RETROSPECTIVA VEJA www.veja.com editora ABRIL edição 2353 – ano 46 – nº 52 25 de dezembro de 2013 [descrição da imagem: foto que foi tirada na época das manifestações públicas, em que pessoas subiram a rampa do prédio do Congresso Nacional, em Brasília. Algumas pessoas estão com braços para cima, de mãos dadas] DILEMAS ÉTICOS DE 2013 O CERTO E O ERRADO... ______________________________ 1# SEÇÕES 2# A SEMANA 3# RETROSPECTIVAS 2013 – AS VIRTUDES DE 2013 4# RETROSPECTIVAS 2013 – BRASIL 5# RETROSPECTIVAS 2013 – INTERNACIONAL 6# RETROSPECTIVAS 2013 – GENTE 7# RETROSPECTIVAS 2013 – VEJA ESSA 8# RETROSPECTIVAS 2013 – MEMÓRIA 9# RETROSPECTIVAS 2013 – INOVAÇÃO 10# CARTA DE PRINCÍPIOS _________________________________ 1# SEÇÕES 25.12.13 1#1 VEJA.COM 1#2 CARTA AO LEITOR 1#3 ROBERTO POMPEU DE TOLEDO – FICÇÃO – CONTO DE NATAL 1#4 LEITOR 1#5 BLOGOSFERA 1#6 EINSTEIN SAÚDE – PREVINA-SE CONTRA O ESÔFAGO DE BARRETT 1#7 J.R. GUZZO – A CARA DO BRASIL 1#8 MAILSON DA NÓBREGA – PSDB MODERNIZA VISÃO SOBRE FEDERALISMO 1#9 LEGISLATIVO – OS MELHORES PARLAMENTARES DO ANO 1#1 VEJA.COM BALANÇO DA CARREIRA É comum as pessoas chegarem ao fim do ano com questionamentos sobre a profissão: "O que fiz de bom? Será que foi um ano produtivo?". O problema é que, muitas vezes, as respostas não são satisfatórias, os percalços se repetem no ano seguinte e a carreira não avança. VEJA.com traz um guia para orientar nesse balanço profissional e auxiliar a planejar aprimoramentos ou mudanças de rota. O guia foi produzido com a ajuda de três especialistas: Bruna Dias, gerente de carreiras da empresa de recrutamento Cia de Talentos, Eduardo Ferraz, consultor em gestão de pessoas e autor do livro Seja a Pessoa Certa no Lugar Certo, e Bianca Trombelli, coach de carreira. TESOUROS DE PELÉ Nenhum esportista no mundo tem uma coleção de troféus, medalhas e objetos históricos tão rica quanto Pelé. Guardado a sete chaves pelo ex-craque, o acervo pessoal do atleta do século XX deverá ser exibido no seu futuro museu, em Santos. Quem não quiser esperar poderá conhecer as peças mais raras e importantes no livro As Joias do Rei Pelé, do jornalista Celso de Campos Jr., que chega às lojas neste fim de ano. Em VEJA.com, leia com exclusividade um dos capítulos e confira fotos inéditas da coleção de Pelé. ENQUETES Participe de duas votações no site de VEJA: • Na primeira, você escolhe o fato mais marcante do ano - entre eles, o julgamento do mensalão, a renúncia de Bento XVI, a chegada de Francisco e os protestos pelo país. www.veja.com/retro2013 • Na segunda, elege a personalidade de 2013, numa votação organizada em parceria exclusiva com o Twitter no Brasil. www.veja.com/personalidade2013 AS NOVAS VOZES DO POP Promessas contra a mesmice pop, as jovens cantoras Lorde, de 17 anos, e Sky Ferreira, de 21, surgem como apostas para a música em 2014. Lorde, que é neozelandesa, e Sky, americana descendente de portugueses e brasileiros, têm em comum a música eletrônica, mas fogem de fórmulas prontas em seus álbuns de estreia. Reportagem do site de VEJA compara a trajetória das duas e mostra por que elas fazem diferença com suas letras realistas sobre a adolescência e a transição para a idade adulta. 1#2 CARTA AO LEITOR [descrição da imagem: uma grande bola, vermelha, de natal onde aparecem pessoas portando cartazes de protestos, movimento de rua] FELIZ NATAL! São os votos da equipe de VEJA 1#3 ROBERTO POMPEU DE TOLEDO – FICÇÃO – CONTO DE NATAL Pancrácio morava numa ilha e só muito eventualmente vinha à cidade. Num certo Natal, abriu uma exceção e resolveu finalmente aceder ao convite que havia tempo lhe faziam os parentes para partilhar com eles essa noite tão especial. Pancrácio era não só velho — era antigo. Seu nome já é uma evidência disso. Há muitos anos que os cartórios do país não registram o nascimento de nenhuma criança chamada Pancrácio. Acresce que Pancrácio nunca conviveu com pessoas que, tomadas por modas modernas, passassem a chamá-lo de "Pan", ou de "Crácio". Ele era Pancrácio e pronto. Era antigo e não sabia que era antigo, o que é uma forma infalível de tornar irremediável a antiguidade de alguém. Pancrácio foi muito bem recebido pelos parentes. O sobrinho Rafael, destacado empresário, deu-lhe um forte abraço e relembrou os tempos em que, criança, passava férias na ilha do tio, onde aprendeu a nadar e a pescar. Ó que bons tempos!, disse. Era cedo ainda; Pancrácio fora o primeiro a chegar para a celebração. Rafael fê-lo acomodar-se numa poltrona e acomodou-se ao seu lado. Ato contínuo, tirou um fino tijolinho do bolso — não exageremos, Pancrácio sabia o que era: um telefone celular — e passou a dividir o olhar entre o tio e a pequena tela do aparelho. Estavam por enquanto só os dois na sala, mas eis que desponta, vinda da rua, a mulher de Rafael, Sônia. Por sua vez, ela vinha falando ao celular. Sem tirar o telefone do ouvido, aproximou-se de Pancrácio com um largo sorriso, e deu-lhe um beijo em cada face. "E como você conseguiu vir?", disse ela. Pancrácio ia começar a responder quando percebeu que a pergunta não era para ele, mas para a pessoa ao telefone. Nesse ínterim, Rafael, não contente em contemplar o telefone e, eventualmente, passar-lhe a mão, como se o acariciasse, passou a dedilhá-lo furiosamente. Pancrácio sabia, da última incursão à cidade, anos atrás, o que é um telefone celular, mas não daquele tipo, com uma telinha e, ao que lhe era possível discernir, um teclado com letras e números. Sônia finalmente terminou a conversa e ia, agora sim, dirigir a palavra a Pancrácio, quando seu telefone tocou e a levou a engajar-se em outra conversação. Ela deu um adeusinho a Pancrácio com a mão e deixou a sala, para continuar o telefonema em ambiente reservado. Rafael continuava a dedilhar seu aparelho, agora sem nem mesmo levantar os olhos para o tio. Nisso adentra a sala a filha adolescente do casal, Mariana. Ela vinha com dois fios grudados ao ouvido. Tirou um deles ao aproximar-se de Pancrácio, deu-lhe um beijo e lhe disse: "Feliz Natal!". Pancrácio desejou-lhe igualmente um feliz Natal e comentou como ela estava crescida e bonita, mas Mariana não o ouvia mais. Já tinha reposto o fio que faltava no ouvido. Começaram a chegar os convidados. Ricardo, irmão de Rafael, e portanto outro sobrinho de Pancrácio, chegou sobraçando uma pasta de onde tirou... um espelho? uma pequena bandeja? uma fina lâmina de aço? Desta vez Pancrácio não sabia o que era; ao longo da noite, aprenderia que aquilo se chamava tablet. Ricardo vinha com a mulher, Carmen. Os dois foram carinhosos como os precedentes com Pancrácio — estavam muito felizes em vê-lo depois de tanto tempo, que bom que ele tivesse concordado em vir —, mas logo se recolheram a uma mesa, sobre a qual depositaram o objeto e em torno do qual iniciaram uma confabulação não isenta do que pareciam severas discordâncias. "Você não configurou direito", dizia ele. "Mas eu fiz tudo exatamente como costumo fazer." "Como é que não estou conseguindo?" Ricardo e Carmen eram pais de um par de gêmeos, cada um naquele momento na posse de seu próprio aparelhinho. "Cumprimentem o tio Pancrácio", ordenou Ricardo, entre uma discordância e outra com a mulher. Os meninos não conheciam aquele tio, mas eram efusivos. Um deles saltou e pendurou-se ao pescoço de Pancrácio, abraçando-o fortemente, mas sem deixar de, com uma só mão, continuar prodigiosamente a dedilhar seu aparelho, do qual não desgrudava os olhos. Vieram em seguida uma vizinha da mesma idade que Mariana e igualmente com dois fios espetados no ouvido e, enfim, a prima Albertina, que era solteira e mais velha, mas não tão velha quanto Pancrácio. O celular da prima tinha a característica de chamar sua atenção com um assobio, disparado com amiudada frequência e ao qual ela respondia prontamente, mas ainda assim, talvez por uma questão de idade, ela era a pessoa que mais dava atenção a Pancrácio. A noite transcorreu entre contemplação da tela dos respectivos aparelhos, chamadas telefônicas e feroz dedilhamento de teclados. Mariana e a vizinha balançavam o corpo a um canto, uma olhando para a outra, mas seguindo cada uma o ritmo que lhe ditava o respectivo par de fios nas orelhas. Depois cansaram e encaixaram-se as duas numa mesma poltrona, para partilhar um objeto que... Ah, sim, Pancrácio o conhecia, embora não assim tão esguio: era um computador portátil, desses que quando abrem revelam a tela de um lado e o teclado do outro. Nesse mesmo momento Ricardo gritou: "Consegui!", e cessaram as desavenças com a mulher. Ele conseguiu o quê?, perguntou discretamente Pancrácio à prima Albertina. "Conseguiu conexão", respondeu ela. Pancrácio fez que entendeu. Ricardo agora não desgrudava daquilo chamado tablet e Carmen lançava olhares amorosos para a mesma tela, selando a paz entre o casal. Depois Carmen sacou de seu celular e percorreu a sala apontando a maquininha para várias pessoas. "Ela finge que está tirando fotos", sussurrou Pancrácio para a prima Albertina. "Não, ela está mesmo tirando fotos", corrigiu a prima. Sônia em seguida fez a mesma coisa, flagrando os convidados em diferentes situações. Todos passaram a fotografar-se uns aos outros. "Daqui a segundos essas fotos estarão todas no Facebook", explicou a prima Albertina. Pancrácio nem ousou perguntar o que seria aquilo. Pancrácio sentia falta de certos rituais do que entendia por noite de Natal. E a troca de presentes? Rafael fê-lo repetir a pergunta. O quê? Presentes. Não vamos trocá-los? Rafael, mergulhado que estava na tela do celular, voltou penosamente à tona. Ah, sim, presentes. Sim, mas não agora. Nós combinamos de mandar os presentes para a casa uns dos outros, para abrirmos quando quisermos. Aqui seria muita perda de tempo ficar desembrulhando pacote, abrindo caixa... A prima Albertina ajudou Pancrácio a entender, ao sussurar-lhe ao ouvido: "Não dá para ficar muito tempo desconectado". Ele tinha trazido peças produzidas pelos artesãos de sua ilha para presentear os parentes. Decidiu que, se fosse o caso de entregá-las, não seria agora. Chegou a hora da ceia. As crianças e adolescentes foram dispensados de sentar à mesa, para não cortar suas atividades junto a seus aparelhos. Os adultos acomodaram-se depositando ao lado do prato os respectivos celulares e, no caso de Ricardo, o tablet. Pancrácio não tinha como fazer o mesmo, mas nem por isso se sentiu menosprezado. Os outros, entre uma operação eletrônica e outra, continuavam a contemplá-lo com sorrisos e palavras carinhosas. Pancrácio saiu intrigado da experiência daquela noite. Não, não se sentiu menosprezado. Todos se mostraram muito gentis e carinhosos. Ele só se achava algo desatualizado dos costumes da cidade. Graças às explicações da prima Albertina, acabara por entender que as pessoas, naquelas poucas horas, haviam desenvolvido múltiplas atividades. Os celulares permitiam que elas mandassem e recebessem mensagens escritas. Também podiam se inteirar das notícias — como é que se pode ficar sem notícia? — , ou mesmo entreter-se com joguinhos. No tablet, entre outras coisas, podiam ler jornais e revistas sem ter de comprá-los na banca nem entulhar a casa com pilhas de papel. As meninas com fios nas orelhas ouviam músicas — muitas músicas armazenadas num único aparelhinho. Pancrácio concluiu que naquela noite tão instrutiva fora apresentado não apenas a novas engenhocas, mas sobretudo a um novo ser humano, ligado em diferentes canais e capaz de desempenhar múltiplas funções ao mesmo tempo. O mundo era assim, agora. Como fazer para alcançar o mesmo estágio? No Natal seguinte, compareceu empunhando uma grande (e antiquada, claro) mala, quase um baú, que arrastava com dificuldade. Rafael, com a mão esquerda livre, enquanto a direita sustentava o celular, ajudou-o a trazê-la para dentro. Pancrácio escolheu acomodar-se na poltrona vizinha a uma mesa de centro e começou a tirar os objetos de dentro da mala. Primeiro a máquina de escrever. Ele aproveitaria o tempo para escrever cartas aos amigos da ilha. Depois tirou o rádio de pilha, da marca Spica, com o qual se atualizaria nas notícias e relaxaria ouvindo música. Rafael nem notou a movimentação do tio, ocupado que estava em digitar uma mensagem. Já Mariana entrou correndo na sala ao ouvir as primeiras batucadas da máquina de escrever. Que seria aquilo? Encontrou Pancrácio já ligado ao rádio de pilha por um fiozinho preso à orelha (fiozinho de orelha ele também tinha). O tio recebeu-a com um largo sorriso e um beijo, ainda que sem tirar as mãos da máquina de escrever. Mariana achou curioso o teclado, tão parecido com o de seus aparelhos. Deve ter sido copiado do computador, pensou. Grande novidade eram aquelas hastezinhas que levavam as letras até imprimi-las numa folha de papel. Deve ser o que também acontece dentro do computador e a gente não vê. Chegaram Ricardo e Carmen e acharam engraçado ver o tio a martelar a máquina de escrever, mas não tinham tempo a perder e logo se recolheram, ela agora ao tablet, ele ao celular. Já os gêmeos quiseram experimentar bater naquelas teclas que faziam um barulho tão interessante. Pancrácio deixou. Para não perder tempo, enquanto isso, sacou da mala um baralho e começou a dispor as cartas na mesa. Ia jogar paciência. Sônia despontou na sala, e foi premiada com a primeira foto da Kodak que Pancrácio não esquecera de também acrescentar a seu arsenal. A prima Albertina, que chegou em seguida, mereceu a segunda. "Mas desse jeito não dá para postar no Facebook", ela avisou. Pancrácio, ligado ao boletim de notícias no rádio, enquanto avançava no jogo de paciência, não ouviu. Mariana nesse momento voltava da casa do vizinho, trazendo a amiga. Queria mostrar-lhe a máquina de escrever, uma invenção, explicou-lhe, que entre outras características, "está vendo?", dispensa a intermediação da impressora para gerar o texto no papel. "Eu gosto do rolo que roda, vai e volta quando a gente empurra essa asinha", disse a amiga. ''Chama-se 'carro'", explicou Pancrácio. "Carro?", e as meninas riram, tapando a boca com as mãos. "Um carro sem rodas?" Pancrácio puxou da mala um bloco e uma caneta. Era uma caneta-tinteiro. Verificou que não tinha tinta e sacou do tinteiro, no qual mergulhou a caneta. Os gêmeos e as meninas acompanhavam a operação fascinados. Para mais bem usufruir aquele momento de sucesso, abriu a caneta e espirrou a tinta de volta ao tinteiro. Depois, mergulhou-a uma segunda vez e de novo a abasteceu. As crianças seguiam-no pasmas. Pancrácio começou a rabiscar mensagens no bloco e combinou com os gêmeos que eles as levariam a seu destino. A primeira foi para Sônia: "Feliz Natal". Ela respondeu, no verso do mesmo papel, rabiscando com a caneta esferográfica que foi buscar na cozinha: "Feliz Natal para você também, tio Pancrácio". Seguiram-se outras mensagens iguais. Todos acharam ótimo esse método de desejar feliz Natal, porque assim não perdiam tempo dirigindo a palavra uns aos outros. Os gêmeos iam e vinham alegremente e sem descanso. Haviam sido contemplados com uma inesperada diversão. A cada bilhete — e houve muitos, versando também sobre o tempo que fazia naquela noite, os planos para as férias de janeiro, e outros assuntos —, Pancrácio secava o excesso de tinta com um objeto que pareceu às crianças uma gangorra em miniatura. "É um mata-borrão", ele explicou. As meninas olharam-se intrigadas. MA-TA-BOR-RÃOH! Na hora da ceia, repetiu-se o ritual de cada um depositar o celular ao lado do respectivo prato. Pancrácio depositou o rádio Spica, ao qual continuou ligado pelo fio na orelha. As meninas e os gêmeos pediram para, enquanto isso, brincar com as coisas de Pancrácio. Desde que ele chegara, eles não tinham recorrido a seus aparelhinhos. Ao voltar à sua ilha, Pancrácio saboreava o seu triunfo. Não é apenas que, também ele, conseguira mostrar-se um ser múltiplo, plugado simultaneamente em diferentes canais e capaz de exercer diferentes funções. Enchia-o de satisfação ter percebido, enquanto ceava, que as crianças brigavam pela posse do mata-borrão. Ele acertara em trazer seus objetos. No mata-borrão entrevia a chave do futuro. 1#4 LEITOR CORRUPÇÃO Para que uma reforma política seja considerada avanço em nosso país, ela precisará contemplar candidaturas avulsas e votos distritais. Mais de 90% dos países, em todo o mundo, respeitam as candidaturas avulsas — sem a obrigatoriedade de filiação partidária —, enquanto no Brasil retrocederemos sempre que concedermos mais poder ao monopólio dos partidos políticos. Os mandatos só deveriam ser dos partidos se a maioria dos votos contabilizados fosse para as legendas, o que não acontece. A grande parcela dos eleitores vota em pessoas, não em partidos, principalmente porque todos sabemos que algumas legendas não passam de partidos de aluguel e que seus "donos" são ilustres desconhecidos ("A bilionária contabilidade do empresário-fantasma", 18 de dezembro). HENDRIK AQUINO Por e-mail Se o Supremo Tribunal Federal declarar a inconstitucionalidade de financiamentos feitos por empresários, vai piorar o sistema eleitoral no quesito corrupção. A proibição só daria certo se fosse acompanhada por uma profunda reforma política. Com esse sistema eleitoral que está aí, somente os grandes partidos se beneficiarão ("Falso problema, falsa solução", Carta ao Leitor, 18 de dezembro). MANOEL MESQUITA Boa Vista, RR VEJA está de parabéns por apresentar, na mesma edição, pareceres distintos sobre o mesmo assunto. Na Carta ao Leitor "Falso problema, falsa solução", manifesta-se contra a aprovação da lei que proíbe as doações legais de empresas a candidatos e partidos, entendendo que isso aumentaria a derrama de dinheiro por baixo do pano e abriria caminho para o financiamento público de campanhas, intensificando a corrupção. Contrariamente, Roberto Pompeu de Toledo, no artigo "Barateamento já" (18 de dezembro), coloca-se ao lado dos ministros do Supremo Tribunal Federal que julgam anticonstitucional a colaboração das empresas, pois, por não terem direito de cidadania, elas não podem participar do processo eleitoral. O articulista acha muito mais eficiente lutar para uma reforma do sistema político que vise ao barateamento das campanhas eleitorais, proibindo-se marqueteiros, cabos eleitorais, shows, propagandas pagas nos meios de comunicação. A meu ver, à margem das questiúnculas de ordem jurídica, o mais importante é impedir que os dois poderes, o econômico e o político, se juntem para tomar conta das eleições, em nível municipal, estadual e federal. É uma ingenuidade infantil pensar que pessoas ou entidades, públicas ou privadas, gastem milhões para eleger deputados, senadores, prefeitos ou governadores sem esperar de volta, e multiplicado, o capital investido, mediante licitações manipuladas, obras superfaturadas, ocupação de cargos públicos por indicação. Como reza a máxima franciscana, é dando que se recebe! A atividade política entra em conluio com o poder econômico para que sejam eleitos sempre os mais ricos, realimentando os currais eleitorais. Para sair do impasse seria preciso reduzir a campanha eleitoral ao mínimo: o candidato deveria publicar apenas seu currículo, sua proposta e a declaração do imposto de renda antes e ao fim do mandato, para verificar se houve enriquecimento ilícito. SALVATORE D' ONOFRIO Professor doutor e escritor São José do Rio Preto, SP VEIA esmiúça a estrutura montada por Adir Assad para navegar aparentemente com a bandeira da legalidade no mundo da alta corrupção. JOSÉ WAGNER CABRAL DE AZEVEDO Tambaú, SP REVELAÇÕES DE ROMEU TUMA JÚNIOR Sobre a reportagem "Protegendo a máfia" (18 de dezembro), o que mais me assusta, mesmo com tanta lama podre vindo à tona a todo instante contra o PT e seus maiores gestores, é ver o grande número de petistas postos no pedestal como se fossem santos. MARIA GORETI KLEIS TOMIO Itajaí, SC Poderia ser lamentável, porém é corriqueiro. Alguém apresenta algo contra o "todo-poderoso do PT" e logo a militância de armas em punho cerra fileiras contra. Que democracia frágil é esta? Parabéns a VEJA pela reportagem. Parabéns, Romeu Tuma Júnior; força e coragem para o que se avizinha. DURVAL BONANI São Pauto, SP ÍNDIOS VERSUS AGRICULTORES A reportagem "Retratos de uma tragédia" (18 de dezembro) mostra com exatidão o que está sendo construído no Brasil, outrora um lugar pacífico para viver. Essa anomalia de instigar uma classe contra a outra vem produzindo a violência que vemos nas cidades, no campo e nos estádios de futebol. Entregaram o país a ideólogos rancorosos que não fazem outra coisa a não ser destilar ódio. ADEMAR MONTEIRO DE MORAES São Paulo, SP No Brasil, infelizmente, ainda é comum criar um problema para oferecer uma solução — normalmente piorando a posição anterior. No caso dos confrontos entre índios e agricultores a situação é latente. Invasão de propriedade particular começa a virar rotina e assusta pela agressividade e pelo desrespeito aos cidadãos. FERNANDO RAMIREZ São Paulo, SP BARBÁRIE NOS ESTÁDIOS É preciso chegar ao âmago da questão: realmente punir esses vândalos com o rigor da lei ("Como eles acabaram com isso", 18 de dezembro). Qualquer ação diferente será mero jogo de cena. LUIZ VALÉRIO DE PAULA TRINDADE São Paulo, SP Motivados pela vergonhosa falta de policiamento dentro do estádio em Joinville, criminosos travestidos de torcedores cometeram várias tentativas de homicídio, que felizmente ficaram na tentativa. Porém, o fato de não ter havido mortes não diminui a gravidade do caso nem a fúria assassina dos envolvidos. Isso só acabará quando os culpados pagarem com duras penas, por longos anos, enjaulados em prisões de segurança máxima. AMARILDO GEORG Blumenau, SC Assim como em A Peste, de Albert Camus, as torcidas organizadas, com a chegada do fim do Campeonato Brasileiro, não morrem nem desaparecem, apenas adormecem. LOURENCO MACIEL DE BEM Florianópolis, SC Basta os clubes cortarem esses patrocínios, pois certamente os integrantes dessas torcidas não teriam recursos próprios para custear as despesas de viagem. ROBERTO MALUF TEIXEIRA Belo Horizonte, MG COPA DE 2014 O escritor e jornalista inglês John Carlin, em seu artigo "Chega de lamentações estéreis" (Especial Copa 2014,11 de dezembro), diz que a Copa do Mundo de 2014 é um presente do Brasil para a humanidade. "Celebre-a com um sorriso generoso", afirmou o articulista. Claro que uma Copa do Mundo tem seu glamour, sua importância histórica, trará milhares de turistas e muito dinheiro para a economia. Entretanto, seja o montante que for, não seria nada diante do que a sociedade poderia lucrar com o direcionamento de verbas públicas a projetos, programas e obras de seu interesse e para seu benefício direto. Investir no bem-estar da população brasileira não é infinitamente mais viável do que erguer estádios para um evento esportivo de somente um mês? E depois da Copa, o que será dos estádios em locais com pouquíssima tradição no futebol e sem times competitivos? Outra razão para não construir obras do zero, especialmente com recursos públicos, no meu entender, é a existência de estádios nas doze cidades-sede. Para atender às exigências da Fifa, as estruturas já existentes poderiam ser reformadas ou ampliadas. O Brasil poderia usar os 36 bilhões de reais a ser investidos na Copa para solucionar demandas mais urgentes, como nas áreas de educação e saúde pública. ANIBAL TEIXEIRA Presidente do Instituto JK e ex-ministro do Planejamento Belo Horizonte, MG LYA LUFT Em artigo sensacional ("Todos queremos privilégios", 18 de dezembro), a escritora Lya Luft resumiu com muita propriedade tudo o que penso sobre privilégios! JOSÉ Luiz DE MENEZES MOREIRA Ouro Preto, MG Desde que Adão e Eva renunciaram a privilégios do paraíso, o espírito da cobra prevalece até hoje induzindo os humanos a ser "espertos" e a "tirar vantagem". Assim, descartando as diferenças culturais, temos a presença dos privilégios em todas as sociedades humanas, nos tempos de ontem, hoje e amanhã, embora ainda comportem o livre-arbítrio e o estabelecimento de limites qualitativos e quantitativos no tratamento diferenciado, pois qualquer extrapolação constitui injustiça social. ALBERTO CLEIMAN Rio de Janeiro, RJ DOM ODILO SCHERER Muita boa a entrevista da jornalista Adriana Dias Lopes com o arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer ("É um momento crucial da Igreja", 18 de dezembro). Gostei especialmente do fato de o arcebispo ter tocado no assunto das injustiças cometidas com as imagens do papa Bento XVI e do cardeal Tarcísio Bertone. VICTOR MATHEUS TEIXEIRA GONÇALVES São Paulo, SP Muito bom que a revista VEJA tenha publicado a entrevista com o cardeal Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo. De maneira bastante clara, o cardeal aborda temas relevantes da atual conjuntura eclesial, esclarecendo fatos como as mudanças promovidas pelo papa Francisco e resgatando o valor do papa emérito Bento XVI e do ex-secretário de Estado do Vaticano cardeal Tarcísio Bertone. De fato, tanto Bertone quanto Ratzinger são dois grandes homens que colaboram de maneira extraordinária para a vida da Igreja e da humanidade e que, no entanto, entraram injustamente para a história como vilões. Bento XVI, especialmente, conduziu a barca de Cristo com sabedoria e firmeza, encarando problemas graves que, por vezes, sacudiram seu pontificado. Parabéns a VEJA! Parabéns à jornalista Adriana Dias Lopes, que, sem ceder um milímetro da responsabilidade e do compromisso éticos que exigem a profissão jornalística, tem conseguido fazer com que a revista cubra assuntos de Igreja como eles realmente são, sem os preconceitos do passado. RAFAEL ALBERTO Secretário de Comunicação da Arquidiocese de São Paulo São Paulo, SP Dom Odilo demonstra muita lucidez sobre as questões de fé e é antenado com os desafios da Igreja neste século XXL ANTONTEL DA SILVA PTNTO Salvador, BA O pontificado do papa emérito Bento XVI deixou um extraordinário legado intelectual. Já o do papa Francisco tem ressaltado a dinâmica da alteridade, que, uma vez atestada por uma fé convicta, se alarga por vastos horizontes para levar outros tantos à comunhão com Jesus Cristo. LUIZ ANTÔNIO DE ARAÚJO GUIMARÃES Maceió, AL Agradeço a Deus por sua escolha do papa Francisco. Quanto à proibição de ordenação das mulheres, cerca de 53% dos membros da Igreja, impressiona-me o machismo. Cabe registrar que mais de 90% das obras sociais da Igreja são protagonizadas pelas irmãs e freiras de caridade, que mal têm recursos para a própria sobrevivência e, mesmo assim, se doam de forma inconteste, assim como fez Maria, mãe de Jesus. Relativamente ao casamento, a escolha é do casal, e não de Deus. Apenas, por fé, pedimos a seus representantes que abençoem a união. Lembre-se de que os homens, aí incluídos papas, cardeais e padres, estão sujeitos a erros, e nada mais justo que reconhecer o erro em vez de permanecer nele. Enfim, que Deus abençoe Francisco, primeira luz no fim do túnel nos meus mais de 60 anos de vida. GILBERTO PEXIAGNA GUIMARÃES Belo Horizonte, MG GUSTAVO LOSCHPE Enriquecedor o artigo "Ética na escola e na vida" (18 de dezembro), de Gustavo Ioschpe. Sim, somos uma sociedade na qual a principal marca de caráter é o famigerado jeitinho brasileiro, enaltecido inclusive pelo poder constituído, como atesta nosso ministro dos Esportes na sua malfadada fala sobre o atraso na construção dos estádios para a Copa de 2014. ALEXANDRE OLIVEIRA Porto Alegre, RS Certa vez li que "ética é quando você faz a coisa certa quando ninguém está vendo". Nós, brasileiros, temos muito a mudar. FERNANDO MOURA Lumut, Perak, Malásia Os votos de Ioschpe para 2014 são utópicos. O corporativismo é um câncer metastático, que se adapta a qualquer inimigo e permanece sugando nossas células, já com pouca energia. SELMA REGINA COSTA Piraju, SP Sou juíza e quero registrar minha concordância com o diagnóstico feito por Ioschpe de que o julgamento do mensalão é um ponto fora da curva. Afinal, com o cipoal de recursos existentes e as formulações teóricas a respaldar a impunidade, só vão para a cadeia os desprovidos de bons advogados, ou seja, os excluídos de sempre. Não que não mereçam, na maioria dos casos, pois cometeram o crime e, portanto, não podem ser vistos como vítimas do sistema. O que digo, concordando com o artigo, é que acabam presos não pelo crime que cometeram, mas por lhes faltarem meios mais elaborados de defesa. SÔNIA MARIA AMARAL FERNANDES RIBEIRO São Luís, MA O artigo de Gustavo Ioschpe sobre ética na escola e na vida revela exatamente do que o Brasil precisa: desenvolvimento educacional como condição para o desenvolvimento social. RENATO PRESTES Tietê, SP CORREÇÃO: VEJA errou ao ilustrar a reportagem "A reconquista da Lua" (18 de dezembro) com a imagem de uma sonda que faz sua descida à superfície lunar auxiliada por um paraquedas, que, obviamente, seria inútil para reduzir sua velocidade de impacto. Hélio, radônio e outros gases emitidos pela decomposição radioativa de metais da crosta do satélite natural da Terra formam uma ténue cobertura gasosa que é considerada atmosfera apertas para fins científicos. Ela é 10 trilhões de vezes menos densa que a da Terra. Não é um vácuo perfeito, mas é insuficiente para produzir o arraso aerodinâmico necessário para abrir o paraquedas e amortecer a queda. "Qualquer coisa que cai na Lua sofre queda livre", explica o astrofísico Roberto Dias da Costa, da USP. Os pousos controlados na Lua em missões não tripuladas, façanha só conseguida por Estados Unidos, Rússia e. na semana passada, China, com a sonda Change 3 (na ilustração realista acima), são feitos com o uso de retrofogueles disparados automaticamente, na fase final da manobra, com dados dos sistemas de navegação de bordo. PARA SE CORRESPONDER COM A REDAÇÃO DE VEJA: as cartas para VEJA devem trazer a assinatura, o endereço, o número da cédula de identidade e o telefone do autor. Enviar para: Diretor de Redação, VEJA - Caixa Postal 11079 - CEP 05422-970 - São Paulo - SP; Fax: (11) 3037-5638; e-mail: veja@abril.com.br. Por motivos de espaço ou clareza, as cartas poderão ser publicadas resumidamente. Só poderão ser publicadas na edição imediatamente seguinte as cartas que chegarem à redação até a quarta-feira de cada semana. 1#5 BLOGOSFERA EDITADO POR KATIA PERIN kperin@abril.com.br RADAR LAURO JARDIM NATAL Natalina é o nome mais comum adotado pelos brasileiros que nasceram em 25 de dezembro. É o que aponta uma pesquisa inédita feita pela proScore, especializada na análise de crédito de CPFs cadastrados no Brasil. O primeiro nome da lista é Natalina, com 11.005 ocorrências: em segundo vem Natalino, com 9.583; e, depois, Natalia, com 8.053. O nome Jesus ocupa apenas o oitavo lugar no ranking. www.veja.com/radar COLUNA FELIPE MOURA BRASIL CELEBRIDADES Já é ruim o bastante que as celebridades batam no único sistema econômico que faz com que a vida das pessoas pobres melhore. Mas o pior é que muitas são hipócritas. O ator Leonardo DiCaprio, por exemplo, anunciou recentemente: "Eu vou voar pelo mundo fazendo o bem para o meio ambiente". É mesmo? Voando pelo mundo? É de estarrecer que não se envergonhem do que dizem. www.veja.com/felipemourabrasil DE NOVA YORK CAIO BLINDER ALEMANHA Ursula von der Leyen, atual ministra da Defesa, pode ser a mulher mais poderosa do mundo antes do fim desta década. Isso se caminhar com habilidade no terreno minado da política alemã. www.veja.com/denovayork SOBRE IMAGENS JOÃO CASTILHO O artista mineiro João Castilho acaba de lançar o seu quinto livro, Hotel Tropical. O ensaio nasceu para uma exposição em 2011, depois de um trabalho de edição em fotografias feitas por Castilho em vários pequenos hotéis, durante anos de viagens. O livro pontua com cores fortes o talento do autor, um dos profissionais mais interessantes da atual cena da fotografia brasileira. www.veja.com/sobreimagens SOBRE PALAVRAS O JOGO DE XADREZ "O que veio primeiro, o jogo de xadrez ou o pano quadriculado que chamamos assim?" (José Carlos Ambrósia) O jogo de origem indiana veio primeiro. A palavra portuguesa xadrez, existente desde o século XIV, é derivada do termo árabe xatrandj, ou shatranj (conforme a transliteração que se empregue). Este, por sua vez, provinha de uma palavra do sânscrito, chaturanga, que queria dizer "quatro partes (do Exército)": elefantes, cavalaria, carruagens e infantaria. Pela ordem, tais termos nomeavam no jogo primitivo as peças que no xadrez moderno ficaram conhecidas como bispo, cavalo, torre e peão. O Hauaiss registra o ano de 1662 como aquele em que a palavra xadrez passou a nomear, em nossa língua, os tipos de estampa quadriculada que lembram o tabuleiro de xadrez. www.veja.com/sobrepalavras NOVA TEMPORADA SHERLOCK VOLTA EM JANEIRO O canal BBC HD começa a exibir a terceira temporada de Sherlock no Brasil em 13 de janeiro, às 22 horas, quase duas semanas depois da estreia na Inglaterra. Ela terá três episódios de noventa minutos e se passa dois anos após a morte de Sherlock Holmes. Watson segue sua rotina, com novas oportunidades, um romance e uma vida doméstica confortável. Mas, quando Londres se torna alvo de um ataque terrorista de grandes proporções, Holmes volta do túmulo para pedir ajuda a seu velho companheiro na solução de mais um mistério. O grande detetive, no entanto, descobre que muita coisa mudou enquanto ele esteve ausente. www.veja.com/temporada • Esta pagina é editada a parti dos textos publicados por blogueiros e colunistas de VEJA.com 1#6 EINSTEIN SAÚDE – PREVINA-SE CONTRA O ESÔFAGO DE BARRETT Embora seja um quadro de lenta evolução, essa condição aumenta as chances de aparecimento de câncer. O esôfago de Barrett pode ser definido como uma reação de defesa do organismo em resposta a casos crônicos da doença do refluxo gastroesofágico: ao serem atacadas pelo suco gástrico, as células que revestem o esôfago transformam-se, ficando parecidas com as do estômago, resistindo melhor ao ácido originário daquele órgão. A condição, considerada como uma lesão pré-maligna, foi descoberta em 1950 pelo médico australiano Norman Barrett, o primeiro a descrever a mudança do revestimento do esôfago e a transformação em epitélio colunar (típico do estômago e do intestino). Por conta disso, a parcela da população mais acometida, em geral, é aquela composta por quem já sofre com o refluxo. A doença em si não tem sintomas específicos, mas é normal que os indicativos de uma crise de refluxo estejam presentes como, por exemplo, azia, queimação, tosse, rouquidão e dor de garganta. O diagnóstico é realizado por meio do exame de endoscopia digestiva alta, mas o médico pode solicitar também uma biópsia para avaliar se houve modificação nas células do esôfago. Cerca de 10% dos pacientes com refluxo têm essa alteração, que pode ser considerada uma lesão pré-maligna e pode evoluir para câncer em até 1% dos casos. Embora pareça um percentual pequeno, em relação à população em geral isso representa um risco 30 vezes maior. Apesar da evolução do quadro ser lenta, ela deve ser acompanhada de perto. Se a alteração no revestimento do esôfago não for muito significativa, os especialistas recomendam o tratamento do refluxo, na tentativa de reverter o quadro de Barrett, ou, ainda, o acompanhamento por meio de exames periódicos. No entanto, quando há indicações da presença de transformações que sugiram uma lesão maligna, o tratamento pode ser feito, em casos iniciais, por meio de uma mucosectomia, que é a retirada da mucosa que reveste o esôfago. Depois do procedimento, o paciente é mantido com medicação que inibe a secreção de ácido, permitindo a regeneração natural da parede do esôfago. Já nos casos em que há neoplasia, pode ser necessária a retirada do esôfago, substituindo o órgão por um segmento do intestino, ou modificar a localização do estômago. O paciente depois disso leva uma vida normal. Embora não existam medicamentos que tratem especificamente o esôfago de Barrett, medidas para conter ou reduzir o refluxo, com base na mudança no estilo de vida e nos hábitos alimentares, são importantes no combate ao problema. E manter uma dieta balanceada é, ainda, a melhor opção para evitar as doenças que atingem o esôfago. Saiba mais sobre este e outros assuntos no sito www.einstein.br Sugira o tema para as próximas edições: einstein.saude@einstein.br Sua saúde é o centro de tudo Responsável Técnico: Dr. Miguel Cendoroglo Neto - CRM: 48949 1#7 J.R. GUZZO – A CARA DO BRASIL Basta prestar um mínimo de atenção nas coisas para saber que Campinas, a segunda maior cidade do Estado de São Paulo, com 1,1 milhão de habitantes, santuário da indústria brasileira, polo irradiador de tecnologia e centro nervoso da região produtiva mais avançada do país, é mais ou menos o máximo a que o Brasil pode aspirar no momento, com realismo, em termos de progresso. Foi ali, e na constelação de cidades à sua volta, que o esforço para levar a indústria até o interior teve os seus melhores resultados. O PIB da região metropolitana de Campinas está entre 45 e 50 bilhões de dólares, conforme o critério usado para os cálculos. Equivale ao de todo o Estado de Pernambuco, é maior que o do Ceará e tem o tamanho de um Uruguai inteiro — vale mais, por sinal, que o PIB de pelo menos 110 países espalhados pelo mundo afora. Um terço de tudo o que o Brasil exporta e importa por via aérea passa por Campinas. As cinquenta maiores empresas do mundo têm operações na região metropolitana, um conjunto com perto de vinte cidades. Funcionam em Campinas duas das mais prestigiadas universidades do Brasil, institutos de pesquisa de primeira linha, uma orquestra sinfônica. E ali que está a maior refinaria da Petrobras no Brasil. O PIB per capita da região, nos cálculos mais elevados, está entre 20.000 e 25.000 dólares anuais — mais que o da Grécia ou o do Chile, e o dobro do da Rússia. Seu último IDH foi de 0,805, já na zona tida pela ONU como "elevada". Campinas, com a sua coleção de virtudes, é a cidade mais desenvolvida do interior de São Paulo, o estado mais desenvolvido do Brasil — um "colosso", como se diz por ali. Enfim, para falar em português claro: muito melhor que isso não fica. Campinas, quando comparada com municípios do mesmo porte no exterior, é o tipo de cidade onde o Brasil conseguiu ficar mais parecido com o Primeiro Mundo. É em lugares como Campinas, em suma, que o Brasil deu "mais certo". E é em lugares como Campinas, ao mesmo tempo, que dá para perceber quanto o Brasil deu errado — e o tamanho do buraco em que estamos metidos. Por quê? É muito simples: em Campinas, esse "colosso" aqui descrito, 30% da população entre 15 e 64 anos — ou seja, praticamente todo mundo — são analfabetos funcionais, gente que não consegue entender direito o que lê num texto simples, não sabe enunciar números com mais de quatro ou cinco algarismos e não tem noções elementares de proporcionalidade. Outros 40%, como dizem educadamente os técnicos em pedagogia, têm apenas um nível "básico" de alfabetização — são aquilo que os leigos chamam de "semianalfabetos". Tira daqui, põe ali, e o que se tem de concreto, goste-se ou não, é o seguinte: não mais que 30% dos habitantes da cidade-sucesso do Brasil são realmente alfabetizados — e podem, assim, se qualificar como cidadãos plenos deste país. Numa sociedade em que a verdadeira divisão de classes está entre os que têm conhecimento e os que não têm, 70% estão condenados desde já, em grau maior ou menor, a ficar no bloco dos perdedores. Num ano como este 2013 que ora se encerra, quando o Brasil teve tantas oportunidades para se ver diante de escolhas claras entre o progresso e o atraso, as dramáticas contradições existentes em localidades como Campinas servem para o país olhar com mais sobriedade para si próprio — e admitir que o espelho no qual se enxerga não reflete uma imagem só. Campinas é apenas um exemplo do tipo de crescimento e de progresso com que o Brasil se habituou; mas dezenas de outras cidades brasileiras, talvez até mais, poderiam perfeitamente ser citadas em seu lugar. Ao contrário do mundo desenvolvido, onde mais produção gera apenas mais prosperidade, aqui as cidades mais dinâmicas não conseguem crescer sem atrair pobreza, exclusão social e desigualdade. Se é assim em lugares com os números e o desempenho de Campinas, imagine-se então como andam as coisas na média nacional — ou, pior ainda, onde se vive abaixo dela. Não existe, simplesmente, uma única cidade ou região no Primeiro Mundo onde 70% da população tenha instrução suficiente para executar apenas as tarefas mais simples — e também as mais penosas, mal remuneradas e sem esperanças de melhora. No Brasil, que pretende no momento dar lições de desenvolvimento e avanço social ao resto do mundo, a cidade-símbolo do nosso progresso aceita passivamente viver nessa indigência. Não chegará nunca, desse jeito, aonde tem de chegar; continuaremos, como de costume, a ter uma das dez maiores economias do mundo e ficar ali pelo centésimo lugar em termos de bem-estar real para a população. Os dados mais recentes sobre a situação desesperadora da educação na mais bem-sucedida cidade do interior paulista estão numa pesquisa da Federação das Entidades Assistenciais de Campinas, e o quadro geral que mostram é ainda mais feio. Um em cada cinco jovens na faixa dos 18 aos 24 anos já é chefe de família, e de toda a população do município com essa idade 60% não estudam — só metade deles, por sinal, chegou a concluir o ensino médio. Não é preciso ter um diploma de sociologia para concluir que muito pouca gente, aí, está a caminho da prosperidade. Mais da metade dos campineiros entre 18 e 24 anos vive em famílias com uma renda per capita que não passa de dois salários mínimos; ou seja, a moçada que está trabalhando em Campinas largou o estudo por uma pura e simples questão de sobrevivência, e não para ganhar uma fortuna como banqueiros de investimento. Em vez de estarem acumulando conhecimento em cursos superiores, como deveria ser a regra para quem vive nessa idade, estão precisando trabalhar em empregos de baixa qualidade para ganhar o seu sustento, e em muitos casos o das famílias que já chefiam. A cada dia que passa, mais longe ficam de aprender as habilidades indispensáveis para entrarem num mercado de trabalho agressivamente tecnológico como o de hoje e, mais ainda, de amanhã. Não deve surpreender a ninguém, é claro, que no último grande balanço da educação mundial para a garotada na faixa dos 15 anos, o Pisa de 2012 feito pela OCDE, organismo internacional que reúne as maiores economias do mundo, o Brasil tenha ficado em 57º lugar, num total de 65 países avaliados — pior que isso, só mesmo pegando o último. (Como houve uma melhora na nota brasileira em matemática, o ministro da Educação, Aloizio Mercadante, determinou que o teste foi "um grande sucesso" para o Brasil. Aliás, ele já garantiu que a educação brasileira vai tão bem que terá tempo de sobra para participar da campanha pela reeleição da presidente Dilma Rousseff em 2014.) Existe bem mais, nisso tudo, que uma calamidade estatística. Os números de Campinas, por si sós — Deus sabe como os do Brasil tomado por inteiro, são ainda piores —, servem como pista segura para mostrar a sombria realidade de uma turma que não tem futuro. Antes de completarem 25 anos de idade, já está definido para todos aqueles jovens, salvo exceções, que serão cidadãos de segunda classe até o fim de sua vida. Eles não terão os mesmos direitos que os outros, que neste momento já estão muito à frente deles, pelo simples motivo de que não terão as mesmas oportunidades. Para a grande maioria deles, estará fechado o acesso ao que em geral se considera as coisas materiais mais compensadoras da vida. Vão ter empregos, em vez de carreiras — isso para os que conseguirem se empregar. Podem ter mais do que tiveram os seus pais, o que é ótimo, mas raramente vão subir muito acima dos degraus onde estão hoje. O governo e seus fãs, aliás, não param de dizer que a rapaziada de Campinas, e seus equivalentes espalhados pelo Brasil, foi beneficiada pelo "maior programa de distribuição de renda", ou de "inclusão social", ou de "vitória contra a pobreza" jamais visto na história universal. Um jovem de 21 anos de idade, com salário mensal de 1000 reais e mulher e filho para cuidar, por exemplo, talvez não perceba bem por que a sua vida está assim tão espetacular, como lhe dizem; mas não tem muita razão para esperar grandes melhoras, levando-se em conta que os donos do governo estão convencidos de que já lhe deram uma enormidade nos últimos anos. Dizer que o Brasil nunca esteve pior, não "vai para a frente", não tem "solução" e coisas desse tipo é apenas uma tolice que colide diretamente com os fatos. Em cinquenta anos, para tomar um período de tempo redondo, o país melhorou tão extraordinariamente que a realidade brasileira daquela época parece incompreensível para o cidadão de hoje. Mais de 50% da população era analfabeta. Só gente acima da classe média tinha telefone — esse aparelho hoje utilizado na forma de 270 milhões de celulares e 45 milhões de linhas fixas. Para ter um carro, sem ser rico, só sendo motorista de táxi. O Brasil inteiro, cinquenta anos atrás, tinha uma frota total inferior a 500.000 veículos; Campinas, sozinha, tem hoje por volta de 850.000. A única estrada asfaltada ligando duas capitais era a Via Dutra, entre o Rio de Janeiro e São Paulo, inaugurada em 1951 — e com pista simples, como é hoje uma estradinha vicinal do interior. Muitas crianças iam à escola descalças, era comum um trabalhador usar roupas remendadas e obras como o Maracanã, por exemplo, eram construídas movendo-se toneladas de cimento em carrinhos de mão. A economia do Brasil era uma piada; o país ia pouco além de uma república bananeira, que mal conseguia se manter na era da energia elétrica. No auge do "milagre econômico" do regime militar, as autoridades falavam no "sonho" de atingir um dia a meta de 2 bilhões de dólares em exportações anuais — cifra que se obtém hoje em três dias. O PIB do Estado de São Paulo, sozinho, é 70% maior que o da Argentina. O Brasil mudou tanto, na verdade, que acabou por se transformar num outro país — e está melhor, hoje, do que jamais esteve. Mas sua desgraça é que não cresceu nem perto do necessário para sair do subdesenvolvimento, nem com a rapidez de que precisava. Correu muito, sem dúvida, mas não o suficiente para acompanhar o ritmo dos mais rápidos e mais bem-sucedidos — e agora já não consegue acompanhar o passo de quem realmente prospera. É como o corredor na prova de fundo que já deu o seu sprint e não chegou à posição que deveria ter alcançado com esse esforço; não é capaz de dar outro arranque, e com isso vai ficando para trás na comparação com os países bem-sucedidos. Campinas, como se viu, está entre o que o Brasil fez de melhor em cinco décadas — e isso não foi o bastante. O que parece claro, quando se examina a lista dos principais suspeitos de conduzir o Brasil ao ponto a que chegamos, é a presença de um equívoco duplo e mau. Seu primeiro veneno foi a ideia de que bastaria produzir mais para criar uma vasta riqueza que se espalharia sozinha, pela sua própria natureza. A segunda insensatez foi não perceber, na vida política e no mundo pensante, que a concentração de renda e a desigualdade são efeitos, e não as causas, do desastre social do Brasil; essas doenças são a consequência inevitável da concentração do conhecimento e da péssima distribuição dos benefícios de uma educação de qualidade — estas sim os grandes fatores da divisão do Brasil em cidadãos de primeira e de segunda classe — ou terceira, ou quarta, ou quantas se queira. Treze anos atrás, quando o PT foi para o governo, o filho de um pai rico, que podia pagar-lhe uma educação de primeira, tinha muito mais chance de dar certo na vida do que o filho de um pai pobre, que não podia pagar nada. E hoje — o que mudou nisso? Zero. A diferença continua exatamente a mesma. É uma má notícia para os 70% de campineiros que não chegaram à "alfabetização plena" — e sabe-se lá quantos brasileiros mais. Não existe na história humana o caso de uma sociedade que prosperou, se tornou mais justa e reduziu realmente as desigualdades tendo em sua população tanta gente que não consegue entender o que lê, ou fazer uma conta que vá além do 2 + 2. O compositor e vocalista Cazuza, numa de suas canções mais celebradas, pedia para o Brasil mostrar a sua cara. Ela está aí, à vista de todos. 1#8 MAÍLSON DA NÓBREGA – PSDB MODERNIZA VISÃO SOBRE FEDERALISMO O PSDB divulgou, no último dia 17, doze diretrizes para orientar seu futuro programa de mudanças para o país. A oitava delas defende "mais autonomia para estados e municípios, maior parceria da União". Essa parte, como as outras, é equilibrada. Critica, corretamente, as atabalhoadas desonerações tributárias do governo, que causaram perdas aos governos subnacionais, a quem pertence uma parcela do IPI e do imposto de renda. A proposta do senador Aécio Neves era outra. No dia 18 de novembro, ele obtivera do PSDB a Declaração de Poços de Caldas + 30, a qual propugnava um novo pacto federativo "que signifique responsabilidades e recursos compartilhados de forma mais justa, pelo bem dos brasileiros". No mesmo dia, em sua coluna na Folha de S. Paulo, ele propôs ''reverter o desmanche da federação brasileira e o crescente risco de insolvência de estados e municípios, vitimados pela grave concentração, na órbita federal, de recursos e poder". Tradução: mais dinheiro da União para estados e municípios Vi de perto movimento semelhante na Assembleia Constituinte. Parlamentares das regiões menos desenvolvidas prometiam redimi-las com transferências da União. As demais pediam o mesmo para aliviar dívidas. Era preciso, diziam, acabar o "pires na mão". Assim, a Constituição de 1988 promoveu a maior transferência de recursos federais da história (44% do imposto de renda e 54% do IPI mais os impostos únicos sobre combustíveis, minerais, transportes e comunicações). Passados 25 anos, as regiões menos desenvolvidas não foram redimidas e todas continuam endividadas. Grande parte do dinheiro virou gasto de pessoal. O "pires" continua na mão. Nosso federalismo é mal definido desde a República. A ação que derrubou a monarquia se inspirou no federalismo americano de 1787. Até no nome. Tornamo-nos República dos Estados Unidos do Brasil (Constituição de 1891). Aqui, a ideia era reformar o Estado imperial centralista moldado na cultura portuguesa. Nada mudou. Lá, buscou-se evitar a desintegração da confederação de treze estados muito autônomos (as antigas colônias) nascida da independência. A federação americana implicou certa centralização, incluindo a criação do cargo de presidente da República. Os nossos federalistas podem ter pensado em descentralização, mas prevaleceu a cultura de dependência do governo central. Vem daí a inconsequente repartição das receitas da União em 1988, sem cuidados e sem transferência de encargos. Além disso, decidiu-se elevar os gastos sociais e aumentar a vinculação de receitas a despesas como as da educação. A União perdeu receitas e ganhou novos encargos. A conta não fechava. Era preciso aumentar a carga tributária, mas o IR e o IPI, os dois principais tributos federais, haviam perdido importância. Restou à União pouco mais de 40% e 30% desses impostos, respectivamente. Assim, recorrer a tais impostos exigiria mais do que dobrar as alíquotas. O caminho de menor custo para os contribuintes era apelar para tributos não partilháveis, isto é, as contribuições, que pertencem integralmente à União. A consequência, inevitável, foi a piora da qualidade do sistema tributário. O senador Aécio acertava ao reivindicar um novo pacto federativo, mas errava ao mirar a redução dos recursos da União. A centralização resulta da agenda social da Constituição e dos aumentos do salário mínimo (150% acima da inflação) nos últimos catorze anos. O mínimo é a base de muitos dos benefícios sociais, que representaram 63,2% das despesas não financeiras federais em 2012. Mesmo assim, curiosamente, a fatia da União nas receitas disponíveis caiu de 53%, em 1999, para 48%, em 2009. A federação foi atropelada por essas medidas. As demandas de descentralização das receitas, já velhas em 1988, se tornaram caducas na atualidade. Perto de 90% das receitas federais se destinam a gastos incomprimíveis. Essa vaca não dá mais leite. Ela iria para o brejo. Felizmente, o documento final do PSDB não considerou as ideias de Aécio. Os tucanos modernizaram sua visão sobre o federalismo. As diretrizes, mesmo que genéricas, são um bom ponto de partida para discutir a questão. 1#9 LEGISLATIVO – OS MELHORES PARLAMENTARES DO ANO O CONGRESSO ACELERA PARA REENCONTRAR OS BRASILEIROS Os senadores e deputados federais que mais trabalharam em 2013 por um país moderno e competitivo. FABIANO SANTOS Pelo terceiro ano consecutivo, VEJA publica o que chama de "ranking do progresso", a partir do posicionamento de deputados federais e senadores em relação a propostas de ajuste na legislação brasileira capazes de contribuir para a consolidação de um país mais moderno e competitivo, segundo os critérios da revista e da Editora Abril. A iniciativa, pioneira no Brasil, leva em conta nove eixos considerados fundamentais para que se alcance tal objetivo — da diminuição da carga tributária ao aprimoramento das relações entre empregadores e empregados (veja o quadro na página ao lado). Em parceria com o Núcleo de Estudos sobre o Congresso (Necon), do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), VEJA se debruçou sobre 243 proposições de maior relevância entre as centenas de projetos de lei, medidas provisórias e propostas de emenda à Constituição que tramitaram na Câmara e no Senado em 2013. Classificou, então, aquelas que se enquadravam, favorável ou desfavoravelmente, nos nove temas predeterminados. Sobre essa lista, o Necon trabalhou com uma metodologia que desenvolveu levando em conta todas as etapas e caminhos de uma proposição, de sua gênese aos trabalhos dentro das comissões, até o voto final, com peso específico para cada uma das fases. Antes, porém, da entrada em cena do Necon, a revista aplicou uma "cláusula de ética" na relação dos parlamentares responsáveis pelas proposições, expurgando aqueles envolvidos em escândalos ou de reputação duvidosa. Para tanto, VEJA se valeu de critérios próprios e de levantamentos da Transparência Brasil, organização independente e autônoma comprometida com o combate à corrupção. O resultado foi submetido à minuciosa análise do advogado Alexandre Fidalgo, do escritório EGSF, que se aprofundou na situação de deputados e senadores tendo em vista a Lei da Ficha Limpa, que passou a vigorar, em eleições, a partir de 2012, controlando o acesso ao Congresso de políticos desonestos. Ao final desse trabalho, VEJA chegou ao ranking dos melhores desempenhos de 2013, encabeçado no Senado por Armando Monteiro (PTB-PE) e na Câmara dos Deputados por Onofre Santo Agostini (PSD-SC) (leia as entrevistas com os parlamentares nas págs. 92 e 93). O que mais chama atenção quando se analisa a base a partir da qual todo o ranking foi montado é o extraordinário crescimento no número de matérias votadas pelo Congresso Nacional neste ano — ainda que 2012 tenha sido marcado por eleições, circunstância que provoca, naturalmente, uma queda na produção legislativa. O que teria ocorrido em 2013 para impulsionar de forma tão surpreendente a atividade de deputados e senadores? A resposta é simples: as manifestações de junho. É verdade que o ritmo do Congresso já havia registrado um considerável aumento nos primeiros meses de 2013, se levarmos em conta o mesmo período de 2012. No entanto, tal desempenho não pode nem de longe ser comparado ao que ocorreu no trimestre maio-julho, que contemplou o mês em que setores importantes do Brasil foram às ruas. Armados com reivindicações como transporte público mais barato, fim da corrupção e hospitais "padrão Fifa" — a realização da Copa das Confederações proporcionou pretextos e palcos de enorme visibilidade para os protestos —, os manifestantes pressionaram os parlamentares em busca de soluções para problemas de transparência. Intimidados, os políticos correram para votar projetos que atendiam a alguns dos mais urgentes clamores da população. Não por acaso, 43% das votações nominais da Câmara e 46% do Senado, realizadas até outubro, ocorreram entre maio e julho. Qual o perfil dos congressistas que acabaram recebendo uma melhor pontuação no ranking de 2013? Trata-se de um grupo de parlamentares que exibem em seu currículo uma vasta experiência política, dentro e fora do Legislativo. É comum ouvirmos o comentário de que a política brasileira é mal estruturada e que no Congresso se juntam aventureiros preocupados em defender apenas os próprios interesses. Muito distante dessa visão é a realidade que emerge dos dados sobre os quais nos detemos. Os parlamentares, à margem do toma lá dá cá, revelaram neste ano um forte empenho em torno de causas cruciais para o desenvolvimento econômico do país, numa atuação tanto mais eficaz quanto maior a experiência em termos de mandatos cumpridos. Por último, mas não menos importante, registrem-se algumas observações sobre o conjunto dos rankings. No primeiro, referente ao ano legislativo de 2011, concluiu-se que existia oposição de qualidade na política brasileira. Já em 2012, conforme observamos antes, a produção legislativa se mostrou reduzida. Congressistas dotados de potencial para se destacarem como defensores de propostas destinadas a impulsionar o Brasil gastaram boa parte de seu tempo envolvidos nas disputas em sua cidade de origem. Mais do que isso, em um ano voltado para o julgamento do mensalão, a oposição acabou mais focada nessa questão — e menos na definição de políticas públicas de efeito direto para os seus eleitores. Em alguma medida, o ranking atual combina com os que o antecederam. Discutem-se, como já ocorre há alguns anos, as reais possibilidades de a oposição fazer aquilo que lhe cabe, oposição. Há imensas dúvidas a ser entendidas. Dá-se essa interrogação por força do papel desempenhado pelo Partido Social Democrático (PSD), criado em 2011 no esteio da liderança do então prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab. Quatro deputados federais das dez primeiras colocações — incluindo o "campeão" — foram eleitos pelo Democratas, oposicionista, e depois migraram para o PSD. Mas Kassab, como é sabido, já declarou apoio à reeleição de Dilma Rousseff. No Senado Federal, o PTB aparece com destaque — o primeiro lugar pertence à agremiação; o predomínio é do PMDB e do próprio PT. Já no que se refere à atuação dos parlamentares, em 2013 houve, tal como foi dito anteriormente, uma atenção maior às reivindicações populares — pelo menos, no calor da hora do barulho das ruas. Assim, se por um lado tivemos em 2013 uma admirável dinâmica de interação entre as dimensões representativa e participativa da democracia, por outro, não se sabe ao certo se isso trará aperfeiçoamentos na legislação brasileira em prol de um país mais competitivo. O ranking dos parlamentares é feito anualmente por VEJA desde 2011, com a colaboração do Núcleo de Estudos sobre o Congresso (Necon), do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) A listagem completa do ranking pode ser consultada em VEJA.com e na edição para tablets OS EIXOS DE ATUAÇÃO 1- Carga tributária menor, mais simples e sem impostos em cascata. 2- Infraestrutura (estradas, portos, aeroportos...) 3- Combate à corrupção 4- Melhor gestão de gasto público 5- Sistema educacional universal e eficiente 6- Marco regulatório claro e respeitado (agências regulatórias técnicas e independentes) 7- Simplificação de regras e poda da selva burocrática 8- Governabilidade (relação entre os poderes) 9- Relações trabalhistas SENADORES / PARTIDO / UF / NOTA 1º Armando Monteiro / PTB / PE / 10 2º Casildo Maldaner / PMDB / SC / 8,6 Ricardo Ferraço / PMDB / ES / 8,6 3º Eunício Oliveira / PMDB / CE / 8,3 4º Paulo Bauer / PSDB / SC / 8 5º Angela Portela / PT / RR / 7,6 Jorge Viana / PT / AC / 7,6 6º José Pimentel / PT / CE / 7,5 7º Francisco Dornelles / PP / RJ / 7,2 Romero Jucá / PMDB / RR / 7,2 8º Vital do Rêgo / PMDB / PB / 7 9º Rodrigo Rollemberg / PSB / DF / 6,8 10º Álvaro Dias / PSDB / PR / 6,7 11º Cícero Lucena / PSDB / PB / 6,4 12º Antonio Carlos Rodrigues / PR / SP / 6,3 13º Ana Amélia / PP / RS / 6,2 Pedro Taques / PDT / MT / 6,2 Wellington Dias / PT / PI / 6,2 14º Anibal Diniz / PT / AC / 6,1 Wilder Morais / DEM / GO / 6,1 15º Jarbas Vasconcelos / PMDB / PE / 6 José Sarney / PMDB / AP / 6 16º Eduardo Amorim / PSC / SE / 5,9 Kátia Abreu / PMDB / TO / 5,9 17º Ciro Nogueira / PP / PI / 5,8 18º Aloysio Nunes Ferreira / PSDB / SP / 5,6 Eduardo Braga / PMDB / AM / 5,6 19º Cyro Miranda / PSDB / GO / 5,3 Lídice da Mata / PSB / BA / 5,3 20º Eduardo Lopes / PRB / RJ / 5,2 Sérgio Petecão / PSD / AC / 5,2 Valdir Raupp / PMDB / RO / 5,2 DEPUTADOS FEDERAIS / PARTIDO / UF / NOTA 1º Onofre Santo Agostini / PSD / SC / 10 2º Marcus Pestana / PSDB / MG / 9,6 3º Laercio Oliveira / SDD / SE / 9 4º Alexandre Leite / DEM / SP / 8,9 Arthur Oliveira Maia / SDD / BA / 8,9 5º Eleuses Paiva / PSD / SP / 8,7 Júlio / César / PSD / PI / 8,7 6º Leonardo Picciani / PMDB / RJ / 8,4 Valdivino de Oliveira / PSDB / GO / 8,4 Walter Tosta / PSD / MG / 8,4 7º Mandetta / DEM / MS / 8,2 8º Hugo Napoleão / PSD / PI /8,4 Izalci / PSDB / DF / 8,4 9º Augusto Coutinho / SDD / PE / 8 Colbert Martins / PMDB / BA / 8 José Carlos Araújo / PSD / BA / 8 Manoel Júnior / PMDB / PB / 8 10º André Moura / PSC / SE / 7,9 11º Carlos Souza / PSD / AM / 7,8 Cláudio Cajado / DEM / BA / 7,8 Fábio / Faria / PSD / RN / 7,8 Ronaldo Caiado / DEM / GO / 7,8 12º Mendonça Filho / DEM / PE / 7,7 13º Hélio Santos / PSDB / MA / 7,6 João Campos / PSDB / GO / 7,6 Junji Abe / PSD / SP / 7,6 Milton Monti / PR / SP / 7,6 14º Carlos Zarattini / PT / SP / 7,5 Edio Lopes / PMDB / RR / 7,5 Esperidião Amin / PP / SC / 7,5 Fábio Souto / DEM / BA / 7,5 15º Eduardo Sciarra / PSD / PR / 7,4 Guilherme Campos / PSD / SP / 7,4 Luiz de Deus / DEM / BA / 7,4 16º Armando Vergilio / SDD / GO / 7,3 Eduardo Azeredo / PSDB / MG / 7,3 Heuler Cruvinel / PSD / GO / 7,3 Moreira Mendes / PSD / RO / 7,3 Plínio Valério / PSDB / AM / 7,3 17º Átila Lins / PSD / AM / 7,2 Major Fábio / PRÓS / PB / 7,2 18º Edson Pimenta / PSD / BA / 7,1 João Bittar / DEM / MG / 7,1 Sérgio Zveiter / PSD / RJ / 7,1 19º Acelino Popó / PRB / BA / 7 Arthur Lira / PP / AL / 7 Eli Corrêa Filho / DEM / SP / 7 Flávia Morais / PDT / GO / 7 Lira Maia / DEM / PA / 7 Nilson Pinto / PSDB / PA / 7 Silvio Costa / PSC / PE / 7 20º Betinho Rosado / PP / RN / 6,9 Jairo Ataíde / DEM / MG / 6,9 Simplício Araújo / PPS / MA / 6,9 O PRIMEIRO ENTRE OS SENADORES ARMANDO MONTEIRO (PTB-PE) "Um grande desafio é mudar o ICMS. Ninguém ganha mais com essa guerra fiscal" O Congresso deve tomar mais iniciativas para diminuir a carga tributária? Nosso sistema tributário é anacrônico e disfuncional. Nós fazemos o absurdo de tributar investimentos, exportações. Uma reforma tributária ampla seria o ideal, mas infelizmente há muita disputa entre os entes federativos. A saída é promover mudanças pontuais. Tenho atuado para fazer a reforma e a diminuição dessas alíquotas interestaduais. É o primeiro passo para dar fim à guerra fiscal, que, hoje, é caótica. Por que o Congresso enfrenta tanta dificuldade para fazer a reforma tributária? Alguns estados não querem. O Nordeste não quer abrir mão do instrumento de redução de alíquotas. Há um ambiente na federação em que você perde uma visão de país. As empresas acabam se submetendo a situações díspares por causa das diferenças de tributação dos estados. Um dos nossos grandes desafios é começar a reforma do ICMS. Ninguém ganha mais com essa guerra fiscal. Precisamos criar as bases para ter um sistema tributário de classe mundial. Como melhorar a gestão pública? Precisamos dar um freio nos gastos de custeio. Impedir que o percentual de crescimento se dê acima do percentual de aumento do PIB. Se fizermos isso, poderemos em dez anos chegar a uma situação bem melhor do que agora. Desse jeito, poderemos ter recursos para investir em obras de infraestrutura. Mas isso tem de partir de uma vontade ampla da sociedade, passar pelo Executivo e pelo Congresso, claro. A eleição é um bom momento para esse debate. Como tornar mais justa a relação entre empregadores e empregados? É muito difícil tratar disso do ponto de vista político. Mas é fato que, no mundo inteiro, a legislação tem sido menos rígida, permitindo mais acordos diretos entre os empresários e os trabalhadores. Num mundo globalizado, é preciso ter uma legislação mais flexível, pois isso significa ter uma legislação pró-emprego. ADRIANO CEOLIN O PRIMEIRO ENTRE OS DEPUTADOS ONOFRE SANTO AGOSTINI (PSD-SC) "A Câmara é um cartório homologatório do Executivo. A culpa é do Parlamento" O Congresso pode ajudar o Brasil a ser mais competitivo? Nós precisamos votar mais leis que diminuam a carga tributária. É necessário acabar com distorções, exageros. É fundamental fazer um trabalho de convencimento do governo e de toda a sociedade sobre a importância disso. Infelizmente há resistências. O senhor está exercendo seu primeiro mandato... Como deputado federal, sim. E já estou pensando em parar por aqui. Estou decepcionado. É muita conversa, muito faz de conta e quase nada anda. Eu sou diligente. Cobro meus projetos. Falo com o relator, com o presidente da comissão. E, ainda assim, é difícil. Por quê? Não funciona. As comissões são muito subordinadas ao governo. Eu sou da base aliada, mas voto de acordo com as minhas convicções. Voto com o governo quando as coisas são boas. Quando não são, eu não voto. Mas por que existe essa lentidão no Congresso? Não quero culpar só o governo. É culpa do Congresso, que se sujeita a aceitar as medidas provisórias que o governo edita. Elas deveriam ser usadas somente em casos emergenciais, mas, na prática, não é isso que ocorre. O Executivo só governa por meio de MPs. Infelizmente a Câmara dos Deputados é um cartório homologatório do Executivo. E isso é culpa do próprio Parlamento, que não se impõe. Quais os projetos que o senhor apresentou que considera mais importantes? Pedi o fim da cobrança de IPI para pessoas com necessidades especiais e para os aposentados. Mas eles não andam. O governo não deixa. Não quer perder arrecadação. Ao mesmo tempo, o governo não gasta onde tem de gastar. Na saúde, por exemplo, não aplica o porcentual exigido por lei. O plano do SUS é um dos melhores do mundo, mas não tem receita. Se o governo federal aplicasse o que estados e municípios aplicam, nós teríamos a melhor saúde do mundo. Sem dúvida. ADRIANO CEOLIN 2# A SEMANA 25.12.13 2#1 BRASIL – O EFEITO AÉCIO 2#2 BRASIL – TRAFICANTES DE DINHEIRO 2#3 BRASIL – DISTÂNCIA ASSÉPTICA 2#4 INTERNACIONAL – O GOLPE DAS DIÁRIAS FANTASMA 2#5 INTERNACIONAL – UMA VITÓRIA COM URNAS VAZIAS 2#6 INTERNACIONAL – O ELOGIO DO CRIME 2#7 ECONOMIA – O FIM DA ERA BERNANKE 2#8 ESPORTE – O PADRÃO CBF NO PAÍS DA COPA 2#9 TECNOLOGIA – O GOOGLE VAI ÀS COMPRAS 2#1 BRASIL - O EFEITO AÉCIO A candidatura do senador do PSDB mineiro agora é irreversível. Economistas preveem que, se ela se mostrar competitiva, a euforia com o Brasil voltará aos mercados e animará os investidores. MARCELO SAKATE E ADRIANO CEOLIN Para consolidar sua candidatura à Presidência da República, o senador mineiro Aécio Neves tinha de enfrentar um obstáculo e um desafio antes de 2013 acabar — o obstáculo já não existe mais. Na segunda-feira, o também tucano José Serra anunciou em sua página no Facebook que abria mão de entrar na disputa, uma vez que "a maioria dos dirigentes do partido acha conveniente formalizar quanto antes o nome de Aécio Neves". A frase encerrava dois anos de conflitos no PSDB, durante os quais o "grupo de Serra" tentou emplacar o nome do ex-governador de São Paulo como alternativa ao do mineiro. No dia seguinte ao da postagem de Serra, Aécio apresentou sua agenda de campanha em Brasília: uma carta de intenções com os marcos prioritários de seu eventual governo. A carta foi o primeiro passo para que o agora candidato oficial do PSDB enfrente o desafio que tem pela frente: conquistar a adesão dos mercados e se mostrar a opção mais segura para recuperar a confiança dos investidores na economia. No texto, o ex-governador de Minas lembrou que o Brasil atravessa uma crise de credibilidade — consequência do ambiente de incertezas criado pelos vaivéns na política econômica e das interferências do governo em setores produtivos. Diz o documento: "Numa combinação perversa, a inflação está alta, o crescimento é baixo e o déficit das contas externas, ascendente". O ano de 2013 será o terceiro seguido de crescimento pífio do PIB, abaixo da média mundial. A inflação fechará, pelo quarto ano consecutivo, acima da meta de 4,5%. O desemprego permanece baixo, mas houve uma queda na criação de vagas e os salários sobem em ritmo menor. Se a agenda de Aécio não aponta medidas específicas para animar a economia, faz um diagnóstico cristalino de suas deficiências: a falta de competitividade, o peso dos impostos e a produtividade estagnada. A carta de Aécio contou com a chancela do ex-presidente do Banco Central e economista-chefe da campanha, Armínio Fraga, para quem um eventual governo Aécio seria "mais capaz do que qualquer outro de mobilizar capital, num momento em que o país precisa investir mais e melhor". O economista acredita que uma política econômica mais transparente e previsível, por si só, já seria capaz de reverter o desalento entre os investidores. Para ele, a queda nos prêmios de risco embutidos hoje nos juros, por exemplo, seria uma correção de rota de impacto positivo imediato. Os ajustes deveriam partir de um compromisso sólido com a execução dos fundamentos macroeconômicos: superavit fiscal sem artifícios e cumprimento rigoroso das metas de inflação. Analistas concordam que a defesa desses princípios por um candidato com forte chance de decolar pode ter o condão de mudar os humores do mercado. "Se alguém com chance concreta de vitória sinalizar que adotará medidas como uma política fiscal equilibrada, com prioridade para o combate à inflação e o fim da intervenção no setor privado, haverá uma melhora imediata no mercado financeiro", diz Tony Volpon, chefe de pesquisa para mercados emergentes das Américas do banco Nomura. Aécio aposta que, por causa da situação da economia, a eleição será marcada pelo desejo de mudança — como, de resto, já deixaram claras as pesquisas. No último levantamento do Instituto Datafolha, diante da pergunta "você prefere que as ações do próximo presidente sejam iguais ou diferentes das tomadas por Dilma Rousseff?", 66% das pessoas ficaram com a segunda opção. A tendência à ruptura faz com que as eleições de agora se aproximem mais das de 2002, quando Lula derrotou Serra em um quadro de desgaste do PSDB, do que das eleições de 2010, quando a tendência do eleitorado era claramente de continuidade do governo do PT. Dilma, porém, continua liderando as pesquisas, com 47% das intenções de voto, contra 19% de Aécio e 11% de Eduardo Campos (PSB). O que explica o fato de a presidente despontar na dianteira na mesma pesquisa em que eleitores sinalizam querer que o futuro governo adote ações diferentes das do seu? Responde o cientista político Rubens Figueiredo: "Muitos eleitores querem mudar, mas não sabem quem representa essa mudança". Hoje, só metade dos brasileiros sabe quem é Aécio Neves. Como candidato, ele dará início às viagens pelo Brasil em fevereiro. Mesmo assim, acredita que apenas depois da Copa do Mundo as eleições para presidente vão atrair a atenção da população e será possível dar um salto que lhe garanta um lugar no segundo turno. Cita o exemplo de 2010. A um ano do pleito, Serra liderava com cerca de 40% das intenções de voto, Dilma tinha metade disso e Marina Silva patinava com 5%. Abertas as urnas, Dilma teve 47%, contra 33% de Serra e 19% de Marina. A moral da história, diz o senador, é que não dá para tomar como definitivos os números das pesquisas a um ano das eleições. Ao adotar o discurso da mudança "de verdade", Aécio pretende não apenas se contrapor a Dilma, mas salientar suas diferenças em relação a Eduardo Campos (PE). O candidato do PSB, aliado do PT desde o início do governo Lula, só rompeu com o partido neste ano, ao lançar sua candidatura. Na semana passada, Campos dividiu um palanque com Dilma pela primeira vez após o rompimento. Quem esperava um confronto se decepcionou. O tom do pessebista foi de conciliação. Mesmo na oposição, é difícil brigar com um governo com marcas populares como o Bolsa Família e o Mais Médicos. A dificuldade em modular esse discurso foi um dos motivos que levaram Aécio e seu marqueteiro, Renato Pereira, a romper na semana passada. O candidato não aceitou as críticas de que deveria se preocupar mais em se aproximar do eleitorado com propostas "pés no chão" e deixar em segundo plano as críticas ao governo e o discurso para o empresariado. Aécio termina 2013 livre do seu maior obstáculo, apoiado por seu partido e munido de bons princípios. A reação dos mercados a essa decolagem será o primeiro sinal de quão alto ele pode ir. 2#2 BRASIL – TRAFICANTES DE DINHEIRO As meias e cuecas escondem uma modalidade de crime que tem a corrupção como cliente. A cena sempre choca — pela ousadia e pelo que ela sempre representa. Na sexta-feira 13, agentes da Polícia Federal flagraram um rapaz que desembarcava no aeroporto de Brasília com 280.000 dólares e 13.950 reais escondidos nas meias. Preso e levado à delegacia, ele invocou o direito de permanecer em silêncio. Não revelou onde conseguiu o dinheiro, de quem era ou em que seria usado. Autuado em flagrante por crime contra o sistema financeiro — todo viajante é obrigado a declarar à Receita Federal a posse de valores acima de 10.000 reais—, o rapaz foi solto em seguida. A rotina nesse tipo de caso é alguém se apresentar depois como o dono da pequena fortuna, exibir um documento qualquer atestando a origem, solicitar a liberação e encerrar o caso. Essa curiosa movimentação de divisas não contabilizadas, porém, tem chamado a atenção das autoridades. Nos últimos dois anos, a Polícia Federal em Brasília surpreendeu seis pessoas com as meias e as cuecas cheias de dinheiro. Foram apreendidos 450.000 reais, 459.000 dólares e 20.800 euros — o equivalente a 1,6 milhão de reais no total — que iriam deixar a capital. Um detalhe importante: acredita-se que esse mercado clandestino de capitais movimente valores bem maiores, já que os flagrantes são quase obra do acaso. Como os equipamentos de raio X dos aeroportos brasileiros inspecionam apenas as malas dos passageiros, identificar os traficantes de dinheiro depende muito da intuição dos agentes ou da dica de um bom informante. Foi assim que a PF surpreendeu um assessor do hoje líder do PT na Câmara, José Guimarães, irmão do mensaleiro José Genoino, com 100.000 dólares na cueca. Outro mensaleiro, Enivaldo Quadrado, também foi flagrado com 360.000 euros no aeroporto de Guarulhos. Apesar das dificuldades de investigar, a polícia tem uma certeza: o fato de a delegacia de Brasília ser recordista nesse tipo de crime não é mera coincidência. Em maio passado, dois desses transportadores foram presos com 465.000 reais escondidos sob as roupas. O suposto dono do dinheiro, Carlos Eduardo Carneiro Lemos, o Dudu, apresentou-se espontaneamente à PF e garantiu que não havia nada de escuso na operação. Tentar embarcar maços de notas junto do corpo de funcionários era apenas uma maneira de agilizar o pagamento de um apartamento no Rio de Janeiro. Quatro meses depois, Dudu foi preso, acusado de integrar uma quadrilha que desviava recursos de fundos estatais de previdência. Eis uma certeza: os traficantes de dinheiro são soldados da corrupção. HUGO MARQUES 2#3 BRASIL – DISTÂNCIA ASSÉPTICA Pragmático e com receio de que o caso contamine as eleições do ano que vem, o PT agora quer manter um afastamento estratégico dos mensaleiros presos. ROBSON BONIN O julgamento do mensalão ainda não havia sequer começado quando o ex-presidente Lula decidiu lançar uma cruzada para tentar apagar da memória coletiva nacional o maior escândalo de corrupção da história brasileira. Fracassou. Como se sabe, os fatos são teimosos. E têm consequências. As penas impostas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) aos mensaleiros são indeléveis, não importa o volume da retórica usada para disfarçar a gravidade do escândalo. José Dirceu, José Genoino e Delúbio Soares, integrantes da cúpula do PT, foram julgados, condenados e levados à prisão. Aos poucos foram sumindo os ecos de revolta dos militantes inconformados com o que, para eles, foi um "julgamento de exceção". A má notícia para os presos agora é que, com o frio pragmatismo que caracteriza a luta pelo poder, o mais conveniente para o partido é esquecê-los. Isso ficou patente na semana passada, em Brasília, durante o 5º Congresso Nacional do PT. De olho nas eleições de 2014, a cúpula petista preparou cuidadosamente o encontro para que a campanha de reeleição da presidente Dilma Rousseff fosse o centro das atenções. Assuntos incômodos como a defesa dos mensaleiros não deveriam ser abordados justamente para não associar a imagem de Dilma aos condenados. As alas radicais — sempre elas — sentiram-se contrariadas, até mesmo porque, na visão de seus integrantes, ter alguns "mártires" na cadeia pode inclusive ser útil na campanha eleitoral. Diante do ex-presidente Lula, a militância clamou: "Lula, guerreiro, defende os companheiros". Antes incentivador da claque, Lula evadiu-se no seu melhor estilo: "Eu tenho dito para a imprensa que não falarei da ação penal 470 enquanto não terminar a última votação. Acho prudente". É, companheiros, a ordem é deixar a questão do pessoal da penitenciária da Papuda, digamos, enclausurada. A corrente majoritária do PT, Construindo um Novo Brasil, da qual fazem parte Lula e o próprio José Dirceu, propôs e aprovou um texto bem mais brando sobre a situação dos mensaleiros, cujos nomes nem sequer foram citados. O texto bateu na tecla de que os mensaleiros foram condenados sem provas e que o partido apoiará as ações para reparar a injustiça. Nada de recursos a cortes internacionais, nada de pressionar pela anulação do julgamento, nada de mobilizar as ruas em defesa dos condenados. Para o PT, ironicamente seguindo os ensinamentos pragmáticos dos líderes presos, a prioridade é vencer as eleições do ano que vem. "Acabou — e nós perdemos. O PT agora tem de virar a página desse caso se não quiser que o estrago eleitoral seja ainda maior", disse um parlamentar petista influente e amigo pessoal dos presos. Até o mais aplicado defensor dos mensaleiros, o presidente do PT, Rui Falcão, escudou-se na disciplina partidária. "São campanhas (anulação do julgamento) que se fazem, mas essa não é a posição do PT", afirmou Falcão, formulando uma frase meticulosamente confusa para dificultar cobranças futuras. Mas que mudança! Antes Falcão dizia que o julgamento do mensalão foi um "tsunami de manipulação", enquanto acusava o Supremo Tribunal Federal de favorecer "posições políticas ideológicas". O Falcão que agora recorre ao sujeito indeterminado ("campanhas que se fazem") e não vê mais razão para questionar o veredicto antes conclamava a militância a lutar contra o "poder político da toga". Entre os companheiros e as urnas, o PT ficou com as urnas. Defender criminoso no Brasil não rende voto. Na cadeia a vida segue sua rotina. Na semana passada, juízes da Vara de Execuções Penais de Brasília alertaram para o risco iminente de uma rebelião no presídio da Papuda. As regalias concedidas aos mensaleiros e a mudança da rotina estariam na raiz da revolta. Segundo o relato de agentes carcerários entrevistados por VEJA sob a condição do anonimato, a tensão tende a subir no período de fim de ano como resultado da ansiedade pela divulgação da lista dos indultados de Natal, os presos que ganham o direito de passar os feriados com a família. Aqueles que têm o benefício negado costumam ensaiar rebeliões. Para evitarem confrontos, as equipes de segurança da prisão aumentam a frequência das revistas nas celas, o que eleva ainda mais a insatisfação. A última rebelião na Papuda ocorreu em 2001. Por precaução, a área de segurança reforçou o policiamento. 2#4 INTERNACIONAL – O GOLPE DAS DIÁRIAS FANTASMA O enriquecimento de Néstor e Cristina Kirchner já tem uma boa explicação. Um empreiteiro amigo pagava por reservas nos hotéis da presidente, mesmo sem usá-las. TATIANA GIANINI O indício mais claro de que a corrupção rola solta na cúpula do governo argentino foi o aumento espantoso do patrimônio do casal Néstor e Cristina Kirchner, a atual presidente, ao longo dos últimos dez anos. Nesse período, a fortuna da família cresceu mais de 1100%. Para justificar números tão elevados, Cristina já disse que sempre foi uma advogada de sucesso e que o escritório que mantinha com Néstor em Rio Gallegos, na província de Santa Cruz, era um dos mais importantes da cidade. Outra explicação foi que ela e o antecessor e falecido marido tiveram muita sorte ao investir em imóveis. Não convenceu. Na semana passada, uma reportagem do jornal La Nación conseguiu, pela primeira vez, mostrar indícios de como Néstor e Cristina usaram a política a seu favor. O jornal teve acesso a registros contábeis da empresa Valle Mitre que revelam que o seu dono e empresário, Lázaro Báez, fez pagamentos milionários a hotéis dos Kirchner na Patagônia. Báez, sócio do casal em negócios imobiliários e dono de uma empreiteira que prosperou fazendo obras públicas na província de Santa Cruz, pagou mais de 10,1 milhões de pesos argentinos, o equivalente a 1,6 milhão de dólares, em diárias do hotel Alto Calafate que nunca foram utilizadas. Outros 700.000 dólares foram pagos por Báez por diárias-fantasma dos hotéis Las Dunas e Los Sauces, também dos Kirchner. "Antes dessa revelação, o que havia era uma série de suspeitas, rastros e indícios de como o dinheiro de Báez chegava até os Kirchner", diz o jurista Ricardo Monner Sans, presidente da Associação Civil contra a Corrupção, com sede em Buenos Aires. Funcionários da Valle Mitre confirmaram a autenticidade das planilhas, e Báez correu para um tribunal federal em Rio Gallegos para pedir à Justiça que investigasse as transações. Com isso, admitiu a veracidade dos registros. O ciclo da fortuna K agora se fechou. As denúncias são fundamentais para a compreensão do Lazarogate, como o escândalo foi apelidado pela imprensa argentina. Em abril, o programa de TV Periodismo para Todos, do apresentador Jorge Lanata, exibiu uma reportagem segundo a qual Báez, que começou a enriquecer quando o seu amigo Néstor Kirchner era governador, tirou do país 55 milhões de euros de forma ilegal. O dinheiro saia de Rio Gallegos, fazia escala operacional em Buenos Aires e seguia para ser depositado em contas na Suíça e de empresas em paraísos fiscais, como Belize. Em entrevista concedida a VEJA no início de dezembro, Lanata disse que uma parte desse dinheiro era destinada aos Kirchner, mas não sabia como nem quanto. O esquema de diárias-fantasma pode ajudar na resposta. Entre 2010 e 2011, a empresa Valle Mitre, de Báez, que administra os hotéis dos Kirchner, emitiu vários cheques para os hotéis Alto Calafate, Los Sauces e Las Dunas, herdados por Cristina. O Alto Calafate foi o que recebeu a maior soma graças a acordos com sete empresas de Báez. A empresa Valle Mitre pagou mensalmente por 935 quartos, sem se importar com o fato de seus empregados estarem usando essas reservas ou não. O esquema garantiu a ocupação mínima de um terço do estabelecimento, que ainda se beneficiou de outro acordo, com a Aerolíneas Argentinas, que ocupava outros 30% dos quartos. A empresa foi reestatizada por Cristina em 2008. Na Argentina, usar hotéis, restaurantes e lava-rápido para lavar dinheiro, pagando por serviços que nunca foram prestados, é um golpe manjado. Em sua declaração jurada de patrimônio de 2011, a presidente informou que acumulava participação nas sociedades Hotesur, que controla o Alto Calafate, e Los Sauces, gerenciadora do hotel de mesmo nome, mas o jornal afirma que não há nenhuma menção ao hotel Las Dunas, que segundo os registros financeiros obtidos pelo La Nación teria pagado 3,2 milhões de pesos a Néstor Kirchner. O governo emitiu um comunicado em que se afirma que Las Dunas é o nome de fantasia do imóvel identificado na declaração da presidente como CIA. Segundo a Casa Rosada, os rendimentos obtidos pela propriedade também foram declarados. Se for comprovado que a presidente não informou a renda recebida pelas diárias em sua declaração de patrimônio, ela poderá ser acusada de descumprir a Lei de Ética da Função Pública do Código Penal. Nesse caso, a presidente poderá sofrer um julgamento político e, se condenada, ser exonerada do cargo. Báez, que já está sendo investigado por lavagem de dinheiro, seria indiciado como cúmplice. Em 2014, a independência da Justiça argentina será posta à prova. 2#5 INTERNACIONAL – UMA VITÓRIA COM URNAS VAZIAS De cada quatro eleitores chilenos, só um votou em Michelle Bachelet. Em respeito aos outros três, seria mais prudente não mudar radicalmente os rumos do país. NATHALIA WATKINS Obrigar quem não se interessa por política a votar muitas vezes é o que leva à eleição de maus governantes e de corruptos dos piores matizes. Eis um dos fortes argumentos para o voto facultativo. A opção, porém, também embute os seus perigos, como acaba de demonstrar o Chile. Neste ano, pela primeira vez no país, foi realizada uma eleição presidencial sem a obrigatoriedade do voto, cujo segundo turno aconteceu no domingo 15. A candidata vitoriosa para a Presidência, Michelle Bachelet, do Partido Socialista, ganhou com 62% dos votos. Como 58% dos chilenos não saíram de casa para votar, a futura presidente, que toma posse em março de 2014, só obteve o apoio de 26% dos eleitores registrados. Para cada um que votou nela, três preferiram se abster ou escolheram a candidata da oposição, Evelyn Matthei. Em números absolutos, Bachelet teve menos votos que o atual chefe de governo, Sebastián Piñera, no pleito que o elegeu em 2009, e menos do que ela própria conquistou em 2005. "O voto facultativo foi um grande erro. Esse sistema distorce a representação e prejudica a consolidação da democracia no Chile", diz Marta Lagos, diretora do centro de pesquisas Latinobarómetro, em Santiago. Bachelet tem como mérito incontestável seu carisma pessoal e o fato de ter terminado o seu mandato anterior, em 2010, com 84% de popularidade. Por isso, é dado como certo que ela teria vencido as eleições de qualquer forma. A diferença é que, na primeira vez em que se elegeu, quando o voto ainda era obrigatório, ela adotou um discurso moderado, que agradava a um eleitorado mais amplo. Na campanha deste ano, ela deu uma guinada à esquerda, mirando os eleitores que pedem mais benesses do Estado, como educação superior gratuita para todos e o retorno da previdência estatal. "O objetivo era mobilizar a típica dona de casa chilena, que está preocupada com sua aposentadoria e com a educação dos filhos", diz o cientista político Jorge Ramirez, do centro de pesquisas Liberdade e Desenvolvimento, em Santiago. "Elas valorizam os benefícios oferecidos pelo governo e desprezam as políticas que estimulam o desenvolvimento econômico." Por outro lado, os eleitores que votaram em candidatos de direita em 1999, 2005 e 2009 não se animaram a ir às urnas. Mais de 1 milhão de votos da Alianza desapareceram. Muitos consideraram inútil votar, uma vez que a vitória de Bachelet era tida como certa. Outros estavam desapontados com o governo do atual presidente, Sebastián Piñera, que adotou medidas associadas ao lado oposto do espectro político. Ele aumentou impostos, cedeu a manifestantes que gritaram contra a instalação de uma termelétrica e aumentou subsídios a estudantes universitários. Mesmo essa medida não conseguiu pôr um fim aos protestos estudantis. Ele tem uma aprovação de apenas 40%. Piñera também teve azar na escolha da primeira opção de candidato para suceder-lhe. Pablo Longueira chegou a iniciar a campanha, mas desistiu no meio alegando estar sofrendo de depressão. Três meses antes do pleito, ele foi substituído por Evelyn, que teve pouco tempo para se apresentar aos eleitores e para elaborar um plano de governo. A diferença entre os que votaram e os que ficaram em casa não é apenas entre esquerda e direita. Também se dá no desejo por mudanças. "Quando as pessoas anseiam por transformações, elas estão mais dispostas a influenciar o processo eleitoral", diz o cientista político Jorge Jaraquemada, diretor da Fundação Jaime Guzmán. "A alta abstenção é um sinal de que os chilenos não querem mudanças drásticas." Bachelet, em sua campanha, reduziu a população do Chile a um mundo de explorados e exploradores. Entre outras propostas, ela falou em suspender a lei que protege investidores estrangeiros e que desde os anos 70 atraiu 90 bilhões de dólares ao país. Também promete mudar a Constituição, apesar de não ter apoio no Congresso para isso. Bachelet foi a escolhida dos chilenos. Mas tirar o país do rumo certo não é o que a maioria deseja. 2#6 INTERNACIONAL – O ELOGIO DO CRIME O ladrão inglês Ronald Biggs, que morreu aos 84 anos, teve uma vida de celebridade. Só mesmo um século como o XX, marcado pela banalização — do mal, da vida, do que é ser uma personalidade —, poderia glorificar um ladrão, como fez com o inglês Ronald Arthur Biggs, que morreu no dia 18, aos 84 anos, em uma casa de repouso londrina. Argumentou-se, mundo afora, que não se tratava de um bandido qualquer, devido à sua participação no famoso assalto ao trem pagador. O crime: em 8 de agosto de 1963 — seu 34º aniversário —, Biggs mais dezesseis homens levaram de um comboio que fazia o trajeto Glasgow-Londres nada menos do que 2,6 milhões de libras (hoje, 40 milhões de libras, cerca de 152 milhões de reais). A maior parte do dinheiro jamais foi recuperada. O mais impressionante é que Biggs não foi sequer o protagonista do roubo, o que, pela lógica da perversidade, justificaria a sua consagração. Condenado a trinta anos de prisão, conseguiu fugir. Viveria no Rio por três décadas com status de celebridade. Localizado, não pôde ser extraditado — sua amásia, Raimunda de Castro, uma ex-stripper, estava grávida. Da relação nasceria Michael, que entrou para o imaginário de milhões de crianças brasileiras como o Mike da Turma do Balão Mágico cantando: "Sou feliz, por isso estou aqui". Biggs deve ter sido feliz aqui. São famosas as fotos dele na praia, tomando chope, tocando tamborim ao lado de belas mulheres. Em 1978, gravou o clipe No One Is Innocent, com a banda punk Sex Pistols, que o citava na letra: "Deus salve Ronald Biggs". Após sua morte, o filho postou que o considerava um "mestre". Seu ghost writer o saudou como um dos grandes personagens dos últimos cinquenta anos. Como se vê, o século XXI segue parecido com o XX. 2#7 ECONOMIA – O FIM DA ERA BERNANKE O Federal Reserve começa a reduzir a oferta abundante de dólares, mas com cautela máxima, para evitar solavancos. ANA LUIZA DALTRO Os bancos centrais combatem as recessões reduzindo a taxa básica de juros, ampliando a circulação de dinheiro na economia e favorecendo o crédito e o consumo. Mas e quando os juros são reduzidos a zero e nem mesmo assim a economia reage? Foi essa a situação que desafiou o presidente do Federal Reserve (Fed, o BC dos Estados Unidos), Ben Bernanke, depois do estouro da bolha imobiliária, em 2008. A saída foi recorrer à impressão de dinheiro. A estratégia, no caso, foi adquirir títulos que estavam nas mãos de bancos e investidores. Dessa maneira, o dinheiro volta para a economia, reduzindo as taxas de juros de mercado. Bernanke, um dos maiores especialistas mundiais na Grande Depressão, procurou assim evitar o equívoco cometido pelas autoridades na década de 30, que provocaram uma queda abrupta do dinheiro em circulação, afundando ainda mais a atividade econômica. Desde 2008, já foram lançados ao mercado mais de 4 trilhões de dólares. Agora, com a recuperação da atividade americana, o Fed indicou que é chegada a hora de ministrar doses menores do estímulo monetário. Na reunião de quarta-feira, a penúltima sob o comando Bernanke, ficou decidido que as compras mensais de títulos, que chegavam a 85 bilhões de dólares, cairão agora para 75 bilhões de dólares, entre papéis lastreados em hipotecas (e que estiveram no epicentro da crise) e papéis do Tesouro. A decisão acabou distendendo a tensão entre os investidores, porque havia o receio de o arrocho ser mais severo e imediato. Bernanke — que ficará no Fed até janeiro, depois de oito anos no cargo, e será substituído pela sua atual vice, Janet Yellen — afirmou que a retomada americana está em curso, mas sinalizou que a retirada dos estímulos será gradual. Não foi definida a data de encerramento da compra de títulos, e os juros deverão permanecer próximo de zero até 2015. A normalização da política monetária será feita de forma bastante cautelosa. O objetivo é evitar possíveis solavancos no mercado financeiro mundial — que, a propósito, reagiu bem ao anúncio de quarta-feira. Após a decisão, as bolsas americanas bateram novos recordes de valorização. A interpretação dos investidores é que, com o postergamento da elevação dos juros americanos, vale a pena pôr dinheiro em aplicações de risco maior. Para o Brasil, fica temporariamente afastada a ameaça de alta aguda e significativa do dólar, que, se perdurasse por muito tempo, pressionaria a inflação e afugentaria os investimentos. A sinalização de cautela no enxugamento de liquidez pelo Fed, portanto, pode amortecer os impactos das turbulências externas sobre a economia brasileira no decorrer do ano eleitoral de 2014. Quem sabe isso não incentiva os candidatos a debruçar-se sobre nossos graves problemas estruturais internos. 2#8 ESPORTE – O PADRÃO CBF NO PAÍS DA COPA O rebaixamento da Portuguesa, embora correto aos olhos da lei, é mais um triste episódio de inépcia no futebol brasileiro. O Campeonato Brasileiro de 2013 terminou na semana passada com uma rodada a mais do que as 38 previstas pelo regulamento. Na 39ª, fora de campo, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva tirou da Portuguesa 4 pontos na classificação final por ter escalado, irregularmente, um jogador que havia sido suspenso por dois jogos, mas cumprira apenas uma partida da pena. Com a punição, a Lusa foi rebaixada para a série B. O Fluminense, que estava no 17º lugar (quatro entre vinte caem), foi indiretamente beneficiado: ultrapassou a equipe paulista em número de pontos e permanecerá na A. Fez-se muito barulho porque o Fluminense tem um histórico péssimo nesse quesito. Em 1997 e 2000, a equipe deveria disputar a segunda divisão, mas foi ajudada por decisões nos tribunais — o "tapetão", no jargão futebolês — e permaneceu na elite. O caso de 2013 é o terceiro episódio que envolve o clube carioca, daí a sensação incômoda de virada de mesa. Mas convém pôr as coisas em perspectiva. A Portuguesa errou. O Fluminense nada tem a ver com o tropeço alheio e, a rigor, deu sorte. Havia uma saída menos ruidosa? Não. O artigo 214 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva não prevê abrandamento da decisão mesmo nos casos em que se comprova a inexistência de dolo. Falou-se muito na desproporcionalidade da pena. "Não há meia pena. Ou se absolve ou se condena o acusado", diz Marcelo Jucá, presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB/RJ. "Embora no código exista o princípio chamado de pró competitione, ou seja, que defende a priorização do resultado de campo, ele só pode ser exercido quando a lei não trata especificamente da infração em questão, o que não foi o caso." Ainda que tudo tenha sido feito corretamente, na letra fria da lei, há algo muito errado quando um campeonato termina — se é que termina, porque ainda cabe recurso — no tribunal. A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) tem culpa, com sua atávica mania de semear vento para colher tempestade. No Regulamento Geral de Competições, a CBF diz que "o controle da contagem do número de cartões amarelos e vermelhos (...) é de exclusiva responsabilidade dos clubes". Os cartolas da CBF transferem responsabilidade e, ao fazê-lo, só alimentam o caos. Não seria mais fácil o delegado de cada partida consultar uma lista oficial, eletrônica, para conferir se um jogador está em condições de jogo? É assim em lugares mais sérios. Mesmo no futebol de várzea se sabe quem pode ou não entrar em campo. Sorte tratarmos o futebol com algum humor. Nas redes sociais brotou uma boa ideia: a Portuguesa disputar a Série B em 2014 usando um uniforme inspirado no verde e grená do Fluminense — os dirigentes da Lusa já admitem essa possibilidade. 2#9 TECNOLOGIA – O GOOGLE VAI ÀS COMPRAS Ao adquirir a mais reputada empresa de robôs que imitam seres vivos, o gigante da internet aposta na onipresença da computação em nosso dia a dia. FILIPE VILICIC A lista de compras anunciada pelo Google na semana passada inclui um robô cuja anatomia reproduz um cachorro, um humanoide mecânico e um felino de metal capaz de correr a velocidades maiores que a de Usain Bolt, o homem mais rápido do mundo. São estrelas dos laboratórios da Boston Dynamics, empresa fabricante de robôs inspirados em seres vivos, fornecedora de tecnologia de ponta para as Forças Armadas americanas. Ao adquirir a Boston, a empresa do Vale do Silício que nasceu apenas como motor de busca da internet e hoje vale algo ao redor de 357 bilhões de dólares quer dar um salto tecnológico que soa fluido hoje, mas pode significar uma extraordinária aposta no futuro. Não se trata, para começo de conversa, de um cálculo financeiro. O lucro que a Boston Dynamics tem vendendo projetos ao governo americano — os contratos de alguns dos projetos valem 10 milhões de dólares — pouco representa para os cofres do multibilionário Google. E não é balela: o novo dono anunciou que não pretende fechar novos contratos com a Casa Branca. O ouro da Boston Dynamics, agora recuperado, é outro. O responsável no Google pela aquisição, Andy Rubin, dá uma pista do que se pretende. "Computadores começaram a criar pernas e a se mover pelo ambiente", diz ele. O próprio Google, aliás, já criou um computador que se mexe, o carro sem motorista. Os protótipos, que circulam pelas ruas da Califórnia, são movidos por um software de geolocalização capaz de detectar o que há ao redor do automóvel e, assim, guiar o veículo. A base dessa invenção é um rico programa de inteligência artificial, área na qual a Boston Dynamics é craque. E dá-se, portanto, a fome com a vontade de comer. A Boston Dynamics é a mais celebrada empresa do ramo, fundada por um pioneiro da robótica, o engenheiro Marc Raibert, de 64 anos. Ele a criou em 1992 como uma continuação do laboratório de pesquisas Leg Lab, que comandou até os anos 90 no célebre Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Ao comprar a Boston Dynamics, o Google adquire também o conhecimento de Raibert, numa área na qual apenas engatinha, mas a passos felinos como os dos personagens que acaba de pôr em seu rol de invenções. Recentemente, outras sete coadjuvantes da indústria de robótica foram anexadas ao portfólio do Google (em nenhum dos casos se conhece o valor das transações). Duas delas: a Meka, idealizadora de um dispositivo de 340.000 dólares, equipado com rodas e braços mecânicos e que pode ser controlado por gestos; e a Bot & Dolly, especialista em desenvolver tecnologia para a indústria de entretenimento, como robôs que ajudam a estabilizar câmeras em filmagens de Hollywood. A ambição com a Boston Dynamics é diferente, e vai mais longe. Ao levar os animais eletrônicos para seu zoológico, o Google quer ser predominante em um mercado que crescerá de modo exponencial: o de programas de computador cada vez mais presentes em tudo o que usamos, de óculos a geladeiras, de tênis a relógios. Como os já célebres óculos do Google, o Glass, cujas lentes funcionam como um smartphone (veja mais a respeito na pág. 226). A quem procurar, portanto? A Boston, justamente especializada em programas desenhados para gerenciar máquinas, por improváveis ou utópicas que sejam. Espera-se que robôs domésticos, capazes de auxiliar em tarefas do cotidiano — como limpar a casa —, também sejam cada vez mais comuns. Estima-se que esse mercado valha 20 bilhões de dólares em 2016. Um estudo da Universidade de Oxford, da Inglaterra, indica que nos próximos vinte anos os robôs devem substituir humanos em 45% dos empregos em países ricos. Se a previsão se concretizar, será montado um cenário digno de uma obra de ficção científica de Philip K. Dick, autor do clássico Do Androids Dream of Electric Sheep? (em inglês, Andróides Sonham com Ovelhas Elétricas?), inspiração para o filme Blade Runner. É um mundo no qual o Google quer ser rei. Daí ter movido seus peões antes de todo mundo. O comandante dessa nova faceta do Google, Andy Rubin, é o homem certo, na hora certa, nessa direção de lançar produtos que o consumidor nem imaginava existirem, antecipando o desejo antes mesmo de o desejo existir (postura desenvolvida à exaustão por Steve Jobs e que fez da concorrente Apple o que a Apple é, motor de criatividade). Rubin é o criador do Android, o sistema operacional líder em smartphones, com 80% do mercado — e responsável por tirar o iPhone da liderança absoluta para um amargo segundo lugar, com 13% das vendas. Rubin vendeu o Android (nome que escolheu por ser fã de andróides) ao Google em 2005 e virou vice-presidente na nova casa. Em março deste ano, Larry Page, cofundador e CEO do Google, anunciou que o criador do Android deixaria de trabalhar com smartphones e passaria a se concentrar nesse novo e promissor ramo dos robôs. O HOMEM-MÁQUINA O que pode fazer: O robô humanoide Atlas, de 1,80 metro de altura e com 28 juntas que ligam seu corpo, substitui homens em tarefas perigosas ou para transportar cargas pesadas Por que o Google o quer: O Atlas pode se aventurar por áreas insalubres, terrenos acidentados ou castigados por desastres naturais e em meio a gases radioativos para mapear regiões (uma das especialidades do Google) e coletar dados diversos. UM CÃO PESO-PESADO O que pode fazer: O Alpha Dog (cachorro alfa, em inglês), apelido do robô de 100 quilos e 1 metro de largura, simula a estrutura de um buldogue para ganhar estabilidade quando leva cargas de até 180 quilos enquanto corre ou escala obstáculos Por que o Google o quer: Pode ser usado para transportar peças numa fábrica, entregar produtos numa cidade ou em resgate de pessoas durante, por exemplo, um incêndio - ainda está em estudo utilizá-lo para fins militares. MAIS VELOZ QUE BOLT O que pode fazer: O Cheetah (guepardo, em inglês) reproduz o desenho das patas e da coluna vertebral do animal mais rápido do mundo para correr a 45 quilômetros por hora (não é páreo para o guepardo real, que ultrapassa 100 quilômetros por hora, mas vence o recordista mundial Usain Bolt, o homem mais rápido do mundo) Por que o Google o quer: A tecnologia embutida no robô ajuda a entender como é possível transportar cargas leves, como um produto encomendado pela internet, de forma rápida e segura. COM REPORTAGEM DE HENRIQUE CARNEIRO 3# RETROSPECTIVA 2013 – AS VIRTUDES DE 2013 – 25.12.13 A prisão dos mensaleiros, as manifestações, os black blocs, ciência, censura: o ano que se encerra apresentou complexas questões éticas para o Brasil. JERÔNIMO TEIXEIRA 2013 foi, para todos os efeitos, um ano decisivo para o Brasil: o ano em que a insatisfação ganhou as ruas de todo o país em manifestações gigantescas, e no qual os condenados no maior esquema de corrupção da história — inclusive altos chefes políticos — foram afinal presos. Povo nas ruas, corruptos na prisão: é o que se espera de uma democracia digna do nome. No entanto, não será exato concluir, a partir desses dois fatos apenas, que o Brasil viveu uma era de inédito avanço ético. Os resultados efetivos das manifestações que eclodiram em junho são tão vagos quanto as queixas que as motivaram. Com frequência, também, as demonstrações resultaram em episódios indiscriminados de violência e vandalismo — além de muitos casos de excesso por parte das forças policiais chamadas a manter a ordem. A custosa prisão dos principais mensaleiros, ordenada pelo Supremo Tribunal Federal em novembro, oito anos e meio depois que o escândalo foi revelado, suscitou inacreditáveis manifestações de contrariedade e indignação. É um indicativo de que ainda não se universalizou, no Brasil, uma compreensão que deveria ser consensual: o império da lei vale para todos, ricos e pobres, esquerdistas e direitistas, e ninguém está autorizado a rompê-lo, nem mesmo se pretensamente o faz a serviço da justiça social. A linguagem sectária e inflamada com que se tratou desses e de outros temas candentes (sobretudo nas redes sociais, nas quais a cortesia e a civilidade são tão facilmente esquecidas) muitas vezes se travestiu da santimônia das certezas absolutas e inegociáveis. O caso, porém, é que certezas assim são raras. A algaravia democrática, com seus valores em permanente competição entre si — seja no terreno da política, da economia, do comportamento —, às vezes soa como a mais pura balbúrdia, e o cidadão comum com frequência se perde na busca de um norte. Este 2013, enfim, foi um ano em que os fatos tornaram ainda mais difíceis as desde sempre emaranhadas e espinhosas questões da ética. Um caso muito pontual ilustra com perfeição tanto a complexidade dos problemas éticos do mundo contemporâneo quanto o simplismo falacioso com que a mentalidade militante costuma tratar deles. Há duas semanas, o site oficial de Mário Vargas Llosa foi atacado por hackers. Os terroristas digitais chegaram a divulgar a notícia, prontamente desmentida, de que o escritor peruano havia morrido. O ataque foi assinado por um certo Exército Tunisiano Fallaga. A página original do site de Llosa foi trocada por uma tela negra, com um vídeo exibindo supostos excessos e atrocidades contra palestinos e povos árabes, tudo encimado pela pergunta "quem são os verdadeiros terroristas?". Ficava claro que o alvo central do ataque não foi o dono do site, e sim Israel (Mário Vargas Llosa, aliás, costuma criticar com dureza as políticas israelenses, mas os hackers decerto só consideram verdadeiramente críticos aqueles que desejam a extinção do Estado de Israel). O conflito entre palestinos e israelenses carrega a complexidade própria dos tempos contemporâneos: há razões, e boas razões, para as reivindicações conflitantes de ambos os lados. Mas a maneira com que os hackers descrevem a situação trai má-fé: eles pretendem dizer que Israel é o verdadeiro terrorista, o que, por oposição, sugere que aqueles que sequestram aviões, derrubam arranha-céus e colocam bombas em metrôs e eventos públicos não o são. Não se esperam argumentos honestos de simpatizantes da Al Qaeda. Mas é desolador descobrir que, no contexto brasileiro, o mesmo tipo de falácia circula nas redes sociais e em blogs da esquerda oficialista desde a prisão dos mensaleiros: quase sempre que se ouvem cobranças de julgamento e punição para outros casos de corrupção, estamos diante de um expediente para mal disfarçar a inconformidade com a punição de petistas. "No Brasil, existe uma razão cínica, que sempre apela para argumentos absurdos. Muitas vezes, essa razão fica acima da razão política, que busca equilibrar os interesses da sociedade", diz o psicólogo e administrador José Ernesto Bologna, da Ethos Consultoria. O julgamento e a prisão de figuras como José Dirceu, José Genoino e Delúbio Soares representariam uma inédita derrota da razão cínica. Em eventos centrais do século passado, ainda existia uma certa clareza, ou pelo menos a ilusão da clareza. Na II Guerra Mundial, a Alemanha nazista e seus aliados eram o mal a ser derrotado. A Guerra Fria também foi vencida pelo lado certo: caiu a Cortina de Ferro, saiu vitorioso o Mundo Livre. Os vencedores cometeram seus erros, excessos e crimes, mas é seguro afirmar que, houvessem sido derrotados, o mundo seria pior. Nos conflitos que assolam o Oriente Médio, porém, torna-se difícil, talvez impossível, discernir de que lado está a justiça — ou o mal menor. Em tese, a derrubada de um ditador deve sempre ser comemorada, e por isso se compreende o entusiasmo com que muitos aplaudiram a chamada Primavera Árabe, que em 2010 apeou do poder vários déspotas do Oriente Médio. Mas será difícil contar esse evento como vitória clara da democracia. No Egito, o presidente Mohamed Mursi, da Irmandade Muçulmana, eleito após a queda do ditador Hosni Mubarak, tentou instaurar uma ditadura fundamentalista mal disfarçada sob uma Constituição que lhe dava plenos poderes para reprimir liberdades básicas. Acabou derrubado pelos militares, em julho, e sua deposição foi seguida por um banho de sangue generalizado cujas imagens chocaram o mundo. Na Síria, Bashar Assad é, ninguém contesta, um tirano criminoso, que tem bombardeado a população civil e usado contra ela armas químicas. Mas ninguém pode saber como ficaria o país caso caísse nas mãos dos rebeldes, muitos deles dos quadros da Al Qaeda. Teme-se que os revoltosos, da maioria sunita, tentem exterminar minorias, incluindo alauitas (como Assad), cristãos e drusos. No Irã, a ascensão à Presidência de Hassan Rohani, em agosto — na aparência mais moderado que o antecessor falastrão, Mahmoud Ahmadinejad —, serviu para abrir canais de diálogo há muito fechados com os Estados Unidos. Mas a questão premente continua de pé: o Ocidente deve aceitar que uma teocracia belicosa como o Irã desenvolva um programa nuclear? Diante de cenários de incerteza, seria recomendável a prudência em opiniões que incidem no sempre delicado terreno ético e moral. Não é o que se vê. No campo da política, como também no da moral e do comportamento, as pessoas tendem a se organizar em times ou torcidas que se fecham dogmaticamente em torno de suas concepções de mundo. Joshua Greene, pesquisador da Faculdade de Psicologia de Harvard, resumiu esse espírito no título de um livro recente: Tribos Morais. Não se está falando da ética tribal que segue enraizada sobretudo no fundamentalismo islâmico, com sua torta lógica de retaliação — se os americanos (ou israelenses, ou ocidentais) matam meus irmãos, tenho o direito e o dever de matá-los também — que produziu atentados como o da maratona de Boston, em 15 de abril, no qual três pessoas foram mortas e centenas ficaram feridas por bombas plantadas por terroristas chechenos. Greene está falando do entrincheiramento que pessoas pacíficas e civilizadas assumem em suas posições — direita versus esquerda, pró e contra aborto ou casamento gay —, tornando-se quase sempre impermeáveis aos argumentos contrários. "O que precisamos é compreender quais são os nossos pontos em comum", disse Greene a VEJA. "Costumamos confundir nossas predisposições emocionais com argumentos racionais. E, quando acreditamos demais em nossos supostos bons argumentos, não paramos de brigar." Obra de divulgação voltada para o público leigo, Tribos Morais busca abrir caminho no cipoal dos valores contemporâneos valendo-se da neurociência, que tem revelado muito sobre os mecanismos de avaliação moral (complexos, mas também deficientes) que a evolução imprimiu no cérebro humano. Greene, como é comum entre os que estudam a ética a partir da ciência, abraça o utilitarismo. Tradição de pensamento ético fundada pelos ingleses Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873), o utilitarismo almeja muito simplesmente o bem comum. Enquanto outras escolas — notadamente, as que seguem o alemão Immanuel Kant (1724-1804) — buscam grandes princípios primeiros nos quais fundar suas escolhas morais, os utilitaristas procuram, pragmaticamente, eficiência: servirá aos propósitos morais a decisão que diminuir o sofrimento ou aumentar a felicidade geral da sociedade. Essa fórmula na aparência tão simples tem seus abismos. No limite, o cálculo do bem comum pode permitir soluções monstruosas, das quais não se excluem, dependendo da circunstância, a eutanásia, o infanticídio, a tortura. Mas Greene mostra-se muito razoável quando propõe que as tribos morais desçam de seus pedestais de autossuficiência. "Ganharíamos muito se parássemos de discutir sobre direitos", diz. O aborto, tema sempre candente, é exemplar. A discussão costuma se desenrolar entre duas tribos incapazes de se comunicar. Uma diz que a mulher tem o direito de escolher o que fazer com o seu corpo: a outra diz que o feto tem direito à vida. Greene observa que há falhas sérias nos dois argumentos. O direito de escolha da mulher se estenderia, por exemplo, até o nono mês de gestação? E qual seria o limiar para o início da vida, se considerarmos que um óvulo e um espermatozoide já são formas de vida? "A solução é reconhecer que estamos abraçando sentimentos e simpatias pessoais, e não argumentos bem construídos. Em vez de nos perguntarmos que direitos estão em jogo, seria melhor nos questionarmos sobre qual solução produz melhores resultados", diz Greene. Pode ser de fato saudável reconhecer que nossos princípios, confrontados com as realidades duras e sujas da vida, são insuficientes, às vezes contraditórios. Mas não há como abandoná-los de todo, e talvez isso nem seja desejável. Igualmente inevitável será o choque entre princípios não inconciliáveis, mas difíceis de equacionar. As demandas do progresso — mais comida, mais saúde, mais conforto, mais bens de consumo para populações cada vez maiores — exercem inegável pressão sobre o meio ambiente, e a acomodação entre os dois será sempre conflituosa (e aqui princípios, ou, menos que isso, palavras de ordem irrealistas como "desmatamento zero" de nada ajudam). Tanto mais complicada é a situação dos povos nativos brasileiros. Há um justificado sentimento de dívida histórica para com os índios, mas essa culpa não basta para dar forma a políticas públicas eficientes. Já se destinou às reservas indígenas uma extensão de terra equivalente a 13% do território nacional, quase o dobro do espaço destinado à agricultura, de 7%. Mas a mortalidade infantil, entre a população indígena, é o dobro da média nacional, e, em algumas etnias, 90% dos integrantes dependem de cestas básicas para sobreviver. Este é um ponto em que o cômputo utilitarista de prejuízos e benefícios viria a calhar: a felicidade dos próprios índios não é proporcional à extensão de terra que lhes é dado ocupar. No Brasil urbano e confortável, o choque entre outros dois princípios constitucionais brasileiros — a liberdade de expressão e o direito à privacidade — eclodiu em um dos debates públicos mais pitorescos do ano. A iniciativa de uma associação de editores que buscava derrubar os dispositivos do Código Civil que têm permitido a censura de biografias ganhou resposta de uma agremiação chamada Procure Saber, cujos membros incluíam grandes medalhões da MPB: Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil e Roberto Carlos, entre outros. O grupo se colocava contra mudanças na lei — portanto, pela censura. Mais tarde vieram retratações e ponderações diversas, e rachas cordiais entre membros do grupo. "Vamos conversar", propôs Roberto Carlos em entrevista ao Fantástico. Para conversar, porém, é preciso que os interlocutores possam falar livremente — direito que é suspenso quando se torna obrigatório pedir autorização prévia para escrever sobre uma pessoa pública. O episódio foi uma mancha na biografia de músicos que representaram, durante a ditadura militar, uma frente de resistência artística pela liberdade de pensamento. Como o historiador Paulo César de Araújo (cuja biografia Roberto Carlos em Detalhes foi censurada em 2007) definiu em um artigo publicado em VEJA, o dano à imagem desses artistas representou uma espécie de fim simbólico do mítico ano de 1968 — cujo ideário político já se esboroara quando os expoentes da esquerda combativa daquele ano sujaram as mãos nas piores práticas da política brasileira. O desencanto poderá ter sua função pedagógica: percebemos que nossos ídolos são, afinal, não só falíveis, como também contraditórios. Será razoável desconfiar dos puros, dos que são possuídos por qualquer chama sagrada — sobretudo, quando estes acreditam que a causa justifica quaisquer meios, até mesmo aqueles que rompem a lei. Tal é o caso dos vândalos que, aproveitando a justa insatisfação que motivou as manifestações de junho, vêm quebrando prédios públicos, bancos, lojas, veículos. A escalada de violência culminou no brutal linchamento de um policial, no centro de São Paulo, em outubro. Os militantes do movimento black bloc decerto imaginam que estão acima ou além da moral do capitalismo injusto, e que estão praticando alguma forma de ética superior ao jogar uma pedra em uma vitrine ou golpear um policial com uma barra de ferro. Mas não há sistema ético — baseado em Kant, nos utilitaristas, nos gregos antigos, no que for — que possa acomodar essa forma de estupidez. "Houve casos na história em que a violência foi necessária para o bem maior. Mas, em uma democracia, ainda que uma democracia falha, sempre será melhor lutar com meios não violentos, como Martin Luther King fez nos Estados Unidos", diz Greene. A mesma condenação à violência pode ser estendida à ação dos militantes em prol dos direitos animais que, em 18 de outubro, depredaram (com uma ajudinha dos black blocs) os laboratórios do Instituto Royal, em São Roque, no Estado de São Paulo. A nota emocional é difícil de contornar: 178 cães da raça beagle, usados em testes de medicamentos, foram retirados do local. Testes animais colocam um problema ético que não pode ser trivializado. De um lado, por mais que seja minimizado e controlado por parâmetros da ética científica, há o sofrimento dos bichos. Do outro lado, está nosso bem maior: nas atuais condições, não há como dispensar testes com animais para o desenvolvimento de drogas e remédios que salvarão vidas humanas. Já não se admitem, isto sim, testes de cosméticos, até porque para esses fins há variedades de pele artificial que substituem os animais. A União Europeia baniu de suas fronteiras produtos de beleza que tenham sido testados em bichos. É só pela evolução da ciência que será possível um dia, assim esperamos, libertar todas as cobaias. O avanço da ciência — e da educação científica — tem, portanto, sua dimensão ética. Será ingênuo acreditar que as duas coisas avançam juntas. Mas em geral há, sim, na busca do conhecimento científico, uma antiga aspiração iluminista pelo bem maior. Um dos marcos mais auspiciosos do ano foi o retorno ao Brasil do primeiro grupo de estudantes do Ciência sem Fronteiras, programa do governo federal que levou 23.000 estudantes, da graduação ao pós-doutorado, para estudar em centros de excelência em 39 países. Simbolicamente, pode-se dizer que esses foram os dois caminhos em que se dividiu a juventude brasileira em 2013: a destruição sem sentido dos black blocs e a ânsia por novos conhecimentos do Ciência sem Fronteiras. O progresso científico também levanta novos problemas. O novo campo da biologia sintética, que ganhou proeminência na ciência de ponta quando o cientista e empresário Craig Venter anunciou, em 2010, a primeira bactéria com DNA artificialmente "construído" por computador, acena com infinitas promessas. Mas guarda também ameaças. Como revelou uma recente reportagem da revista Foreign Affairs, técnicas cada vez mais rápidas de manipulação genética podem promover imensos avanços na pesquisa sobre vírus que causam epidemias mortais. Para conduzir esse tipo de pesquisa, porém, é preciso replicar e manipular agentes patogênicos, às vezes criando variedades ainda mais transmissíveis e perigosas. Há uma preocupação natural pelo controle do admirável mundo novo — como garantir que microrganismos letais não sejam usados para fins bélicos, ou por terroristas? Das opções políticas à escolha do creme que se usa no rosto, as decisões que tomamos agora parecem carregadas de implicações morais. Temos, desde os gregos, quase trinta séculos de pensamento sobre ética. E, se isso nem de longe resolve dilemas que vão da organização familiar à pesquisa científica, não é apenas porque hoje há dilemas com os quais não se sonhava em Atenas: todo sistema moral sempre será insuficiente perante a realidade. Hoje, quando a filosofia é uma disciplina acadêmica, perdemos a ideia de completude que ela representava no mundo pagão antigo. Em Pursuits of Wisdom, um belo panorama do pensamento ético da Antiguidade, John Cooper, da Universidade Princeton, lembra que, entre os gregos, a filosofia era antes de tudo um modo de vida, um guia para a virtude e a felicidade. E, que lindo, não se concebia que pudesse haver felicidade sem virtude. "Essa é uma concepção que, eu espero, ainda seria possível nas atuais circunstâncias culturais: estudar a filosofia, ou pelo menos partes relevantes dela, como guia para levar uma vida melhor. O estudo da filosofia não seria divorciado de sua prática", diz Cooper. Na filosofia moderna, o foco especializado dos pensadores da ética saiu do sujeito e de suas virtudes (ou falta delas) para se focar em ações: é certo ou errado comer carne, ou usar o carro para ir ao trabalho todo dia? Mas a sabedoria fundamental — no sentido mais substantivo desse adjetivo — da filosofia grega é incontornável. Marco Zingano, professor do Departamento de Filosofia da USP, lembra que a ética das virtudes, proposta sobretudo por Aristóteles, tem uma relevância especial hoje: "Uma ideia cara à ética das virtudes é que as decisões devem ser tomadas em função das circunstâncias, a partir de uma certa sensibilidade moral". Nessa concepção, somos, cada um de nós, agentes morais: todas as nossas decisões éticas são tomadas em primeira pessoa, e é inadmissível que a voz de um agente moral seja usurpada. "No caso do aborto, por exemplo, isso quer dizer que a mulher tem uma posição especial: é ela quem está em primeira linha nessa questão", diz Zingano. A perseguição da virtude — modesta, humilde, sem certezas sagradas — é um ideal a que todos podem e devem aspirar. E compartilhar. E transmitir a filhos, amigos, alunos. Figuras modelares podem ser úteis nesses momentos — desde que sem idolatria, com o permanente reconhecimento de que todos são falíveis. Para os religiosos (e não só católicos), o carisma do papa Francisco, que herdou de Bento XVI a difícil tarefa de promover a reforma ética da hierarquia do Vaticano, foi uma fonte de inspiração em 2013. Morto neste mês, Nelson Mandela, o ex-radical que derrubou o regime racista do apartheid e promoveu a conciliação nacional da África do Sul, será outro exemplo. E, buscando mais fundo na história, pode-se lembrar de Sócrates, que, tal como o descreve Platão em Apologia, se sujeitou à pena de morte promulgada por seus concidadãos atenienses, que o condenaram por impiedade aos deuses, mas não abdicou de sua inquirição pela verdade. Diz Sócrates que um homem não deve temer a morte, mas, isto sim, "considerar apenas suas ações, e se o que ele faz é certo ou errado, e se ele age como um homem bom ou um homem mau"'. Simples assim, e complicado assim. 4# RETROSPECTIVA 2013 – BRASIL – 25.12.13 OS MASCARADOS E OS CARAS-LIMPAS Os dois grupos surgiram quase ao mesmo tempo, protestaram juntos, causaram e sumiram — cada qual por um motivo. Os manifestantes de junho e os black blocs foram as grandes surpresas das ruas em 2013. Os primeiros chegaram quase timidamente, com uma bandeira única e paulista, mas logo se multiplicaram, bem como as bandeiras, até tomarem o país numa única e impressionante marcha sem dono. A ausência de lideranças políticas ditando slogans à multidão (quem tentou se deu mal, não é mesmo, Rui Falcão?) permitiu a união de insatisfações variadas e apartidárias e ajudou a engordar os protestos, mas também colaborou para o seu definhar silencioso, já que, quando os gritos começaram a baixar de volume, não havia ninguém para levantar a galera. Sobraram só os black blocs, que, com a sua cara tapada e sua violência aleatória, espantaram o que restava da turma do bem. Foi preciso muito pneu queimado, fachadas destroçadas (incluindo a do belo edifício do Itamaraty, em Brasília) e até a clavícula fraturada de um coronel de São Paulo para que a aclamada “estética da violência” passasse a ser chamada por seu nome real: arruaça promovida por criminosos. Hoje, há cerca de 200 black blocs indiciados em São Paulo, Rio e Porto Alegre. A maioria responderá por dano ao patrimônio público e associação criminosa. Mas engana-se quem pensa que os mascarados recolheram seus porretes. As redes sociais estão repletas de ameaças deles. O novo alvo dos vândalos: a Copa do Mundo. EU TE ESPIONO, TU ME ESPIONAS... Relações pessoais entre presidentes se definem historicamente por duas variáveis: o grau de "empatia" entre eles, quase sempre trabalhado com esmero por assessores que vazam para a imprensa exemplos de "como-os-encontros-foram-descontraídos-e-os-dois-se-deram-bem", e os fatos que os envolvem — estes um pouco mais difíceis de manipular. Lula e George W. Bush, por exemplo, sempre se saíram bem no primeiro quesito e mal no segundo. Entre Dilma Rousseff e Barack Obama, a coisa nunca andou muito bem em nenhum dos planos. Do ponto de vista pessoal, sempre foram distantes. No institucional, a relação desandou com as revelações do ex-analista da NSA Edward Snowden de que os Estados Unidos espionavam Deus e o mundo, incluindo o Brasil. O clima pesou quando ficou claro que as desculpas compungidas que Dilma queria ouvir de Obama não viriam, mas foi melhorando a medida que se revelou o que todos sabiam: que britânicos bisbilhotam alemães, israelenses vigiam iranianos, chineses espionam todo mundo e, sim, também os brasileiros acompanham bem de perto os passos dos russos e... dos americanos. Diante de tanto compartilhamento de dados, era inevitável que a tensão entre os presidentes se dissipasse no ar, como ficou evidente no funeral de Nelson Mandela, quando Dilma e Obama trocaram cumprimentos e beijinhos, com sorriso e tudo. 2013, quem se lembra dele? HERÓIS E BANDIDOS Em 2012, o Supremo Tribunal Federal afrontou a tradição nacional de impunidade dos poderosos ao condenar políticos, empresários e banqueiros que participaram do mensalão, o maior esquema de corrupção política da história do país. No último dia 15 de novembro, o presidente do STF, ministro Joaquim Barbosa, recuperou de vez a confiança dos brasileiros no Judiciário ao determinar, finalmente, a execução das sentenças. Em pleno feriado da República, Barbosa mandou para a cadeia o ex-ministro José Dirceu, o ex-presidente do PT José Genoino, o ex-tesoureiro do partido Delúbio Soares, além de Marcos Valério, o operador do esquema. Barbosa já determinou a execução da pena de 21 dos 25 condenados no processo. Só um deles, o petista Henrique Pizzolato, está foragido. Presos, os deputados Genoino, Valdemar Costa Neto (PR) e Pedro Henry (PP) renunciaram ao mandato – todos para evitar um processo de cassação que, depois da vexatória decisão tomada no caso de Natan Donadon (veja a pág. 116), seria decidido em votação aberta. O PT sempre tachou a denúncia do mensalão de farsa, piada de salão e golpe da elite contra o primeiro governo popular do país. Sempre exerceu o direito de espernear, e de posar de vítima, numa tentativa de acobertar a vergonhosa compra de apoio parlamentar, com empréstimos fraudados e dinheiro desviado dos cofres públicos. Ao prender os mensaleiros, o Supremo desfez essa cortina de fumaça e deixou claro ao partido, ao ex-presidente Lula e aos mensaleiros que, por mais poderosos que sejam, eles não estão acima das leis e das instituições republicanas. Em 2013, a democracia brasileira andou para a frente – e decretou o fim da linha para os heróis-bandidos. ONDE ANDARÁ JUQUINHA? As ruas pegavam fogo no auge dos protestos de junho quando o país viu Juquinha, em sua canina inocência, caminhar contente em direção ao helicóptero oficial do governo do Rio. O atual ocupante do cargo, Sérgio Cabral (PMDB), tinha o hábito de usar a aeronave não só para ir de casa para o trabalho (um percurso de menos de 10 quilômetros), como também para passar o fim de semana na praia: às sextas-feiras, ele – mais a mulher, filhos, babá e cachorro – embarcava no Agusta AW109 Grand New, que custou 15 milhões de reais aos cofres públicos, rumo ao condomínio na região de Angra dos Reis onde a família tem casa. Flagrado por VEJA, Cabral pediu desculpas à população e assinou um decreto proibindo o que até as pedras da Gávea sabem há muito ser proibido: o uso da coisa pública para finalidade privada. Cabral encerrou o ano como um dos governadores mais impopulares do país e anunciou que deixa o posto em março para se candidatar ao Senado. E, já que está mesmo de saída, resolveu aproveitar. Segundo o jornal Folha de S.Paulo, em outubro, o Agusta voltou a levar sua família para passear na casa de praia. Juquinha, porém, não foi mais visto a bordo – o único, até agora, a se dar mal no episódio. CASAMENTO SEM NOIVADO Em mais de um aspecto, ele é de Marte; ela, de Vênus. O agronegócio, por exemplo, para ele é uma prioridade; para ela, um inimigo. As alianças partidárias, para ela, têm de ser, antes de tudo, programáticas; para ele, pragmáticas. "Foi um casamento sem namoro. Os noivos estão se conhecendo enquanto montam a casa", ironiza o governador Eduardo Campos (PSB-PE) a respeito de suas diferenças com a ex-senadora Marina Silva. Em outubro, eles surpreenderam meio mundo ao se unirem numa mesma chapa para concorrer às eleições presidenciais de 2014 – ele como titular, ela como vice. Em janeiro, os dois vão se apresentar a empresários e banqueiros em uma viagem à Suíça e aos Estados Unidos. Se o casamento vai durar e render os frutos desejados não se sabe, mas a união dos dois principais rivais de Dilma Rousseff fez tremer o chão para a presidente, cuja reeleição, até a metade de 2013, eram favas contadas no meio político. Dilma termina o ano ainda favorita, mas tendo agora de enfrentar dois adversários de peso: além de Campos-Marina, Aécio Neves, do PSDB. A eleição não será o passeio no campo com que o PT sonhava. OBRIGADO SENHOR É da tradição da Câmara passar a mão na cabeça de parlamentares acusados de integrar quadrilhas especializadas em roubar recursos públicos. A extensa lista, que inclui anões do orçamento, sanguessugas e mensaleiros absolvidos no plenário, mostra que o espírito de corpo reina na Casa, salvo raras exceções. No fim de agosto, dois meses após as manifestações populares que fulminaram a classe política, os deputados ousaram aprofundar ainda mais o fosso moral que os separa dos brasileiros de bem. Foi uma vergonha. Numa votação fechada, eles se negaram a cassar o mandato de Natan Donadon, ex-PMDB de Rondônia. Donadon não era alvo de nenhuma investigação nem réu em processo criminal. Quando da votação, ele estava condenado a treze anos de cadeia por formação de quadrilha e peculato e cumpria a pena, em regime fechado, em Brasília. Já era, portanto, o primeiro deputado-presidiário desde a Constituição de 1988, sem salário, sem gabinete, mas “despachando’ de uma cela da Papuda. Numa tentativa de sair do fundo do poço, se é que no Congresso o poço tem fundo, os parlamentares aprovaram o fim do voto secreto em casos de cassação de mandato. Ficou só nisso. Donadon continua deputado. Não vota, não vai à Câmara, mas ainda tem mandato. Poucas vezes a democracia brasileira foi tão humilhada. Pena que as excelências não se importem com isso. VAIAS PARA A EMPULHAÇÃO Em Cuba, para combater a última epidemia de cólera, o governo mandou dar à população gotas de um remédio homeopático. Como se sabe, diversos países erradicaram a cólera no século XIX melhorando suas condições de saneamento básico. Mas para que investir em tratamento de água e redes de esgoto quando se podem receitar umas gotinhas, não é mesmo? O programa Mais Médicos, do governo brasileiro, trouxe de Cuba não apenas profissionais explorados, vigiados e mal pagos – importou também a lógica da empulhação castrista. É mais simples, afinal, lotar o interior do país de cabos eleitorais do governo, ops, profissionais treinados pelo Estado amigo de Cuba, do que resolver o problema da falta de estrutura da saúde em lugares que nunca viram um aparelho de ultrassom e em cujos prontos-socorros falta até dipirona. Essa deficiência sistêmica, contra a qual se insurgem profissionais brasileiros, certamente não será uma questão para os forçosamente dóceis médicos cubanos. E é o escamoteamento desse problema – e suas consequências para o agravamento da saúde no Brasil – que está na origem das vaias que recebeu de colegas brasileiros o cubano Juan Delgado (na foto, em Fortaleza). Como os demais profissionais importados da ilha de Fidel, ele repassa ao governo de seu país a maior parte dos 10.000 reais que recebe, é monitorado por espiões e obrigado a viver longe da família para que nem pense em desertar. Tudo isso afronta as leis brasileiras, para não falar dos direitos elementares de qualquer cidadão livre. Mas, como sabe o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, idealizador do programa e candidato ao governo de São Paulo em 2014, quem ousaria ser a favor de menos médicos? O BICHO PEGOU Ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho funciona como os olhos e os ouvidos de Lula no governo Dilma Rousseff. É ele também que dá voz ao ex-presidente naqueles assuntos que mais tocam a alma petista. Na virada de 2012 para 2013, quando o partido ainda cuidava das feridas das condenações do mensalão, Gilbertinho avisou a militância: "O bicho vai pegar". Foi uma forma de mexer com os brios dos companheiros, instando-os a lutar contra quaisquer obstáculos à frente dos projetos de poder do partido. Assim foi feito, e sempre com o ministro dando o (mau) exemplo à tropa. Quando Dilma mandou a Casa Civil investigar Rosemary Noronha, a amiga íntima de Lula que chefiava o escritório da Presidência em São Paulo e foi pilhada em cenas explícitas de tráfico de influência, Gilbertinho tentou melar o trabalho. Mais tarde, um de seus subordinados participou ativamente de uma ofensiva – tramada em parceria com a Embaixada de Cuba em Brasília – para perseguir e difamar a blogueira cubana Yoani Sánchez, que visitava o país. Os soldados do diligente ministro também deram o ar da graça nas manifestações populares de junho. Como bons conspiradores, estavam junto de uma claque paga para tocar o terror nas imediações do estádio de Brasília na Copa das Confederações. Para contrariedade de Dilma, Gilbertinho ainda agiu para agravar o clima de beligerância dos índios com o governo, apesar de ser ele justamente o responsável por negociar com os movimentos sociais. Os índios passaram a invadir fazendas. Em alguns estados, o clima beira o confronto armado. O ministro foi sempre um fator de desestabilização. Só se recolheu em raras exceções, como quando foi acusado de coletar propina na prefeitura de Santo André e entregá-la a José Dirceu. Aí, Gilbertinho submergiu. O TOMATE VIROU A NOVA ABOBRINHA A responsabilidade pela inflação, ironizava o economista americano Milton Friedman, nunca é do governo. "As autoridades porão a culpa em comerciantes gananciosos, no mau tempo, nos xeques árabes ou em qualquer outro motivo que pareça minimamente plausível." Quando os preços começaram a subir nos mercados brasileiros, o governo rapidamente adotou a segunda opção. O fenômeno seria passageiro e por trás dele estariam as condições climáticas adversas e a quebra de safra. Mas o tempo melhorou e os preços continuaram subindo e subindo. O tomate a 10 reais o quilo virou piada nacional e alerta vermelho a lembrar quão ácidos eram os tempos pré-Plano Real. Em 2013, pelo quarto ano seguido, o IPCA ficará acima do centro da meta oficial, de 4,5%. Os números só não foram piores porque o governo continua segurando o preço da gasolina e das tarifas de energia à força de caneladas. Já os preços livres sobem ao ritmo médio de 8% ao ano. O Banco Central voltou a aumentar a dose dos juros para reduzir o ímpeto dos reajustes, dado que em ano eleitoral nem se pensa em frear a expansão dos gastos públicos e o financiamento dos bancos estatais, dois dos grandes males inflacionários ocultos. É mais fácil apontar o dedo para outro culpado, e o vilão da vez deverá ser o dólar em alta. Ou outra abobrinha qualquer. ARTÉRIAS BLOQUEADAS Foi a crônica do desperdício anunciado. Quando os investimentos não acompanham o aumento da demanda, o resultado é sempre o surgimento de gargalos de infraestrutura. Assim ocorreu na crise dos aeroportos, e assim se viu nas filas de caminhões obrigados a quarar por três dias na estrada até conseguirem despejar a carga de grãos no Porto de Santos. As colheitas históricas de soja e milho trouxeram 35 bilhões de dólares em divisas para o país no último ano. Mas a riqueza seria maior não fossem os prejuízos causados pelas estradas ruins e pelo tempo perdido nos portos, contemplados com míseros 36 milhões de reais do total de 503 milhões de reais de investimentos federais autorizados para este ano. O governo reconheceu sua incapacidade para fazer, sozinho, as obras necessárias e conseguiu a aprovação de uma lei que abrirá o setor aos investidores privados. É promessa de dias melhores, reforçada agora pela privatização de aeroportos e rodovias federais, além do bem-sucedido leilão do campo de Libra, que deverá produzir até 12 bilhões de barris de petróleo nos próximos anos. O plano de concessões, entretanto, demorou a decolar. E o resultado é que as dificuldades para o escoamento da safra deverão se repetir em 2014, quando se espera um ovo recorde de produção. O campo fez a parte dele. EI-KE ROUBADA! Se pudesse escolher, Eike Batista certamente teria preferido pular 2013, o ano em que sua fortuna encolheu e seu império desmoronou diante da revelação de que o mar de petróleo prometido aos investidores da OGX, afinal, não existia. À altura da grandiosidade de tudo o que cerca o ex-bilionário, a debacle já integra a lista dos maiores fracassos da história do capitalismo. Suas companhias chegaram a valer 60 bilhões de dólares; hoje, não passam dos 2,5 bilhões, e nem dele são mais. A OGX e a coirmã OSX, de estaleiros, estão em recuperação judicial e serão entregues aos credores. Três outras – a de energia, o Porto do Açu e uma parte da mineradora – ganharam novos controladores e novo nome, sem o "xis", ao qual Eike, dado a superstições, reputava toda a sua sorte. O resto do império, incluindo a frota de seis aeronaves, está sendo vendido ou tomado pelos fundos e bancos, que tentam recuperar ao menos uma fração do prejuízo. Para quem já figurou entre os homens mais ricos do planeta, a situação é melancólica: estima-se que o patrimônio atual de Eike não chegue a 1 bilhão de dólares, enquanto suas dívidas pessoais batem na casa dos 4,4 bilhões. Antes onipresente e loquaz, o empresário agora alterna momentos de depressão e euforia. Aparições em público, como a da foto acima, quando ele era só paz, amor e promessas de dividendos, rarearam. O único xis que sobrou foi o da questão: dará ele a volta por cima? A DOR QUE PERMANECE IMPUNE A tragédia da boate Kiss, que matou 242 jovens em Santa Maria em janeiro, deixou dezenas de outros queimados e produziu cicatrizes invisíveis e indeléveis em sobreviventes, como a estudante Yasmin Müller (na foto, debruçada sobre o caixão do namorado), termina o ano impune. A primeira investigação aberta para apurar a responsabilidade do poder público no episódio chegou a ser arquivada por "falta de culpados", mas uma nova revelação devera forçar sua reabertura: o Ministério Público descobriu que o prédio da Kiss já havia sido embargado, em 2009, por um departamento da prefeitura por apresentar instalações inadequadas. Para driblar a medida, a boate forjou uma mudança de endereço: no papel, saiu do número 1935 da Rua dos Andradas para o numero 1925 da mesma rua. Se o truque não tivesse prosperado, a Kiss poderia ter sido fechada quatro anos atrás – e Santa Maria não estaria chorando seus mortos neste Natal. O DILEMA DOS BEAGLES O "resgate" dos 178 beagles do Instituto Royal, em São Roque (SP), numa madrugada de outubro, levantou uma discussão difícil de ser travada sem paixão: existe um equilíbrio possível entre o imperioso avanço da ciência e o desejado cuidado com o bem-estar dos animais, ainda imprescindíveis para o sucesso de descobertas que podem salvar vidas humanas? É justo sacrificar bichos indefesos e expô-los aos sofrimentos de uma vida em laboratório para o benefício da humanidade? Mais: são justificáveis ações como as dos ativistas que, por amor aos animais, destruíram um trabalho que envolveu mais de uma década de pesquisas destinadas, entre outras coisas, a desenvolver um novo antibiótico e dois tipos de remédio contra o câncer? Não há respostas simples a essas questões, mas, por aqui, a balança pendeu em favor dos bichinhos no ano que passou. Com suas instalações arruinadas e funcionários apavorados diante da possibilidade de novos ataques, o Instituto Royal foi obrigado a fechar as portas para sempre. Com isso, estudos importantes foram interrompidos, e o Brasil perdeu o único laboratório com certificação internacional para testes com animais. Agora, as empresas brasileiras que quiserem testar seus produtos terão de recorrer a laboratórios no exterior, um caminho mais caro e mais demorado. E, pior, que não está livre de envolver outros beagles – tanto lá como cá, os cãezinhos mais usados para testes de remédios e vacinas em estágio avançado, dadas as poucas variações genéticas que a raça apresenta. É PAU, É PEDRA... O primeiro feriado escaldante deste fim de ano, 20 de novembro, reavivou um pesadelo quase esquecido na memória carioca. Nas areias lotadas de Ipanema e Leblon, as mais nobres do Rio de Janeiro, bandos de meninos vindos de favelas distantes promoveram uma sucessão de arrastões, modalidade de roubo em massa inventada nessas mesmas praias em outro verão de triste lembrança, o de 1992. Instalou-se um cenário de horror, com as gangues carregando tudo o que encontravam pela frente, banhistas lançando-se ao mar e cadeiras voando sobre a multidão. Instantaneamente, todo mundo pensou a mesma coisa: será que o Rio vai enfrentar de novo as hordas de bandidos que aterrorizaram as areias há duas décadas? O método era igual, mas os personagens desta vez eram menores de idade desarmados, ao contrário dos antecessores. Detidos em meio à bandalha, foram logo liberados. Acredita-se que sejam mão de obra ociosa do tráfico, garotos dispensados das funções menores que desempenhavam quando a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) fez o negócio refluir. Sem fonte de renda, teriam partido para o asfalto: na vizinhança de Ipanema e Leblon, os roubos aumentaram 108% em 2013. A Secretaria de Segurança triplicou o efetivo na orla e, por ora, reina a trégua. Mas os pivetes continuam à solta e um clima de receio paira sobre as areias cada vez mais quentes neste verão que se inicia. BARBÁRIE ORGANIZADA Os doze corintianos da foto parecem assustados. E estão mesmo. Eles haviam acabado de ser presos por suspeita de envolvimento na morte do menino boliviano Kevin Douglas Beltrán Espada quando a imagem foi feita. Kevin morreu em fevereiro, aos 14 anos, ao ser atingido por um sinalizador marítimo lançado do lugar onde estavam os corintianos num estádio do interior da Bolívia. O grupo passou quase seis meses na cadeia até ser solto por falta de provas. A essa altura, o susto já havia passado. Em agosto, logo após serem liberados, três dos torcedores da foto se meteram em uma batalha campal com a torcida do Vasco da gama no estádio Mané Garrincha, em Brasília. No mês seguinte, Rafael Machado Castilho (de capuz branco, encoberto por outros dois torcedores, no centro) foi preso por trocar tiros com policiais militares em Santo Estevão, no interior da Bahia. Com trinta mortes nos estádios, o Brasil bateu um recorde de sangue em 2013, e mantém-se invencível na liderança das estatísticas de violência do futebol mundial. Na última rodada do Campeonato Brasileiro, torcedores de Vasco e Atlético-PR marcaram com socos e pontapés o fim da temporada, em cenas de selvageria que percorreram o mundo todo. Era disso que falava Nelson Rodrigues com aquela história de pátria de chuteiras? FESTA PELA METADE Eram dois os objetivos do Brasil para a edição 2013 da Copa das Confederações, espécie de ensaio para o torneio mais nobre que virá em seguida: ter um time com boas chances de vencer a Copa do Mundo de 2014 e testar os estádios que sediarão os jogos. A primeira parte o técnico Luiz Felipe Scolari cumpriu com louvor. Montou uma equipe com defesa sólida e ataque eficiente, comandada pela genialidade de Neymar. A vitória de 3 a 0 sobre a Espanha na final, em um Maracanã lotado, mostrou que o Brasil está no caminho certo. Já a segunda parte, bem... Quatro dos doze estádios estão com o cronograma atrasado – o que, do ponto de vista dos pessimistas, configura uma situação perfeitamente dentro do previsto. O que não estava nos planos de ninguém foi o acidente com o Itaquerão, que deixou dois mortos e jogou o prazo de entrega para dois meses antes do início da Copa. Embora negue de pés juntos, a Fifa tem um plano B na gaveta para o caso de as obras do estádio, programado para sediar a abertura do torneio, sofrerem um atraso ainda maior. CADÊ O PAPO-FIRNE? Capitaneada pela empresária Paula Lavigne, a associação Procure Saber se propõe a defender os direitos dos artistas. Mas, em outubro, flertou perigosamente com a censura ao defender a manutenção da necessidade de autorização prévia para as biografias. Esse tipo de obra constituiria um avanço indefensável sobre o direito à privacidade dos biografados – uma ofensa agravada pelos "milhões" que editoras e autores ganhariam à custa deles. A dúvida é qual das duas teses é mais estapafúrdia. Primeiro, biografias são uma forma estabelecida e respeitável de historiografia, mais ainda no caso de alguns associados do Procure Saber, indivíduos cuja história está entrelaçada com a do país. O segundo argumento, o das "fortunas" acumuladas às expensas das vidas devassadas... Bem, esse só pode ser brandido por quem nunca escreveu um livro nem tem o menor conhecimento da realidade do mercado editorial brasileiro. Da série de debates que a controvérsia produziu, restou uma mancha incancelável na biografia de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque e Milton Nascimento, entre outros medalhões da MPB. E a certeza de que aquele "papo-firme" que gente como Roberto Carlos defendia na época da jovem guarda hoje não passa de papo-furado. Roberto, que já vetou não só biografias como até uma dissertação de mestrado em que era personagem, foi à TV para dizer: "Vamos conversar". Só se for aquele tipo de conversa para boi dormir. 5# RETROSPECTIVA 2013 – INTERNACIONAL – 25.12.13 PAROU DE CHOVER NA HORTA DO IMPÉRIO? Estados Unidos estão ficando menos poderosos do que eram ao mesmo tempo em que perdem o respeito que tinham no âmbito internacional e divisam um caminho mais declinante ainda pela frente. Quem diz isso não são os de sempre, movidos pelos conhecidos e tolos motivos, mas os próprios americanos, em opiniões avaliadas em pesquisas. Num mundo em que a percepção é tão importante quanto a realidade, a sensação de encolhimento do poder praticamente colou-se à própria imagem do presidente Barack Obama. No primeiro ano de um segundo mandato que deveria cobri-lo de glória, Obama patinou e perdeu o toque mágico, o carisma capaz de iluminar o "fenômeno misterioso e universal" das multidões. Nada do que planejava, como aumentar o controle sobre a posse de armas, deu certo. As revelações sobre o gigantismo da rede de espionagem eletrônica provocaram decepção entre a população mais jovem e mais à esquerda e revolta entre a direita libertária. Até quando fez coisas que correspondiam ao desejo da maioria, como não bombardear a Síria em represália pelo uso de armas químicas e evitar um desfecho militar para impedir o Irã de fabricar bombas nucleares, passou a imagem de hesitação e fraqueza. Mas nada foi tão desastroso quanto o lançamento da reforma do sistema de saúde, ensombrecida por espantosos problemas técnicos, e a reversão de promessas insistentemente feitas por Obama. Os possíveis benefícios de suas iniciativas, como crises menos lancinantes no Oriente Médio e um sistema de saúde mais abrangente para os americanos, só serão avaliados com o passar do tempo. No calor dos acontecimentos, 2013 foi um ano de mau tempo para os Estados Unidos e o homem que disse, messianicamente, ao ser escolhido candidato a presidente pela primeira vez, que a partir daquele momento o aumento do nível dos oceanos começaria a diminuir. O MOMENTO DA FALÊNCIA DO SISTEMA Em países psicologicamente acostumados a governos disfuncionais, todo mundo já imagina o que vai acontecer quando uma autoridade diz que "as filas nos aeroportos vão acabar". O mais provável é que aumentem. Dizer que vai apertar um botãozinho e uma maravilhosa inovação começará a funcionar é praticamente a garantia de que a coisa não vai dar certo. Nos Estados Unidos, as camadas de ceticismo são muito mais tênues. Por isso, foi enorme o trauma nacional quando o "botãozinho" do sistema de saúde reformado, que deveria ser acessado on-line, simplesmente falhou. E falhou. E falhou mais um pouco. Os problemas foram de escala tão catastrófica que muitos americanos pareciam ter ido dormir no país mais poderoso do mundo e acordado na Venezuela bolivariana. No primeiro dia, apenas seis pessoas conseguiram se inscrever. De todas as situações constrangedoras, a mais patética talvez tenha sido a da secretária da Saúde. Kathleen Sebelius. Com seus elegantes cabelos brancos, ela foi à Flórida mostrar como tudo já estava sendo resolvido, e o sistema caiu bem na sua frente. A ideia do Obamacare, como todo mundo o chama, é positiva: prover cobertura de saúde universal aos americanos. Em compensação, todos são obrigados a comprar um plano de saúde – com multa para quem não aderir e subsídios para os de menor renda. O presidente Barack Obama prometeu dezenas de vezes que quem estivesse satisfeito com seu plano poderia mantê-lo. Aconteceu exatamente o oposto: centenas de milhares, potencialmente milhões, de cancelamentos. A quebra de confiança foi tão grave que a aprovação a Obama caiu a 37%, e baixou um clima de angústia nacional. "Eu não fui informado diretamente de que o site não iria funcionar como deveria", tentou remendar o presidente, num momento em que sua eloquência e sua capacidade de argumentação também não funcionaram. O HOMEM QUE SABIA TUDO Quem gostaria que um órgão do governo ouvisse tudo o que todo mundo, do mais humilde anônimo ao governante no topo da pirâmide, fala, escreve no computador e até pensa? Ninguém, obviamente. E quem gostaria que o terrorista que vai explodir um avião fosse grampeado, identificado e impedido de agir muito antes de executar seus planos? A maioria das pessoas – especialmente quem fosse pegar aquele voo. De maneira simplificada, esse é o dilema que Edward Snowden trouxe à tona ao revelar a espantosa dimensão dos controles desenvolvidos pela Agência de Segurança Nacional, a NSA, o serviço de inteligência dos Estados Unidos responsável por interceptar comunicações. A motivação de Snowden, um hacker legalmente habilitado que foi funcionário da CIA e de uma empresa plantada no coração da NSA, ainda é sujeita a muitas dúvidas – o que um defensor das liberdades vai fazer na Rússia? Mas os 200.000 documentos secretos que vazaram são autênticos e vão continuar a aparecer – ele promete, inclusive, dar mais se receber asilo no Brasil, conforme pediu. Sua divulgação representou um golpe operacional humilhante para a agência e constrangimentos em série para o governo americano, pelo nível de alto sigilo que tinham e pelo estrago causado, em especial a invasão das comunicações de líderes que costumam receber tratamento vip, como a presidente Dilma Rousseff e a primeira-ministra alemã Angela Merkel. Muito do que Snowden revelou já era conhecido: a NSA tem como controlar telefonemas, e-mails e outras comunicações eletrônicas de praticamente todo mundo. Na teoria, o conteúdo só é acessado quando existem suspeitas juridicamente legítimas. A diferença entre a teoria e as práticas permitidas pela tecnologia atual é imensa. Os homens que sabem tudo só não conseguiram criar um sistema à prova de vazamentos vindos de seu próprio interior, como Snowden. Espionar inimigos e, também, amigos é uma prática que quem pode faz, muitos fingem que não existe e todos se sentem moralmente indignados se estão na posição de espionados. Até na hora de entrar naquele avião... O BAD BOY ESTÁ NA MAIOR ALEGRIA O gato que comeu o canário é uma expressão usada em inglês para definir o sorrisinho debochado de quem passa a perna em alguém e ainda se acha o máximo. Para entende-la em russo, basta olhar para as felinas manifestações de contentamento do presidente Vladimir Putin. Em 2013, ele comeu um canário atrás do outro. Aplicou um golpe humilhante no cerne da espionagem americana ao ficar com o canarinho Edward Snowden cantando tudo em seu quintal, tripudiou sobre Barack Obama na questão Síria e tomou a defensiva em todas as áreas onde a Rússia disputa espaços geopolíticos – Leste Europeu, oriente Médio e Ásia Central. Foi tão esperto e agressivo que conseguiu ter parcelas da opinião pública internacional simultaneamente contra (garotas do Pussy Riot, legislação antigay, presos do Greenpeace) e a favor (Snowden, Síria e antiamericanismo de forma geral). Até para oficializar o próprio divórcio, o primeiro de um líder russo desde o de Pedro, o Grande, há 300 anos, usou o mesmo método de manipulação brutal e eficientemente planejada: fez a ex-mulher, Ludmila, ir com ele a uma apresentação de balé e “plantou” uma repórter que, nervosamente, perguntou se a separação estava confirmada. Putin assentiu e pôs a culpa no excesso de “exposição’ a que mulheres de líderes políticos são submetidas. Detalhe: Ludmila sempre viveu praticamente em isolamento. O estilo bad boy funciona em várias áreas. OUTRO ANO DE BALAS PERDIDAS A mulher nesta foto é uma síria de origem palestina que entrou para a rebelião contra o regime depois de perder os dois filhos num bombardeiro. ´R chamada apenas de Guevara pelos companheiros de luta. Absurdo, armação, propaganda? Talvez um pouco de tudo isso, num reflexo em escala individual das situações surrealistas criadas pela guerra civil na Síria. Pela lógica, essa guerra já deveria estar terminada, o governo de Bashar Assad derrubado e a Síria, transformada num regime de islâmico. Aconteceu o oposto do que todos prognosticavam. A Síria viveu mais um ano de conflito e atrocidades cometidas pelos dois lados, ao fim do qual Assad e as forças estrangeiras que o sustentavam – a Rússia, Irã e o Hezbollah libanês – conseguiram não só sobreviver como partir para a ofensa. Quando cruzou a linha vermelha riscada pelos Estados Unidos e recorreu ao bárbaro uso de armas químicas, chegou outra vez perto do abismo. A virada de último minuto do presidente Barack Obama, ao decidir não desfechar um bombardeio punitivo, deu mais um bom fôlego ao regime sírio. O chão se abriu para os rebeldes, que já estavam se matando entre si devido à estratégia brutalmente errada da frente anti-Assad de despachar para a Síria os mais radicais fundamentalistas. As derrotas militares que sofreram empalidecem perto da pançada política representada pela decisão de Obama. A guerra civil na Síria é também uma guerra religiosa entre as duas correntes muçulmanas, a sunita e a xiita, que se defrontam desde pouco depois da morte de Maomé, o profeta do Islã, há quase 1400 anos. Na batalha pela Síria, os xiitas estão em fase ascendente. A Guevara rebelde ainda vai ter muitos tiros pela frente. UM PAÍS EM EBULIÇÃO PERMANENTE O que poderia acontecer depois que helicópteros do Exército despejaram uma chuva de bandeiras do Egito sobre multidões em estado de protesto incessante, clamando pela deposição do governo? A derrubada do governo, claro. Num dos acontecimentos mais dramáticos de 2013, os egípcios desafiaram, de novo, a lei das probabilidades. Depois de elegerem um presidente do tipo de movimento fundamentalista que, uma vez no poder, nunca mais sai, pediram a sua cabeça e, sem muito mais do que uma hesitação protocolar, o comandante das Forças Armadas, general Abdel Fattah al-Sisi, concordou. De faraó a preso político, o presidente deposto Mohamed Mursi seguiu exatamente o mesmo percurso que seu antecessor, Hosni Mubarak, a mais importante cabeça a rolar em consequência dos protestos em massa em países árabes. O desencanto com Mursi foi rápido e devastador. No auge dos protestos, o número de gente na rua foi calculado – remotamente, quem está preparado para fazer uma conta dessas? – em 13 milhões de pessoas. O regime militar diz que é interino, promete submeter uma nova Constituição a plebiscito e continua a ter prestígio popular. O massacre de manifestantes que não aceitavam a derrubada de Mursi forçou um recuo da considerável parcela da população que apoia um governo sob mandato das leis muçulmanas mais estritas, mas o choque de concepções sobre o papel da religião na vida pública garante uma previsível instabilidade. Imprevisível foi descobrir que tantos egípcios não querem saber do projeto islamista e, por isso, aceitam até os militares de volta. MAMÃE SABE TUDO Em que momento Angela Merkel deixou de ser vista como uma governanta – alemã, o que mais poderia ser? – e começou a ser chamada de Mutti, ou mamãe? Os alemães que votam nela, e foram 42% nas eleições de setembro, um recorde, não falam em afeto ou carinho, mas em confiança, estabilidade e até previsibilidade. Ninguém espera que a primeira-ministra apareça vestindo algo que não seja calça e sapatos pretos sem nenhuma graça, com um ajuizado blazer colorido, ou que exiba virtudes carismáticas. O descolamento da Alemanha de uma Europa ainda na sala de recuperação é a prova de que a falta de graça, ou de gestos populistas, ou de contabilidade criativa, funciona. Pintada no exterior como uma bruxa malvada que obriga os países europeus em crise a cortar gastos e equilibrar contas, Merkel jamais apelou para o lado negro dos sentimentos nacionalistas para ganhar votos em casa. Não disse uma palavra quando o Partido Socialista dos vizinhos franceses divulgou um documento interno criticando a "intransigência egoísta da chanceler Merkel, que só pensa na poupança e no superavit comercial dos alemães". Nem precisava, por sinal. A autodisciplina da primeira-ministra tem um teste maior pela frente. Apesar da vitória eleitoral, seu partido perdeu aliados à direita e, pelo sistema parlamentarista, precisa fazer um governo de coalizão com o maior adversário, os social-democratas. Só o acordo sobre o programa básico levou dois meses. Paciência e sopa de batata, as especialidades de Merkel, serão muito requisitadas em 2014. UMA HISTÓRIA QUE NÃO SE REPETE Cada hora falta uma coisa na Venezuela. Farinha, café, açúcar, papel higiênico, água e luz. Passagens aéreas, nem pensar. A inflação passou de 50% e o dólar real custa dez vezes mais que o oficial. A morte de Hugo Chávez, em 5 de março, e a eleição de Nicolás maduro um mês e meio depois aceleraram um processo de autodestruição que não permite antever nenhuma saída menos do que trágica. O que era burlesco em Chávez, mas amparado num apelo genuinamente popular, com Maduro ficou grotesco, desde o “passarinho pequenininho” no qual ele disse ter visto uma manifestação extraterrena do comandante até a criação do vice-ministério da suprema felicidade do povo. Maduro age como um bufão, tentando imitar o mestre, mas pensa como um mafioso. Quando mandou as lojas de eletrodomésticos reduzir os preços em 70% – “Não quero que sobre nada nas prateleiras” –, sabia que muita gente gostaria de aproveitar a liquidação total. Como não existe geladeira grátis, vai faltar geladeira. Tudo será, evidentemente, culpa da “burguesia parasitária” e das “potências estrangeiras que pretendem destruir a pátria”. Ex-motorista de ônibus, dirigente sindical e chavista militante, casado com uma advogada dez anos mais velha com quem divide a ascensão ao universo bolivariano e a fé num guru indiano, Maduro sabe que, num processo como o da Venezuela, se ficar parado, cai. “A mim foi dada uma mão de ferro”, comemorou quando recebeu do Legislativo chavista poderes especiais para governar por decreto. “O que vocês viram é pouco perto do que ainda vou fazer.” Se não for interrompido – e a única possibilidade de que isso aconteça parece ser a de um golpe interno –, vai cumprir a promessa. Pobre Venezuela. A MORTE NA PANELA DE PRESSÃO Dois rapagões ficam viciados em bobagens na internet, encontram uma causa para sua rebeldia, fabricam bombas caseiras com panelas de pressão e atacam um alvo especialmente vulnerável. Descrito assim, o atentado contra o público que assistia à chegada dos pelotões mais lentos da maratona de Boston, no dia 15 de abril, parece até simples. As complicações começaram quando os culpados foram identificados. Uma das vítimas, Jeff Bauman, que perdeu as duas pernas, teve forças para chegar ao hospital, pedir papel e caneta e escrever "bolsa, vi o sujeito, olhou bem para mim". Num mundo em que todas as imagens ficam registradas, as informações de Bauman ajudaram a levar a dois irmãos, Tamerian e Dzhokhar Tsarnaev. Vindos de uma família de chechenos do Daguestão, região sob controle da Rússia onde viceja uma rebelião nacionalista radicalizada pelo islamismo militante, eles trocaram as facilidades da vida de universitários em Boston pela barbárie. Tamerlan era o cabeça e já estava no radar dos serviços de inteligência da Rússia. Aliás, ele e a mãe. Aliás, os russos avisaram. Aliás, o FBI fez umas entrevistas. Aliás, meses depois um agente do FBI matou um amigo de Tamerlan num interrogatório. Aliás, havia também o tio que tinha sido casado com a filha de um ex-diretor da CIA no Afeganistão. Não precisava tanto para alimentar teorias conspiratórias. Dzhokhar, o irmão sobrevivente, que já foi até retratado em capa de revista como herói romântico, será levado a julgamento no fim de 2014. PELAS BARBAS DO PROFETA Quando Hassan Rohani foi eleito presidente, em junho, o Irã vivia debaixo de um embargo econômico internacional, enfrentava as consequências negativas de sua maior aventura externa, o apoio ao regime religiosamente minoritário de uma Síria em guerra civil, e corria o risco de a qualquer momento sofrer um ataque aéreo de Israel por causa de seu programa nuclear. O homem que iria substituir, Mahmoud Ahmadinejad, era execrado pelas declarações agressivas e atitudes amalucadas, como achar que podia influenciar a mente de quem ouvia seus discursos. Cinco meses depois, o Irã celebrava em estado de euforia o acordo preliminar com os Estados Unidos que permite ao país continuar com o processo de enriquecimento de urânio em troca de determinadas garantias de que não saltará daí para a produção de armas nucleares. Em contrapartida, as sanções começam a ser desmontadas. As negociações secretas que levaram ao acordo antecederam em muito tempo a eleição de Rohani, mas é difícil imaginar um entendimento similar se o desatinado Ahmadinejad ainda fosse presidente. Rohani, que pertence ao clero xiita e fez doutorado na Escócia, também só pode ser considerado moderado no contexto do regime teocrático iraniano, mas o simples fato de que queira ser visto assim e entenda a importância de fazer declarações conciliatórias já conta pontos a favor. O acordo sobre o programa nuclear quase que elimina o risco a curto prazo de um ataque isolado de Israel e equivale a um reconhecimento implícito do Irã como potência regional, com poder de influência sobre todo o arco xiita, os países onde essa minoria religiosa muçulmana tem presença importante: Síria, Iraque e Líbano. Rohani não tem cara nem fôlego de um novo imperador persa, mas o "v" da vitória foi dele em 2013. GRANDE SALTO PARA TRÁS A melhor coisa que o presidente François Hollande fez em 2013 foi tomar alguma iniciativa e, em seguida, voltar atrás. Nesse vai e volta, a nova alíquota de 75% de imposto de renda para as altas remunerações não entrou em vigor (mas vai entrar, com as consequências previsíveis para os ramos de negócio que dependem de talentos raros). O mesmo aconteceu com o novo "imposto verde", que deixou agricultores e caminhoneiros vermelhos de raiva – ele onera veículos com capacidade de carga acima de 3,5 toneladas. Sufocar pequenos produtores numa economia que se reaviva em velocidade de escargot é exatamente o tipo de ideia que prospera no meio ambiente desconectado da realidade criado por Hollande. Um exemplo: ele criou o posto de ministro da Retomada Industrial e o entregou a um quadro do Partido Socialista, Arnaud Montebourg, que passou a se dedicar a brigas com vários industriais. "Vocês estão pensando que nós somos burros?", escreveu um americano desbocado, convidado a instalar uma fábrica de pneus na França. "Em cinco anos, a Michelin não estará mais produzindo pneu nenhum. A França perderá sua base industrial." A sensação de que o país não só não progride como volta atrás no tempo e de que o governo é de uma incompetência terminal espanta jovens com ímpeto realizador para fora e, dentro, cria um clima de "desespero e raiva". A avaliação consta de um estudo encomendado por um grupo de prefeitos e se traduz em manifestações de protesto como a dos "gorros vermelhos", produtores rurais agoniados com as novas formas de asfixia fiscal. Os gorros remetem ao chapeuzinho que se tornou um dos símbolos da Revolução Francesa. O outro, naturalmente, é a guilhotina. Em termos simbólicos, Hollande já perdeu a cabeça: bateu em 15% de popularidade. Menos que Luís XVI, provavelmente. A PARÁBOLA DO HOMEM-ELEFANTE O papa sorridente, o papa humilde, o papa de sapato gasto, o papa que leva a própria pasta de mão, o papa gente como a gente. Num ano em que duas coisas quase impensáveis aconteceram, a renúncia de Bento XVI e a escolha do argentino, e ainda por cima jesuíta, Jorge Mário Bergoglio para substituí-lo, um oceano de imagens papais inundou o mundo. Mas nenhuma foi tão impactante quanto a do "homem-elefante", na verdade Vinicio Riva, um italiano que sofre de uma forma extrema de neurofibromatose, doença genética que transforma seu corpo numa chaga viva. As comoventes palavras de Riva descrevendo como Francisco o acolheu quando estava na fila dos doentes da Praça de São Pedro ganharam uma conotação quase bíblica. "Primeiro, eu lhe beijei a mão, enquanto ele com a outra acariciava minha cabeça e as feridas. Depois, estreitou-me, dando um abraço forte e beijando meu rosto", contou. "Eu me senti no paraíso." Acostumado a provocar espanto e repulsa, Riva ficou impressionado com a falta de hesitação de Francisco. "Ele não parou para pensar se me acariciava ou não. Não sou contagioso, mas ele não sabia. Enquanto passava a mão no meu rosto, eu sentia só amor." Francisco vai revigorar a Igreja? Vai expurgar os que a conspurcaram? Reacender a chama da fé? Tirar a Igreja de si mesma e levá-la na direção das "periferias existenciais", como propôs aos colegas cardeais antes de ser eleito? Ou presidir um declínio inevitável? São missões grandes demais até para um papa. Mas tudo o que fizer terá de ser medido à luz do parâmetro que estabeleceu ao abrir os braços para o homem-elefante. Quem faria igual? ILHA CERCADA DE MORTES Em 2013, as maiores tragédias da imigração ilegal na Europa ocorreram em Lampedusa, um ponto de terra seca e de interrogação num continente que voltou a erguer muros MÁRIO SABINO, DE LAMPEDUSA Para o visitante acidental, Lampedusa é um ponto de terra seca que surge do nada, depois que o turboélice desce em direção a um mar que, nas vizinhanças do inverno, se encrespa com ondas que se erguem vertiginosas, para logo em seguida tombarem em rodamoinhos de espuma branca, como se a água babasse de raiva por você estar ali, tão perto e tão longe das profundezas onde jazem barcos fenícios, gregos, cartagineses e romanos tragados também pela voragem da história. Para os seus 6002 habitantes, durante a relativa abundância do verão turístico, Lampedusa é um ponto-final no abandono — e longas reticências nos meses frios de isolamento quase que total. Em 2013, Lampedusa passou a ser, mais do que nunca, dois outros pontos: o de exclamação assustada para uma Europa que se quer fortaleza — e o de interrogação aflita para os imigrantes indesejados que nela tentam entrar. A apenas 113 quilômetros da costa da Tunísia, e a 205 do litoral da Sicília, da qual é apêndice administrativo, a ilha é Europa no conceito e África na geografia física. A cidade de Túnis, capital do país árabe, está ao norte de Lampedusa, imagine-se. Foi o conceito, mais precisamente o de porta de entrada austral do mundo rico, o que buscavam alcançar as 366 pessoas, onze delas crianças, mortas no naufrágio da noite de 3 de outubro, data que entrou para o rol da infâmia. Em fuga da miséria, de guerras tribais, de conflitos políticos em países como Somália e Eritreia, espremidas numa armadilha de madeira flutuante, as vítimas mal tiveram tempo de ver as tíbias luzes de Lampedusa, antes de ser engolidas pelas chamas de uma fogueira acesa para que o barco à deriva fosse visto — e, na sequência, tragadas pelo mar, naquela que foi a maior tragédia da imigração ilegal do ano que termina e, ao que se sabe, de todos os outros imediatamente anteriores na região. A guarda costeira italiana conseguiu resgatar 157 almas, enviadas para o Centro de Acolhida. Saíram do inferno para entrar no purgatório, sem nenhuma certeza de chegar ao paraíso ou o que acreditam sê-lo. Em Lampedusa, e ao seu largo, os raios caem várias vezes no mesmo lugar. Oito dias depois, 268 sírios, dos quais sessenta crianças, em fuga da guerra civil, afogaram-se a 100 quilômetros da ilha, com as autoridades italianas atribuindo a negligência à vizinha Malta e vice-versa. Os mortos desse outubro macabro juntaram-se a outros milhares no Mediterrâneo, cuja soma varia de acordo com a estatística — ou a falta dela. Nos últimos quatro anos, até novembro, registraram-se as mortes de quase 4000 imigrantes que tentaram vencer o mar que separa a África e o Oriente Médio da Europa. Só no triângulo formado por Lampedusa, Líbia e Tunísia, esse número chega a quase 2000. Organizações assistenciais avaliam, no entanto, que o total já tenha ultrapassado os 20.000 mortos, a maioria em naufrágios invisíveis. Ainda que se fique com as cifras oficiais, sempre mais brandas por razões envergonhadas de Estado, continua-se no campo do pesadelo. Para se ter uma ideia, de acordo com o Banco Mundial, a taxa de mortalidade de imigrantes ilegais nessa fronteira marítima é dez vezes maior do que na terrestre que cinde os Estados Unidos do México. Desde os naufrágios de dois meses atrás, a Itália reforçou a operação militar Maré Nostrum (era como os romanos chamavam o Mediterrâneo), que visa a interceptar imigrantes clandestinos antes de eles aportarem na costa do país. A operação está no âmbito da Frontex — agência da União Europeia (UE) destinada a coordenar o controle das fronteiras externas — e da Eurosur, mais uma iniciativa dos burocratas de Bruxelas, recém-criada para atuar nos limites ao sul. Siglas vistosas que não impedem que marinheiros gregos, ao abordarem naves carcomidas cheias de gente proveniente do Oriente Médio, retirem os seus motores, para que a corrente as leve em direção à rival Turquia. Ou que a Marinha da Espanha continue a fazer disparos de intimidação contra embarcações que transportam carga humana, "Parece que essa Frontex tem um prédio lindo, desses de vidro, na Polônia", comenta, de bonachão a sarcástico, Antonino Taranto, idealizador, diretor, escritor e vendedor da Associação Cultural Arquivo Histórico de Lampedusa. Quando este repórter esteve na ilha italiana, em meados de novembro, Taranto empenhava-se em proporcionar alguma diversão aos eritreus que, à noite, fora do Centro de Acolhida, vagavam pela cidade deserta, com moletons finos e chinelos — sim, chinelos, para enfrentar o outono e o inverno, fornecidos pelo centro, assim como os moletons ideais para temperaturas frias cariocas. "Eu resolvi baixar músicas eritreias no computador, para os pobrezinhos ouvirem na calçada aqui em frente", diz ele. Já fora da casa que abriga a associação, entre tragadas de cigarro, Taranto filosofa como a emergência é uma oportunidade para conhecer situações no mais das vezes ocultas aos olhos do mundo. "Outro dia, um garoto de 16 anos me contou que saiu da Etiópia a conselho da mãe, depois que o pai foi assassinado. Dezesseis anos, e veio para cá sozinho!", relata. Com 20,2 quilômetros quadrados, bordas recortadas por falésias e pequenas baías, Lampedusa tem uma história que oscilava entre o insignificante e o fabuloso, com breves paradas no curioso, até que fosse tisnada pelo trágico. Foi colônia efêmera de fenícios e gregos que lá tropeçaram como num seixo no meio do caminho. Durante as guerras púnicas, serviu de base aos romanos nos ataques a Cartago, na hoje Tunísia. Lá, então, fabricava-se um condimento à base de peixe, o garum, muito popular em Roma, informa Taranto. Desse período, sobrou apenas uma escultura da deusa Atenas, sem cabeça nem braços, escondida numa pequena vitrine voltada para a Via Roma, a principal rua de Lampedusa, metade dela área de pedestres sem pedestres, com o seu casario em tons de amarelo e laranja, como o restante das construções esquálidas entre as quais serpenteiam ruas esburacadas como as das cidades brasileiras. É estranho que se esteja em território de uma nação com renda per capita de 30.000 euros. Como no Brasil, o passado foi sendo substituído pela feiura da improvisação absoluta. Não sobrou praticamente nada do parco legado dos povos que lá estiveram. Lampedusa conservou-se, em breves linhas, foi na literatura — e não se está falando de Tomasi di Lampedusa, autor de O Leopardo, cuja família nobre foi proprietária da ilha. O escritor jamais pisou no lugar que lhe deu sobrenome ou dedicou um parágrafo sequer a cenário tão longínquo. Quem o fez foi Ludovico Ariosto, no século XVI, em Orlando Furioso. Porque ali, no fim da Idade Média, travaram-se batalhas entre cristãos e muçulmanos, que inspiraram versos ao autor clássico, nascido no centro da Bota italiana. Um deles a descreve desta forma, em tradução livre: "De habitações, a ilhota é vazia, plena de humildes murtas e zimbros, alegre solidão e remota a cervos, a veados, cabras e lebres; e afora aos pescadores é pouco conhecida". A ilhota de Ariosto permaneceu terra de pescadores, com uma base militar americana instalada no pós-guerra, a Segunda, até 1986, quando entrou para o noticiário internacional ao virar alvo de dois mísseis Scud lançados pelo regime do líbio Muamar Kadafi. Os mísseis caíram no mar, sem ferir ninguém, mas tiveram um efeito paradoxal: o lugar virou destino turístico. Barato, mas lucrativo o bastante para que pescadores transformassem suas casas em pequenos hotéis, e fossem construídos outros tantos. Esqueça qualquer comparação com Capri ou Sardenha. Digamos que, como donos de hotel, os lampedusanos continuam ótimos pescadores. Encantado com a Praia da Ilha dos Coelhos, o cantor Domenico Modugno, o Mister Volare, morreu nesse recanto, em 1994, não num hotel lampedusano, mas numa casa de pedra, hoje ruína em meio à reserva ambiental que cerca "a mais bela praia do mundo", segundo o texto dos guias. "Os jornais divulgaram que o acidente de 3 de outubro ocorreu na Praia da Ilha dos Coelhos, mas não é verdade. Foi a 3 quilômetros, só um corpo apareceu aqui, trazido pela correnteza. O problema é que isso vai afugentar os turistas ainda mais", lamenta Vincenzo, motorista de um dos dois ônibus existentes, antes de deixar o único passageiro em frente à praia que, se não é a mais bela do mundo, estaria no páreo de uma competição do gênero. É compreensível que turistas temam menos a pontaria de mísseis disparados por líbios do que cadáveres de imigrantes boiando ao seu lado. Desde 2011, quando o número de refugiados no Centro de Acolhida, com 250 leitos, superou o total da população, Lampedusa vem perdendo receita turística e não sai das páginas internacionais como exemplo de ignomínia. O ano da Primavera Árabe foi um terror para os ilhéus italianos. Revoltados com as condições do centro e informados de que compatriotas seus haviam sido mandados de volta para a Tunísia, imigrantes daquele país promoveram uma arruaça no centro e na Via Roma, com o beneplácito do então governo de direita italiano, interessado em mostrar aos países da União Europeia como a situação estava insuportável — e como seria bom trancar melhor a Fortaleza Europa. Os locais, é claro, reagiram à baderna e, desse modo, ganharam a pecha de xenófobos. "Trata-se de uma injustiça", diz Angela Sorrentino, voluntária da Caritas, o musculoso braço de assistência humanitária da Igreja Católica. "Sempre fomos receptivos aos necessitados." De fato, Lampedusa é terra de tolerância. No século XIII, viajantes contavam que existia uma gruta na localidade de Cala Madonna ("cala" significa "pequena baía") onde vivia um eremita que a dividiu em duas partes, para abrigar tanto cristãos quanto muçulmanos. Do lado cristão, havia uma cruz; do lado muçulmano, uma meia-lua. Na década de 90, começaram a chegar os primeiros refugiados da África islâmica, mesmerizados pelas imagens televisivas do capitalismo italiano captadas por antenas em seus países. Muitos recebiam abrigo nas casas dos habitantes, antes de seguir viagem para a Sicília e, daí, para a Europa. O maremoto causado pela Primavera Árabe mudou tudo. Quando esteve em Lampedusa, em julho, na sua primeira viagem apostólica, para chamar a atenção dos poderosos do mundo para o que sucede nessa parte do Mediterrâneo, antes portanto dos naufrágios de outubro, o papa Francisco lançou um alerta contra o que chamou de "globalização da indiferença". Os lampedusanos sentiram-se incluídos na massa dos ignorados. Na área de porto onde o papa rezou uma missa campal, ao lado da qual ainda resta um cemitério de barcos de imigrantes, uma faixa em italiano dá conta do sentimento reinante: "Não nos sentimos italianos". É uma ilha, como já se disse, que exibe precariedades e está distante dos padrões de vida até mesmo da Sicília. E o afluxo de imigrantes só fez evidenciar esse contraste. Infraestrutura precária, escassas ligações marítimas e aéreas com a Itália, escolas deficientes e hospitais incapazes de fazer partos com segurança (os lampedusanos costumam nascer na siciliana Agrigento) — tal é a porta de entrada da Europa. "A nossa esperança é que a urgência humanitária também lance luz sobre as nossas condições", diz o vice-prefeito, Damiano Sferlazzo, que divide o seu dia como pesquisador da estação meteorológica que faz parte de uma rede mundial que avalia as mudanças climáticas ao redor do planeta. Oficialmente, os clandestinos não podem sair do Centro de Acolhida, mas os guardas fazem vistas grossas e permitem que eles façam buracos nas cercas e circulem pela cidade, em pequenos grupos. É uma forma de atenuar a pressão. Os que saem contam com o auxílio da Caritas, que lhes providencia, inclusive, cartões telefónicos de 5 euros, doados pelo papa quando da sua visita a Lampedusa. O Centro de Acolhida fica a 2 quilômetros do centro da cidade, na chamada "colina da vergonha". Jornalistas e autoridades municipais são proibidos de ultrapassar o portão, no qual está pregado um aviso em italiano, árabe, francês e inglês de que os mortos podem ser reconhecidos na delegacia, na Via Roma. No dia em que este repórter foi até lá, testemunhou, ao lado de jornalistas do Wall Street Journal, a saída em ônibus fechado de um grupo de cerca de quarenta refugiados que iria para o continente. Ninguém sabia dizer quantos restavam. A cifra oscilava entre 200 e 400. O centro, queimado em 2011 pelos tunisinos rebelados, continuava destruído em boa parte. "Parece que será reformado em breve", diz Angela Sorrentino. Os refugiados que aportam em Lampedusa acreditam ter desembarcado na Bota. Por isso, ao colocarem os pés no cais, muitos perguntam onde fica a estação ferroviária, a fim de pegar um trem para Milão e, da capital lombarda, prosseguir viagem até o norte da Europa, onde moram parentes e conhecidos e a crise não bateu com tanta força como na Itália, França e Espanha. "Vários se recusam a tirar as impressões digitais, com receio de ser fixados em Lampedusa", diz o jovem padre Giorgio Casula, em sua sala na modernosa igreja construída num estilo definido como "oriental". Também não é permitida a entrada de religiosos no Centro de Acolhida. "Só somos chamados quando há problemas com os quais as autoridades não sabem lidar, ou que elas próprias criaram", informa Don Giorgio. Ele cita o mais recente: quando houve a cerimônia do funeral dos mortos de 3 de outubro, na Sicília, os sobreviventes foram impedidos de homenagear os seus parentes e amigos. Ficaram trancafiados em Lampedusa e ameaçaram sublevar-se. Só não o fizeram porque foram persuadidos por gente ligada à Igreja, convocada a prestar auxílio. Enquanto isso, no funeral, representantes da ditadura eritreia, da qual muitos dos náufragos fugiam, derramavam lágrimas de crocodilo diante dos caixões, cercados por agentes de segurança que fotogravam a cerimônia às escondidas, com o objetivo de identificar possíveis opositores presentes. Uma grande quantidade de imigrantes que embarcam para Lampedusa é raptada na Líbia, por bandos que pedem aos seus familiares resgates de mais de 2000 euros. Só depois de o pagamento ser feito, eles podem seguir para o litoral, onde embarcam ao preço de outros 1000 euros. Os algozes, não raro, os acompanham durante a travessia, depois de submeter os homens a torturas e de estuprar as mulheres. No caso do barco que afundou em 3 de outubro, os sobreviventes encaminhados ao Centro de Acolhida da ilha reconheceram o somali Mouhamud Elmi Muhidin como o homem que havia seviciado imigrantes. Ele foi preso pela polícia italiana, antes que o linchassem. O Mediterrâneo é a fronteira da Europa com muralha marítima. Mas há muros de concreto e arame farpado em terra. Os primeiros no continente, desde a queda do Muro de Berlim, em 1989. Não ideológicos, e sim econômicos. Em janeiro, a entrada de Bulgária e Romênia no Espaço Schengen, de livre circulação de pessoas dentro das fronteiras da maioria dos países da União Europeia, reavivou o racismo e a xenofobia, já candentes por causa da crise econômica que fustiga desde 2008. Teme-se que, além de búlgaros e romenos, hordas de turcos, curdos, sírios, afegãos e toda sorte de outras nacionalidades a leste infiltrem-se pelas fronteiras porosas das duas nações mais pobres da UE e adentrem o coração da Europa afluente. Para assegurar que é confiável, a Bulgária está erguendo uma barreira física de 30 quilômetros de extensão no seu limite com a Turquia mais acessível à passagem de imigrantes ilegais. A decisão foi tomada em outubro. É uma ironia. Quase um quarto de século depois de derrubar o arame farpado que os separava do mundo livre — obra dos invasores soviéticos —, os búlgaros voltam a se ver separados de um país por uma cerca. O outro muro, pronto desde 2012, aparta a Grécia da Turquia e tem 12,5 quilômetros de comprimento. Esse obstáculo desviou um grande número de imigrantes iraquianos, afegãos e sírios para a Bulgária — que tomou, então, a decisão de construir a sua própria barreira. Boa parte dos refugiados que chegaram à Bulgária e não conseguiram seguir rumo ao oeste está confinada no campo de Harmanli, próximo à fronteira turca. As condições de vida em Harmanli são vergonhosas. Não raro, a comida só dá para uma refeição frugal por dia. As crianças adoentam-se, e não há remédios suficientes para tratá-las. E agora, no inverno, o campo está infestado de piolhos, mostra das péssimas condições higiênicas em que vivem 1200 pessoas, aproximadamente. O muro com a Turquia, esperam tacitamente as autoridades búlgaras, servirá ainda para encarecer o custo da passagem dos refugiados clandestinos. Hoje, eles pagam relativamente barato aos atravessadores — em torno de 500 euros para tentar superar a fronteira. De forma idêntica à dos refugiados que desembarcam em Lampedusa, aqueles que entram diretamente por terra querem se estabelecer nos países nórdicos. Muitos ainda sonham com a França — mais exatamente, Paris. No Afeganistão, difundiu-se a ideia de que, na capital francesa, todos os dias helicópteros aspergem perfume pela cidade. Tão logo se instalam, os imigrantes ilegais dão-se conta de uma realidade avessa aos devaneios surrealistas — a de periferias cinzentas, abandonadas e uma população nativa pouco disposta a dar as boas-vindas a mais alienígenas. Mesmo na Escandinávia, conhecida pela pacatez, a tensão é alta. Em maio, depois que a polícia matou um imigrante que ameaçou um policial com um facão, Estocolmo, a capital sueca, enfrentou quase uma semana de distúrbios, com 300 jovens promovendo quebra-quebras. Do ponto de vista numérico, a imigração ilegal é um fenômeno desigual para os países da União Europeia e outras nações ricas do continente, e nem sempre a percepção condiz com o fato. Os franceses estimam que 25% da população seja de imigrantes, mas essa fatia é de 9%, parecida com a da Itália. No Reino Unido é de 12%. Na Alemanha, 13%. A Suíça tem um contingente de estrangeiros de 27%, a mais alta. Nem todos os imigrantes em cada país são oriundos da África, Ásia ou América Latina. Uma grande quantidade é proveniente de nações da própria UE. Mas o mal-estar nem por isso é mitigado pelas semelhanças étnicas ou culturais. O primeiro-ministro britânico David Cameron avisou que os cidadãos da UE terão mais dificuldade de obter benefícios sociais no Reino Unido, porque não é justo para o contribuinte britânico arcar com despesas com estrangeiros que não dão a sua devida retribuição em trabalho. Da perspectiva histórica, a imigração se torna uma questão quando a economia vai mal. Os estrangeiros passam a ser vistos como usurpadores de empregos e aproveitadores de conquistas sociais. Não é bem assim. A maioria dos expatriados ilegais sua a camisa para ganhar a baguete de cada dia e, na Europa, executa tarefas que os nativos julgam indignas para si próprios. Há problemas, decerto. Como o dos ciganos, acostumados a sobreviver de expedientes da pequena delinquência, e o dos muçulmanos fundamentalistas, que rejeitam a assimilação à sociedade ocidental e criam guetos. A solução para isso, contudo, está longe de ser a xenofobia, como pretende fazer crer a extrema direita que se uniu para ganhar as eleições europeias no ano que vem. Frear a imigração ilegal é imperioso, para regular o mercado de trabalho e evitar a entrada de marginais, mas não com muros, e sim com ajuda ao desenvolvimento dos países exportadores de gente. Tentar integrar os muçulmanos reticentes a uma sociedade laica por meio de boas escolas para os seus filhos é melhor do que isolá-los. Com uma taxa de natalidade baixíssima, a verdade é que, ora mais, ora menos, a Europa continuará precisando de imigrantes se quiser manter a sua economia em expansão. Os que tentam pular muros ou se lançam ao mar são os mais fortes entre os seus compatriotas. É injusto, portanto, tratá-los como fracos e não lhes dar chance. Os lampedusanos, à sua maneira instintiva, sabem disso e, quando ouvidos, afirmam querer que a sua ilha se transforme num corredor de esperança, e não em campo de concentração. É a voz do bom-senso, vindo de um ponto no fim do mundo. Enquanto passeávamos à beira-mar, a bordo de um dos dois ônibus de Lampedusa, o motorista Vincenzo não se conteve diante do panorama: "O fim do mundo é belo, não?". Sim, Vincenzo, é belo e pode ser um recomeço. 6# RETROSPECTIVA 2013 – GENTE – 25.12.13 JULIANA LINHARES AS MÃES DO ANO O papel das duas é estranhamente parecido: desfilar em público de cabelo bem escovado, maquiagem impecável e roupas que todos comentarão. Apesar das evidentes diferenças de estilo, quando KATE, a futura rainha consorte da Inglaterra, e KIM KARDASHIAN, a atual imperatriz da promoção da própria imagem, ficaram grávidas praticamente juntas, o destino das duas se aproximou mais ainda. O mundo inteiro acompanhou cada incidente de percurso gestativo, cada novo quilo, cada vestido mais curto e cada etapa do nascimento de George, o pequeno príncipe, e North West, a princesinha com nome de vento. Sem contar a forma incrivelmente recuperada da esguia Kate e da curvilínea Kim. Mais magra do que antes da gravidez. Kim também ficou loira e mais sofisticada sob a supervisão do futuro marido, o cantor KANYE WEST. Ah, os maridos. Enquanto o príncipe WILLIAM faz tudo para parecer um sujeito comum, um pai que ajeita a cadeirinha do nenê e brinca a respeito das noites insones, Kanye encarna o rapper megalomaníaco. "Minha filha está no mesmo nível de realeza que o príncipe de Londres"', disse o cantor, que já se comparou a Picasso, Shakespeare, Steve Jobs e, claro, Jesus. Pobre Kanye. Por mais que fale e aconteça, ele e William também compartilham a mesma sina; grávidas ou não, no comando da própria e poderosa imagem, as mulheres sempre vão aparecer mais do que eles. UM ANO INTEIRO COM A LÍNGUA DE FORA Os pais que tiraram as crianças da sala cada vez que a cantora MILEY CYRUS, 21, apareceu na TV dividiram com elas o susto de ver a ex-princesinha da Disney se transformar num híbrido de Lady Gaga e Madonna, com as agravantes da pouca idade, da sensualidade forçada e da pasteurização do que, nas colegas veteranas, tinha o charme da ousadia primal. Miley sacolejou o magro corpinho na dança chamada twerking, fumou maconha no palco (fora dele, nem se fala), adotou como figurino calcinhas cavadas até a cintura e empenhou-se em bater Gene Simmons, do Kiss, no quesito quem põe a língua para fora o maior tempo possível. Só não ganhou o título de pessoa do ano, dado pela revista Time, porque o papa Francisco foi escolhido. Houve dúvidas sobre a votação na internet, da mesma maneira que muita gente se perguntou se Miley tinha ficado maluca ou se, ao contrário, estava seguindo um plano bem calculado. Por que não uma mistura dos dois? Quando deu a infame rebolada na linha vermelha do cantor Robin Thicke, o Twitter quase explodiu de comentários: foram 306.000 tuítes por minuto. O PRECIPÍCIO DO PRÍNCIPE Parece que foi combinado. JUSTIN BIEBER uma espécie de Miley Cyrus de botas, já que era considerado o principezinho da musica juvenil, também fez o diabo para se livrar da imagem cheia de doçura e vestir o figurino – ou a falta dele – de bad boy. Com a plena maturidade que os 19 anos dão a qualquer rapaz, Bieber encheu o corpo de tatuagens, a cabeça, de fumaça e o camarim, do mocas muito profissionais. A cantora Selena Gomez, sua namoradinha de anos, caiu fora. Solteiro, famoso, rico e baladeiro, Bieber foi expulso de boate, cuspiu em fãs, teve show cancelado por encalhe de ingresso e tentou entrar na Alemanha com um macaco de estimação, devidamente abandonado depois de ficar preso em quarentena. No Brasil, pôs a prova a resistência do tanquinho recentemente adquirido: sobreviveu a cinco noites seguidas de farra. O fim da turnê acabou com o vídeo infame feito por uma morena que disse ter dividido sonhos com o cantor. ESPAÇO, AÍ VAI ELA O que está acontecendo com LADY GAGA?, perguntam os especialistas? No começo do ano, ela passou meses afastada dos shows por causa de uma cirurgia no quadril. Depois, veio o processo trabalhista da ex-secretária, que alegou falta de pagamentos e condições bizarras de trabalho: tinha de dormir na mesma cama que Gaga, porque a lady não dorme sozinha, e trabalhar a semana inteira, inclusive de madrugada, sem folga. A cantora já havia perdido a diretora e coreógrafa e agora ficou sem o empresário e o stylist responsável pelo visual chocante. Ser eclipsada por Miley Cyrus também não deve ter feito bem para seu ego. "Eu gostaria de falar com ela, mas não consigo contato", lamentou o amigo Elton John. Seu novo CD, em que faz um dueto com o cantor R. KELLY, chegou em primeiro lugar no iTunes em 85 países, mas não está correspondendo ao investimento. Plano para 2015: fazer um disco de jazz e um show no espaço. UM LONGA E UM CURTA O ano parecia que seria dela. Por seu papel como Fantine em Lês Misérables, ANNE HATHAWAY recebeu o Oscar de atriz coadjuvante, linda, de cabelo curtinho e com um discurso lacrimoso. Fez tudo certo, mas aí, justamente, está o problema. Anne é afetada, fala com voz de atriz longe das câmeras e desperta instintos nada bons no público. Foi criado até um neologismo para classificar as legiões de pessoas que não gostam de Anne e usam a internet para externar seu ódio: são os hathahaters. O oposto total aconteceu com JENNIFER LAWRENCE. Na mesma premiação, ela tropeçou na barra do vestido na hora de subir ao palco e riu de sua trapalhada. Por mais que seja um prodígio de talento e beleza, passa a imagem de garota desencanada, que come besteiras e diz o que lhe dá na cabeça. Até sobre uns certos ruídos corporais ela já falou em público. Sucesso de massa em Jogos Vorazes, Jennifer deu outra guinada em 2013: tosou o cabelo. Igualzinho a Anne. Dá filme. ELES QUEREM CADA VEZ MAIS Mesmo quem não sabe a origem do refrão sentiu uma vozinha estridente cantando na cabeça "Prepara, que agora é a hora...". Preparada minuciosamente para acontecer, ANITTA dominou 2013 com o funk que se tornou a música mais tocada no YouTube brasileiro. Nascida Larissa num subúrbio do Rio, ela encerrou o ano com caches de 120.000 reais por show. O preço do sucesso foi a boataria sobre tudo: plásticas, esnobismo e até branqueamento. "Inventaram tanto que cheguei a chorar", conta, magoada. Em fevereiro, grava seu primeiro DVD, certa de que outros virão. ''Muitos duvidaram que eu daria certo. E olha eu aqui." O funk também fez todo mundo olhar para NALDO. Com uma única música, Amor de Chocolate, sua carreira bombou. O cache subiu de 20.000 para 80.000 reais e Naldo passou a fazer 35 shows por mês. Na vida familiar, aceitou pagar pensão de 25.000 reais à ex-mulher e se casou com a Mulher Moranguinho — de quem deletou o apelido e a carreira no funk — usando gravata de ouro branco e diamantes. "Eu conheci Will Smith e Kanye West. Eles me aplaudem e me abrem a porta da frente", orgulha-se. TODOS QUEREM UM PEDAÇO DELA Ser conhecida na internet e na MTV era uma coisa, estourar na principal novela da Globo é outra. Um resumo do que a deliciosamente patética periguete Valdirene já mudou na vida de TATÁ WERNECK: 1. Sem que ela nem o zelador do prédio vissem, um fã entrou em seu apartamento e deixou um buque de flores, com bilhete dizendo "Eu tenho fome de Valdirene". Tatá mudou de endereço na mesma semana. 2. Ao longo do ano, recebeu 100 propostas para fazer anúncios de produtos e, com as trinta que aceitou, mais o salário global, aumentou seu patrimônio quatro vezes. Comprou uma casa, decidiu se casar com o namorado, com quem está há oito anos, e adotou seis gatos. "Em 2013, por causa da quantidade de trabalho, só tirei dois dias de folga." Folga? Esticou seu contrato até 2017 e tem três filmes na fila. AÇÚCAR NA CEIA Dos quase 190 capítulos de Amor à Vida exibidos até agora, em apenas um Félix não apareceu. "E num único dia gravei 31 cenas", contabiliza MATEUS SOLANO. Tudo deu certo: as sobrancelhas alcançando alturas comparáveis às do Senhor Spock em Jornada nas Estrelas, a voz de Benedict Cumberbatch, o ator inglês do momento, e a disposição de se jogar de cabeça — mas não desligar o cérebro — numa interpretação novelisticamente populista. "Vi que fazia um bom trabalho quando soube que famílias que tinham brigado com um filho gay voltaram a se falar", diz ele. Outra prova: na cena em que Félix conta ter jogado a sobrinha no lixo, uma equipe francesa de TV estava no set, resolvendo se compraria a novela. Bateu o martelo e ainda o aplaudiu de pé. "Em 2014, vou lançar dois filmes e depois su-mir!", diz Solano, em fase de quem adoçou a Santa Ceia. A COISA FICOU RUSSA GÉRARD DEPARDIEU foi uma espécie de Edward Snowden do mundo dos espetáculos. E que espetáculo deu o ator francês depois de brigar com o atual governo de seu país e ir buscar abrigo justamente na Rússia de Vladimir Putin. Foi recebido com abraço de urso, passaporte novo e a garantia de que pagaria a alíquota única de 13% de imposto de renda — contra os 85% que dizia contribuir na França. Em troca, caracterizou-se: usou roupa de camponês eslavo, colocou chapéu de pele e visitou políticos mais barra-pesada ainda do que Putin. Na verdade, Depardieu tem residência na Bélgica, onde recebeu o título de cidadão honorário. Comemorou e bebemorou com festa para 200 vizinhos. "Quando você fica sabendo das coisas que ele faz, tem certeza de que não durará mais do que cinco anos", suspirou a filha, Mie Depardieu. UM POUCO MAIOR Ela fez uma das escolhas mais chocantes e, por isso, comentadas do ano: retirou os seios, depois de descobrir que tem o BRCA1, gene que aumenta muito o risco de a atriz desenvolver câncer de mama e de ovário – doenças que mataram sua avó, sua mãe e uma tia. Com aura de quase santidade em decorrência do trabalho humanitário, ANGELINA JOLIE ganhou projeção maior ainda por causa da dupla mastectomia. A operação preventiva é muito discutida, e alguns médicos mencionaram um certo “efeito Angelina", um aumento do número de mulheres querendo fazer a cirurgia, mesmo quando não é indicada. Três editoras estapeiam-se para fazer a biografia da atriz. Será que alguma vai contar que, mesmo já sendo muito bem resolvida nesse ponto, a atriz colocou um silicone um tantinho maior do que o tamanho original? A SAGA DA CONQUISTADORA Adele tem voz mais bonita e Rihanna, mais capacidade de provocar. Mas o salto qualitativo dado por BEYONCÉ, depois de passar quase um ano afastada para cuidar da filhinha, Blue Ivy, tornou-a a mais comentada cantora do ano. Para voltar arrasando, Beyoncé planejou, com a ajuda do melhor produtor musical do mundo, seu marido, Jay-Z, só cantar nos eventos mais impactantes do ano. Assim, seu primeiro show foi na cerimônia da segunda posse de Barack Obama (dublando a si mesma) e o segundo, na final do campeonato esportivo mais visto dos Estados Unidos, o de futebol americano. Recolocada, Beyoncé saiu em turnê para conquistar o mundo, encontrando tempo suficiente para gravar um novo disco em total segredo. Ela e Jay-Z tornaram-se o primeiro casal do showbiz a valer 1 bilhão de dólares. QUASE UMA PESSOA SÓ Há várias cantoras brasileiras que se inclinam para o lado sáfico, mas nenhuma assumiu isso com tanta gana quanto DANIELA MERCURY. Mais do que entrega total, ela e MALU VERÇOSA vivem um processo de simbiose. A paixão foi tão avassaladora que precisou ser contada na internet, na imprensa, na TV e até em livro. O fato de que isso tenha acontecido quando estava mais quente a discussão sobre casamento entre pessoas do mesmo sexo também ajudou na repercussão. Daniela e Malu casaram-se no civil, com vestidos quase idênticos. Malu fala em filhos e Daniela entregou suas quatro empresas nas mãos da cônjuge. "Também decidimos nos casar em comunhão de bens. Nunca confiei em alguém assim", diz a cantora. "As pessoas ainda se cutucam quando passamos. Mas não estamos nem aí", diz Malu. Ela e Daniela anexaram os respectivos sobrenomes e, no processo de fusão, dividem vestidos, cinquenta bolsas e 300 pares de sapatos. ASCENSÃO, GLÓRIA E VERGONHA O que NEYMAR faz quando está em casa, em Barcelona, descansando do treino? Treina mais um pouquinho, usando seus sessenta CDs de videogame de futebol. Também leva algumas amigas para jantar, assunto que já foi resolvido com a namorada, Bruna Marquezine, ainda morando no Brasil. O jogador teve um ano momentoso, mas tudo o que aconteceu em 2013 foi pouco em comparação com o que virá em 2014 em termos de fama e fortuna. Não que tenha o que reclamar a respeito. "Só falta agora Neymar fazer anúncio de avião", brinca o empresário dele, Wagner Ribeiro, sobre os catorze contratos milionários, muitos deles fechados depois da vitória na Copa das Confederações e da transferência para o Barcelona. Mas nada que, por enquanto, se aproxime de um DAVID BECKHAM, o inglês que se aposentou aos 38 anos coberto de glórias, beneficiado pela imagem de bom pai, bom marido e bom de publicidade. Ele vive atualmente um momento mais próximo da família na nova mansão em Londres e não há quem não suspire quando aparece com a caçulinha, Harper, nos braços, mas já tem o novo passo bem traçado: a compra de um time nos Estados Unidos. A carreira exemplar de Beckham contrasta com a dos esportistas espetacularmente caídos em desgraça. Herói da superação por subir nas próteses de fibra de carbono e se tornar o primeiro amputado a disputar uma Olimpíada, o corredor sul-africano OSCAR PISTORIUS chocou o mundo ao matar a namorada, Reeva Steenkamp. Alegação surreal: atirou nela por trás da porta do banheiro de sua suíte porque achava que era um ladrão. O maior ciclista de todos os tempos, o americano LANCE ARMSTRONG, também naufragou. Sempre suspeito de práticas ilícitas, finalmente foi desmascarado sem atenuantes pela Agência Americana Antidoping. Confessou tudo e começou a devolver suas medalhas: só da Volta da França, tinha sete. Os podres continuam a aparecer. Um ciclista italiano disse em dezembro que foi subornado por Armstrong com 100.000 dólares colocados numa caixa de panetone. COM REPORTAGEM DE ÁLVARO LEME, MARILIA LEONI E THAÍS BOTELHO 7# RETROSPECTIVA 2013 – VEJA ESSA – 25.12.13 O GRITO DA TORCIDA Este foi o ano em que o Brasil saiu às ruas e entrou em campo para valer (na Copa das Confederações) — reconquistando a cidadania e a esperança de melhores dias (e muitos gols) em 2014. JOGO DURO NOS PROTESTOS “Duvido que nosso país estaria uma vírgula melhor se não tivesse sido escolhido para fazer o Mundial.” - RONALDO FENÔMENO, ex-craque da seleção brasileira (junho). “A única forma que tenho de representar e defender o Brasil é jogando bola.” - NEYMAR, o astro do time atual, em resposta à acusação de que seria o maior símbolo de como o país dá mais valor ao futebol do que à educação, à saúde etc. (junho) “Se isso acontecer outra vez em 2014, então talvez nós tenhamos de questionar se tomamos a decisão errada de entregar ao Brasil o direito de ser sede. Porém isso não acontecerá. Estou confiante em que o Brasil vai entregar uma grande Copa do Mundo.” - JOSEPN BLATTER, presidente da Fifa, sobre as manifestações ocorridas durante a Copa das Confederações, vencida com sobra pelo time de Luiz Felipe Scolari (julho) “A primeira vaia nunca se esquece.” - JÔ SOARES, apresentador, referindo-se ao modo como os torcedores haviam demonstrado sua indignação para a presidente Dilma Rousseff no jogo de abertura da Copa das Confederações (junho) “Tem que organizar a demanda. Está protestando por quê? Como viabilizar? Senão, vira Woodstock.” - JAQUES WAGNER, governador da Bahia (junho) MENSALÃO: CRIME, SILÊNCIO E ÉTICA “Nosso sistema penal é muito frouxo. É totalmente pró-réu, pró-criminalidade.” - JOAQUIM BARBOSA, presidente do STF, prevendo que os condenados do mensalão poderiam reduzir suas penas de prisão (março) “Qualquer que seja o resultado (do julgamento), eu vou ter muita coisa para falar.” - LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA, ao tratar do mensalão; do mesmo modo que "não sabia de nada", o ex-presidente da República nada falou (setembro) “O PT tinha duas metas. O socialismo e a ética. Sobre o socialismo, nunca mais falaram. Sobre a ética, meu Deus, não precisamos nem falar.” - FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, ex-presidente da República (fevereiro) CAMPANHA PRESIDENCIAL: SALA DE AULA OU RINGUE? “As pessoas que querem concorrer ao cargo têm de se preparar, estudar muito, ver quais são os problemas do Brasil, ter propostas.” - DILMA ROUSSEFF, presidente da República (outubro) “Ela deu um conselho de professora. Eu acho que ela dá um conselho muito bom, porque aprender é sempre uma coisa muito boa. O difícil são aqueles que já não têm mais o que aprender e só conseguem ensinar.” - MARINA SILVA, ex-senadora, filiada ao PSB de Eduardo Campos (outubro) “Não vamos fazer do debate do Brasil um ringue. Não é o meu jeito nem o de Marina de fazer política.” - EDUARDO CAMPOS, governador de Pernambuco e presidente do PSB, partido pelo qual pode vir a disputar a Presidência da República (outubro) PREFEITOS NOVOS, PALAVRAS VELHAS “O fisiologismo está proibido na prefeitura. Essa história nefasta do toma lá dá cá não pode e não vai ser aceita neste governo.” - ACM NETO (DEM, Salvador), anunciando o corte de 20% nos cargos comissionados (janeiro) “Existe amor em São Paulo. Acredito que esse amor está pronto para se manifestar cada vez com mais força.” - FERNANDO HADDAD (PT, São Paulo), ao tomar posse (janeiro) “A urgência exige uma gestão eficiente, que faz mais com menos e em menos tempo.” - GERALDO JÚLIO (PSB, Recife), informando que duas secretarias e 632 cargos comissionados estavam sendo eliminados (janeiro) “Há cortes na própria carne. Governos acumulam gordura. O meu deve ter acumulado também.” - EDUARDO PAES (PMDB, reeleito para o cargo no Rio de Janeiro), comunicando que cortaria despesas com locação de veículos e encargos especiais, entre outras (janeiro) DE BENTO A FRANCISCO “Renunciei pelo bem da Igreja.” - JOSEPH RATZINGER, o papa emérito Bento XVI (fevereiro) “Deus me disse.” - BENTO XVI, explicando de onde partiu a motivação para renunciar, em fevereiro, ao Trono de Pedro (agosto) “A corte é a lepra do papado.” - PAPA FRANCISCO, em declaração feita antes de reunir, em Roma, o grupo de cardeais que convocara para discutir mudanças na Cúria (outubro) “Jesus foi a primeira pessoa no mundo a tuitar.” - CARDEAL GIANFRANCO RAVASI, presidente do Conselho Pontifício para a Cultura, chamando atenção para o fato de que, com frases de menos de 45 caracteres, como "amai-vos uns aos outros", Cristo tornou conhecidos os seus ensinamentos (setembro) TEMPORADA DE ESPIONAGEM “Nós precisamos ter confiança entre aliados e parceiros, e essa confiança (entre EUA e Alemanha) precisa ser restaurada.” - ANGELA MERKEL, chanceler alemã, ao participar do encontro de cúpula da União Europeia em Bruxelas. Antes, ela havia cobrado do presidente Barack Obama explicações sobre indícios de que seu celular teria sido monitorado pelos americanos. O jornal inglês The Guardian publicou reportagem dizendo que os Estados Unidos já fizeram isso com 35 líderes mundiais e o Le Monde denunciou espionagem a cidadãos franceses (outubro) “Temos a obrigação moral de nos preocupar com que nossas leis e valores limitem os programas de espionagem e protejam os direitos humanos.” - EDWARD SNOWDEN, ex-técnico da NSA que revelou o esquema de espionagem mundial do governo americano (novembro) "É preciso fazer um trabalho de pressão contra o governo (dos EUA) em sua ofensiva de coleta de informações e tentativa de criminalizar a atuação de repórteres que obtêm informações de pessoas com acesso a dados confidenciais.” - ELIZABETH BALLANTINE, presidente da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) (outubro) “Parem de nos espionar.” - Hackers brasileiros que invadiram o site da Nasa. Eles confundiram o endereço da agência espacial americana com o da NSA, a Agência Nacional de Segurança (setembro) NA LUA E NO MUNDO DA LUA “Estou disposto a me tornar o primeiro humano a ser lançado ao espaço por cientistas iranianos.” - MAHMOUD AHMADINEJAD, o lunático então presidente do Irã, revelando uma vocação meio aérea para astronauta (fevereiro) “Houve muita discussão mais tarde sobre as razões de (Neil) Armstrong ter sido o primeiro a pisar na Lua. Pode ser porque ele era o comandante da missão ou porque ele estava mais perto da porta de saída. Eu nunca vou saber.” - BUZZ ALDRIN, astronauta da Apollo 11, que nunca se conformou em ter sido apenas o segundo homem a pisar no solo do satélite (janeiro) PARAÍSO NA RÚSSIA? “Vou aprender russo. Já disse isso ao presidente François Hollande. Ele sabe que gosto muito do presidente Vladimir Putin e que isso é mútuo.” - GERARD DEPARDIEU, ator francês, que se mudou para a Bélgica para fugir dos impostos que pesam sobre os mais ricos, ao comentar a decisão do Kremlin de lhe conceder a cidadania russa (janeiro) “Se ele quer ficar aqui, há uma condição: tem de parar de tentar prejudicar nossos parceiros americanos, por mais estranhas que essas palavras pareçam ditas por mim.” - VLADIMIR PUTIN, sobre Edward Snowden, o ex-técnico da NSA que acabou ficando na Rússia (julho) VOZES FEMININAS (ATÉ DE MENINAS) QUE DENUNCIAM “Um protesto assim em Cuba, contra um convidado do governo, não duraria mais do que dois minutos.” – YOANI SÁNCHEZ, blogueira cubana, sobre a tentativa de militantes do PT e do PCdoB de intimidá-la durante sua visita ao Brasil, demonstrando, de maneira simples e cristalina, a diferença entre uma democracia e a ditadura defendida pelos manifestantes (fevereiro) “Estou feliz por ter realizado o meu sonho hoje.” – MALALA YOUSAFZAI, paquistanesa, então com 15 anos, em seu primeiro dia de aula na Inglaterra. Em 2012, ela levou um tiro na cabeça, disparado por militantes do Talibã, em retaliação ao seu engajamento em uma campanha pelo direito de garotas como ela frequentarem a escola (março) “O que estou fazendo para ser ameaçada de morte?” - ISADORA FABER, estudante, então com 13 anos, que criou uma página para denunciar os problemas de sua escola em Santa Catarina (fevereiro) “Não o perdoei por ele; eu o fiz por mim.” - SAMANTHA GEIMER, que foi violentada pelo cineasta francês Roman Polanski em 1977, quando tinha 13 anos e ele 43; na época, o diretor já conquistara notoriedade por filmes como O Bebê de Rosemary, de 1968 (setembro) ECOS DA SÍRIA “A indignação não deve ser só com armas químicas. A guerra convencional continua.” - PAULO SÉRGIO PINHEIRO, presidente da Comissão de Inquérito da ONU que investiga os crimes contra os direitos humanos no conflito sírio (setembro) “Esse prêmio (o Nobel da Paz) deveria ter sido dado a mim.” - BASHAR ASSAD, ditador sírio, em uma brincadeira de mau gosto; quem ganhou a distinção foi a Organização para a Proibição das Armas Químicas, Opaq (outubro) HUGO CHÁVEZ – TÃO PERTO, TÃO LONGE “Não sou Chávez, mas sou seu filho.” - NICOLÁS MADURO, então presidente interino da Venezuela e candidato ao cargo nas eleições de abril, procurando colar seu nome ao do caudilho que morrera havia pouco (março) “Um presidente não deve fazer sempre o que quer, mas o que tem de ser feito. Os cidadãos não comem discursos.” - OLLANTA HUMALA, presidente do Peru, distanciando-se do chavismo (junho) IGUALDADE, HOMOSSEXUALIDADE “Nossa jornada não estará cumprida enquanto não houver igualdade, enquanto nossos irmãos e irmãs gays não forem tratados como iguais perante a lei. Esse é o teste da nossa geração.” – BARACK OBAMA, presidente americano, no discurso de posse do segundo mandato (janeiro) “Eu sou um pivô de 34 anos da NBA. Sou negro e sou gay.” - JASON COLLINS, o primeiro jogador da liga profissional americana de basquete a revelar sua condição homossexual (maio) “Eu não fazia ideia de que ele era gay.” - CAROLYN MOOS, ex-jogadora de basquete, que namorou Collins durante oito anos (maio) “Infelizmente, não sou homossexual. Tecnicamente falando, eu sou um humanossexual.” - MORRISSEY, ex-vocalista dos Smiths, que em autobiografia havia falado sobre o envolvimento que tivera com um homem (outubro) BRASIL, ESPANHA (1) “Barcelona não precisa do Neymar. O Barça tem gente muito boa. Para que gastar dinheiro? A não ser que ele jogue para a equipe e para o Messi.” - JOHAN CRUYFF, ex-técnico do clube espanhol, jogando o craque brasileiro para escanteio (março) “Dois jogadores tão bons como Messi e Neymar são compatíveis sempre.” - GERARD PIQUÉ, zagueiro da seleção da Espanha, descartando qualquer possibilidade de rixa entre os dois atacantes (junho) “Não sei de onde tiraram isso de que Neymar e eu não vamos nos dar bem. Ele me parece um bom garoto, e não vai haver problema nenhum.” - LIONEL MESSI, prevendo o que de fato ocorreria a partir de julho, quando o ex-santista estreou oficialmente no time catalão (julho) BRASIL, ESPANHA (2) “Foi uma decisão complicada por tudo o que significa: jogar pelo país em que nasci ou pelo que me deu tudo? Pensei, repensei e decidi que o melhor é jogar pela Espanha, pois foi aqui que fiz minha vida. Tudo o que tenho na vida foi este país que me deu.” - DIEGO COSTA, atacante brasileiro do Atlético de Madrid, ao anunciar que defenderá a atual campeã do mundo na Copa de 2014 (outubro) “Um jogador brasileiro que se recusa a vestir a camisa da seleção e a disputar uma Copa do Mundo no seu país só pode estar automaticamente desconvocado. Ele está dando as costas para um sonho de milhões.” - LUIZ FELIPE SCOLARI, técnico da Seleção Brasileira de Futebol, referindo-se a Diego, a quem incluíra na lista de convocados para os amistosos contra Honduras e Chile (outubro) BRASIL, BRASIL “O Brasil vai ser campeão.” - LUIZ FELIPE SCOLARI, técnico da seleção brasileira, deixando a discrição de lado, após a goleada do time de Neymar e companhia sobre a fraca e violenta equipe de Honduras (novembro) SEM TEMPO, COM TEMPO “Eu tenho pressa. Sou uma mulher de 28 anos, na indústria do cinema, certo? Muito em breve, os papéis que me oferecerão serão todos para interpretar mães. E então eles vão parar de chegar.” - SCARLETT JOHANSSOM, atriz americana que se tornou a primeira mulher a ser eleita duas vezes pela revista Esquire como a mais sexy do mundo - havia vencido também em 2006 (outubro) “Entendi, com o passar dos anos, que é preciso ter tempo. Tempo, silêncio e leveza.” - MARIANA XIMENES, atriz (outubro) “A gente trabalha e nem percebe que está ficando velha.” TOMIE OHTAKE, pintora japonesa naturalizada brasileira, no seu centenário (novembro) CRISE DE IDENTIDADE “Eu deveria ser levado a sério.” - JUSTIN BIEBER cantor teen canadense (maio) SÓ VALE A VIDA AUTORIZADA? “Se nos sentirmos ultrajados, temos o dever de buscar nossos direitos. Sem censura prévia. Sem a necessidade de que se autorize por escrito quem quer falar de quem quer que seja.” - ERASMO CARLOS, compositor e cantor, em vídeo da associação Procure Saber, no qual, além dele, falavam Roberto Carlos e Gilberto Gil; na gravação, o grupo recuava na defesa da necessidade de autorização prévia do biografado para a publicação de biografias (outubro) “Mesmo que ele (Roberto Carlos) nunca mais queira me ver, continuarei amando quem fez Fera Ferida e Esse Cara Sou Eu (...) Peço perdão.” - CAETANO VELOSO, cantor e compositor, depois de haver acusado Roberto de posar de rei na questão das biografias, levando-o a anunciar sua saída da associação Procure Saber (novembro) “Que uma coisa fique muito clara: somos contra a censura, em qualquer de suas formas (...). No entanto, há que entender onde o interesse público acaba e onde começa o mercantilismo editorial que vende a intimidade alheia como se fosse parte indissociável desse conhecimento.” - PAULA LAVIGNE empresária, presidente da Procure Saber (novembro) “Você tem talento suficiente para não precisar deixar a indústria da música transformá-la em prostituta.” - SINÉAD O'CONNOR cantora irlandesa, dirigindo-se à americana Miley Cyrus (outubro) “É difícil para mim saber o que os outros pensam a meu respeito. Então permaneço num estado de insegurança.” - JENNIFER LAWRENCE, atriz americana, vencedora do Oscar por O Lado Bom da Vida (novembro) 8# RETROSPECTIVA 2013 – MEMÓRIA – 25.12.13 O PRISIONEIRO DA LIBERDADE Com a morte do líder sul-africano, que passou quase três décadas encarcerado por sua luta contra o apartheid, o mundo perdeu a maior referência do século XX em integridade, espírito conciliador e defesa dos ideais de uma sociedade livre e democrática. Nelson Mandela, 95 anos, político "Todo joelho nesta terra / deveria se dobrar diante de ti", dizia a canção Lizalis' idinga Lakho (Cumpre Tua Promessa), entoada no início do enterro de Nelson Mandela, realizado no domingo 15, em Qunu – onde passou a infância –, dez dias após sua morte, em Johannesburgo. A letra se dirige a Deus. No entanto, não foi evocada naquela cerimônia por acaso. Para o povo sul-africano, Mandela se aproximava da condição divina. Era o Pai da Nação. O Pai de Todos. Nascido Rolihlahla Mandela – o "Nelson" lhe foi atribuído por uma professora, de acordo com o costume de "rebatizar" os alunos com nomes cristãos –, ele tinha a virtude de não se querer Deus. Nem mito. Nem herói. Por essa razão foi tão grandioso – e, nesse caso, não apenas aos olhos da população que libertou do intolerável apartheid, mas de todo o mundo civilizado contemporâneo (cerca de 100 chefes de Estado compareceram às homenagens póstumas a ele). Seu escritório de advocacia, aberto em sociedade com o amigo Oliver Tambo, foi o primeiro do país a defender os direitos dos negros. Isso antes de Madiba – como era chamado, em referência ao seu clã – começar a apoiar a luta armada contra o regime racista da África do Sul, revoltado com o massacre de Sharpeville (1960), em que a polícia disparou covardemente contra um protesto pacífico, matando 69 manifestantes e ferindo outros 180. Mais tarde, Mandela seria preso, julgado e condenado à prisão perpétua. Foram 27 anos de cárcere, período em que o MK, braço militar do Congresso Nacional Africano, o partido de Madiba, foi responsável pela morte de 63 pessoas, a maioria civis. Para Mandela, sem a luta armada, o governo nunca reconheceria os direitos políticos dos negros. Prêmio Nobel da Paz de 1993 – honraria que dividiu com Frederik Willem de Klerk, o último presidente do antigo regime, que, sob pressão externa, aboliu as leis de segregação e libertou Madiba –, o Pai da Democracia sul-africana se elegeria em 1994 para comandar o país. Em um continente no qual a regra era a sucessão de tiranias, com exacerbado revanchismo, Nelson Mandela armou a população com outro sentimento: o da conciliação nacional. Dobrou, assim, os joelhos do ódio. (em dezembro) À ESQUERDA E À DIREITA DA HISTÓRIA Hugo Chávez, 58 anos, político Margaret Thatcher, 87 anos, política Não há antônimos políticos tão perfeitos na história recente quanto Hugo Chávez e Margaret Thatcher. É simples compreender o porquê: eles foram sinônimos políticos perfeitos de esquerda e de direita. Se não, vejamos. Ele: em catorze anos de Presidência da Venezuela (1999-2013), Chávez, que se pretendia comandante vitalício do país, subjugou as instituições, expropriou empresas e demonizou o capitalismo, representado pelo "diabo" maior, os Estados Unidos. Tudo em nome da "revolução bolivariana", do "socialismo do século XXI" — a "nova variante do autoritarismo latino-americano", como observou, em artigo para VEJA 45 ANOS, o escritor e jornalista peruano Álvaro Vargas Llosa. Resultado: uma nação mergulhada em gigantescos desequilíbrios econômicos. Ela: nos onze anos em que ocupou, pioneiramente, por três mandatos consecutivos, o posto de primeira-ministra da Inglaterra (1979-1990), para o qual foi eleita pelo Partido Conservador, Thatcher salvou os britânicos da catastrófica experiência socialista (com o perdão da redundância), pondo, em seu lugar, o thatcherismo. A doutrina, neoliberal, defendia a redução do papel do Estado na economia, a ênfase nas privatizações e a fragilização dos sindicatos. Resultado: inflação controlada, investimento externo triplicado e protagonismo econômico no mundo globalizado, junto a seu aliado maior, os Estados Unidos. Ronald Reagan, presidente americano, dizia que ele e a Dama de Ferro – apelido dado a Thatcher por um jornal oficial da URSS, que, desse modo, pretendia ofendê-la (até nisso os comunistas erraram: a premiê adorava ser chamada assim) – eram "almas gêmeas". A dupla, com a participação do papa João Paulo II, foi decisiva para que se enterrasse o agonizante sistema soviético. Sem Thatcher, possivelmente a Guerra Fria teria durado mais. Os antônimos, claro, deixaram legados opostos. À esquerda e à direita da história. Ele: o maior retrocesso político da América Latina nos últimos anos. Ela: ideias econômicas ainda pertinentes e uma Inglaterra que, fora da zona do euro – por sua orientação –, conseguiu não afundar na crise europeia. (ele: em março; ela: em abril) FORA DE CENA Norma Bengell, 78 anos, atriz O ano de 1962 poderia ter passado para a história profissional da atriz carioca Norma Aparecida Almeida Pinto Guimarães D'Áurea Bengell como o de consagração internacional: seu desempenho em O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte, Palma de Ouro em Cannes, rendeu convites para trabalhos na Itália e na França. Contudo, o que ficou de 1962 no seu CV e na memória nacional foi o nu frontal que estrelou em Os Cafajestes, de Ruy Guerra – o primeiro de uma brasileira nas telas cinematográficas. Não precisou de mais nada para que se tornasse "a mulher mais desejada do país", como disse Jece Valadão (na foto abaixo, ele aparece com Norma em uma cena do filme). Cantora bissexta, feminista inquieta e opositora da ditadura militar – o que lhe valeu algumas prisões e indenização –, Norma participou de mais de sessenta filmes, além de ter atuado no teatro e em telenovelas. Em 2000, uma reportagem de VEJA revelou o desvio de dinheiro de financiamento público do filme O Guarani, dirigido por ela, para a compra de um apartamento no Rio. Dois inquéritos criminais contra Norma não foram adiante; entretanto, ao morrer, a atriz, ao lado de sua sócia Sônia Nercessian, respondia a uma ação civil pública, (em outubro) Peter O'Toole, 81 anos, ator O diretor, David Lean, queria Marlon Brando. Não conseguiu. Tentou Albert Finney. Nada. Já com um Oscar na prateleira, por A Ponte do Rio Kwai (1957), Lean se viu assim, subitamente, naqueles idos de 1960, sem ninguém para protagonizar Lawrence da Arábia, o ambicioso épico que pretendia levar para as telas contando a história de um oficial britânico que lutou na I Guerra. Decidiu, então, apostar em um ator quase sem experiência cinematográfica, de apenas 28 anos: o irlandês Peter O’Toole. Inteiramente entregue ao papel, O’Toole foi para o deserto três meses antes do início das filmagens, realizadas nas areias da Jordânia e do Marrocos. Queria aprender a andar de camelo. Em pouco tempo, sentiu necessidade de comprar esponjas de borracha para melhor se acomodar. Os beduínos adoraram a ideia e começaram a pedir ao ator que importasse a novidade para eles. "Acho que introduzi a esponja de borracha na cultura árabe", brincava O’Toole. Lawrence da Arábia ganhou sete dos dez Oscars que disputou. E O’Toole recebeu a primeira das oito indicações ao prêmio que teria ao longo de sua carreira (em 2003, a Academia lhe daria uma estatueta especial pelo conjunto de suas atuações). Beberrão, galanteador, de olhos azuis quase artificiais de tão fortes, Peter O’Toole fez outros papéis de destaque, como o do personagem-título de Lord Jim (1965), de Richard Brooks. Mas ninguém se lembrará dele na pele de outra figura a não ser aquela que, recortada sobre paisagens irradiantes, arrastou multidões para as salas escuras dos cinemas, (em dezembro) Nagisa Oshima, 80 anos, cineasta O escândalo no Japão – onde foi censurado —, o prêmio no Festival de Cannes e a repercussão internacional fizeram de O Império dos Sentidos (1976) um filme maior do que seu diretor, Nagisa Oshima. A narrativa crua e, digamos assim, "nua" dos encontros sexuais de um casal – que começam como mera diversão e se transformam num amor obsessivo – tem qualidades inegáveis, mas é injusto resumir a trajetória de Oshima a esse longa-metragem. Uma obra como Furyo – Em Nome da Honra (1983) – que põe na tela o embate entre um prisioneiro inglês e um capitão japonês, na Ilha de Java, em plena II Guerra Mundial – estaria em lugar de destaque no currículo de qualquer cineasta contemporâneo. Formado em direito, Oshima chegou a ter a própria produtora de cinema, que não foi para a frente, obrigando-o a se empregar na televisão, (em janeiro) Jorge Dório, 92 anos, ator "Muito obrigado, Jorge. Nunca pensei que esse personagem fosse tão grande", disse Vinícius de Moraes ao ator que havia sido convocado às pressas para assumir o lugar de Jece Valadão em Procura-se uma Rosa (1962), que tinha o poeta como coautor. O substituto improvisado era o carioca Jorge Pires Ferreira, já àquela altura Jorge Dória. O novo sobrenome tinha sido escolhido para homenagear o amigo Leoni Dória Machado, responsável por sua estreia nos palcos. Para além do teatro – em que colecionou sucessos tanto na comédia, sua especialidade, como no drama –, Dória se sentia à vontade também no cinema e na TV. (em novembro) Cláudio Cavalcanti, 73 anos, ator O andar arcado, a mão direita que costumava parar à altura do primeiro botão do paletó e a expressão de quem sofre um terremoto interior marcavam o empresário Otávio Carvalho de Medeiros, o mais bem-acabado personagem da segunda temporada da série Sessão de Terapia (GNT), dirigida por Selton Mello. Foi o derradeiro papel interpretado pelo carioca Cláudio Cavalcanti. A TV, porém, era apenas a face mais popular do ator, que iniciou a carreira no TBC aos 16 anos de idade ao lado de Fernanda Montenegro, Sérgio Britto e Nathalia Timberg. Foram mais de cinquenta trabalhos na televisão, mas ele fez também 22 filmes e dezenas de peças teatrais, (em setembro) Walmor Chagas, 82 anos, ator A voz arrebatadora, a um só tempo vigorosa e serena, chamava atenção – assim como a vasta cabeleira branca. O porte altivo parecia sob medida para interpretar tanto gigantes da dramaturgia como personagens milionários de telenovelas. E havia ainda o cinema – a arte que o fez sair de sua cidade, Porto Alegre, rumo a São Paulo, em busca de uma oportunidade como ator. Curiosamente, foi o palco que marcou a estreia de Walmor Chagas na profissão – e, na verdade, o consagrou. Em 1952, ao lado de Ítalo Rossi, ele criou o Teatro das Segundas-Feiras. Dois anos depois, estava no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). O primeiro filme só viria em 1965 – mas foi logo um clássico, São Paulo, Sociedade Anônima, de Luís Sérgio Person. No teatro, Walmor fez um Hamlet, de Shakespeare, histórico, e também Esperando Godot, de Samuel Beckett, ao lado de sua mulher, Cacilda Becker, que morreu durante a montagem (1969). No total, trabalhou em mais de quarenta peças, cerca de vinte filmes e mais de trinta novelas, (em janeiro) Roger Ebert, 70 anos, crítico de cinema "Quando estou escrevendo, meus problemas se tornam invisíveis", declarou o americano Roger Joseph Ebert, o mais popular crítico de cinema de sua geração, à revista Esquire, em 2010. Essa identificação com a palavra escrita lhe garantiu o prodígio de se tornar o primeiro profissional de sua categoria a ganhar um Prêmio Pulitzer. Se o cinema era sua inspiração – imaginava-se no paraíso assistindo a Cidadão Kane, o filme que mais admirava, fartando-se num pote de sorvete –, o exercício da crítica o realizava. Curiosamente, tendo iniciado sua carreira em 1967, no Chicago Sun-Jimes, onde trabalhou por quatro décadas, Ebert se tornou conhecido de fato a partir de 1975, graças a um programa de TV, Sneak Previews, que fazia ao lado de Gene Siskel. Segundo ele, todo o segredo para ser um bom crítico de cinema era escrever como se fosse um repórter, "e não um estudante de cinema". Com seu estilo despojado e raramente agressivo, Ebert – vítima de um câncer de tireóide que o desfigurou – se deixava levar menos pela razão e mais pela sensibilidade. "As emoções não mentem jamais", acreditava ele, o primeiro crítico a ter uma estrela na calçada da fama de Hollywood, (em abril) Esther Williams, 91 anos, nadadora e atriz Ela foi a estrela máxima de uma modalidade de cinema inusitada: o musical de piscina. Não é de estranhar, portanto, que, certa vez, quando lhe perguntaram qual teria sido sua melhor companhia em cena, tenha disparado: "A água". Campeã americana dos 100 metros nado livre e pronta para brilhar na Olimpíada de 1940, Esther Williams viu sua chance de ganhar uma medalha afundar, diante da suspensão dos Jogos devido à II Guerra. Em compensação, descoberta por executivos da Metro-Goldwyn-Mayer, ela rapidamente alcançaria fama com suas coreografias aquáticas – e subaquáticas. Empolgado com o êxito de seus filmes – como Escola de Sereias (1944) –, o estúdio gastou 250.000 dólares para construir uma piscina especial só para ela, com elevadores hidráulicos e janelas de vidro que permitiam tomadas debaixo d'água – isso numa época em que se gastavam, nas superproduções, 2 milhões de dólares. Na autobiografia, Esther Williams disse ter nadado mais de 2000 quilômetros diante das câmeras. (em junho) James Gandolfini, 51 anos, ator O encontro entre o ítalo-americano James Gandolfini e Tony Soprano, o atormentado protagonista da série Família Soprano, foi um desses casos em que ator e personagem se fundem de tal forma que se torna impossível dizer que em algum momento houve duas criaturas, uma real e a outra fictícia. A trama algo shakespeariana sobre um chefe da máfia que sofre ataques de pânico e, em segredo, procura a ajuda de uma psiquiatra – criação de David Chase, desenvolvida em 86 episódios levados ao ar entre 1999 e 2007 – mudou a dramaturgia televisiva. Para tanto, foi fundamental o modo como Gandolfini interpretou o papel, na medida exata para revelar um Tony ao mesmo tempo brutamontes e fragilizado. Sua atuação lhe rendeu três prêmios Emmy. Formado em artes pela Universidade Rutgers, o ator trabalhou na Broadway antes de chegar ao cinema e à TV. (em junho) NOTAS DE PESAR Lou Reed, 71 anos, músico "Sou apenas um homem cansado, sem nada a dizer", cantava o americano Lou Reed em The Kids (1973). Não, não era verdade: ele tinha muito a dizer. Embora esteja longe de haver sido um fenômeno comercial, sua influência no mundo do rock foi extraordinária. Nascido Lewis Allan Reed no Brooklyn, em 1942, Lou se interessou pela música desde a infância. Na adolescência, foi internado em um hospital psiquiátrico, onde o submeteram a eletrochoques: os pais se incomodavam com suas repentinas mudanças de humor, sua rebeldia e sua bissexualidade (nos anos 70, ele chegaria a viver com um travesti). A experiência seria relembrada mais tarde na canção Kill Your Sons, faixa de Sally Can’t Dance (1974). Na universidade, estudou jornalismo, cinema e escrita criativa. Passada essa fase, trabalhou na equipe de compositores da gravadora Pickwick International. Nesse período, conheceu o músico John Cale. Ao lado dele, do guitarrista Sterling Morrison e do baterista Moe Tucker, Lou criaria o Velvet Underground, que trouxe para o rock o universo barra-pesada de grandes metrópoles como Nova York. Apadrinhado pelo artista pop Andy Warhol e, depois, impulsionado por David Bowie, que passara a cantar músicas de sua banda, Lou conquistou certa notoriedade. A carreira de altos e baixos e o envolvimento com drogas e álcool durante décadas contrastaram com a placidez dos últimos anos de vida ao lado da mulher, a performer Laurie Anderson. Para se ter uma ideia, Laurie disse que Lou morreu fazendo tai chi chuan e admirando as árvores, (em outubro) Paulo Vanzolini, 89 anos, compositor e zoólogo Para a comunidade científica internacional, ele era o especialista de peso em répteis e anfíbios, formado em medicina no Brasil e doutorado pela prestigiosa Universidade Harvard – além de haver sido, por mais de quatro décadas, o dedicado diretor do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo. Para os cultores da MPB, será sempre o inspirado autor de clássicos como Ronda ("De noite / eu rondo a cidade / a te procurar/ sem encontrar") e Volta por Cima ("Reconhece a queda e não desanima / Levanta, sacode a poeira/ E dá a volta por cima"). Ao lado de Adoniran Barbosa, é considerado um dos maiores nomes do samba paulista. Mas, ao mesmo tempo em que teve músicas interpretadas por artistas como Chico Buarque de Hollanda, Vanzolini recebeu, por sua contribuição no campo das ciências, um prêmio da Fundação Guggenheim, de Nova York. Ou seja: estavam certos, igualmente, os cultores da MPB e a comunidade científica internacional, (em abril) Van Cliburn, 78 anos, pianista Os ouvidos das paredes da Casa Branca já haviam se acostumado com ele, que ali tocara para todos os presidentes desde Harry Truman. Naquele dia de 1987, porém, o anfitrião Ronald Reagan tinha um convidado ilustre e inspirado: o líder soviético Mikhail Gorbachev. Para o pianista americano Harvey Lavan Cliburn Jr., ou simplesmente Van Cliburn, a proximidade com a União Soviética não causava estranheza. Pudera: desde 1958, quando vencera, em Moscou, a Competição Internacional Tchaikovsky – façanha vista como a resposta cultural dos EUA ao lançamento do primeiro satélite artificial, o Sputnik, proeza científica da URSS –, seu destino parecia irremediavelmente ligado ao opositor dos EUA na Guerra Fria. O pianista, no entanto, recusou o conflito ideológico, preferindo buscar superá-lo por meio da música. Sua gravação do 1º Concerto para Piano de Tchaikovsky ao lado do regente russo Kirill Kondrashin foi o primeira álbum erudito a conquistar o disco de platina – e já vendeu mais de 3 milhões de cópias, (em fevereiro) Sarita Montiel, 85 anos, atriz e cantora Sim, claro: ela era atriz, fez carreira em Hollywood e chegou a ser chamada de "a nova Gilda" – em referência à mulher igual à qual nunca houve uma, interpretada pela musa Rita Hayworth; isso após o sucesso num faroeste, Vera Cruz (1954), estrelado na companhia de Burt Lancaster e Gary Cooper. Mas, mundo afora — e o Brasil faz parte desse mundo –, imortalizou-se cantando os versos de La Violetera, do filme homônimo (1958). Àquela altura, havia voltado para a Espanha, onde nascera em 1928, após a experiência americana. Em 1975, aos 47 anos, decidiu-se pela música: abandonou as telas para cantar e fazer shows. Em toda parte, não deixava de entoar: "Cómpreme usted este ramito / cómpreme usted este ramito / pa' lucirlo en el ojal". Nunca cantava só. (em abril) Chorão, 42 anos, músico A imagem de rebelde cultivada por Alexandre Magno Abrão, o Chorão, vocalista da banda Charlie Brown Jr., podia bater de frente de forma espetacular com algumas de suas atitudes – e até com suas letras. Combinaria com alguém que chegou a ameaçar uma jornalista, ao se sentir desrespeitado por um artigo, ajudar instituições de caridade ou escrever um verso como "Descobri que é azul a cor da parede da casa de Deus"? Com Chorão, combinava. Nascido em São Paulo, o músico se mudou para Santos aos 17 anos. Lá ganhou o apelido com o qual se tornaria famoso. Ao misturar punk rock, reggae e hip-hop, o grupo Charlie Brown Jr. — que em setembro veria morrer outro integrante, Luiz Carlos Leão Duarte, o Champignon – conquistou o público e, por duas vezes, o Grammy Latino. As drogas, entretanto, estavam no caminho de seu imprevisível líder, (em março) Dominguinhos, 72 anos, sanfoneiro Se tivesse sido apenas um sanfoneiro tradicional, o pernambucano José Domingos de Morais, o Dominguinhos, já teria um lugar de honra na música brasileira. Compreensível: aos 9 anos de idade, ele impressionou de tal forma Luiz Gonzaga, por sua destreza no acordeão, que o chamado Rei do Baião o convidou para ir ao Rio de Janeiro. Quatro anos depois, ele aceitou o convite, partiu para a então capital do país e passou a integrar o grupo de Gonzaga — que logo se convenceu de que ali estava o seu sucessor. Forró e baião iriam predominar no repertório do sanfoneiro, mas ao acompanhar Gal Costa no show Índia (1972) Dominguinhos se aproximou da nata da MPB. Compôs com Gilberto Gil – que já gravara Só Quero um Xodó e Tenho Sede – e Chico Buarque de Hollanda; fez sucesso na voz de Elba Ramalho; esteve ao lado de Toquinho. Em 2007, lançaria um álbum com o violonista Yamandu Costa. Seu talento foi ainda reconhecido internacionalmente: em 2003 e 2012, ganhou o Grammy Latino, (em julho) Emílio Santiago, 66 anos, cantor Nat King Cole? Era pouco para o carioca Emílio Vitalino Santiago, acreditava ninguém menos do que o crítico Stephen Holden, do jornal The New York Times. Para ele, o brasileiro superava o afinadíssimo cantor de Unforgettable pela profundidade de suas interpretações. Santiago iniciou a carreira em 1970, no festival da Faculdade Nacional de Direito, no qual ganhou o prêmio de melhor intérprete – Marlene, Beth Carvalho e Marcos Valle eram os jurados. O primeiro de seus 29 álbuns foi gravado em 1975. E a fama chegaria para valer em 1988, com o disco Aquarela Brasileira. Seu maior hit viria no ano seguinte com Saigon. Por seu selo, Santiago Music, lançou, em 2010, o álbum Só Danço Samba, que dois anos depois resultaria no CD ao vivo homônimo, com o qual conquistou o Grammy Latino, (em março) PÁGINAS DO NOBEL E OUTRAS PÁGINAS DORIS LESSING, 94 ANOS, ESCRITORA “Tenho 88 anos e eles não podem dar o Nobel a um morto, então acho que pensaram que era melhor me dar logo, antes que eu batesse as botas", brincou a britânica Doris Lessing ao receber a notícia de que ganhara o mais importante prémio literário do mundo, em 2007. Era, é verdade, a pessoa mais idosa a receber tal distinção – e continua sendo. Nascida Doris May Tayler – o Lessing veio com o segundo casamento –, na antiga Pérsia, atual Irã, a escritora tinha mãe enfermeira e pai soldado, ferido na I Guerra Mundial. Dizia-se, aliás, uma ficcionista "filha da guerra" — contra a vontade, sem dúvida, pois, para ela, naquele conflito haviam sido gerados "todos os horrores de massa do nosso tempo". Durante anos, militou no Partido Comunista, mas recusava o rótulo de "autora esquerdista", do mesmo modo que não aceitava a classificação de "feminista", muito embora sua obra-prima, O Carnê Dourado (1962), seja considerada um marco do feminismo na literatura, (em novembro) Seamus Heaney, 74 anos, poeta e ensaísta Nascido na Irlanda do Norte, Seamus Heaney, prêmio Nobel de Literatura de 1995, considerava-se pequeno demais diante de três monumentos irlandeses que o antecederam na distinção: Wiliiam Butler Yeats (1923), Bernard Shaw (1925) e Samuel Beckett (1969). Modéstia. Basta dizer que, depois de Yeats (1865-1939), a poesia das Irlandas não conheceu ninguém à sua altura. Citado frequentemente nos discursos de Bill Clinton, Heaney, segundo a Academia Sueca, responsável pela escolha do Nobel, escrevia versos que, por força de seu lirismo e profundidade ética, exaltavam "os milagres do dia a dia e o passado vivo" — numa alusão à combinação entre a defesa da autonomia da Irlanda do Norte e a presença de motivos épicos e gregos em sua obra. (em agosto) Chinua Achebe, 82 anos, romancista, poeta e ensaísta Frequentemente apontado como favorito ao Nobel, o nigeriano Chinua Achebe não foi contemplado com o prêmio – um equívoco da Academia Sueca, sobretudo quando se leva em conta que ele é reconhecido como o fundador da moderna literatura africana. Escrevia em inglês, é fato, mas deixava ecoar em sua narrativa as centenas de dialetos de seu país, palco de mais de 200 etnias. O colonialismo europeu, que desintegra a vida tribal, dá corpo à obra do escritor, nascido Albert Chinualumogu Achebe, em especial no seu livro de maior expressão, O Mundo Se Despedaça (1958) – traduzido para cinquenta idiomas e com 8 milhões de cópias vendidas ao redor do planeta, (em março) Tom Clancy, 66 anos, autor de thrillers político-militares Ele quis integrar os quadros da Marinha, mas foi recusado. Anos mais tarde, escreveu a história de um capitão soviético disposto a desertar para os Estados Unidos a bordo de um supersubmarino, dotado de um sistema especial que tornava sua localização praticamente impossível. Vendido para a editora do Instituto Naval americano por apenas 5000 dólares, o livro, Caçada ao Outubro Vermelho (1984), tornou-se um best-seller, consagrando seu autor, o americano Thomas Leo Clancy Jr. – ou simplesmente Tom Clancy –, como sinônimo de thrillers político-militares. Adaptado para o cinema, Outubro Vermelho, a exemplo de outros livros de Clancy, multiplicou em muitas vezes a fama – e a conta bancária – do escritor. Quando a Guerra Fria acabou, o ficcionista tratou de dirigir suas tramas para o combate ao terrorismo. Tiro certo. Clancy também inspirou diversos videogames. (em outubro) Elmore Leonard, 87 anos, autor de policiais e thrillers "Provavelmente só vou parar (de escrever livros) quando deixar tudo – deixar a vida –, porque isso é o que sei fazer", declarou, certa vez, o americano Elmore John Leonard Jr. Cumpriu a promessa. Autor de 45 obras, trabalhava na 46ª quando se foi. Irrepreensível na construção de diálogos, teve diversas histórias adaptadas para o cinema: O Nome do Jogo, Os Indomáveis e Jackie Brown são apenas três exemplos de maior bilheteria. Elmore Leonard começou a escrever ficção na década de 50. Na época, trabalhava em uma agência de publicidade. Seus primeiros textos foram westerns – incluindo Hombre, que chegou a ser levado para o cinema em 1967, com Paul Newman como protagonista. No entanto, o gênero no qual se tornaria mestre é o policial. O público demorou para reconhecer sua desenvoltura nesse tipo de narrativa – ele só se tornou best-seller depois dos 60 anos. (em agosto) Tatiana Belinky, 94 anos, escritora infantojuvenil Embora tenha traduzido no Brasil, aonde chegou, aos 10 anos de idade, seus compatriotas russos Anton Tchekov e Leon Tolstoi, foi escrevendo em português que Tatiana Belinky se firmou como um nome obrigatório na literatura infantojuvenil. Sua espantosa produção supera os 270 títulos. Em 1952, ao lado do marido, o médico e educador Júlio Gouveia, Tatiana fez a primeira adaptação para a TV do Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, levada ao ar pela extinta Tupi. Para ela, o maior erro que um autor de sua área poderia cometer era subestimar a capacidade dos pequenos leitores, (em junho) André Schiffrin, 78 anos, editor Durante 28 anos, André Schiffrin atuou como editor-chefe do Pantheon Books, selo de alta literatura da Random House. Lá publicou autores do porte de Júlio Cortázar, Marguerite Duras e Michel Foucault Por não concordar em fazer cortes na coleção que dirigia nem aumentar a margem de lucro, Schiffrin saiu da editora em 1990 - e entrou definitivamente para a história do mercado de livros ao fundar, dois anos depois, a New Press, uma casa sem fins lucrativos, bancada por instituições. Autor de O Negócio dos Livros e O Dinheiro e as Palavras, Schiffrin, nascido na França, chegou aos EUA em 1941, com 5 anos de idade – sua família, judia, fugia da ocupação nazista. Desde a infância, convivia com os livros: seu pai, Jacques Schiffrin havia criado a Bibliothèque de la Plêiade, marca de excelência literária, voltada para os clássicos. Seguindo o próprio caminho, ele também fez sua parte, (em dezembro) DEMOCRACIA E JUSTIÇA Saulo Ramos, 83 anos, jurista O país deve a José Saulo Pereira Ramos a condução, como representante legal do Senado, do processo que levaria à cassação dos direitos políticos do ex-presidente da República Fernando Collor de Mello. O advogado paulista também teve papel fundamental na elaboração das bases jurídicas dos planos Cruzado I e II, que buscavam conter a alta inflacionária. Saulo colaborou ainda na estruturação da Advocacia-Geral da União, cuja função é assessorar e defender o governo. A propósito, o jurista fez parte da equipe de Jânio Quadros e foi ministro da Justiça e consultor-geral da República durante a gestão de José Sarney na Presidência. Seu entusiasmo pelas letras o levou a publicar um livro de memórias, Código da Vida, e o volume de poemas Fora da Lei. (em abril) Fernando Lyra, 74 anos, político No mesmo ano em que ajudou a criar o partido que se opunha à ditadura militar, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) – 1966 –, o pernambucano Fernando Lyra se elegeu deputado estadual. Os dois fatos resumem, de algum modo, a própria trajetória do político, marcada pela capacidade de articulação partidária e pela atuação parlamentar. Lyra chegou à Câmara Federal em 1971 e lá permaneceu por outros seis mandatos consecutivos. Em 1984, voltaria a se projetar nacionalmente, participando das Diretas Já. Derrotada essa proposta, articulou a candidatura de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. Com a morte de Tancredo e a posse de José Sarney, foi convidado a assumir o Ministério da Justiça. Em 1989, concorreu a vice-presidente na chapa de Leonel Brizola. (em fevereiro) IDEOLOGIA E VERDADE Luiz Gushiken, 63 anos, ex-ministro Mergulhado inicialmente no lamaçal do mensalão, que mancharia algumas das figuras históricas do Partido dos Trabalhadores, o paulista Luiz Gushiken, um dos fundadores da sigla, acabou se livrando das acusações que pesavam sobre ele. Envolvido no desvio de recursos para o PT pelo ex-dirigente do Banco do Brasil Henrique Pizzolato – que, neste ano, fugiu para a Itália a fim de não sofrer a pena que lhe foi imputada –, Gushiken foi absolvido pelo STF. Um dos autores da "Carta ao Povo Brasileiro", documento que em 2002 abriu o caminho que levou Luiz Inácio Lula da Silva ao Planalto, o ex-presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo foi ministro da Secretaria de Comunicação Social e chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos do primeiro governo federal petista. (em setembro) Jacob Gorender, 90 anos, historiador Baiano, filho de imigrantes judeus russos, Jacob Gorender escreveu um clássico sobre as organizações de esquerda e a luta armada no país, Combate nas Trevas (1987), o qual teve a preocupação de atualizar quando novos fatos vieram iluminar a cena histórica do período de vigência da ditadura militar. Integrou os quadros do Partido Comunista Brasileiro, do qual foi expulso por não concordar com a linha de atuação após o golpe de 1964; fundou, então, o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. Mais fiel aos fatos do que à ideologia, teve a coragem de detalhar a prática do justiçamento, "a execução capital como ato de justiça revolucionária". Também desmentiu a tese do escritor e religioso dominicano Frei Betto segundo a qual dois frades de seu convento não teriam sido os únicos responsáveis pela denúncia à polícia da localização de Carlos Marighella, o chefe da Ação Libertadora Nacional, o que resultou no assassinato do líder esquerdista. Betto sustentava que a CIA havia participado do episódio, (em junho) LABORATÓRIOS VITAIS Robert Edwards, 87 anos, biólogo Em certa medida, cerca de 4 milhões de pessoas ao redor do planeta alcançaram a vida por causa dele. Nasceram como "bebês de proveta",' isto é, devido à fertilização In vitro, técnica que o inglês Robert Edwards desenvolveu com seu colega Patrick Steptoe. Graças a eles, desde o nascimento da britânica Louise Brown, em 1978, a reprodução assistida ganhou impulso. O procedimento consiste na fecundação de óvulos retirados da mulher por espermatozoides do marido, ou de um doador em laboratório. Pelo feito extraordinário, Edwards ganhou o Nobel de Medicina em 2010. Dois anos antes, ele havia declarado: "Jamais esquecerei do dia em que olhei em meu microscópio e vi algo diferente nos cultivos. O que vi foi um blastocisto humano me olhando fixamente. Pensei: conseguimos", (em abril) Virginia Johnson, 88 anos, sexóloga Quando, na década de 50, duas vezes divorciada, Virgínia Johnson conseguiu um emprego na Universidade de Washington, tinha em mente apenas que precisava sustentar os filhos. Logo, porém, ela se veria envolvida naquele que foi classificado como "o maior experimento sobre sexo de toda a história americana". Ao lado do ginecologista William Masters, com quem se casaria e viveria por 22 anos, Virginia se tornou a pioneira de estudos sobre a sexualidade humana e seus distúrbios. As pesquisas feitas pela dupla, e suas descobertas, provocaram furor e protestos das alas conservadoras da sociedade, escandalizadas com a revelação, por exemplo, de segredos do orgasmo feminino. O trabalho, estruturado como dissertação de mestrado, resultou num best-seller, A Resposta Sexual Humana (1966). Masters e Johnson, como ficaram conhecidos, transformaram-se, assim, em celebridades, (em julho) MISSÃO NO ESPAÇO – E NO MAR Malcolm Scott Carpenter, 88 anos, astronauta Em 1959, a Nasa escolheu sete pilotos para fazer parte da equipe do Projeto Mercury, num esforço dos Estados Unidos para dar uma resposta à altura ao programa espacial soviético. Um deles foi Malcolm Scott Carpenter. Ele se tornaria o segundo americano a orbitar a Terra, depois de John Glenn. Carpenter fez seu histórico voo em maio de 1962 – em abril de 1961, os russos haviam mandado o primeiro homem ao espaço, Yuri Gagarin –, a bordo da cápsula Aurora 7. Durante cinco horas, ele circulou a Terra por três vezes, realizando experimentos científicos. Nunca mais entraria em órbita. Três anos depois da viagem da Aurora, Carpenter, que participara da Guerra da Coreia, integraria uma experiência da Marinha, ficando por trinta dias no fundo do mar, perto da costa californiana. (em outubro) TRINCHEIRA INVENCÍVEL Vo Nguyen Giap, 102 anos, militar Para a população do Vietnã do Norte, no panteão dos heróis do país Vo Nguyen Giap estava em segundo lugar – à frente dele, só Ho Chi Minh. Foi o líder comunista, aliás, que, em 1941, entregou a Giap o comando militar norte-vietnamita. A resposta do estrategista àquela prova de confiança não poderia ter sido melhor. Usando táticas de guerrilha, Giap impôs primeiramente uma fragorosa derrota às tropas colonialistas francesas em Dien Bien Phu, no ano de 1954, consolidando a independência do Vietnã do Norte e o fim do domínio da França na Indochina. Mais tarde, em 1968, conduziu a chamada Ofensiva do Tet, atacando cidades do Vietnã do Sul, e, em 1975, o avanço contra Saigon, que pôs fim à Guerra do Vietnã, travada contra seus vizinhos e os Estados Unidos, donos da mais poderosa máquina bélica do planeta. Ex-professor de história e – inacreditável – com pouco treinamento militar, Giap ganhou a alcunha de Napoleão Vermelho. Depois de 1986, quando a ditadura vietnamita se entregou à economia de mercado, o invencível general passou a atuar na causa da defesa do meio ambiente, (em outubro) ARTE NA PROPAGANDA Francesc Petit, 79 anos, publicitário e artista plástico Alguns dos mais memoráveis personagens de propagandas brasileiras foram criados por ele: o garoto da Bombril (em parceria com Washington Olivetto, o frango da Sadia, o baixinho da Kaiser. Petit – o "P" da DPZ, agência de publicidade fundada em 1968 com os amigos Roberto Duailibi e José Zaragoza – tinha como marcas de seu trabalho o rigor no acabamento das peças e o apuro artístico (resultado de sua outra vocação: a pintura). Nascido em Barcelona, chegou ao Brasil antes de completar 20 anos de idade – mas manteve ativa sua militância a favor da soberania catalã. Perfeitamente ambientado no país em que escolheu viver, não deixava de passar, todos os anos, uma temporada na Catalunha, onde mantinha uma casa que ele próprio restaurou – com o cuidado e o senso estético que o caracterizavam, (em setembro) VOCAÇÕES JORNALÍSTICAS David Frost, 74 anos, jornalista e apresentador de TV Desde a década de 60, o inglês David Frost se mostrava familiarizado com as câmeras de TV ao apresentar atrações de humor que incluíam programas de sátira política. Contudo, foi seu talento como entrevistador que o inseriu definitivamente na história. Frost era um mestre em extrair respostas bombásticas de quem aceitasse conversar com ele. Assim, em 1977, durante uma série de entrevistas com o ex-presidente americano Richard Nixon, exibida por diversas emissoras, ele conseguiu o que até aquela altura parecia impossível: que o ex-ocupante da Casa Branca admitisse alguma culpa no escândalo de Watergate, que, três anos antes, o levara a renunciar ao cargo mais importante do mundo. O episódio deu origem ao filme Frost/Nixon (2008), de Ron Howard. (em agosto) Luiz Paulo Horta, 69 anos, jornalista O jornalismo, a música e a religião nortearam a trajetória do carioca Luiz Paulo Horta. Tendo iniciado o curso de direito em 1962, acabou por abandoná-lo no ano seguinte, ao ingressar no extinto Correio da Manhã. Em 1964, começou a trabalhar no Jornal do Brasil, no qual seria crítico musical por 26 anos. No jornal O Globo, atuou nessa mesma função e como editorialista, escrevendo ainda sobre religião – tratou, por exemplo, com a simplicidade, a clareza e o conhecimento de causa que lhe eram peculiares, da visita do papa Francisco ao país. Aliás, no âmbito religioso, publicou uma pequena joia da literatura sobre o assunto: A Bíblia – Um Diário de Leitura (2011). Em 2008, foi eleito para a cadeira 23 da Academia Brasileira de Letras, sucedendo a Zélia Gattai. (em agosto) Telmo Martino, 82 anos, colunista O jornalista carioca será recorrentemente lembrado pela implacável coluna que manteve, com o seu nome, nas décadas de 70 e 80 no extinto Jornal da Tarde. Com um texto irreverente, mordaz e impecável, ele disparava farpas em todas as direções – ou talvez o mais correto seja dizer "à esquerda e à direita". O estilo lembrava o de Paulo Francis, com quem trabalhara nas revistas Senhor e Diners. Afiado, Martino cunhou expressões e apelidos que se tornariam famosos: turma da "barba e bolsa" (os stalinistas), turma do "quibe e quilate" (Paulo Maluf e outros da mesma origem), Sirene do Apocalipse (Tetê Spíndola). Apesar de tudo, ser citado em sua coluna – que também foi sinônimo de São Paulo – era uma glória, (em setembro) MODELOS, MODA E ROUPAS John Casablancas, 70 anos, empresário Na Elite, a agência que John Casablancas criou em 1972, nasceu uma nova era a das supermodels. Um rápido olhar em alguns nomes que passaram por lá ajuda a entender o que isso significa: Naomi Campbell, Cindy Crawford, Linda Evangelista e Gisele Bündchen. Filho de pais catalães, Casablancas nasceu em Nova York. Para alimentar a fama de suas modelos, incentivava-as a trabalhar na TV e no cinema e, claro, a posar nuas. Transformadas em celebridades, as top models tornavam-se exigentes. "Não saio da cama por menos de 10.000 dólares por dia", declarou Linda Evangelista no auge do estrelato. De Gisele, o empresário guardava mágoas – acusou-a de mercenária quando a brasileira abandonou seus serviços. Chegou a deixar isso registrado no livro Vida Modelo (2008), no qual a chama de avarenta. Em 1999, uma reportagem da BBC denunciou o uso de drogas e abusos sexuais de menores de idade na Elite. Embora não tenha sido formalmente acusado, Casablancas sairia discretamente de cena no ano seguinte, (em julho) Clô Orozco, 63 anos, estilista A paulistana Clotilde Maria Orozco de Garcia gostava demais da peça Huis Clos (1944), do francês Jean-Paul Sartre, na qual um dos personagens diz uma das frases mais famosas do autor: "O inferno são os outros". Achava, inclusive, que o título, aqui traduzido como Entre Quatro Paredes, se aproximava sonoramente de seu apelido, Clô. Por isso, em 1977, na hora de escolher o nome de sua marca de roupas, não teve dúvida. Clô estudava teatro, embora fosse formada em sociologia, quando, incentivada pelo primeiro marido, Renato Kherlakian, da Zoomp, rabiscou seus primeiros croquis. Refinamento e elegância eram as linhas mestras de suas criações minimalistas, inspiradas em estilistas japoneses. Em 2001, de olho no público jovem, criou a grife Maria Garcia, mas, em seus últimos anos, enfrentava dificuldades nos negócios, (em março) Rasalía Mera, 69 anos, empresária Ela deixou a escola aos 11 anos de idade e trabalhou como costureira antes de iniciar, com seu então marido Amancio Ortega, a construção de um império. Nele, a joia da coroa seria a Zara, rede de lojas de roupas e acessórios para os públicos feminino, masculino e infantil, fundada em 1975 e presente em mais de oitenta países. Rosalía Mera Goyenechea nasceu em La Coruña. Segundo a revista Fordes, era a mulher mais rica da Espanha e a 66ª do mundo, com patrimônio estimado em 6,1 bilhões de dólares – isso apesar de ter apenas 7% da Inditex, dona da Zara e de marcas como Massimo Dutti, Pull & Bear e Bershka. (em agosto) DO TIME DOS IMORTAIS Gylmar, 83 anos, goleiro Djalma Santos, 84 anos, lateral direito De Sordi, 82 anos, lateral direito Nilton Santos, 88 anos, lateral esquerdo Em 2013 o Brasil perdeu metade da defesa campeã do mundo em 1958, o ano em que abandonamos o complexo de vira-lata, na bonita definição de Nelson Rodrigues. Sem a turma lá de trás, nunca é tarde para lembrar, Pelé e Garrincha não teriam a liberdade de fazer a farra que fizeram no primeiro dos cinco títulos do Brasil, como se jogassem descalços. A escalação dos que se foram neste ano soa como poesia: Gylmar, De Sordi, Djalma Santos e Nilton Santos. Um goleiro, três laterais. Três santos (Gylmar também era dos Santos) e um anjo de origem italiana. Os estrangeiros, impressionados com o toque de bola brasileiro e a irresponsabilidade criativa de seus atacantes, atribuíam a essa força ofensiva a ausência de grandes goleiros. Injustiça com o maior deles, Gylmar, que ganhou tudo na seleção, no Corinthians e no Santos. De suas mãos saía a bola precisa para De Sordi, na direita, um marcador firme e seguro, que jogou cinco das seis partidas da campanha de 1958 – machucado, na final cedeu a posição a Djalma Santos. Em virtude de um único jogo, aquele dos 5 a 2 contra a Suécia, Djalma foi eleito o melhor lateral da Copa com suas arrancadas para o ataque, algo que defensores não podiam fazer até então. Com quem ele – que atuaria 114 vezes pelo escrete – aprendeu essa arte improvável de avançar e avançar? Com Nilton Santos, a Enciclopédia do Futebol, um gigante de elegância e inteligência, o lateral esquerdo que, na explicação sensível de Tostão, "pensava o pensamento dos companheiros e dos adversários". (Djalma Santos, em julho; De Sordi e Gylmar, em agosto; Nilton Santos, em novembro) Mazurkiewicz, 67 anos, goleiro Goleiro uruguaio nas Copas de 1966, 1970 e 1974, Ladislao Mazurkiewicz, ídolo do Peñarol e do Atlético Mineiro, onde jogou durante três anos, conquistou a imortalidade ao participar de um dos lances mais conhecidos da história do futebol. Foi na semifinal de 1970, em Jalisco, no México, quando Pelé, com um drible de corpo, deixou que a bola fosse de um lado, escapou por outra e tirou o uruguaio da jogada. A bola não entrou. Nos dizeres de um personagem do romance O Drible, de Sérgio Rodrigues, colaborador de VEJA: "Pelé desafiou Deus e perdeu. Imagine se não perdesse. Se não perdesse, nunca mais que a humanidade dormia tranquila". Bem-humorado, sempre que indagavam Mazurkiewicz a respeito daquele lance indelével, ele respondia com um leve sorriso de canto de boca: "A bola entrou? Não. Então me saí melhor que Pelé", (em janeiro) 9# RETROSPECTIVA 2013 – INOVAÇÃO – 25.12.13 9#1 A TECNOLOGIA QUE VESTIMOS 9#2 O HOMEM QUE NOS LEVARÁ A MARTE 9#1 A TECNOLOGIA QUE VESTIMOS Guarde este nome em inglês, porque você ainda vai ter um: wearables. São os aparelhos digitais "vestíveis", colados ao corpo. VICTOR CAPUTO No mundo das inovações, 2013 ficou marcado como o ano em que começamos a nos familiarizar com uma palavra que enrola a língua mesmo de quem tem o inglês como idioma nativo: wearables. Numa tradução livre, seria "vestíveis". O termo em inglês é o que passa a valer globalmente (assim como já acontece com os smartphones). Ele nomeia os aparelhos digitais usados vestidos no corpo. São relógios, camisetas, tênis, roupas e acessórios, todos em versões computadorizadas. Há dois exemplos famosos: as pulseiras de exercícios, como a Jawbone, os primeiros wearables a atingir o mercado popular, nas lojas desde 2011, e desenhadas para registrar dados de atividades físicas; e os tão falados óculos do Google, o Glass, cuja pré-venda, a 1500 dólares, começou neste ano, mas apenas para poucos clientes selecionados. Enquanto as pulseiras pareciam aparelhos restritos a um nicho — no caso, o dos esportistas —, o Glass mostrou que os wearables podem colonizar nossa vida. Nele, uma tela de computador, com funções similares às de um tablet (navegar na internet, usar o GPS, acessar aplicativos), fica posicionada à frente do olho direito e pode ser comandada pela voz e por gestos. É o retrato mais nítido do que são esses aparelhos e de como eles podem modificar o cotidiano. Até meados dos anos 70 tínhamos de ir a uma sala gigante para usar programas em computadores enormes. Depois, nos anos 80 e 90 começamos a ver o PC na mesa de escritórios e nos lares, acoplados a um mouse. Os smartphones recentemente puseram a tecnologia em nossos bolsos, alinhavada por dezenas de milhares de apps. Agora, os wearables podem representar o começo da aposentadoria de iPhones e iPads, dada a condição de esses novíssimos dispositivos digitais estarem colados ao corpo, como uma segunda pele. O mercado de wearables é recém-nascido. Em 2013 foram vendidos apenas 15 milhões de unidades desses aparelhos. Mas é animador pensar que em 2012 eram só 8 milhões. Em 2014, a chegada do Glass do Google às lojas deve impulsionar ainda mais as vendas. Até 2018, o crescimento deve ser de 3200%, com 485 milhões de dispositivos comercializados ao ano. A variedade também tende a aumentar. Hoje, os wearables estão restritos principalmente a pulseiras, relógios e óculos. Com raras surpresas, a exemplo de camisetas que registram dados relacionados a exercícios físicos. Mas laboratórios de empresas e universidades desenvolvem aparelhos variados, que, aos poucos, chegarão ao mercado — desde uma tiara que detecta ondas cerebrais até coletes com câmeras e projetores (veja o quadro ao lado). Alguns desses experimentos levam ao extremo o conceito de wearable. O engenheiro Paul Jacobs, CEO mundial da Qualcomm, a maior fabricante de chips do mundo, e investidor no Vale do Silício, investe em uma startup da Califórnia que desenvolve chips implantáveis no corpo humano. Esses dispositivos serão usados para que médicos possam acompanhar, continuamente e a distância, dados vitais de seus pacientes, como o nível de insulina no sangue. Se o nível ficar baixo no sangue de um diabético, por exemplo, um sinal alertará o usuário. "Se monitorarmos nossa saúde com agilidade e facilidade, viveremos mais e melhor", diz Jacobs. Os fabricantes enxergam longe. Além dos óculos, o Google estuda lançar smartwatches (nome dado aos relógios computadorizados) e roupas. A Samsung e a Sony já comercializam smarwatches. A Apple ainda não se posicionou formalmente, mas comprou patentes de vários tipos de wearable e, em setembro, contratou o designer Ben Shaffer, responsável na Nike pelo desenvolvimento de pulseiras computadorizadas. Tudo indica que em breve veremos smartwatches da Apple. Há sempre a tentação de considerar essas apostas tecnológicas como mera utopia. Muita coisa não andará, é verdade, mas quem um dia imaginou que os smartphones, em tão pouco tempo, em menos de uma década, permitiriam fazer tudo o que já fazíamos em um desktop? É bom, portanto, estar atento aos wearables. O avanço é rápido em virtude do vento econômico a favor. "O que permitiu essa evolução foi a exponencial redução do tamanho dos chips, que, em paralelo, ficaram baratos e potentes", disse a VEJA Sarah Epps, especialista em wearables da Forrester, consultoria americana com foco na área digital. É a famosa e infalível Lei de Moore, formulada em 1965 por Gordon Moore, fundador da Intel, segundo a qual a capacidade de processamento dos chips deve dobrar, sem aumento de custo, a cada dezoito meses. Hoje, um iPhone conta com chips 1300 vezes mais potentes que os de enormes computadores utilizados na missão Apollo 11, que levou os primeiros homens à Lua, em 1969. A ideia de criar aparelhos "vestíveis" é antiga. No século XVII, os chineses construíram um anel — obviamente analógico — equipado com um minúsculo ábaco (dispositivo usado para realizar cálculos). Em 1981, num experimento inovador, o escritor americano Thomas Bass juntou-se a uma equipe de físicos para desenvolver um computador que era colocado dentro de um sapato. Ele avisava ao usuário quais eram as probabilidades de ganhar em uma roleta ou em um jogo de cartas. O teste foi feito em Las Vegas e chegou-se à conclusão de que o aparelho aumentava em 44% a chance de vencer na jogatina. O extraordinário, nos wearables, é a capacidade que eles têm de diminuir o tempo de reação entre a intenção e o gesto do ser humano. Se há aparelhos já colados ao corpo, não é preciso tirá-los do bolso, eventualmente ligá-los, quase sempre fornecer alguma informação para obter algum tipo de resposta. Nos wearables é tudo mais imediato. A possibilidade de encher o corpo de máquinas divide a opinião entre cientistas e empreendedores. Há dois grupos: o dos que acreditam que os wearables tornarão nossa vida melhor; e o daqueles que acham que a inovação nos deixará dependentes dos aparelhos. "Eles farão com que as pessoas não consigam mais interagir com o ambiente sem a intermediação de um computador", diz o escritor americano Nicholas Carr, professor da Universidade Columbia e autor de The Shallows (Os Superficiais), sobre os efeitos negativos da internet no cérebro humano. Os defensores acham que essa postura neoludita é tola. Em Smarter Than You Think (Mais Esperto do que Você Imagina), o escritor canadense Clive Thompson aposta no apoio das tecnologias para dar músculos intelectuais à capacidade humana de memorizar, realizar cálculos e aprender tarefas complexas. Ele cita uma experiência feita com jogadores de xadrez que utilizam softwares para reforçar sua técnica. Depois de rápido treinamento, um iniciante auxiliado por um computador consegue até vencer um grande mestre. O tira-teima desse embate pode ser feito com o americano Gordon Bell, de 79 anos, icônico engenheiro da Microsoft. Bell registra digitalmente sua vida desde 1997 para quantificar tudo o que ocorre ao seu redor. Em 2001, desenvolveu um pioneiro wearable, que usa feito um pesado colar, com o qual filma, fotografa e grava registros de conversas (veja o quadro na pág. 226). Ou seja, ele vem experimentando um wearable diariamente, nos últimos doze anos. "Sim, minha memória de curto prazo ficou preguiçosa", disse Bell a VEJA. "Só que, ao mesmo tempo, lembro, sem o auxílio dos dispositivos, de fatos que ocorreram há uma década. Também tenho em mãos qualquer registro de minha vida, acessível a qualquer hora." MEMÓRIA DIGITAL Gordon Bell, icônico engenheiro da Microsoft, registra tudo o que ocorre em sua vida desde 1997 utilizando uma série de dispositivos: o SenseCam, wearable inventado por ele, com gravador e câmera que funcionam automaticamente, e sempre pendurado no pescoço; tablete; softwares para registrar telefonemas, e-mails e a navegação na internet, entre outros métodos. Em um dia, Bell guarda: 4 páginas de documentos de texto 30 e-mails recebidos ou enviados 3 horas de áudio 1450 fotos 30 páginas de internet 34 megabytes de dados variados SEMPRE CONECTADOS A consultoria americana BI Intelligence, especializada na indústria digital, estima que em 2018 serão vendidos 485 milhões de wearables (os aparelhos digitais que podemos vestir) por ano. Confira que tipos de dispositivos cobrirão nosso corpo — além dos smartphones e tablets dos quais já não desgrudamos. Um hacker no cérebro Disponível em: já nas lojas no exterior (por 130 dólares). Quando se usa: no trabalho ou para entretenimento O que faz: a tiara capta ondas cerebrais para possibilitar que se comandem aparelhos, como computadores, apenas com o pensamento. O tablete na frente dos olhos Disponível em: 2014 Quando se usa: a qualquer momento O que faz: os óculos funcionam como tablets, mas a tela — translúcida — fica à frente do olho direito. É possível usá-lo para navegar na internet, acessar aplicativos e traçar rotas no GPS Companheira de caminhadas Disponível em: já nas lojas no exterior (por 150 dólares) Quando se usa: a qualquer momento O que faz: são pulseiras, como a popular Jawbone, que registram o número de passos dados por dia, calorias queimadas em atividades físicas e a velocidade de uma corrida Além de mostrar as horas Disponível em: já nas lojas (por 589 reais) Quando se usa: a qualquer momento O que faz: o smartwatch (há modelos de fabricantes como a Sony e Samsung) é um relógio computadorizado que funciona de forma similar ao smartphone: faz ligações telefônicas e acessa a internet e aplicativos A roupa high-tech Disponível em: já nas lojas no exterior (por 399 dólares) Quando se usa: na prática de exercícios físicos O que faz: sensores espalhados pela camiseta da starup AiQ, de Taiwan, medem batimentos cardíacos, a taxa de respiração e a temperatura corporal, dados que podem ser consultados por um aplicativo de smartphone Nos dedos Disponível em: 2014 Quando se usa: a qualquer momento O que faz: anel que exibe se há novos e-mail ou notificações de redes sociais para ser conferidos. Também controla aparelhos, a exemplo da câmera fotográfica de um smartphone, a distância A VIDA, EM DADOS O engenheiro carioca Fábio dos Santos é integrante de um movimento conhecido como Quantified Self. Ele é formado por pessoas ávidas por ordenar dados do cotidiano. O grupo nasceu nos Estados Unidos e já está presente em 34 países. Santos fundou a versão brasileira em 2012, hoje com 51 participantes. Em sua rotina, ele usa aplicativos para anotar gastos; tem uma pulseira que registra atividades físicas e usa uma outra para identificar a qualidade do sono (descobriu que o ideal para ele é dormir seis horas e 45 minutos por dia) O MUNDO, EM CORES O artista plástico inglês Neil Harbisson usa um wearable para saber quais são as cores do mundo. Ele nasceu com acromatopsia, doença que faz com que ele enxergue tudo em preto e branco. Em 2004, como resultado de um experimento, passou a utilizar uma tiara com um sensor que capta cores do ambiente. O dispositivo faz com que cada cor vire uma nota musical. Na prática, Harbisson escuta o "vermelho", o "azul", o "roxo", como se fosse uma sinfonia. "É mais interessante ouvir pelo aparelho as cores dos produtos de um supermercado, que produzem uma sonoridade agradável, do que as da natureza", diz. TUDO CONTROLADO E MEDIDO – O TEMPO TODO O escritor americano A.J. Jacobs, de 45 anos, resolveu ser o "homem mais saudável do mundo" (segundo ele mesmo) depois de uma viagem em família para a República Dominicana, na qual quase morreu em decorrência de uma grave pneumonia, em 2009. Para atingir sua meta, adotou uma série de wearables. Começou com um pedômetro, destinado a contar seus passos em caminhadas. Com uma pulseira Fitbit, registra qualquer atividade física rotineira, da lavagem de louça a corrida no parque. Por meio do Zeo Sleep Manager, uma faixa presa à cabeça, coleta ondas cerebrais para registrar a duração e a qualidade do sono. Ele também baixou vários aplicativos de smartphones e tablets para ordenar tudo o que faz, como o MyFitnessPal, com o qual mede as calorias consumidas num único dia. A obsessão foi registrada no livro Drop Dead Healthy (Morto de Saúde), publicado em 2012 nos Estados Unidos. No processo, Jacobs descobriu que passar aspirador de pó em sua casa por uma hora queima 246 calorias. E que cozinhar a massa de um pão em um forno a lenha representa um gasto de 211 calorias. Fazer sexo de maneira calma, outras 70. Se for de forma vigorosa, 105. Até a publicação do livro, Jacobs registrava todas as informações coletadas em planilhas digitalizadas. Suas medições incluem dados detalhados, como a média de sua taxa de batimentos cardíacos, as horas diárias de sono, o número de passos dados por dia, o nível de decibéis do ruído dos ambientes que frequentou e o índice de testosterona de seu corpo. Ele emagreceu 7 quilos, controlou seu colesterol e ficou com uma saúde de ferro. Com um porém: "No fim do experimento, percebi que estava dedicando pouco tempo e atenção a minha família e quase virei um paranoico", diz. São as naturais possibilidades para quem pretende ter tudo controlado o tempo todo. 9#2 O HOMEM QUE NOS LEVARÁ A MARTE O inventor e bilionário sul-africano Elon Musk tem duas ambições: fornecer energia limpa e barata à humanidade e colonizar o espaço. Em 2013 ele provou que pode chegar lá. FILIPE VILICIC Grandes avanços científicos e tecnológicos quase sempre nascem de ideias simples, emolduradas por raciocínios complexos. A ideia simples que pode consagrar o sul-africano Elon Musk como um dos maiores visionários da história: precisamos colonizar outros planetas para preservar a civilização a longo prazo. Musk acredita ter encontrado a solução há um ano, quando acordou às 2 da madrugada com uma fixação. "Eu me toquei que foguetes movidos a metano e oxigênio podem atingir um impulso maior que 380", contou ele. Esse é seu raciocínio complexo. No jargão científico, significa que esse impulso, equivalente a 3,8 quilômetros por segundo, é suficiente para tirar um foguete da Terra e levá-lo a Marte. E, como Marte é cheio de dióxido de carbono (CO2) e permafrost — solo congelado com abundância de água (H2O) —, é possível converter esses elementos em metano (CH4) e oxigênio líquido (O2), que garantiriam o combustível para a viagem de volta. Ah, e convém lembrar que sempre é útil associar as tais ideias simples e elaborações sofisticadas a dinheiro, muito dinheiro. Musk tem de sobra. Ele se tornou bilionário em 2002, com a venda do PayPal, popular sistema de pagamentos pela internet que deu credibilidade a negociações on-line, ao eBay, por 1,5 bilhão de dólares. Resolveu usar a fortuna para fundar, no mesmo ano, a SpaceX, a maior empresa de exploração do cosmo, dona de contratos bilionários com a Nasa, a agência espacial americana. A SpaceX foi, em 2012, a primeira companhia privada a atracar uma sonda na Estação Espacial Internacional. No começo, era apenas uma piada, dado o alto risco de o negócio fracassar. A charada engraçadinha: "Você ouviu a notícia do cara que fez uma pequena fortuna na indústria espacial? Só que ele começou com uma fortuna maior". Musk respondia, com humor: "Estava tentando imaginar a forma mais rápida de transformar uma grande fortuna numa pequena". A SpaceX era um sonho de criança. Na infância, além de brincar de desenvolver códigos de programação, o sul-africano criava modelos de foguetes. E já imaginava como seria ir para a Lua. Aos 17 anos, mudou-se para o Canadá, terra natal de sua mãe. Depois foi para os Estados Unidos, estudar física e administração na Pensilvânia. Formado, começou um doutorado na renomada Universidade Stanford, no Vale do Silício. Largou o curso no segundo dia para se dedicar ao empreendedorismo, já com a cabeça definitivamente nas estrelas. O próximo passo, ele reafirma com a rotina dos obcecados, será Marte. Musk, de 42 anos, não é de desistir, daí a relevância de sua posição entre os visionários da atualidade. Frequentemente comparado a Steve Jobs em sua avidez inovadora, sem medo de errar, ele debutou na internet, antes do extraordinário salto criativo do PayPal, de maneira tímida. Sua primeira empresa nada tinha de fenomenal. A Zip2 administrava softwares para empresas da imprensa americana, a exemplo do jornal The New York Times. Mas ele conseguiu vendê-la por 341 milhões de dólares para seguir criando. Na circulação de dinheiro pela internet, nas viagens espaciais e, mais recentemente, no desenvolvimento de energia limpa e barata. É o seu barato da hora. "É decisivo que tenhamos a produção de energia sustentável, independentemente das preocupações ambientais. Mesmo que produzir CO2 fosse bom para a natureza, teríamos de operar de forma sustentável, visto que ficaremos sem hidrocarbonetos (base dos combustíveis fósseis) em dado momento", reflete. Essa elaboração é o alicerce da Tesla, montadora de carros elétricos, e da SolarCity, desenvolvedora de painéis solares para residências americanas. Um terceiro caminho é o Hyperloop, projeto de um sistema de transportes rápido, de baixo custo e movido a energia sustentável (veja o quadro ao lado). Com a Tesla, a ideia de Musk é fornecer transporte sustentável a todos. O problema: o primeiro automóvel a sair da linha de montagem custava mais de 100.000 dólares. Musk explica: "Começamos com poucas unidades do esportivo Roadster. Daí, criamos o Model S, que custa 50.000 dólares. A terceira geração, que deve ser lançada em três anos, será de 30.000". Hoje a Tesla está na segunda fase do plano e o Model S já é o carro elétrico mais popular dos Estados Unidos. A ousadia quase o levou à falência. Durante a crise econômica que atingiu os Estados Unidos em 2008, a SpaceX e a Tesla estiveram perto de fechar. O que o manteve de pé? Musk preferia falir a abandonar as grandes causas de uma vida inteira, a exploração espacial e o zelo com energia limpa. A turbulência passou. A aposentadoria dos ônibus espaciais da Nasa, em 2011, lhe garantiu um contrato de 1,6 bilhão de dólares para dar inicio à privatização da exploração do cosmo, e a Tesla vale atualmente 18 bilhões de dólares. Musk, cuja figura é frequentemente colada à imagem de um personagem de ficção, Tony Stark, o Homem de Ferro, que alterna a vida de bilionário com a de herói, acumula uma fortuna de 6,7 bilhões de dólares. Assim como Stark, o sul-africano é conhecido por ser arrogante e impaciente com quem considera de intelecto inferior (quase todos que o circundam). Tê-lo por perto é irritante — mas não tê-lo pode ser pior. É muito provável que a humanidade tenha um futuro cada vez melhor se as inovações de Musk vingarem, e delas brotarem outras. Ao ser perguntado sobre qual é seu segredo para o sucesso, ele responde: "Penso pelo raciocínio da física. Quando você quer fazer algo novo, tem de imaginar como descobrir coisas que não são intuitivas, como a mecânica quântica". Ou então a colonização de outros planetas. O crescimento dos negócios de Musk ao longo de 2013 fez dele um personagem incontornável, ao redor de quem circularão algumas das boas surpresas de nosso tempo. AS SACADAS DE MUSK As principais inovações que fazem do bilionário sul-africano um empreendedor e inventor constantemente comparado a nomes como Steve Jobs. Ele atua em três áreas: internet, exploração espacial e energia sustentável. INTERNET PayPal - Comprar on-line, com segurança Quando fez: 1998 A sacada: o PayPal soluciona a insegurança que se tem ao negociar pela rede. O sistema de pagamento garante que o vendedor receba seu dinheiro e o comprador, o ressarcimento caso o produto não seja entregue. EXPLORAÇÃO ESPACIAL A privatização do cosmo Quando fez: 2002 A sacada: calculou que uma empresa poderia explorar a região do espaço próxima à Terra por menos de um terço do que custa uma mesma missão feita pelo governo americano. Nasceu a SpaceX, cujo objetivo máximo é levar o homem a Marte nas próximas décadas. ENERGIA SUSTENTÁVEL Movidos a eletricidade Quando fez: 2003 A sacada: fabricou automóveis com baterias de íons de lítio — antes restritas a dispositivos menores, como celulares —, o que permite que veículos elétricos alcancem 300 quilômetros por hora com menos gasto de energia (de quebra, criou os primeiros carros do tipo com design atraente). VIAGENS A 1220 QUILÔMETROS POR HORA Quando fez: 2013 A sacada: seu projeto de um sistema de transporte por cápsulas (semelhantes a vagões de trem) pretende usar eletromagnetismo e energia solar para conduzir pessoas a 1220 quilômetros por hora, o que ligaria São Paulo ao Rio de Janeiro em 21 minutos. 10# RETROSPECTIVA 2013 – CARTA DE PRINCÍPIOS – 25.12.13 A FAVOR DO BRASIL Roberto Civita morreu aos 76 anos, em 26 de maio último, quatro meses antes do 45º aniversário de VEJA, revista que ele criou e nutriu com base em princípios éticos que se legitimaram e se fortaleceram cada vez, das tantas, que foram submetidos aos rigorosos testes de realidade. Em seus últimos anos de vida, Roberto se entregou à tarefa de institucionalizar aqueles princípios — ou seja, perpetuá-los de modo que pudessem subsistir na ausência dele como parte indissociável da Abril e de suas revistas, em especial de VEJA. A institucionalização está feita. VEJA se mantém firme na trajetória vitoriosa que fez dela a maior, mais lida e mais respeitada revista do Brasil. Uma análise de sua história de quase meio século mostra como traços definidores a independência, a coragem, o compromisso com a busca honesta da verdade, a disposição inarredável de servir em primeiro lugar ao leitor e, nisso, posicionar-se sempre a favor do Brasil. VEJA é a favor da educação e da liberdade de expressão. Por isso, aponta os obstáculos burocráticos, os erros na definição de prioridades, os gastos malfeitos e as ideologias retrógradas que põem em risco o acesso amplo dos brasileiros à educação de qualidade e ao livre fluxo de informações. VEJA é a favor da economia de mercado, pois a enxerga como a maneira mais eficiente de elevar o padrão de vida da maioria dos brasileiros. A economia de mercado é também o pilar material inseparável da democracia representativa, que, lembremos, pode não ser um sistema político perfeito, mas é melhor do que todos os demais. VEJA nunca se escusou do dever de relatar claramente os fatos denunciadores de situações que põem em perigo os fundamentos da democracia e das liberdades dela derivadas. Ser a favor do Brasil nos leva a mostrar o equívoco de enxergar na inflação um subproduto inevitável do crescimento econômico. A inflação é o mais cruel dos impostos, pois atinge mais fortemente os mais pobres. Da mesma forma, VEJA se posiciona a favor do Brasil quando mostra os erros de uma política econômica que se vale de artifícios para segurar a inflação, o que apenas adormece sua brasa. Por fim, institucionalizado está em VEJA o compromisso de cobrar transparência dos políticos e dos governos de todos os matizes ideológicos. A corrupção é ao mesmo tempo a doença e o sintoma da decadência de uma sociedade. VEJA vai continuar fiscalizando o poder e se mantendo fiel à nobre missão divisada por Rui Barbosa: "A imprensa é a vista da nação. Por ela é que a nação acompanha o que lhe passa perto e ao longe, enxerga o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam, ou roubam, percebe onde lhe alvejam, ou nodoam, mede o que lhe interessa, e se acautela do que a ameaça". Roberto Civita (1936-2013)