão inescapável: era filho de outra sumidade do terror, Imad Mugniyeh, morto em 2008, numa operação cirúrgica em Damasco, bem antes que a guerra civil na Síria colocasse tantos e tão importantes inimigos de Israel no mesmo lugar. Entre outros atentados, Mugniyeh pai é considerado o principal operador do carro-bomba contra uma associação judaica na Argentina. Seu filho caiu no mesmo dia em que aparecia morto em Buenos Aires o promotor que divulgava novidades bombásticas sobre o caso — a reportagem pode ser lida na página 52. O Hezbollah fez pelo menos vinte tentativas de vingar o assassinato de Mugniyeh. Acertou na vigésima primeira, em 2012, com uma bomba num ônibus turístico na Bulgária que matou cinco israelenses. Fontes israelenses deixaram discretamente saber que não contavam atingir um general iraniano no ataque — elemento-surpresa numa operação certamente precedida por vasta varredura de inteligência. Mergulhado na guerra na Síria, o Hezbollah talvez não tenha a opção de um ataque em grande escala contra Israel, mas a vingança está sendo preparada. É difícil imaginar que o menino da foto acima escape do eterno ciclo matar ou morrer, ou ambos. VILMA GRYZINSKI 2#2 DATAS MORRERAM Abdullah bin Abdul Aziz Al Saud, rei da Arábia Saudita, mantinha boas relações com os Estados Unidos, de quem era aliado na luta contra a Al Qaeda, e contestava a interpretação extremista do Islã para justificar atos terroristas. Ao mesmo tempo, acreditava que a democracia era perigosa. Filho de Ibn Saud, considerado fundador da moderna Arábia Saudita, ascendeu ao trono em 2005, mas comandava o país desde 1995, ano em que seu predecessor e irmão, Fahd, sofreu um AVC. Na Arábia Saudita, uma monarquia absolutista dona de um quinto das reservas de petróleo do mundo, é o rei quem cria leis e aponta ministros. Abdullah, contudo, recusava o tratamento de "vossa majestade", desencorajava os súditos a lhe beijar a mão e cortou subsídios dos mais de 7000 príncipes e princesas sauditas. Durante seu reinado, efetuou modestos avanços no que diz respeito às mulheres: permitiu que trabalhassem como caixa de supermercado, mas manteve a proibição de que dirigissem. Com a morte de Abdullah, que estava internado havia algumas semanas, em razão de uma infecção pulmonar, o poder passou para seu irmão Salman. Dia 22, aos 90 anos, na Arábia Saudita. Tony Verna, produtor americano de TV que inventou o replay instantâneo, marco decisivo na história da transmissão de partidas esportivas. A primeira rede a usar a tecnologia foi a CBS, em 7 de dezembro de 1963, durante um jogo de futebol americano entre militares da Marinha e do Exército dos EUA. Nascido em Filadélfia, Anthony Verna trabalhava, na ocasião, como diretor de televisão. Ele dizia que havia desenvolvido o replay — que resultou num equipamento de 590 quilos — com o intuito de preencher os intervalos entre as jogadas. Como a técnica era desconhecida, na primeira vez em que foi utilizada o narrador precisou alertar: "Isso não foi ao vivo! Senhoras e senhores, o Exército não marcou de novo!". Durante a carreira, Verna dirigiu transmissões de entrevistas com celebridades e megashows. Dia 18, aos 81 anos, de leucemia, na Califórnia. Robert Manzon, ex-piloto francês e último remanescente da primeira temporada de F1 (1950). Nasceu em Marselha, chegou à F1 pela Gordini e fez sua estreia em Mônaco. Também correu pela Rosier e pela Ferrari. Disputou 28 GPs e conquistou dois pódios, um na Bélgica (1952) e o outro na França (1954), ambos em terceiro lugar. Aposentou-se em 1956. Dia 19, aos 97 anos, de causa não divulgada, em Marselha. Ricardo dos Santos, surfista baleado por um PM na Guarda do Embaú (SC), onde nasceu. Promessa do esporte, ele teve um dos grandes momentos de sua carreira em 2012, quando eliminou Kelly Slater — onze vezes campeão mundial — numa das etapas da disputa, em Teahupoo, no Taiti. Na segunda 19, de acordo com testemunhas, Ricardo se desentendeu com Luiz Paulo Mota Brentano, que não quis tirar seu carro da frente da casa do atleta, como pedia seu avô, que lá fazia uma reforma. O PM, que havia consumido álcool, atirou duas vezes, atingindo o surfista nas costas e no abdômen. Brentano alegou legítima defesa, mas foi preso e pode ser expulso da corporação. No Instagram, Slater anotou: "Ricardo foi um dos maiores pegadores de tubo em sua curta vida. Eu e outros aprendemos muito com ele. Falta de educação, pobreza e drogas não fazem uma boa mistura e tornam a vida um desafio no país". Dia 20, aos 24 anos, em São José (SC). 2#3 CONVERSA COM MARÍLIA MORENO – SEGREDOS DO TAPETE VERMELHO A apresentadora paulista, que vai transmitir o Oscar para o canal Sony, conhece as festas de premiação pelo lado de dentro. "É preciso fugir das frases prontas como: 'Fazer esse filme foi uma experiência incrível'" Quais são os atores mais colaborativos? Colin Farrell fala bastante. Uma vez, disse que estava voltando do Brasil e me deu dois beijinhos. Jennifer Aniston agradece tudo e é pura gentileza. E os mal-humorados? Morgan Freeman é ríspido e levantou a voz para que eu me afastasse. Teve um caso com a neta da ex-mulher; não é tão gente boa. Ben Affleck é irônico, e vi Alec Baldwin dizer a uma repórter para reformular as perguntas. A negociação com os assessores dos artistas envolve que exigências? Cinco minutos de entrevista, com eles segurando placas atrás do ator com os números 3, 2, 1 minuto. O mais radical é ter de assinar um termo em que nos comprometemos a não abordar um tema polêmico. Com Kristen Stewart, por exemplo, eu não pude perguntar sobre a infidelidade dela e o fim do namoro com Robert Pattinson. Não vale a pena desobedecer? Não. O ator se levanta, deixa você falando sozinho, e meu canal será boicotado nos próximos lançamentos. Como não mostrar o empurra-empurra entre os repórteres para entrevistar os famosos? Os câmeras pegam só imagens bem focadas do entrevistado e levam uma escadinha para filmar tudo de cima. O meu truque é ficar amiga dos seguranças. Assim, consigo bons lugares quando não há demarcação prévia, como no Festival de Cannes. Você se intimida ao se arrumar para ficar perto das mulheres mais bem produzidas do mundo? Aqui nos Estados Unidos, dá para comprar vestidos lindos, usar e devolver em um mês. Fora isso, cubro eventos que ocorrem nos grandes hotéis de Los Angeles, em que as grifes presenteiam atores antes do Oscar. Sou bem pedinte e já ganhei presentes. Amizade com algum famoso? Sou modelo também, e a equipe do Leonardo DiCaprio sempre liga para minha agência para convidar todo o cast para o aniversário dele. Orlando Bloom e Nick Jones também adoram modelos. Há atores que levam modelos por contrato, já que são chegados a outras atividades? Sim. John Travolta, por exemplo, que já foi processado por homens por assédio, aparecia com várias modelos nos tempos da brilhantina, antes de se casar com Kelly Preston. 2#4 NÚMEROS 66 pontos, de 79% para 13%, caiu o percentual de executivos brasileiros que se dizem otimistas em relação à economia do país nos últimos quatro anos, segundo pesquisa do International Business Report da Grant Thornton, que entrevistou 10.000 profissionais em trinta países. 20 posições o Brasil perdeu no ranking do otimismo entre 2010 e 2014. Ocupa agora o 22º lugar, atrás de países como Polônia e Nigéria. 52% cresceu o otimismo global nesse período, na contramão da tendência brasileira. Na Índia, a líder do ranking, 98% dos empresários acreditam que a economia de seu país vai melhorar. 2#5 SOBEDESCE SOBE Sarampo - Com 670 casos registrados no ano passado no Ceará, o Brasil corre o risco de ver revogado seu status de região livre da doença, em vigor desde 2000. Empresas familiares - Companhias que carregam o "DNA do fundador" são, para os brasileiros, mais confiáveis do que as estatais, segundo pesquisa da consultoria Edelman. François Hollande - Depois dos atentados em Paris, a popularidade do presidente francês subiu 21 pontos, um recorde - que, no caso de Hollande, serviu apenas para tirá-lo do chão. DESCE Arena Pantanal - Seis meses após ter sediado quatro jogos da Copa, o estádio, que custou 570 milhões de reais aos cofres públicos, foi interditado por apresentar infiltrações, goteiras e problemas na rede elétrica. Cosméticos - Com o aumento do IPI para o setor, anunciado pelo governo na semana passada, eles poderão ficar até 25% mais caros . Itamaraty - O risco de apagão alcançou as embaixadas brasileiras. Com o orçamento reduzido à metade em relação a 2003, algumas estão há meses sem pagar a conta de luz. 2#6 RADAR LURO JARDIM ljardim@abril.com.br • CAMARÁ O "X" DO PROBLEMA Dilma Rousseff, Aloizio Mercadante, Pepe Vargas e Ricardo Berzoini se reuniram na semana passada no Palácio do Planalto para tratar de um dos temas que mais afligem o governo: a eleição para a presidência da Câmara. De acordo com relatos feitos a outros petistas, muito mais do que qualquer diferença ideológica ou antipatia pessoal, o que pesa mesmo no núcleo duro do governo contra Eduardo Cunha e a favor de Arlindo Chinaglia é o receio de que o peemedebista possa pôr em votação — ou liderar — um processo de impeachment contra Dilma. Cunha já mandou recados de que não agirá assim. Mas o Planalto não acredita. SEM TRADIÇÃO O governo tem oferecido mundos e fundos a deputados para aderirem a Arlindo Chinaglia e não embarcarem na canoa de Eduardo Cunha. O problema, diz um experiente peemedebista, é que este governo não tem tradição de pagar o que promete aos políticos, ao contrário de Cunha. • GOVERNO PRESENTE DE DILMA A nomeação de Giles Azevedo, ex-chefe de gabinete de Dilma Rousseff, para os conselhos de administração de Itaipu e Light engordará sua conta bancária em 29.000 reais por mês. • OPERAÇÃO LAVA-JATO CONVERSA A SÓS Ricardo Pessoa e Alberto Youssef tinham negócios em comum antes de ser presos na Lava-Jato - e nem está se referindo aqui àqueles em que o leitor pensou de imediato. Eles eram sócios, por exemplo, num hotel na Bahia. Talvez saudosos dos velhos tempos, o dono da UTC e o doleiro têm conversado. Um desses papos ocorreu na manhã da sexta-feira 16, numa sala da carceragem de Curitiba. Os empreiteiros estão todos numa ceia, têm horários iguais para tomar banho e sol. Youssef, não. Faz tudo separado. Não deveriam se encontrar. Mas sempre se dá um jeitinho para que se falem. MAIS UMA Além da Galvão, OAS e UTC, José Dirceu tinha contrato de consultoria com outra grande empreiteira. Mas como ela não tem executivo preso pela Lava-Jato, não teve o nome divulgado pelos procuradores que conseguiram quebrar o sigilo fiscal da empresa do ex-ministro. • OLIMPÍADA "SENHOR SOLUÇÃO" Edinho Silva, que deve ser anunciado como o novo diretor da Autoridade Pública Olímpica (APO), vem procurando empreiteiras responsáveis pela infraestrutura da Rio 2016 para acalmá-las. Ele garante que não precisam se preocupar: há dinheiro para as obras, e mesmo as envolvidas na Lava-Jato continuarão normalmente seu trabalho. Edinho conhece bem a turma. Foi o tesoureiro da campanha de Dilma Rousseff. • ECONOMIA QUASE UM BANCO A Península, a empresa de investimentos da família de Abílio Diniz, já tem 130 funcionários. INFERNO ASTRAL Enrolada na Lava-Jato, a Petrobras teve outra dor de cabeça neste início de ano. A Receita pediu a revogação da certidão negativa de débitos da estatal, que venceria em maio, por causa de uma dívida de 7 bilhões de reais. Por quatro dias a Petrobras ficou sem o documento. Somente com uma liminar, impetrada na Justiça do Rio no dia 14, a decisão foi revista. • LIVROS O MÉDIUM Com uma tiragem de 40.000 exemplares e escrita pela jornalista Ana Landi, será lançada em fevereiro a biografia do sucessor de Chico Xavier, o médium Divaldo Franco, um baiano de 87 anos que diz se comunicar com os espíritos desde os 4 anos, já psicografou 300 livros e adotou 700 crianças e jovens. • BRASIL OS INVISÍVEIS Após um imbróglio de dois anos, o Ministério da Defesa respondeu à CGU que não cabe à FAB registrar o nome dos passageiros que acompanham as autoridades em seus jatos. A Controladoria vinha cobrando do ministério o respaldo jurídico para que os nomes não fossem coletados. Para a Defesa, a FAB não tem poder para solicitar às autoridades quem são seus acompanhantes. Apenas elas próprias devem fazer essas listas. A CGU acatou o argumento antitransparência. Assim, na hipótese de algum acidente, nem adianta perguntar à FAB quem eram os passageiros. 2#7 VEJA ESSA EDITADO POR RINALDO GAMA “Sou a esnobada número do Oscar. Esse é o lado bom.” - JENNIFER ANISTON, atriz americana, fazendo piada, no programa de Ellen DeGeneres, com o fato de não ter sido indicada ao prêmio por sua atuação no filme Cate - Uma Razão para Viver, no qual interpreta uma mulher depressiva. “Os homens não estão preparados (como as mulheres) para discutir suas emoções.” - LEO JAIME, músico, ator e escritor, em O Estado de S. Paulo. “Meu segredo para uma vida longa foi ficar longe dos homens.” - JESSIE GALLAN, 109 anos, a mulher mais velha da Escócia, no jornal britânico Daily Mail. “Algumas pessoas acreditam que para ser bons católicos precisam ser como coelhos.” - PAPA FRANCISCO, ao defender a "paternidade responsável" em conversa com jornalistas durante o voo que o levou de Manila, nas Filipinas, para Roma. “Sinto alegria de ver tantas famílias numerosas, que acolhem tantas crianças, que são dons de Deus. Todo filho é uma bênção.” - PAPA FRANCISCO, já no Vaticano, procurando acalmar os segmentos conservadores, que criticaram sua fala anterior. “Deus proverá. Jamais faltará à Venezuela.” - NICOLÁS MADURO, presidente venezuelano, referindo-se à queda nos preços do petróleo — cuja venda representa quase 100% das divisas do país -, em discurso de prestação de contas à nação, transmitido pela TV. “O governo britânico é um dos que mais espionam seus cidadãos.” - TIM BERNERS-LEE, físico inglês, considerado o "pai da web", na BBC. “Se você é bem-sucedido, grande parte de suas ações já não deu certo.” - MARK ZUCKERBERG, CEO do Facebook, do qual é um dos criadores, em uma sessão de perguntas e respostas na própria rede social. “O futuro da internet é que ela vai desaparecer.” - ERIC SCHMIDT, presidente do Conselho do Google, garantindo, no Fórum Econômico de Davos, na Suíça, que a conectividade se tornará tão presente no dia a dia que a web passará despercebida. “Será importante para Marte ter uma rede de conexão global também.” - ELON MUSK, bilionário sul-africano, fundador da Tesla Motors, companhia de carros elétricos, ao anunciar, em entrevista à Bloomberg, um ambicioso projeto de internet espacial. “Se em uma quadrilha há um menor, ele sempre será responsabilizado pelos atos mais graves do grupo. Por que isso é feito? (...) Porque a punição não existe.” - YOUSSEF ABOU CHAHIN, chefe da Polícia Civil do Estado de São Paulo, ao defender, no diário espanhol El País, a redução da maioridade penal. “Nem Walt Disney poderia imaginar. A Petrobras reeditou Tio Patinhas. Paulo Roberto (Costa, ex-diretor de Abastecimento da empresa) literalmente nada em dinheiro!” - MARCUS PESTANA, deputado federal (PSDB-MG), ao comentar duas fotos da casa de Paulo Roberto publicadas pela Folha de S.Paulo: a de 2009, que mostra uma piscina, e a deste mês, em que ela aparece aterrada. O ex-diretor, envolvido no caso do petrolão, teria feito isso para esconder dinheiro no local. EPÍGRAFE DA SEMANA A pretexto dos reveses climáticos - que não acontecem por acaso - e suas danosas consequências, como as crises hídrica e energética. “Dada a causa, a natureza produz o efeito no modo mais breve em que pode ser produzido.” - LEONARDO DA VINCI, artista, engenheiro e cientista italiano (1452-1519). ___________________________________________ 3# BRASIL 28.1.15 3#1 DO PALÁCIO AO PETROLÃO 3#2 PRECISA DESENHAR? 3#1 DO PALÁCIO AO PETROLÃO O empresário era tão íntimo de Lula que tinha passe livre no Planalto. Rico, ele até hoje resolve os mais diversos problemas do ex-presidente e de sua família. Poderoso, ele agora também é investigado no escândalo da Petrobras RODRIGO RANGEL E ADRIANO CEOLIN Um dos grandes pecuaristas do país, José Carlos Bumlai conta que visualizou em sonho sua aproximação com Luiz Inácio Lula da Silva, quando ele era apenas aspirante à Presidência. Com a ajuda de um amigo comum, Bumlai conheceu o petista e o sonho se realizou. O pecuarista tornou-se íntimo de Lula. O sonho embutia uma profecia que ele só confidenciou a poucos: a aproximação renderia excelentes resultados para ambos. Assim foi. Lula chegou ao Planalto, e Bumlai, bom de negócios, bem-sucedido e rico, tornou-se fiel seguidor do presidente, resolvedor de problemas de toda espécie e, claro, receptador de dividendos que uma ligação tão estreita com o poder sempre proporciona. No governo, só duas pessoas entravam no gabinete presidencial sem bater na porta. Bumlai era uma delas. A outra, Marisa Letícia, mulher de Lula. O acesso livre foi formalizado em agosto de 2008. Certo dia, Bumlai chegou ao Planalto sem avisar. A equipe de segurança, seguindo o protocolo, barrou sua entrada. Foram-lhe exigidas cópia de sua carteira de identidade e informações mais precisas sobre o motivo da visita. O nome dele não constava da lista de pessoas que Lula receberia em audiência naquele dia. Bumlai foi impedido de entrar. Quando Lula soube do episódio, determinou ao Gabinete de Segurança Institucional que mandasse fazer um cartaz com foto, a ser mantido permanentemente na recepção, contendo um aviso incomum: "O sr. José Carlos Bumlai deverá ter prioridade de atendimento (...) em qualquer tempo e qualquer circunstância". Nenhum ministro, nenhum assessor, nenhum parente de Lula mereceu tal deferência. Discreto e eficiente no cumprimento das tarefas que recebia, o pecuarista foi ocupando espaços. A derrocada dos mensaleiros fez dele interlocutor direto do presidente com diversos setores no mundo empresarial. Bumlai foi encarregado de missões complexas — a montagem do consórcio de empresas que construiriam a usina de Belo Monte, uma obra orçada em 25 bilhões de reais, foi trabalho dele. Cumpriu-as com destreza. Sua influência cresceu a ponto de ele ser mais procurado para intermediar interesses no governo que a maioria dos ministros. O pecuarista, que nunca teve nenhuma função oficial, montou um gabinete num quarto de hotel a 2 quilômetros do Planalto, onde recebia empresários e lobistas que se enfileiravam para vê-lo. Em paralelo, exercia outra tarefa igualmente sensível: virou tutor dos negócios dos filhos do então presidente, em especial de Fábio Luís, o Lulinha. Desde 2005, sabia-se em Brasília que Bumlai também tinha delegação para tratar de interesses que envolvessem a Petrobras. Foi ele, por exemplo, um dos responsáveis por chancelar o nome do hoje notório Nestor Cerveró, um desconhecido funcionário da estatal, para o posto de diretor internacional da empresa. Em sua missão de conjugar interesses públicos e privados, Bumlai tinha seus parceiros diletos, aos quais dedicava atenção especial. Não demorou para que começassem a chegar ao governo queixas de empresários descontentes com "privilégios incompreensíveis" concedidos aos amigos do amigo do presidente. Uma das reclamações mais frequentes envolvia justamente a Petrobras e uma empreiteira pouco conhecida até então, a UTC, que de repente passou a assinar contratos milionários com a estatal, ao mesmo tempo em que surgia como uma grande doadora de campanhas, principalmente as do PT. Gigantes da construção civil apontavam Bumlai como responsável pelos "privilégios" que a UTC estava recebendo da Petrobras. Hoje, a escalada dos negócios da UTC é uma peça importante da Operação Lava-Jato, que está desvendando o ultrajante esquema de corrupção montado no coração da estatal para abastecer as contas bancárias de políticos e partidos. A cada depoimento, a cada busca, a cada prova que se encontra, aos poucos as peças vão se encaixando. A última revelação pode ser a chave do quebra-cabeça. Bumlai, o amigo íntimo do ex-presidente que tinha entrada livre ao Palácio do Planalto, está envolvido até o pescoço no escândalo de corrupção montado na Petrobras durante o governo petista. Bumlai, soube-se agora, ajudou a compor a teia de corrupção na estatal. As investigações da Polícia Federal o colocam como um dos responsáveis pelo acesso que o lobista Fernando Soares, o Fernando Baiano, desfrutava na Petrobras. Preso desde novembro, Baiano é mencionado como um dos principais operadores do esquema de propina na estatal. Era ele o responsável por distribuir a parte que cabia ao PMDB, partido que, junto com o PT e o PP, formava a trinca governista que assaltava os cofres da empresa. Em um dos depoimentos à Justiça, o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa revela o papel de relevo que Baiano exercia no esquema — a ponto de atuar dentro da própria Petrobras, viabilizando acordos e estabelecendo condições de negócios, mesmo sem nenhum vínculo funcional com a companhia. Paulo Roberto contou que coube a Fernando Baiano, por exemplo, alinhavar internamente na Petrobras a polêmica compra da refinaria de Pasadena, no Estado americano do Texas. A aquisição, que, segundo o Tribunal de Contas da União, resultou em um prejuízo de 792 milhões de dólares, teria rendido uma propina de "20 a 30 milhões de dólares" ao PMDB, a Fernando Baiano e a Cerveró, segundo Paulo Roberto. No mesmo depoimento, o ex-diretor confessou que ele próprio recebeu 1,5 milhão de dólares apenas para que não criasse obstáculos ao negócio. Ao apontar as fontes da impressionante influência de Fernando Baiano na Petrobras, Paulo Roberto citou, com nome e sobrenome completo, o amigo de Lula: José Carlos Costa Marques Bumlai. Não é a primeira vez que Bumlai aparece vinculado a tramóias relacionadas à Petrobras. Em depoimento prestado ao Ministério Público em 2012, Marcos Valério, operador do mensalão, relatou um caso revelador. Segundo ele, um empresário ameaçava dizer que Lula e os ex-ministros José Dirceu e Gilberto Carvalho estavam por trás do assassinato do prefeito de Santo André (SP) Celso Daniel, crime ocorrido em 2002. O silêncio do chantagista, de acordo com Marcos Valério, foi comprado com 6 milhões de reais. Quem articulou toda a operação? Ele, Bumlai, que levantou o dinheiro necessário para calar a boca do empresário inconformado junto a uma empreiteira que prestava serviços à Petrobras — a fonte do dinheiro sujo era sempre o generoso cofre da estatal. Na semana passada, uma reportagem do Jornal Nacional, da Rede Globo, mostrou que três das empreiteiras mencionadas na Lava-Jato pagaram 4 milhões de reais por "consultorias" ao mensaleiro José Dirceu. Os contratos, segundo o dono de uma delas revelou a VEJA, foram assinados a pedido de João Vaccari, tesoureiro do PT. Quando estava prestes a deixar o governo, foi a Bumlai que o ex-presidente confiou a tarefa de cuidar do projeto do Instituto Lula — e isso incluía desde a preparação das instalações físicas até a engenharia financeira para bancar as contas da entidade. Bumlai arregimentou mantenedoras de peso para o instituto, entre elas a Odebrecht, a OAS e a Andrade Gutierrez — todas investigadas na Lava-Jato. Há outras histórias, até paroquiais, que ilustram a proximidade entre Lula e Bumlai. O restaurante onde o ex-presidente fez as primeiras reuniões para a criação do PT em São Bernardo do Campo estava afundado em dívidas. Corria o risco de fechar as portas. Laerte Demarchi, o proprietário, pediu ajuda a Lula. Diz ele: "Lula me apresentou um amigo, que pagou a dívida pra mim. Em troca, dei a ele alguns terrenos". Quem era o amigo? Bumlai. Sempre ele. Procurado por VEJA para explicar suas ligações com Baiano, Cerveró e a Petrobras, o amigão de Lula se recusou a falar. Quem sabe ele anda sonhando com alguma outra possibilidade de aproximação que embuta uma profecia de mútuo sucesso financeiro. CHEFE DO CLUBE NEGOCIA DELAÇÃO Apontado como líder do cartel de empresas que pagou propinas à Petrobras em troca de vantagens nos contratos, o dono da UTC, Ricardo Pessoa, negocia um acordo de delação premiada com o Ministério Público Federal. O empreiteiro já se reuniu ao menos três vezes com seus advogados para tratar do assunto. Uma das reuniões contou com a presença de procuradores que cuidam do caso. Pessoa, até há pouco, era o principal defensor da manutenção do "pacto de silêncio" entre os executivos presos. Há três semanas, VEJA publicou uma série de anotações feitas por ele na cadeia. Os textos deixam claro que o empreiteiro se sente abandonado e trazem ameaças veladas a parlamentares e ao tesoureiro do PT, Edinho Silva, além de sugerirem que o dinheiro do petrolão financiou a campanha para a reeleição da presidente Dilma Rousseff. Episódios como esses, acrescidos das frequentes e longas saídas de Pessoa da carceragem para encontrar advogados nas duas últimas semanas, despertaram a suspeita, e a ira, de companheiros de cela. "Ele pensa que todo mundo aqui é idiota e ninguém sabe o que ele está fazendo", disse o vice-presidente da Engevix, Gerson Almada, a Eduardo Leite, vice-presidente da Camargo Corrêa, em uma conversa na semana passada — os dois dividem cela com Pessoa. Gerson Almada avalia que perde duplamente se Pessoa fechar um acordo de delação com a Justiça: primeiro, porque, como os demais executivos presos, correrá o risco de ser exposto pelo colega. Depois, porque verá diminuídas as chances de fazer o mesmo, uma vez que, afirma, tem menos informação a oferecer aos procuradores do que o "chefe do clube do bilhão", como Pessoa ficou conhecido. Esse raciocínio ajuda a entender por que, na semana passada, Almada veio a público apontar o dedo para os políticos que se locupletaram do petrolão. Em documento entregue à Justiça Federal por sua defesa, o vice-presidente da Engevix diz que, se os em empresários cometeram crimes, não o fizeram "por vontade", mas porque foram forçados a adaptar-se a um esquema que, em última instância, serviu para bancar o "custo alto das campanhas eleitorais" e financiar a compra do apoio de parlamentares no Congresso pelo governo do PT. Ao colocar o governo no centro do escândalo, Almada avança na direção já trilhada por outros executivos: tenta evitar que a bomba do petrolão estoure no colo dos empresários e de meia dúzia de funcionários da Petrobras e pavimenta o caminho para os advogados que ainda não desistiram de tirar o caso das mãos do juiz federal Sérgio Moro — a tese de que os crimes dos empresários estão imbricados com os cometidos por gente com foro privilegiado poderia forçar a transferência do caso para o STF. ALEXANDRE HISAYASU E BELA MEGALE 3#2 PRECISA DESENHAR? O Tribunal de Contas da União arquiva investigação sobre um ministro que atuava como informante do Palácio do Planalto. O motivo é inacreditável: as provas "sumiram”. ROBSON BONIN E HUGO MARQUES Em setembro do ano passado, VEJA revelou um conjunto de mensagens eletrônicas que mostravam o ministro do Tribunal de Contas da União Walton Alencar subvertendo os preceitos mais sagrados da corte. Nomeado para fiscalizar as ações do Poder Executivo, ele atuava como informante do governo, confidenciando detalhes sobre processos sigilosos, antecipando movimentos, fornecendo informações. Seu contato mais frequente era com a então secretária executiva da Casa Civil, Erenice Guerra, braço-direito de Dilma Rousseff na pasta. Havia reciprocidade. Ao mesmo tempo em que fazia agrados, o ministro articulava com o Planalto a nomeação de sua mulher, a ministra Isabel Galotti, para o Superior Tribunal de Justiça (STJ). A promiscuidade dessas relações causou profundo desconforto no tribunal. Então corregedor do TCU, o ministro Aroldo Cedraz foi rápido ao abrir uma investigação sobre o colega e prometeu apurar o caso. A disposição do corregedor durou pouco. Na semana passada, o tribunal, agora presidido pelo próprio Cedraz, divulgou o resultado do processo. O desfecho do caso não poderia ser mais constrangedor para a corte. Apesar de contar com dezenas de técnicos especializados em rastrear falcatruas na administração pública, o TCU arquivou o procedimento simplesmente porque não conseguiu localizar as mensagens que demonstram a troca de favores entre Walton e a Casa Civil. Nos cinco meses de apuração, o corregedor Cedraz limitou-se a despachar um ofício ao Ministério da Justiça, requisitando cópia dos documentos publicados por VEJA. Como o ministro José Eduardo Cardozo levou três meses para responder ao TCU que não havia localizado as provas em questão, Cedraz concluiu que nada mais poderia ser feito e, para a alegria do colega Walton, deu o assunto por encerrado. Trocadas durante o segundo mandato do presidente Lula, período em que Walton chegou a presidir o TCU, as mensagens mostram como era diversificado o escambo no gabinete do ministro. No esforço para concretizar o projeto pessoal de fazer sua mulher ministra do STJ, ele também antecipava decisões em processos, dava conselhos informais aos advogados do PT e ainda dificultava o trabalho da oposição, que, sem saber da sua dupla atividade, procurava o TCU para auxiliá-la em investigações contra o governo. Nas mensagens, o ministro chegava a pedir orientações a Erenice Guerra sobre como realizar o lobby com o presidente Lula para nomear sua mulher: "Devo entrar no cone de sombra? Devo procurar mais apoios? Quem? Ministros do STF, por exemplo?" — e fazia questão de registrar sua gratidão ao apoio da mulher mais importante do governo: "Não tenho palavras para a ministra Dilma! Ela aguentou tudo sozinha. Eu sei bem a quem devo por estar no jogo. Mas um pouco mais de respaldo não faz mal". Tratado com a devida seriedade, o caso Walton deveria levar o TCU a realizar um profundo processo de depuração institucional: afinal, o fisiologismo é uma chaga antiga do tribunal. O ministro-espião, no entanto, nem chegou a ser importunado pelos seus pares, por uma razão elementar — as evidências do crime não foram encontradas. Aos interessados em desvendar o mistério, eis uma pista: as mensagens que o TCU demorou cinco meses para "tentar" descobrir, e o Ministério da Justiça também não conseguiu localizar, podem ser encontradas e lidas no inquérito nº 1352, aberto pela Polícia Federal para investigar denúncias de tráfico de influência na Casa Civil durante a gestão de Erenice Guerra, que substituiu Dilma Rousseff em 2010. São centenas de e-mails comprometedores. Uma última dica para facilitar o trabalho: depois de acessar o inquérito, é preciso digitar o nome "Walton" no campo de busca. Simples, né? __________________________________________ 4# ECONOMIA 28.1.15 4#1 REALISMO SEM MÁGICA 4#2 LÁ, A AMEAÇA É DE DEFLAÇÃO 4#1 REALISMO SEM MÁGICA Levy apresenta pacotinho para aumentar os impostos e reconhece que a economia deverá sofrer uma retração, mas afirma que o aperto é necessário para atrair os investimentos. ANA LUIZA DALTRO Na sempre lembrada formulação do florentino Nicolau Maquiavel, em O Príncipe (1532), o mal deve ser feito de uma vez, enquanto o bem deve ser feito aos poucos. Em seus primeiros quatro anos, Dilma Rousseff ousou fazer o contrário. Vendeu a felicidade dos juros baixos, da energia abundante e barata, dos programas sociais infinitos. Entretanto, como definiu a ex-premiê britânica Margaret Thatcher, morta em 2013, "o socialismo dura enquanto o dinheiro dos outros não acaba". O dinheiro acabou. O governo passa por dificuldades para honrar alguns de seus compromissos, como demonstra a penúria das representações diplomáticas brasileiras. Fornecedores do governo também se queixam do atraso no pagamento de despesas. Para pôr as finanças no lugar, o novo ministro da Fazenda, Joaquim Levy, vem seguindo o ensinamento de Maquiavel. Decidiu fazer as maldades às claras, sem meias palavras. Na segunda-feira foram anunciadas novas medidas destinadas a arrecadar mais impostos e reverter o desequilíbrio no Orçamento. São elas: a volta da contribuição de intervenção no domínio econômico (Cide) sobre os combustíveis (que estava zerada e agora passou para 22 centavos no caso da gasolina e 15 centavos no caso do diesel, o que deve gerar uma receita extra de 14 bilhões de reais por ano), o aumento do imposto sobre operações financeiras (IOF) nas operações de crédito (que vai passar a somar ao 0,38% estabelecido com o fim da CPMF uma alíquota de 3%, em vez da anterior, de 1,5%, resultando em um ganho de 8,3 bilhões anuais), o aumento do PIS/Cofins sobre produtos importados (que passará de 9,25% para 11,75%) e do imposto sobre produtos industrializados (IPI) sobre cosméticos. O pacotinho soma-se aos cortes nos gastos dos ministérios que já haviam sido anunciados, a mudanças de regras de benefícios sociais como o seguro-desemprego, ao retorno da cobrança de IPI sobre automóveis e itens de linha branca e à não correção da tabela que estabelece as diferentes faixas de tributação do imposto de renda. A atuação de Levy, em seus primeiros dias, recuperou parte da credibilidade perdida pelo país nos últimos anos. Seu antecessor, um panglossiano incorrigível, sempre dizia que a retomada já estaria a caminho, e o Brasil inevitavelmente cresceria 4%, ou até 5%. O mundo real, tristemente, desmentia o ministro. Levy, ao contrário, despejou sinceridade na semana passada. Afirmou que o país poderá ter uma recessão no início do ano e o crescimento em 2015 será próximo de zero. Lembrou, contudo, que os ajustes são vitais para a retomada. "A prioridade hoje é fiscal", disse ele, em Davos, na Suíça, onde participa de um encontro empresarial. "Quando o país está fiscalmente estável, as coisas funcionam muito melhor, o custo baixa. Na hora em que estiver tudo no seu devido lugar, as pessoas vão retomar as decisões de investimento. Esse é o caminho para retomar o crescimento." Levy afirmou que não assumiu o cargo para fazer "remendos". Para ele, mais importante do que o cenário atualmente negativo e as preocupações com uma recessão agora é preparar o terreno para que o país tenha um desempenho sólido, com aumento da produtividade mais para a frente. O ministro ganhou elogios da diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), a francesa Christine Lagarde, que o qualificou de "competente" e "com credibilidade". Ela lembrou também que o economista trabalhou em um cargo técnico na instituição nos anos 90. As vozes críticas a Levy têm vindo, como era de esperar, do PT. O ex-ministro José Dirceu e a Fundação Perseu Abramo, ligada ao partido, criticaram a política económica. Dirceu advertiu que o Brasil caminha para uma recessão (que, ele não mencionou, foi gestada pela equipe anterior), e o instituto afirmou em nota que as medidas recentes podem afetar as conquistas sociais. Já Alberto Cantalice, vice-presidente do PT, afirmou, pelo Twitter, que a correção da tabela do imposto de renda em 4,5%, e não em 6,5%, "foi um erro". Também não se sabe, até o momento, qual é a avaliação da presidente Dilma sobre as medidas. Desde a posse, ela permanece calada. 4#2 LÁ, A AMEAÇA É DE DEFLAÇÃO Europeus temem a queda de preços e vão colocar 1 trilhão de euros na economia. Em julho de 2012, quando o futuro da moeda única do bloco econômico mais rico do planeta era severamente questionado e posto à prova, o presidente do Banco Central Europeu (BCE), o romano Mário Draghi, fez uma declaração enfática: "Faremos o que for necessário para preservar o euro". O discurso comprovou a determinação europeia de ir adiante com a integração monetária, a despeito de toda a especulação em contrário. Desde então, diversos países fizeram ajustes e, com o amparo do BCE, os dias mais nublados da recessão ficaram para trás. Ainda assim, alguns integrantes do bloco de dezenove países ainda não superaram a crise integralmente, e a estagnação preocupa as autoridades. Na semana passada, Draghi, apelidado de Super Mário, deu mais uma vez provas da disposição de fazer o que for preciso para estimular a retomada. O BCE anunciou que vai colocar 60 bilhões de euros ao mês na economia, por meio da compra de títulos, podendo totalizar 1 trilhão de euros. Em termos práticos, o BCE resgata os papéis de dívidas e assim faz circular mais dinheiro. A ação enfraqueceu imediatamente a cotação do euro, que, na comparação com o dólar, recuou para 1,12, o menor preço em onze anos. A desvalorização, entre outros efeitos, incentiva as exportações europeias. A zona do euro repete, com certo atraso, a estratégia usada pelos Estados Unidos anteriormente, conhecida pelo nome em inglês quantitative easing, ou QE. A Alemanha se opunha a essa ação, por entender que poderia servir de estímulo ao adiamento de reformas. No final, cedeu. A maior preocupação dos europeus é o risco de deflação, em uma situação semelhante à que pragueja a economia japonesa há duas décadas. A meta do BCE é manter a inflação em 2% ao ano, mas o índice está próximo de zero. Pode parecer extraordinário viver em uma economia com queda de preços, mas esse é um sintoma de apuros. Significa que as pessoas postergaram as suas compras, com impacto negativo sobre o crescimento. Para as empresas, isso representa um aperto nas suas margens de lucro, podendo levar a demissões e queda nos investimentos. Por fim, a deflação dificulta o pagamento de dívidas, cujo vencimento não diminui, ao contrário do fluxo de caixa. Draghi sabe que a emissão de euros pode dar um impulso de curto prazo, porém a política monetária, por si só, é incapaz de promover o crescimento. "Para uma retomada, precisamos de mais investimentos", disse. "Para termos investimentos, precisamos de confiança, e, para termos mais confiança, precisamos de reformas estruturais." _________________________________________ 5# INTERNACIONAL 28.1.15 UM MISTÉRIO PERTURBADOR Suicídio ou não, a morte do procurador que denunciou Cristina Kirchner é desastrosa para a já decadente democracia argentina NATHALIA WATKINS, DE BUENOS AIRES O ano de 2015, o último de seu mandato, não começou bem para Cristina Kirchner, presidente da Argentina. Ter de se locomover em uma cadeira de rodas por causa de uma fratura no pé é sua agrura menos grave. Muito pior foi ter sido acusada de ceder a interesses externos para trair a Justiça e os cidadãos do próprio país. E, se não bastasse, ter de se colocar duplamente na defensiva depois de o acusador aparecer morto em circunstâncias misteriosas. A primeira parte do problema consiste na denúncia formal feita pelo procurador Alberto Nisman. O texto apresentado à Justiça diz que Cristina chefiou um plano com o Irã para acobertar os autores do atentado à organização judaica Amia, que deixou 85 mortos e centenas de feridos em Buenos Aires, em 1994. A segunda surtiu o efeito de uma hecatombe na Casa Rosada, cinco dias depois, no domingo 18, quando Nisman foi encontrado morto no chão do banheiro de seu apartamento, sobre uma enorme poça de sangue. Ele estava de camiseta e cueca e seu corpo obstruía a porta parcialmente pelo lado de dentro. À sua direita, uma pistola Bersa calibre 22. Segundo a perícia, o disparo foi feito a menos de 1 centímetro da têmpora e o dedo estava na posição de gatilho. Cristina teve pressa em apontar a tese de suicídio, como se fosse função de uma presidente brincar de detetive. Enquanto o corpo de Nisman ainda estava na mesa do legista. Cristina dedicou-se a postar suas teses no Facebook, dando como certo o suicídio e especulando sobre os motivos, que envolveriam uma mirabolante trama com participação do jornal Clarín e inspirada na reação aos recentes atentados terroristas em Paris. Nenhuma palavra de condolência à família. À medida que as investigações trouxeram novos dados (não foram encontrados vestígios do disparo na mão de Nisman; a porta de serviço estava destrancada; havia uma pegada e impressões digitais recentes em uma passagem que leva ao apartamento; quando seus seguranças deram por sua falta e tentaram contatá-lo por telefone, ele ainda estava vivo, mas assim mesmo levaram horas para procurá-lo em seu apartamento), a presidente mudou sua versão e passou a falar em assassinato, cometido com o intuito de prejudicá-la. "A verdadeira operação contra o governo era a morte do procurador depois de acusar a presidente", escreveu Cristina. Os investigadores do caso estão deparando com tantos fatos estranhos e havia tantos interessados em silenciar Nisman que qualquer conclusão é precipitada. Sete em cada dez argentinos acreditam na versão de assassinato. Na semana passada, manifestantes nas ruas empunhavam cartazes com as frases "Cristina assassina" e "Eu sou Nisman". Entre os amigos, os colegas de trabalho e os familiares, não há quem aceite a hipótese de que Nisman tenha se matado. VEJA falou com quatro pessoas que entraram em contato com o procurador um dia antes de sua morte. Para o vice-presidente da Delegação de Associações Israelitas Argentinas (Daia), Waldo Wolff, Nisman enviou por celular uma foto de sua mesa de trabalho, com documentos e marca-textos. No contato com uma funcionária, comentou sobre a última capa da revista Notícias, que retratou sua bravura. Com a deputada Patrícia Bullrich, de oposição, combinou os detalhes da sua chegada ao Congresso na segunda-feira, às 15 horas. Lá, a portas fechadas, ele apresentaria suas denúncias, dando evidências e o nome de todos os envolvidos. Nisman e Patrícia falaram sobre a vaga na garagem e a sala que seria reservada para a reunião. "Nos dias anteriores, ele me escreveu 'vou com provas fortes' e 'vou com tudo'". Uma pessoa que se manifesta assim, tão comprometido e com tanta clareza, poderia pensar em se matar? Definitivamente, não", diz outra deputada, Laura Alonso. Nisman também deixou uma lista de compras para a empregada, que viria na segunda-feira. Tinha ainda uma reunião e uma entrevista com um veículo de imprensa agendadas para terça-feira, e fez planos de exercícios físicos com seu personal trainer. Ele não agiu como se o dia 18 de janeiro fosse seu último. Nisman estava acostumado a trabalhar sob pressão e há anos convivia com ameaças de morte. Ele começou a cuidar exclusivamente da investigação da Amia em 2004, designado pelo então presidente Néstor Kirchner. Dois anos depois, apontou como culpados do atentado o Irã e seu braço operacional, o grupo xiita libanês Hezbollah. Em 2007, a Justiça argentina solicitou à Interpol um mandado de captura de cinco iranianos e um libanês. Entre eles estava Mohsen Rabbani, que pregava em uma mesquita xiita de Buenos Aires e estava foragido no Irã. Néstor Kirchner recusava qualquer aproximação diplomática com o país. Após a morte do marido, em 2010, Cristina, já presidente, mudou a orientação e enviou seu chanceler Héctor Timerman para um encontro secreto com altos funcionários iranianos em Aleppo, na Síria, em 2011. Lá, ficou acertado que 'a Argentina exportaria grãos para o Irã e importaria petróleo. Além disso, as ordens de prisão dos cinco iranianos seriam canceladas e os dois países se comprometeriam a seguir com as investigações sobre o atentado, em conjunto. Esse acordo, que na prática garantiria a impunidade dos culpados, foi formalizado em 2013, em um Memorando de Entendimento. Segundo Nisman, as tratativas que culminaram nesse documento foram feitas à margem da diplomacia formal e envolveram personagens como Luis D'Elia, um sindicalista kirchnerista, Ramón Allan Héctor Bogado, um agente de inteligência que dava expediente na Casa Rosada, e Jorge Khalil, um membro da comunidade iraniana em Buenos Aires que recebia ordens diretas de Rabbani, o mentor da explosão de 1994. O telefone de Khalil foi grampeado, com autorização judicial, por Nisman. São 5000 horas de gravação, arquivadas em 961 CDs. Entre os envolvidos na trama para fraudar as investigações do atentado, segundo Nisman, estão o deputado Andrés Larroque, secretário-geral do La Cámpora, um grupo de jovens cristinistas, o ex-secretário da Presidência e atual chefe da inteligência Oscar Parrilli e o chanceler Timerman. Segundo uma pesquisa de opinião divulgada na semana passada pela consultoria Management & Fit, só 12% dos argentinos consideram que a denúncia de Nisman é falsa, uma porcentagem que representa a metade dos que aprovam seu governo. E 84% acham que a morte do procurador afetará a imagem da presidente. Eis por que, depois de desistir da hipótese de suicídio, Cristina e seus apoiadores trataram de construir uma tese e encontrar um culpado para o crime, ao mesmo tempo em que se esforçaram para desqualificar a vítima e seu trabalho. "Não tenho provas, mas tampouco tenho dúvidas", escreveu Cristina novamente no Facebook. A insinuação governista é de que por trás da morte de Nisman estaria Antonio Jaime Stiuso, que foi um dos principais agentes da Secretaria de Inteligência (SI). O procurador teria se baseado demais em informações falsas fornecidas a Stiuso. Entre outros erros, segundo o governo, está a afirmação de que Allan é um agente da SI. Isso é difícil de contestar. Apesar de o Executivo ser em última instância responsável pela SI, seus 2000 integrantes agem sem muito controle e nem todos são funcionários regulares. Stiuso foi demitido há um mês por Cristina, fato agora usado para construir a narrativa de que ele tinha motivos para se vingar da presidente. Não vai ser fácil convencer os argentinos de que o governo é uma vítima do caso Nisman. O dia da morte do procurador foi recheado de fatos que podem ser interpretados como tentativas de livrar o próprio governo de suspeitas. Apenas um exemplo: por que o secretário de Segurança Sérgio Berni, homem de confiança de Cristina, chegou ao local do crime antes do juiz e dos legistas? Na Argentina, a realidade pode ser mais assombrosa do que a mais espetacular teoria conspiratória. A CONSPIRAÇÃO BUENOS AIRES-TEERÃ Na denúncia enviada à Justiça dias antes de morrer, o procurador Alberto Nisman citou grampos telefônicos que mostram uma diplomacia paralela montada pela Casa Rosada para fazer negócios com o Irã em troca da inocência dos autores — iranianos — do atentado de 1994 em Buenos Aire. OS PERSONAGENS Jorge Alejandro "Yussuf" Khalil - Argentino, secretário-geral de uma mesquita xiita em Buenos Aires, trabalhou com Rabbani e se apresentava como um interlocutor da embaixada iraniana na cidade. Fernando Esteche - Líder de um grupo de piqueteros, militantes que fazem manifestações, às vezes violentas, contra opositores do governo. Luís D’Elía - Sindicalista kirchnerista, viajou várias vezes para o Irã e se encontrou com dois dos autores do atentado à Amia. Ele se declara "um soldado" do governo. Mohsen Rabbani - Ex-xeque da mesquita Tauhíd, em Buenos Aires, foi o mentor do atentado à Amia, em 1994. Procurado pela Interpol, vive foragido no Irã. Héctor Timerman - Ministro das Relações Exteriores da Argentina, foi apontado por Nisman como o principal operador do acordo de impunidade com o Irã. Júlio de Vido - Ministro de Planejamento argentino, começou a negociar um acordo comercial com o Irã a pedido da presidente Cristina Kirchner. Ramón Allan Héctor Bogado - Espião que trabalhava na sede da Presidência argentina, foi encarregado de criar pistas falsas no caso Amia, para atrapalhar as investigações. OS GRAMPOS 18 de dezembro de 2012 Esteche sugere a Khalil criar uma nova hipótese sobre o atentado que apontasse para um culpado local, já que ninguém acreditaria em uma conspiração israelense para incriminar o Irã. Esteche: O novo responsável da Amia, por exemplo, é uma necessidade que tem de ser construída. Vão querer construir o consenso disso. Não poderão dizer que foram os israelenses. 20 de maio de 2013 Khalil e D'Elía falam sobre a ratificação do Memorando de Entendimento, cuja função, segundo Nisman, era encobrir a autoria do atentado. D'Elía diz que uma reunião com De Vido foi feita a mando da presidente. Khalil se queixa de que Timerman não conseguiu reverter a ordem de prisão contra os iranianos. D’Elía: E a reunião foi porque a chefa pediu, hein! Khalil: Bom. D’Elía: Estamos no mais alto nível. Khalil: Quer dizer que estamos bem. D’Elía: Sim, sim, bem... agora, se não aprovam esse memo, vamos passar por otários lá, viu? (...) Khalil: Eles (os parlamentares iranianos) vão aprovar Luis, você sabe como é o ritmo na Pérsia e também que as lógicas que não acontecem, ou seja... De Vido tem de saber que Timerman não cumpriu algumas coisas, isso é claro, não cumpriu algumas coisas... 20 de maio de 2013 Khalil informa Rabbani sobre o andamento das negociações com os argentinos. Rabbani, do Irã, avalia tudo e, dias depois, conta a Khalil do interesse em comprar armas da Argentina. Khalil: Hoje terminamos uma reunião com o ministro de Planejamento, Júlio de Vido, que se mostrou disposto a mandar às máximas autoridades da (estatal petrolífera) YPF para combinar com a República Islâmica e a transação pode ser por meio de grãos e de outras coisas. Rabbani: Mande-me para que eu possa avaliar. Khalil: Te mando por e-mail, bem sério, como foi a conversa e você avalia. Oito dias depois Rabbani: Aqui há alguns setores do governo que me disseram que estão prontos para vender petróleo para a Argentina, vender tratores e também comprar armas. 7 de outubro de 2013 Allan demonstra ter acesso direto à presidente e passa informações médicas sobre ela em primeira mão ao agente do Irã. Allan: Tem um coágulo, sabe, é quase certo que vão operá-la... Ela se deu conta no sábado quando começou a fazer ginástica. Khalil: Ela está mal? Allan: Começou uma coce... Sabe quando fica com a mão dormente? Que dá uma coceira? E pensaram que era do coração e ficaram com c... (com medo,)! Bom, daí fizeram um exame dentro do sistema médico da Quinta (de Olivos, residência oficial), deram-lhe coagulante, que é muito bom, isso interrompeu o dano, entende? Khalil: Agora parece que estão levando, agora neste momento, estão levando ela ao (Hospital) Favaloro, não é? Allan: Ela já está internada há uma hora e meia. _________________________________________ 6# GERAL 28.1.15 6#1 GENTE 6#2 POLÍCIA – QUEM, AFINAL, É O MOCINHO? 6#3 CRIME – SEM CLEMÊNCIA 6#4 GUSTAVO IOSCHPE – VÁ PRA CHINA, CID 6#1 GENTE JULIANA LINHARES. Com Daniella de Caprio e Thais Botelho E QUE BARULHO! Há um mês e meio três profissionais de saúde cuidam da preparação de CLAUDIA LEITTE para a Olimpíada, quer dizer, além da maratona do Carnaval baiano, o desfile de estreia na Mocidade Independente de Padre Miguel. "Analisamos o sangue dela de tempos em tempos para prescrever uma suplementação. Também cuidamos dos treinos, da meditação e do alongamento que ela faz antes de dormir", descreve o treinador físico Henrique de Moraes. Num ensaio na escola, Claudia mostrou que vale o investimento: "Não estava de meia-calça. Meu truque para as pernas é uma mistura de hidratante, pó bronzeador e fixador de cabelo". Suando mais estão os costureiros dela. "Por causa do calor, trabalhamos só de madrugada. A roupa terá quase 15 quilos de pedrarias. Claudia quer barulho", diz Guilherme Alves. AS ADORÁVEIS MULHERES DAS NEVES O frio pavoroso do inverno no Hemisfério Norte é só uma desculpa para as ricas e famosas pegarem no closet, ou emprestados de lojas chiques, os casacos da moda: modelos gigantescos, de pele natural ou sintética. Ou, num certo caso, um biquíni. KATE MOSS - Modelo - É muito amiga da estilista natureba Stella McCartney, mas não deixa de usar o produto original, inclusive o casacão meio fashion, meio esquimó, até com rabinhos. JENNIFER LOPEZ - Cantora - Usa tanto pele natural que está na lista negra da Peta; mas o importante, para ela, é preservar o decote até debaixo de neve. ELIZABETH HURLEY - Atriz - Pele sintética azul berrante só fica bem nas muito jovens; exceto para quem está chegando aos 50, como Liz, em forma invejável, embora com exagero nos preenchimentos. KRIS JENNER - Empresária e mãe, nessa ordem - Quem usaria uma estrambótica peça até os pés que exterminou metade do zoológico? Claro que a mãe da garota à direita. KIM KARDASHIAN - Estrela de reallty show - E um biquíni de pele, com as patinhas protegidas? A filha dela, fotografada pelo marido, dando novo sentido à aventura de escalar a face sul do Everest. AVE, EVO Não venham falar em inca venusiano perto de EVO MORALES. O presidente da Bolívia, que tomou posse para o terceiro mandato, é da honrosa etnia aimará. Embora nunca tenha usado trajes típicos antes de se tornar presidente, Morales reinventou a narrativa — e as roupas também, que vão ficando mais elaboradas a cada posse. Na semana passada, num ato aborígine antes da cerimônia oficial, ele usou um unku com aplicação de medalhão de ouro no peito e ch’uku na cabeça, coisa de quase 10.000 reais, bancados da própria bolsa. "É uma roupa ancestral. Evo sempre quer que suas roupas falem da história do país", diz o alfaiate Manuel Sillerico. O melhor de tudo: Evo calcou as sandálias de lhama da humildade e disse que vai abrir um restaurante quando deixar a Presidência. Bolivariano que sai do poder... SOL E MAR O que será que Bruna Marquezine viu em MARLON TEIXEIRA? Olhando assim, com mais atenção, dá para desconfiar. Modelo brasileiro mais requisitado do momento e amigo de frequentar a casa de Gisele Bündchen e Tom Brady na Costa Rica, Marlon tem todas as saliências e reentrâncias que o levaram a faze campanhas para Armani, Chanel e Dior, e arrasar quando desfila todo descabelado e bronzeado, cuidando de seu restaurante na Prata Brava, em Itajaí. Marlon já levou Bruna para conhecer a família. "Em 2013, fui apresentado a ela pelo pai do Neymar. Daí, há duas semanas, meu neto apareceu com Bruna!", diverte-se Delfim Peixoto, o futuro vice-presidente da CBF e avô de Marlon. Agora no Brasil, o modelo "não assina contrato por menos de 100.000 reais", avisa um de seus agentes. 6#2 POLÍCIA – QUEM, AFINAL, É O MOCINHO? A investigação sobre a morte do comandante de UPP no Complexo do Alemão mostra que o disparo fatal veio do fuzil de um mal preparado colega de farda. LESLIE LEITÃO A escalada de mortes envolvendo policiais nos últimos meses escancarou de vez um problema premente na sempre conflagrada área da segurança no Rio de Janeiro: o despreparo da tropa. Pois a questão, embaraçosa e explosiva, deve reverberar com a força de uma bazuca quando for concluída, nas próximas semanas, a investigação sobre a morte em serviço do capitão Uanderson Manoel da Silva, 34 anos, comandante da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) de Nova Brasília, uma das favelas que compõem o Complexo do Alemão. Na noite do dia 11 de setembro passado, Silva foi vítima de um tiro de fuzil durante confronto com bandidos em um beco da Nova Brasília. Após três meses de análises de laudos periciais e de tomadas de depoimentos, a principal linha de investigação da Divisão de Homicídios aponta para uma conclusão estarrecedora: a bala que o alvejou debaixo do braço e atravessou seu peito foi disparada por um policial. As circunstâncias definitivas de sua morte serão esclarecidas em uma reprodução simulada, que vai reunir no palco da morte do capitão os PMs presentes na noite do tiroteio. Mas, pela exaustiva análise já feita da cena, não pairam dúvidas sobre o incômodo desfecho. Oficialmente, os órgãos de segurança não falam sobre as circunstâncias dramáticas da morte do capitão, limitando-se a declarar que "o inquérito ainda não foi concluído". Nos bastidores, porém, o chefe da Polícia Civil, Fernando Veloso, já levou as informações disponíveis ao secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, aprofundando a fissura aberta pela recente queda do comandante do Batalhão de Choque e pela prisão dos dois PMs envolvidos no fuzilamento de uma estudante, ambas ocorridas depois de denúncias de VEJA. Ao que tudo indica, não houve a intenção de matar Silva — faltaram ao autor do disparo, isso sim, o treino e a experiência que teriam evitado o trágico desenlace. E faltaram porque, pressionado pela maciça demanda de efetivos, o Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças do Rio está diplomando recrutas a toque de caixa, em cursos insuficientes para talhar os novatos para o enfrentamento com a bandidagem. O grande motivo para a pressa na formação de quadros são as UPPs, que sorvem atualmente 20% de todo o efetivo do estado e só fazem crescer. A improvisação começa no processo de seleção, que baixou a régua de modo que se acelerasse o passo. Para se ter uma medida, realizou-se um concurso em 2010 em que 65.000 candidatos disputavam 3600 vagas. Os melhores logo preencheram os postos, mas os demais continuaram sendo convocados, por anos, ainda que houvessem patinado na prova — teve PM que entrou para a tropa com nota "1". Tudo para não perder tempo montando novo concurso. A formação propriamente dita também ganhou ritmo de linha de montagem: em 2012, a duração do curso, tradicionalmente de um ano, como acontece em São Paulo, caiu para seis meses. A grade curricular prevê 34 disciplinas e 1182 horas de treino, mas, na prática, o preparo é mínimo. O "estágio", etapa em que os aspirantes à farda se lançam aos desafios da rua, consumia três meses; agora, para muitos, não passa de uns poucos dias. "Saí da escola, fiquei quatro dias num batalhão e já me puseram em uma UPP", conta um jovem soldado. Entre os 104 depoimentos de PMs lotados em UPPs ouvidos por VEJA, a reclamação quanto à falta de treinamento de tiro e de táticas é constante. "Aprendi certos procedimentos básicos em filminhos que vejo no You-Tube", admite um policial da patrulha da Rocinha. "O Rio virou uma fábrica de policiais, e isso claramente comprometeu a qualidade", avalia o coronel José Vicente da Silva, ex-secretário nacional de Segurança Pública. O descuido na formação dos jovens policiais faz com que esta geração, que deveria personificar uma nova cultura em uma corporação marcada por episódios de corrupção e truculência, acabe contaminada pela velha mentalidade. O compromisso público da Secretaria de Segurança com uma nova polícia nasceu junto com as UPPs e foi impulsionado por uma tragédia: em 2008, dois PMs cercaram um carro a 30 metros de uma delegacia, atiraram contra uma mãe e duas crianças e mataram João Roberto Soares, de 3 anos, com uma bala na cabeça. O ato brutal seria o ponto de partida para mudar uma corporação historicamente ancorada na filosofia do "quanto mais tiro melhor", mas nada indica que isso tenha acontecido. "Nas conversas, nas redes sociais e nas atitudes, percebe-se que a cultura da guerra já está entranhada nos recrutas", diz um instrutor do centro de formação. A adição do despreparo a uma PM violenta incrementa as sempre perturbadoras estatísticas do setor no Rio. O 8º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no fim do ano passado, põe a polícia do estado no topo do ranking das que mais matam e que mais morrem no país. Estão, inclusive, matando-se uns aos outros. 6#3 CRIME – SEM CLEMÊNCIA Como o surfista Rodrigo Gularte, nascido em família rica do Paraná, acabou no corredor da morte na Indonésia. BELA MEGALE Quando, no fim de julho de 2004, o surfista brasileiro Rodrigo Gularte depositou oito pranchas recheadas de cocaína na esteira do check-in do voo que o levaria a Jacarta, na Indonésia, sabia bem que consequências poderia sofrer. O aeroporto da capital, onde ele já havia estado antes, é repleto de cartazes que advertem os recém-chegados de que a pena para traficantes de drogas naquele país é o pelotão de fuzilamento. Ó mesmo alerta é dado ainda no avião, pouco antes do desembarque dos passageiros. Mas Gularte — o menino boa-pinta, que estudou nos melhores colégios de Curitiba e tinha fama de conquistador e aventureiro — nunca teve medo de nada. "Ele sempre chamou atenção por ser destemido. No mar, era o que mais se arriscava", conta o amigo, hoje engenheiro, Bernardo Guiss Filho. Na semana passada, Gularte, há dez anos no corredor da morte, teve negado o pedido de clemência feito pelo governo brasileiro ao presidente indonésio, Joko Widodo. A recusa foi anunciada dois dias depois do fuzilamento, na Ilha de Nusakambangan, de outro brasileiro, Marco Archer, o primeiro a ser executado pela Justiça de um país estrangeiro. A família de Gularte ainda tentará um último recurso para livrá-lo da execução. Na semana passada, uma prima do surfista vinda de Curitiba desembarcou em Nusakambangan, onde também está Gularte desde 2007. Ela viajou com o objetivo de buscar médicos credenciados pelo governo da Indonésia que confirmem que Gularte está mentalmente doente. Pelas leis do país, nenhum condenado poderá ser morto se padecer de doença mental — não importa se estava são na ocasião em que cometeu o crime. "A sentença só pode ser cumprida depois da recuperação", disse a VEJA Tony Spontana, porta-voz da Procuradoria-Geral da Indonésia. No ano passado, uma psicóloga contratada pela família, com a ajuda da embaixada brasileira, diagnosticou que Gularte sofre de esquizofrenia. A decisão de procurar ajuda médica foi da mãe do surfista, Clarisse Muxfeldt. Ela já havia recebido notícias da administração do presídio de que o filho não estava bem, e vinha acompanhando a piora de seu quadro a cada visita. Na mais recente delas, em agosto de 2014, encontrou-o 15 quilos mais magro e dizendo coisas desconexas. Quem conviveu com ele afirma que fazia muito tempo Gularte vinha tendo um comportamento anormal. Logo que foi preso, o surfista costumava falar frequentemente por telefone com parentes e amigos no Brasil. A um deles, chegou a dizer que tudo acabaria bem e que ainda faria "um filme com aquela história". Como a primeira prisão em que ficou tinha regras mais flexíveis, conseguia até mesmo ir a um McDonald’s vizinho nos fins de semana, escoltado por guardas. "Mas ele foi mudando. No início, jogava futebol e conversava com todos. Depois, foi se isolando até se fechar numa bolha", conta Rogério Paez, brasileiro que ficou preso com Gularte até ser solto, em 2011. "Passou a sair pouco da cela, ler livros de trás para a frente e não falar coisa com coisa. Tinha a mania de fechar a mão e olhar para o céu. Dizia que estavam ouvindo o que ele pensava." A jornalista e educadora brasileira Fabiana Mesquita, que visitava presos brasileiros como voluntária da embaixada, confirma: "Num dia, ele estava cheio de esperança, fazendo planos. No outro, aparecia cheio de patuás amarrados pelo corpo para se proteger dos seus perigos imaginários". No curso de algumas alucinações, Gularte buscava esconderijo sob a cama de um companheiro de cela. O marido da jornalista, Fábio Mesquita, médico da ONU, indicou o uso de Risperdal depois de visitá-lo certa vez, mas Gularte se recusava a tomar o medicamento alegando que pretendiam envenená-lo. Gularte nasceu em família de classe média alta. Passou a adolescência entre a casa de praia dos pais, em Caiobá, no litoral paranaense, e a fazenda, no Paraguai. Chegou a começar três cursos universitários, mas não concluiu nenhum. Com a ajuda da família, tentou diversos negócios, que também acabaram fechando, entre eles uma creperia em Curitiba e uma casa de massas em Florianópolis, onde morou por um período. Para os amigos e a família, ele nunca foi um traficante profissional, mas um jovem inconsequente que fez a viagem para sustentar o próprio vício, um caminho fácil naquele ambiente de drogas e sexo farto que fazia a fama de ilhas como Bali no início dos anos 2000. Agora, a doença, se confirmada, poderá poupar Gularte da execução. Mas as escolhas que ele fez — e que culminaram naquele embarque fatídico — há muito lhe roubaram a vida. 6#4 GUSTAVO IOSCHPE – VÁ PRA CHINA, CID Não conheço Cid Gomes pessoalmente, e já passei da idade de pôr a mão no fogo por políticos, mas tenho boas expectativas em relação ao novo ministro da Educação. Ele é o primeiro ministro da era petista que tem algo para mostrar em termos de resultados educacionais como gestor público: foi o prefeito que iniciou a caminhada de Sobral (CE) para ser talvez o maior caso de avanço educacional do país e também liderou o Ceará em importantes progressos, especialmente na etapa de alfabetização. Um dos problemas de virar ministro, segundo me contaram ex-ocupantes do posto, é que o sujeito se vê cercado por toda uma máquina burocrática e intelectual, do ministério e das universidades públicas, que é extremamente resistente a mudanças. São pessoas que, apesar dos abissais resultados da educação brasileira, continuam acreditando que suas ideias estão certas e, como estão cercadas de gente com as mesmas ideias mofadas e distorcidas, são consideradas por seus pares como brilhantes. De forma que, se você sugere que tudo aquilo que estão dizendo é uma bobagem enorme, elas o olham como se você viesse de outro planeta. Só há duas maneiras de sair dessa camisa de força sem sucumbir às suas maluquices. A primeira é lendo a pesquisa empírica, que não trata de formulações teóricas mas avalia a eficácia de diferentes práticas. Esse approach é desprezado por nossos pedagogos, que o acham "reducionista" (como se isso, em ciência, fosse algo negativo) e/ou "neoliberal". (Uma pessoa ideologizada acha que todas as outras pessoas do mundo também são ideologizadas. Já ouvi muita gente me perguntando se minha intenção secreta com os artigos críticos sobre nossa educação é privatizar todo o sistema de ensino [?!].) A segunda maneira é mostrando casos em que caminhos diferentes daquele trilhado pelo Brasil tiveram sucesso. E, aqui, creio que nenhum é mais instrutivo do que o chinês, especialmente da província de Xangai, o primeiro lugar do mundo no último Pisa, o teste mais importante na medição de qualidade educacional. Sugiro a Cid e a todos os novos secretários estaduais de Educação que fujam por alguns dias da companhia de seus "especialistas" e confiram o que a China está fazendo. A experiência dos chineses é relevante para o Brasil porque eles depararam, há quase quarenta anos, com o mesmo dilema que temos: como criar um país desenvolvido se não há gente capacitada? E como gerar gente capacitada se não há educadores capacitados para gerá-la? Uma pergunta análoga seria: como gerar Homo sapiens a partir de seres unicelulares? Seria estúpido se, há aproximadamente 3,5 bilhões de anos, quando as primeiras células surgiram no planeta Terra, esses seres quisessem entender como implantar um cérebro, ou olhos, ou mãos com polegares opositores em si mesmos, para chegar à complexidade do ser humano (noves fora que células não "querem" nada, nem poderiam jamais imaginar um ser humano). Aquilo de que as células precisavam era um processo que as fizesse chegar até nós. Esse processo, descoberto por Charles Darwin, é a evolução pela via da seleção natural. A mesma lógica se aplica à educação. Não é possível criar algo do nada. Não adianta incorporar materiais, escolas ou práticas de outros países se no nosso não há gente com qualidade suficiente para implementá-los. A China entendeu isso muito bem, e criou então um processo que tem muito a nos ensinar. Uma vez que esse processo começou a funcionar, ele não apenas cumpriu a tarefa para a qual foi criado, como seu funcionamento continuado vem gerando melhorias que, em algumas áreas, colocam a China à frente de todos os demais países. Que processo é esse? Primeiro passo: quando você não tem qualidade, foque o esforço. Trabalhe mais. Um professor alemão ou francês talvez só precise se preparar por duas ou três horas por semana, porque tem uma base excelente. Um chinês trabalhará o dobro ou o triplo disso, porque sua base é deficiente. A mesma coisa para os alunos: é normal que alunos chineses comecem o dia letivo às 7 da manhã, fiquem na escola em dois períodos, voltem para casa e continuem estudando até ir dormir. Também é comum, depois dos 10 ou 11 anos, frequentar escolas de reforço durante os fins de semana. Segundo passo: certifique-se de que todos — professores, alunos, diretores, gestores públicos — têm um incentivo para gerar melhorias no sistema e que as ambições são altas. A China dispõe de um sistema hierárquico de escolas e universidades. Para entrar em uma universidade top, o aluno precisará estudar em uma escola de ensino médio de excelência. Para entrar nessa escola, o aluno precisará ter estudado em uma escola ótima no 2º ciclo da educação fundamental, e assim sucessivamente. Há as chamadas "escolas-chave": as melhores escolas de cada cidade, depois de cada estado, depois do país. Mesmo que o aluno seja o melhor de sua turma, ele continuará tendo incentivo para melhorar: se for realmente bom, conseguirá entrar em uma escola-chave. Se for o melhor aluno da escola-chave de sua cidade, irá para a escola-chave do estado etc. A mesma coisa para os professores: não há progressão natural de carreira. Para receberem melhores salários, os professores precisam ter alunos que aprendem mais e também se comprometer a participar de mais programas de treinamento depois de obter o aumento. Há concursos para professores, e o vencedor do concurso do seu bairro vai para o concurso da sua cidade, então para o do seu estado, e finalmente para os concursos nacionais. O mesmo processo ocorre para diretores e burocratas: os melhores de sua escola assumem responsabilidades em sua cidade, então em seu estado, e apenas os melhores vão para Pequim, trabalhar no ministério. O céu é o limite: sempre há alguma razão para você ser melhor. Terceiro passo: só invente quando necessário. De resto, copie e adapte. Os chineses mandaram — e continuam mandando — suas melhores cabeças para todo país em que algo de bom está sendo feito. Copiam sem pruridos nem remorsos. Eles entenderam que talvez a única vantagem de começar atrasado é não precisar repetir os erros que muitos países desenvolvidos cometeram até encontrar o caminho certo. Se esse caminho é aplicável à realidade chinesa, ele é copiado. Se precisa de correções, é adaptado. Quarto passo: explique à população o porquê de tudo isso. Ninguém faz tantos sacrifícios se não tiver um objetivo claro e desejável. Na China, grande parte do país está embarcada no sonho de ele voltar a ser uma grande potência mundial. A educação de qualidade não é um fim em si mesmo: é parte (importante) do caminho para chegar ao objetivo maior. Quinto passo: compartilhe as boas práticas. Em quase todo sistema educacional de grande escala — e isso se aplica ao Brasil —, é provável que haja um professor dando a aula perfeita. Nos países incompetentes, só ele e seus alunos saberão disso. A China criou uma série de mecanismos — de grupos de estudo conjuntos para professores a premiações — para garantir que isso não aconteça. As melhores práticas são compartilhadas e implementadas ao longo do país. Jogue tudo isso no liquidificador e você terá um sistema educacional incrível (e também duro e desafiador para todos os envolvidos), em que uma junção enorme de pequenos avanços cria um portentoso sistema de excelência. Para quem se interessa pelos detalhes, sugiro um relato mais minucioso que incluí no livro O que o Brasil Quer Ser Quando Crescer?, E aqueles que estão pensando em todas as desculpas que podem usar para ignorar o modelo chinês — "É fácil de fazer numa ditadura!", "Lá as famílias valorizam a educação e o professor", "É coisa da cultura oriental" —, fiquem tranquilos: não será difícil encontrar uma escola ou repartição pública disposta a lhes dar guarida. Enquanto continuarmos com nossa alta tolerância ao fracasso educacional e nosso complexo de vira-lata, é de gente assim que o país precisará para não sair dos trilhos (que levam ao penhasco). GUSTAVO IOSCHPE é economista ______________________________________ 7# ESPECIAL – O BRASIL SEM ÁGUA 28.1.15 7#1 VAI FALTAR ÁGUA, VAI FALTAR LUZ, MAS SOBRA INDIGNAÇÃO 7#2 VIDA SECA NA CIDADE GRANDE 7#3 E NÃO SE FEZ A LUZ 7#4 15 RESPOSTAS FUNDAMENTAIS SOBRE A CRISE 7#5 O VILÃO DA HISTÓRIA 7#6 A GUERRA PELO ÁRTICO 7#1 VAI FALTAR ÁGUA, VAI FALTAR LUZ, MAS SOBRA INDIGNAÇÃO A frase do ministro de Minas e energia, Eduardo Braga, já tfaz parte de qualquer antologia dos despautérios de autoridades que pouco têm a dizer quando apresentadas a problemas incontornáveis, que lhes parecem alheios. Disse ele, depois do apagão de segunda-feira passada na Região Sudeste: "Deus é brasileiro. Temos de contar que ele vai trazer um pouco de umidade e chuva para que possamos ter mais tranquilidade". Para seu azar, como numa comédia insossa, em meio à entrevista aos jornalistas as luzes do auditório em Brasília se apagaram (veja a reportagem na pág. 72). Braga tez tudo errado ao apelar para Deus, e só alimentou as críticas de quem, com razão, se vê à beira do abismo e rapidamente põe a culpa nas autoridades. Houve lerdeza, leniência e inépcia públicas, mas é fácil atribuir o drama de abastecimento de água e luz apenas à falta de planejamento. Não se trata de absolver o governo de São Paulo no caso da escassez de água e o federal no da pane elétrica da semana passada, mas convém lembrar que nem tudo pode ser antecipado, que variações climáticas como as dos dois últimos verões são pontos extraordinariamente fora da curva. A previsão sazonal de chuvas pode ser feita em poucas regiões do planeta — basicamente apenas onde a meteorologia é condicionada pelas variações dos oceanos. Não é o caso do Sudeste brasileiro. Dado que pedir socorro divino é inócuo, para não dizer inconcebível, e a ciência não pode tudo, um caminho é admitir que houve fracasso e que, infelizmente, a população terá de pagar a conta — postura que muitos brasileiros, solidários e conscientes da crise hídrica, já exercitam, economizando como podem, com algum orgulho cívico. Jerson Kelman, presidente da Sabesp, a empresa responsável pelos serviços de saneamento básico de São Paulo, admitiu que "não é sensato brigar com os fatos". Em artigo para a Folha de S.Paulo, ele distribuiu sinceridade, produto mais escasso que água desde janeiro de 2014, quando se começou a falar do nível baixo dos reservatórios. "A Sabesp pode ser forçada a fazer racionamento se não chover nos lugares certos e nas quantidades necessárias. Na atual crise, a empresa não tem como prestar o serviço como se a situação fosse de normalidade", escreveu Kelman. Não é — e não será — de normalidade, nem mesmo pedindo ajuda a Deus. As agruras que vão se abater sobre os brasileiros nos próximos meses exigirão tolerância, colaboração e engenhosidade de todos — só indignação é pouco, como anota a Carta ao Leitor desta edição. Nas próximas páginas, VEJA esmiúça os impactos do duplo apagão de água e luz no cotidiano do país. 7#2 VIDA SECA NA CIDADE GRANDE A realidade é incontornável: pode até chover muito nas próximas semanas, mas 2015 será um ano sem água nas metrópoles do Sudeste. MARIANA BARROS E JENNIFER ANN THOMAS No Brasil, sempre que se falava de seca, a primeira imagem que vinha à mente era o chão trincado da aridez do sertão nordestino, transformada em obra-prima no romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, de 1938. "Um dia... Sim, quando as secas desaparecessem e tudo andasse direito... Seria que as secas iriam desaparecer e tudo andar certo? Não sabia (...) Livres daquele perigo, os meninos poderiam falar, perguntar, encher-se de caprichos." Um dia, será que grandes metrópoles como São Paulo e Rio caprichosamente terão vidas secas como a de Fabiano e a de Baleia? Estamos ainda longe desse quadro, evidentemente traumático, mas a atual crise hídrica na Região Sudeste autoriza pesadelos. Há uma "força colossal da natureza", para usar uma expressão do historiador francês Fernand Braudel, abatendo-se sobre a região. No chamado Sistema Cantareira, que abastece a Grande São Paulo, os especialistas sempre miraram o ano de 1953 como o mais crítico, aquele em que o reservatório chegou pela primeira vez a um patamar alarmante, a apenas 39% de sua capacidade — manda a boa norma da engenharia que todo sistema deve estar preparado para qualquer evento extremo, e um pouco mais, como se tivesse um colchão de segurança. 1953 era o marco, e dava-se como certo que uma dificuldade semelhante àquela seria contornada. Mas houve o climaticamente imprevisível, e 2014 viu os reservatórios baixar à metade do que se observara em 1953 — e em 2015, apenas em janeiro, a queda é ainda maior. Do ponto de vista político, ante essa linha histórica acachapante, a ordem agora é não olhar para trás, o que não significa esquecer que houve lentidão em decisões passadas. Trata-se, emergencialmente, de resolver a escassez imediata. "É torcer pelo melhor, mas estar preparado para o pior", diz Jerson Kelman, presidente da Sabesp, a empresa de saneamento básico de São Paulo. Se houvesse outros reservatórios, o problema estaria praticamente resolvido, mas não há. Cabe aqui um exercício hipotético, embora o "se" nunca seja muito conveniente. Se, há uma década, uma autoridade pública sugerisse fazer novas represas, seria acusada de jogar dinheiro fora, mancomunada com empreiteiras, em detrimento de tantos problemas mais graves. Afinal, no "Sul maravilha" água sempre foi solução — nunca problema. Seria como sugerir que se construísse um estádio de beisebol no Rio de Janeiro com capacidade para 500.000 torcedores. Ante a impossibilidade de soluções definitivas a curto prazo, e como 2015 será decisivo, grandes obras serão tocadas, mas seus resultados demorarão a chegar, talvez em 2017 ou 2018. No aqui e agora, os técnicos procuram na região da Mata Atlântica, na franja da região metropolitana de São Paulo, de chuvas abundantes, rios nos quais possam ser colocadas instalações provisórias, de modo a levar água para os centros urbanos — um pouco ao modo tradicional do Nordeste. Buscam-se, também, maneiras de frear o desperdício nas tubulações e as perdas comerciais dos chamados "gatos", além da redução consciente do consumo. A longo prazo, num período de dez anos, uma das apostas é substituir os 64.000 quilômetros de canos subterrâneos que abastecem a Grande São Paulo, com o objetivo de reduzir vazamentos. São boas iniciativas para impedir que vidas sequem. Vidas Secas foi publicado em um período no qual sete entre dez brasileiros viviam em zonas rurais, e a grande maioria sofria com intempéries climáticas. Hoje, oito entre dez estão em centros urbanos e tudo melhorou, como o acesso à educação e a serviços de saúde. É assustador, portanto, imaginar que aquele retrato árido possa chegar às grandes cidades. A urbanização é um dado definidor de nosso tempo, e o impulso para o consumo proporcionado pelo cotidiano das metrópoles é que faz tudo mais explosivo quando algo dá errado. No Brasil água e energia são irmãs siamesas, para o bem e para o mal, e um duplo apagão como o da semana passada é a tempestade perfeita. Em um país cuja matriz energética é essencialmente hídrica, responsável por 75% da emissão de eletricidade, faltar água é o atalho para apagar a luz. Na semana passada, o volume de água disponível para cada habitante das duas maiores capitais do país, São Paulo e Rio, era o mesmo, proporcionalmente, que aquele que está ao alcance de quem vive no sertão. No estado paulista, onde reside um quinto da população brasileira e é produzido um terço do PIB nacional, o volume das represas pode durar apenas até março. Na sexta-feira 23, o Cantareira operava com 5,3% de capacidade, já tendo sido usados dois volumes mortos. No Rio, a reserva de Paraibuna, o principal abastecedor dos fluminenses, entrou na semana passada em seu primeiro volume morto. O nível de água dos quatro reservatórios desse sistema está em apenas 0,82% da capacidade. A Zona Oeste registra falta de água, e condomínios de luxo da Barra da Tijuca apelam para caminhões-pipa. Na favela do Terreirão, no Recreio dos Bandeirantes, as pessoas fazem fila para colocar baldes sob um cano quebrado de uma bica conhecida como "dos jacarés". O nome se dá porque ali vivem jacarés que intimidam moradores, agora obrigados a resgatar coragem para tirar água do local. "Cheguei a escorregar enquanto enchia o balde, e um deles quase me mordeu", relatou Juliana da Conceição Silva, grávida de sete meses, moradora do Terreirão, acompanhada de dezenas de moradores na aventura. Em Belo Horizonte, a companhia de saneamento Copasa afirmou ser necessário reduzir o consumo em 30% para evitar racionamento. Diminuir o consumo é o caminho natural em períodos sem abundância, e os cidadãos tendem a ser mais ágeis, na mudança de comportamento, que os governos. Mas não será fácil. Um paulista, o mais afetado pela seca, usa 188 litros de água por dia — um gasto 25% menor que o da população do Rio e não muito distante do de europeus. A margem de corte domiciliar, portanto, é razoavelmente pequena. O berço da crise está em uma combinação, sempre drástica, de dois fatores. Primeiro, a imprevisibilidade da natureza: faz dois anos que chove abaixo da média, fruto de uma anormalidade climática, que muitos cientistas atribuem ao aquecimento global. A segunda razão é atávica, mais antiga que os livros de Graciliano: a falta de gerência, por vezes descaso, das autoridades. Apesar de não ter sido possível prevê-los com precisão, o calorão e a falta de chuva não são uma total surpresa. Segundo dados da Nasa, a agência espacial americana, nove dos dez anos mais quentes já registrados ocorreram de 2000 para cá, sendo que 2014 foi o recordista. "Sabe-se que o clima será cada vez mais extremo e imprevisível", analisa Hélio Mattar, presidente do Instituto Akatu, reputada ONG de sustentabilidade. "Governos devem agir com antecipação, e a população tem de se conscientizar." Em resumo, o único modo de lidar com a imprevisibilidade é tecer planos, e eles rarearam — ainda que a natureza tenha sido mais inclemente que o imaginado. Embora o regime de restrição soe como sentença aos ouvidos brasileiros, ele é rotineiro em várias partes do mundo. "A escassez fez com que países como Israel e Japão desenvolvessem até sistemas para transformar esgoto em água potável", diz o engenheiro e consultor Gesner Oliveira, ex-presidente da Sabesp. Mesmo sem dispor da tecnologia de ponta, os beduínos aprenderam ao longo da história a sobreviver com o mínimo de água. Nômades, vagam por desertos árabes e, quando encontram poços, armam suas tendas e abastecem gamelas. Povos como os beduínos tratam a água como ouro há milênios. O Brasil, rico em rios e lagos, não está acostumado a essa realidade. Não se trata, evidentemente, de supor que, da noite para o dia, nos tornemos beduínos, e muito menos convém tirar responsabilidade das autoridades. Geraldo Alckmin, governador de São Paulo, tem sua parcela de culpa, mas agora a travessia do deserto vai exigir sacrifício individual pelo bem coletivo. COM REPORTAGEM DE CECÍLIA RITTO E HUGO PERNET NO CAMINHO DA ARIDEZ Mesmo no cenário mais otimista (e menos provável), com chuvas torrenciais frequentes, será preciso reduzir o consumo de água nas casas dos paulistas. Isso porque o principal reservatório do Estado de São Paulo, o Cantareira, está à beira do colapso e a água que o reabastece não é suficiente nem para suprir a demanda diária. A conta não fecha A reserva hídrica de uma cidade pode ser comparada a uma conta bancária. O que está guardado é a poupança A chuva que reabastece é o salário O que se consome são os gastos O volume morto é o cheque especial, acionado quando se entra no negativo e usado em emergências. Desde maio o Sistema Cantareira, o principal de São Paulo, entrou no cheque especial, e não deve sair tão cedo, pois o que tem entrado de água pelas chuvas não supre a demanda. CAPACIDADE DE ARMAZENAMENTO DO SISTEMA CANTAREIRA 100% = 982 bilhões de litros JAN/2014 27,2% MAI/2014 10,5% 16/6/2014 Foi liberada a captação da 1ª cota do volume morto Cada novo volume morto eleva a quantidade de água que se pode captar. Na prática, porém, é como se fosse aumentado o limite do cheque especial: sobe o crédito, mas a dívida cresce. 1ª cota do volume morto Volume de água disponível para captação – 15/5/2014 80 bilhões de litros: 8,2% 16/5/2014 - 262,5 bilhões de litros (soma do volume regular com o volume morto): 26,7%. 2ª cota do volume morto 24/10/2014 – 133 bilhões de litros (soma do volume regular com o volume morto): 13,6% 23/1/2015 – 53 bilhões de litros (subiria para 94 bilhões com a liberação de uma 3ª cota): 5,3% JUL/2014 -3,2% A conta entrou no negativo com a retirada de água do volume morto. SET/2014 -17% 24/10/2014 – Foi liberada a captação da 2ª cota do volume morto JAN/2015 -22% MAR/2015 • E quando deve se esgotar a capacidade do 2º volume, se continuar a chover pouco • Há ainda uma 3ª e última cota que pode ser acionada. O QUE OCORRERÁ COM A RESERVA EM QUATRO CENÁRIOS POSSÍVEIS CENÁRIO: 1º MUITO PESSIMISTA SE CHOVER DIARIAMENTE ATÉ ABRIL EM MÉDIA...: 2 milímetros (chuvisco, mas 75% abaixo da média histórica de janeiro) ...E CADA MORADOR DA GRANDE SÃO PAULO ECONOMIZAR DE ÁGUA POR DIA...: Nada ...A RESERVA ATUAL DE ÁGUA: Esgota-se em março CENÁRIO: 2º PESSIMISTA SE CHOVER DIARIAMENTE ATÉ ABRIL EM MÉDIA...: 4,3 milímetros (chuva moderada, mas ainda 50% abaixo da média histórica de janeiro) ...E CADA MORADOR DA GRANDE SÃO PAULO ECONOMIZAR DE ÁGUA POR DIA...: Nada ...A RESERVA ATUAL DE ÁGUA: Esgota-se em junho CENÁRIO: 3º OTIMISTA SE CHOVER DIARIAMENTE ATÉ ABRIL EM MÉDIA...: 11 milímetros (chuvas fortes e 25% acima da média histórica de janeiro) ...E CADA MORADOR DA GRANDE SÃO PAULO ECONOMIZAR DE ÁGUA POR DIA...: 76 litros (60% do consumo atual) ...A RESERVA ATUAL DE ÁGUA: Não se esgota e em um ano se conseguirá repor o volume morto. CENÁRIO: 4º MUITO OTIMISTA SE CHOVER DIARIAMENTE ATÉ ABRIL EM MÉDIA...: 17 milímetros (temporais frequentes e o dobro da média histórica de janeiro) ...E CADA MORADOR DA GRANDE SÃO PAULO ECONOMIZAR DE ÁGUA POR DIA...: 76 litros (60% do consumo atual) ...A RESERVA ATUAL DE ÁGUA: Não se esgota e ainda chegará a 70% do nível original até o fim deste ano 2,65 bilhões de litros - é a quantidade média de água que entra diariamente no reservatório desde janeiro de 2014. 5,15 bilhões de litros - de água é a média de consumo diário de São Paulo desde janeiro de 2014 (Apenas do que é retirado do Cantareira) RESULTADO – 2,5 bilhões de litros de água são consumidos diariamente a mais do que se tem de oferta. Por que chove na cidade de São Paulo,... • Massas de ar úmido esbarram na ilha de calor que se forma ao redor da cidade, um casulo quente de poluição e prédios que esquenta o ar e o joga para cima, onde ele se condensa em nuvens carregadas de chuva ...mas não no Cantareira • Em situação normal, as chuvas sobre a reserva se originam por ela estar na Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS), uma área cheia de nuvens que costuma se estender da Amazônia até o Sudeste • Mas, pelo segundo ano consecutivo, a ZCAS está fora de posição: foi em direção à Bahia, em vez do Sudeste O QUE VAI PELO RALO Há desperdício em todas as etapas do abastecimento, pois parte da água vaza por canos danificados ou mesmo é absorvida pelo solo na reserva. Isso é normal em qualquer sistema do tipo, mas o caso brasileiro é crítico: o que desaparece na distribuição (34%) é mais que o dobro do máximo recomendado pela ONU (15%). Ao lado, o que se perde em cada fase da operação no Estado de São Paulo e como diminuir esse índice NA CAPTAÇÃO Perda de água em cada etapa (não cumulativa): 10% Como se dá o desperdício: O solo seco absorve parte do líquido O que fazer para diminuir: Manter o solo sempre encharcado pela preservação do volume morto (a água armazenada abaixo do nível de captação) o que pode ser exigido pelo estado. Custo: Zero Tempo de implementação: Até 5 anos NO TRATAMENTO Perda de água em cada etapa (não cumulativa): 15% Como se dá o desperdício: Parte é jogada fora por ser inviável sua despoluição O que fazer para diminuir: Aprimorar a rede de distribuição para separar totalmente o esgoto da água destinada ao consumo; e manter alta a vazão, para facilitar a diluição dos poluentes Custo: Cerca de 10 bilhões de reais Tempo de implementação: Até 10 anos NA DISTRIBUIÇÃO Perda de água em cada etapa (não cumulativa): 34% Como se dá o desperdício: Em vazamentos de canos e desvios clandestinos O que fazer para diminuir: Implantar hidrômetros em apartamentos, fiscalizar desvios e substituir gradativamente a tubulação. Só na região metropolitana, são 64.000 quilômetros de tubos Custo: Mais de 12 bilhões de reais Tempo de implementação: Até 10 anos EM CASA Perda de água em cada etapa (não cumulativa): 20% Como se dá o desperdício: Ao usar água sem necessidade, como quando se deixa a torneira da pia pingando O que fazer para diminuir: Seguir uma rotina econômica, com hábitos como não lavar carros, tomar banhos curtos, fechar a saída de água enquanto se lava a louça e armazenar a água que sai do chuveiro enquanto ele esquenta Custo: Zero Tempo de implementação: Imediato Fontes: Sabesp, GO Associados, Poli-USP e Ministério da Ciência e Tecnologia. 7#3 E NÃO SE FEZ A LUZ A falta de providência do governo resultou no atraso de obras e deixou o país mais próximo de um novo racionamento, que, se vier, vai derrubar a economia e colocar o país em recessão. MARCELO SAKATE E BIANCA ALVARENGA O novo ministro de Minas e Energia, Eduardo Braga, ao assumir o cargo, afirmou que o seu desafio seria oferecer energia a preços razoáveis às empresas para, dessa forma, contribuir com a retomada do crescimento econômico. A indústria, entretanto, já faz seus cálculos contando como certo um aumento de até 50% nas tarifas neste ano. Para as famílias, a estimativa é que o reajuste supere 30%. Ainda assim, todos terão de torcer para que haja energia suficiente para atender à demanda. Braga percebeu que seu maior desafio, na verdade, será assegurar o abastecimento. Até a semana passada, choveu em janeiro o equivalente a 41% da média histórica para o mês nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, que respondem por 70% da geração hidrelétrica do país. O nível dos reservatórios está em queda e encontra-se abaixo de onde estava em 2001, quando houve o racionamento. "Deus é brasileiro e vai trazer chuva", rezou o ministro. Não falou sobre a quem orar para que o governo e as empresas entreguem as obras no prazo. O blecaute em onze estados e no Distrito Federal na segunda-feira 19, depois de um corte emergencial realizado para evitar o colapso do sistema diante de um pico na demanda, expôs a precariedade do setor elétrico nacional — área, lembre-se, comandada por Dilma Rousseff nos tempos em que era ministra de Minas e Energia. O apagão só não se repetiu nos dias seguintes porque o governo importou energia da Argentina. Tem chovido pouco e o calor tem sido excessivo no Sudeste, levando a um aumento do uso do ar-condicionado. Mas os sistemas elétricos não podem operar no limite. Precisam de uma folga técnica, para suprir a necessidade em situações emergenciais. Por causa da falta de investimentos e do atraso nas obras em curso, não existe no país reserva de emergência. O racionamento só não foi decretado porque as termelétricas, movidas a gás, diesel e carvão, operam em capacidade máxima, e é esse custo adicional que chega às tarifas. Mesmo essas usinas, entretanto, poderão ser insuficientes caso não aumente a intensidade das chuvas. Tanto no Sudeste como no Nordeste, os reservatórios estavam em 17% da capacidade na última semana. Braga, na quinta-feira, viu-se obrigado a reconhecer o óbvio. Se o nível das represas cair abaixo de 10%, será necessário um racionamento. Isso porque, com níveis muito baixos, as hidrelétricas simplesmente não funcionam. Foi o que ocorreu com a usina de Paraibuna, cujo lago secou. As perdas para a economia de um eventual racionamento entram nos cálculos de bancos e consultorias. O PIB poderá encolher 1,5% neste ano se houver um corte obrigatório de 10% no consumo por causa de restrições na oferta. O país já vem, na verdade, pagando o preço das dificuldades na área energética. A economia poderia ter crescido meio ponto percentual a mais no ano passado se não fosse o custo mais alto da energia para o setor produtivo, estima a associação que reúne grandes consumidores industriais de energia, a Abrace. No racionamento de junho de 2001 a fevereiro de 2002, os impactos negativos foram evidentes. A produção industrial e os investimentos recuaram, o desemprego subiu e o país entrou em recessão em meados de 2001. Para as indústrias, especialmente as que são mais dependentes do uso de energia (o peso desse insumo corresponde a até 40% dos custos totais), o impacto é profundo. O apagão de fevereiro de 2011, que deixou oito estados do Nordeste sem luz por seis horas, paralisou a produção na fábrica da Braskem em Camaçari, na Bahia. Fornos que operam com temperaturas de até 750 graus foram danificados com a solidificação de substâncias. A unidade só voltou a funcionar a plena carga três meses depois, e o prejuízo foi de 200 milhões de reais. Após o episódio, a Braskem decidiu investir em equipamentos para mitigar os riscos de apagão ou de oscilações bruscas no fornecimento e ficar menos vulnerável. Um dos investimentos, que preserva as atividades essenciais no caso de falta de energia, custou 50 milhões de reais. O prejuízo e o gasto refletem-se na perda de competitividade da indústria. Na Alemanha, apagões de grandes proporções ocorrem em média a cada oito anos. No Brasil, a frequência tem sido anual. Para os consumidores residenciais e o comércio, os prejuízos tampouco são triviais. No último mês, em São Paulo, foram registradas 1700 reclamações de falta de luz, de acordo com o Procon-SP. "Blecautes não são um problema exclusivo do Brasil. Mas o aumento das ocorrências nos últimos anos indica que o governo e as empresas precisam investir mais na segurança da rede elétrica", diz Djalma Falcão, professor de engenharia elétrica da Coppe/UFRJ. A experiência internacional serve de guia. Em 2003, 50 milhões de pessoas ficaram sem luz no nordeste dos Estados Unidos e em parte do Canadá em um apagão causado pela combinação de consumo elevado por causa do calor, redes sobrecarregadas e falhas de manutenção. Em Nova York, o metrô parou de operar. O episódio deixou lições. O governo passou a obrigar as empresas a investir na manutenção e no aumento da confiabilidade das redes, sob ameaça de multa milionária. Houve incentivos fiscais para a construção de linhas inteligentes (smart grids), que permitem a gestão automatizada da rede. Desde o início do governo Dilma, já foram registrados no país 244 apagões de grandes proporções. Qualquer imprevisto leva o sistema elétrico ao desequilíbrio. Na segunda-feira passada, um problema em uma linha de transmissão que traz energia da Região Norte para o Sudeste fez a geração ficar menor do que a demanda, o que provocou o desligamento de onze usinas. Para evitar um colapso ainda maior, o governo pediu a distribuidoras de energia que cortem o fornecimento de forma seletiva. Na terça, o órgão responsável pela gestão do setor enviou uma nota às distribuidoras em que alertava para o risco de o corte de energia se repetir naquele dia. O governo, temendo carregar a pecha de ter provocado um novo racionamento, finge que não existe o problema, em vez de pôr em curso uma campanha para racionalizar uso da energia. "Nunca houve um racionamento seletivo como este, em que o governo escolhe onde cortar a energia", diz o professor José Goldemberg, presidente do conselho de sustentabilidade da Fecomercio SP. "Como o sistema não consegue suprir todo mundo, basta as pessoas ligarem o ar-condicionado para que caia a energia." Em 2001, as famílias diminuíram em 20% o consumo com medidas simples, como tomar banhos menos demorados e acumular a roupa antes de usar a máquina de lavar. Agora, o governo prefere contar com a sorte e a divina providência. Diante de tamanha arrogância das autoridades de Brasília, talvez os céus não ouçam as preces do ministro. COM REPORTAGEM DE ISABELLA DE LUCA O APAGÃO NA ECONOMIA Variação prevista para o PIB em 2015 Sem racionamento 0% Com racionamento(redução de 10% no fornecimento de eletricidade) -1,5% APAGÕES FREQUENTES Número de interrupções no fornecimento de energia elétrica com queda superior a 100 megawatts (o suficiente para abastecer uma cidade de 200.000 habitantes) 2011 – 61 2012 – 59 2013 – 49 2014 – 73 Fonte: NOS 7#4 15 RESPOSTAS FUNDAMENTAIS SOBRE A CRISE Um miniguia para enfrentar a falta de água e luz que começou na Região Sudeste e já se espalha pelo país. 1- A água acabará de vez? Não, mas está mais escassa. Há três motivos fundamentais. O primeiro é climático, pois desde o ano passado chove 40% abaixo do esperado. Em segundo lugar, a grande concentração de pessoas em metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro faz com que, proporcionalmente, o volume de água disponível para cada uma delas seja semelhante ao de populações do sertão nordestino. Por fim, houve demora das autoridades em revelar a crise, e com isso a população não se preocupou em reduzir o consumo. 2- A situação é irreversível? A curto prazo, sim. Em um cenário otimista, o nível dos reservatórios paulistas e fluminenses só voltará ao normal em dois anos, desde que a chuva siga no ritmo atual e o consumo não cresça. Fazer chover, por óbvio, é impossível — mas controlar o consumo é muito plausível. 3- A atual escassez poderia ter sido evitada? Em termos. Há pelo menos dez anos os especialistas já intuíam que as mudanças climáticas levariam à falta de água no Brasil, mas não havia como prever a secura fora da linha histórica. Poderiam ter sido tomadas, sim, medidas como o controle do vazamento em tubulações, a vigilância contra os chamados "gatos", para evitar perdas comerciais, e o incentivo ao reúso de água de esgoto, além de campanhas de adoção de hábitos sustentáveis. 4- A conta de água vai aumentar? Ainda não, embora técnicos em infraestrutura defendam um reajuste proporcional ao consumo como forma de forçar a economia de água e governos, como o de São Paulo, estudem a medida (no estado paulista, começaria a partir de abril). Mas descontos para quem economizar e multas para quem elevar o gasto de água já são aplicados em São Paulo e logo mais serão também em Minas Gerais. 5- Como conseguir água durante os cortes de abastecimento, já admitidos pela Sabesp, em São Paulo? Se a caixa-d'água não der conta de manter o abastecimento durante o corte, a opção mais segura é contratar caminhões-pipa. O preço, no entanto, aumentou. Um caminhão de 15.000 litros passou a custar em torno de 1200 reais, 50% a mais do que antes da crise. Para beber, a melhor alternativa é comprar galões de água mineral, que também tiveram o preço elevado em 15% no último ano. 6- Furar poços artesianos é uma opção viável? Depende. Estima-se que já existam 12.000 poços apenas na Grande São Paulo, a maioria deles clandestina. Para fazer diferença no abastecimento, seria preciso dobrar esse número, mas não há empresas de perfuração do solo credenciadas em quantidade suficiente para o trabalho. Tampouco é possível fiscalizar com eficácia a qualidade da água que será extraída. Regiões com postos de combustível, por exemplo, não podem ter poços, porque as substâncias químicas contaminam o solo. O mesmo vale para lugares perto de lixões e áreas em que o esgoto é despejado irregularmente. Ou seja, só adote essa tática se contratar especialistas técnicos para implementá-la. 7- Escolas, shoppings, hospitais, restaurantes e lojas vão fechar? Talvez temporariamente. Escolas e hospitais têm prioridade no fornecimento de caminhões-pipa, mas, se chegarem a ponto de não poder manter banheiros funcionando, a orientação é que fechem as portas. O mesmo vale para o comércio, como os shoppings. 8- Se parte da população sair das cidades afetadas, o problema será contornado? Não. Na Grande São Paulo, por exemplo, vivem 20 milhões de pessoas. Para haver uma migração que faça diferença no sistema, seria preciso um improvável êxodo de milhões de pessoas, deixando para trás a casa e o emprego. Isso é ficção. 9- Até quando será preciso manter o consumo reduzido? Pelo menos até a temporada de chuvas do segundo semestre deste ano, que tem início no fim de setembro. No entanto, se as médias de precipitação novamente ficarem abaixo das marcas históricas, como ocorre há dois anos, a crise poderá se estender. 10- A água do volume morto é potável? Depois de tratada, sim. Toda água que chega às torneiras tem a qualidade exigida para o consumo. Uma associação de consumidores testou sua potabilidade, e a aprovou. Mas é normal que ela chegue com aparência e cheiro um pouco diferentes, pois, na origem, está dentro do solo, e a diminuição da vazão em reservatórios faz com que ela fique um pouco esbranquiçada logo depois que a pressão é aumentada novamente. 11- Quando a oferta de água será normalizada? Dois anos é o prazo mínimo para que o sistema se recupere. Isso se forem mantidas as atuais condições de consumo e de chuvas, e se o governo adotar esperadas medidas de reestruturação do abastecimento. No entanto, como a população urbana só tende a aumentar e a demanda por bens e serviços também, o recomendado é adotar os padrões sustentáveis de consumo de forma definitiva para evitar crises futuras. 12- Por que, se não há água, é grande o risco de ocorrer um apagão de luz? Três quartos da geração de energia no Brasil são garantidos por hidrelétricas, que dependem de água para funcionar. Se falta chuva para abastecer as usinas, não se pode confiar na capacidade delas para continuar com a produção. Neste verão, o aumento do uso de energia já sobrecarregou as usinas e foi necessário cortar o fornecimento por um período. 13- Então, além de água, ficaremos sem luz? Não necessariamente. Para restringir o uso de hidrelétricas, no ano passado o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) decidiu aumentar a capacidade de geração das termelétricas, que custam mais caro. E soluções emergenciais, como a importação de energia de países vizinhos, já são aplicadas. Mas o consumidor sentirá no bolso o efeito dessa substituição: a conta de luz chegará mais cara quando as termelétricas forem ativadas com mais intensidade e a importação começar para valer. 14- Como reverter a situação? É preciso chover, antes de mais nada. Os dois subsistemas com maior capacidade de geração de energia hidrelétrica — o Sudeste/Centro-Oeste e o Nordeste — estão operando com menos de 20% de seu potencial, o que só melhorará quando o nível de água armazenada nos reservatórios subir. 15- Como economizar? Não se pode culpar a população pela crise, um efeito da combinação de imprevisíveis mudanças climáticas com ingerência governamental. Mas, agora que a seca está estabelecida e apagões energéticos podem ocorrer a qualquer momento, cada cidadão pode fazer sua parte para aliviar a situação. De modo geral, a regra é prestar atenção em hábitos diários e reduzir o consumo ao máximo. Algumas dicas para economizar água... • tome banhos de no máximo cinco minutos • feche a torneira enquanto escova os dentes, faz a barba e lava a louça • não deixe o chuveiro ligado enquanto se ensaboa • reaproveite a água, utilizando baldes para reciclar o que é gasto em máquinas de lavar e para armazenar a água fria da ducha enquanto espera que ela esquente • não lave carros, calçadas, pátios nem regue jardins que possam captar água das chuvas • se for dono de um comércio ou empresa, é possível adotar ações como trocar os copos de vidro pelos de plástico • no trabalho, estimule colegas a aderir às mesmas atitudes sustentáveis (e lembre que é preciso economizar também no escritório) ...e luz • não deixe luzes acesas sem necessidade, como quando não há pessoas em um cômodo • desligue aparelhos, mesmo televisores e computadores, quando não estiverem sendo utilizados • reduza o uso do ar-condicionado em casa e, se possível, no trabalho • aproveite a luz solar durante o dia: em vez de utilizar lâmpadas, abra janelas para ganhar iluminação • troque as lâmpadas quentes pelas frias, mais econômicas • opte pela compra de eletrodomésticos que gastem menos energia 7#5 O VILÃO DA HISTÓRIA A ciência deixa pouca margem para dúvidas: o aquecimento global acelerado pelo ser humano é culpado por climas extremos — mas essa evidência não absolve as autoridades da inépcia nos cuidados com o ambiente. RAQUEL BEER É um fato incontornável: o planeta passa por um aquecimento global intenso, e a maior parte da responsabilidade pelo descompasso do clima é do ser humano. Com fábricas, carros e o desmatamento generalizado de habitats, multiplicamos por 180 a quantidade de CO2 na atmosfera desde a Revolução Industrial, motor do efeito estufa, responsável pelo aumento de 0,8 grau na temperatura da Terra. Parece pouco, mas foi o suficiente para consolidar um caos climático que se agrava: o calor elevado faz com que eventos extremos, como tempestades e secas duradouras, sejam cada vez mais frequentes. Em 2014, o ano mais quente desde que começaram os registros, em 1880, a situação só piorou. A Califórnia, o estado mais populoso dos Estados Unidos, por exemplo, registrou secas recordes. A Inglaterra e a Índia enfrentaram enchentes colossais. Cabe, portanto, a pergunta: a falta de chuvas e o calorão do início de janeiro no Sudeste brasileiro são também filhos do aquecimento global? Climatologistas dizem não ter certeza, pois dependem de projeções de longo prazo para responder. Ou seja, precisam esperar para verificar se a situação se repete por muitos anos ou se se trata de uma anomalia, provocada por algum fenômeno climático pontual e ainda desconhecido. Mas, afastada a minuciosidade exigida por comprovações científicas, é concebível concluir que o aquecimento planetário está na origem da seca. E, se essa é a resposta, pode-se esperar por tempos ainda mais áridos nas próximas décadas. Dizer que 2014 foi o ano mais quente da história soa a repetição — desde 1978, todos foram mais quentes que a média histórica. Uma pessoa de 38 anos, portanto, só viu o termômetro anual subir desde que nasceu. A probabilidade de alguém acertar ao apostar que 2015 baterá o recorde do ano passado é imensa. Trata-se de uma lógica cujo desfecho é um cenário de contornos assustadores, com evidentes repercussões econômicas, e que alguns, com certo exagero, denominam de apocalípticos. O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), órgão da ONU, foi assertivo em seu mais recente relatório, divulgado em novembro. Mesmo em uma situação otimista, na qual a humanidade atingiria a meta de cortar por completo as emissões de CO2 até 2100 — o que exigiria a substituição da queima de combustíveis fósseis, como petróleo, por fontes renováveis como a principal matriz energética da civilização —, espera-se uma elevação de 2 graus na temperatura do planeta. Se nada for feito, o aumento chegará a 4 graus. Nessa condição, áreas semiáridas como o sertão brasileiro virariam desertos, florestas tropicais sumiriam do mapa e a atual falta de água em São Paulo seria quase um conto de fadas diante do clima de secura que se instalaria sobre a cidade. "Tudo indica que teremos de nos preparar para climas radicais, que antes do aquecimento eram mais raros", diz o físico Paulo Artaxo, professor da Universidade de São Paulo e membro do IPCC. É irreversível? A curto prazo, sim. Medidas de adaptação e mitigação devem, contudo, ser tomadas para evitar desastres ambientais. Cidades acometidas por tempestades de intensidade cada vez mais elevada precisam se reestruturar para aumentar o escoamento da água pelas ruas e evitar enchentes; onde há seca é necessário combater o desperdício de água com ações como multas para quem exceder o consumo tolerável. Já a longo prazo é possível retardar o aquecimento e balancear o clima. A receita é quase um mantra. Governos têm de estabelecer medidas que levem à diminuição da emissão de CO2 até o corte completo. Em paralelo, uma mudança ainda mais necessária precisa ocorrer: cada um dos 7 bilhões de habitantes do planeta tem de colaborar com a adoção de hábitos sustentáveis, como reciclar o próprio lixo e consumir menos água. 7#6 A GUERRA PELO ÁRTICO O derretimento do mar congelado do Polo Norte tornou acessível uma área que concentra 13% do petróleo não explorado do mundo. Quatro países já disputam a região. RAQUEL BEER O Ártico é, disparado, a região mais afetada pelo aquecimento global. Enquanto a temperatura do planeta se elevou 0,5 grau desde 1980, com transformações radicais no clima, no Polo Norte o aumento foi de 1,6 grau. O efeito direto foi o derretimento de 30% do oceano de superfície congelada que se espalha pelo território. Além de destruírem o bioma, que corre o risco de se transformar em uma imensa floresta (atalho para a extinção de espécies endêmicas, como o urso-polar), as mudanças climáticas ainda tiveram como consequência o surgimento de um conflito entre quatro países que pode provocar sérias disputas políticas, ou até bélicas. O motivo por trás de tamanho interesse pelo Ártico é, como de costume, financeiro. O derretimento do mar levou à abertura de novas rotas marítimas, antes intransponíveis, e de áreas ricas em gás natural e petróleo. O que fez com que Estados Unidos, Rússia, Canadá e Dinamarca reivindicassem como seus territórios considerados até agora neutros, de águas internacionais. A tensão aumenta por compartilharem o interesse pelas mesmas regiões. Algumas nações já têm um pedaço do oceano polar para chamar de seu. A Convenção de Direito do Mar, criada em 1982 pela ONU, estabelece que cada país tem direito à exploração dos recursos marítimos presentes em uma faixa de 370 quilômetros a partir de sua costa, as chamadas zonas econômicas exclusivas (ZEEs). A regra se aplica ao Ártico, que faz fronteira com cinco países: Estados Unidos (pelo Alasca, território americano), Canadá, Rússia, Noruega e Dinamarca (graças à Groenlândia). Estabelecidas as ZEEs, porém, restaram 3 milhões de quilômetros quadrados, o equivalente a 25% do oceano polar, que viraram águas internacionais, não pertencentes a governos. E é para essa parcela que estão voltados os olhos. Estima-se que lá estejam 30% do gás natural e 13% das reservas de petróleo ainda não descobertas no mundo. O conflito se intensificou no último ano, quando a ONU aprovou a concessão para a Rússia de um território, antes neutro, de 52.000 quilômetros quadrados no Mar de Okhotsk. A ofensiva russa despertou temor nos outros países com influência no Ártico, e em dezembro passado a Dinamarca submeteu à ONU um documento reivindicando uma área de 895.000 quilômetros quadrados — mais de vinte vezes maior do que a própria Dinamarca. O argumento é que a Groenlândia estaria conectada a uma área embaixo do Polo Norte por uma crosta continental submarina. Na sequência, Estados Unidos e Canadá avisaram que também pediriam sua fatia. Conhecido pelo gosto por conflitos, o presidente russo Vladimir Putin rapidamente adotou manobras perigosas: reativou uma base militar que datava da época soviética, enviou navios militares e drones e estabeleceu mais tropas no Polo Norte. Com isso, levantaram-se os alicerces para o palco de uma possível guerra (se não bélica, política), que pode, inclusive, prejudicar ainda mais o habitat. Ambientalistas advertem que a exploração comercial e militar pode acelerar a destruição da fauna e da flora do Ártico. ______________________________________ 8# ARTES E ESPETÁCULOS 28.1.15 8#1 CINEMA – A INDISCUTÍVEL VIRTUDE DA INTELIGÊNCIA 8#2 CINEMA – TANTO BARULHO POR TÃO POUCO 8#3 CINEMA – CORPO, MENTE E ESPÍRITO 8#4 CINEMA – SARAPATEL GOURMET 8#5 MÚSICA – IMPROVISO VIVO 8#6 LIVROS – GUINADA PARA A RAZÃO 8#7 VEJA RECOMENDA 8#8 OS LIVROS MAIS VENDIDOS 8#9 J.R. GUZZO - DEUS NOS AJUDE 8#1 CINEMA – A INDISCUTÍVEL VIRTUDE DA INTELIGÊNCIA Birdman, do diretor Alejandro Iñárritu, leva Michael Keaton à mais extraordinária viagem de sua carreira ISABELA BOSCOV Riggan Thomson era um astro de primeira grandeza quando interpretava o super-herói Birdman, ou "homem-pássaro". Mas recusou fazer o quarto filme da série, perdeu popularidade, entrou em decadência e, com o ego assim tão diminuído e maltratado, perdeu seu senso de identidade. Neste exato momento em que está começando o feérico, ofuscante, explosivo e implosivo Birdman ou A Inesperada Virtude da Ignorância (Birdman or The Unexpected Virtue of Ignorance, Estados Unidos/Canadá, 2014), que estreia nesta quinta-feira no país com uma justíssima penca de indicações ao Oscar, Riggan está no seu camarim no Teatro St. James, em Nova York, tentando acalmar-se. Dentro de instantes ele vai voltar ao ensaio da peça que adaptou de um conto de Raymond Carver, e que também dirige e protagoniza — uma última e desesperada tentativa de recuperar prestígio. Mas um dos atores é péssimo e o está levando à ira. Mais alguns segundos, porém, e a salvação vai chegar: um spot de luz vai despencar sobre a cabeça do colega sem talento e nocauteá-lo. Riggan vai ficar primeiro feliz, e logo em seguida aflito: Mike Shiner (Edward Norton), o ator mais festejado e mais arrogante da Broadway, está pronto para preencher a vaga. Assim que entrar pela porta do St. James, Mike vai começar a espalhar a discórdia. Vai, de cara, tomar conta da peça e aprofundar as incertezas de Riggan — cujo nervosismo, pulsando e repercutindo como a bateria que acompanha a ação, vai manter Birdman em um nível de energia exorbitante. O novo filme do diretor mexicano Alejandro González Iñárritu (que conseguiu esconder completamente o imenso senso de humor que demonstra em Birdman em trabalhos como Amores Brutos, 21 Gramas e Babel) existe todo ele, sem pausa para a respiração, no limiar tumultuado entre este momento e o próximo, uma zona fronteiriça que ainda não chega a ser o futuro mas já escapou ao controle do presente. Se o transcorrer do tempo é a matéria-prima do drama, e a manipulação do tempo é a essência do cinema, Birdman é uma junção notável desses dois conceitos: é a tragicomédia de Riggan avançando no embate com Mike, com sua namorada (Andrea Riseborough), com sua ex-mulher (Amy Ryan), com sua filha desencantada e indignada (Emma Stone, ótima), com seu produtor ansioso (Zach Galifianakis) e principalmente com seu próprio ego, dentro de um tempo que é exclusivo da sua percepção e consciência. Por isso a semana em que a história se desenrola está comprimida em duas horas sem que, no entanto, os cortes entre as cenas sejam perceptíveis (outro feito sensacional do diretor de fotografia Emmanuel Lubezki, de Gravidade), como se o filme fosse um único plano-sequência que se desdobra em tempo real. Vale esclarecer que não, Birdman não é um único plano-sequência (crédito que até hoje só Arca Russa (2002), de Aleksandr Sokurov, pode reivindicar): à maneira de Festim Diabólico, que Alfred Hitchcock dirigiu em 1948, ele é composto de vários planos-sequência unidos por emendas invisíveis. Hitchcock tinha de planejar uma emenda a cada dez minutos no máximo, para poder trocar o magazine de celuloide na câmera. Iñárritu e Lubezki têm o benefício das câmeras digitais que não levam filme e são leves e ágeis, capazes de se movimentar com total liberdade pelo labirinto de corredores e camarins do St. James. O que, verdade seja dita, só torna o trabalho mais complexo, uma vez que praticamente não existe limite para a dificuldade que equipe e elenco se dispõem a enfrentar. Além disso, sete, ou dez, ou doze minutos de ação ininterrupta num set de filmagem são uma eternidade. Concentração absoluta e impulsão no máximo são exigidas de cada um dos participantes — daí o ritmo atordoante que Birdman sustenta do primeiro ao último instante. São tão impressionantes os desafios técnicos e artesanais de Birdman que se corre o risco de, ao enumerá-los, passar a impressão de que o filme apela antes de tudo ao senso estético de uma plateia especializada, ou às comichões formais dos críticos de cinema. Nada mais injusto: o saldo desses exercícios é uma energia crua e intensa, e uma palpitação fundamentalmente humana. Da mesma forma, pode-se imaginar que o grande lance de esperteza de Iñárritu é pôr Michael Keaton no papel de Riggan não por seu apuro técnico, sua versatilidade e seu repertório, mas por seu passado como o superastro que interpretou Batman sob a direção de Tim Burton em 1989 e 1992, e que enfrentou uma perda drástica de popularidade após decidir que não faria o terceiro filme da série. É lógico que esse conhecimento em primeira mão que Keaton tem das circunstâncias de seu protagonista entrou nas contas de Iñárritu ao oferecer-lhe o papel (na verdade, ao escrever o roteiro especificamente com o ator em vista). E é natural também que Keaton, em entrevistas, tenha tentado separar com a maior clareza possível sua trajetória da de Riggan. "No que diz respeito a paralelos, nunca me identifiquei tão pouco com um personagem", declarou ele. A distância que Keaton quer estabelecer é justa: se Batman ou o que se seguiu a ele o atormentassem da maneira como Birdman atormenta o inseguro Riggan, se essa não fosse para ele uma experiência integralmente metabolizada e equacionada, Keaton não seria capaz deste seu desempenho colossal em Birdman — uma manifestação de inteligência, autoconhecimento, competência e segurança como poucas vezes na carreira um ator tem a oportunidade de construir. E uma manifestação também de compaixão para com este patético Ícaro que, se não puder voar até perto do Sol pelo menos mais uma vez, vai sucumbir a este que é o mais insensível dos tiranos — o ego, sempre. AS INDICAÇÕES Melhor filme Direção - Alejandro Iñárritu Ator - Michael Keaton Ator coadjuvante - Edward Norton Atriz coadjuvante - Emma Stone Roteiro original Fotografia Edição de som Mixagem de som 8#2 CINEMA – TANTO BARULHO POR TÃO POUCO O norte-coreano Kim Jong-um e A Entrevista se merecem. Se A Entrevista (The Interview, Estados Unidos, 2014), que depois de muito bafafá estreia no país nesta quinta-feira, fizesse jus ao seu argumento, este daria um ótimo esquete absurdista ao estilo daqueles que o diretor John Landis fazia nas décadas de 70 e 80, em filmes como Mulheres Amazonas na Lua ou Kentucky Fried Movie: um apresentador de TV idiota e seu produtor são convidados a visitar a mais fechada ditadura do planeta porque o ditador adora o programa de fofocas que eles fazem — mas se vêem incumbidos pela CIA de assassinar o ditador, missão para a qual são desastradamente inadequados. Como de hábito nos filmes em que Seth Rogen e James Franco fazem dupla, porém, essa boa ideia está soterrada sob camadas irremovíveis de entulho: egotismo desenfreado, escatologia gratuita e piadas pateticamente infantilizadas de sexo. É razoável supor que pelo menos parte do público atraído sabe-se lá por que aos cinemas por mais uma empreitada Rogen/Franco nem conhecesse a reputação de Kim Jong-un, ou ignorasse a brutalidade da miséria e das violações de direitos que ele impõe aos norte-coreanos. Ditadores, porém, tendem por natureza à estupidez, e Kim Jong-un jogou os holofotes sobre a paródia hackeando e-mails dos executivos da Sony, postando arquivos piratas dos filmes do estúdio e ameaçando explodir cinemas por intermédio de uns tais Guardiões da Paz. Resultado: falou- se muito mais do filme do que ele próprio jamais seria capaz de justificar. Se A Entrevista tem algo de positivo, é estritamente isto: agora até quem nunca leu um noticiário está informado de quem é Kim Jong-un, e o que ele faz. Não fossem a perigosíssima capacitação nuclear da Coreia do Norte, a fome epidêmica que arrasa o país e a truculência de seu regime, Kim Jong-un, o terceiro na dinastia de ditadores que se instalou na Coreia comunista após a II Guerra Mundial, seria apenas ridículo: como seu pai e seu avô, ele instituiu um culto divino à sua personalidade, mas, com aquela sua cara de quem não é a lâmpada mais brilhante do lustre, a adoração parece singularmente descabida. A soma de perigo e ridículo, porém, é o que o torna um alvo natural — necessário, pode-se dizer — para a sátira. Rogen e Franco, porém, estão muito mais interessados em si mesmos do que no seu alvo excelente. Mas, sobretudo Franco, são tolos, espaçosos, sem imaginação e mansos como gatinhes. Não é só Kim Jong-un que se idolatra sem razão. ISABELA BOSCOV 8#3 CINEMA – CORPO, MENTE E ESPÍRITO Mais até do que a perfeição técnica e sua compreensão do personagem, é o júbilo com que Eddie Redmayne vive Stephen Hawking que eleva A Teoria de Tudo. ISABELA BOSCOV Interpretar uma personalidade cujo brilhantismo supera qualquer parâmetro é um desafio singular para um ator: a inteligência não é algo que se possa imitar ou fingir, mas é preciso ao menos compreendê-la e adivinhar a sua natureza particular. Quando a personalidade está viva ainda, assim como as outras pessoas envolvidas em sua história, o senso de responsabilidade não raro se torna sufocante: é fácil confundi-lo com a necessidade de ser não apenas justo, mas reverente, de suavizar arestas e censurar — ainda que por motivos benignos — falhas. Se o retratado vive um drama pessoal profundo, como é o caso do cientista inglês Stephen Hawking, outro risco se acrescenta: basta a empatia resvalar em comiseração e tem-se uma receita quase certa para a derrota — isso para nem falar ainda no alto grau de dificuldade técnica e física acarretado pela progressão da doença degenerativa neuromotora que já na década de 60 começou a roubar a Hawking seus movimentos, até deixá-lo completamente paralisado e dependente de um músculo da face para acionar um sintetizador de texto e voz. São imensos, portanto, os obstáculos enfrentados pelo jovem ator inglês Eddie Redmayne em A Teoria de Tudo (The Theory of Everything, Inglaterra, 2014), que estreia nesta quinta-feira no país com cinco indicações ao Oscar — e é necessário arrolá-los para que se tenha a correta dimensão da leveza de sua interpretação, da aplicação com que ele estuda seu personagem e da alegria que infunde nesse trabalho. A Teoria de Tudo — nome que leva a equação que Hawking, hoje com 73 anos, espera ainda ser capaz de formular, a qual conciliaria as regras da relatividade geral com as da física quântica para explicar todo o universo — baseia-se nas memórias de Jane Hawking, a primeira mulher do físico. Contrastado com o relato dela sobre os 26 anos de casamento iniciados em 1965, o filme incorre, sim, em grandes quantidades de suavização e romantização (embora Jane continue a apoiar o projeto e tenha inclusive visitado o set de filmagem em companhia do ex-marido). Quando os dois estudantes da Universidade de Cambridge (ele de física, ela de poesia ibérica medieval) ataram o namoro, Hawking já recebera o diagnóstico do que hoje se sabe ser uma variante rara da esclerose lateral amiotrófica (ELA) — e a estimativa de que viveria apenas mais dois anos. Diálogos bastante sentimentais, como aquele em que Jane diz ao pai de Hawking que iria lutar ao lado dele contra a doença, nunca ocorreram. A separação foi um bocado mais amarga e contenciosa do que se mostra. Mas, dramatizações à parte, o diretor James Marsh — autor de grandes documentários como O Equilibrista e Projeto Nim — preserva certas essências admiráveis. Começando pela década mágica dos 20 anos, em que mesmo em face de diagnósticos arrasadores tudo de certa forma ainda parece possível, progredindo por um casamento tornado cada vez mais difícil pela ELA, pelo nascimento dos filhos, pela dominância da carreira de Hawking em detrimento da de sua mulher e pela paixão de Jane pelo músico Jonathan Jones (com quem ela é hoje casada), Marsh abre a mais larga das portas para que se vislumbrem seus personagens: os sentimentos e emoções que afetam igualmente as mentes mais brilhantes, como o humor, a lealdade, a ambivalência, a posse, o desânimo e a obstinação. Há aí um considerável sacrifício da ciência; quem deseja entender o pensamento de Hawking deve procurar não o filme, mas seus livros, como o indispensável Uma Breve História do Tempo (aliás, o brilho no olhar de Redmayne quando ele chega a esse título de elegância impossível diz mais sobre a agudeza de Hawking do que qualquer outra cena do filme). Felicity Jones, como Jane, ombreia com Redmayne cena a cena; é tão protagonista de A Teoria de Tudo quanto ele próprio, e às vezes mais do que ele — o que não deixa de ser uma forma de fazer justiça à Jane real, cuja determinação propiciou a Hawking a oportunidade de fazer a revolução científica pela qual ele é venerado. O êxito de James Marsh, no saldo final, está em algo tão intangível, mas também tão cheio de cor, quanto a trilha belíssima de Jóhann Jóhannsson ou a atuação de Felicity e Redmayne: está em apresentar também em corpo e espírito um homem cuja mente ofusca todo o resto. AS INDICAÇÕES Melhor filme Ator — Eddie Redmayne Atriz — Felicity Jones Roteiro adaptado Trilha sonora 8#4 CINEMA – SARAPATEL GOURMET Com mais contos de fadas que o normal em um produto Disney, Caminhos da Floresta não encanta como deveria. Caminhos da Floresta (Into the Woods, Estados Unidos, 2014), que estreia nesta quinta-feira no país, é um daqueles musicais de alta estirpe da Broadway. Traz o selo de qualidade da prestigiosa dupla de composição e dramaturgia Stephen Sondheim e James Lapine, e, desde sua estreia, em 1987, recebeu os mais altos prêmios, mereceu várias remontagens, foi encenado em diversos países e entrou para o repertório de recitais. Estava havia pelo menos uma década na fila para virar filme — com Cher cotadíssima para o papel da bruxa —, até a Disney finalmente abraçar o projeto, em 2013. Trata-se, afinal, de material sob medida para o estúdio que deve seu sucesso a príncipes, princesas, fadas e feiticeiros em geral. Muito antes do atual filão dos mashups — obras construídas a partir da fusão de duas ou mais fontes já existentes, numa espécie de sarapatel criativo —, Sondheim e Lapine misturaram alguns contos infantis dos irmãos Grimm (a saber: Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, Rapunzel e João e o Pé de Feijão), alinhavaram tudo em uma estrutura semelhante à de Sonho de uma Noite de Verão, de Shakespeare, e adicionaram toques freudianos para contar uma fábula de busca, descoberta e transformação. Ela começa com o inevitável ''Era uma vez...", mas só termina algum tempo depois do inconvincente "...e viveram felizes para sempre". Um padeiro (James Corden) e sua mulher (Emily Blunt, encantadora) vivem numa pequena aldeia, lamentam não ter filhos e têm problemas com a vizinha, literalmente uma bruxa (Meryl Streep, indicada ao Oscar de coadjuvante). Depois de armar um barraco com o casal, a feiticeira propõe uma trégua: se no prazo de três meias-noites eles lhe trouxerem cinco itens mágicos que pertencem aos personagens da carochinha, ela removerá o feitiço que os tornou estéreis (e, de quebra, recuperará a beleza). É a deixa para bons momentos de comédia: o show do Lobo Mau (Johnny Depp), príncipes encantados canastrões e pura subversão — Cinderela (Anna Kendrick) tem medo do casamento. Mas na segunda parte, quando o encanto se evapora e os personagens caem na real, a narrativa emperra e vira lição de moral e bom comportamento. Se no palco o clima era sombrio e dramático — e ainda havia lugar para A Bela Adormecida, Branca de Neve e João e Maria —, a Disney é a vovozinha que aconselha os netinhos a não sair sem agasalho nem ir para a cama sem escovar os dentes. Assim, a canção final, que propõe uma reflexão ("Cuidado com as coisas que você diz, as crianças vão ouvir"), acaba soando exatamente como aquilo que é — um tremendo anticlímax. MÁRIO MENDES 8#5 MÚSICA – IMPROVISO VIVO Há mais de três décadas nos Estados Unidos, o saxofonista Ivo Perelman desbrava a vertente mais difícil do jazz. Há dois tipos de jazz. O primeiro, mais acessível, vem dos tempos em que o gênero era sinônimo de música para jovens. São temas das grandes orquestras e da turma do swing, que criaram standards até hoje reinterpretados e revisados. O segundo tipo, herdeiro do bebop, vertente surgida na segunda metade dos anos 40, inova ao criar melodias complexas, solos atonais e canções praticamente impossíveis de ser dançadas ou assobiadas. Mas esse jazz "torto" é tão belo e essencial quanto aquele mais convencional. O saxofonista Ivo Perelman, de 54 anos, pertence à segunda escola. E, nessa categoria, são raros os que o superam em ousadia e produtividade. Expert na improvisação, em maio esse paulistano radicado em Nova York lança cinco discos, entre duetos de saxofone e piano (com o americano Matthew Shipp, parceiro constante) e um tributo aos ídolos do sax tenor — não são covers, mas composições que fazem referência a figuras como John Coltrane e Sonny Rollins. Recentemente, aliás, Rollins elogiou Perelman na DownBeat, revista especializada em jazz. "O saxofone é um instrumento versátil, e esta música é um exemplo de sua sonoridade abundante", disse Rollins sobre Singing the Blues, composição do brasileiro. O saxofone não foi a primeira paixão de Perelman, que cedo se inclinou para as cordas, em namoricos com o violão, o bandolim e o violoncelo. Só aos 16 anos ele tocou o sax pela primeira vez, e não o largou mais. "Eu vi a luz. O bicho gritava na minha frente como se tivesse vida própria", diz. Perelman já buscou inspiração no folclore brasileiro e judaico, no repertório do pianista Thelonious Monk e até nos escritos de Clarice Lispector. Com o passar do tempo, foi largando essa música mais "planejada" para se voltar para a improvisação. "Hoje faço música criada na hora", explica. São composições provocadoras, como atestam o disco A Violent Dose of Anything, no qual dialoga com o piano de Shipp e a viola de Mat Maneri, ou The Clairvoyant, música que dá título a outro disco, e cuja aparente calmaria inicial se torna um intrincado exercício de improvisação de Perelman, Shipp e do baterista Whit Dickey. Escutá-las exige familiaridade com as vertentes mais radicais do jazz — e é sempre reconfortante conhecer um artista que desafia os dogmas da "música fácil". "Improvisar é colocar para fora meu conteúdo filosófico e profissional", diz o músico. Perelman também pinta, e suas telas obedecem ao mesmo espírito improvisador: "Seria impossível para um artista desdobrar-se em duas mentes produtivas". Pode ser uma definição do improviso: pintar como quem toca um instrumento; tocar um instrumento como quem pinta. SÉRGIO MARTINS 8#6 LIVROS – GUINADA PARA A RAZÃO Uma biografia de San Tiago Dantas, eloquente defensor da democracia em 1964, examina sua simpatia de juventude pelo fascismo. CARLOS GRAIEB Ainda na adolescência, Francisco Clementino de San Tiago Dantas encontrou no intelectual francês Maurice Barres um lema que repetiria pela vida afora: "Saber, ter, poder". Deveria ser uma sequência de conquistas. Primeiro se adquiria o conhecimento, que então levaria ao dinheiro, que abriria as portas do mundo político. A vida de Dantas acompanhou quase que perfeitamente essa lógica. Ele era um estudante voraz, tinha o dom da clareza analítica e fez nome muito cedo como intelectual; ocupou sua primeira cátedra aos 26 anos, o que lhe valeu o apelido de ''catedrático menino''. Seu escritório de advocacia no Rio de Janeiro conquistou grandes clientes, principalmente empresas multinacionais, e ele se viu rico o bastante para investir numa importante coleção de arte. E a política — bem, na política as coisas foram um pouco mais complicadas, como mostra San Tiago Dantas — A Razão Vencida (Singular; 768 páginas; 70 reais), o primeiro volume de uma biografia escrita pelo advogado Pedro Dutra. O livro abrange os anos de 1911 a 1945. Mas convém saltar até o fim da vida de Dantas para mostrar o trajeto que ele cumpriu. Dantas morreu em 6 de setembro de 1964, depois de lutar contra um câncer que surgiu em sua mama direita e se espalhou de maneira devastadora pelos pulmões. Cinco dias depois de sua morte, a imprensa publicou seu "testamento político": Nota Prévia sobre o Reagrupamento das Forças Políticas Brasileiras, em 1964. Ele propunha que uma frente de homens públicos se unisse em torno de uma agenda de reformas do sistema político, que poderia convencer os militares a devolver o poder aos civis e levar a uma "reconciliação histórica e institucional" com o regime democrático. Dois pontos sobressaem na Nota. Primeiro, o tema da democracia, que havia se tornado recorrente nos artigos e nas palestras de Dantas. ''A preservação e o fortalecimento da democracia representativa constituem um objetivo inalienável da nossa civilização", dizia. Em segundo lugar, Dantas se apresentava como um conciliador num tempo de extremismos. Pouco antes do golpe, ele já havia procurado articular uma outra frente pluripartidária, para dar sustentação ao governo de João Goulart, de quem era aliado. A ideia foi bombardeada por todos os lados, mas de maneira especialmente viciosa pela esquerda — campo político do próprio Dantas. Para apontar esses colegas radicais, cunhou a expressão "esquerda negativa". Se esse é o final da história, no começo há um personagem muito diferente. Sua primeira devoção foi às ideias de conservadores católicos brasileiros como Jackson de Figueiredo e Alceu Amoroso Lima, para os quais as sociedades liberais eram decadentes e a alternativa socialista, inaceitável. Antes de completar 18 anos, contudo, Dantas encontrou uma saída para o dilema: o fascismo. Quando estourou a Revolução de 1930, ele já tinha entre seus papéis o esboço do estatuto de um Partido Nacional Fascista Brasileiro. O que definia Dantas a essa altura era a pressa. Ele queria ver sem demora um regime autoritário implantado no país, sob a liderança de um líder carismático. Quis a sorte, contudo, que coubesse ao escritor Plínio Salgado e a sua Ação Integralista Brasileira (AIB) macaquear no Brasil o fascismo italiano, com marchas de camisas-verdes e saudações com o braço estendido (acompanhadas do grito "anauê!"). Desde cedo ficou claro para Dantas que faltava ao amigo Plínio Salgado a determinação férrea de quem deseja abocanhar o poder. Mas, como o movimento crescia, Dantas se manteve em sua órbita. Foi talvez o mais desabusado defensor do fascismo no Brasil. Ele aprovava a lição do grande estruturador legal do fascismo italiano, o jurista Alfredo Rocco, para quem era preciso "combater todos os demais partidos seguindo o método da mais decidida, racional, sistemática intransigência". É inegável que desejou ardentemente abreviar o caminho do "saber, ter, poder", chegando ao último sem se demorar nos dois primeiros. O avanço da II Guerra levou Dantas a sua guinada ideológica. Em 1941, a ligação com o integralismo já era motivo de constrangimento. Em setembro de 1942, pouco depois de o Brasil declarar guerra aos países do Eixo, Dantas rompeu publicamente com o movimento. E no ano seguinte ele já ensaiava o discurso de defesa do ideal democrático que faria até o fim da vida, temperando-o com a ideia de que era preciso eliminar as grandes disparidades de riqueza no Brasil. Ou seja, ele se deslocava para o trabalhismo. Esse será o tema do segundo volume da biografia, que Pedro Dutra promete para 2016. A transição ideológica de Dantas lhe valeu a pecha de oportunista, que o acompanharia até o fim. É difícil livrar-se da impressão de que sua única paixão política foi de fato pelo fascismo, e de que tudo o que veio depois foi guiado por uma inteligência um tanto gélida e calculista. A pregação democrática de Dantas foi consistente, mas este primeiro livro não permite dizer se ela foi resultado de uma conversão profunda. Não por descuido, mas por falta de evidências, o livro é menos rico na descrição das atitudes e dos sentimentos do jovem Dantas do que na descrição de seu trabalho intelectual. Nesse ponto, contudo, é uma obra notável. Se a história da esquerda brasileira no século XX tem uma farta bibliografia, o número de livros sobre o pensamento conservador no país é bem menor. O grande mérito da biografia é documentar com vagar e detalhe esse lado da história cultural de um século em que o demônio das ideologias venceu até mesmo os mais dotados de razão. 8#7 VEJA RECOMENDA LIVROS O PRAZER DO POEMA, COM ORGANIZAÇÃO E TRADUÇÃO DE FERREIRA GULLAR (EDIÇÕES DE JANEIRO; 368 PÁGINAS; 58 REAIS) • "Deslumbramento" é a palavra-chave com que Ferreira Gullar, 84 anos, define esta coletânea pessoalíssima. O critério com o qual selecionou poemas de mais de oitenta autores, dos mais diversos tempos e nacionalidades, foi só este: versos cuja leitura provocou um "curto-circuito" no poeta maranhense. De uma medida e comedida ode do romano Horácio à vertigem verbal do beat americano Allen Ginsberg, cabe de tudo no rigoroso mas variado gosto do antologista. Camões, Murilo Mendes, Fernando Pessoa — há muitos poetas de língua portuguesa. A maioria dos poemas estrangeiros foi traduzida pelo próprio Gullar, que desejava apresentar a sua interpretação da beleza que descobrira nos originais. E a ordem dos poemas não obedece à cronologia, mas a sutis liames temáticos. É um passeio pela sensibilidade do autor de Poema Sujo — ele mesmo um dos melhores poetas do Brasil. O leitor pode seguir a ordem proposta ou pular aleatoriamente de uma página a outra. Uma coisa é certa: sempre encontrará aquele prazer que é prometido no título do livro. O CÃO DO SUL, DE CHARLES PORTIS (TRADUÇÃO DE RENATO MARQUES; ALFAGUARA; 264 PÁGINAS; 34,90 REAIS) • "Muita gente vai embora do Arkansas e a maioria acaba voltando mais cedo ou mais tarde. Não conseguem atingir a velocidade de escape", diz o protagonista Ray Midge em um trecho deste cultuado romance de estrada. Veloz como um carrão possante é a prosa do americano Charles Portis — ainda que seus personagens sempre voltem ao mesmíssimo ponto de partida, o estado sulista do Arkansas, onde nasceu o escritor. As histórias de Portis, de 81 anos, na verdade foram mais vistas do que lidas. Seu segundo e mais conhecido romance, Bravura Indômita, tornou-se um sucesso do cinema em 1969, apenas um ano após ser publicado, com John Wayne no papel central, e ganharia nova adaptação em 2010. Lançado em 1979, O Cão do Sul fala de um anti-herói turrão. Aos 26 anos, o sistemático e recluso Midge resolve lançar-se num périplo maluco pelo sul dos Estados Unidos, México e América Central com o intuito de reaver a mulher e seu Ford Torino — ambos roubados por um colega de trabalho no setor de revisão de um jornal. A mulher, vá lá, talvez seja um caso perdido. Mas abrir mão do carrão, nem pensar. DVD BELLE (INGLATERRA, 2013. FOX/SONY) • Sir John Lindsay, capitão da Marinha britânica, tomou nos anos 1760 uma atitude espantosa para seu país, seu tempo e sua classe social: não apenas reconheceu como legítima Dido Belle, sua filha com uma ex-escrava, como fez questão de proclamar seu amor pela menina, torná-la sua herdeira e entregá-la aos cuidados de sua família muito aristocrática enquanto viajava o mundo. Essa história verídica e sem precedentes é contada com elegância ácida pela diretora Amma Asante, que ganha vários pontos extras por ter descoberto a novata Gugu Mbatha-Raw para o papel. Dido, como era chamada em casa, foi muito amada também pelos tios que a criaram (Tom Wilkinson e Emily Watson) e por sua prima da mesma idade (Sarah Gadon). Mas, se havia convidados para o jantar, não podia se sentar à mesa com eles: na Inglaterra que então dominava o tráfico de escravos, ninguém aceitaria sua presença em sociedade — até o dia em que o pai de Dido morreu e ela recebeu sua fortuna, quando vários caça-dotes passaram a rondá-la. Em vão, como se vê no filme: Dido em tudo era uma garota à frente de seu tempo. DISCOS TELMA COSTA (KUARUP) • Este é o filho único da discografia de Telma Costa, cantora mineira morta prematuramente, em 1989, aos 35 anos. Irmã da compositora Sueli Costa, Telma tinha um currículo repleto de participações estelares: fez vocais de apoio para Tom Jobim e Vinícius de Moraes e participou de um dueto com Chico Buarque na canção Eu Te Amo. Telma Costa, o disco que agora ganha sua primeira edição em CD, tem produção de Dori Caymmi, que divide os arranjos com César Camargo Mariano e Alberto Arantes (responsável por fazer de Fruta Boa um dos momentos mais delicados do álbum). O repertório traz o que havia de melhor ao tempo da gravação: canções do trio João Bosco, Aldir Blanc e Paulo Emílio, da dupla Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro, de Caetano Veloso (que participa de Certeza da Beleza) e do Clube da Esquina. Telma Costa tinha uma voz pequena, porém muito bem colocada, que lhe permitia passear com desenvoltura tanto por faixas suingadas (Coisa Feita) como por composições que requeriam dramaticidade (Lembra, com solos do guitarrista Hélio Delmiro e do saxofonista Oberdan Magalhães, e Espelho das Águas). THE ART OF McCARTNEY (SONY MUSIC) • Lançada no ano passado para coincidir com os cinquenta anos do início da beatlemania, esta coletânea é um caso raro de homenagem que está à altura do homenageado. O que não é pouca coisa: sir Paul McCartney, além de ser o melhor criador de melodias de sua geração, é zeloso de sua obra — a ponto de emprestar integrantes de sua banda para ajudar na feitura do álbum. Ralph Sall, mentor do projeto, privilegiou convidados que tivessem um mínimo de intimidade com a música do beatle e tratou da seleção com esmero. Nas 34 faixas do álbum (42 numa versão de luxo que não será vendida no Brasil), os veteranos dão um show: Bob Dylan rosna a letra de Things We Said Today, e Cat Stevens (ou Yusuf Islam) confere a dramaticidade certa a The Long and Winding Road. Entre os novatos, The Airborne Toxic Event acerta a mão na versão acústica da açucarada No More Lonely Nights, e Corinne Bailey Rae faz uma leitura graciosa de Bluebird. Outro momento surpreendente ficou por conta da dupla Gene Simmons e Paul Stanley, do Kiss, que faz uma Venus and Mars/Rock Show tão boa quanto a original. 8#8 OS LIVROS MAIS VENDIDOS FICÇÃO 1- Se Eu Ficar. Gayle Forman. Novo Conceito 2- O Pequeno Príncipe. Antoine de Saint-Exupéry. AGIR 3- Para Onde Ela Foi. Gayle Forman. NOVO CONCEITO 4- A Culpa É das Estrelas. John Green. INTRÍNSECA 5- Cidades de Papel. John Green. INTRÍNSECA 6- Somente Sua. Sylvia Day. PARALELA 7- O Irmão Alemão. Chico Buarque. COMPANHIA DAS LETRAS 8- Cinquenta Tons de Cinza. E.L. James. INTRÍNSECA 9- O Sangue do Olimpo. Rick Riordan. INTRÍNSECA 10- Quem É Você, Alasca? John Green. WMF MARTINS FONTES NÃO FICÇÃO 1- Nada a Perder 3. Edir Macedo. PLANETA 2- O Capital no Século XXI. Thomas Piketty. INTRÍNSECA 3- O Diário de Anne Frank. Anne Frank. RECORD 4- Bela Cozinha: As Receitas. Bela Gil. GLOBO 5- Sonho Grande. Cristiane Correa. PRIMEIRA PESSOA 6- Aparecida. Rodrigo Alvarez. GLOBO 7- Tudo ou Nada. Malu Gaspar. RECORD 8- Não Sou uma Dessas. Lena Dunham. INTRÍNSECA 9- Guga – Um Brasileiro. Gustavo Kuerten. SEXTANTE 10- Eu Sou Malala. Malala Yousafzai. COMPANHIA DAS LETRAS AUTOAJUDA E ESOTERISMO 1- Ansiedade. Augusto Cury. SARAIVA 2- Não Se Apega, Não. Isabela Freitas. INTRÍNSECA 3- De Volta ao Mosteiro. James Hunter. SEXTANTE 4- 60 Dias Comigo. Pierre Dukan. BEST SELLER 5- O Poder da Escolha. Zibia Gasparetto. VIDA & CONSCIÊNCIA 6- Geração de Valor. Flávio Augusto da Silva. SEXTANTE 7- O Monge e o Executivo. James Hunter. SEXTANTE 8- As Regras de Ouro dos Casais Saudáveis. Augusto Cury. ACADEMIA DE INTELIGÊNCIA 9- Eu Não Consigo Emagrecer. Pierre Dukan. BEST SELLER 10- Pais Inteligentes Formam Sucessores, Não Herdeiros. 8#9 J.R. GUZZO - DEUS NOS AJUDE A que novos desastres determinas De levar estes reinos e esta gente? Camões, Os Lusíadas Ele continua entre nós, esse incomparável Velho do Restelo, mais vivo do que nunca 500 anos depois de criado pelo gênio de Camões, e sempre em forma para desafiar os poderosos de qualquer lugar e de qualquer época. Hoje, em vez de surgir no melhor da festa em volta da Torre de Belém para rogar sua praga sobre o Gama, na partida das caravelas que saíam da Lisboa de 1497 na esperança de descobrir o Caminho das Índias, nosso duríssimo Velho poderia estar diante da rampa do Palácio do Planalto. Ali, dia sim, dia não, ou provavelmente todos os dias, teria excelentes oportunidades para dirigir à presidente Dilma Rousseff as palavras que dirigiu a Vasco da Gama e a El-Rei de Portugal. Ambos já tinham provocado muita pena e muito dano, pela "glória de mandar" e "vã cobiça"; o que mais queriam fazer de ruim? É o que os brasileiros têm o direito de perguntar à presidente neste começo de seu segundo mandato: depois de tudo o que fez no primeiro, que castigos ainda vai nos aplicar durante os próximos quatro anos? É bom não contar com grande coisa. Em menos de um mês deste segundo governo, Dilma já escolheu aquele que pode ser o pior ministério brasileiro de todos os tempos. Começou a executar uma venenosa derrama que vai punir sobretudo quem vive com mais dificuldade. No momento em que o Brasil mais precisa de harmonia com o mundo desenvolvido, para aliviar as misérias criadas por quatro anos seguidos de decisões econômicas erradas, a presidente resolve ir à Bolívia; foi prestar homenagem ao chefe cocalero que inunda o Brasil com drogas pesadas, tomou propriedades da Petrobras sem pagar um centavo de indenização e transformou seu país num paraíso para a receptação de carros roubados no Brasil. Junto com tudo isso, como se comprovou na semana passada com a queda de energia elétrica em pelo menos dez estados, o governo deixa claro o que vem escondendo há anos: a população brasileira está sob ameaça real de um colapso na oferta de eletricidade. O resumo da obra é ruim. Se em poucos dias de seu novo mandato Dilma conseguiu aprontar tudo isso, que desastres vão cair até 2018 sobre esta terra e esta gente? A crise do setor elétrico é uma tomografia perfeita da doença mais perigosa, talvez, das muitas que mantêm há doze anos na UTI a administração pública deste país — a pura e simples incapacidade dos governos do PT, e especialmente de Dilma Rousseff, de resolver problemas concretos. Na questão da energia, para ficar apenas no fracasso mais recente entre tantos outros — que tal a última prova do Enem, em que 500.000 estudantes da "Pátria Educadora'' tiraram nota zero em redação? —, há todas as evidências possíveis de incompetência maciça, permanente e agressiva. Nos quatro primeiros anos de Dilma, houve 240 apagões de todos os tipos. O que mais seria preciso para o governo descobrir que existe um problema de energia elétrica no Brasil? Mas, como insistiu a presidente o tempo inteiro, só um ignorante poderia pensar em algo parecido. Toda a sua angústia é com o uso da palavra "apagão". Quer que se diga "interrupção" no abastecimento; acha que assim o problema irá embora. A arrogância, a irresponsabilidade e o egoísmo do poder público na gestão da energia elétrica, um exagero até para o "padrão Dilma'' de governo, ficam claros quando se sabe que no primeiro semestre do ano passado técnicos do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) pediram que o governo organizasse um racionamento, pela óbvia falta de oferta. Impossível, respondeu Brasília; estamos em ano eleitoral. Logo depois da eleição, com Dilma instalada no poder para mais um mandato, o pedido foi feito de novo; a resposta foi um outro não. Os profissionais do ONS se espantam, agora, quando o ministro de Minas e Energia jura que não faltará luz elétrica em 2015. "Como o ministro pode dizer isso?", pergunta um deles. "Ele sabe que os reservatórios estão secos e que nunca se consumiu tanto quanto agora, por causa do calor." Nenhum discurso vai mudar o fato de que a crise está aí: o sistema simplesmente não fornece a energia no momento ou nos locais em que é solicitada, e a culpa por isso é de um governo que teve doze anos inteiros para fazer alguma coisa a respeito, mas não fez nada. O ministro agora nos convida a contar "com Deus" para resolver a parada; nem ele acredita mais em Dilma. É muita pretensão. Deus dificilmente terá tempo, ou interesse, para resolver problemas que não criou.