0# CAPA 25.3.15 VEJA www.veja.com Editora ABRIL Edição 2418 – ano 48 – nº 12 25 de março de 2015 [descrição da imagem: foto de rosto do presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha] A SÚBITA FORÇA DE EDUARDO CUNHA Quem é, o que pensa e qual é o jogo do presidente da Câmara dos Deputados, que se tornou o político mais poderoso do Brasil. [outros títulos: parte superior da capa] VEM PRA RUA O líder do movimento diz que os protestos despertaram a consciência dos jovens brasileiros. MAIS MÉDICOS Áudio da Band mostra que o objetivo é mesmo mandar dinheiro dos brasileiros para Cuba. MARCAS DA ÁGUA Se você ainda não economiza, depois de assistir a esse filme vai passar a economizar. _______________________ 1# SEÇÕES 2# PANORAMA 3# BRASIL 4# ECONOMIA 5# INTERNACIONAL 6# GERAL 7# ARTES E ESPETÁCULOS _____________________________ 1# SEÇÕES 25.3.15 1#1 VEJA.COM 1#2 CARTA AO LEITOR – “FORA DAS INSTITUIÇÕES NÃO HÁ SALVAÇÃO” 1#3 ENTREVISTA – ROGERIO CHEQUER – O GOVERNO VAI TER DE OUVIR 1#4 MAÍLSON DA BÓBREGA – RISCOS DOS FREIOS À TERCEIRIZAÇÃO 1#5 LEITOR 1#6 BLOGOSFERA 1#1 VEJA.COM OPERÁRIOS DA IGREJA CATÓLICA Os diáconos surgiram no catolicismo com a função primordial de poupar os apóstolos das tarefas práticas e deixá-los com tempo livre para divulgar a palavra de Deus. Essa colaboração foi fundamental para a expansão do cristianismo. Com o tempo, a Igreja passou a valorizar menos o serviço e mais a liturgia. Nos últimos anos, no entanto, esses operários da Igreja vêm reconquistando espaço. Uma das razões para isso é que a vocação não exige a mesma renúncia radical dos padres: é possível casar e trabalhar fora da Igreja. Segundo o último censo da Igreja Católica, obtido com exclusividade por VEJA, o número de diáconos cresceu 116% entre 2004 e 2014, aumento três vezes superior ao de padres. PARTEIRO DE STARTUPS Estima-se que entre 80% e 90% das startups morram antes do segundo ano de vida. Com várias delas no currículo, o americano Adeo Ressi vem reduzindo essa mortalidade. Criador do Founder Institute, ele desenvolveu um rigoroso método de seleção e treinamento de empreendedores que ostenta um sucesso de quase 90% entre mais de 1500 negócios — e que pela primeira vez será oferecido no Brasil. Em entrevista a VEJA.com, Ressi fala sobre as razões do sucesso — e do insucesso — das empresas nascentes. A CIÊNCIA CONTRA A INCERTEZA O ovo é benigno ou um vilão da nutrição? Suplementos vitamínicos são milagrosos ou inócuos para a saúde? Uma visita ao repertório de pesquisas científicas trará respostas contraditórias a essas e a muitas outras questões da medicina. Para contornar a incerteza foram criadas as metanálises, compilações estatísticas de um mesmo assunto em busca da melhor evidência possível. Reportagem em VEJA.com mostra que esse tipo de estudo tem desvendado erros e falhas de método, ao revelar que as conclusões a que chegam alguns cientistas não estão amparadas nos dados que eles próprios coletaram. Mais importante, as metanálises aumentam o grau de confiança que se pode atribuir a certas teses: uma avaliação abrangente de 27 estudos sobre suplementos de vitaminas, por exemplo, demonstrou que não existe nenhuma evidência estatística de sua eficácia sobre a longevidade, a prevenção do câncer ou doenças cardiovasculares. 1#2 CARTA AO LEITOR – “FORA DAS INSTITUIÇÕES NÃO HÁ SALVAÇÃO” Como a natureza, o poder abomina o vácuo. Na política, quando alguém fica fraco, outro se fortalece. É o que ocorre agora em Brasília. Dilma Rousseff ainda não completou três meses de governo e os sinais de fadiga de material emanados do Palácio do Planalto são tão evidentes que se poderia dizer que ela está em fim de segundo mandato. Dilma não pode aparecer em público sem que desperte um coro de vaias. Suas entrevistas coletivas ou pronunciamentos à nação pela televisão são a senha para que as pessoas abafem suas palavras com panelaços. Para tentar contornar isso, a assessoria do Palácio está expondo a presidente no ar sem aviso prévio e em horários inusitados, na hora do almoço ou no meio da tarde, quando as mães e os pais de família estão mais ocupados em seus afazeres. Seis em cada dez brasileiros, mostram as pesquisas, consideram o atual governo ruim ou péssimo. A maior queda de popularidade da presidente ocorreu justamente entre o contingente de eleitores que lhe deu a vitória nas urnas em outubro passado. O ocaso de Dilma está ajudando a elevar no horizonte político a figura de Eduardo Cunha, o deputado federal pelo PMDB do Rio de Janeiro que, contra a vontade do Executivo, foi posto pelos seus pares na presidência da Câmara. Cunha é o personagem de uma reportagem especial desta edição de VEJA dedicada a explicar o novo arranjo de forças em Brasília depois das manifestações populares do domingo 15 de março. O governo ficou perplexo e sem ação com a inesperada magnitude dos protestos, em especial em São Paulo, onde mais de 1 milhão de pessoas formaram um mar verde-amarelo na Avenida Paulista. O grito das ruas não pode ser desmembrado das crises na economia e na política com as quais a presidente já estava tendo de lidar. Em horas como essa, os chefes do Executivo buscam apoio em seus aliados no Congresso. Em horas como essa, o que tem ocorrido no Brasil desde a redemocratização, há trinta anos, é o presidente da Câmara servir como uma das tábuas de salvação do presidente. Não é o caso agora. Cunha decidiu encarnar a independência dos poderes interpretando ao pé da letra a Constituição. A reportagem de VEJA mostra como ele exerceu esse papel no episódio que levou à demissão de Cid Gomes, o ministro da Educação que, da tribuna da Câmara, o ofendeu e aos demais deputados chamando-os de "chantagistas". Por qualquer ângulo que se examine o quadro político, o que se nota é uma presidente acuada pela impopularidade, pela falta de apoio do seu próprio partido, o PT, e pela súbita tomada de posição do Parlamento, algo que fazia muito não se via no Brasil. Este momento único pode degenerar em uma briga de personalidades — Dilma versas Cunha —, o que seria ruinoso. Mas pode também ser o momento de reequilíbrio da correlação de forças na democracia brasileira, há tempos marcada por um Executivo degraus acima do Legislativo e do Judiciário. Tudo vai acabar bem se os atuais detentores do poder em Brasília e os manifestantes das ruas não se afastarem da máxima simples e poderosa lembrada por Carlos Ayres Britto, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal: "Fora das instituições não há salvação". 1#3 ENTREVISTA – ROGERIO CHEQUER – O GOVERNO VAI TER DE OUVIR O líder do Vem pra Rua diz que protestar ajuda a formar uma geração mais exigente e promete que, ao contrário de 2013, "o gigante acordou e não vai dormir mais tão cedo". PEDRO DIAS LEITE No dia 4 de outubro do ano passado, véspera do primeiro turno da eleição presidencial, o engenheiro e empresário Rogério Chequer, de 46 anos, era uma das cinco pessoas presentes a um protesto convocado por ele contra o governo da presidente Dilma Rousseff em frente ao Parque do Ibirapuera, em São Paulo. Menos de duas semanas depois, eram 300 os manifestantes que compareceram a um segundo ato. No domingo 15, Chequer estava entre mais de 1 milhão de pessoas que tomaram a Avenida Paulista na maior manifestação política em trinta anos de democracia no Brasil. Líder de um dos grupos que organizaram o protesto, o Vem pra Rua, Chequer afirma que as manifestações de domingo, e as que estão por vir, não repetirão 2013. "Agora o gigante acordou e não vai dormir mais tão cedo." Na entrevista que concedeu a VEJA, ele diz por que acredita que desta vez os protestos não vão arrefecer. Antes da marcha, os organizadores mais otimistas falavam em 100.000 manifestantes em São Paulo, mas, no fim, mais de 1 milhão de pessoas compareceram. No país todo, foram mais de 2 milhões. O que levou tanta gente a aderir aos protestos? As pessoas que foram às ruas queriam mostrar a sua indignação diante da corrupção, da ineficiência dos serviços públicos e da falta de honestidade no discurso de quem está no poder. Mas ficou muito claro para mim que, se existe algo que une tudo isso, é a sensação que as pessoas têm de estar sendo desrespeitadas pelos que estão no poder. Essa recusa do governo em assumir seus equívocos, a insistência em tomar decisões apenas para beneficiar a sua turma e não a população, isso tudo provoca nas pessoas uma tremenda sensação de que elas não estão sendo respeitadas. O que acho que aconteceu foi que muita gente percebeu que, a partir do momento em que se junta a um grupo, a uma multidão, deixa de estar solitária na sua indignação. E começa a acreditar que pode brigar contra esse desrespeito. Mas não é a primeira vez que os insatisfeitos se juntam em grupos. O Cansei, em 2007, foi uma iniciativa com proposta parecida. Por que agora a reação tem sido diferente? Primeiro, porque o número de insatisfeitos nunca foi tão grande. Em outubro passado, como demonstraram as urnas, nós já somávamos pelo menos 51 milhões de pessoas. Desde então, isso só aumentou — não apenas em quantidade, mas em intensidade também. Mas acho que o fato novo é que antes as pessoas não sabiam o que fazer com a indignação e agora sabem. Como assim? A sensação de indignação é uma força poderosa, mas as pessoas não sabem o que fazer com ela. Acabamos reclamando com os outros — para o colega de escritório, para a mulher. Só que, em geral, nos queixamos a quem está indignado também, o que faz com que o efeito da reclamação seja nulo. Vira uma flagelação coletiva — todo mundo sofre e nada acontece. Então, sinto que agora começamos a descobrir como canalizar essa energia. Quando marcamos um lugar para encontrar outras pessoas que querem expressar essa mesma revolta, nossa voz passa a ser escutada por quem está na rua, pela imprensa, pelo governo. Ou seja: em vez de reclamarmos para o nosso colega de trabalho, passamos a reclamar para quem tem de receber essa reclamação. E agora o governo vai ter de escutar. Mas o movimento já existe há algum tempo, o que significa que, mesmo com toda essa indignação, os protestos demoraram a engrenar. Por quê? O brasileiro é acomodado, dificilmente se engaja, sobretudo politicamente. Mas penso que isso é consequência principalmente de uma descrença generalizada na política e nos políticos e na capacidade da sociedade de alterar esse quadro. Quando você cresce acomodado, deixa de acreditar que é possível mudar e passa a achar que nada pode ser feito. Uma das frases mais comuns que ouço quando digo que quero tentar mudar alguma coisa é: "Não adianta". E como acabar com esse conformismo? Nós, do Vem pra Rua, decidimos pelo seguinte caminho: em vez de tentarmos enumerar todos os erros do PT, apenas chamamos as pessoas para manifestar sua indignação. Conseguir pôr esse sentimento para fora já é fascinante. Agora, precisamos trabalhar para que não ocorra o que se deu em 2013, quando "o gigante acordou", mas logo dormiu de novo. Não queremos apenas despertar o gigante, queremos que a força da sociedade ordeira, construtiva se incorpore à cultura brasileira e ajude a, de fato, melhorar o país. E o que o leva a crer que esse movimento agora será mais duradouro do que foi o de 2013? Talvez o fato de que, desta vez, as pessoas estão bravas, mas, ao mesmo tempo, se sentindo realizadas. Essa sequência de manifestações está criando uma nova geração de brasileiros. Você viu a quantidade de crianças que havia nas manifestações de domingo em São Paulo e nas outras cidades? Elas vão crescer com outra cabeça, com uma tolerância muito menor do que a nossa para esses abusos do governo. Elas não vão aceitar um décimo do que a nossa geração tem aceitado há anos. Outra característica que chamou atenção em protestos como o de São Paulo foi a relação amigável que se viu entre as pessoas que foram às ruas e os policiais militares. É verdade. Uma das muitas falsas premissas que a gente ouve por aí é que a Polícia Militar é parcial, é "do mal", está sempre "contra o povo". Mas o que foi que se viu no domingo? Nenhuma vitrine quebrada, tudo acontecendo em plena ordem, e tudo isso, em grande parte, graças à PM, inclusive em estados de administração petista. Diante dessa constatação, muita gente começa a pensar: então é possível fazer uma manifestação e a polícia estar na rua para garantir a nossa segurança? Isso é algo que deveria ser óbvio, mas não é. Crescemos com paradigmas errados, e aí, quando a gente passa para a normalidade, estranha. Apoiadores do governo disseram que os últimos protestos representam um movimento da "elite branca". O que o senhor acha dessa afirmação? Em primeiro lugar, quem fala isso não esteve nas manifestações para ver o que aconteceu. Porque, se tivesse ido, teria visto brancos, pardos, negros, gente mais velha, gente mais nova. Uma hora, de cima do caminhão, comecei a chamar: "Quem são as pessoas da periferia da Zona Sul de São Paulo?". E grupos enormes levantavam a mão. "E da Zona Leste? Guarulhos? Osasco?" Mais grupos levantavam a mão. O governo tenta, de forma enviesada e injusta, uniformizar as pessoas. Quanto mais o movimento cresce, mais ele aumenta nas classes C, D e E. No começo, era mesmo bem mais elitizado. Mas isso nunca me incomodou. Por quê? Porque as coisas têm de começar de algum jeito, e não tem um jeito certo ou errado para isso. Por que a elite vale menos, ou tem menos voz, ou deveria ser menos considerada? Se o movimento começou com a elite, que bom que alguém começou. Dizer o contrário é uma forma de preconceito. Somos iguais ou não? Isso é inacreditável vindo de um partido que hasteava a bandeira da igualdade e agora prega o conflito de classes, entre ricos e pobres, empresários e trabalhadores. O interessante é que ricos e pobres, empresários e trabalhadores, todos, têm uma coisa em comum: eles pagam impostos. E, nesse caso, quem está do outro lado é o governo, que recebe o dinheiro. O senhor diz que o Vem pra Rua é um movimento suprapartidário, mas vocês apoiaram o candidato Aécio Neves, do PSDB, nas eleições presidenciais de outubro. Deixe-me fazer um pequeno retrospecto. Nossa primeira manifestação foi em 4 de outubro. Apareceram quatro pessoas — cinco, contando comigo. No dia 16, na segunda manifestação, já reunimos umas 300. Só que todo mundo se identificou tanto com aquilo que começou a chamar mais gente. É claro que as eleições ajudaram, porque, sendo o protesto contra o governo, ele se confundia com a campanha. Da nossa parte, como éramos contra a candidata Dilma Rousseff, não havia alternativa a não ser apoiar a oposição, fosse quem fosse. Se a Marina Silva tivesse ido para o segundo turno, nós a teríamos apoiado. Mas foi o único momento em que o movimento apoiou um candidato. E isso não se repetirá? Nós somos críticos do governo, e só. O movimento é suprapartidário. A partir do momento em que nos aliarmos a algum nome ou sigla, criaremos conflitos de interesse. Precisamos ter a prerrogativa e a liberdade de poder monitorar ou criticar políticos e governantes de qualquer partido. Isso quer dizer que se um político do PSDB, por exemplo, fizer algo de que vocês discordam, vocês também irão para a rua protestar? Sim, mas é preciso tomar cuidado. A quantidade de coisas erradas que os governantes fazem é tão grande hoje que, se começarmos a atacar a tudo e a todos, perderemos o foco. Para ficar claro: de onde devemos começar a mudança? De cima, é o que achamos. Como diz o ditado: escada se lava de cima para baixo. Depois, quase todos os nossos colaboradores têm uma atividade profissional, precisam trabalhar oito, dez, doze horas por dia. Ninguém aqui vive disso. Temos de ter foco. Como se organiza uma mobilização como a de domingo em São Paulo? Pode ser difícil de acreditar, mas não temos uma estratégia azeitada. O que temos são canais em todas as redes sociais. No WhatsApp, por exemplo, o Vem pra Rua tem um grupo que reúne mais de 8000 integrantes. Essas pessoas acabam repassando as informações aos seus amigos, por meio de seus próprios grupos, e a partir daí a coisa vai se disseminando. No Facebook, o indicador mais interessante para medir o nível de engajamento das pessoas é o total dos que curtiram, comentaram ou compartilharam o conteúdo do Vem pra Rua: na semana anterior ao 15 de março, 1 milhão de pessoas fizeram ao menos uma dessas três coisas. E, quando elas fazem isso, esse material aparece na timeline de alguns dos seus amigos. Então, pelas nossas contas, o chamado do Vem pra Rua atingiu mais de 11 milhões de pessoas só nessa rede social, o que ajuda a explicar por que tanta gente foi às manifestações. Como vocês se financiam? É importante esclarecer que nenhum dos cerca de cinquenta colaboradores do Vem pra Rua recebe um centavo. Além disso, os custos de uma manifestação são muito mais baixos do que você pode imaginar. Na de 15 de março, gastamos em torno de 20.000 reais. Só com a venda de camisetas arrecadamos perto disso. Metade desse valor foi para o aluguel de um caminhão de som ultrapotente e o resto foi gasto com cartazes, faixas, balões. É muito menos do que todo mundo imagina. Esse equívoco de avaliação é um dos motivos que fazem com que muita gente fique tentando encontrar um partido ou uma organização empresarial por trás do nosso movimento. Não tem. Vocês hoje são contra o impeachment. Podem mudar de ideia no futuro? Não somos contra o impeachment. O correto é dizer que não somos a favor dele agora. É algo que ainda não tem sustentação jurídica, já que até agora não se conseguiu provar o envolvimento da presidente no petrolão. A possibilidade sempre vai estar no nosso radar, mas não queremos desperdiçar a energia das pessoas. Mesmo porque, se tratarmos o impeachment como meta e ele não ocorrer, a sociedade vai ficar com a impressão de que não adianta fazer as coisas. Temos assuntos mais urgentes: um dos mais importantes é fiscalizar para que todos os processos de investigação e denúncia dos políticos e de todo mundo que fez mal uso do dinheiro público sejam feitos sem interferência, sem pressões. Precisamos começar a mudar o Brasil mesmo com esse governo que está aí. 1#4 MAÍLSON DA BÓBREGA – RISCOS DOS FREIOS À TERCEIRIZAÇÃO A terceirização é mais um avanço na maneira de produzir e organizar as empresas e o mercado de mão de obra que tem caracterizado o sistema capitalista ao longo dos séculos. Nesse processo, um terceiro (geralmente uma empresa) é contratado para fazer parte de um bem ou realizar serviços específicos. Trata-se de nova etapa da divisão do trabalho, que é a separação da atividade econômica em crescente número de tarefas. Émile Durkheim criou a expressão ao discutir a evolução social, mas foi Adam Smith quem primeiro percebeu sua importância econômica. Para ele, a divisão do trabalho constituía elemento-chave para a prosperidade, pois é um meio para produzir de forma mais eficiente e barata. A terceirização começou a se expandir nos Estados Unidos durante a II Guerra diante da necessidade de ampliar rapidamente a produção bélica. Explodiu na década de 80 na esteira da globalização. Antes, prevalecia a integração vertical, em que a empresa produzia tudo ou quase tudo. Isso porque não havia um mercado amplo e confiável de bens e serviços que pudessem ser contratados. Nesse ambiente, a divisão do trabalho entre empresas distintas tinha limites. Foi o caso da americana Ford, a pioneira na linha de montagem de automóveis. A empresa operava um complexo industrial integrado em Dearborn, Michigan, às margens do Rio Rouge, o qual foi concluído em 1928. O complexo ocupava 1,5 quilômetro quadrado, empregando mais de 100.000 trabalhadores. Ali havia porto e unidade de geração de energia. Produziam-se aço, autopeças e pneus necessários à manufatura de automóveis. A Ford tentou até mesmo extrair a borracha na Amazônia brasileira. Hoje, há mercado para tudo e para a terceirização. Vigora a lógica da integração horizontal. Apple é um bom exemplo. A empresa terceirizou o iPhone na Alemanha, no Japão e na Coreia do Sul. A montagem é feita na China. Na sede, trabalham designers, advogados e gerentes financeiros que cuidam do projeto e da comercialização do celular. Com a elevação da produtividade, o preço cai, a demanda e a produção crescem e a renda aumenta. No fim, todos, trabalhadores, empresários e consumidores, ganham. No Brasil, à falta de uma legislação própria para a terceirização de serviços, o assunto passou a ser regido pela súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho, que a permite apenas para atividades-meio. Muitas vezes, porém, é difícil distinguir atividade-fim de atividade-meio, inclusive porque elas podem ser intercambiáveis à medida que avançam os processos produtivos. A súmula cria ambiguidades, acarretando milhares de causas trabalhistas e incertezas às empresas. Historicamente, houve resistência às mudanças no modo de produzir. Em 1811, surgiu na Inglaterra o movimento luddista, que pretendia, mediante a destruição de máquinas, restaurar empregos perdidos com a mecanização. Não se percebia que a nova forma de produzir elevava a produtividade. A economia crescia. Postos de trabalho surgiam crescentemente noutros lugares. A dificuldade de entender novas realidades chegou aos dias atuais. Está presente no Brasil em relação à terceirização. Sindicalistas querem proibi-la. Juízes buscam limitá-la. A resistência nutre-se de mitos — como os da precarização do trabalho, da redução de direitos e da geração de informalidade — que podem ser desfeitos por argumentação minimamente racional. Essa resistência é influenciada pela visão da Justiça do Trabalho: a de que o trabalhador é hipossuficiente, isto é, não sabe defender seus direitos. Freios à terceirização podem inibir a realização de ganhos de produtividade, que são essenciais para a competitividade das empresas, o crescimento da economia e a geração de renda, emprego e bem-estar. Ao contrário do que se diz, a terceirização contribui para formalizar relações de trabalho. É preciso, pois, regular o assunto em lei. Um bom ponto de partida vem a ser o projeto que se encontra sob exame da Câmara Federal. Seu objetivo é estabelecer regras claras para proteger os interesses dos trabalhadores e eliminar incertezas que rondam as empresas nas quais a terceirização é necessária. Há que combater vertentes modernas do luddismo. A MAÍLSON DA NÓBREGA é economista 1#5 LEITOR DILMA E A REALIDADE DO BRASIL Sobre a reportagem "E o governo mal começou..." (18 de março), acredito que mudar o atual governo usando o impeachment não seja a solução mais adequada. Primeiro, porque não há fatos concretos que embasem juridicamente esse instrumento. Depois, porque precisamos definitivamente aprender a votar, afinal os políticos são eleitos por nós mesmos. O primeiro governo Dilma foi um desastre e, mesmo assim, ela foi eleita para um segundo mandato. Muitos eleitores deixaram de votar, o que fez uma enorme diferença. Portanto, devemos engolir o atual mandato, sem deixar de expressar nossa opinião. Mas que sirva de alerta aos próximos pleitos eleitorais, pois Fernando Collor de Mello, Paulo Maluf e outros estão com mandatos atualmente no Congresso não por obra do acaso. NEWTON CABRAL DE ALBUQUERQUE Brasília, DF Tento não ser pessimista, mas, se Dilma renunciar ou for impedida, cairemos todos nas mãos de Michel Temer e seus peemedebistas amestrados. Não seria a vitória da democracia. Paciência a todos nós! REGINA PADILHA Salvador, BA Acompanho perplexa o desenrolar dos fatos no Brasil, onde tenho parentes. Poxa, Dilma! Não tente adiar sua inevitável despedida do poder. Peça para sair, já! SÔNIA SOARES Lisboa, Portugal, via tablet Neste momento, a melhor saída para a presidente Dilma é a sua desfiliação do PT e deixar que a PF e o Judiciário conduzam as investigações e as posteriores aplicações das penas correspondentes aos culpados, mas sem se filiar aos esquerdistas radicais, nem tampouco ao famigerado PMDB. VALMY SALES Natal, RN Mesmo com a alma carregada de democracia, no Brasil está ficando difícil acreditar em tudo que é dito pelo governo da presidente Dilma Rousseff. O pior é que essa descrença está se estendendo também pelo poder Judiciário, o único refúgio de esperança. JOSÉ HENRIQUE GOMES GONDIM Natal, RN CAPA DE VEJA Em meio à onda de impeachment, panelaços, destruição de mudas de eucalipto e fumaça de pneus queimados enegrecendo os céus no Brasil, a melhor peça de ciência política quem me pregou foi meu netinho, o Luis Antonio, que articulou suas primeiras palavras há pouco mais de um ano. Quando me viu lendo a edição 2417 de VEJA (18 de março), ele olhou para a capa com a presidente Dilma de olhos vendados com a faixa presidencial e sapecou: "Vô, é a Dilma brincando de esconde". LUÍS GONZAGA DE PAIVA FILHO Teresina, PI Nada como a sabedoria proverbial ("Uma imagem vale mais que mil palavras") para definir a sensacional capa de VEJA. Embora a ideia já tenha sido publicada em 2006, com Lula vendado, ela permanece atual e reveladora. NEWTON DE OLIVEIRA ARAÚJO São Paulo, SP A presidente Dilma deve sofrer de alguma distrofia ocular. Não é possível que não enxergue o que está acontecendo ao seu redor. ARTUR CERRI São Paulo, SP CARTA AO LEITOR Lula e Dilma deixaram de lado as promessas e embrenharam-se na neblina do desmando. A faixa presidencial vendou seus olhos ("A faixa providencial", 18 de março). O povo não merece o governo que tem. Precisa mudar. ARISTEU DE OLIVEIRA Formosa, GO MST Retrógrado e assustador o discurso que o líder dos sem-terra João Pedro Stedile proferiu na Venezuela por ordem da cúpula do PT ("Mercenários em ação", 18 de março). Trata-se de uma persona non grata para o Brasil, pois sempre incitou o MST a invadir propriedades particulares, quebrar centros de pesquisas, bloquear rodovias e praticar uma série de vandalismos notórios. Agora se acha no direito de conclamar os chavistas a formar uma liga das nações latinas em defesa de um Brasil petista ditatorial. É demais! Esse homem, apadrinhado do PT, representa um grande perigo para a sociedade brasileira, pois lidera um exército de mercenários que há muito perdeu a sua identidade com a terra. Não se pode chamá-los de agricultores, pois esse nome digno não mais os caracteriza. ROSÂNGELA MARIA ANGELO FELIPE Vitória, ES João Pedro Stedile, um cidadão fora da lei, cleptomaníaco, pau-mandado do Lula, que agora virou agitador. Muito me envergonha um ex-presidente incentivar esse desocupado a promover badernas e invasões de propriedades produtivas. Inclusive a picanha que ele consome vem do agronegócio que ele tanto contesta. Stedile precisa entender que boa parte do PIB brasileiro é responsabilidade do agronegócio. Isso, sim, traz divisas para o Brasil. O negócio do MST é atrapalhar quem trabalha. É uma quadrilha que quer implantar o sistema bolivariano-cubano em nosso país. LUIZ BUZETTI FILHO Paranaíba, MS É um absurdo o poder que o MST possui, hoje, no governo federal. Vemos o abuso de invasões, depredações, fechamento de rodovias, e não temos uma ação concreta deste governo contra tal movimento. Se fosse outra classe, como a dos caminhoneiros, a polícia estaria lá, multando os manifestantes. Claro que, como são "companheiros" de Lula e de Dilma, infelizmente demonstram o exemplo clássico de como o Brasil está sendo administrado e assessorado. Onde estão os órgãos que fiscalizam a liberação de verbas públicas federais para tais entidades? É revoltante! FÁBIO LÚCIO SOARES Ji-Paraná, RO O exército paralelo de Stedile/Lula representa uma ameaça à soberania nacional. O Exército brasileiro precisa ficar de prontidão para defender a verdadeira democracia neste país. Os "cumpanheros" não obtiveram êxito em 1964, mas continuam tentando nos impor o regime antidemocrático de Cuba e da Venezuela, onde imperam a miséria e o caos total. ANESIO SCANDIUCI Campinas (SP), via tablet CORRUPÇÃO NO BRASIL Já estamos cansados de saber da corrupção que se institucionalizou nos órgãos públicos após o PT se alçar ao poder. Isso não significa que não nos surpreendamos a cada notícia, a cada vestígio, por mais remoto que seja, que surge no horizonte ligado a algum assunto escuso que envolve o referido partido — é difícil dissociá-lo dos predicativos "corrupto", "aético", "oportunista" e "populista", para dizer o mínimo ("Corrupção institucional", 18 de março). Por essas e outras é que não deveremos nos surpreender se, em algum momento, a curto ou médio prazo, surgirem notícias de que, além do mensalão e do petrolão, depararemos com um "copão", um "olimpicão". Quem viver verá. LESLIE HERINGER São Paulo, SP J.R. GUZZO Fantástica a análise de J.R. Guzzo sobre a forma impressa pelo PT e pela presidente Dilma para lidar com as manifestações populares ("A pior subversão", 18 de março). A intolerância, a prepotência, a incapacidade de reconhecimento de erros gravíssimos, o estelionato eleitoral e diversos outros aspectos têm sido realmente a tônica deste governo. Nós, brasileiros que cumprimos corretamente os deveres de cidadãos, devemos, sim, concretizar a insatisfação que nos domina, demonstrando firmemente nossa posição. A presidente Dilma deve se sentir extremamente envergonhada ao se olhar no espelho depois de tudo o que enganosamente prometeu na campanha eleitoral. ELIANE BARRETO COSTA Brasília, DF Excelente o artigo de J.R. Guzzo, que nomeia o porquê do mal-estar que sentimos diante do discurso do PT. O gigante está acordado, e, por favor, não subestimem a inteligência dos moradores das varandas gourmets que mantêm este país com o pagamento de exorbitantes impostos! MIRELE DE CASTRO VEADO Belo Horizonte, MG LYA LUFT Admirável o sentimentalismo, assim como a coragem, de Lya Luft ("Que Deus nos ajude", 18 de março) ao abordar o papel significativo da mulher na sociedade brasileira. Comemorar o Dia Internacional da Mulher é uma grande conquista para o sexo feminino — que aparenta se apoderar de maior respeito juntamente com a relativa mitigação da ignorante sátira que explicita 8 de março como o Dia da Mulher e o resto do ano como pertencente ao homem. MARIA FERNANDA SOARES Pinhais, PR O artigo de Lya Luft não deixa apenas a ela envergonhada pelo vandalismo de mulheres que destruíram anos e anos de pesquisas científicas da fazenda da FuturaGene. O mundo científico está de luto e todos os brasileiros de bem, revoltados com esse bando de arruaceiros protegidos pelo governo federal sob o manto da impunidade. GERALDO RAMOS Alcobaça, BA Ao sensacional texto de Lya Luft, gostaria de dar complemento: que Deus nos ajude a superar este momento de crise, a desmascarar e pôr na cadeia cada um dos malfeitores corruptos. Que Deus nos ajude a usar com esplendor a criatividade brasileira para sobressair deste pântano perdido. DIEGO CARVALHO PIMENTA Passos, MG O desabafo sincero de Lya me faz pensar como mesmo os estudiosos, os pensadores, os já experientes podem se sentir desamparados em certos momentos da vida, como os que estamos atravessando agora no Brasil. Podemos aprender muito com esse sofrimento — por exemplo, que não existem mágica, sorte e nenhum outro elemento que transformem displicência, descuido, em um bom resultado. Sabe-se que o sofrimento traz amadurecimento, mas, sem reflexão, torna-se dor sem sentido. MYRIAM FERREIRA PINTO E SILVA Espírito Santo do Pinhal (SP), via tablet Querida Lya Luft, no momento há mais gente precisando de Deus no mundo do que aqui no Brasil. Se, em vez de nos dividirmos em "nós e eles" — como querem muitos —, nós nos unirmos contra esta calamidade que nos assola (corrupção, omissão, mentira etc.), ainda tenho esperança de que teremos um Brasil mais justo, honesto e decente para nossos filhos, netos, bisnetos, ou seja, para todos os brasileiros. BIA FARNEZI Belo Horizonte, MG RICARDO HAUSMANN Brilhante a entrevista nas páginas amarelas com o economista e professor Ricardo Hausmann ("Um colapso anunciado", 18 de março). Os brasileiros, mesmo aqueles que resistem a admitir a triste realidade que vivemos, vêm sofrendo as consequências de um período em que o país está caindo no poço escuro do consumismo, por meio de "programas sociais", sem, no entanto, criar políticas para o fortalecimento da economia. Sou contador e professor de contabilidade pública na Faculdade de Ciências Contábeis e Administrativas de Cachoeira de Itapemirim (ES) e concordo com o professor Ricardo Hausmann quando diz: "O governo brasileiro acumula déficits não para ampliar os investimentos, mas para custear as despesas correntes". Vimos recentemente boa parte dos brasileiros ir para as ruas num gesto de protesto contra a corrupção e o desgoverno que presenciamos. Creio que, se o autor da letra do Hino Nacional, Joaquim Osório Duque Estrada, em sua bela inspiração, estivesse presenciando o contexto atual do país, diria ao povo brasileiro: "Não fique deitado eternamente em berço esplêndido; seja um povo heróico de brado retumbante". ELIZEU CRISÓSTOMO DE VARGAS Cachoeira de Itapemirim, ES Muito boa a análise do professor Ricardo Hausmann. O Brasil, sob o nefasto comando petista, perdeu o bonde da história. Mercê do controle da inflação, conseguido por Fernando Henrique Cardoso, poderia hoje estar entre as grandes nações do mundo moderno. HAROLDO FROTA Curitiba (PR), via tablet OLIMPÍADA NO RIO Sou professor da Aeronáutica brasileira no Centro de Lançamento de Alcântara e observo que o Rio de Janeiro repete Alcântara. Para onde um país quer ir, leva primeiro sua escola. O Brasil não preparou seu sistema de ensino para formar cientistas; antes, preferiu fechar convênios com universidades nacionais e estrangeiras para formar, em nível de mestrado e doutorado, poucas dúzias de cientistas espaciais para levar o programa espacial brasileiro em frente. O acidente de Alcântara matou 21 deles, e o programa espacial brasileiro nunca se recuperou. A Olimpíada de 2016 vai pelo mesmo caminho: não foi feito um programa de descoberta e formação de atletas nas nossas escolas e não existirá o legado que realmente interessa. Depois dos Jogos Olímpicos do Rio, para onde irão os técnicos estrangeiros, atletas naturalizados e medalhistas nativos? Ganha o direito a um mergulho na Baía de Guanabara quem adivinhar ("Que venha o melhor", 18 de março). FREDSON LUÍS DE PAIVA BRITO E LIMA São José de Ribamar, MA PARA SE CORRESPONDER COM A REDAÇÃO DE VEJA: as cartas para VEJA devem trazer a assinatura, o endereço, o número da cédula de identidade e o telefone do autor. Enviar para: Diretor de Redação. VEJA - Caixa Postal 11079 - CEP 05422-970 - São Paulo - SP: Fax: (11) 3037-5638; e-mail: veja@abril.com.br. Por motivos de espaço ou clareza, as cartas poderão ser publicadas resumidamente. Só poderão ser publicadas na edição imediatamente seguinte as cartas que chegarem à redação até a quarta-feira de cada semana. 1#6 BLOGOSFERA EDITADO POR KÁTIA PERIN kperin@abril.com.br COLUNA RODRIGO CONSTANTINO CORRUPÇÃO O governo quer mesmo reduzir a corrupção? Então vamos falar sério: é preciso atacar a impunidade e o tamanho do Estado, ponto. Enquanto chefes de quadrilha passearem por alguns meses na prisão e, depois, saírem com milhões e milhões ganhos em "consultoria", os corruptos se sentirão tentados a pilhar os recursos públicos. www.veja.com/rodrigoconstantino CAÇADOR DE MITOS LEANDRO NARLOCH PIADA Eu torço pela completa ridicularização da política. Todo dia, antes de dormir, ajoelho e rezo para minha divindade máxima: — Mussum, por favor, faça com que amanhã os brasileiros confiem menos nos políticos. Que eles considerem pura piada deixar políticos gerir empresas, imprimir dinheiro e cuidar de escolas ou hospitais. Obrigadis. www.veja.com/cacadordemitos DE NOVA YORK CAIO BLINDER ISRAEL Netanyahu caminha para o quarto mandato, mais do que nunca coroado como Rei Bibi (seu apelido). A questão é o que ele fará com este mandato, que, de certa forma, surpreende. Meu guru David Horovitz escreveu que os adversários estão chocados e horrorizados, enquanto os partidários de Netanyahu estão chocados e exultantes. www.veja.com/denovayork MUNDO LIVRE A CONEXÃO TEERÃ-CARACAS-BUENOS AIRES Em sua edição da semana passada, VEJA mostrou que o Irã se valeu da Venezuela para financiar a campanha de Cristina Kirchner à Presidência, em 2007, em troca de segredos nucleares e impunidade no caso do ataque terrorista de 1994 à Associação Mutual Israelita Argentina (Amia). No programa Mundo Livre, os jornalistas Vilma Gryzinski, Duda Teixeira e Nathalia Watkins avaliam a repercussão internacional obtida pela reportagem e a situação do governo argentino. "A política argentina não é para amadores", diz Vilma. www.veja.com/tveja DIRETO AO PONTO O DESAFIO DE SÃO PAULO Em entrevista à jornalista Joice Hasselmann, o secretário de Logística e Transportes de São Paulo, Duarte Nogueira, homem de confiança do governador Geraldo Alckmin, afirma que a crise econômica dificulta os aportes em infraestrutura necessários para o estado. Nogueira aponta ainda os principais gargalos de investimento de São Paulo e advoga pela "parceria entre governo estadual e federal, municípios e setor privado, independentemente de partidos". www.veja.com/tveja CALDO DE CULTURA BABILÓNIA No programa Caldo de Cultura, os jornalistas Marcelo Marthe, Bruno Meier e Mário Mendes conversam sobre o que há de mais quente no mundo das artes e do entretenimento. Nesta semana, o assunto é o início de Babilônia, a nova novela das 9, na Rede Globo. "É a novela dos cinquenta anos da emissora. Houve um esforço em reunir um grande elenco, com atrizes como Gloria Pires, Adriana Esteves, Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg. Tem tudo para dar certo. Eu tenho vontade de chegar em casa e ligar a televisão", diz Bruno. www.veja.com/tveja ________________________________________ 2# PANORAMA 25.3.15 2#1 IMAGEM DA SEMANA – ETA GENTE TEIMOSA... 2#2 DATAS 2#3 CONVERSA COM ALEXANDRE TALEB – E O HOMEM SAI DO ARMÁRIO 2#4 NÚMEROS 2#5 SOBEDESCE 2#6 RADAR 2#7 VEJA ESSA 2#1 IMAGEM DA SEMANA – ETA GENTE TEIMOSA... Eleitores israelenses desmentem prognósticos baseados em desejos. Nem o governo Obama, nem a maioria dos formadores globais de opinião — e até os não tão globais assim —, nem mesmo a briguenta oposição israelense. Com quase seis milénios de teimosia no livrinho de história, os eleitores judeus, na maioria, ignoraram os inúmeros conselhos de como deveriam salvar a si mesmos e reelegeram o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Como a campanha mundial para derrubá-lo tinha sido completamente fora de proporção — inventaram até uma revolta contra a horripilante inflação de 0,48% —, a vitória dele pareceu maior ainda, e seus promotores passaram recibo de vexame. Alguns reclamaram até de que o primeiro-ministro tinha feito um apelo à direita. Imaginem só o absurdo de um político de direita apelar às suas bases! Bibi não faz jus ao apelido infantil, tem um temperamento abrasivo, diz uma coisa e faz outra, é detestado pela maioria dos dirigentes mundiais e está longe de se comportar impecavelmente no campo do caráter. Mas nenhum chefe de governo de Israel poderia fazer, agora ou no futuro próximo, o que os americanos exigem: abrir caminho a um Estado palestino com todas as prerrogativas — a experiência da retirada de Gaza demonstrou a que isso conduz — e aceitar um acordo com o Irã que deixe o país no limiar da bomba atômica. No máximo, políticos de outra tendência dariam um engabelada. Depois de colocar seus trôpegos top guns, aqueles que falam grosso e dão uns tirinhos, na campanha contra Netanyahu, o governo Obama agora ameaça tirar a barreira que sempre segurou sanções da ONU. Israel está preparado para enfrentar esse novo ambiente de adversidade? "Nós sempre nos preparamos para o pior. É um dos segredos do nosso sucesso", disse um top gun do governo Bibi. Deste, espera-se que, tendo dito uma coisa, faça o seu oposto, encontrando uma saída aparentemente impossível. VILMA GRYZINSKI 2#2 DATAS MORRERAM Therezinha Zerbini, advogada paulistana e ativista dos direitos humanos que em 1975 fundou o Movimento Feminino pela Anistia. Casada com o general Euryale de Jesus Zerbini — leal a Jango e por isso transferido para a reserva após o golpe de 64 —, denunciou a tortura e ajudou militantes de esquerda a escapar da repressão. Detida em 1970 por agentes da Operação Bandeirante — sob a acusação de ter colaborado com a organização do Congresso da UNE de 1968, em Ibiúna —, Therezinha, cunhada do cardiologista Euryclides Zerbini, passou seis meses no Presídio Tiradentes, em São Paulo. Lá, conviveu com a presidente Dilma Rousseff, então integrante de uma organização que se opunha à ditadura. Com o regresso de Leonel Brizola ao Brasil, participou, ao lado dele, da criação do PDT. Dilma, que foi pedetista antes de se filiar ao PT, divulgou uma nota oficial de pesar pela morte de Therezinha em pleno domingo de manifestações contra o seu governo. "O país perdeu uma cidadã que simbolizou como poucas a coragem da mulher brasileira", disse ela. Dia 14, aos 87 anos, de causas não reveladas, em São Paulo. Valentin Rasputin, escritor russo que se opôs ferrenhamente à perestroika do ex-líder soviético Mikhail Gorbachev. Autor de obras que integram o movimento "prosa rural", consideradas clássicas do antigo regime — como Adeus a Matiora (1976) —, assinou, em 1990, com 73 colegas, a Carta dos Escritores da Rússia, um manifesto antirreformas. O documento dizia que a democratização e o surgimento de um Estado de direito tinham levado à "desestabilização social". Nascido na aldeia de Ust-Uda, Valentin Rasputin Grigoriyevich era um entusiasmado defensor das medidas do governo de Vladimir Putin — apoiou, por exemplo, as ações contra o grupo feminista Pussy Riot e a anexação da Crimeia. Não por acaso, o presidente russo foi ao velório e depositou flores no caixão do escritor. Dia 14, aos 77 anos, de causas não divulgadas, em Moscou. Mike Porcaro, baixista da banda americana de rock Toto, conhecida por sucessos como Africa e Rosanna. Entre as décadas de 70 e 80, o grupo vendeu milhões de discos e ganhou seis prêmios Grammy. Embora a banda tenha sido formada em 1977, Michael Joseph Porcaro, que nasceu em Hartford, só passou a fazer parte dela em 1982. Em 2007, diante dos primeiros sintomas de esclerose lateral amiotrófica (ELA), foi substituído. Três anos mais tarde, depois de uma pausa em suas atividades, o grupo anunciou uma nova turnê — a ideia era arrecadar fundos para a doença de Mike. Com mais um álbum pronto, a Toto se prepara no momento para uma série de shows na Europa a partir de maio — mas agora definitivamente sem o seu inspirado baixista. Dia 15, aos 59 anos, em Los Angeles. José Hermogenes de Andrade Filho, o "Professor Hermogenes", um dos pioneiros da ioga no Brasil. Nascido no Rio Grande do Norte, foi expedicionário e chegou reformado a tenente-coronel. Seu contato com a ioga surgiu depois de ter sido diagnosticado com tuberculose. Impressionado com os resultados que a prática lhe trazia, decidiu divulgá-la. Publicou mais de trinta livros sobre o assunto, entre eles Yoga para Nervosos. Doutorado em iogaterapia pelo World Deyelopment Parliament, da Índia, teve sua vida relatada em Hermogenes (2012), de Vitor Caruso Jr. Dia 13, aos 94 anos, no Rio. 2#3 CONVERSA COM ALEXANDRE TALEB – E O HOMEM SAI DO ARMÁRIO Paulistano de origem libanesa, ele dá "consultoria de imagem" a clientes endinheirados. Eles gastam muito com roupa, leem blogs sobre o assunto e querem parecer jovens. Há conselhos também para mulheres. Ricas. Ainda tem gente que diz a um consultor de estilo que quer se vestir como alguém famoso? Muitos querem se inspirar no Roberto Justus, que é meu cliente, porque ele passa uma imagem de sucesso. Especialistas na sua área dizem que "a mulher precisa conhecer seu corpo". Que mulher não conhece o próprio corpo? Todas conhecem. O essencial é aprimorar o estilo. Não posso deixar fashion uma mulher de jeito sério. Com os programas tipo makeovere os milhões de blogueiras, sua profissão ficou mais difícil? Não, bem mais fácil. Mesmo com a TV e os blogs as pessoas não aprendem. Acabam me procurando. Homem olha blog? Sim; 60% dos acessos são de homens e 40% de mulheres que querem ajudar o parceiro. O que mais vejo é homem de 40 a 50 anos, separado, querendo parecer ter 18. Por onde começa o guarda-roupa masculino básico, no estilo tradicional? Com três ternos, um cinza-chumbo, um azul-marinho e o outro preto; gravatas e sapatos bons; roupas esportivas: dois jeans escuros, camisas lisas e malhas. Se fosse vestir uma cliente sem limitação de dinheiro, como montaria o visual ideal? Compraria duas bolsas, uma Hermes e a outra Bottega Veneta; um par de sapatos Jimmy Choo, outro Louboutin. Machucam os pés, mas chamam atenção. Apenas com acessórios já dá para mostrar que a mulher é refinada. E roupas de grifes caras, como Versace, que trazem poucas peças para cá. Dá para gastar 100.000 reais por mês com essa cliente. Quem pode preencher o vazio que Hedi Slimane deixou na Dior Homme? Tom Ford. A roupa dele parece cortada no corpo. Não tem sobra de tecido. 2#4 NÚMEROS 1 único recurso será permitido para ações cíveis na primeira instância da Justiça, segundo o novo Código de Processo Civil, sancionado pelo governo na semana passada. Atualmente, as regras autorizam até 25 medidas do tipo, o que faz com que os processos cheguem a levar dez anos para ser concluídos. 3 meses passa a ser o tempo máximo de prisão para quem não pagar a pensão alimentícia, um mês a mais que o limite atual. 10% do valor da causa, porcentagem dez vezes mais alta que a anterior, é o que poderá ter de pagar quem mentir no processo ou utilizar recursos com o objetivo de retardá-lo 2#5 SOBEDESCE SOBE Espanha - A queda do euro e do petróleo impulsionou a economia do país, que deve crescer até 3% neste ano, o dobro do esperado para a Alemanha. Drible da Fifa - Depois de dar um jeitinho para eleger o Catar como sede da Copa de 2022, a Fifa driblou também o calor infernal do país mudando o campeonato para dezembro. Goiana - Mesmo com a retração do setor automotivo, a cidade do agreste pernambucano registrou a abertura de mais de 10.000 empregos com a inauguração de uma fábrica da Jeep. DESCE Água – O aumento da população e da urbanização reduzirá o suprimento de água no mundo em 40% nos próximos quinze anos, concluiu um relatório da ONU. Ciclovias - As obras de construção das ciclovias mais caras do mundo, as de São Paulo, foram suspensas por ordem da Justiça, que recomendou "melhor estudo e planejamento". Starbucks - O dono, Howard Schultz, teve a ideia formidavelmente idiota de propor que os funcionários que servem café abordassem clientes para discutir questões raciais. 2#6 RADAR LAURO JARDIM ljardim@abril.com.br • ECONOMIA UM MEGANEGÓCIO O Bradesco esticou o olho sobre a BR Distribuidora. Existe a intenção de comprar 49% da estatal, ficando com a gestão do negócio, por meio de um acordo de acionistas. O tema deve entrar na pauta da reunião do conselho da Petrobras marcada para os próximos dias. QUASE PARANDO Os bancos pisaram forte no freio do crédito. Precisamente, crédito para pessoas físicas e empresas médias. Mais: no Estado de São Paulo, a arrecadação com os impostos oriundos da indústria automotiva no primeiro bimestre caiu 27% em comparação com o mesmo período do ano passado. DEDO TUCANO Foi João Doria Júnior, tucano de carteirinha, quem indicou ao ministro Armando Monteiro o nome de David Barioni para comandar a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex). • PT ESTADO DE ESPÍRITO De um petista que esteve com Lula na semana passada: "Ele está apoplético com tudo isso". Segundo o Houaiss, apoplético significa "vermelho de cólera, exaltado, furioso". O POETA Sai no mês que vem um livro de poemas inusitado. O autor é João Paulo Cunha, mensaleiro que hoje cumpre pena no regime aberto. Quatro & Outras Lembranças (Topbooks) é sua memória do cárcere em forma de poema. O QUE FAZER? Acuado pela manifestação do dia 15, o alto-comando petista reuniu-se na segunda-feira 16, no Instituto Lula, para discutir a crise em que o PT, o governo e o país estão metidos. Mais uma vez, a culpada de tudo foi a comunicação do governo. Convocados por Lula, Antonio Palocci, Luiz Marinho, Luiz Dulci, Edinho Silva, Alexandre Padilha, Emídio de Souza e Rui Falcão bradaram contra a "direita" e os "golpistas" e lamentaram não ter apoiado Eduardo Cunha para a presidência da Câmara, o que evitaria um desgaste do governo recém-instalado. A estratégia de reação que saiu dali é a de sempre: grudar nos movimentos sociais, trabalhar colado aos blogueiros chapas-brancas e partir para o ataque aos "conservadores". • LAVA-JATO BOMBA-RELÓGIO A mulher de Renato Duque, Maria Auxiliadora, é uma bomba-relógio prestes a explodir, na avaliação de quem conhece o casal. OPERAÇÃO ABAFA Depois que a lista do Janot saiu, os políticos começaram a se mexer no Judiciário para melar a Lava-Jato. QUEIMA DE ARQUIVO Advogados das empresas envolvidas na Lava-Jato estão aconselhando seus clientes a quebrar o disco rígido de todos os computadores das empresas. Numa palavra, joga fora e compra tudo novo. DE LÍNGUA PARA FORA A empreiteira Galvão, encrencada até a medula na Lava-Jato, deve entrar com pedido de recuperação judicial nos próximos dias. • GOVERNO NÃO CONTE COM ELE Aloizio Mercadante é contra o corte no número de ministérios. SINAL DOS TEMPOS Renan Calheiros esteve com Dilma na manhã de quarta-feira passada, no Palácio da Alvorada. Foi a primeira vez que conversaram sozinhos desde que Dilma assumiu a Presidência. • CINEMA O FILME DO BISPO A Record Filmes será reativada com um projeto ambicioso: levar às telas a versão cinematográfica de Nada a Perder, o livro de memórias do bispo Edir Macedo, cuja trilogia já vendeu 5 milhões de exemplares. No momento, busca-se uma produtora americana para dar vida ao filme, que deverá ser lançado no fim de 2016. A direção será de Alexandre Avancini, da Record. Mas o ator que encarnará Macedo ainda não foi escolhido. • SHOPPINGS BRIGA POR ESPAÇO O Gero Caffè está deixando o Shopping Iguatemi (SP), depois de dezessete anos. O motivo é societário: o grupo Fasano é sócio da JHSF, dona do Shopping Cidade Jardim, o maior concorrente na cidade de São Paulo do Iguatemi, que, por isso, não quis renovar o contrato. O Gero do Iguatemi Brasília, no entanto, continua. 2#7 VEJA ESSA EDITADO POR RINALDO GAMA “Não é que eu esteja mais engraçado. É que a maconha agora é legal em Washington.” - BARACK OBAMA, presidente dos EUA, explicando, em tom de brincadeira, logo no início do descontraído jantar anual com a imprensa realizado no Gridiron Club, por que previa mais gargalhadas dos presentes diante de suas piadas do que nos anos anteriores. “I’ll be back (eu voltarei).” - EIKE BATISTA, empresário mineiro que já foi dono da oitava maior fortuna do mundo, usando, no Valor Econômico, a famosa frase dita por Arnold Schwarzenegger em O Exterminador do Futuro para expressar seu otimismo quanto à retomada dos grandes negócios. “No Rio de Janeiro, a gente está conseguindo fazer algo que, no final, será reconhecido como mais transformador que (o ocorrido na Olimpíada de) Barcelona.” - EDUARDO PAES, prefeito do Rio, ao comentar, na Folha de S.Paulo, a preparação da cidade para os Jogos Olímpicos de 2016. “Eu prefiro caminhar na loja e poder tocar e provar os itens de que gosto.” - KERSTIN WOLGERS, sueca de 82 anos, após usar pela primeira vez um computador e navegar pela internet, a convite da MyNewsDesk, uma agência de relações públicas de seu país. Apesar da observação, ela disse, por meio da Reddit, rede social americana, que o mundo conectado "é melhor". “Como se atreve a se referir aos meus preciosos filhos como 'sintéticos'? Jamais voltarei a usar roupas Dolce & Gabbana. #BoycottDolceGabbana.” - ELTON JOHN, cantor e compositor britânico, dirigindo-se, no Instagram, ao estilista Domenico Dolce, que, em entrevista à revista italiana Panorama, se posicionou contra os bebês de proveta, chamando-os de crianças sintéticas. No dia seguinte, o músico foi visto com uma sacola da grife. “Você prega compreensão, tolerância e, em seguida, ataca os outros? (...) Essa é uma maneira democrática ou esclarecida de pensar?” - STEFANO GABBANA, saindo em defesa de seu sócio, em resposta publicada no jornal italiano Corriere della Sera. “Na minha casa não há espelhos, a não ser perto do chuveiro, onde é possível se olhar de todos os ângulos. E isso é bom porque, assim, os banhos são mais rápidos, o que é muito benéfico — e não só para o meio ambiente.” - CATE BLANCHETT, atriz australiana, vencedora do Oscar em 2014, no diário espanhol El País. “Que diabos eu fiz? Matei todos eles, claro!!!” - ROBERT DURST, bilionário americano envolvido em três assassinatos, "pensando alto", no banheiro, no final da entrevista para um documentário sobre sua vida, levado ao ar pelo canal HBO. Ele foi preso na véspera da exibição da última parte do programa. “A intolerância é a antessala da violência, e a violência é a negação da política.” - FRANCISCO FOOT HARDMAN, professor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, em O Estado de S. Paulo. EPÍGRAFE DA SEMANA A pretexto do significado das manifestações contra o governo Dilma Rousseff “Se toda a humanidade menos um fosse da mesma opinião, e apenas um indivíduo fosse da opinião contrária, a humanidade não teria maior direito de silenciar essa pessoa do que esta o teria, se pudesse, de silenciar a humanidade.” JOHN STUART MILL, filósofo e economista inglês (1806-1873). ________________________________________ 3# BRASIL 25.3.15 3#1 O PODEROSO CUNHA 3#2 AS REGRAS DO JOGO 3#3 O POPULISMO COBRA A FATURA 3#4 ADIVINHE QUEM VAI PAGAR 3#5 O MELHOR CONSULTOR DO MUNDO 3#6 UM DIAGNÓSTICO PERFEITO 3#7 SOB ORDENS DE HAVANA 3#8 A REDE DE PODER NAS CADEIAS 3#1 O PODEROSO CUNHA O recém-eleito presidente da Câmara dos Deputados emerge como uma força surpreendente, capaz de demitir ministro e imprimir derrotas acachapantes ao Planalto. Até onde ele quer chegar? ADRIANO CEOLIN Ao anunciar no plenário da Câmara, impávido por trás dos óculos, que o ministro da Educação acabava de ser demitido, o presidente da Casa, Eduardo Cunha, dirimiu qualquer dúvida sobre a relação existente entre o poder e o vácuo. Como na natureza, o primeiro abomina o segundo. Sendo assim, ao enfraquecimento do Poder Executivo, materializado na reprovação recorde da presidente Dilma Rousseff, sobreveio o imediato fortalecimento do Legislativo — embalado na figura até há pouco desconhecida de Cunha. Eleito para o quarto mandato de deputado federal com 233.000 votos, Eduardo Cunha conquistou a presidência da Câmara dos Deputados em fevereiro, contra a vontade da petista. Desde então, ele vem impondo à presidente uma sequência de derrotas e constrangimentos. Quanto mais ela se fragiliza, mais ele exercita os músculos. Esse intercâmbio de poder ficou claro na semana passada. Cunha convocou Cid Gomes a prestar esclarecimentos na Casa por ter declarado que lá se encontravam "400, 300 achacadores". Cid entrou ministro da Educação e quando saiu era ex-ministro. Cunha exigiu a sua demissão e conseguiu. Para sublinhar a vitória, anunciou ele próprio a saída do ministro — e fez isso sentado em sua cadeira de presidente da Câmara, antes mesmo da divulgação oficial da notícia. Ao mandar para casa um quadro pertencente à cota pessoal da presidente e peça-chave na estratégia governista de reduzir o poder do PMDB, Cunha, aos olhos de correligionários, "vingou" a sigla. Colegas passaram a chamá-lo de "primeiro-ministro". "Ele se tornou a principal pessoa a enfrentar o PT e o governo. Isso estava faltando ao nosso partido", diz o ex-presidente José Sarney. Não que a proverbial incontinência verbal da família Gomes não tenha facilitado a façanha. Cid Gomes — como já havia feito antes seu irmão, Ciro Gomes, ex-ministro e ex-candidato a presidente da República — caiu praticamente sozinho, derrubado pela própria língua. Sua fala no plenário da Câmara começou com uma tentativa débil de se desculpar e terminou aos berros, com mais acusações de achaque, dessa vez dirigidas especialmente ao presidente da Casa. Orientado por ele, o PMDB ameaçou abandonar a base governista. "Se a presidente não o demitisse, estaria indicando que não há Legislativo no Brasil", declarou Eduardo Cunha. "Apenas defendi o Poder. O conceito de Parlamento submisso estava muito enraizado." A presidente não gosta do deputado. Em privado, já repetiu o que Cid Gomes disse em público. Dilma não tem força para confrontar o peemedebista ou impor-se ao Congresso. Isso é novidade no presidencialismo brasileiro, um sistema cuja estabilidade repousa no excessivo poder do chefe do Executivo e na fragmentação dos partidos no Congresso. Desde a redemocratização, o presidente da República do Brasil faz as leis e o Orçamento, relegando o Congresso ao papel de chancelador das decisões do Palácio do Planalto. Na prática, isso tem um preço. Os chanceladores exigem cargos, verbas e recursos para suas campanhas políticas. A consequência disso é o loteamento de cargos e os propinodutos instalados nos ministérios e nas estatais — como é o caso do mensalão, feito em torno do Banco do Brasil, e do petrolão, montado na estatal brasileira do petróleo. Para ficarmos com uma única comparação, mas que confirma a excepcionalidade do arranjo de poder no Brasil, nos Estados Unidos as leis são feitas pelos deputados e senadores. O Orçamento também é de responsabilidade do Parlamento. Portanto, é salutar a crescente independência demonstrada pelo Congresso Nacional em Brasília. O símbolo mais acabado destes novos tempos é o deputado Eduardo Cunha. A central de trapalhadas em que se transformou o Executivo ajuda muito a ressurgência do Congresso. Como Lula no auge do mensalão, Dilma tentou, na semana passada, se apossar da bandeira do combate à corrupção, anunciando um mal-ajambrado e inconvincente conjunto de medidas. Foi atropelada pelos fatos. Acusado por delatores do petrolão de arrecadar propina para financiar campanhas petistas, inclusive a de Dilma em 2010, o tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, foi denunciado por corrupção, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. Em depoimento às autoridades, Eduardo Leite, até recentemente vice-presidente da Camargo Corrêa, declarou que Vaccari exigiu 10 milhões de reais em doações eleitorais ao PT como forma de compensar o atraso no pagamento de propinas devidas ao partido. Além disso, Renato Duque, ex-diretor de Serviços da estatal, apadrinhado por Lula e José Dirceu, foi preso novamente. Dirceu, por sua vez, entrou definitivamente na mira dos investigadores por ter recebido quase 30 milhões de reais como consultor de grandes empresas, muitas delas investigadas na Operação Lava-Jato (leia reportagem na pág. 64). É difícil haver um cenário pior para o governo. Não há agenda positiva planejada pelos marqueteiros oficiais que resista à realidade do maior esquema de corrupção da história do Brasil. Dilma está acossada pelo avanço das investigações do petrolão e pelos números pífios da economia. Do outro lado da Praça dos Três Poderes, impávido, líder de bancada fiel, agindo em estrita obediência à Constituição e ao regimento da Casa, o deputado Eduardo Cunha passa a impressão de ser a única referência do mundo político que não está se derretendo no ar. Quando Dilma e o PT reagiram ao recado das manifestações de rua do domingo 15 com a proposta de uma altamente suspeita reforma política, Eduardo Cunha atirou na testa. "Não vi ninguém nas ruas pedindo reforma política. As pessoas pediram a reforma do governo." Em reuniões privadas, Cunha tem explicado por que não vai encampar propostas de reformas políticas de iniciativa do PT. "O partido do governo quer uma reforma que satisfaça apenas a ele próprio. Isso é inaceitável." O presidente da Câmara foi também o primeiro político poderoso da base aliada do governo a entender e refutar sem rodeios o projeto hegemônico petista. "O PT não quer diálogo. Nunca quis. O que o PT quer é o monólogo." Isso não é novidade para ninguém familiarizado com o projeto petista de poder. A novidade está no surgimento de um político capaz de se levantar com sucesso contra esse estado de coisas. Cunha fez carreira na Câmara com base em sua decantada capacidade de trabalho, disciplina e conhecimento das regras do jogo. Enquanto a maioria dos parlamentares delega as questões mais complexas para os assessores legislativos, Cunha, que é economista, estuda e domina os assuntos. Não é por acaso que, dada alguma demanda complexa de setores empresariais, o nome dele é o primeiro a ser lembrado como interlocutor na Câmara. Como só relógio trabalha de graça, Eduardo Cunha, conta-se, cobra caro dos empresários por sua dedicação ao tema de interesse deles. Pede doações para as campanhas políticas dos deputados que gravitam ao seu redor. Isso é pouco ético? É discutível, mas quem já teve a oportunidade de convencer Cunha a encampar determinada demanda no Congresso conta que ele pede ajuda dentro da lei eleitoral. “As vitórias atribuídas ao trabalho dele na Câmara com a tramitação de interesses legítimos de grupos econômicos são obtidas com toda a transparência. Foi assim conosco. Se alguém teve uma experiência diferente, deveria vir a público e falar", diz um empresário do ramo de mineração. A fama de eficiência de Cunha está se espalhando. O banqueiro André Esteves, do BTG, considerado um ás de sua atividade, comentou recentemente, nos bastidores de um evento, ter ficado impressionado com o presidente da Câmara: "Ainda bem que ele não é banqueiro. Se fosse, eu estaria frito", disse, bem-humorado. O nascimento político de Cunha não poderia ter se dado em condições mais suspeitas. Isso ocorreu em 1991, no governo de Fernando Collor de Mello, pelas mãos do tesoureiro PC Farias. Foi PC quem indicou o então assessor parlamentar do PRN para a presidência da Telerj, a antiga companhia telefônica estatal do Rio de Janeiro. Cunha ficou dois anos na empresa. Saiu de lá com a fama de pertencer ao malfadado "esquema PC", que levou Collor ao impeachment, mas entrou definitivamente no jogo. Ao recomendá-lo para presidir novamente a estatal em 1996, o deputado Chico Silva justificou assim a indicação. "Para nós, deputados, foi a melhor gestão. A gente chegava lá, pedia a ligação de uma linha, de um orelhão. Ele atendia em uma semana." Chico Silva tornou-se o primeiro e o maior padrinho político de Cunha, e também o responsável por sua conversão religiosa. Foi pelas mãos do deputado do PP que ele se tornou evangélico, deixando para trás o passado de baterista de uma banda de rock. Trocou o Pink Floyd pelas músicas gospel, entrou para a igreja Sara Nossa Terra, do bispo Robson Rodovalho, e mergulhou de cabeça (a essa altura já desprovida da cabeleira) na política. Foi mais ou menos nessa época que conheceu a atual mulher, Cláudia Cruz, que era apresentadora da Rede Globo. Eles têm quatro filhos. Graças ao impulso dado pelo político do PP de Paulo Maluf, Cunha se tornou presidente da Companhia Estadual de Habitação do Rio de Janeiro (Cehab) durante o governo de Anthony Garotinho. A gestão foi relâmpago. Em seis meses, ele teve de renunciar, acusado de beneficiar a empresa de um ex-aliado collorido. Continuou, porém, exercendo grande influência no governo do então aliado Garotinho, dando as cartas e trazendo para obras do estado a Delta Engenharia, então uma empreiteira de Pernambuco que tentava ganhar contratos no Rio. Dono de uma das emissoras de rádio mais populares do Rio, a Melodia, Chico Silva deu a Garotinho e a Cunha programas diários em sua emissora — espaço valioso, que faria toda a diferença para a carreira política do atual presidente da Câmara. No primeiro pleito em que foi candidato a deputado estadual, em 1998, Cunha teve 15.000 votos e ficou apenas com uma suplência. Só assumiu a vaga na Assembleia Legislativa do Rio porque Garotinho fez uma troca no secretariado e abriu espaço para ele. Foi a primeira e a última vez que Cunha teve de ficar na fila. Com o apoio de Garotinho e o espaço diário na rádio — em que fazia comentários sobre questões locais e nacionais, sempre encerrados com o bordão "porque o nosso povo mereeeece respeito" —, Cunha conquistou 101.495 votos para eleger-se deputado federal em 2002. Como essa origem nebulosa produziu uma carreira meteórica? Nenhuma acusação contra ele na Justiça teve consequências. Escapou do tsunami de apurações nos tempos de Collor e foi poupado quando, com a ajuda de um procurador, apresentou a um tribunal documentos falsos que comprovam a lisura da passagem pela Cehab. Quem foi condenado foi o procurador. Cunha pode não ser, como parece mostrar seu passado, um monumento à ética. Mas, desde que seus pecados pertençam ao passado e seu compromisso seja com a saúde institucional, a Constituição e a democracia, há esperança "porque o nosso povo mereeeece respeito". CUNHA, O PRAGMÁTICO Economista oriundo do setor privado, o presidente da Câmara fez carreira na política com alianças controversas mas bem-sucedidas. 1991 - O nascimento político - Economista, Eduardo Cunha entrou no setor público ao assumir a presidência daTelerj por indicação de PC Farias, tesoureiro de Fernando Collor. Saiu em 1993, depois do impeachment. Voltou a ser indicado em 1996, pelo PR "Para nós, deputados, foi a melhor gestão. A gente pedia uma linha, um orelhão, ele atendia em uma semana", justificou o pai da indicação, o então deputado Francisco Silva. FHC rechaçou seu nome. 1996 - A conversão - Por influência do novo padrinho político, Cunha converteu-se à religião evangélica e entrou para a Sara Nossa Terra, do bispo Robson Rodovalho. Em 1996, conheceu a segunda mulher, a apresentadora da Rede Globo Cláudia Cruz. Disposto a engrenar na política, candidatou-se em 1998 a deputado estadual, mas teve apenas 15.000 votos e virou suplente. Foi a primeira e última derrota. Desde então, ele ganhou um programa diário, que mantém até hoje na rádio de Silva, a Melodia, uma das mais ouvidas no Rio. Aliou-se a Anthony Garotinho e passou a trabalhar dia e noite para vencer a eleição seguinte. 1999 - Aliança profícua - No governo Garotinho, foi presidente da companhia de habitação e deputado estadual influente nos bastidores. Conseguiu para a Delta, então uma empreiteira pernambucana em busca de negócios no Rio, os primeiros contratos de obras públicas no estado. Hoje, Cunha e Garotinho estão rompidos. 2015 - A vitória na Câmara - Cunha consagrou sua estratégia vitoriosa para a presidência da Câmara ainda nas eleições de 2014. Além de conquistar a terceira maior votação do Rio para o Parlamento, ele arrecadou recursos entre empresários amigos para a campanha de dezenas de aliados no baixo clero, negociou o voto de cada deputado em troca de cargos e chegou a Brasília com a fatura praticamente liquidada. Venceu no primeiro turno e derrotou o PT e o PSDB, que apoiou outro candidato. COM REPORTAGEM DE MALU GASPAR, DANIEL PEREIRA, THIAGO PRADO E CECÍLIA RITTO 3#2 AS REGRAS DO JOGO Especialistas ouvidos por VEJA respondem a dez perguntas sobre o impeachment: o que é o processo, quando ele é possível e o que acontece depois. MARIANA BARROS E PIETER ZALIS Um em cada quatro manifestantes que foram à Avenida Paulista protestar no dia 15 de março defendeu o impeachment da presidente Dilma Rousseff, segundo uma pesquisa do Datafolha. Só a corrupção foi mais citada como motivo para ir à marcha. Quedas de presidentes não são um evento banal. Um estudo de cientistas políticos americanos e canadenses que analisou todos os presidentes democraticamente eleitos no planeta de 1978 a 2006 revelou que apenas 12% deles não conseguiram concluir o mandato, seja porque foram tirados por impeachment, seja porque sucumbiram à pressão das ruas e renunciaram (golpes não entram na conta). Segundo o estudo, são quatro os fatores de instabilidade que levam à queda de presidentes: problemas na economia, mobilizações de rua, queda de popularidade e perda de maioria no Congresso. A presidente Dilma enfrenta todos esses em maior ou menor grau. Especialistas ouvidos por VEJA, porém, concordam que ainda há mais diferenças que semelhanças entre a situação da presidente e a vivida pelo ex-presidente Fernando Collor, alvo do único caso de impeachment no Brasil, em 1992. Aqui, oito juristas e advogados respondem a dez dúvidas sobre o processo previsto na Constituição. 1- Em que casos um presidente pode sofrer impeachment? O presidente só pode sofrer impeachment se tiver cometido o que a Constituição define como crimes de responsabilidade: atentar contra o Poder Legislativo, o Poder Judiciário, o Ministério Público, o exercício dos direitos individuais e sociais, a lei orçamentaria, a probidade administrativa e o cumprimento de leis e decisões judiciais. 2- Dilma Rousseff pode sofrer impeachment mesmo sem ser alvo de um processo na Justiça? Sim. Para a abertura do impeachment, basta que dois terços da Câmara dos Deputados acreditem que há indícios de que a presidente tenha cometido um "crime de responsabilidade", o que pode ocorrer até sem intenção — ela pode ser acusada por, simplesmente, ter se omitido em coibir crimes em sua administração. No entanto, a ausência de um processo judicial ajuda a reforçar o argumento de quem é contra o impeachment, de que não há fatos concretos que justifiquem cassar um presidente. 3- O petrolão aconteceu quando Dilma já era presidente, mas antes da reeleição. Ela pode responder no segundo mandato por crimes do primeiro? A resposta para essa pergunta não é unânime, mas a maioria dos juristas considera que não. A dúvida acontece porque a reeleição foi instituída apenas em 1997, enquanto a Constituição (de 1988) e a lei que regula o impeachment (de 1950) são anteriores a ela. Assim, não prevêem o que pode acontecer se um presidente comete o crime no primeiro mandato e é reeleito. Quem defende que ela pode ser processada argumenta que se trata de um "mandato continuado", ou seja: com a reeleição, o segundo pode ser contaminado pelo primeiro. 4- Quem pode pedir o impeachment da presidente? Qualquer cidadão, entidades representantes da sociedade civil ou parlamentares. No impeachment de Collor, o pedido foi apresentado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Mas a decisão sobre abrir ou não um processo cabe à Câmara dos Deputados. O pedido só vai em frente se tiver o apoio de dois terços da Casa, o equivalente a 342 dos 513 deputados federais. 5- Quem decide sobre um possível impeachment da presidente? A decisão final sobre o impeachment de um presidente cabe ao Senado Federal. Assim como na decisão sobre abrir o processo ou não, é necessário o apoio de dois terços dos parlamentares: ou seja, 54 dos 81 senadores. 6- Quanto tempo leva o processo? Não há definição na Lei do Impeachment. O único prazo mencionado na Constituição se refere ao período em que o presidente fica impossibilitado de exercer seu mandato depois da notificação de abertura do processo no Senado e da aceitação do pedido pela Câmara — 180 dias. Se não houver um veredicto final nesse período, ele pode voltar a exercer o cargo mesmo que o processo esteja em andamento. No caso de Collor, durou três meses. 7- Collor sofreu impeachment ou renunciou? Sofreu impeachment. Ele foi afastado da Presidência no dia 29 de setembro de 1992, quando a Câmara dos Deputados aprovou a abertura do impeachment. No dia 30 de dezembro, foi "impichado" por 76 votos a favor e três contra. O ex-presidente ainda tentou escapar do impeachment com uma carta de renúncia lida pelo seu advogado, durante o julgamento. O Senado, no entanto, não aceitou a carta e manteve o julgamento. 8- Quais as semelhanças e as diferenças entre a situação de Dilma e a de Collor? Por enquanto, há mais diferenças do que semelhanças. Os principais pontos de contato são a grave crise política e econômica e a enorme rejeição da população — perto do impeachment, o então presidente era considerado ruim ou péssimo por 68%; ninguém jamais havia chegado perto desse índice, façanha conseguida por Dilma na semana passada, com avaliação negativa de 62%. No campo das diferenças, ainda não pesa nenhuma acusação de envolvimento pessoal da presidente no escândalo do petrolão, a não ser a afirmação do doleiro Alberto Youssef de que ela tinha ciência do esquema, o que, frise-se, não é pouco. Já Collor era acusado diretamente de corrupção — o relatório final da CPI que investigou seu governo concluiu que ele recebeu 6,5 milhões de dólares em "vantagens econômicas indevidas"; o ex-presidente chegou a comprar um Fiat Elba com um cheque-fantasma. Segundo especialistas, ele agiu, enquanto ela se omitiu. A presidente também tem uma base muito mais forte no Congresso — no papel, a petista tem o apoio de quase 380 deputados, dos quais 64 de seu partido; Collor era de um partido nanico, o PRN com 21 deputados, e sua base de 259 deputados se erodiu rapidamente. 9- Se Dilma sofrer impeachment, quem assume? Michel Temer. 10- O vice-presidente também pode sofrer impeachment? Sim, mas seria necessário um processo separado do de Dilma. Se Temer também for afastado pelo Congresso, aí há duas saídas possíveis: se isso ocorrer até a primeira metade do mandato, ou seja, até o fim de 2016, são convocadas novas eleições. Se for depois desse prazo, o Congresso realiza uma eleição indireta para escolher o presidente. Especialistas consultados: Ives Gandra Martins, Carlos Velloso, Carlos Ayres Britto, Modesto Carvalhosa, Miguel Reale Júnior, Júlio Aurélio Vianna Lopes, Carlos Ari Sundfeld e Carlos Roberto Siqueira Castro. 3#3 O POPULISMO COBRA A FATURA Incapaz de manter seu programa de financiamento estudantil, o governo leva a crise a empresas e alunos. O Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), que oferece crédito a universitários de instituições privadas, foi uma das principais bandeiras petistas na campanha presidencial de 2014. Pouco depois das eleições, ele começou a ser submetido a um ajuste drástico. Teve início uma crise no setor. Universidades correm o risco de quebrar e alunos de todo o país protestam porque o sistema de cadastro e renovação dos contratos de financiamento deixou de funcionar. O caos levou a presidente Dilma Rousseff a fazer um raro mea-culpa. Na semana passada, ela apontou uma falha — uma só — no programa do Ministério da Educação. "O governo errou ao deixar o controle das matrículas com o setor privado", disse. Mas a culpa assumida por Dilma não explica as razões da desordem. O programa federal de financiamento estudantil foi criado em 1999, no governo Fernando Henrique Cardoso. Em 2010, o governo cortou pela metade a taxa de juros cobrada dos estudantes e ampliou o prazo para pagamento da dívida. Não se exigia nota mínima no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para acesso ao benefício. O resultado foi um salto de 76.000 para 1,9 milhão de estudantes inscritos no Fies em quatro anos — um crescimento de 2395% — e um aumento nos gastos com o programa de 810 milhões de reais para 13,7 bilhões de reais. Segundo a consultoria Hoper Educação, no fim de 2014 uma em cada quatro faculdades privadas possuía mais de 30% de seus alunos beneficiários do Fies. O governo repassava mensalmente às instituições o dinheiro do financiamento. Essa derrama de recursos criou uma bolha, e o valor de mercado de muitas universidades subiu às alturas. Em dezembro de 2014, a torneira começou a ser fechada. Entre as medidas incluem-se a exigência de nota mínima no Enem, a redução do número de repasses às instituições, número limitado de vagas para cada região do país e prioridade para os cursos com nota máxima no Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes). Para manter os alunos, grandes grupos educacionais firmaram parcerias com financiadoras privadas. Mas a maior parte das faculdades não tem como seguir esse caminho. Quanto aos alunos, eles simplesmente não conseguem acesso ao sistema de cadastro. Sem renovar o contrato, muitos podem ter de abandonar cursos já começados. A ampliação irresponsável e populista do Fies há cinco anos é a verdadeira causa dos problemas atuais. "O dinheiro acabou e o governo mudou as regras no meio do jogo", diz Carlos Monteiro, presidente da CM Consultoria, especializada em educação. "Com parâmetros adequados desde o início, não haveria essa confusão." DANIELA MACEDO 3#4 ADIVINHE QUEM VAI PAGAR Com os cofres vazios por causa das investigações do petrolão e das doações em queda livre, partidos se unem para triplicar a verba que recebem do fundo partidário. Nunca na história deste país os poderosos estiveram tão pressionados pelas ruas. A economia vai mal e a ordem é cortar gastos. Uma crise ética sem precedentes põe sob a lupa da Justiça meia centena de excelências suspeitas de se beneficiar de dinheiro da Petrobras. Mas Brasília, ao menos a parte que concentra o poder, parece continuar a viver numa bolha. Na semana passada, os congressistas lideraram uma ofensiva que resultou na inclusão no Orçamento de 867,5 milhões de reais para o fundo partidário, dinheiro que financia os partidos brasileiros. O valor é três vezes maior do que o reservado na lei orçamentaria do ano passado. Sim, é isso mesmo: o Congresso, em plena crise, quer triplicar o valor do dinheiro que sai dos cofres públicos diretamente para as contas das agremiações partidárias. Mais do que um sinal de desprezo ao ajuste fiscal proposto pelo Palácio do Planalto, a iniciativa embute uma esperteza e um tremendo senso de oportunismo. Deflagrada pela Polícia Federal e pelo Ministério Público, a Operação Lava-Jato revelou que empreiteiras pagavam propinas a diretores da Petrobras e operadores políticos em troca de contratos superfaturados na estatal. Esse dinheiro, conforme as investigações, irrigou os cofres de PT, PMDB e PP durante uma década. Após a descoberta do esquema, as doações das empresas aos partidos entraram em queda livre. Assim, para compensar a perda, os partidos se mexem para tirar mais dinheiro dos cofres públicos — e mandar a conta para as vítimas habituais: os contribuintes. O acordo para turbinar o fundo partidário foi costurado pelo presidente do PT, Rui Falcão, e incluído no Orçamento pelas mãos do relator do projeto, Romero Jucá (PMDB-RR), integrante da extensa lista de parlamentares investigados no petrolão. Falcão e Jucá alegam que o aumento do fundo partidário era necessário diante da proliferação de partidos no país. Ou seja, o problema é que existem muitas siglas para pouco dinheiro. Do lado de fora da bolha, ninguém tem dúvida de que os deputados escolheram mexer na variável errada. ROBSON BONIN 3#5 O MELHOR CONSULTOR DO MUNDO Investigado no petrolão, José Dirceu tinha a receita do sucesso para qualquer empresa: era só contratá-lo que o lucro era certo. HUGO MARQUES Depois de deixar o governo Lula em 2005 pela porta dos fundos, o petista José Dirceu passou a atuar como consultor valendo-se da vasta influência que exerce sobre companheiros instalados nas mais diversas engrenagens do governo. O fato de sua carteira de clientes incluir algumas das principais empreiteiras acusadas de participar dos desvios bilionários da Petrobras fez com que ele logo passasse a ser investigado no escândalo do petrolão. O Ministério Público pediu a abertura de um processo para aprofundar essa relação. Na semana passada, o juiz Sérgio Moro liberou para consulta pública parte das informações constantes dos autos. Com isso, ficou-se sabendo que Dirceu não é apenas um consultor bem-sucedido — é um sucesso retumbante. De 2006 a 2013, o ex-ministro faturou 29,3 milhões de reais em contratos de consultoria com empresas de todos os tamanhos e atuantes nos mais variados setores da economia — de cervejaria a laboratório farmacêutico, de escritório de advocacia a concessionária de automóveis, Dirceu estava em todas. Pudera: sua contratação, como se verá a seguir, era garantia de ótimos resultados. Tamanha eficiência fez com que, mesmo durante sua temporada na prisão, Dirceu seguisse recebendo pagamentos por seus serviços. A VEJA, dois de seus clientes, a construtora Consilux e o laboratório EMS, admitiram que destinaram 1,2 milhão de reais ao ex-ministro quando ele já estava atrás das grades. São os contratos com as empresas que faturavam alto na Petrobras, porém, que podem levar Dirceu a ter de travar novo embate nos tribunais antes mesmo de cumprir o restante da pena do mensalão. Do clube do bilhão, o petista recebeu pelo menos 8 milhões de reais. O ápice dos pagamentos se deu em 2012, período em que o petrolão estava funcionando a pleno vapor e que coincidiu com a condenação de Dirceu por participação no mensalão. Entre as empreiteiras que aparecem na lista de clientes do ex-ministro estão OAS, Engevix, UTC, Galvão Engenharia e Camargo Corrêa — todas acusadas de integrar o cartel que atuava na Petrobras. Dirceu nega que sua consultoria abrisse caminho para negócios na Petrobras ou no governo. Mas, assim como aconteceu no mensalão, os fatos sugerem que ele não fala a verdade. Há quatro anos, uma reportagem de VEJA revelou que as consultorias do ex-ministro não passavam de eufemismo para acobertar a prática de tráfico de influência. Da notória empreiteira Delta surgiu o primeiro exemplo de como os serviços do ex-ministro encurtavam o caminho rumo aos cofres públicos. Em 2009, a Delta, por meio de outra empresa do grupo, a Sigma Engenharia, fechou um contrato com a empresa de Dirceu, a JD Assessoria e Consultoria. Oficialmente, o objetivo era ampliar a participação da companhia no Mercosul. Mas foi no Brasil que os negócios da empresa se multiplicaram. De partida, a Delta dobrou o valor de seus contratos com o governo federal e, logo depois de passar a contar com os serviços do "consultor" Dirceu, entrou para o seleto grupo de prestadoras de serviço da Petrobras. Não era coincidência. Na ocasião, um sócio da empresa, Romênio Machado, admitiu: "O trabalho dele (Dirceu) era fazer tráfico de influência". Agora, com a lista de clientes de Dirceu exposta à luz, é possível dizer que a Delta não era exceção. Outras empreiteiras ampliaram exponencialmente seus negócios após recorrer aos préstimos do mensaleiro. E o milagre da multiplicação não se dava apenas na Petrobras. Era extensivo a órgãos do governo federal. A Galvão Engenharia é um exemplo. No mesmo ano em que contratou Dirceu, a empreiteira recebeu do governo 203 milhões de reais, onze vezes mais do que havia recebido no ano anterior. No primeiro ano de contrato com o "consultor", outra companhia, a SPA Engenharia, experimentou um salto de 40% em seu faturamento junto aos cofres do governo. Recebeu 237 milhões. O ano seguinte foi ainda melhor: o valor passou para 541 milhões. Até a tradicional Camargo Corrêa, que em 2009 estava assistindo a uma queda nos seus negócios com a administração federal, de repente viu a curva mudar de rumo. Bastou contratar Dirceu e as coisas melhoraram. Para fazer valer os gordos "honorários", Dirceu contava com parceiros ocasionais importantes. Um deles era o ex-presidente Lula, que, depois de deixar o governo, se lançou no mundo das consultorias e palestras. Em 2011, por exemplo, os dois fizeram juntos uma viagem de negócios ao Panamá. Lá, sem esconderem a condição de lobistas, tiveram encontros com o presidente do país e ministros de Estado. Em mais uma evidência do cruzamento de interesses públicos e privados, em parte de seus compromissos no país a dupla contou com o auxílio logístico de funcionários da embaixada brasileira. Na lista de clientes de Dirceu há um detalhe repleto de significado: entre os pagadores há um lobista que, de acordo com as investigações, recorria às suas amizades no PT para fechar negócios na Petrobras e, como contrapartida, se encarregava de retribuir a gentileza distribuindo propina a quem o ajudava. A Dirceu, esse lobista pagou quase 1,5 milhão de reais. Por serviços de consultoria, claro. COM REPORTAGEM DE DANIEL HAIDAR 3#6 UM DIAGNÓSTICO PERFEITO Em relatório interno que vazou, o chefe da Secom, sem querer, reafirma o antigo e sábio ditado da publicidade: "A pior coisa para o mau produto é a boa propaganda". Relatórios feitos para circular no restrito ambiente da cúpula de um governo quase sempre vêm carregados de franqueza — e esse é um dos motivos pelos quais eles são confidenciais. Na semana passada, por acidente ou fogo amigo, um relatório interno escrito por Thomas Traumann, chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), vazou e apareceu no jornal O Estado de S. Paulo. De certo ponto de vista, o dano ao governo é óbvio, pois Traumann fala sem rodeios no "caos político". De outro ângulo, pode até ser positivo para o Palácio do Planalto, pois, pelo menos nas discussões internas, a gravidade da crise é reconhecida e debatida. Pior seria se o falso otimismo que transmitem fosse também o sentimento predominante quando a presidente e seus assessores estão reunidos longe do público. Ao criticar o pronunciamento feito pela presidente Dilma Rousseff em 8 de março, "longo e sem substância", o ministro Traumann lista algumas das perguntas que os brasileiros gostariam de ver respondidas — e que, convenhamos, os repórteres que dão plantão diário no Palácio do Planalto deveriam já ter feito à presidente: "A gasolina subiu porque Dilma, Lula e o PT roubaram na Petrobras?"; "Dilma falou uma coisa na campanha e está fazendo outra?"; "Por que ela sempre culpa a crise internacional e não assume que errou?". Traumann lembra com estilo que "a comunicação é o mordomo das crises" e defende seu trabalho com argumentos lógicos e irrefutáveis: "Não adianta falar que a inflação está sob controle quando o eleitor vê o preço da gasolina subir 20%" ou a presença de "um senador tucano na lista da Lava-Jato não altera o fato de que o grosso do escândalo ocorreu na gestão do PT". O vazamento deixou Traumann em situação incômoda. Do Polônio da corte hamletiana de Dilma, seus desafetos agora terão argumentos para pintá-lo como o Iago de Otelo. Como se sabe, Shakespeare fez de Polônio um conselheiro do rei de falas inesquecíveis ("Nunca seja nem o credor nem o emprestador") e ações nem tanto. Já Iago é ambicioso, manipulador e traiçoeiro. Como Polônio morre na peça, Traumann, do ponto de vista mais prático, pode estar mais para Iago, que é preso, torturado, mas aparentemente sobrevive. Na sexta-feira passada, dava-se como quase certa sua ida para a chefia de comunicação da Petrobras. Nas passagens mais condenatórias do documento, Traumann propõe combater a queda de popularidade do governo com mais "publicidade oficial focada em São Paulo"(...) já que "não há como recuperar a imagem do governo Dilma em São Paulo sem ajudar a levantar a popularidade do Haddad". Em outras palavras, ele diz que é preciso direcionar dinheiro público com objetivo político-partidário específico. Isso é gestão temerária. O dinheiro que o cidadão dá ao governo na forma de impostos não pode ser usado para fazer propaganda do partido no poder. Traumann diagnostica que "o fim do diálogo com os blogues" antes do período eleitoral resultou no isolamento do governo nas redes sociais. Como é sabido que os blogueiros comprados para falar bem do governo não pagam com "diálogo" os charutos que fumam, é de supor que Traumann tenha optado por um salvador eufemismo. Os radicais do PT estão vibrando com o episódio. Com Traumann fora do caminho, o já milionário "diálogo" com os blogueiros mercenários na internet vai atingir valores inéditos. O mais provável agora é que a Secom perca o comando das verbas de propaganda para o Ministério das Comunicações, chefiado pelo comissário petista Ricardo Berzoini. Como se sabe, Berzoini é defensor dos modelos soviético e cubano para as comunicações — censura à imprensa e controle estatal de todas as formas de expressão cultural. Traumann escreveu o documento para "responder" a uma entrevista que Berzoini deu ao jornal Folha de S.Paulo em 14 de março. Nela, o comissário Berzoini atribui o enfraquecimento do governo a "ter se comunicado mal". Traumann deixa claro em seu diagnóstico interno que são limitados os poderes da comunicação para mudar a percepção do público sobre uma realidade deteriorada. Um antigo e sábio ditado da publicidade diz: "Não existe nada pior para o mau produto do que a boa propaganda". Assim só resta torcer para que o comissário da propaganda faça um bom trabalho. 3#7 SOB ORDENS DE HAVANA Um áudio obtido pela Band demonstra que o Mais Médicos foi apenas uma armação do governo brasileiro para mandar dinheiro para a ditadura cubana. LEONARDO COUTINHO São 44 minutos e 59 segundos de intensa tramoia. O áudio registrado por um dos participantes de uma reunião que ocorreu em 13 de julho de 2013 na sede do Ministério da Saúde, em Brasília, mostra como a pernambucana Maria Alice Barbosa Fortunato, da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), discute com funcionários do governo os termos de um contrato que seria publicado quatro dias depois no Diário Oficial da União e serviria de base para a importação dos 11.400 cubanos que hoje atuam no Brasil pelo programa Mais Médicos. A conversa, divulgada na terça-feira passada no Jornal da Band, em reportagem de Fábio Pannunzio, dá elementos para concluir que a importação dos cubanos é inconstitucional. Os participantes da reunião — entre eles Maria Alice, Jean Keiji Uema, então consultor jurídico do ministério, Alberto Kleiman, assessor especial para Assuntos Internacionais da pasta, e pelo menos outras três pessoas não identificadas — discutiram estratégias para usar a intermediação da Opas com a finalidade de burlar a legislação brasileira e permitir que os médicos viessem ao Brasil não como contratados diretos, protegidos pelas práticas trabalhistas daqui, mas como "missionários" do governo cubano, submetidos às regras ditatoriais da ilha. Só isso já bastaria para cancelar o programa Mais Médicos em sua totalidade. Há muito mais, porém. Como não sabiam que estavam sendo gravados, os funcionários do ministério e da Opas foram absolutamente sinceros sobre a natureza do contrato que estavam discutindo. Trata-se de "um acordo bilateral" entre Brasil e Cuba do qual a Opas "aceitou participar" para dispensar a obrigatoriedade de ter seus termos aprovados pelo Congresso Nacional, como manda a Constituição Federal. Maria Alice, autora da afirmação de que a Opas aceitou entrar no negócio para ajudar a burlar a lei, foi a protagonista da reunião. Além de insistir que qualquer referência a Cuba ficasse de fora do documento que seria publicado no Diário Oficial, ela sugeriu que se incluíssem médicos de outros países no programa, apenas para tirar o foco da ditadura caribenha, e que se criasse um subterfúgio para contratar "assessores" para espionar os cubanos. Já os funcionários do governo brasileiro estavam preocupados em encobrir a lama trabalhista em que estavam se metendo. Um deles reclamou da insistência do embaixador de Cuba no Brasil em afirmar que seu país estava "vendendo um serviço" para o Brasil. Seguiu-se então uma longa discussão sobre como evitar termos que pudessem expor o vínculo empregatício entre o governo brasileiro e os médicos cubanos. Desde maio de 2013, quando o então chanceler Antonio Patriota mencionou a ideia de importar médicos cubanos, VEJA vem alertando para o fato de que essa era uma forma escamoteada de dar socorro financeiro a Cuba. A partir de agosto daquele ano, VEJA passou a apontar as ilegalidades trabalhistas e a operação montada — e agora mais uma vez confirmada — para ocultar a ajuda ao regime cubano. Hêider Pinto, secretário de Gestão na Saúde do Ministério da Saúde, nega a tentativa de acobertamento. Ele afirma que a escolha de Cuba como fornecedora de mão de obra não coube ao Brasil, mas à Opas. Não é o que revela o áudio da reunião. ÀS ESCURAS - Maria Alice Fortunato, da Opas, Alberto Kleiman, assessor do Ministério da Saúde, e o então consultor jurídico da pasta, Jean Uema, e algumas de suas frases registradas em gravação de reunião ocorrida em julho de 2013. “Se a gente coloca 'governo cubano', se nosso documento é público, qualquer pessoa vai entender que a gente está driblando a coisa de fazer acordo bilateral e pode dar uma detonada nisso.” COMENTÁRIO: Maria Alice estava preocupada em esconder o fato de que a importação de médicos é resultado de um contrato entre Brasil e Cuba. Por lei, qualquer acordo bilateral precisa ser aprovado pelo Congresso, o que não aconteceu neste caso. “Um médico deles vai fazer a supervisão nos estados. (...) Eu não vou colocar 'médico coordenador de brigada cubana'. Se são 9000 médicos e cinquenta assessores, eu vou colocar 9050 'médicos bolsistas'. Porque no programa não entra.” COMENTÁRIO: o governo cubano exigia que, para cada 300 médicos, houvesse um "coordenador" para garantir que não desertassem. Para o governo brasileiro, seria constrangedor oficializar a existência desses capatazes. Para resolver esse impasse, e novamente burlar a Opas se ofereceu para empregá-los como se fossem médicos comuns. Foi o que aconteceu. “Se o governo cubano pagar 2 ou 5 (mil), a confusão na mídia vai ser a mesma. Por isso, eu acho que isso é uma confusão que não é nossa.” COMENTÁRIO: a Opas sabia que estava atuando fora da lei trabalhista brasileira ao permitir que os médicos não recebessem o salário integral, já que o pagamento pelo serviço seria feito para o governo cubano, que por sua vez confiscaria a maior parte do valor. Maria Alice achava que, se isso viesse a público, o governo petista não teria de se explicar. Ela se enganou. “O Marco Aurélio [Garcia] voltou hoje de uma reunião. Sessenta para o governo e quarenta para o médico.” COMENTÁRIO: a frase revela o papel do assessor da Presidência na negociação com Cuba. Mas prevaleceu a sugestão de Maria Alice de deixar que o governo cubano decidisse sozinho que proporção dos salários dos médicos confiscaria. “1,6 bilhão de reais. Não acredito nisso. A gente já pulou quando falaram 1 bilhão!” COMENTÁRIO: Uema demonstrou surpresa ao ser informado de que a importação dos médicos custaria mais do que o previsto. Maria Alice sabia do que estava falando. Apenas um ano depois da reunião, o governo brasileiro já havia desembolsado integralmente o valor citado por ela. 3#8 A REDE DE PODER NAS CADEIAS Um relatório sobre o crime organizado no Rio Grande do Norte expôs a força dos bandidos, mas o alerta foi ignorado pelo governo — e as rebeliões explodiram. LESLIE LEITÃO O Rio Grande do Norte foi o palco nestes últimos dias de um enredo de descalabros em que os criminosos são mais poderosos que o poder público, e fazem questão de mostrar isso. De dentro da prisão, os chefes de quadrilha promoveram rebeliões em cascata e levaram a desordem às ruas, com o incêndio de ônibus e a disseminação do terror. A manifestação de força do crime não foi surpresa. Uma investigação do Ministério Público estadual, à qual VEJA teve acesso, já alertava para o alto poder de fogo da bandidagem encarcerada. "Eles utilizam o sistema prisional para organizar, planejar e cometer crimes sem que o Estado tenha o mínimo de controle", dizia o documento. Nada foi feito, e deu no que deu: escolas fechadas, transporte público paralisado e o governo, acuado, chamando a Força Nacional para tentar reaver o comando diante de situação classificada como "calamidade pública". A força do crime no Rio Grande do Norte foi vastamente mapeada e dimensionada na chamada Operação Alcatraz, que juntou documentos, escutas telefônicas, cadernos de contabilidade e apreensões de drogas e armas, numa ação do Ministério Público com o apoio da Polícia Militar e da Polícia Rodoviária Federal, entre 2013 e 2014. O material expõe a desfaçatez com que agem, dentro dos presídios, os chefões das duas facções criminosas do estado: uma filial potiguar do Primeiro Comando da Capital, o PCC paulista, e o Sindicato do Crime, dissidência da primeira e hoje mais ramificada. Uma escuta de junho do ano passado mostra que, enquanto a população de Natal assistia a Estados Unidos e Gana pela Copa do Mundo na Arena das Dunas, a gangue aprisionada do PCC se preparava para receber um aporte de dinheiro da matriz paulista. A verba era destinada à compra de armas — ou "chuteiras". Um criminoso conhecido como Milenium explica: "Nós somos tudo bandido. Nós mata, nós sequestra. O caixa está aí. Se conseguir comprar a 3000 reais, serão sete (armas). Sete irmãos com chuteira para jogar seu futebol". Um preso, em depoimento, contabilizou ao menos doze fuzis nas ruas, em mãos de integrantes do Sindicato. Ao encaminharem o resultado da investigação à Justiça, os promotores fizeram soar o alerta às autoridades: "As provas reunidas demonstram o pleno controle da organização criminosa do lugar onde seus integrantes deveriam estar sob o controle estadual". Os papéis apreendidos na Operação Alcatraz escancaram os meandros de um bando organizado. Cada soldado do Sindicato precisa desembolsar 400 reais por mês para reforçar um caixa usado em "ações especiais", como a da semana passada. Rifas interestaduais ajudam na arrecadação. Em uma delas, os prêmios eram cinco motos, inclusive uma potente Kawasaki Ninja; entre os felizes ganhadores estavam presos no Espírito Santo, Sergipe e Paraná. As regras nas cadeias do Rio Grande do Norte vinham da matriz do crime, em São Paulo, mas o centro de comando mudou à medida que os dissidentes do Sindicato foram ganhando território e poder. Hoje, controlam a maior fatia das unidades prisionais. Possuem estatuto próprio, nos moldes dos de quadrilhas de outros estados: "Todos os integrantes têm o dever de seguir a ética do crime", sentencia um dos itens. O de número 6 é uma espécie de manual de boas maneiras da bandidagem; veta o consumo de crack e do ansiolítico Rivotril, para que não se perca a consciência de cada ato. Já houve marginal suspenso por isso. Inimigas juradas, as duas facções que assombram o estado selaram pacto inédito nessa última onda de desafio acintoso ao poder constituído: segundo VEJA apurou, pela primeira vez promoveram uma ação conjunta. Integrante da comissão que foi ao presídio de Alcaçuz, em Natal, ouvir as reivindicações dos presos amotinados, o juiz Henrique Bezerra, da Vara de Execuções Penais, relata: "Chegaram à sala em que estávamos três representantes de uma galeria e dois de outra. Para nossa surpresa, eles se cumprimentaram amigavelmente". Em circunstâncias normais, o bando do PCC não trocaria palavra com os homens do Sindicato do Crime. "Testemunhamos ali algo extremamente perigoso: quadrilhas inimigas se uniram contra o Estado, e não houve reação à altura", avalia. No fim da semana, com o governo paralisado e secretários e diretores de presídios demissionários, o estado esboçava uma reação com o desembarque de 215 militares da Força Nacional em Natal, convocados para restaurar a ordem. Uma trégua foi acertada com os bandidos: eles aguardam o atendimento da lista de reivindicações que só serviu de desculpa para medir forças com as autoridades. Por ora, a rebelião está contida nos catorze presídios amotinados — quase metade dos 33 existentes no estado. Quanto tempo essa trégua vai durar, só os chefões do crime sabem. ___________________________________________ 4# ECONOMIA 25.3.15 LEVY E SEUS PERIGOS Se o governo recapitalizar a Petrobras, as contas públicas explodirão e o rebaixamento será inevitável. Isso é impensável, e o ministro já tem muito que pensar sobre o Orçamento MARCELO SAKATE Joaquim Levy assumiu o Ministério da Fazenda com a missão primordial de remediar o estrago nas contas públicas produzido pela presidente Dilma Rousseff no primeiro mandato. "Sem equilíbrio não há crescimento", vem repetindo o ministro. É uma mudança de rota considerável — e louvável. Até o ano passado, a norma era desequilibrar o Orçamento na ilusão de que haveria mais crescimento. Deu no que deu. O objetivo imediato emergencial, agora, é evitar o rebaixamento do país pelas agências de classificação de risco. Uma das estratégias de Levy e sua equipe tem sido desmontar a profusão de benefícios e subsídios distribuídos sem critério. Os cortes recaíram também sobre áreas até então consideradas prioritárias e sobre bandeiras publicitárias do governo, como os programas no setor de educação. As universidades federais sofreram um corte de 30% na verba repassada pelo Ministério da Educação. Os investimentos em infraestrutura recuaram em um terço no primeiro bimestre em relação ao mesmo período de 2014. O arrocho é inevitável, depois de anos tão pródigos em gastos. A derrapada fiscal fez a dívida pública subir de 53% para 64% do PIB desde o fim de 2010. "Desoneramos demais os impostos, além do que podíamos", admitiu, na semana passada, um dos mais ferrenhos defensores da estratégia econômica do primeiro mandato, Aloizio Mercadante, o ministro da Casa Civil. "Vamos ter de fazer uma reorganização das contas públicas", disse ainda, não se sabe se com convicção ou simplesmente na tentativa de apaziguar as incertezas entre os investidores. Um dos maiores obstáculos para restabelecer a ordem nas finanças é a resistência das próprias lideranças dos partidos aliados no Congresso. Os desencontros entre Dilma e o PMDB é um dos focos do fogo amigo. A presidente vinha tentando reduzir a participação do partido aliado no governo, mas à sua ação veio a reação dos caciques peemedebistas. Outro foco se encontra no próprio PT. Uma corrente mais fiel ao ex-presidente Lula (e também mais enrolada no petrolão) também vinha perdendo espaço, e por isso sabota Dilma pelas costas. Assim, as medidas encaminhadas ao Congresso inevitavelmente sofrem alterações e encontram resistência para ser aprovadas, como foi o caso da correção na tabela do imposto de renda e também a redução das desonerações tributárias. Há ainda um obstáculo estrutural para reequilibrar as finanças. De cada 10 reais do Orçamento, 9 têm destino certo e obrigatório. Apenas uma fração pode ser manejada livremente (veja o quadro na pág. 77). Do Orçamento de 2,86 trilhões de reais aprovado na semana passada, o governo tem liberdade para mudar apenas 295 bilhões de reais, pouco mais que 10% do total. É uma herança da Constituição de 1988, agravada nos últimos anos. De toda a receita proveniente da arrecadação de impostos, por exemplo, no mínimo 18% têm de ser aplicados em educação. O fim parece nobre, mas na prática isso incentiva o aumento das despesas sem critério e sem a cobrança de resultados, ao mesmo tempo em que deixa o Orçamento engessado e dificulta a administração em períodos de queda na arrecadação. Por isso, a primeira medida posta em prática pelos governos, quando precisam cortar gastos, é reduzir os investimentos em infraestrutura, que não são considerados obrigatórios. "A estrutura fiscal conspira contra o crescimento do país, porque ela induz a uma carga tributária que só aumenta ao longo do tempo e a um nível de investimento público baixo", afirma Bernard Appy, ex-secretário de política econômica do Ministério da Fazenda e hoje consultor. Para Paulo Rabello de Castro, um dos fundadores do Movimento Brasil Eficiente e autor do livro O Mito do Governo Grátis, o governo agrava o quadro recessivo da economia ao aumentar os impostos: "Há um problema insuperável no país que é a rigidez das despesas. Esse é o esforço de votação que o ministro Joaquim Levy não fez e que merece um pacto com a oposição", diz o economista. Segundo ele, reajustes que hoje são concedidos porque devem obrigatoriamente acompanhar o aumento do salário mínimo (caso de dois terços das aposentadorias pagas pelo INSS) deixariam de ser imutáveis e passariam a levar em conta a situação financeira do governo. O temor entre analistas é com o risco de o governo ter de socorrer, ao menos parcialmente, a Petrobras, por meio da venda de títulos públicos ou de empréstimos. Uma medida dessa natureza pode comprometer o ajuste fiscal capitaneado por Levy e, consequentemente, aproximar o país do rebaixamento da nota de crédito. De acordo com a agência Moody's, o pagamento antecipado pode totalizar 110 bilhões de dólares, ou 360 bilhões de reais. Isso pode acontecer porque a estatal ainda não conseguiu divulgar o balanço auditado do terceiro e do quarto trimestres do ano passado e precisa encontrar uma saída até maio. Cobrir a dívida da Petrobras seria catastrófico para as finanças públicas. Significaria um verdadeiro armagedon. É melhor nem pensar nessa possibilidade. ORÇAMENTO ENGESSADO Do total das despesas do governo federal, a maior parte possui destino certo e obrigatório. Apenas uma fração pode ser usada livremente, o que dificulta o ajuste das contas públicas (valores em reais). Investimentos e gastos livres: 295 bilhões (10,3%) Amortização da dívida (rolagem de títulos públicos): 1,13 trilhão Aposentadorias, benefícios assistenciais e trabalhistas: 526 bilhões. O maior vespeiro da contabilidade pública. Qualquer tentativa de reforma sempre é denunciada pelos sindicatos como redução de direitos adquiridos. Juros da dívida pública e outras despesas financeiras: 352 bilhões. Não pagar esta conta significa dar o calote na dívida pública. Funcionalismo: 237 bilhões. Sempre que o governo tenta segurar esta despesa, as greves se multiplicam pelas repartições. Transferência a estados e municípios: 229 bilhões. Parcela que, pela Constituição, deve ser repassada pela União. Outros gastos obrigatórios: 91 bilhões. O governo pode até economizar no cafezinho e em viagens, mas precisa pagar a conta de água e de luz. TOTAL: 2,86 TRILHÕES _____________________________________________ 5# INTERNACIONAL 25.3.15 5#1 UMA MINORIA BRUTAL 5#2 O PERIGO É INTERNO 5#1 UMA MINORIA BRUTAL A Tunísia é o único país que tomou o rumo certo depois da Primavera Árabe. O recente ataque terrorista pode unir ainda mais os cidadãos contra o radicalismo. FELIPE CARNEIRO Terroristas islâmicos não gostam de desenhos de Maomé, esculturas de touros alados ou pernas femininas à mostra. Mas se há algo que grupos como a Al Qaeda e o Estado Islâmico (Isis) realmente detestam é uma democracia funcional. De todos os países que passaram pela Primavera Árabe, os protestos que derrubaram ditadores no norte da África e no Oriente Médio a partir de 2011, a Tunísia é o único que tomou um rumo promissor. Foi lá onde tudo começou. O povo foi às ruas protestar contra o presidente Zine Ben Ali e acabou inspirando os cidadãos da Líbia, do Egito, da Síria, do Barein e do Iêmen a tentar o mesmo. Desde então, os tunisianos aprovaram uma Constituição que dá direitos às mulheres e confere liberdade de credo e de expressão a todos. Em 2013, quando um golpe militar derrubou a Irmandade Muçulmana no Egito e a crise bateu à porta de Túnis com o assassinato de líderes da oposição, o Ennahda, partido islâmico vencedor das primeiras eleições, cedeu lugar voluntariamente a um governo transitório, que terminou com a realização de eleições parlamentares no ano passado. O país, portanto, já passou por duas transições pacíficas de poder. É um recorde invejável. O sucesso não passou despercebido àqueles que consideram a democracia uma invenção desprezível do Ocidente. Na quarta-feira passada, terroristas com roupas camufladas e munidos de granadas e fuzis Kalashnikov aproximaram-se do Parlamento, em Túnis, a capital. Nesse momento, deputados discutiam com o ministro da Justiça, juízes e militares a implantação de medidas contra o terrorismo. Barrados pela segurança do Congresso, os terroristas fugiram para o Museu do Bardo, que integra o conjunto de edifícios e tem uma coleção de mosaicos. Quando se aproximaram de um ônibus, começaram a atirar nos turistas que desembarcavam. Em seguida, entraram na galeria pela porta principal. As forças que guardam o Parlamento chegaram em instantes, mas não rápido o suficiente para evitar a matança de 21 pessoas, a maioria delas turista. Dois terroristas, Yassine Laabidi e Hatem Khachnaoui, foram mortos. Eles viajaram em dezembro à Líbia para receber treinamento do Isis, o exército terrorista criado no Iraque que se expandiu por outras partes do mundo. Não se sabe se o objetivo inicial do Isis era matar turistas ou cometer uma chacina no Parlamento. Uma gravação divulgada na internet chama o museu de antro de infiéis e ameaça: "Dizemos aos apóstatas que estão assentados no seio da Tunísia muçulmana: esperem as boas-novas que vão feri-los, impuros". A população do país é 99% islâmica e quase a totalidade dela não enxerga problema nas peças do museu. A chacina de estrangeiros, por outro lado, é uma tática manjada de grupos terroristas porque atende com eficiência a dois de seus objetivos. O primeiro é causar um choque na comunidade internacional, já que as vítimas são de várias nacionalidades — incluindo espanhóis, japoneses, italianos, colombianos e ingleses, além de três tunisianos. O segundo é dar uma rasteira na economia local e enfraquecer o governo. Em 2013, a Tunísia recebeu cerca de 6 milhões de turistas, o mesmo número de estrangeiros que visitaram o Brasil, um país vinte vezes mais populoso. Os radicais islâmicos ainda não podem se declarar vitoriosos em seu intuito de desestabilizar a incipiente democracia tunisiana. O país tem uma população homogênea, sem divisões étnicas nem religiosas. É o oposto do Iêmen, onde xiitas, sunitas, tribos locais e terroristas lutam entre si. Na sexta-feira 20, dois atentados em mesquitas na capital Sanaa deixaram 142 mortos. Os ataques, também reivindicados pelo Isis, tinham os xiitas como alvo. "A Tunísia é como um bom garoto que vive numa vizinhança perigosa. Ela tem muitos problemas, mas até hoje lidou bem com eles", diz o cientista político americano Mark Tessler, da Universidade de Michigan. 5#2 O PERIGO É INTERNO O presidente venezuelano Nicolás Maduro volta-se mais uma vez contra os EUA, o inimigo externo preferido do chavismo, para justificar medidas de repressão à oposição. FELIPE CARNEIRO Quando o presidente Barack Obama anunciou a suspensão do visto e o bloqueio de bens nos Estados Unidos de sete chavistas, há duas semanas, disse que a Venezuela era uma ameaça à segurança nacional americana. O argumento nada mais é do que um requisito técnico para dar base legal ao decreto que impôs sanções a esses venezuelanos, acusados de comandar a repressão aos protestos de 2014, que deixou um saldo de 43 mortos. Em Caracas, a questiúncula burocrática foi considerada uma declaração de guerra. O presidente Nicolás Maduro ordenou dez dias de exercícios militares e demonstrações das milícias bolivarianas. "Convido todos os venezuelanos a apoiar as Forças Armadas e a milícia nacional nesse exercício necessário para marcar os pontos defensivos para que ninguém toque em nossa pátria. Que a bota ianque nunca a alcance", disse Maduro. O chavista também pagou anúncio de uma página no jornal americano The New York Times para dizer que a Venezuela não é uma ameaça. Anunciou ainda a coleta de 10 milhões de assinaturas em seu país para forçar Obama a se retratar. De nada adiantou a explicação do chanceler americano na Organização dos Estados Americanos de que o anúncio era apenas uma questão legal. "Meu país não está preparando nenhuma invasão militar contra a Venezuela", disse o chanceler Michael Fitzpatrick. "Os Estados Unidos não criaram os problemas que os venezuelanos enfrentam, e somente eles podem solucioná-los." O histrionismo de Maduro não é destinado a Washington. Seu objetivo é justificar a repressão da oposição e desestimular chavistas desiludidos com o seu governo a tirá-lo do Palácio de Miraflores. "Ele sabe que chegou a uma situação crítica e sem saída", diz Jesus Torrealba, o Chúo, secretário-executivo da Mesa da Unidade Democrática (MUD), que congrega os partidos da oposição na Venezuela (leia a entrevista abaixo). A reação exagerada de Maduro e sua insistência em denunciar supostas tramas golpistas também ajudam a desviar a atenção da população do caos econômico criado por ele e seu antecessor, Hugo Chávez. O cenário inclui falta de alimentos, inflação de mais de 70% ao ano, aumento da pobreza e corrupção. Mesmo com a piora dos indicadores, nada consegue convencer Maduro e companhia a mudar o comportamento. Depois das paradas militares do sábado 14, seu filho, Nicolás Ernesto Maduro Guerra, de 24 anos, foi para o casamento de um empresário sírio em um hotel de Caracas. Nicolás Jr., como é conhecido, subiu ao palco para dançar e foi ungido com uma chuva de dólares. Mesmo sem experiência alguma, ele já foi chefe do Corpo de Inspetores Especiais da Presidência e diretor da Escola Nacional de Cinema. No ano passado, visitou a Argentina para dar aula de abastecimento e encontrar-se com deputados e com a presidente Cristina Kirchner. Com 22% das prateleiras vazias na Venezuela, ele não tem nada a ensinar sobre o tema. “MADURO DESEJA O GOLPE” Todas as manhãs, às 5h30, o radialista venezuelano Jesus Torrealba transmite de alguma favela da capital Caracas um programa em que atende a ligações da população. Filho de líderes sindicais e membro do Partido Comunista na adolescência, Chúo foi nomeado, em setembro do ano passado, secretário- executivo da Mesa da Unidade Democrática (MUD), que reúne as siglas de oposição. De Caracas, ele falou a VEJA por telefone. "Chúo" é o apelido na Venezuela para aqueles que se chamam Jesus. Por que Maduro fala tanto em golpes de Estado? Existe, de fato, algo sendo preparado contra ele? O presidente, mais do que fazer referência a uma possível trama em gestação, a invoca. Maduro deseja o golpe. Ele encabeça um regime que não tem ferramentas econômicas, sociais ou políticas para fazer frente à crise que ele e seu antecessor, Hugo Chávez, criaram. As pesquisas de opinião mostram que 80% da população quer Maduro fora do Palácio de Miraflores (a sede do Executivo). As eleições parlamentares devem ocorrer neste ano. Por que a oposição pensaria em se arriscar em um golpe se a vitória nas urnas é certa? Não faz sentido. Para Maduro, o raciocínio é o oposto. Ele sabe que chegou a uma situação crítica e sem saída. O presidente já falou em dezesseis golpes de Estado, sem nunca apresentar provas de nenhum deles. O que Maduro ganharia se houvesse um golpe contra ele? Se ocorresse uma tentativa real, o governo poderia sufocá-la. Em seguida, acabaria de uma só vez com os adversários de dentro e de fora do governo. Outra possibilidade é que, caso um golpe fosse bem-sucedido, ele se sairia como vítima e não teria de prestar contas de seu mandato desastroso, da corrupção e das violações aos direitos humanos. A Assembleia Nacional deu plenos poderes ao presidente. Ele permitirá que as eleições parlamentares aconteçam? Maduro fará isso não porque tenha apreço à democracia e sim porque, hoje, o custo de não realizar a votação seria superior ao de sair derrotado. As tintas autoritárias e corruptas do seu governo não ganharam a solidariedade automática do povo. Sem cacife para impedir as eleições, ele prefere deteriorar a oposição e enfrentar adversários fracos. Ele já disse que vai colocar alguns partidos na clandestinidade e sequestrar mais líderes da oposição. Por que o senhor fala em sequestros, e não em prisões? As detenções dos prefeitos Antonio Ledezma, de Caracas, e Daniel Ceballos, de San Cristóbal, aconteceram sem ordem judicial. Já Leopoldo López foi indiciado pelos atos de violência nos protestos de fevereiro de 2014, e está preso desde então. Mas já foi provado, até mesmo pela investigação oficial, que os responsáveis pelas violações foram os funcionários do Estado. No entanto, López continua na cadeia sob o argumento insólito de que um time de linguistas analisou seu discurso e encontrou mensagens subliminares incitando a população a dar um golpe. Manter o líder de um dos mais importantes partidos do país em uma prisão militar por supostas mensagens subliminares não tem cabimento. É possível que um golpe seja desfechado de dentro do governo? Quem diz isso são os aliados de Maduro, como o (ex-presidente uruguaio) Pepe Mujica. De fato, são os que estão dentro do poder que teriam hoje condições para isso. Maduro diz que toda oposição ao seu governo é de direita. Isso faz sentido? Nem todos da oposição se identificam com a direita, assim como nem todos que estão no poder são de esquerda. No governo, há muitas pessoas que se dizem de esquerda, mas não passam de generais reacionários. O projeto deles é levar nosso país a um cenário caudilhista como o do século XIX na Venezuela, o que não tem nada a ver com as propostas da esquerda mundial mais avançada. No caso da oposição, há líderes socialdemocratas, da centro-esquerda moderna e de partidos que pertencem à internacional socialista. Os Estados Unidos são mesmo um problema a ponto de justificar que a Assembleia dê mais poderes a Maduro? A Venezuela tem uma longa história de enfrentamento com os Estados Unidos. Nosso país não reconheceu governos ditatoriais apoiados pelos americanos na América Latina. Participou da criação da Opep, a organização dos países exportadores de petróleo, e colaborou com os sandinistas na Nicarágua e com a guerrilha em El Salvador. Essa postura é distinta da que adotaram os governos de Chávez e Maduro. Verbalmente, eles enfrentam os Estados Unidos. Economicamente, são dóceis e dependentes das vendas de petróleo ao mercado americano. O senhor apoiou Hugo Chávez no início? Nunca fiz isso. Desde que ele tentou um golpe militar, em 1992, vi claramente o caráter autoritário e antidemocrático desse personagem. Há algumas décadas, a Venezuela era a vanguarda da modernidade na América Latina. Para cá, imigravam uruguaios, chilenos e argentinos fugindo da ditadura militar em seus países. Atualmente, depois de ter obtido 1 trilhão de dólares nos últimos doze anos com receitas do petróleo, nosso país deveria estar ratificando essa mesma condição de pilar do que há de mais moderno na região. Em vez disso, o país está em ruínas. Como militante de centro-esquerda, quero acabar com esse caudilhismo ultrapassado e abrir caminho para um progresso real. Um aumento no valor do barril de petróleo poderia salvar esse governo? A deterioração da economia venezuelana não começou com Maduro. Ela está ocorrendo há dezesseis anos, desde que Chávez começou a destruir o aparato produtivo e a capacidade da economia venezuelana de suprir o mercado interno e exportar. Com Chávez, o venezuelano que ia comprar leite no mercado passou só a encontrar marcas equatorianas. A carne hoje é brasileira. Os grãos são nicaraguenses. Onde estão os dólares para importar alimentos? A corrupção, que já era grave com Chávez, transformou-se em um saque aberto com Maduro. As divisas que eram necessárias para as importações foram objeto de um roubo escandaloso por parte dos funcionários desse governo. Se esses desvios fossem estancados, seria possível reerguer o país em pouco tempo? A Venezuela só possui 30 milhões de habitantes. Isso faz com que, pelas contas, tenhamos uma elevada renda per capita. Mas a diferença dos dados oficiais para a realidade do cidadão é gigantesca. Deveríamos viver como milionários, mas não temos o que comer. Para recuperar o país não é preciso um milagre. Os recursos existem. Só precisamos construir uma economia livre, aberta e produtiva que seja capaz de financiar uma sociedade inclusiva, justa e democrática. De que a população mais se queixa no seu programa de rádio? Falta de comida, de produtos e insegurança. As pessoas precisam dormir nas filas dos supermercados, ao relento, para encontrar algo nas prateleiras. Há ainda uma grande angústia, porque as duas chaves para o progresso do indivíduo e da família sempre foram o estudo e o trabalho, que estão paralisados. Acabou a mobilidade social. Como a população se informa, se os meios de comunicação estão nas mãos do governo? Sem dispor dos canais de televisão e veículos independentes, o povo desenvolveu outros métodos. As donas de casa se inteiram dos fatos nas filas dos mercados. Os jovens usam as redes sociais virtuais. _________________________________________ 6# GERAL 25.3.15 6#1 GENTE 6#2 GUSTAVO IOSCHPE – HÁ MULTIDÕES EM MIM 6#3 ESPORTE – OS SEGREDOS IMPORTADOS POR TITE 6#4 CARREIRA – O SHOW DAS PREPARADAS 6#5 SAÚDE – CORAÇÃO PRESERVADO 6#6 HISTÓRIA – UMA GRANDE FAMÍLIA 6#1 GENTE JULIANA LINHARES. Com Daniella De Caprio e Thaís Botelho. E ELA TEM CARA DE QUEM VAI SE ENCOSTAR? Quem gosta de desfiles de moda e de ver modelos bonitas tomou dois sustos na semana passada. Um deles causado pela insinuação de que GISELE BÜNDCHEN se aposentaria das passarelas. O outro, pela ministra da Saúde francesa, Marisol Touraine, que apresentou um projeto de lei absurdamente autoritário, criando penas de multa e prisão para donos de agências que admitissem modelos muito magras. Dessa maluquice o mundo passou longe: a Câmara dos Deputados rejeitou a proposta que criminalizava a magreza e eventualmente levaria a patrulhas do peso. Já a aposentadoria de Gisele foi só uma saída elegante para a não renovação do acordo referente a desfiles do contrato com a marca que a traz anualmente a São Paulo. Gisele continua faturando alto com desfiles e campanhas para grifes de elite, como a Chanel. E com fotos ousadas, especialmente quando quer vender os próprios produtos. Esta ao lado foi sugestão dela. Aguenta, Marisol. PINCTADA MÁXIMA As pérolas do tipo South Sea, que só dão numa área específica do Pacífico, na ostra chamada Pinctada máxima, são a perdição de mulheres de meia-idade e conta bancária bem inteira. Mas dificilmente seriam a gota que entorna o caldo da presidente argentina CRISTINA KIRCHNER. São tantos os casos de desmando que passou até algo despercebida a denúncia de uma deputada oposicionista a um juiz, por ocultação de bens, acompanhada de 200 fotos indicando que o porta-joias presidencial já bate em quase 3 milhões de dólares. Salta aos olhos a predileção pelas luminescentes pérolas, com colares avaliados entre 120.000 e 200.000 dólares. Ela escolhia por catálogo, mandava o segurança buscar e pagava em dinheiro, disse Sérgio Hovaghimian, ex-representante da joalheria mais chique de Buenos Aires, a Jean-Pierre. ESTILOS CONVERGENTES Os lábios polpudos, as pálpebras sensualmente dobradas e o queixo marcante são naturais. O resto foi tudo microscopicamente estudado. Até o cigarro, que, no caso de Augustus, o personagem de ANSEL ELGORT em A Culpa É das Estrelas, não é aceso, mas serve para acentuar as semelhanças com Marlon Brando. O abrutalhado Stanley Kowalski de Brando em Um Bonde Chamado Desejo incendeia as telas há 64 anos. No que depender de legiões de fãs, Ansel, que tem 21 anos e namorada firme, é filho de um fotógrafo de moda e está no novo filme da série Divergente, terá uma boa sobrevida no touch screen. Ninguém pensaria em comparar talentos. OS CENTÍMETROS QUE NÃO FAZEM A DIFERENÇA Quem faz reverência a quem? Entre cidadãos republicanos, ninguém. Entre súditos de monarquias europeias, quem quiser. Entre membros de famílias reais, depende da ordem de precedência e da casa real. Na avançada Dinamarca, é uma tradição, mantida com algum exagero pela princesa MARY, a australiana que um dia será rainha consorte. Diante da argentina MÁXIMA, que já chegou lá na Holanda, emparelhou os Louboutins e quase tocou o joelho no chão. Já no caso de MICHELLE OBAMA, foi uma pequena tropeçada no salto prateado que a levou curvada para o cumprimento a AKIHITO. E também um gesto de cortesia, visto que o imperador do Japão bate bem abaixo do ombro dela. É o marido de Michelle quem costuma se curvar em ângulo de quase 90 graus diante de cabeças coroadas, talvez fruto de sua criação na Indonésia ou da vontade de irritar os ânimos republicanos da oposição. 6#2 GUSTAVO IOSCHPE – HÁ MULTIDÕES EM MIM No domingo 15, estava com meus filhos na passeata da Avenida Paulista. No meio da multidão de 1 milhão de pessoas, segundo a PM, lembrei-me de uma passagem que me marcou, do livro A Condição Humana, de Hannah Arendt: para gregos e romanos antigos, o conceito de privacidade, da vida privada, estava intimamente associado à ideia de privação, de falta (e não é por acaso que ambas as palavras têm raízes comuns em português e outras línguas modernas). "Um homem que levava uma vida exclusivamente privada, que — como o escravo — não podia penetrar a dimensão pública (...), não era plenamente humano." Sei que muita gente de esquerda (que participa de outras passeatas, mais profissionais, se vocês me entendem...) vem dizendo que essas manifestações contra o atual governo são cheias de ódio, recalques etc. E é óbvio que, em agrupamentos com essa quantidade de participantes, houve também no domingo gente desequilibrada (sempre me impressiona como um microfone e uma plateia são um verdadeiro Viagra para certas mediocridades). Mas a tônica do domingo foi justamente o oposto: um movimento em que milhares de pessoas saíram da vida privada para a construção de algo maior, conjuntamente. Assim, reconquistaram um pedaço importante de sua humanidade — aquele que diz respeito a ver e ser visto pelo outro, a fazer algo pelos demais, a deixar no planeta um rastro de sua passagem por aqui ao fazer algo maior que si mesmos. A passeata foi, por isso, feliz e festiva. O sentimento não foi de ódio, mas de plenitude, de realização. Estávamos lá dizendo, a um governo que há mais de doze anos insiste na divisão, no sectarismo, na criação do "nós contra eles", na separação de minorias, na cisão da sociedade, que, enfim, ele perdeu, seu esforço foi em vão: queremos mesmo é estar juntos. Queremos unir esforços. Queremos um país grande, pujante, melhor. Para todos. Que doce ironia do destino: o governo que insiste em nos separar foi justamente o catalisador do maior movimento de união nacional desde as Diretas Já. Os manifestantes da sexta-feira, naquele esquizofrênico "protesto a favor", vestiam vermelho e bradavam palavras de ordem. No domingo, a massa vestia verde e amarelo, empunhava o pavilhão da pátria e a música mais repetida era o Hino Nacional. Quando chegava à manifestação, cruzei com o deputado Paulinho da Força, com cara de poucos amigos e falando agitado ao celular. Depois descobri que ele fora banido do carro de som. Era um protesto da sociedade, não de partidos políticos. Esse movimento não vai se deixar instrumentalizar por quem quer que seja, porque é espontâneo: é o desejo que temos de construir um país melhor para os nossos filhos. Porque sabemos que o Brasil pode muitíssimo mais do que este governo tem a oferecer, que os brasileiros temos mais capacidades do que crêem os atuais mandatários; não precisamos de cabresto nem de esmola. Não foi por acaso que levei meus filhos, apesar de talvez serem pequenos demais para guardar a lembrança: gostaria que eles vissem, primeiro, a beleza e a grandiosidade que surgem quando as pessoas fazem algo pela coletividade. E, segundo, que soubessem que democracia, como tudo na vida, requer esforço. Votar é bom, mas não é suficiente: precisamos falar, caminhar, cantar, agitar. Ninguém fará isso por nós. Essa passeata não aumentou minha raiva ou descontentamento com o governo Dilma. Pelo contrário, até: entendi que esse governo é uma página virada, e não faz sentido nutrir ódio de falecidos. Pode até ser que Dilma chegue ao fim do mandato, mas ficarei surpreso se ela conseguir efetivamente governar. No melhor cenário para a presidente, os próximos quase quatro anos serão de manobras para se manter no poder. Não creio que consiga construir ou legar algo, porque a maioria da população — como demonstram os 62% de ruim ou péssimo no último Datafolha e os fantásticos panelaços diante da TV — simplesmente não tolera mais ouvi-la. Nossa relação com Dilma é como a daqueles casais que se detestam: eles podem até precisar continuar a viver sob o mesmo teto em razão dos filhos ou de questões financeiras, mas sabem que jamais se amarão novamente. O sentimento que ficou da passeata foi de energização e esperança. Energização porque hoje me sei parte de algo muito grande. Como escreveu Walt Whitman: "Eu sou vasto, há multidões em mim". Eu estou na multidão, e a multidão está em mim. Não pretendo me desfazer desse vínculo. Sempre que houver gente nas ruas pela causa de um Brasil maior, eu estarei lá. E esperançoso porque estou vendo uma parte da nossa sociedade que até hoje foi majoritariamente inerte e passiva finalmente abraçar este país como sendo seu, assumindo suas responsabilidades de cidadão. É algo raro na nossa história, quase sempre urdida em gabinetes de poucos. Não sei quanto tempo isso há de durar (provavelmente pouco, dada a nossa tradição no assunto), mas, mesmo que seja efêmera, é uma passagem que nos engrandece e protege: todo governante incompetente ou pilantra (ou, como o atual, ambas as coisas) haverá de saber que nossa tolerância tem limites. O que acontecerá daqui para a frente? Arendt, no mesmo livro já citado, ensina que a característica da ação pública é sua imprevisibilidade. Sabemos como ela começa, mas nunca como terminará, porque é moldada pelos medos, desejos, erros e acertos de todos os milhões de pessoas que a compõem. Mas suspeito que as próximas passeatas terão mais gente do que esta última. Porque quem foi nesta há de certamente querer voltar, e trazer mais amigos e familiares. E quem, descontente com esse mar de lama e inépcia que nos assola, não participou deve estar se remoendo de arrependimento. A planície deverá continuar rugindo enquanto a combinação de corrupção, inflação e recessão estiver na capa dos jornais. Resta saber como reagirá o Planalto. Vejo dois caminhos. No primeiro, Dilma aguenta o tranco, mantém o ajuste fiscal, corrige grande parte dos erros do primeiro mandato e sobrevive a dois anos duros, colhendo alguma calmaria nos dois últimos anos de mandato. O problema aqui é de timing. Como se diz no mercado financeiro, seu dinheiro pode acabar antes de ficar provado que você estava certo. A insistência em um ajuste recessivo, comprovando o estelionato eleitoral, rouba de Dilma o grosso de sua base de apoio, desiludida com um governo petista que faz uma gestão tucana. Sem esse apoio, talvez o governo não tenha tempo de insistir no acerto, antes que lhe falte sustentação. O mais provável, portanto, é que os camaradas abracem os populistas que há dentro deles e dobrem a aposta em um governo "de esquerda", fiscalmente irresponsável, gastador. A economia iria para o beleléu, a inflação voltaria forte, o real e a bolsa derreteriam, Levy iria embora, o confronto social seria terrível, mas a presidente reconquistaria o apoio dos 30% que são petistas fiéis. Com essa base e com os gordos cofres do governo à disposição, cindiria profundamente o Brasil, apostando no trololó da defesa dos oprimidos contra os interesses da elite para se manter no poder. Sinceramente, espero que nada disso aconteça. Acho que esse governo perdeu as condições de liderar o Brasil e de tirá-lo da crise em que ele próprio, desnecessariamente, o meteu. Se Dilma tiver espírito público, entenderá que sua permanência no poder prejudica o país e renunciará. Ou, se a população continuar a ter espírito público, oxalá o Congresso encontre maneiras de, na estrita legalidade, impedir esse governo de continuar afundando o país. GUSTAVO IOSCHPE é economista 6#3 ESPORTE – OS SEGREDOS IMPORTADOS POR TITE Durante seu ano sabático, em 2014, o treinador do Corinthians foi à Europa ver como jogam —- e, sobretudo, como treinam — as melhores equipes do mundo. De lá trouxe um arsenal de recursos e um padrão de jogo que dão algum alento ao triste futebol brasileiro. ALEXANDRE SALVADOR Um pouco antes da Copa do Mundo de 2014, para sempre resumida pelos humilhantes 7 a 1 do Mineirão, o ex-craque alemão Paul Breitner foi à televisão com um veredicto amargo e visionário. "O Brasil dorme desde o título de 2002. Nós, na Alemanha, olhamos para fora. Vocês precisam aceitar que jogam um futebol do passado." Oito meses depois da maior de todas as derrotas, nada mudou e, aparentemente, nada mudará. Com uma possível única exceção, a de Adenor Leonardo Bachi, o Tite, gaúcho de 53 anos, treinador do Corinthians. Ele poderia ter se deitado nas glórias dos títulos da Libertadores e do Mundial de 2012. Poderia deixar que se mantivesse a fama de competência associada às brincadeiras pelo uso exagerado de expressões rebuscadas, algumas delas inventadas, como "treinabilidade", em "titês" castiço. Mas não. No ano passado, afastado do clube paulista, tirou um ano sabático para estudar futebol — e da temporada de estudos nasceu um novo técnico, com postura à margem de campo e nos treinamentos compatível com a dos grandes da Europa (veja exemplos de treinamentos aplicados por Tite nas págs. 94 e 95). Tite acompanhou in loco, nos estádios, dez partidas de clubes europeus e sul-americanos, inclusive a final da Liga dos Campeões do ano passado, com a vitória do Real Madrid sobre o Atlético de Madrid, em Lisboa. Passou alguns dias nos centros de treinamento do Arsenal, da Inglaterra, e também do Real espanhol. Anotou tudo o que viu com dedicação juvenil. Tem gravados todos os 64 jogos da Copa do ano passado, que disseca com rigor científico, atento "ao posicionamento tático, estratégia e marcação". O objetivo, nada inconfessável, era ser chamado para a seleção depois do Mundial. Como o telefonema da CBF não veio, voltou ao Corinthians. Neste ano, são dezessete jogos — treze vitórias, três empates e uma única derrota. São 29 gols a favor e seis contra. O.k., não é nenhum Barcelona (dezenove jogos, dezessete vitórias e duas derrotas, 59 gols a favor e treze contra), mas ninguém estará errado ao dizer que a equipe de Tite é a mais bem arrumada do Brasil hoje (e quando se diz hoje, no Brasil, é hoje mesmo, porque é comum que uma pequena sucessão de resultados ruins ponha tudo a perder). Estudar fora, embora pareça banal, pode fazer toda a diferença no futebol. Equivale a um político ardiloso passar uma temporada dentro do House of Cards e dali sair com todas as vilezas de Francis J. Underwood. Para evoluir no futebol, convém mesmo não prestar muita atenção ao que se passa nos campeonatos brasileiros. Tostão, ex-craque no gramado e o melhor cronista esportivo da atualidade, destacou em artigo para a Folha de S.Paulo o efeito Tite ao importar boas ideias. "Está virando moda", anotou. "Os técnicos Vágner Mancini e Dorival Júnior estavam juntos na Europa quando receberam telefonemas do Santos, um minuto depois do outro." Dos campos europeus Tite trouxe a nova formação corintiana, o 4-1-4-1 (quatro defensores, um volante, quatro meias e um atacante), colada das seleções da Alemanha e da França, mas sobretudo do Real Madrid. Em outubro do ano passado, depois da frustração com a seleção, o técnico gaúcho fez uma visita de cinco dias ao Real Madrid, comandado pelo italiano Cario Ancelotti. A dupla almoçou e jantou junto e a sobremesa para Tite foi um convite para acompanhar os treinamentos do time de Cristiano Ronaldo. "O Ancelotti é um meio-termo entre o José Mourinho, do Chelsea, e o Pep Guardiola, do Bayern", afirma o brasileiro. "De um extrai a marcação forte; do outro, a agressividade e a criatividade no ataque." Tite diz ter emprestado de Ancelotti, com quem hoje conversa por WhatsApp, uma arte há muito perdida no Brasil, a dos treinamentos como fiel reprodução das situações de jogo — algo que apenas Carlos Alberto Parreira praticou com excelência, inclusive com a seleção campeã do mundo em 1994, sobejamente criticada pela chatice, mas que já pede uma revisão, a partir da qual descobriremos que a equipe tocava a bola como os bons clubes europeus contemporâneos. A estratégia, ensina Tite, ancorado em seu patrono italiano, é eliminar os treinos recreativos, popularmente chamados de "rachões", mais adequados a treinar risadas que jogadas. Diz-se que jogo é jogo, treino é treino — com Tite, treino também é jogo. Tentar mimetizar o que se dará na partida é o que vale. "Depois de um treinamento, o Ancelotti veio me dizer o seguinte: 'Tite, eu abro mão da quantidade, mas não da intensidade'. Daí eu abri um sorriso, porque esse também é um conceito meu. Um dia antes de qualquer jogo, faço o que ele faz: dou vinte minutos de atividade, depois praticamos bola parada. A descontração se faz no aquecimento, no jogo de bobinho." Soa um tanto óbvio, mas a graça e a dificuldade do futebol, e que compõem sua mágica, é fazer do simples o natural. Uma das mais conhecidas citações do esporte — "É preciso atacar e defender com a máxima eficiência" —, feita pelo alemão Josef "Sepp" Herberger (1897-1977), treinador da seleção campeã do mundo de 1954, ao vencer na final a inimitável Hungria de Puskas e cia., tem o jeitão de lugar-comum, mas virou mantra buscado com avidez pelos treinadores que sabem o que querem. Parreira a repete com frequência. Outro histórico técnico, o holandês Rinus Michels, o pai do "futebol total" da Holanda vice-campeã do mundo de 1974, também bebeu dessa mesma matriz genética, seguida por Cruyff e Guardiola. "Se você ataca, é porque abriu espaço na defesa, e, se está na defesa, há espaços para atacar", disse Cruyff, um dos mais inovadores jogadores de todos os tempos, depois transformado em excelente treinador. Tite, modestamente, tenta se colar a esse mesmo DNA. Sabe que não dispõe da mesma qualidade de mão de obra (embora jamais reconheça essa triste condição), sabe que os torneios locais, especialmente os regionais, beiram o grotesco e tem a exata noção de que nas partidas da Libertadores mais vale o coração que a cabeça. E, no entanto — até que desponte um resultado ruim, imperdoável no Brasil —, deu ao Corinthians algo raríssimo: padrão de jogo. Não é o caso de esperar grandes espetáculos, jogos de muitos gols, mas toda partida do Corinthians de Tite tem feito jus a outra máxima de Cruyff: "O futebol é um jogo para ser jogado com a cabeça". DA PRANCHETA PARA O GRAMADO Três exemplos de treinamentos comandados por Tite SAÍDA DE BOLA O treino - Com o campo reduzido, os dois times ficam com três jogadores a menos - sem os dois meias que correm pelas laterais e sem o atacante. Cada jogador pode dar até três toques na bola, caso contrário dá a posse ao adversário. Vale a lei do impedimento, de modo a manter as características de uma partida de campo inteiro. Reflexo no jogo - Sem os atacantes, os defensores e os outros jogadores de meio-campo são obrigados a aumentar sua compactação e melhorar a qualidade do passe. Usar a formação espelhada nos dois times ajuda a impregnar dessa filosofia também os suplentes. TOMADA DE DECISÃO O treino - Também em campo reduzido, os dois times jogam completos - onze contra onze. Cria-se um meio-campo imaginário: no setor defensivo, valem até três toques na bola. No ofensivo, o número de toques é livre. Reflexo no jogo - No campo de defesa, desenvolve-se rapidez de passes e deslocamentos para que o adversário não tenha tempo de fazer a marcação. No ataque, onde geralmente acontecem embates mano a mano, vale a criatividade do drible. MARCAÇÃO POR ZONA O treino - De acordo com a característica do adversário, Tite determina a posição do time quando não tem a bola: marcação baixa, média ou alta. A intensidade é definida pela distribuição da equipe em campo, sendo a alta a mais próxima do campo do adversário. Reflexo no jogo - Cada jogador é responsável por uma faixa de pressão no adversário. Ele não marca um jogador específico. Ao preencher os espaços do campo, o time dificulta o passe mais articulado da outra equipe. 6#4 CARREIRA – O SHOW DAS PREPARADAS Com formação aprimorada para atenderem um público ávido por informações, as moças do tempo querem fazer mais e melhor. Se possível, na bancada dos grandes telejornais. THAIS BOTELHO Qual a diferença entre clima e tempo? Qualquer das profissionais em atividade hoje na televisão saberá responder na hora. Faça sol ou, principalmente, chova, as moças do tempo são uma presença especializada e em expansão nas telas. Até um passado não muito distante, elas chamavam a atenção de quem dependia do sol ou da chuva para a agricultura — hoje, informações altamente segmentadas e instantâneas — ou como referência de guarda-roupa: o que vestir de manhã, tanto para quem ia sair à rua quanto para quem queria se inspirar no visual delas, sério, mas com um toque de sedução. Agora, as repórteres do tempo, como muitas preferem ser chamadas, atendem à sede de informações nessa área com um currículo reforçado. A primeira moça do tempo brasileira foi Vera Malfa, meteorologista do Bom Dia São Paulo, da Globo, de 1977 a 1980. Depois dela, vieram jornalistas como Márcia Mendes, Sandra Annenberg, Mariana Godoy e Patrícia Poeta. Elas funcionaram como grande estímulo à atual geração de profissionais pelo destaque conseguido ao ascender ao cobiçado lugar de apresentadoras. A influência delas se reflete nos cursos universitários: em 2002, existiam apenas seis graduações em meteorologia no país; hoje, são onze. No curso da USP, há até uma cadeira de meteorologia nos meios de comunicação, para quem quer trabalhar na imprensa — e na TV, no rádio e na internet. "Se eu abrir uma vaga de jornalista do tempo agora, vai ter 100 na minha porta para fazer teste. Hoje, elas são apresentadoras completas, não mais as meninas que falavam só de sol e chuva", diz Hélio Matosinho, editor executivo do Jornal da Record. Rosana Jatobá, moça do tempo na Globo de 2005 a 2012, compara: "Não éramos vistas como capazes de falar de fenômenos que impactam desde a dona de casa até o empresário e o produtor rural". Além dos cursos constantes de atualização que fazem no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), as profissionais em atividade atualmente precisam usar os cerca de sessenta a noventa segundos que têm nos jornais para dar, além das informações gerais sobre o tempo, relatos aguardadíssimos a respeito de volume morto, bacias hidrográficas e reservatórios. O figurino também mudou. Blazer, calça e cabelo preso deram lugar a saias até cinco dedos acima do joelho, saltos altíssimos e cabeleira livre. Mas com várias regras. "Não aprovamos roupas de seda nem de cetim porque, com a luz do estúdio e a movimentação da apresentadora, elas brilham. Listas finas, xadrezinho e estampas pequenas também não, porque parecem vibrar", descreve Paula Iglecio, gerente de figurino da Band. "Só uso lingerie cortada a laser para não marcar a roupa e tecidos mais justos, porque os soltinhos engordam", diz a moça da Record, Patrícia Costa. Laura Ferreira, formada em meteorologia, com um curso técnico de rádio, tem quadros em dois telejornais na Bandeirantes e faz dezesseis entradas na programação de uma das rádios do grupo. Ela explica a mecânica por trás do resultado final. "O mapa que os telespectadores vêem em casa é, no estúdio, uma arte aplicada sobre um fundo azul ou verde pela técnica de chroma key. Tenho três pequenos televisores, um na minha frente e dois nas laterais, onde vejo os estados, com o canto dos olhos, e os aponto na tela. Foram anos de treino. No começo, falei muito da Bahia mostrando Pernambuco", brinca Laura, que tem no tornozelo uma tatuagem com as iniciais dos filhos. "Depois que a Poliana Abritta apareceu no Fantástico com tatuagem, acabou a proibição." Os pioneiros e assistidíssimos quadros de meteorologia da televisão americana detêm o maior índice de acerto das previsões, até 98%. "Nos Estados Unidos há mais radares, estações meteorológicas e tecnologia do que no Brasil, além de uma condição atmosférica mais fácil de ser prevista. O Brasil tem 80% de sua área entre os trópicos de Capricórnio e Câncer. Isso faz com que sejamos atingidos por uma enorme diversidade de ventos, pressões, temperaturas e umidade", explica José Aravéquia, chefe da divisão de operações do Inpe, grande fonte de informações para os jornais. Os profissionais também cruzam dados do Instituto Nacional de Meteorologia, da Sociedade Brasileira de Meteorologia e de observatórios privados, como a Climatempo. Carlos Magno, que foi o homem do tempo na Globo ("Boni queria que eu usasse peruca; eu disse que não, e eles deram um jeito de fazer maquiagem para parecer que eu tinha mais cabelo"), hoje dirige a Climatempo, que tem o próprio canal de TV a cabo e programas na internet 24 horas por dia. "Apostamos na internet, 30% do nosso faturamento vem dela", diz Magno, que conta com uma equipe de quatro apresentadoras. "Elas chamam mais atenção para a notícia. Nossos oito meteorologistas homens ficam em outras áreas, como o monitoramento." Em tempo: a momentaneidade e a permanência definem a diferença entre os fenômenos atmosféricos, e uma definição amplamente aceita é que clima é o conjunto de tempos meteorológicos ao longo de um período de trinta anos. 6#5 SAÚDE – CORAÇÃO PRESERVADO Menos invasivo, um novo procedimento é a esperança para os portadores de insuficiência mitral degenerativa, um dos problemas cardíacos mais comuns entre pessoas idosas. CAROLINA MELO A insuficiência mitral degenerativa é um daqueles males típicos do envelhecimento. Cerca de 5% das pessoas com 60 anos ou mais apresentam o distúrbio — aos 55 anos, a incidência gira em torno de 1%. Com o aumento da expectativa de vida, a previsão é que, em duas décadas, o número de doentes quadruplique, o que representará cerca de 4,5 milhões de pessoas apenas no Brasil. Deixada a seu curso, a doença pode evoluir da falta de ar e cansaço à morte por insuficiência cardíaca ou edema agudo de pulmão. Até recentemente, o tratamento mais eficaz, a cirurgia de peito, era indicado apenas para os casos mais simples. Em decorrência da idade avançada ou de outros problemas de saúde, boa parte dos pacientes era tratada com medicamentos paliativos ou encaminhada para transplante cardíaco. A boa notícia para esses doentes é que um procedimento menos invasivo, que dispensa o bisturi, começou a ser realizado recentemente no Brasil. Diz o cardiologista Alexandre Abizaid, do Instituto Dante Pazzanese, em São Paulo: "O novo método é definitivamente mais seguro, além de reduzir o período de internação do paciente". O coração possui quatro válvulas, responsáveis por manter o fluxo sanguíneo correndo na mesma direção. A mitral é a que faz com que o sangue que vem oxigenado dos pulmões siga rumo ao ventrículo esquerdo e seja distribuído ao resto do organismo pela artéria aorta (veja o quadro). Com o coração no ritmo de oitenta batimentos por minuto, circulam pelo organismo 5 litros de sangue, em média. A cada contração, passam pela válvula mitral cerca de 50 mililitros de sangue. Quando ela não funciona a contento, parte desse volume não segue a rota prevista. Com isso, o coração se dilata e começa a trabalhar com dificuldade. A insuficiência mitral degenerativa pode surgir de um defeito na própria válvula. Na maioria dos casos, e em geral os mais sérios, o problema decorre, no entanto, de outras doenças cardíacas que levam ao aumento no tamanho do coração. Sem o tratamento adequado, a taxa de mortalidade é de 20% em um ano e de 50% em cinco anos. "As pesquisas mostraram que, em dois terços dos pacientes portadores de distúrbio cardíaco prévio, o novo procedimento contribui também para o controle da doença original", diz o cardiologista Pedro Lemos, do Instituto do Coração (InCor), centro de referência para a pesquisa e o tratamento de afecções cardíacas e um dos primeiros a oferecer a técnica no Brasil. "Com isso, entra-se em um círculo virtuoso, no qual o controle de uma condição melhora a outra." Os especialistas também comemoram. "Mesmo entre os portadores de problemas mais graves, que precisam de um transplante, a novidade pode melhorar a qualidade de vida do doente e lhe dar mais tempo de espera na fila", diz Marco Antonio Perin, cardiologista intervencionista do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, o pioneiro do procedimento no país. Desenvolvida pelo laboratório Abbott e balizada de MitraClip, a nova técnica para o tratamento da insuficiência mitral degenerativa é feita por intermédio de um cateter que, inserido na virilha direita, chega até o coração pela veia femoral. O artefato leva na ponta um tipo de clipe que é colocado na válvula mitral de modo a diminuir seu afrouxamento e, assim, restaurar o fluxo sanguíneo do coração para o resto do organismo. Confeccionado com cobalto-cromo, o mesmo material dos stents cardíacos, o clipe é revestido de poliéster, para facilitar o crescimento do tecido a seu redor. A intervenção com o clipe é oferecida desde 2008 na Europa e há dois anos nos Estados Unidos. Até hoje, 20.000 pessoas já foram submetidas ao tratamento. De cada 100 pacientes, 93 apresentaram melhoras na qualidade de vida. Diz o cardiologista Roberto Kalil, diretor clínico do InCor: "A nova técnica é, sem dúvida, uma conquista para aqueles pacientes que não suportariam uma cirurgia de grande porte". O QUE É A INSUFICIÊNCIA MITRAL DEGENERATIVA • Em condições normais, a válvula mitral funciona como uma espécie de comporta que regula a passagem do sangue do átrio esquerdo para o ventrículo esquerdo — e dali para a artéria aorta, de onde é distribuído para todo o organismo. • A insuficiência mitral degenerativa caracteriza-se pelo refluxo de parte do sangue que chega ao coração. Com isso, o órgão fica dilatado e sobrecarregado. Como é o novo procedimento • Um cateter é inserido na virilha do paciente e, por intermédio da veia femoral, chega ao coração. • Ao alcançara válvula mitral, entre o átrio e o ventrículo esquerdo, o clipe é inserido ali. Como uma espécie de âncora, ele prende as duas abas da válvula, conhecidas no jargão médico como cúspides ou folhetos. • O sangue volta então a circular no sentido correto. 6#6 HISTÓRIA – UMA GRANDE FAMÍLIA O maior estudo genealógico já feito no Rio de Janeiro traça linhagens familiares desde a fundação da cidade até os dias atuais, revelando parentescos insuspeitados. CECÍLIA RITTO O genealogista Carlos Eduardo Barata, autor do Dicionário das Famílias Brasileiras, identificou os nomes e sobrenomes de 200 fundadores do Rio de Janeiro, entre 1565 e 1600, e, a partir dessas informações, traçou a caminhada histórica de vinte gerações daqueles desbravadores até seus atuais descendentes. O trabalho de Barata consumiu quarenta anos e produziu uma árvore genealógica com 500.000 nomes, a mais completa já feita dos habitantes na cidade. O Rio de Janeiro tem hoje 6,5 milhões de moradores, mas os cariocas cujas raízes puderam ser traçadas até o remoto século XVI formam um grupo relativamente reduzido de pessoas que, apesar das diferenças dos sobrenomes atuais, são parentes, mesmo que nunca tenham sabido desses laços antes. Para chegar ao intrincado conjunto de relações familiares, Barata fez um trabalho de detetive. Enfrentou livros cheios de traças em igrejas e cartórios e vasculhou lápides empoeiradas em cemitérios — "De alguns, tive de pular a cerca", conta o genealogista. Por paradoxal que possa parecer, a pesquisa de Barata foi tão mais fácil quanto mais antigos eram os arquivos. Isso porque até a Idade Média a genealogia das pessoas era registrada com muito cuidado, pois dela dependiam as linhas de sucessão dos títulos de nobreza e da propriedade associada a eles. Aos poucos, a árvore genealógica perdeu sua relevância e as anotações de ascendência cobrindo várias gerações desapareceram dos registros familiares. Com a popularização da internet em todo o mundo, tornou-se mais viável retraçar linhas genealógicas. Isso se combinou com a imensa curiosidade das pessoas pelo seu passado. "Nos últimos vinte anos, o interesse pela história das famílias cresceu muito", diz Barata. A americana Megan Smolenyak, que descobriu que Barack Obama tinha parentes em Moneygall, na Irlanda, e que um quarto da árvore de Hillary Clinton estava errada, resumiu a VEJA: "A genealogia ajuda a desvendar crimes, a recompor laços familiares perdidos e a preservar a história". Um dos elos mais antigos com moradores do Rio atual é Antônio de Mariz, fidalgo português estabelecido em São Vicente, litoral de São Paulo, que foi voluntário nas batalhas contra os franceses na Baía de Guanabara, onde se estabeleceu permanentemente desde 1565. Mariz deixou vasta descendência, que inclui o escritor Paulo Coelho, a cantora Marisa Monte, o neurocirurgião Paulo Niemeyer e o jornalista Zózimo Barrozo do Amaral. Uma neta de Mariz veio a se casar com João Pereira, o Botafogo, operador de canhões da Marinha portuguesa que povoou o bairro e deu nome a ele. Botafogo é outra raiz da qual brotaram troncos familiares que chegaram aos dias atuais. A bailarina Ana Botafogo é descendente de João Pereira, cujo apelido com o passar do tempo foi incorporado ao sobrenome. Mas quem diria que ela é parente do compositor Tom Jobim, morto em 1994? A linha genealógica do escritor Paulo Coelho também se desenvolveu na forma de um leque com entrelaçamentos que juntam parentes inesperados. Como todos nós, Paulo Coelho é filho de um casal, e teve quatro avós, oito bisavós, dezesseis trisavôs... Entre os mais de 2000 antepassados de vinte gerações, Coelho tem suas raízes entrelaçadas com as dos descendentes de Antônio de Mariz e João Pereira, o Botafogo, e ainda dos portugueses Francisco Viegas e Julião Rangel de Macedo, que se tornou governador-geral em 1583. Por força dessas ligações, Paulo Coelho é aparentado de Ana Botafogo e Tom Jobim, mas também do escritor Álvares de Azevedo e do sanitarista Oswaldo Cruz. A cantora Marisa Monte tem os mesmos quatro antepassados de Paulo Coelho. Na linhagem de Marisa Monte, o genealogista Barata encontrou cafeicultores do Império e um vice-presidente da República, o almirante Rademaker Grünewald, do governo de Emílio Medici. O estudo de genealogia das famílias do Rio reflete a pouca mobilidade da população carioca desde os tempos coloniais. É bastante peculiar que o grupo de cariocas ligados por laços familiares centenários desconhecidos possa ser encontrado na mesma cidade, resistindo à sua evolução de povoado a metrópole. Quando o célebre Botafogo foi mandado a Cabo Frio para reprimir o comércio ilegal de pau-brasil liderado pelo francês Toussaint Gurgel, ele, sem querer, desenvolveu uma nova e frutífera árvore genealógica. O francês, trazido preso ao Rio por Botafogo, logo sai da cadeia, casa-se e vira figura importante explorando a pesca de baleia. Pedro Malan, ex-ministro da Fazenda, o tem em seu passado genealógico. Bento Gurgel, neto do patriarca Toussaint que se estabeleceu em São Paulo, deu origem a ramos de famílias comuns à senadora Marta Suplicy e ao banqueiro Roberto Setúbal, do Itaú. O Brasil era pequeno. O mundo também: até a atriz francesa Juliette Binoche tem entre seus parentes distantes o português Correia de Sá, outro fundador do Rio, e antepassados comuns com Carlos Alberto de Carvalho Pinto, ex-governador de São Paulo. MISTURA FINA Os primeiros portugueses chegaram ao Rio de Janeiro para lutar contra os invasores franceses. Os dois grupos deram origem aos cariocas "de raiz" (e a paulistas, além de uma francesa), entre eles nomes bem conhecidos — que nem sabiam da conexão. De TOUSSAINT GURGEL, francês que, depois de cumprir pena de prisão, fixou moradia no Rio, descendem... ...o ex-ministro PEDRO MALAN (12ª geração) ...a senadora MARTA SUPLICY (11ª geração) ...o banqueiro ROBERTO SETÚBAL (12ª geração) De ALEIXO MANUEL político influente e antigo nome da atual Rua do Ouvidor, descende... ...o ex-chanceler LUIZ FELIPE LAMPREIA (13ª geração) De JORDÃO HOMEM DA COSTA grande senhor de terras, descende... ...a atriz francesa JULIETTE BINOCHE (13ª geração) De ANTÔNIO DE MARIZ, fidalgo português descendem... ...o escritor PAULO COELHO(14ª geração) ...a cantora MARISA MONTE (14ª geração) De JOÃO PEREIRA, o Botafogo, que comprou uma faixa de terra na orla e a ela deu nome, descendem... ...o compositor TOM JOBIM (12ª geração) ...a bailarina ANA BOTAFOGO (12ª geração) ________________________________________ 7# ARTES E ESPETÁCULOS 25.3.15 7#1 CINEMA – LÍQUIDO E CERTO 7#2 EXPOSIÇÃO – INSACIÁVEL MUTANTE 7#3 TELEVISÃO – SÓ A MALDADE SALVA 7#4 VEJA RECOMENDA 7#5 OS LIVROS MAIS VENDIDOS 7#6 J.R.GUZZO – PROBLEMAS NA VISTA 7#1 CINEMA – LÍQUIDO E CERTO O magnífico documentário Marcas da Água voa a grandes altitudes ou se junta aos indivíduos, na superfície, para mostrar a água como recurso e como força na vida humana. ISABELA BOSCOV Na quase despovoada Colúmbia Britânica, no Canadá, o Rio Stikine se esgueira entre os desfiladeiros, ora de um azul leitoso, nos trechos em que a água corre desimpedida, ora desfazendo-se em espuma branca, onde tem de vencer as rochas. Um indígena explica o significado mítico do rio e seus braços: se todos ali bebem da mesma água, e se alimentam dos peixes que nadam nela ou dos alces que com ela matam a sede — os quais comem a vegetação que ela irriga —, então tudo o que é vivo ali é feito da mesma água, e é uma coisa só e a mesma coisa. Até algum momento do passado, o Rio Buriganga correu tão secreto e intacto quanto o Stikine. Mas, na sua travessia por Daca, a capital de Bangladesh, ele é hoje uma confusão de embarcações, gente, sujeira: um imenso curtume à sua margem despeja nele toneladas de lama química. Feio, escuro, fétido, o Buriganga continua, no entanto, cumprindo a função que cabe a um rio cumprir assim que alguém se estabelece ao lado dele — ser o centro da atividade humana. É impossível ao homem não interagir com a água; a história da humanidade é uma história da água, de como ela limitou ou propiciou seu modo de vida, e de como ela foi transformada, aproveitada ou desperdiçada pelo homem. Essa história em comum, às vezes ainda idílica mas em muitos casos trágica, é a narrativa que o documentário Marcas da Água (Watermark, Canadá, 2013) pouco a pouco deslinda. Segunda colaboração entre o fotógrafo Edward Burtynsky e a cineasta Jennifer Baichwal (a primeira foi Manufactured Landscapes, de 2006, sobre a revolução industrial chinesa), o filme que estreia nesta quinta-feira em várias capitais do país passa distante do registro de denúncia ou libelo. É uma reflexão silenciosa, costurada pela justaposição ou pela oposição de imagens, sobre a inevitabilidade da interação entre o homem e a água. É, também, uma celebração de tudo que ela oferece e um lamento por tudo que foi e vai sendo perdido. Valendo-se de drones, helicópteros, aviões e câmeras especiais de altíssima definição, o documentário oferece uma oportunidade até aqui inédita de compreender o lugar que a água ocupa no planeta e na vida humana: das vistas obtidas a partir de grandes altitudes, nas quais as feições do terreno se assemelham a desenhos abstratos, ruma à superfície, junto dos indivíduos — ou faz o percurso inverso —, para surpreender o espectador e renovar a sua ligação atávica com a água. "Sem dúvida, são indispensáveis os documentários de alerta para as questões ambientais", disse a cineasta Jennifer Baichwal a VEJA. "Mas nosso objetivo não é didático. É, sim, reconectar a plateia aos sentimentos que a água provoca, ao desejo de estar em sua presença ou à emoção poderosa de comungar dela." Marcas da Água começa pelos abusos terríveis e pelas transformações gigantescas. No México, o antes abundante delta do Rio Colorado não passa agora de uma vastidão árida onde os ramos de água se vão esvaindo e morrendo antes de conseguir chegar ao oceano: a Califórnia sorve toda sua torrente pelo caminho. No Texas, o deserto virou fazenda atrás de fazenda, graças à água bombeada do Aquífero de Ogallala, um dos maiores do planeta. Cada vez, porém, é preciso perfurar mais fundo; se antes com um poço modesto se atingia o Ogallala na região, a marca já anda nos 250 metros. Um mundo de água jorra pelas comportas da barragem de Xiaolangdi, que abraça o Rio Amarelo. Mais ainda — até 32.000 metros cúbicos por segundo — já começou a jorrar também em Xiluodu, no Rio Yang-tsé, que tem seis vezes o potencial de geração de energia do monumental Hoover Dam americano e o filme mostra em construção. É perturbador ver os paredões faraônicos de concreto de Xiluodu, de até 285 metros de altura, subindo no meio da paisagem. Mas é preciso ter perspectiva, diz Jennifer: na China de crescimento voraz, a energia hidrelétrica é limpa — bem mais do que o seriam as muitas minas de carvão necessárias para substituir uma megabarragem. E, lembra Jennifer, é preciso também abrir mão de uma certa ingenuidade, ou hipocrisia: não há no mundo quem não participe e se beneficie da tremenda industrialização da China, e que não alimente, portanto, o apetite energético do país. O limite dessa engrenagem produtiva está na água espessa do Rio Buriganga: o curtume que o envenena em Daca exporta 100% da sua produção para os Estados Unidos e a Europa. O curtume está lá porque todos os países que compram dele têm legislação ambiental severa que não permite esse tipo de atividade — nem a China mais permite esses abusos, já que na última década adotou leis rígidas de proteção. É em lugares sem mecanismos de controle, como Bangladesh, que as indústrias poluentes vão então se instalar. Sempre de maneira sugestiva, Marcas da Água ilustra as diferentes atitudes do homem para com a natureza no correr da história. Com uma obra típica do espírito desenvolvimentista de seu tempo, o engenheiro William Mulholland criou um desastre na Califórnia: ao redirecionar o Rio Owens para o Aqueduto de Los Angeles, em 1913 — água sem a qual a cidade não sobreviveria —, Mulholland secou o Lago Owens e o transformou numa incubadeira de tempestades de poeira. Atualmente, o velho leito é continuamente molhado para evitar que o pó se desprenda e alargue as divisas desse deserto manufaturado, ao custo de 1 bilhão de dólares. (A Califórnia aparece várias vezes em Marcas da Água, por suas contradições: mais rico estado americano, tem pouquíssima água mas usa-a aos montes, e é um laboratório de legislação ambiental avançada que volta e meia tropeça em velhos acordos invioláveis de posse de terra.) Foi imprevista também a ação que secou uma das mais antigas e exóticas cisternas do mundo: um poço em forma de pirâmide invertida que desde o século IX enchia com as monções, abastecendo as povoações na dura estação seca do Rajastão indiano. Mas sempre é preciso mais água, e era natural que se tentasse aumentar o abastecimento perfurando abaixo do nível do lençol freático — que, drenado, não atinge mais o fundo da pirâmide, transformando o açude engenhoso em ruína. Nas seculares plantações de arroz da província chinesa de Yunnan, a preciosidade é literalmente policiada: sempre há alguém da família vigiando os minúsculos canais e barragens que distribuem a água vinda da montanha entre as fazendinhas — basta uma distração e vizinho rouba de vizinho. Marcas da Água, como se vê, alterna sua escala entre o colossal e o diminuto, entre o avançado e o primitivo, entre o novo e o ancestral, sempre com esse mesmo ponto em vista: a água é tão necessária e ciumentamente partilhada quanto tomada como eterna e abusada. É um recurso indispensável mas é também uma força, como descreve Jennifer Baichwal. Por isso, o filme termina em celebrações — o banho coletivo no Rio Ganges, um torneio de surfe em Huntington Beach, na Califórnia, o passeio de helicóptero por sobre o deslumbrante Rio Stikine: não é só que, sem a água, não possa haver vida. É que sem ela a vida perde muito de sua beleza. 7#2 EXPOSIÇÃO – INSACIÁVEL MUTANTE Tema de uma mostra em São Paulo, o espanhol Pablo Picasso trocava de estilo (e de mulher) conforme os humores do momento. E isso explica por que nenhum pintor modernista se iguala a ele. MARCELO MARTHE Em seu ateliê, no fim dos anos 30, o espanhol Pablo Picasso viveu um episódio que até o fim da vida rememoraria com prazer sádico. O pintor criava então Guernica, o famoso painel de denúncia da opressão na Guerra Civil Espanhola. Mas a fonte de deleite era outra. Marie-Thérèse Walter, a amante que, anos antes, tomara o lugar de sua primeira mulher quando engravidou, apareceu de surpresa para tirar satisfação com a nova eleita de Picasso, a fotógrafa Dora Maar. Ao ouvir um ultimato do tipo "ou eu ou ela", o magnânimo Picasso pontificou: as duas que brigassem pelo direito de ser sua mulher. Sob seu olhar extasiado, as amantes não tiveram dúvida em se atracar no chão do ateliê. Dora conquistou na unha a posse sobre o pintor — ao menos até ser preterida por outra. Notoriamente, Picasso trocava de mulher como quem troca de roupa (embora, nesse aspecto, seu repertório fosse módico: exibia-se quase sempre de shortinho e peito desnudo, em pose de galã canastrão). A mostra Picasso e a Modernidade Espanhola — que chega à sede paulista do Centro Cultural Banco do Brasil nesta quarta-feira e desembarcará em julho no Rio de Janeiro — expõe algo mais sobre esse espírito tão afeito à mudança: Picasso trocava de estilo com a mesma sanha com que colecionava amantes. A capacidade de se reinventar conforme sopravam os ventos das vanguardas explica por que nenhum pintor modernista se iguala a Picasso em fama e influência. Aos 9 anos, ele produzia um quadro por dia. Com pouco mais de 30, já era milionário. Ao morrer, em 1973, aos 91 anos, deixou um legado mais extenso e valioso que o de qualquer outro artista: 30.000 trabalhos, em estimativa modesta. Mas Picasso não era só prolífico. Ele dominava também o timing perfeito de se antecipar às tendências, ou de aderir a elas quando isso ainda não parecesse puro oportunismo. As cerca de noventa obras vindas do Museu Rainha Sofia, em Madri, atestam esse dom. Ao lado de seus trabalhos, o espectador pode ver a produção de outros artistas com os quais ele comungou interesses — além dos poucos casos em que visões alheias ao universo "picassiano" conseguiram florescer (notadamente, a pintura sombria do catalão Antoni Tàpies, morto em 2012). Caso uma hecatombe reduzisse a pó tudo o que o modernismo produziu, com exceção da obra de Picasso, ainda assim restaria um painel considerável de todas as vanguardas que puseram abaixo o edifício da arte na primeira metade do século XX. Depois das valorizadas fases Azul e Rosa da juventude, Picasso saltou de "ismo" em "ismo" com desembaraço. Abraçou o primitivismo e, ao lado do francês Georges Braque, inventou o cubismo — vertente de maior impacto da arte moderna. O fato de ele se referir a Braque como "minha esposa", aliás, diz um tanto sobre como Picasso via o peso de cada um deles no processo: ficava subentendido, claro, que o francês era inferior. A obra mais antiga da exposição é um exemplar da fase cubista, a tela Cabeça de Mulher, de 1910. Após inventar a tendência que inscreveu seu nome na história da arte, Picasso não sossegou. Flertaria com o expressionismo, o neoclassicismo e o surrealismo de Salvador Dali (1904-1989) - do qual há inúmeras obras na mostra. Embora nunca tenha adotado a arte abstrata, exerceria influência essencial sobre adeptos dela como Joan Miro (1893-1983). Entre uma guinada e outra de estilo, Picasso teve sua queda pela política. Em uma sala devotada aos estudos de Guernica, há a lancinante pintura em preto e branco Cabeça de Cavalo. "Na obra de Picasso, o cavalo foi um símbolo mutante. No princípio, era uma alegoria da fragilidade de suas mulheres. Em Guernica, é a imagem do sofrimento do povo", diz o curador Eugênio Carmona. Picasso contraiu uma moléstia ideológica dos intelectuais do século XX: o comunismo. No seu caso, de fachada. Adorava um discurso demagógico a favor dos pobres e oprimidos, mas rodava por Paris em carrões. Como definiu o espirituoso Dali: "Picasso é um comunista; e eu, tampouco". Com sua sede de reinvenção, Picasso acabou inaugurando um fenômeno típico da cultura contemporânea — a "arte de modismos". Na definição do historiador inglês Paul Johnson, trata-se de algo que se impôs quando a combinação entre novidade e virtuosismo que por séculos guiou a produção artística pendeu em favor do primeiro elemento. O fato de ter sido o marco zero de uma tendência que com o tempo viraria pretexto para tantas empulhações não subtrai, contudo, os méritos do pintor espanhol. Talvez pelo entusiasmo e sinceridade com que transitou por cada movimento que se sucedia em voga, suas obras conservaram a vitalidade, além de uma unidade natural: seja cubista ou surrealista, um Picasso será sempre um Picasso. Sua trajetória também desafia noções como a de evolução na arte: ele ziguezagueia por suas fases seguindo apenas seu faro pragmático. "A força de Picasso é seu perpétuo processo de transformação", disse o crítico Meyer Schapiro. Mesmo nos anos 60, quando já não ditava moda, Picasso protagonizou uma nova mutação, dessa vez comportamental: a figura do artista idoso que mantinha a força de viver (leia-se a libido solta) fez dele um símbolo para a geração do "paz e amor". Fora dessa moldura idealizada, no entanto, o retrato de Picasso é bem menos abonador. Há alguns anos, a neta Marina Picasso lançou um livro no qual revelava que a indiferença do avô a tornou uma pessoa infeliz (embora muito rica) e levou seu irmão ao suicídio. Seu narcisismo e apetite sexual flamejante — os touros e minotauros de suas gravuras são seus espelhos — levaram as amantes ao desespero. Compreende-se: Picasso estava na vanguarda até do cafajestismo. 7#3 TELEVISÃO – SÓ A MALDADE SALVA Babilônia, a nova novela das 9, quebra o marasmo ao investir no embate entre duas vilãs poderosas. Mas seu maior trunfo é resgatar os fundamentos do melodrama. MARCELO MARTHE E MÁRIO MENDES Quando ainda costuravam o elenco de Babilônia, os autores e a direção da nova novela das 9 da Globo tinham duas vagas preenchidas com absoluta convicção. Camila Pitanga seria a opção perfeita para o papel da heroína Regina, moça pobre mas que não dobra a espinha diante de uma tragédia familiar e, com sua barraca de praia, tenta vencer na vida. Gloria Pires aceitou viver Beatriz, a vilã que volta de Portugal com um currículo suspeitíssimo e vai abalar as estruturas do bairro carioca do Leme. Também nesse caso, ninguém duvidava do acerto da decisão: era um sonho ter a atriz de novo na pele de uma megera, e numa novela do mesmo Gilberto Braga, quase trinta anos depois da antológica Maria de Fátima de Vale Tudo. Mas uma vaga permanecia em aberto. Após várias reuniões entre Braga e os coautores Ricardo Linhares e João Ximenes Braga, além do diretor Dennis Carvalho, surgiu o nome que fecharia o elenco demolidor: por que não convocar Adriana Esteves, intérprete da mais marcante vilã recente das novelas — a Carminha de Avenida Brasil — para o posto de rival de Beatriz na maldade? "Já que na história tínhamos duas vilãs espetaculares, a decisão foi mais ou menos óbvia. O prazer de vê-las em um duelo entusiasmou a todos. E, claro, sabíamos que a junção das duas ia causar expectativa", diz Silvio de Abreu, comandante da área de novelas da emissora. A lógica é investir em um embate como os daqueles programas da TV paga em que dois monstros carismáticos — digamos, um tubarão assassino e uma lula gigante — travam uma luta apocalíptica. Logo no primeiro capítulo de Babilônia, exibido na semana passada, revelou-se o acerto de colocar os tanques na rua. Já nas chamadas, aliás, a trinca de mulherões despertava um desejo incontível de conferir a trama — coisa raríssima hoje em dia. O grande trunfo da novela, contudo, é resgatar sem pudor os fundamentos do melodrama, como a exploração do ponto de vista feminino e do sofrimento na máxima voltagem. Esse é, afinal, o DNA das novelas — e, no entanto, é um artigo que andava em falta: o fundo do poço foi a desastrosa Em Família, com sua história chocha sobre o nada. No passado glorioso do gênero, Gilberto Braga manipulou esses ingredientes com maestria. Assim como ocorria em Vale Tudo, é prazeroso para os fãs dos clássicos filmes de mulheres de Hollywood detectar referências salpicadas na trama (veja ao lado). "Sou cinéfilo, bebo sempre dessa fonte", diz Gilberto Braga. É reconfortante notar que as três personagens não precisam segurar a onda sozinhas: o roteiro ágil resultou na estreia mais promissora do horário das 9 desde a inspirada Avenida Brasil, de 2012 (agora é rezar para que continue assim). Em um único capítulo, a endiabrada Beatriz seduziu três homens e matou um deles — o pai da mocinha Regina — com frieza. Com apenas três minutos no ar, as velhinhas lésbicas vividas por Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg trocaram um beijão na boca. Foi de Ricardo Linhares a ideia de botar o beijo logo no primeiro capítulo — a cena foi aprovada por Carlos Henrique Schroder, diretor-geral da Globo, dias antes da exibição. "Como ícones da TV, as duas atrizes dão credibilidade às personagens", diz Linhares. Apesar de promissora, Babilônia colheu uma audiência morna em sua estreia, de 33 pontos em São Paulo. Mas até nisso se viu um sinal dos tempos: o capítulo bombou nas redes sociais, coisa hoje tão estratégica quanto o ibope. Com 7,5 milhões de tuítes, a repercussão no Twitter foi 33% maior que a da estreia da antecessora Império (por sinal, uma nulidade em repercussão nas redes). Arrasaram, suas víboras. NOVELÃO DE RAÍZES Os ingredientes clássicos de maldade e sofrimento em Babilônia Passado imperfeito - Igualzinho a Beatriz (Gloria Pires), na série Dinastia (1981-1989) a sexy e mau-caráter Alexis (Joan Collins) volta da Europa atropelando todo mundo só para se dar bem. Frustração e ganância - Exatamente como Inês (Adriana Esteves), em A Filha de Satanás (1949) Bette Davis quer se livrar da falta de grana, do endereço de pobre e do marido banana. Garras afiadas - Como em As Mulheres (1939), as amigas e rivais Beatriz e Inês dividem a cor do esmalte e informações com a mesma manicure fofoqueira. Cafajeste sedutor - Regina (Camila Pitanga) é a heroína batalhadora que acredita no amor e nas promessas do malandro aproveitador, como Joan Crawford em Alma em Suplício (1945). COM REPORTAGEM DE BRUNO MEIER 7#4 VEJA RECOMENDA CINEMA DÍVIDA DE HONRA (THE HOMESMAN, ESTADOS UNIDOS/FRANÇA, 2014. JÁ EM CARTAZ) • Em seu canto de Nebraska, em 1854, a fazendeira Mary Bee (Hilary Swank, excelente) é um modelo de autossuficiência, diligência, moral e higiene. Findo o trabalho duro na terra, todos os dias, ela toca notas que só pode ouvir em sua cabeça, usando uma tapeçaria bordada como um piano: Mary Bee vive propondo casamento aos homens das redondezas, mas ninguém quer se casar com uma mulher tão assustadoramente capaz. Tanto, na verdade, que é a única que se dispõe a fazer um dificílimo trajeto de semanas para reconduzir à civilização três mulheres que enlouqueceram com a pobreza, o isolamento e o inverno de Nebraska. Mary Bee alista como seu ajudante o vagabundo George Briggs (Tommy Lee Jones, também diretor e roteirista), que ela salvou da forca mas que não lhe retribui com gratidão: George é, como todos ali, vítima de uma vida tão brutal que se divorciou de seus sentimentos. Ou quase; no percurso, ele e Mary Bee formarão uma conexão tênue e de desfecho terrível. Como em outro magistral trabalho seu na direção, Três Enterros (2005), Jones inverte os pontos de vista clássicos do western para desconstruir e rearranjar seus significados. O resultado é de uma beleza devastadora. DISCO PARIS, ZAZ (WARNER; VENDA EXCLUSIVA PELA LIVRARIA CULTURA) • Zaz é o nome artístico de Isabelle Geffroy, um talento emergente do novo cancioneiro francês. Formada em canto e teoria musical (além de dominar, com razoável destreza, violino, piano e violão), ela lançou três discos nos quais se equilibra entre o jazz e o pop. Paris chega agora ao Brasil para aproveitar a miniturnê de Zaz pelo país. Não se deixe enganar pelo repertório e pelas informações do encarte, que sugerem um disco de convencionais recriações de chansons das décadas de 40 e 50, ancoradas por orquestra e pela produção do maestro Quincy Jones. Ousada, Zaz coloca sua nouvelle cuisine musical nos antigos sucessos de gente como Yves Montand e Maurice Chevalier, acelerando o andamento de canções ou acrescentando elementos de rap. J'Aime Paris au Móis de Mai tem participação de Charles Aznavour, o último grande nome da chanson. Um disco para levantar aquele espírito francês que consagrou o slogan "Je suis Charlie". LIVRO O TOM AUSENTE DE AZUL, DE JENNIE ERDAL (TRADUÇÃO DE PIERRE MENARD; BERTRAND. BRASIL; 378 PÁGINAS; 45 REAIS) • A escocesa Jennie Erdal já tinha publicado dois romances antes de O Tom Ausente de Azul — mas na estranha condição de ghost-writer. Na capa desses livros, vinha a assinatura de outro autor, que na verdade fora responsável apenas pelo enredo, deixando a Jennie todo o duro trabalho de redação. Esta sua efetiva estreia na ficção é um mergulho no pensamento de David Hume (1711-1776) - o título, aliás, é uma frase do filósofo escocês. O narrador é o francês Edgar Logan, que deixa Paris para se instalar em Edimburgo, onde pretende trabalhar na tradução de ensaios de Hume para sua língua nativa. Logan faz amizade com Harry Sanderson, filósofo da Universidade de Edimburgo. Autor de um livro sobre a felicidade, o desencantado professor não encarna bem esse ideal filosófico: casado com Carrie, artista que fora sua aluna, ele vive atormentado pelo ciúme. Tem-se aqui um perigoso triângulo filosófico-amoroso. TELEVISÃO BLOODLINE (DISPONÍVEL DESDE SEXTA-FEIRA 20, NO NETFLIX) • No litoral ensolarado do sul da Flórida, o clã dos Rayburn fecha os bangalôs de seu resort para a festança promovida pelos patriarcas Robert (Sam Shepard) e Sally (Sissy Spacek). Liderados pelo certinho John (Kyle Chandler, conhecido pela série Friday Night Lights), os três filhos que ajudam a administrar o negócio dos pais relutam, mas acabam cedendo ao apelo da mãe para que o primogênito desgarrado da família esteja presente. A má vontade tinha razão de ser: a volta ao lar do bêbado e drogado Danny (Ben Mendelsohn) desencadeia o turbilhão de mal-estar que move os personagens de Bloodline. O seriado é obra de Glenn e Todd A. Kessler e Daniel Zelman, o mesmo trio criador do drama jurídico Damages, com Glenn Glose. Eles mostram, mais uma vez, talento para situações de dubiedade moral, assim garantindo que a série passe longe do mero dramalhão. Enquanto o presente e os flashbacks de um crime se entremeiam, o véu dos segredos dos Rayburn vai sendo removido até que se enxergue o que há por trás da enganadora atmosfera luminosa: uma avassaladora tempestade tropical que se abaterá sobre a família. 7#5 OS LIVROS MAIS VENDIDOS FICÇÃO 1- Cinquenta Tons de Cinza. E.L. James. INTRÍNSECA 2- Cinquenta Tons Mais Escuros. E.L. James. INTRÍNSECA 3- O Pequeno Príncipe. Antoine de Saint-Exupéry. AGIR 4- Cinquenta Tons de Liberdade. E.L. James. INTRÍNSECA 5- Se Eu Ficar. Gayle Forman. Novo Conceito 6- Simplesmente Acontece. Cecília Ahern. NOVO CONCEITO 7- Para Onde Ela Foi. Gayle Forman. NOVO CONCEITO 8- Divergente. Veronica Roth. ROCCO 9- Insurgente. Veronica Roth. ROCCO 10- Convergente. Veronica Roth. ROCCO NÃO FICÇÃO 1- Eu Fico Loko. Christian Figueiredo de Caldas. NOVAS PÁGINAS 2- Bela Cozinha: As Receitas. Bela Gil. GLOBO 3- O Diário de Anne Frank. Anne Frank. RECORD 4- Nada a Perder 3. Edir Macedo. PLANETA 5- A Teoria do Tudo. Jane Hawking. ÚNICA 6- Sniper Americano. Chris Kyle. INTRÍNSECA 7- Diário de um Adolescente Apaixonado. Rafael Moreira. NOVAS PÁGINAS 8- O Capital no Século XXI. Thomas Piketty. INTRÍNSECA 9- Sonho Grande. Cristiane Correa. PRIMEIRA PESSOA 10- Elis Regina — Nada Será Como Antes. Julio Maria. MASTER BOOKS AUTOAJUDA E ESOTERISMO 1- Philia. Padre Marcelo Rossi. PRINCIPIUM 2- Ansiedade. Augusto Cury. SARAIVA 3- Não Se Apega, Não. Isabela Freitas. INTRÍNSECA 4- O Monge e o Executivo. James Hunter. SEXTANTE 5- Geração de Valor. Flávio Augusto da Silva. SEXTANTE 6- De Volta ao Mosteiro. James Hunter. SEXTANTE 7- O Poder da Escolha. Zibia Gasparetto. VIDA & CONSCIÊNCIA 8- O Livro do Bem. Ariane Freitas e Jessica Grecco. GUTENBERG 9- O Poder do Hábito. Zibia Gaspareto. CONSCIÊNCIA 10- As Regras de Ouro dos Casais Saudáveis. Augusto Cury. ACADEMIA DE INTELIGÊNCIA 7#6 J.R.GUZZO – PROBLEMAS NA VISTA Algumas anotações sobre o dia 15 de março de 2015, uma data que vai entrar para a história deste país: • No dia seguinte às maiores manifestações de rua já ocorridas no Brasil contra um governo, a presidente Dilma Rousseff fez um pedido de paz: "Vamos brigar depois". Foi uma das coisas mais interessantes que disse desde que chegou à Presidência da República, há pouco mais de quatro anos, principalmente se estiver falando a sério. O país precisa resolver hoje um caminhão de problemas — e se não tiver paz é absolutamente garantido que não conseguirá resolver nem um deles. Propostas de cessar-fogo entre as partes, é claro, sempre são mais atraentes para a parte que está debaixo de chumbo grosso, com mais de 60% de reprovação popular, mas e daí? A maioria daquele povo todo que foi para a rua não quer ganhar uma discussão; quer ver melhorias concretas, e logo, naquilo que está ruim. Era de esperar, pelos instintos naturais do atual governo, que a presidente reagisse com ira, rancor e ameaças à inédita condenação que sofreu em praça pública. Preferiu reagir com a razão. Menos mal; muito menos mal. • Ficou claro no dia 15 de março que o Brasil é um país onde se vive com liberdade. "Grande coisa", diz muita gente boa. "Isso é o mínimo." Mas é coisa grande, sim, e sempre é preciso tomar muito cuidado com a palavra "mínimo", pois ninguém consegue saber na prática quanto é, exatamente, esse mínimo. Vale a pena, por ora, lembrar que o Brasil provou no domingo que não é a Venezuela, atual país-modelo para a esquerda nacional e para as seitas do governo que vivem à procura do fim do mundo. Na Venezuela, os donos do poder não respondem a manifestações de protesto com apelos à paz. Respondem aprovando o uso de armas de fogo real contra quem protesta e jogando opositores na cadeia por quanto tempo lhes der na telha; justo quando a população brasileira ia para as ruas, montaram mais uma trapaça para dar a si próprios poderes ainda maiores do que já têm. Foi dito que o governo brasileiro só aceita as liberdades públicas e o direito à livre expressão porque não consegue fazer diferente. É possível. Mas o que vale na vida real não é o que o governo gostaria. É o que está valendo. • A presidente Dilma não quer guerra, mas não sabe o que fazer da paz. Antes das manifestações, o governo vinha sofrendo uma bela combinação de problemas na vista: é míope para as realidades de hoje, vesgo para o que quer fazer amanhã e cego para admitir mérito em qualquer ponto de vista diferente dos seus. Depois das manifestações, continuou igual. As primeiras medidas que anunciou como resposta foram uma obra-prima na arte de propor mais do mesmo. Há cerca de dois anos, após a soma de protestos e baderna que balançaram o coreto das autoridades, Dilma veio com "cinco pactos" para baixar a tensão. Não levou adiante nenhum, e agora volta oferecendo pinga da mesma barrica. Há, outra vez, esse cansado "pacote anticorrupção". Mas que diabo o governo estava esperando para combater a ladroagem? Será que só agora começaram a roubar o Erário? Mais infeliz ainda é a "reforma política", uma piada que não resolve um único dos problemas que já existem e cria mais um, novo em folha, ao propor que o Tesouro Nacional pague as despesas das futuras campanhas eleitorais. (Imagine-se 1 milhão de pessoas na rua gritando: "Financiamento público para os candidatos, já!".) • As informações divulgadas sobre o número de pessoas presentes às manifestações comprovam, mais uma vez, a desimportância sem limites de um certo tipo de conta. Dos dois cálculos para o ato de São Paulo, de longe o maior de todo o Brasil, um informava que havia 1 milhão de pessoas presentes, o outro, que havia 200.000. A manifestação da Avenida Paulista teve um tamanho só — aquele que todos puderam enxergar com os próprios olhos, sem a necessidade de helicópteros e planilhas de computador para lhes dizer o que estavam vendo. Foi o maior ato público que alguém já viu? Foi. Fica maior ainda se alguém disser que havia 1 milhão de pessoas? Não. Fica menor se disserem que havia 200.000? Também não. Vida que segue, então. De mais a mais, números servem para qualquer coisa. O governo, ao que parece, ficou feliz com os 200.000, cifra que considerava uma alucinação até quinze dias atrás. Mas também poderia achar que 1 milhão de pessoas é um fracasso de público; afinal, isso representa apenas 0,5% da população do Brasil. É melhor deixar ao gosto de cada um. Não muda rigorosamente nada.