0# CAPA 14.1.15 VEJA www.veja.com edição 2408 – ano 48 – nº 2 14 de janeiro de 2015 [descrição da imagem: no centro da capa, utensílios usados para escrita, dispostos de forma a representar uma metralhadora. Na ponta esquerda, um pequeno lápis representando uma bala, saindo da metralhadora. O corpo da metralhadora está representado por uma caneta hidrográfica, abaixo uma borracha, um apontador e uma tampa de caneta do tipo bic, formando as partes de apoio e gatilho. Logo acima, uma pequeno lápis representando a mira telescópica e no final da caneta um esquadro, representando a parte de apoiar no ombro.] ÀS ARMAS, CIDADÃOS! A defesa da civilização com as armas da civilização: direitos humanos, liberdade de expressão, humor e coragem. [parte superior da capa: imagem do Arco do Triunfo, e exército em ação, na França] ESPECIAL-UMA REAÇÃO SUBLIME O ataque assassino ao jornal Charlie Hebdo, em Paris, cria uma maré mundial contra a tentação totalitária do terror islâmico. [parte inferior, no canto direito: foto de Ricardo Pessoa] EXCLUSIVO: RECADOS DO CÁRCERE Em seis folhas de caderno manuscritas, o empreiteiro Ricardo Pessoa, da UTC, liga caixa de campanha de Dilma ao petróleo. ______________________________ 1# SEÇÕES 2# PANORAMA 3# BRASIL 4# ECONOMIA 5# ESPECIAL TERRORISMO 6# GERAL 7# ARTES E ESPETÁCULOS _________________________________ 1# SEÇÕES 14.1.15 1#1 VEJA.COM 1#2 CARTA AO LEITOR – NÓS E ELES 1#3 ENTREVISTA – PEDRO SIMON – É PRECISO IR PARA AS RUAS 1#4 CLAUDIO DE MOURA CASTRO – ENVELHECER É UMA ARTE? 1#5 LEITOR 1#6 MAÍLSON DA NÓBREGA – O MITO DO JEITO PETISTA DE GOVERNAR 1#7 BLOGOSFERA 1#1 VEJA.COM O ANO EM QUE CHEGAREMOS A PLUTÃO Para a exploração espacial, 2014 foi o ano da Missão Rosetta e do pouso no cometa 67P. Já 2015 será o da chegada a Plutão. Em julho, a sonda New Horizons, lançada em 2006 pela Nasa, se aproximará do planeta anão. As melhores imagens hoje disponíveis desse inexplorado corpo celeste foram feitas por telescópios espaciais como o Hubble, e não revelam detalhes. "Pela primeira vez, Plutão e seus satélites serão mostrados de forma concreta e deixarão de ser apenas pontos de luz, que é a forma como os telescópios os vêem", diz o astrônomo Hal Weaver, responsável pela missão da Nasa. Reportagem do site de VEJA traz mais informações sobre a trajetória da New Horizons e uma lista com as outras sete. principais missões espaciais de 2015. OS DESAFIOS DE CID GOMES Quando foi prefeito de Sobral, cidade a 230 quilômetros de Fortaleza, Cid Gomes revolucionou o ensino nas escolas públicas, A cidade tornou-se referência nacional. Em dois mandatos como governador do Ceará, porém, Gomes não conseguiu repetir os mesmos feitos em escala estadual. O estado não conseguiu, por exemplo, uma solução para as notas abaixo da média no ensino básico. Reportagem de VEJA.com traça um retrato dos acertos e erros de Cid Gomes na área que ele agora comanda como ministro - e que foi eleita como estratégica pela presidente Dilma Rousseff em seu segundo mandato. LAVA-JATO NA REDE DE ESCÂNDALOS Iniciadas em 2009, as investigações da Operação Lava-Jato tinham escopo inicial modesto. Mas a prisão do doleiro Alberto Youssef, em 2014, levou a Polícia Federal a desvendar o maior esquema criminoso da história brasileira, montado para sangrar os cofres públicos, em especial a Petrobras. Desde abril, 88 pessoas viraram réus na Justiça em dezoito denúncias. Ao menos quarenta políticos estão na mira das investigações. Já há doze delatores, que se comprometeram a devolver mais de 450 milhões de reais à Justiça, de um total de 2 bilhões de reais desviados. O site de VEJA traz um balanço da Lava-Jato. que passa a integrar a seção Rede de Escândalos. 1#2 CARTA AO LEITOR – NÓS E ELES “O atentado ao Charlie Hebdo foi uma fragorosa declaração de guerra. Os tempos mudaram. Estamos entrando em uma nova fase desse confronto. (...) Estamos horrorizados com a brutalidade e a selvageria." Essa reação indignada ao massacre dos jornalistas e chargistas em Paris por terroristas muçulmanos veio de Dalil Boubakeur, médico argelino, reitor da Grande Mesquita de Paris e presidente do Conselho Francês para a Fé Muçulmana. A corajosa percepção do sacerdote muçulmano contrasta com as covardes manifestações de políticos, intelectuais e outros comentaristas ávidos por se distanciar rapidamente do episódio sangrento, fugindo pelos becos escuros do relativismo. Essas pessoas viram no massacre ora "uma falha da França na assimilação dos imigrantes de suas antigas colônias", ora "a reação ao envolvimento militar dos franceses no Oriente Médio", ora "o resultado do desencanto violento de jovens da periferia pela falta de oportunidades econômicas", ora, a mais enganadora de todas as evasivas, "a consequência óbvia da decadência moral das sociedades materialistas do Ocidente e seu desrespeito pelas religiões". Não são essas as causas do massacre. Os jornalistas franceses foram mortos por agentes de uma ideologia que, há décadas, vem tentando chegar ao poder pelo terrorismo. Como mostrou o muçulmano Boubakeur, está entrando em "uma nova fase" a guerra deles contra nós. Nós somos todos aqueles que, independentemente do passaporte, da religião, da classe social ou da cor da pele, estão sendo explodidos, degolados, atemorizados por terroristas. Nós somos todos aqueles que se indignam com a sentença de morte decretada pelos aiatolás do Irã contra o escritor Salman Rushdie, que choram o assassinato de milhares de pessoas inocentes no ataque às Torres Gêmeas, em Nova York, em setembro de 2001, que não se conformam com o genocídio e o estupro coletivo de mulheres das minorias no Iraque e na Síria. Nós somos todos aqueles, não importa se muçulmanos, judeus ou cristãos, cuja moral, decência e consciência humana não aceitam que 132 crianças sejam fuziladas por islamitas fanáticos na frente dos professores em uma escola em Peshawar, no Paquistão, pagando com a vida pelo crime de estudar. "De te fabula narratur" ("A história é sobre você") é a famosa, gasta, mas hoje tão necessária expressão do romano Horácio para chamar à realidade uma pessoa que acredita poder ficar indiferente aos eventos do mundo que a rodeia. O terrorismo não é para ser entendido, mas combatido. Com que armas? As mesmas dos mártires do Charlie Hebdo: o uso radical da liberdade de expressão, com a sátira, o riso, o debate democrático, a iconoclastia, o deboche destemido dos poderosos — enfim, com as luzes da civilização, que hão de cegar os emissários do obscurantismo. 1#3 ENTREVISTA – PEDRO SIMON – É PRECISO IR PARA AS RUAS O senador, que se aposenta no mês que vem, diz que o novo governo começa melancólico e sem rumo e que só a pressão popular pode produzir as mudanças de que o Brasil precisa. ADRIANO CEOLIN No mês passado, a tribuna do Senado foi palco pela última vez da oratória inflamada do senador Pedro Simon (PMDB-RS). Depois de quase sessenta anos na política, 32 deles no Senado, o gaúcho de Caxias do Sul se despediu do Congresso com um discurso de quatro horas, ao fim do qual chorou e foi aplaudido de pé por seus pares. Fundador do MDB e um dos líderes da campanha pela volta das eleições diretas, em 1984, ele apoiou a candidatura de Lula à Presidência e, no primeiro mandato de Dilma Rousseff, chegou a montar um bloco de parlamentares que daria suporte às medidas saneadoras da presidente no campo ético. Hoje, afirma que o petista foi "a maior decepção" de sua carreira e que Dilma se vergou ao toma lá dá cá e ficou "igual aos outros". Em entrevista a VEJA, Simon diz por que considera que a política brasileira vive "um momento dramático" e o que, na sua opinião, poderá mudar essa situação. O senhor está se aposentando depois de quase sessenta anos na política. Nessa área, o país está melhor hoje do que no passado? Nunca vi um momento tão dramático como este que o país vive hoje. Estamos diante de um dos maiores escândalos de corrupção do mundo, o petrolão. Eu era menino quando Getúlio Vargas se matou. Mais tarde, vi Jânio Quadros renunciar com sete meses de mandato. Tivemos crise para tudo o que é gosto. Mas nunca vi uma situação tão complicada quanto a de agora. Por quê? Vimos o fim de um governo melancólico e agora assistimos ao começo de outro governo igualmente melancólico. Acabamos de ter uma eleição democrática. O povo se manifestou. Um candidato ganhou e o outro perdeu, mas há uma interrogação no ar. A presidente da República teve dificuldades até para montar o ministério porque estava na expectativa do término da Operação Lava-Jato. E se o ministro fulano estiver na lista de envolvidos na operação? E se beltrano estiver também? Uma situação que nunca havia acontecido. Acabamos o ano com dois ministros da Fazenda. Saiu a notícia de que a presidente da Petrobras pediu demissão, mas a presidente da República não a deixa sair. Parece que a Dilma não tem quem colocar no lugar. É muita desgraça. A presidente acaba de ser eleita e a impressão que dá é a de que não tem comando. O senhor chegou a apoiá-la no início do primeiro mandato. Lula soube vender tão bem a imagem da Dilma que eu acreditei na capacidade dela. E o começo do seu primeiro mandato de fato impressionou. Ela mandou embora seis ministros em seis meses, porque haviam sido citados em casos de corrupção. Eu fiquei solidário a ela. Cheguei a articular um bloco de parlamentares com os quais ela pudesse contar, para que não ficasse à mercê de chantagens no Congresso. Mas, principalmente após as manifestações de junho, ela se entregou e voltou a fazer de novo o troca-troca por cargos. Ficou igual aos outros. Dos presidentes que o senhor conheceu, algum surpreendeu? O (José) Sarney é uma força da natureza, nasceu para estar no poder. Sempre esteve e sempre vai estar, mesmo fora do Senado. Talvez só dom Pedro II tenha ficado mais tempo no poder do que ele. Com o (Fernando) Collor tive uma passagem curiosa. Fomos eleitos para o cargo de governador no mesmo ano, em 1986, ele por Alagoas e eu pelo Rio Grande do Sul. Logo em seguida, ele me procurou, propôs que eu saísse do PMDB para criar um partido e disputar a Presidência da República. Achei-o louco. Itamar Franco era muito humilde, tímido até, mas sabia dizer não. Na verdade, gostava muito de dizer não. Fernando Henrique era o contrário. Não sabia dizer não e achava que era a melhor cópia de Deus na Terra. Já o Lula foi a maior decepção de toda a minha carreira. Por quê? Porque ele tinha uma bandeira, tinha uma história, e agora está morrendo abraçado ao José Dirceu, aos mensaleiros e aos ladrões da Petrobras. Quando ele apareceu, todos ficamos encantados com sua liderança no sindicato dos metalúrgicos e, em seguida, na criação do PT. Depois de perder três eleições, chegou lá, fez um governo com ações importantes, especialmente na área social. Ele era a grande esperança do povo brasileiro. Mas, infelizmente, fechou os olhos para a corrupção. Deixou acontecer mensalão, petrolão. Todos esses escândalos têm uma origem — que é ele, por ação ou omissão. Se não tivéssemos tido tudo isso, se tivéssemos feito um governo austero, o Brasil hoje seria diferente, muito melhor. Por tudo isso, Lula é a grande decepção da minha vida pública. O governo recentemente atropelou o Congresso impondo um novo cálculo do superavit fiscal. Como o senhor avalia a relação do Congresso com a presidente Dilma? A manobra fiscal foi um ato absurdamente irresponsável. Dilma conseguiu fazer isso, e ainda obter a aprovação pelo Congresso, porque mantém vivo o troca-troca por cargos, por emendas. É lamentável esse tipo de relação. E o governo ainda teve a audácia de condicionar a aprovação da meta ao aumento de 700.000 reais no valor das emendas parlamentares. Isso foi quase que oficializar a corrupção. Infelizmente, não há perspectiva de melhora. Nenhum dos últimos três presidentes teve uma relação republicana com o Parlamento. Tudo ficou na base do toma lá dá cá. Dilma manteve isso agora, ao montar seu ministério. Ela, que havia sido apresentada como uma técnica competente, dividiu seu governo entre partidos, pois sabe que vai precisar do Congresso neste ano, quando veremos o aprofundamento das investigações da Petrobras. O senhor concorda com o que dizia Ulysses Guimarães, que um novo Congresso é sempre pior que o último? Costumo dizer que não se podem esperar iniciativas do Congresso Nacional. O povo precisa pressionar os parlamentares. O Congresso é um ajuntamento de corporações — sindicatos, empreiteiras, multinacionais. Ninguém ali fala pelo povo. Se deixar tudo calmo, não fazem nada, ou só fazem coisas de interesse de determinados grupos. Por isso, sempre digo: não esperem nada do Congresso. Só tem mudança com povo na rua. Foi assim nas grandes questões. Como a campanha das diretas já, por exemplo? Sim, quando acabamos com a ditadura. O povo foi para as ruas pedir eleições diretas para presidente. Não conseguimos, mas tiramos os militares e elegemos o Tancredo, um democrata, no Colégio Eleitoral. No impeachment foi a mesma coisa. A mocidade foi para a rua, vestiu preto, e o Collor foi cassado. O julgamento do mensalão aconteceu porque o povo debateu, discutiu e pressionou. Teve gente que foi para a frente do Supremo Tribunal Federal. Teve gente que reclamou pela internet, mandou carta para os ministros. E todo mundo acompanhou pela TV, pela imprensa. O resultado foi extraordinário, com a prisão da cúpula do PT — um partido que eu vi nascer tão bonito, cheio de ideias, de gente boa. Eu acreditava muito no PT, achava que poderia ser o que o MDB deixou de ser após chegar ao poder. Mas me enganei. O partido deixou de representar a ética na política. Hoje as pessoas votam no PT porque têm medo de perder o Bolsa Família. É por isso que o Lula não deixa transformar o programa em política de Estado permanente. O senhor sempre disse que no Brasil "só ladrão de galinha vai para a cadeia". O julgamento do mensalão mudou essa convicção? Na verdade, é só o começo. É preciso avançar, e é o povo que tem de fazer acontecer. Tem de ir para a rua, tem de cobrar, tem de usar a internet e as redes sociais. Só com o povo é que faremos as mudanças. Agora, o mensalão parece brincadeira de criança perto do que foi o roubo na Petrobras. Meu Deus do céu! A Petrobras era uma das dez maiores empresas do mundo, um orgulho nacional. E ela acabou sendo usada para fazer o maior escândalo de corrupção que o Brasil já teve. E, se você acompanhar a imprensa internacional, vai ler análises que dizem que se trata do maior escândalo que já aconteceu em qualquer país democrático e desenvolvido. É uma vergonha para nós. E infelizmente o governo do PT ganhou a eleição. Valeu mais o Bolsa Família do que um escândalo desse tamanho. A oposição tem responsabilidade nisso? Sim. O PT, quando estava do outro lado, fez uma oposição brilhante. Não deixava escapar uma vírgula. Já no governo, o PT foi muito pior que o PSDB. Os tucanos não souberam fazer oposição, eles não conseguem. O senhor estava apoiando Eduardo Campos na última eleição. Tinha esperança de que ele pudesse fazer diferente? Em primeiro lugar, eu achava que tinha de quebrar um pouco essa polarização PT-PSDB. O Eduardo mostrava que queria fazer a política de um jeito novo, sem ficar negociando carguinho de quinta categoria com o Congresso. Depois que o partido da Marina (Silva) foi vetado pela Justiça Eleitoral, eu disse a ela que se filiasse ao PSB e formasse uma chapa com ele. Além disso, Eduardo tinha escola, a escola de Miguel Arraes, com quem eu convivi no PMDB. Como gestor, também havia se mostrado competente ao fazer um grande governo em Pernambuco. Então, o Eduardo e a Marina como vice eram a minha grande esperança. Ao fim das atividades do Congresso em 2014, o senhor devolveu 1,4 milhão de reais da sua cota de passagens aéreas, algo incomum no Congresso. Esse dinheiro não era meu. É um dinheiro que eu podia ter usado para exercer minhas atividades como parlamentar. Mas, como não houve necessidade, eu tinha de devolver. Quando se tornou vereador em Caxias do Sul no ano de 1958, o senhor imaginava que chegaria aonde chegou? Jamais. Eu era um professor de direito e atuava no tribunal do júri. Modéstia à parte, eu era bom. Entrei na política por acaso. Nasci em Caxias, mas morava em Porto Alegre. Meu título era de lá. Colocaram-me para ser candidato e eu ganhei. O vereador é o político mais importante que existe, pois fica mais perto do povo. Eu gostava de ser vereador — sobretudo de fazer atividades culturais com debates. Era um sucesso, toda a cidade participava. Em seguida, fui candidato a deputado estadual com pouco mais de 30 anos. Um ano depois veio a ditadura e mudou toda a minha vida. Cassaram e mataram tanta gente no Rio Grande do Sul que praticamente só sobrou a mim para ser o presidente do partido. A partir daí, eu não mais conduzi, fui conduzido. Como político, qual é sua principal característica? O que me caracteriza é a coerência. Sou o que sou. Para fazer meu discurso de despedida do Senado, usei como esboço meu discurso de formatura na faculdade. As linhas gerais eram as mesmas. Eu não mudei. Qual o legado que o senhor deixa para a política? Não deixo legado. Eu não sou ninguém. Sou apenas velho, com quase 85 anos. Quero continuar fazendo política. Pretendo ir a debates, palestras. Estamos passando por um momento delicadíssimo. Vou procurar a Ordem dos Advogados do Brasil, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. A gente tem de fazer uma pauta de discussões para levar ao governo. Não preciso de mandato no Congresso para isso. Vai sentir saudade do Senado? Está acontecendo muita coisa no Brasil. O Senado vai ser quente neste ano que está começando. Dá até vontade de adiar a minha saída. Essa história da Petrobras, de empreiteiros presos, de Estados Unidos e Cuba retomando relações... É tanta coisa. Mas vou para casa numa boa. 1#4 CLAUDIO DE MOURA CASTRO – ENVELHECER É UMA ARTE? Nas palavras de Cícero, envelhecer é coisa boa. Dois mil anos depois, com fartura de números, o tema reaparece nas pesquisas iniciadas por R. Easterlin. Detecta-se uma "curva da fossa": entre 40 e 50 anos, bate um pessimismo, uma insegurança difusa. Mas daí para a frente voltamos a ficar de bem com a vida, cada vez mais felizes — óbvio, só até o corpo fracassar. Será? Esse lado emocional-filosófico é nebuloso. Amadurecemos com a idade, como sugerem as pesquisas? Ou acumulamos azedumes e rabugices? Ficamos cada vez mais impacientes com a burrice humana? Ou mais bem blindados contra ela? Cada um é cada um. Exploremos alguns temas em que o terreno parece menos pantanoso. O psicólogo A. Maslow documentou o que significava para ele ir ficando velho. Percebia uma perda progressiva da motivação para fazer as coisas e lidar com desafios. Mais e mais empreitadas deixavam de valer a pena. É o meu caso: já trabalhei no governo, mas hoje nenhum cargo me tentaria. Sinto engulho só de vislumbrar o pesadelo da burocracia pública. Em sua última entrevista, Paulo Freire segue caminho paralelo a Maslow, afirmando que envelhecer é perder a curiosidade. Se ele tem razão, no meu caso, permaneço jovem, pois minha curiosidade sobrevive, onívora. O ocaso das faculdades mentais é bem documentado pela pesquisa. Degrada-se a memória, sobretudo a de curto prazo e a dos nomes e datas. O raciocínio matemático começa a derrapar já a partir dos 30. De fato, todos os avanços na área foram feitos por jovens. A boa notícia é que a capacidade de julgamento, a sabedoria, o esprit de finesse, mencionado por Pascal, não apenas sobrevivem, mas progridem. Comprovou-se que os velhos precisam ler menos para decidir sobre algum assunto, com igual competência. E, nas humanidades, amadurecemos com os anos, e muito. Romancistas e historiadores? Prefiram os velhos. Aleluia! Com o passar dos anos, políticos entendem melhor a natureza humana, por isso sobrevivem na carreira. Sabemos também que a inteligência reage como um músculo. A qualquer idade, é fortalecida com exercícios e evapora com a inação. Daí a importância de exercitar a ambos. Se encolhem os desafios mentais na aposentadoria, risco à vida! Não é o contracheque que salva vidas; mas a letargia intelectual mata. Se ficarmos esperando pela morte, ela virá mais célere. Com medo de morrer, continuo trabalhando, freneticamente. Na minha incauta opinião, conversa de doença não faz bem à saúde. Tampouco é uma boa receita para a longevidade voltar aos lugares em que se viveu ou trabalhou, não encontrar mais conhecidos e ser tratado como um estranho. Caminhando pelas ruas, vemos logo quem tem jeito de aposentado. Falta chispa nos olhos e o andar sugere que não quer chegar a parte alguma. Quem lê obituário, para ficar sabendo dos amigos que morreram, mostra na cara sua vocação para a morte. Cruz-credo! Aliás, a solidão é fatal! Por isso, vale o conselho de Samuel Johnson: enquanto jovem, é preciso cultivar os amigos, pois com a idade vai ficando difícil renovar o plantel. A decadência do corpo é inexorável. Mais dias de indisposição, dói aqui, dói acolá, mais enguiços e reparos, mais remedinhos para isso ou para aquilo. Contudo, avanços na medicina e melhores estilos de vida freiam espetacularmente a degradação do corpo. Mantêm serelepes muitos velhos que, faz poucas décadas, estariam derrubados. Vejam nas ilustrações antigas a imagem dos avós, circunspectos e encarquilhados. Gente nas mesmas idades está hoje malhando nas academias, subindo montanhas e gabando-se de suas proezas, em todos os azimutes. Obviamente, isso dá trabalho: há que buscar remédios miraculosos, próteses, mandar recauchutar o coração, fazer dietas e exercícios árduos para manter a massa muscular. No meu modesto julgamento, compensa. Isso são teorias. O único ganho indisputável é não ter de entrar em filas. Outro dia, estava no banco e, como a fila dos velhos não andava, um jovem me ofereceu seu lugar na outra. Relutei, mas acabei aceitando. Feita a transação, saí correndo, para que ele não me visse partir na minha moto BMW 650 GS. CLÁUDIO DE MOURA CASTRO é economista claudiodemouracastro@positivo.com.br 1#5 LEITOR SEGUNDO MANDATO DE DILMA No "1º tempo", o governo levou humilhantes goleadas da inflação, do PIB, do câmbio, dos juros, das contas públicas, da corrupção etc. Para o "2º tempo", a presidente Dilma convocou um economista do mercado de capitais, Joaquim Levy, e montou uma defesa de alto nível. Mas para o meio de campo e o ataque prevaleceram escolhas medíocres, com ministros sem experiência e pernas de pau. Com essa formação, se Levy não desistir, o time poderá não levar goleadas, mas não fará muitos gols ("Mandato novo, problemas velhos", 7 de janeiro). ABEL PIRES RODRIGUES Rio de Janeiro, RJ Agora ficou claro que a presidente Dilma recebeu de si mesma uma herança maldita: inflação em alta, PIB em baixa, carga tributária elevada em relação aos péssimos serviços prestados ao cidadão, contas públicas maquiadas, credibilidade arranhada e, para piorar, corrupção em níveis nunca vistos na história deste país. O segundo mandato, em vez de propor as reformas e de buscar os avanços de que o Brasil tanto necessita, será usado para tentar corrigir as barbeiragens dos últimos anos. SÁTIRO LAFAYETE DIÔGENES NUNES MARCELINO Campinas (SP), via tablet Hoje com 54 anos, eu me recordo que quando estava no ginásio, nas aulas de OSPB, tínhamos de saber de cor o nome e o cargo de nossos ministros. Hoje, até a presidente Dilma deve recorrer a uma colinha para lembrar o nome desse mundaréu de gente supercomprometida com o cargo e o Brasil. PAULO CÉSAR DA COSTA Campos do Jordão, SP A revista VEJA retrata muito bem o momento por que o Brasil está passando e que atinge, com gravidade, o comércio varejista de bens e serviços, que teve o pior faturamento nos últimos anos. Soma-se à gravidade desse momento a redução nos investimentos e nos empregos formais. Não sou pessimista, mas não acredito no saneamento da economia brasileira antes de 2017. O "relógio do vovô" está desmontado. Faltam técnicos para remontá-lo. WILTON MALTA Presidente da Fecomércio — Alagoas Arapiraca (AL), via tablet Ministro Joaquim Levy: para baixo todo santo ajuda, para cima a coisa toda muda. FAUSTO FERRAZ FILHO São Paulo, SP CARTA AO LEITOR Na Carta ao Leitor "Agora, ao trabalho..." (7 de janeiro), VEJA acredita que Joaquim Levy, o novo ministro da Fazenda, vai salvar a economia do país. Estão querendo o impossível! Como apenas um homem, mesmo com muito conhecimento, racionalidade e previsibilidade, pode dominar a máquina do Estado, impondo sua vontade aos parlamentares e aos poderes Executivo e Judiciário para elaborar e aplicar leis contra corrupção, nepotismo, evasão fiscal, apropriação indébita do dinheiro público, privilégios inúmeros e outros males que causam a injustiça social? Até quando continuaremos a esperar a salvação por parte de um líder político ou de um ídolo religioso? Precisamos tomar consciência de que, num regime verdadeiramente democrático e republicano, o poder estadual não deve se concentrar nas mãos de uns poucos aproveitadores, mas ser diluído entre muitas pessoas, todas competentes na sua área. Democracia rima com meritocracia! SALVATORE D' ONOFRIO São José do Rio Prelo, SP LYA LUFT Ótima a analogia feita pela escritora Lya Luft no artigo "O ano dos guerreiros" (7 de janeiro). Fez-me lembrar de outra característica dos guerreiros: ao perderem uma batalha, nunca desistem porque vislumbram vencer a guerra! Que nós brasileiros nos identifiquemos como "guerreiros". MÍRIAM PEREIRA SOARES Dourados, MS Tenho 85 anos, sou aposentado e, no banco, em fins de dezembro passado, tive de fazer a "prova de vida". Entendi, pois poderia ter passado desta para melhor em 2014, não apenas devido à idade, mas também pelos decepcionantes 7 a 1 na Copa e pelos 51,64% a 48,36% nas eleições presidenciais. De fato, como bem observara Lya Luft, "temos de ser guerreiros". LAURENO ARNO BARFKNECHT Palmas, PR EDWARD FRENKEL Fascinante a entrevista com o matemático russo Edward Frenkel ("Sob o comando dos algoritmos", 7 de janeiro). Advogado, aos 72 anos, não me resta tempo para aprender corretamente matemática; vítima, como todos nós, de didática e metodologia pedagógica equivocadas. ALUÍSIO DOBES Florianópolis, SC O mundo moderno está cada vez mais envolvido com a matemática em todos os setores, mas o ensino da matemática é cada vez mais indigente e afasta o público do seu conhecimento, tendendo a transformar a matemática num privilégio fechado de pequenos grupos, o que pode ser perigoso. A citação do poeta inglês William Blake sobre a abertura das portas da percepção, mostrando ao homem que tudo é infinito, contribui para derrubar as barreiras que nos isolam, mostrando que no universo nada é estanque. Por exemplo, a separação entre ciências exatas e humanas não tem razão de ser. O triângulo geométrico e Hamlet procedem da mesma matriz, que é a imaginação. E a ciência moderna, desde a física quântica, avizinha-se cada vez mais às fantasias da ficção científica, mostrando como a realidade, em sua última dimensão, pode ser fantasmagórica e, matematicamente, a mais estranha. GILBERTO DE MELLO KUJAWSKI São Paulo, SP MAÍLSON DA NÓBREGA Primoroso o artigo "Da Noruega para a África e outros desastres da Petrobras" (7 de janeiro), do economista Maílson da Nóbrega. Com o caso da Petrobras, cheguei à seguinte conclusão/desilusão: a verdadeira preocupação por trás de todos aqueles discursos inflamados contra a privatização de várias estatais, na época em que o PT era oposição — quando os parlamentares da "esquerda" acusavam o governo de querer vender o país aos estrangeiros, de agressão à soberania etc. —, era que os nobres parlamentares perdessem o grande cabide de cargos políticos e, principalmente, um rentável balcão de negócios. Acredito que uma política de Estado mínimo deva ser implementada no Brasil, no que tange às diversas empresas públicas. Traduzindo: privatização! Assim foi com as teles. Vale do Rio Doce etc. O país precisa avançar — para ontem! MARCELO DE MORAIS RIBEIRO Rio de Janeiro, RJ O excelente artigo de Maílson da Nóbrega sintetizou bem o problema da Petrobras e a respectiva solução. O difícil — se não impossível — será esse governo de ficção pôr em prática as saídas apontadas pelo economista. HÉLIO DE ARAÚJO FONTES Videira (SC), via tablel Um pronunciamento de louvor a Maílson da Nóbrega pela excelente sistematização acerca dos desastres ocorridos na Petrobras. Confesso que, no calor de uma discussão, nunca conseguia listar todos, sempre tinha a impressão de estar faltando algum. Fiz até grifos no artigo de Maílson para memorização. ANTONIO HUGO RABELO DE CASTRO Santa Fé do Araguaia, TO BOTO-COR-DE-ROSA Inestimável contribuição foi dada pela revista VEJA ao abordar o misto de crueldade, ineficiência do Estado e cegueira institucionalizada que está dizimando o boto-cor-de-rosa da Amazônia brasileira ("Eles vão morrer logo mais", 7 de janeiro). Infelizmente, não é só no Norte do país que esse triste quadro se desenha. Nossa fauna está sendo dizimada, o tráfico de silvestres avança e os órgãos governamentais, como sempre, fingem que está tudo bem. SILVIA LUIZA LAKATOS VARUZZA Santo André, SP O "garoto-propaganda" símbolo da luta pela preservação das espécies ameaçadas no Brasil deveria ser o boto-cor-de-rosa. Além de mais condizente com nossa realidade, ele ganharia maior projeção nacional (hoje, infelizmente, é mais fácil uma criança brasileira reconhecer um panda do que um boto-cor-de-rosa) e rapidamente ocuparia a posição de "bicho fofo", status que ampliaria sua chance (escassa) de sobrevivência num país que despreza e desconhece sua riquíssima diversidade. LEONARDO CAIXETA Goiânia, GO Em 2009 estive na Amazônia com familiares e fiquei impressionado com a riqueza do meio ambiente e o interesse dos turistas estrangeiros pela região. O local é de uma riqueza ímpar, e merece ser preservado para as gerações futuras. Nesta época em que vemos quanto é importante a água — vide o exemplo de São Paulo —, fica evidente o valor biológico da imensa quantidade de água doce que existe na Amazônia, e que dentro dela vive uma espécie tão simpática: o boto-cor-de-rosa. É fundamental o governo ter atenção com a espécie e com a região, pois, além da preocupação ecológica, não tenho dúvida de que o ativo ambiental será fonte de riquezas e recursos para os países que souberem preservar seu meio ambiente. MARCELO LINS E SILVA Recife, PE Vivemos num total descaso e abandono. O governo, que não zela pelo povo, vai zelar pelo boto-cor-de-rosa? Pela fauna e pela floresta? Estamos jogados à nossa própria sorte. MARIA CECÍLIA ORLANDO Santo André, SP Como a primeira instituição brasileira a chamar atenção para o grave problema do uso de jacarés e botos como isca na pesca da piracatinga, o Instituto Mamirauá acredita que, quanto mais essas questões forem discutidas amplamente pela sociedade brasileira, maior será a probabilidade de encontrarmos soluções para os grandes problemas socioambientais da Amazônia. Na publicação "A Mortalidade de Jacarés e Botos Associada à Pesca da Piracatinga na Região do Médio Solimões", que pode ser baixada gratuitamente no site do instituto, um breve trecho que se refere a registros de abate de iscas durante o ano de 2013, quando não foram registrados abates de botos nas comunidades amostradas, foi apresentado na reportagem de VEJA como um indicador de que o Instituto Mamirauá nega que exista o abate de botos para esse propósito nas regiões onde atua. Na citada publicação do instituto são feitas reiteradas menções à prática de abate e ao uso de botos (bem como de jacarés) como iscas nessas pescarias. Em outro trecho do texto, fica claro que três em cada dez pescarias de piracatinga ocorridas na região do estudo utilizam-se de botos como isca. Em outros trechos da mesma publicação são apresentadas abundantes informações sobre como se dá o uso de botos, como eles são capturados pelos caçadores, os preços pagos pelos pescadores ilegais pelos botos abatidos por caçadores para esse propósito, o rendimento médio da pesca de piracatinga com o uso de botos como isca, os tipos de pescador que optam por utilizar botos como isca etc. Seguimos um estrito rigor científico na coleta, análise e divulgação de dados científicos a respeito desse e de outros importantes temas estudados pelo instituto. Nosso papel, como cientistas, é utilizar as ferramentas da ciência na busca da solução dos grandes problemas amazônicos. Os resultados das pesquisas desenvolvidas até o momento por membros do Instituto Mamirauá sobre esse tema não nos autorizam a estimar os impactos da atividade sobre as populações das espécies usadas como isca na pesca da piracatinga. Simplesmente porque foi demonstrado que há grande variabilidade, tanto espacial quanto temporal, nos padrões desse tipo de pescaria na região do Médio Solimões, e também em outras partes da Amazônia. A saída adotada até o momento pelo poder público, de penalizar pequenos produtores que buscam melhorar suas condições de vida, não é a solução adequada para o problema. A discussão é bem mais ampla e deve ser tratada com maior responsabilidade por todos aqueles que se debruçam sobre sua análise e se interessam por sua solução. EUNICE VENTURI Assessora de Comunicação do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá Tefé, AM AXÉ MUSIC Louvável a reportagem "Pipoca baiana" (7 de janeiro), sobre os trinta anos do surgimento da axé music e o pioneirismo de Luiz Caldas. É incrível como a Bahia dá vida a um ritmo novo e impõe com a sua graça e talento, aqui ou alhures, um estilo novo. De Caymmi a João Gilberto, passando pela tropicália, nosso estado sempre foi um vulcão de criatividade. As oito páginas que VEJA dedica ao axé couberam direitinho em nossos corações. Axé! BENJAMIM BATISTA Presidente da Academia de Cultura da Bahia Salvador, BA VEJA Tenho uma sensação indescritível ao receber semanalmente a revista VEJA — que me proporciona momentos saborosos, semelhantes aos desfrutados com meu vinho predileto, do qual, por motivos óbvios, não vou declinar o nome. Parabenizo a equipe que produz com carinho a melhor revista da América e uma das melhores do mundo. Continuem sempre assim! CLÁUDIO APARECIDO VOLPE Mandaguari, PR Nunca um veículo como VEJA foi, e é, tão importante na vida do cidadão brasileiro, mormente no ano eleitoral que, inexplicavelmente, acabou resultando na eleição da situação. Ainda assim, VEJA persiste na consistência dos fatos apurados pelo Ministério Público, pelo Tribunal de Contas da União e pela Polícia Federal para descortinar a profusão de criminosos que nos pedem votos. Como excrescências do tipo Renan Calheiros, Fernando Collor de Mello, entre tantos outros, podem se sentar no Congresso Nacional e propor CPIs que só beneficiam o governo espúrio do PT? Enfim, os poderes estão podres, e só nos é possível saber quanto por meio das reportagens veiculadas por essa conspícua revista. Hodiernamente, essa é, definitivamente, a única forma de o brasileiro se manter informado sobre a verdadeira administração, legislação e, por que não, Justiça neste país. Por tudo isso, na condição de brasileiros, parabenizamos a revista VEJA, esperando que a cada dia fique ainda melhor na nobre arte de expor os fatos como efetivamente são e, bem assim, mostre aos brasileiros mais esclarecidos que espécie de gente nos governa. Obrigados, hoje e sempre! ANTÔNIO CARLOS STANCATI DE CARVALHO E CLAUDIA DE CÁSSIA COELHO São Paulo, SP CORREÇÃO: o crédito da imagem do evento Comic Com, publicada no índice da edição 2406 (31 de dezembro de 2014), é de Raphaele Palaro, conforme creditado em VEJA.com. PARA SE CORRESPONDER COM A REDAÇÃO DE VEJA: as cartas para VEJA devem trazer a assinatura, o endereço, o número da cédula de identidade e o telefone do autor. Enviar para: Diretor de Redação. VEJA - Caixa Postal 11079 - CEP 05422-970 - São Paulo - SP: Fax: (11) 3037-5638; e-mail: veja@abril.com.br. Por motivos de espaço ou clareza, as cartas poderão ser publicadas resumidamente. Só poderão ser publicadas na edição imediatamente seguinte as cartas que chegarem à redação até a quarta-feira de cada semana. 1#6 MAÍLSON DA NÓBREGA – O MITO DO JEITO PETISTA DE GOVERNAR Desde a República, ciclos de crescimento do Brasil foram interrompidos por crises no balanço de pagamentos. País dependente da exportação de poucas commodities — o café foi soberano por cerca de um século —, quedas súbitas nos seus preços resultavam em renegociação ou moratória da dívida externa. Depois da II Guerra, buscou-se reduzir tal vulnerabilidade mediante estratégia de industrialização por substituição de importações. Nosso calcanhar de aquiles era o baixo ou nenhum acesso aos mercados internacionais de crédito e de capitais. Salvo um pequeno interregno no princípio do século XX — quando obtivemos empréstimos de bancos ingleses —, o financiamento do déficit do balanço de pagamentos provinha de países ricos, de instituições multilaterais e de linhas de comércio exterior. Quase tudo sumia nas crises. A globalização financeira dos anos 1980 e a reciclagem competitiva dos petrodólares (lucros que os produtores de petróleo depositavam nos bancos) deram a impressão de que as crises externas tinham ficado para trás. O Brasil e outros países em desenvolvimento passaram a captar facilmente recursos no exterior. "Empréstimos sindicalizados" (de que participavam vários bancos) eram concedidos com rapidez e poucas exigências. Pequenos bancos europeus podiam apoiar um projeto nuclear, uma grande rodovia ou o Programa do Álcool no Brasil. O sistema ruiu com a moratória mexicana de 1982. Os devedores quebraram. A nova crise da dívida externa durou mais de dez anos. Uma outra conjunção favorável aconteceria a partir de 2003, propiciada pelo excepcional crescimento da economia mundial e pela emergência da China como forte demandante de commodities agrícolas e minerais. No Brasil, adicionalmente, amadureceram as reformas dos anos 1990 — o Plano Real e as privatizações —, que requerem tempo para produzir frutos. O país ganhava duplamente com o boom das commodities: era competitivo na área agrícola, resultado das pesquisas da Embrapa, e no minério de ferro, graças aos ganhos de eficiência derivados da privatização da Vale. Naquele ano, o PT assumiu o governo. Os petistas haviam recebido, então, dois presentes dos céus: (1) os ganhos de produtividade advindos de reformas da era FHC somados à ociosidade de mão de obra que poderia ser incorporada ao processo produtivo, aumentando o potencial de crescimento; (2) uma bonança externa, verdadeiro maná vindo da China, equivalente a novos ganhos de produtividade. Por causa disso, o consumo e os investimentos se expandiram a taxas maiores que as do PIB. O crescimento da economia elevava a receita tributária. Havia mais dinheiro para programas sociais. Lula beneficiou-se dos dois presentes e convenceu os incautos de que recebera uma "herança maldita". Governos sérios buscam amplificar os manás que recebem e assim ampliam o bem-estar da sociedade. Lula tez isso nos seus dois primeiros anos no governo. Com Antonio Palocci no Ministério da Fazenda, promoveu reformas que ampliaram o acesso ao crédito e à casa própria e também melhoraram o ambiente de negócios. O PT vendeu a história de que teria sido a origem de tudo, ou seja, "o jeito petista de governar". Não era verdade, mas funcionou. José Dirceu dizia que "o PT não rouba nem deixa roubar". Hoje se sabe que não era assim. A situação começou a mudar em 2006, ano em que Palocci foi substituído por Guido Mantega no Ministério da Fazenda. Velhas ideias voltaram: intervenções de toda ordem na economia, seguidas desonerações fiscais sem rumo e sem sentido, controle de preços, contabilidade fiscal criativa e a desastrosa "Nova Matriz Macroeconômica". Desmonte geral. O crescimento despencou, embora a taxa de desemprego, por razões demográficas e estruturais, tenha permanecido baixa. A confiança desabou. O Brasil virou patinho feio dos mercados internacionais de capitais, particularmente depois do escândalo do petrolão. O jeito petista de governar era um mito. Seus equívocos acarretaram baixo crescimento e perda de oportunidades. Apesar disso, defesas construídas anteriormente nos protegem de uma crise de balanço de pagamentos do tipo que nos infelicitava. Não é pouco, mas merecíamos bem mais. MAÍLSON DA NÓEREGA é economista 1#7 BLOGOSFERA EDITADO POR KÁTIA PERIN kperin@abril.com.br O CAÇADOR DE MITOS LEANDRO NARLOCH ATAQUE EM PARIS Ora, é claro que o humor sobre religiões tem sua graça. Os jornalistas franceses do semanário Charlie Hebdo não cometeram nenhum crime. A charge sobre Maomé é inofensiva — não se pode acusar o jornal de discriminação. A liberdade de expressão não só é garantida pela lei local como também é um dos grandes valores da cultura francesa. www.veja.com/cacadordemitos COLUNA RODRIGO CONSTANTINO VEEMÊNCIA Com atos terroristas não pode haver contemporização. A reação de todos os defensores da democracia e da liberdade deve ser enérgica e veemente. É claro que os fanáticos são minoria, mas tal ato abominável encontrará aprovação em muito mais gente do que deveria. www.veja.com/rodrigoconstantino DE NOVA YORK CAIO BLINDER TOLERÂNCIA Fomos todos atacados. Todos nós, pessoas civilizadas. Temos uma guerra em muitas frentes. De novo, precisamos estar vigilantes e combater sem tréguas os agentes da intolerância, mas devemos também preservar a tolerância. Esse paradoxo é que nos faz civilizados. www.veja.com/denovayork NOVA TEMPORADA HISTÓRIAS DE CRIMES John Travolta está em American Crime Story, série criada por Ryan Murphy, para contar uma história diferente a cada temporada, sempre com referência a um crime famoso ocorrido nos EUA. A primeira temporada, com dez episódios, é uma adaptação do livro The Run of His Life: The People vs. O.J. Simpson, de Jeffrey Toobin, sobre os bastidores do julgamento de O.J. Simpson, interpretado por Cuba Gooding Jr. Travolta será o advogado de Simpson. www.veja.com/temporada CIDADES SEM FRONTEIRAS AS MELHORES OBRAS DE 2014 NO BRASIL Uma das principais publicações temáticas sobre arquitetura brasileira, a revista Monolito lançou sua edição de retrospectiva de 2014. Nove projetos recém-concluídos foram escolhidos como os mais significativos entre todos os construídos no ano passado. Curiosamente, nenhuma das doze arenas preparadas para a Copa do Mundo figura na relação. Em sua lista de eleitos, a publicação afirma que as arenas não chegaram a fazer feio, deixando claro que também não fizeram bonito o suficiente para figurar entre os melhores projetos do ano, apesar de todo o montante que consumiram. www.veja.com/cidadessemfronteiras SOBRE IMAGENS WALTER CARVALHO O paraibano Walter Carvalho, reconhecido e aclamado como diretor de fotografia de cinema, teve sua produção fotográfica condensada no livro Contrastes Simultâneos. Sem a preocupação de apresentar um ensaio específico, a obra traz o que ele tem de mais rico: o olhar. Carvalho é responsável pela direção de fotografia de clássicos como Central do Brasil, Madame Satã e Abril Despedaçado. www.veja.com/sobreimagens __________________________________________ 2# PANORAMA 14.1.15 2#1 IMAGEM DA SEMANA – O PRÍNCIPE ENCRENCADO 2#2 DATAS 2#3 CONVERSA COM JOÃO CARLOS MARTINS – TUDO NA VIDA TEM CONSERTO 2#4 NÚMEROS 2#5 SOBEDESCE 2#6 RADAR 2#7 VEJA ESSA 2#1 IMAGEM DA SEMANA – O PRÍNCIPE ENCRENCADO Escândalo sexual — e criminal — volta a amargar a vida do filho da rainha. • Já que a força da gravidade dos detalhes íntimos é inevitável, vamos começar por eles. O príncipe Andrew é louco por pés femininos. "Ele começou lambendo meus dedos, o espaço entre eles e o arco dos meus pés", descreveu Virgínia Roberts, a americana que afirma ter tido três encontros de terceiro grau, quando ainda era menor de idade, com o filho da rainha da Inglaterra, sob comando e pagamento do homem que a mantinha como brinquedo sexual. Do banheiro, onde ela diz ter começado a coisa pelos pés, passaram ao quarto e chegaram aos finalmentes, sem grande entusiasmo. "Ele não foi bruto. Não foi como um estupro. Mas também não foi amor." Não era novidade para Virgínia ser passada a amigos do bilionário americano Jeffrey Epstein, um gênio do mundo financeiro intensamente dedicado a conseguir as maiores quantidades possíveis de dinheiro, poder e sexo. Este, habitualmente com adolescentes, que atraía para seu iate ou seus palacetes. Investigado, fez um acordo benevolente com a promotoria e pegou um ano e meio de cadeia. Saiu antes e quase em seguida foi fotografado ao lado de Andrew, que queria mostrar fidelidade ou talvez gratidão — o acordo de Epstein incluía não permitir a divulgação de testemunhos constrangedores. O caso ressurgiu porque Virgínia mais três mulheres estão contestando os termos desse trato. Ela tem advogados agressivos, a disposição de dar entrevistas a publicações que costumam pagar por elas e um bom conhecimento dos métodos de Epstein, incluindo a instalação de câmeras ocultas nos quartos onde os amigos recebiam favores sexuais. Nesse mundo, como se sabe, não existe entretenimento grátis. Ou será que Andrew acreditava que Epstein o convidava porque é um cara bacana? VILMA GRYZINSKI 2#2 DATAS • MORRERAM Pino Daniele, popular cantor italiano e autor da versão original de Bem que Se Quis, sucesso interpretado por Marisa Monte, em adaptação de Nelson Motta. Nascido em Nápoles, estudou contabilidade, mas abandonou os números para se dedicar à música. Seu disco de estreia, Terra Mia, foi lançado em 1977, com canções que abordavam a rotina da cidade. Guitarrista autodidata, Daniele misturava ritmos napolitanos com acordes de jazz e blues. Dividiu o palco com Chick Corea, Eric Clapton e Pat Metheny. Ao longo da carreira, gravou mais de vinte discos. Daniele estava em turnê de relançamento de um de seus álbuns, Nero a Metà. Dia 4, aos 59 anos, de infarto, em sua casa, na Toscana. Jean-Pierre Beltoise, ex-piloto francês de F1 e ganhador do um único Grande Prêmio, o de Mônaco, em 1972, pela escuderia britânica BRM. Sua vitória na chuva, de ponta a ponta, foi um dos grandes momentos da história da prova — superada apenas pelo segundo lugar de Ayrton Senna em 1984, também com o chão molhado (o brasileiro só não venceu porque o diretor da corrida subiu a bandeira quadriculada antes da hora para favorecer Alain Prost). Beltoise era cunhado de Francois Cevert, piloto francês que morreu num dos treinos para o GP de Watkins Glen, nos EUA, em 1973. Dia 5, aos 77 anos, vítima de AVC, no Senegal. Ray McFall, dono da primeira casa noturna onde os Beatles tocaram, o Cavern Club, em Liverpool. O show número 1, em fevereiro de 1961, quase não aconteceu. McFall proibia calcas jeans no estabelecimento, e George Harrison apareceu usando justamente o índigo indesejado. O empresário cedeu, e a banda acabou se apresentando no lugar quase 300 vezes. O resto é história. "Os Beatles eram sensacionais, e eu fiquei chocado com o que vi. Completamente, absolutamente, instantaneamente", relembrou McFall, sobre o momento em que ouviu o quarteto. Os Rolling Stones e os Yardbirds, grupo que deu origem ao Led Zeppelin, também passaram pelo palco do Cavern Club. Dia 8, aos 88 anos, de causa não divulgada. Maria das Dores Alves Rodrigues, a Dona Dodô, lendária porta-bandeira da Portela. Começou na escola aos 14 anos e, logo na estreia, ajudou a agremiação a ganhar o primeiro de seus 21 títulos. Dia 6, aos 95 anos, de causa não revelada, no Rio. Rod Taylor, ator australiano celebrado por sua inquietante atuação como personagem central de Os Pássaros (1963), de Alfred Hitchcock. Recentemente, interpretou Winston Churchill em Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino. Dia 7, aos 84 anos, de causas naturais, em Los Angeles. Khan Bonfils, ator britânico conhecido e reverenciado pelos fãs por sua atuação como o mestre jedi Saesee Tiin, em Star Wars: a Ameaça Fantasma, de 1999. Ele ensaiava a peça O Inferno de Dante, em Londres, quando sofreu um colapso no palco. Dia 6, aos 42 anos, de causa não divulgada. • TER|6|1|2015 Flagrado no exame antidoping o lutador americano do UFC Jon Jones, campeão dos meios-pesados. A amostra, colhida no início de dezembro, encontrou traços de cocaína, mas o resultado só veio a público agora. Jones declarou que deu entrada em uma clínica de reabilitação. Ele não foi punido porque o uso de drogas recreativas é permitido fora do período de competições 2#3 CONVERSA COM JOÃO CARLOS MARTINS – TUDO NA VIDA TEM CONSERTO A história do maestro vai virar filme. Perda dos movimentos das mãos, envolvimento catastrófico com o lado sujo da política e técnica que ele inventou para poder reger: notas e emoções fortes é que não faltam. O que dá mais medo: tocar o Concerto para Mão Esquerda, de Ravel, ou a possibilidade de ser interpretado por Rodrigo Santoro? O filme, independentemente de quem vai me interpretar. No palco, entro para ganhar a luta. No cinema, estou nas mãos de terceiros. Santoro desistiu porque não se empolgou com o roteiro. O diretor pensou no Marcelo Serrado, que também toca piano. Em maio, anunciaremos os atores escolhidos. Por que histórias de superação nem sempre dão bons filmes? A minha não é de superação, é de obrigação. O maior erro da minha vida foi ter me envolvido com política e coordenado uma campanha de Paulo Maluf. Fui acusado de crime contra a ordem tributária em dois processos. Em um, fui absolvido, e no outro, condenado a dois anos e nove meses de prisão. Recorri e não fui preso. Mas o mal já tinha sido feito. Antes da morte de meu pai, disse a ele que sabia do desgosto que lhe havia dado, mas que deixaria um legado na música. Quando não tinha mais movimento nas mãos, criei a técnica de reger com os braços, os olhos, o corpo todo. Quantas notas precisa ouvir para saber se um jovem pianista vai se destacar? Temos 6700 crianças na minha fundação e cerca de quinze diamantes. Basta um minuto para detectá-los. Por que a música erudita ainda é tão limitada no Brasil? A abolição das aulas de música das escolas, durante o regime militar, nos prejudicou. São Paulo teve 200 conservatórios nos anos 1960 e, hoje, o número caiu 80%. Um conservatório em Pequim tem 170 pianos de cauda longa; na USP não há nem meia dúzia. Pode voltar a tocar piano? Fiz uma cirurgia no cérebro, de nove horas, para estimular o braço esquerdo. Faria outra se houvesse tecnologia capaz de me devolver o prazer de tocar como antes. Ainda não há. 2#4 NÚMEROS 1,8 vez maior é o risco de uma pessoa ser atingida por um raio no Brasil na comparação com o resto do mundo. 57,8 milhões de raios caem no Brasil com potencial para causar algum tipo de destruição, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o que coloca o país no topo do ranking mundial. 10 ampères tem uma tomada. O choque provocado por essa descarga elétrica já pode ser suficiente para causar uma parada cardíaca, segundo a Sociedade Brasileira de Cardiologia. 20.000 ampères possui um raio. 2#5 SOBEDESCE SOBE ÍNDIA - O país deverá ultrapassar a China no ano que vem e se tornar a economia emergente com o maior crescimento no mundo, segundo o banco Goldman Sachs. ANTIBIÓTICOS - Cientistas descobriram a primeira nova classe de antibióticos desde 1987, com potencial para ajudar no combate às superbactérias. YUCAS FRITAS - Com a batata integrando a interminável lista de produtos básicos em falta na Venezuela, o McDonald's local está servindo mandioca como acompanhamento para os sanduíches DESCE HARPERCOLLINS - A editora britânica distribuiu no Oriente Médio exemplares de atlas que omitiam a existência de Israel, alegando "preferências locais". Depois, pediu desculpas. TAXÍMETRO - Em São Paulo, passageiro e motorista poderão combinar o valor da corrida em dias e horários de muito engarrafamento. JAQUES WAGNER - Um dia antes de virar ex-governador da Bahia, o petista assinou decreto que garante serviço vitalício de motoristas e seguranças a ex-governadores da Bahia. 2#6 RADAR LAURO JARDIM ljardim@abril.com • BRASIL NÃO DÁ PARA RECLAMAR Gilberto "não somos ladrões" Carvalho deixou a Secretaria-Geral da Presidência da República e um salário de 26.00 reais para presidir o Sesi e passar a receber 45.000 reais por mês. DOIS CHAPÉUS Durante o período eleitoral, em pelo menos uma ocasião Luciano Coutinho reuniu-se com um grande empreiteiro e seu principal executivo para discutir financiamentos do BNDES. Depois de tratar dos assuntos principais, já sem outros interlocutores na sala, teve uma rápida conversa com os dois. Nela, avisava que Edinho Silva, o tesoureiro da campanha de Dilma Rousseff, os procuraria para doações. • PETRÓLEO DEPOIS DO BALANÇO O governo decidiu que só anunciará o nome dos novos integrantes do conselho de administração da Petrobras após a divulgação do balanço (não auditado) do terceiro trimestre da estatal, que deve ocorrer até o fim do mês. TE CUIDA, RIO O Rio de Janeiro é ainda, de longe, o maior estado produtor de petróleo do Brasil — mas não com a folga de anos atrás. Aos números: do Rio saem 68,9% da produção total do país, mas em 2000 sua participação era de 79,6%. Enquanto isso, Espírito Santo e São Paulo avançam. Produziam 1% (ES) e 0,13% (SP) em 2000, e esses percentuais são hoje de 16% e 6,9%, respectivamente. NA LINHA DE TIRO O tiro dado na semana passada no notório Eduardo Cunha não o acertou - nem tinha potencial para tal. A bomba com a qual o candidato favorito à presidência da Câmara deve se preocupar, e muito, é outra: a delação premiada de Alberto Youssef na qual é citado e que já foi homologada pelo ministro do STF Teori Zavascki. No depoimento do doleiro, sim, o potencial de estragos é grande. A propósito, nem tente falar pelo WhatsApp com o precavido Cunha. Assim como boa parte dos parlamentares, ele é adepto de outro aplicativo, o Wickr, que criptografa as mensagens enviadas, tornando as conversas mais protegidas. Com Michel Temer, por exemplo, Eduardo Cunha só troca mensagens pelo Wickr. • CONGRESSO GANHANDO CORPO Paulo Vasconcellos, o marqueteiro de Aécio Neves, passou a colaborar com a campanha de Júlio Delgado à presidência da Câmara. • ECONOMIA PECHINCHAS LOCAIS A terra arrasada da Bovespa hoje produz distorções. Uma delas: a Apple vale quase tanto (620 bilhões de dólares) quanto todas as empresas brasileiras de capital aberto somadas (700 bilhões de dólares). • LIVROS EM BAIXA Prestes a completar seis meses no Brasil, a venda de livros físicos da Amazon ainda não decolou. Corresponde a menos de 1% do faturamento das editoras — nos EUA, são 30%. A empresa acaba de trocar o executivo responsável pela operação mirando uma participação de mercado semelhante à do Submarino, responsável por cerca de 10% da venda de livros no país. • RELIGIÃO MUNDIAL DE DÍVIDAS Estrangulada por Edir Macedo desde a perda de horários na TV brasileira, a Igreja Mundial do Poder de Deus, chefiada por Valdemiro Santiago, fechou 2014 com 25 ações de despejo no Rio de Janeiro por inadimplência no aluguel de imóveis para a realização de cultos. A igreja está abrindo, por via judicial, um processo de renegociação das dívidas. • OLIMPÍADA NO REVEZAMENTO O general Fernando Azevedo e Silva, que há catorze meses comanda a Autoridade Pública Olímpica, está de saída do cargo. Quer voltar ao Exército. Nas próximas semanas, o governo anuncia o substituto, ainda não escolhido. 2#7 VEJA ESSA “Eu pensei que ele não estava interessado (...), ou que fosse gay.” - NICOLE KIDMAN, atriz, revelando ao público uma frustrada cantada no apresentador Jimmy Fallon, que a entrevistava no programa The Tonight Show, da NBC. “O que dizer sobre a morte de um filho? Não consegui ficar, pois, além de ainda estar me recuperando da cirurgia na coluna, não me senti emocionalmente preparado para o final. Que Deus o ilumine.” - ZECA PAGODINHO, cantor, sobre a morte precoce de seu filho Elias Gabriel, de 28 anos, justificando sua ausência no velório, em postagem no Facebook . “Os menores hoje são 007. Têm licença para matar.” - YOUSSEF ABOU CHAHIN, o novo chefe da Polícia Civil de São Paulo, defendendo o endurecimento da punição a jovens infratores, ao tomar posse. “O governo de Roraima espera tratamento isento e igualitário dos órgãos de fiscalização do poder público, considerando que é uma prática comum na história de Roraima a nomeação de pessoas próximas aos gestores para ocupar importantes secretarias.” - SUELY CAMPOS, governadora de Roraima, em nota, justificando a nomeação de dezenove parentes para cargos nas secretarias estaduais. “Atualmente a polarização PT-PSDB distorce o significado do voto, já que os ideários dos dois partidos não são necessariamente antagônicos.” - FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, ex-presidente da República, em artigo no jornal O Estado de S. Paulo. “É hora para uma mudança.” - ALI BIN AL HUSSEIN, príncipe jordaniano e um dos vice-presidentes da Fifa, ao anunciar que se candidatará à presidência da entidade. “O salto necessário para uma educação de qualidade exige muito mais do que retórica.” - NECA SETÚBAL, psicóloga e ex-assessora de Marina Silva, em artigo na Folha de S.Paulo, ao criticar o novo lema do governo, "Brasil, pátria educadora". “Há alguns anos, um extremista no Paquistão lutou para que eu fosse condenado à morte porque o Facebook se recusou a banir conteúdos sobre Maomé que o ofendiam. Nós mantivemos essa posição porque vozes diferentes — mesmo se forem ofensivas, às vezes — podem tornar o mundo um lugar melhor e mais interessante.” - MARK ZUCKERBERG, fundador do Facebook, em postagem na sexta-feira (9). “Acelerei a história, mas não posso dizer que o livro é uma provocação, que escrevo inverdades para provocar as pessoas.” - MICHEL HOUELLEBECQ, escritor francês, sobre seu novo livro, Submissão, que retrata a França governada por um partido muçulmano - o livro e o escritor foram capa do último número do jornal Charlie Hebdo antes do atentado. EPÍGRAFE DA SEMANA A pretexto do atentado terrorista contra o jornal francês Charlie Hebdo “Além do frenesi fanático, que é tão perigoso no homem quanto a hidrofobia é no cachorro, há (entre os seguidores de Maomé) essa terrível apatia fatalista.” - WINSTON CHURCHILL (1874-1965), estadista britânico. _____________________________________ 3# BRASIL 14.1.15 3#1 MEIO DESABAFO, MEIO AMEAÇA 3#2 “COM BLÁ-BLÁ-BLÁ... 3#3 PARECE FIM DE GOVERNO 3#1 MEIO DESABAFO, MEIO AMEAÇA O empreiteiro apontado como chefe do cartel da Petrobras liga os contratos sob suspeita ao caixa de campanha da presidente Dilma. RODRIGO RANGEL O engenheiro baiano Ricardo Ribeiro Pessoa entrou para o mundo das empreiteiras há mais de quarenta anos. No começo, como um modesto funcionário. Depois, como dono do próprio negócio. Nada, porém, que o colocasse em posição de destaque no competitivo mercado das construtoras. Foi a partir do primeiro governo Lula que a UTC Engenharia, a principal empresa de Pessoa, experimentou uma ascensão vertiginosa. O empreiteiro considera-se amigo do ex-presidente, com quem conversava regularmente até ser preso, no fim do ano passado, na sétima etapa da Operação Lava-Jato. Junto com ele, a Polícia Federal arrastou para a prisão outros vinte donos e altos executivos das maiores empreiteiras do país. Eles são acusados de integrar um cartel que dividia entre si os contratos bilionários da Petrobras em troca do pagamento de propinas para os políticos que lhes abriam caminho na estatal. Na carceragem da Polícia Federal em Curitiba, capital em que correm os processos da Lava-Jato, tem sido dura a rotina dos integrantes do chamado clube do bilhão, que até recentemente cruzavam os céus do país a bordo de jatos particulares. Pedidos de relaxamento de prisão formulados pelos advogados dos empreiteiros têm sido sistematicamente negados. Além da farta documentação que registra o funcionamento do maior esquema de corrupção já descoberto no país, os policiais contam com revelações contundentes feitas por antigos parceiros das empreiteiras que, pilhados, decidiram colaborar com as investigações para tentar diminuir suas penas. É o caso de Paulo Roberto Costa, o ex-diretor da Petrobras que escolhia as empreiteiras e assinava os contratos, e do doleiro Alberto Youssef, que distribuía os dividendos. Foi a partir das delações premiadas da Operação Lava-Jato que o papel de Ricardo Pessoa no esquema pôde ser esquadrinhado. Segundo as investigações, ele atuava como uma espécie de coordenador do cartel que reunia, ao redor da Petrobras, outros gigantes da empreita, como Camargo Corrêa, Mendes Júnior e OAS. Pessoa contesta o título de chefe do grupo. Ele afirma que apenas facilitava o diálogo entre as várias empreiteiras porque foi presidente da entidade que representa o setor. E o setor está inquieto. Os empreiteiros presos repetem aos visitantes que não estão dispostos a figurar como únicos vilões do megaesquema de corrupção. Um bom resumo do que vai pela cabeça dos empreiteiros presos está em um manuscrito de seis folhas de caderno obtido por VEJA. Ele foi escrito por Ricardo Pessoa, da UTC. VEJA confirmou a autoria do documento por meio de um exame grafotécnico feito pelo perito Ricardo Molina, da Unicamp. É a primeira manifestação de um integrante do clube do bilhão desde a prisão. O documento contém queixas contra os antigos parceiros de negócios e ameaças veladas a políticos. Em um dos trechos, o empreiteiro liga os contratos sob suspeita assinados entre as empreiteiras e a Petrobras ao caixa de campanha eleitoral da presidente Dilma Rousseff. Depois de se referir ao fato de que parlamentares estão — erradamente — considerando que as doações oficiais de campanha não configuram delito, ele afirma: "Vale para o Executivo também. As empreiteiras juntas doaram para a campanha de Dilma milhões. Já pensou se há vinculações em algumas delas", questiona. Em tom de desafio, ele pergunta se o procurador-geral da República. Rodrigo Janot, e o Supremo Tribunal Federal (STF) aplicarão essa interpretação rigorosa também em relação à presidente, já que tudo indica que essa será a estratégia para incriminar os bagres e lambaris da base aliada do governo beneficiados pelo esquema de corrupção. Nas entrelinhas do manuscrito fica evidente o desconforto dos empreiteiros de estarem sendo, pelo menos até agora, os bodes expiatórios da complexa rede de corrupção armada na Petrobras. Eles têm razão. Nas denúncias oferecidas pelo Ministério Público Federal e aceitas pelo juiz Sérgio Moro, o esquema de corrupção na Petrobras parece ser apenas o conluio de empreiteiros gananciosos com meia dúzia de diretores venais da Petrobras. Nada mais longe da verdade. Como Paulo Roberto Costa revelou com toda a clareza, tratava-se de um esquema de desvio de dinheiro para partidos e campanhas políticas organizado pelo partido no poder, o PT. Entende-se, portanto, a insistência de Ricardo Pessoa em lembrar que em sua concepção e funcionamento o esquema na Petrobras era político. As empreiteiras entraram como a solução para o problema de como entregar o dinheiro aos parlamentares e candidatos da base aliada do governo do PT. Pessoa cita nominalmente o tesoureiro do comitê de Dilma Rousseff, o deputado petista Edinho Silva (SP): "Edinho Silva está preocupadíssimo. Todas as empreiteiras acusadas de esquema criminoso da Operação Lava-Jato doaram para a campanha de Dilma". Arremata com outra pergunta desafiadora, referindo-se ainda ao caixa do comitê eleitoral da presidente: "Será se (sic) falarão sobre vinculação campanha x obras da Petrobras?". O empreiteiro faz chiste com o que já foi descoberto até agora e afirma que o volume de dinheiro desviado na diretoria de Paulo Roberto Costa é "fichinha" perto de outros negócios da Petrobras que também teriam servido à coleta de propina. Sem negar em nenhum momento as acusações de pagamento de propina em troca de favorecimento nas obras, o homem que as investigações apontam como "chefe do cartel" questiona por que motivo, até agora, só seis das dezesseis empreiteiras foram processadas pelo Ministério Público. E se revela magoado com os delatores do petrolão, antigos parceiros que, pilhados, resolveram contar o que sabem. "Por que somente seis das dezesseis?", indaga. "As outras empresas são santas e os delatores que se apressaram em apontar são santos." Sobre a acusação de cartel, o empreiteiro faz uma observação curiosa: "Quando se fala de cartel da Opep (a Organização dos Países Exportadores de Petróleo), ninguém vê nada de errado com isso. Qual a diferença do cartel da Opep para o cartel das empreiteiras?". As queixas dirigidas aos antigos parceiros vão se repetindo ao longo das seis páginas de anotações do empreiteiro. Ao se referir ao Judiciário, Pessoa reclama de que "ninguém" está se empenhando o suficiente para que os empreiteiros presos sejam libertados. Ele lembra que o presidente do STF, Ricardo Lewandowski, que encampou teses em favor dos réus no mensalão, agora age de maneira diferente. Lewandowski negou, recentemente, pedidos de relaxamento de prisão feitos pelos advogados dos empreiteiros. "Ele não quiz (sic) meter a mão na cumbuca", diz Pessoa. O tom de ameaça é onipresente: "Os onze presos vivem se perguntando. Estamos aqui por quê? Para delatar, para confessar ou para..." — as reticências são dele. Em mais de uma passagem, o empreiteiro pergunta: "Que que é isso, companheiro?". Ele não esclarece a que companheiro se refere. UM RECADO PARA DILMA... "Consciência de governo. Vale para o executivo também. As empreiteiras juntas doaram para a campanha de Dilma milhões. Já pensou se há vinculações em algumas delas. O que dirá o nosso procurador-geral da República. STF a se pronunciar." Em texto que antecede a este, o empreiteiro escreve que, embora parlamentares considerem que doações oficiais de campanham não configuram delito, a lei prevê que há crime, sim, se existir relação entre essas doações e contratos públicos. Aqui, ele ressalva que o mesmo vale para o Poder Executivo – lembra que as empresas alvo da Lava-Jato fizeram doações milionárias para a campanha de Dilma. Ou seja: se os demais envolvidos são culpados, a presidente também pode ser responsabilizada, insinua. Por fim, ele questiona o rigor com que a Procuradoria-Geral da República tratará as doações à campanha da petista. No trecho que vem logo a seguir, sob o título “Consciência na campanha”, Ricardo Pessoa vai além no propósito de ligar o comitê eleitoral de Dilma às doações feitas pelas empreiteiras e aos contratos sob suspeita na Petrobras. Referindo-se à possibilidade de os investigadores mirarem a relação entre os contratos fraudulentos na estatal e o caixa de campanha da presidente, ele diz que o tesoureiro do comitê de Dilma, o deputado petista Edinho Silva (SP), está “preocupadíssimo”. ..E OUTRO PARA O PT "Consciência na campanha. Edinho Silva (tesoureiro da campanha de Dilma Rousseff) está preocupadíssimo. Todas as empreiteiras acusadas de esquema criminoso da Operação Lava-Jato doaram para campanha de Dilma. Será se (sic) falarão sobre vinculações campanha x obras da Petrobras?" O ESQUEMA É BEM MAIOR "A Operação Lava-Jato vai caminhando e está prestes a mostrar que o que foi apresentado sobre a área de Abastecimento da Petrobras é muito pequeno quando se junta tudo a Pasadena, SBM, Angola, esquema argentino, Transpetro, Petroquímica e outras mais. Ah, e o contrato de meio ambiente na Petrobras Internacional? Se somarmos tudo, Abastecimento é fichinha." Ricardo Pessoa afirma que os negócios descobertos pela Polícia Federal na diretoria de Abastecimento da Petrobras, comandada durante oito anos pelo agora delator Paulo Roberto Costa, são apenas uma pequena parcela do megaesquema de corrupção na estatal. Ele cita, como exemplos de outros focos de desvio de dinheiro, alguns investimentos da empresa, como a aquisição da Refinaria de Pasadena, no estado americano do Texas, os contratos da Transpetro, uma das subsidiárias da Petrobras, e negócios fechados pela área internacional da companhia. A COMPARAÇÃO COM O MENSALÃO "O feio recesso de Lewandowski. No recesso o presidente do STF recebeu alguns HC's (habeas corpus), liminares das negativas do STJ sobre os executivos presos em Curitiba. Ele não quiz (sic) mefer a mão na cumbuca. Lembrou do mensalão. Só que agora é só relaxamento de prisão. Mesmo assim!!!" O empreiteiro reclama que não vê empenho da parte de "ninguém" para que os executivos presos sejam libertados. Lembra que o presidente do STF, Ricardo Lewandowski, amigo de Lula que encampou teses favoráveis aos réus do mensalão, agora negou pedidos de habeas corpus feitos pelo clube do bilhão. AOS EX-PARCEIROS, O ÓDIO "Onde anda o Augusto Mendonça? Onde passou o Natal e Ano-Novo? Provavelmente na Ilha de Caras ou similar. Lugar certo para criminoso e delator?" O empreiteiro apontado como chefe do cartel deixa transparecer a mágoa com os antigos parceiros, como o empresário Augusto Mendonça, que decidiram ajudar a Justiça e contar detalhes do esquema na Petrobras. 3#2 “COM BLÁ-BLÁ-BLÁ... ..sem bafafá, quem foi malandro é, sempre será", diz um antigo enredo da escola Império Serrano. Lula caiu nesse mesmo samba em 2008 ao dar ordens na Petrobras. HUGO MARQUES Em 2009, quando o presidente Lula já estava decidido a tornar Dilma Rousseff sua sucessora, o governo jogou pesado para abafar uma CPI que investigaria irregularidades na Petrobras. Sob orientação do Planalto, empreiteiras que tinham contratos com a companhia disseram a parlamentares que, se a apuração fosse realizada, as doações para as campanhas de 2010 cairiam drasticamente. A ameaça funcionou. A CPI foi controlada e o PT disputou a eleição sem ter de explicar as falcatruas que já sangravam os cofres da estatal, mas que só foram devidamente mapeadas pela Polícia Federal no ano passado. Entre os alvos da CPI naquele período, estavam os desvios que ocorriam na área de liberação de verbas de patrocínio da empresa. Era um tema aparentemente menor se comparado ao dos orçamentos superfaturados de refinarias e oleodutos, mas, se esquadrinhado, poderia já ter lançado luz sobre o topo da cadeia de comando responsável pelo bafafá em que se meteu a Petrobras. No varejo e no atacado, a farra nos cofres da estatal já era grande — e um caso comezinho descoberto numa investigação interna aponta o gabinete do presidente da República como a origem de, ao menos, parte dessa festa. O caso, revelado na semana passada pelo jornal Valor Econômico, engrossa a extensa lista de exemplos de como o PT se apoderou sem pudor da máquina pública para fortalecer seu projeto de poder. Em depoimento prestado em uma sindicância interna da estatal, Geovane de Morais, ex-gerente de comunicação da área de abastecimento da Petrobras, contou que partiu do então presidente Lula a determinação de que o departamento liberasse 12 milhões de reais para as escolas de samba do Rio de Janeiro às vésperas do Carnaval de 2008. Apesar de a área técnica da Petrobras ter se manifestado contra o repasse, que violava uma série de normas internas, o caso foi parar na mesa de Paulo Roberto Costa, então diretor da companhia. Chamado carinhosamente por Lula de Paulinho, o hoje delator do petrolão foi taxativo, segundo o ex-gerente: "Olha, o Lula disse que é para patrocinar o Carnaval carioca, que é para dar 1 milhão a cada escola". E assim foi feito. A Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) reforçou a ordem. "O presidente quer porque quer", afirmou Paulo Roberto, segundo o depoimento de Morais. Lula queria porque queria liberar o dinheiro para satisfazer aliados como o então governador fluminense, Sérgio Cabral — e, segundo o ex-gerente, foi buscar a solução nos generosos cofres da Petrobras. A sindicância concluiu que o pagamento às escolas de samba foi irregular. A área de Morais era mais um dos tantos sumidouros de dinheiro da Petrobras — e o esforço para atender a ordens como a de Lula resultou, só em 2008, num desfalque de 151 milhões, incluindo pagamentos por serviços nunca prestados. Há outros detalhes sórdidos no depoimento do ex-gerente. Embora ele tenha dado nome e sobrenome de quem estava pressionando a Petrobras a soltar dinheiro fora das normas, dentro da estatal tudo estava ajustado para que a lista de autoridades envolvidas nos desmandos descobertos na área nunca viesse a público. No relatório com a conclusão da sindicância, e também na transcrição do depoimento, o nome de Lula e o de outros políticos foram escandalosamente suprimidos. Se dependesse da Petrobras, tudo ficaria no blá-blá-blá. Só se descobriu que Lula foi citado (várias vezes) no caso das escolas de samba porque agora, quase seis anos depois, vazou a gravação do testemunho de Morais. O ex-funcionário foi demitido. A história ainda pode dar samba... "Pega um leva dois / Alô quem vai / Tô baseado na ideia do papai. 3#3 PARECE FIM DE GOVERNO Empossados há uma semana, os novos ministros de Dilma divergem em público, são renegados por seus partidos e levam pito da presidente, sem habilidade para conciliar diferenças. MARIANA SARROS Ao anunciar seu novo ministério, a presidente Dilma Rousseff já havia conseguido duas façanhas: desagradar esquerda, direita e aliados ao mesmo tempo e excluir da equipe qualquer nome de destaque. À exceção do ministro da Fazenda, Joaquim Levy, os notórios o são mais por fatos que gostariam de ver esquecidos do que pela excelência reconhecida em suas áreas. Na semana passada, foi a vez de os escolhidos de Dilma surpreenderem. Ao se engalfinharem numa sequência de desentendimentos públicos, deixaram claro que, se não há entre eles nenhum grande talento individual, em conjunto, produzem resultado ainda pior. Menos de uma semana depois da posse, os novos ministros mostraram que: 1) têm divergências fundamentais entre si (além de Kátia Abreu, da Agricultura, x Patrus Ananias, do Desenvolvimento Agrário, declararam suas discordâncias, em alto e bom som, Armando Monteiro, do Desenvolvimento, x Arthur Chioro, da Saúde, na questão da volta da CPMF); 2) não têm o apoio de sua própria sigla (Cid Gomes, da Educação, foi renegado pelo Pros, assim como Helder Barbalho, cujo partido, o PMDB, anunciou que não tem nada a ver com sua indicação); 3) não entendem de suas pastas ("Mas entendo de gente", tentou compensar o pastor evangélico e novo ministro do Esporte, George Hilton). Fernando Collor, o pior presidente brasileiro desde a volta da democracia, conseguiu nomear um dos mais brilhantes médicos da história do país, o cardiologista Adib Jatene, para o Ministério da Saúde. José Sarney, mesmo com um mandato marcado pela falta de legitimidade, atraiu o poderoso Olavo Setúbal para comandar as Relações Exteriores e o respeitado Saulo Ramos para a Justiça. Por que, então, Dilma Rousseff, uma presidente com o mandato renovado por 54,5 milhões de votos e que representa um partido há doze anos no poder, montou uma equipe já tão notável por suas fragilidades? A falta de nomes de prestígio, afirma o cientista político Rubens Figueiredo, é reflexo da estratégia de Dilma para tentar depender menos do PMDB, o maior partido do Congresso, e compor com as siglas menores. Já as divergências entre os ministros, na opinião do especialista, não deveriam ser um problema. "Todo governo no Brasil tem de conter tendências diferentes. No tempo de FHC, havia o desenvolvimentista Clóvis Carvalho e o monetarista Pedro Malan, por exemplo. Quando eles entraram em embate, o presidente resolveu." A diferença, porém, afirma Figueiredo, é que, ao contrário de Dilma, FHC tinha um projeto de país — "que era, inclusive, liderado pela equipe econômica". Além disso, embora recém-reeleita, a presidente enfrenta um cenário político desfavorável, que limita suas decisões. "Dilma ganhou com uma vitória muito apertada; a oposição está mais forte; o Congresso, fragmentado; e o PMDB nunca foi tão desagregado", afirma o cientista político. A agravar esse quadro, está a falta de habilidade da presidente para conciliar diferenças, qualidade que não faltou a seus antecessores, Lula e FHC. ''Dilma vem da luta armada, não do sindicalismo ou de uma esquerda socialista. Acha que quem está em cima manda e quem está embaixo obedece", afirma o filósofo Roberto Romano. "A presidente fez carreira como burocrata, nunca exercitou a persuasão nem o diálogo", diz. E gosta de deixar claro que quem manda é ela, como fez logo no terceiro dia de governo, ao ordenar ao recém-empossado ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, que desmentisse publicamente o que havia acabado de dizer numa entrevista. Clima de fim de governo? Sem dúvida. Mas o pior é que é só o começo. PASSANDO O CHAPÉU — E O FEL Assim que Jucá Ferreira foi reconduzido ao cargo que ocupou entre 2008 e 2010, a ex-ministra da Cultura Marta Suplicy usou uma rede social para dizer o que pensa sobre seu sucessor: "A população brasileira não faz ideia dos desmandos que este senhor promoveu à frente da cultura brasileira". PUXÃO DE ORELHA Durou um dia para Nelson Barbosa (Planejamento) a propalada autonomia da nova equipe econômica. Um puxão de orelhas de Dilma, que lhe telefonou da praia onde passava férias, na Bahia, obrigou-o a desmentir o anúncio que fez ao tomar posse, no dia 2, de que haveria novas regras para a correção do salário mínimo a partir do ano que vem. O CIENTISTA MALUCO O aquecimento global, acredita o novo ministro da Ciência e Tecnologia, Aldo Rebelo, não passa de "cientificismo que tem por trás o controle dos padrões de consumo dos países pobres". Por isso, o comunista prefere crer no "materialismo dialético como ciência da natureza". Em 1994, quando deputado, apresentou na Câmara um projeto para proibir "a adoção, pelos órgãos públicos, de inovação tecnológica poupadora de mão de obra". Com Aldo na pasta, dobram as possibilidades de o Brasil voltar à idade da pedra lascada. MAPA DE CADA UM Kátia Abreu (Agricultura) e Patrus Ananias (Desenvolvimento Agrário) bateram-se em público logo na largada. Um dia depois de ela declarar em entrevista que não há latifúndios no país, Ananias não só reafirmou a existência das terras, como disse que o direito à propriedade não é "inquestionável". QUANTO DURA O PARAÍSO? Escanteado por Luiz Inácio Lula da Silva, o ministro da Casa Civil, Aloizio Mercadante, passou anos no purgatório. Em 2006, chegou mesmo a descer ao círculo dos infernos, quando assessores de sua campanha foram pegos com 1,7 milhão de reais para comprar um dossiê contra tucanos, o escândalo dos "aloprados". Agora se tornou o mais poderoso ministro de Dilma, respeitado pela chefe, e finalmente está em seu paraíso. CRAQUE EM OUTRA ÁREA A pouco tempo da Olimpíada de 2016, no Rio, o novo / ministro do Esporte, George Hilton, sentiu-se à vontade para declarar sua falta de intimidade com a pasta. "Posso não entender profundamente de esporte, mas entendo de gente." Filiado ao PRB, que o renegou, foi do PFL, que o expulsou em 2005 depois de ele ser flagrado num aeroporto com 600.000 reais no bolso O FILHO É DELE Helder Barbalho, o novo ministro da Pesca e candidato derrotado ao governo do Pará, foi alçado ao cargo pela força do pai, o notório Jader Barbalho, obrigado a renunciar ao mandato de senador depois de uma enxurrada de denúncias - incluindo desvio de dinheiro público para o ranário de sua ex-mulher. O PMDB, partido de Barbalhinho, já fez saber que não tem nada a ver com a indicação. _____________________________________ 4# ECONOMIA 14.1.15 IMPULSO PARA CRESCER O petróleo barato já estimula o consumo e acelera a economia global, mas o Brasil pode sofrer com os efeitos sobre a Petrobras. BIANCA ALVARENGA Os anos de bonança para os países produtores e exportadores de petróleo ficaram para trás. O ciclo de cotações acima de 100 dólares viabilizou e rentabilizou novas fronteiras de exploração, como o xisto americano, as areias betuminosas canadenses e o pré-sal brasileiro. Mas o preço do barril, em trajetória de queda há seis meses, caiu abaixo do patamar psicológico de 50 dólares. Analistas dizem que ele pode chegar a 40 dólares nos próximos meses e que não há previsão de recuperação a curto prazo — para o Fundo Monetário Internacional (FMI), o valor médio não voltaria a 70 dólares antes de 2020. O novo cenário foi comemorado pela diretora-gerente do FMI, Christine Lagarde: "Boas notícias para a economia mundial". O raciocínio é simples. A redução do gasto de empresas e famílias com combustíveis abre espaço para o aumento do investimento e do consumo, respectivamente, o que faz girar a atividade. Para países importadores como os Estados Unidos, os efeitos positivos já são contabilizados. Em seis meses, o preço da gasolina caiu 37%, com reflexos na disposição do consumidor para gastos. Desde 2006 não eram vendidos tantos carros como no ano passado, o que deu impulso à indústria automobilística. E os efeitos negativos sobre a cadeia do petróleo serão amenizados: a retração do investimento americano no gás de xisto deve causar um impacto negativo de apenas 0,1 ponto percentual no PIB, de acordo com estudo do banco Goldman Sachs. Isso porque o governo e as empresas formaram uma poupança nos tempos de fartura. Os recursos agora serão fundamentais para não comprometer os investimentos. "Os americanos dispõem de condições de subsidiar a diferença para não perder a oportunidade de exploração", diz David Zylbersztajn, ex-diretor da Agência Nacional do Petróleo (ANP). Mas é um jogo de ganha e perde, e os exportadores sofrem com o encolhimento das receitas. Nesse grupo estão países como Arábia Saudita, Rússia, Venezuela e Noruega. A previsão era que os russos teriam um crescimento médio de 0,9% neste ano e no próximo, mas agora se espera uma retração de 2,5%. A Venezuela, vítima do populismo de Hugo Chávez e seus discípulos, gastou os recursos do petróleo para subsidiar o combustível no mercado interno e bancar políticas sociais imediatistas. Estima-se que o país já tenha perdido 22,5 bilhões de dólares com a queda da cotação. Sem poupança, o governo atrasa pagamentos e pede socorro externo. Na semana passada, o presidente Nicolás Maduro anunciou um empréstimo de 20 bilhões de dólares da China. O Brasil está, na teoria, do lado das economias que se beneficiam mais do que são prejudicadas, porque importa petróleo e derivados mais do que exporta. Em 2014, a conta ficou negativa em 17 bilhões de dólares. "Ganha no curto prazo, mas perderá em alguns anos", adverte Marcos Casarin, da consultoria Oxford Economics. Por um lado, o petróleo barato dá um ponto final às perdas bilionárias que a Petrobras acumulou de 2011 a 2014 com a venda subsidiada de combustíveis importados. A situação foi revertida e hoje a estatal tem margem de ganho de 60% nessa operação. Mas ela perde receita com outras atividades, num momento em que a produção de petróleo é ascendente. E isso ocorre quando ela mais precisa de retorno financeiro: espremida pelo escândalo do petrolão e por uma dívida de 330 bilhões de reais, a Petrobras precisa bancar os investimentos para ampliar a exploração do pré-sal. Nos últimos anos, porém, ela queimou dinheiro com subsídios e a política de compra e aluguel de equipamentos com conteúdo nacional, mais caros. É a maldição do petróleo para quem não soube se planejar nos tempos de riqueza. QUEDA POSITIVA O petróleo a um preço mais baixo afeta países exportadores, mas acelera o crescimento da economia mundial. EXPANSÃO MÉDIA ANUAL ESTIMADA EM 2015-2016 Mundo Barril a 80 dólares: 2,9% Barril a 40 dólares: 3,3% China Barril a 80 dólares: 26,2% Barril a 40 dólares: 37,1% Estados Unidos Barril a 80 dólares: 23% Barril a 40 dólares: 3,8% Inglaterra Barril a 80 dólares: 2,6% Barril a 40 dólares: 3,2% Argentina Barril a 80 dólares: 2% Barril a 40 dólares: 2,5% Brasil Barril a 80 dólares: 1,6% Barril a 40 dólares: 2,2% Alemanha Barril a 80 dólares: 1,8% Barril a 40 dólares: 2,1% Noruega Barril a 80 dólares: 1,5% Barril a 40 dólares: 0,3% Arábia Saudita Barril a 80 dólares: 3,9% Barril a 40 dólares: 0,1% Rússia Barril a 80 dólares: 0,9% Barril a 40 dólares: -2,5% ___________________________________________ 5# ESPECIAL TERRORISMO 14.1.15 5#1 A INDIGNAÇÃO DO MUNDO... CONTRA AS TREVAS 5#2 O LOMBO DURO DOS POETAS 5#3 A TIRANIA DO SILÊNCIO 5#4 O APELO DA INSENSATEZ 5#5 O FASCISMO EM NOME DE ALÁ 5#6 A GUERRA INTERNA 5#1 A INDIGNAÇÃO DO MUNDO... CONTRA AS TREVAS SOLIDARIEDADE – Em Paris, depois do atentado ao Charlie Hebdo, manifestante exibe cópia do jornal: “O amor é mais forte que o ódio”. VISÃO IRÔNICA – Em vigília na Union Square, em Nova York, cartazes com os olhos e o rosto dos cartunistas assassinados em Paris. O massacre de doze pessoas no jornal Charlie Hebdo, em Paris, ficará para a história como o episódio que, finalmente, uniu o mundo contra os planos de dominação do terror islâmico. DUDA TEIXEIRA E FELIPE CARNEIRO “Eu sou Charlie", era a frase que estampava os cartazes das vigílias pela morte de doze pessoas em um atentado terrorista ao jornal Charlie Hebdo, em Paris, na quarta-feira 7. Os cidadãos da capital francesa, de Nova York e de várias cidades do mundo que saíram às ruas para protestar consideraram o ataque a cartunistas e outros integrantes da equipe da publicação uma afronta à liberdade de expressão. É muito mais do que isso. O que está em jogo é a continuação de uma guerra declarada pelos defensores de uma ideologia radical, que pretende instalar uma sociedade regida por leis religiosas medievais, contra qualquer um que não aceita aderir à vertente fundamentalista do Islã. A frieza e a técnica dos dois homens mascarados que invadiram a redação com fuzis automáticos AK-47 demonstraram que se tratava de terroristas treinados, não de simples desajustados agindo por conta própria. Na quinta-feira 8, a perseguição à dupla de terroristas paralisou Paris, cuja população voltou a se recolher em casa. Mais de 88.000 homens e mulheres que integram as forças de segurança do país, entre militares e policiais, foram mobilizados para pegar os assassinos e evitar novos crimes. O espaço aéreo da cidade foi fechado para dar liberdade de voo aos helicópteros que auxiliavam nas buscas. Pontos de entrada e saída, como estradas, estações de trem e aeroporto, tiveram a segurança reforçada. Dois carros-bomba explodiram no subúrbio de Villejuif, sem vítimas. Por toda a França, mesquitas foram apedrejadas, pichadas e alvejadas a bala em retaliação aos atentados. As autoridades pediram à população que evitasse sair às ruas. Na quinta-feira de manhã, um homem equipado com um fuzil AK-47 e colete à prova de balas atirou em dois policiais em Paris. A agente Clarissa Jean-Philippe, de 25 anos, morreu. No dia seguinte, o mesmo homem entrou em um supermercado que vende produtos kosher, que seguem os preceitos do judaísmo, e fez dezenove reféns. Ele acabou morto pela polícia, mas levou quatro reféns consigo. Simultaneamente, a poucos quilômetros dali, em um setor industrial na periferia de Paris, a polícia encurralou e matou os dois assassinos do Charlie Hebdo. Durante três dias, os franceses ficaram à mercê do terror, e se perguntavam: "Criminosos são combatidos com serviços de inteligência, polícia e o rigor da lei. Mas como se luta contra uma ideologia que conquista a mente de jovens nascidos em solo francês?". Ou: "Até onde esses extremistas estão dispostos a ir? Ceder às suas demandas nos tornará mais seguros?". A resposta para a primeira pergunta é que nada pode ser feito sem que os muçulmanos moderados, que são a maioria, tomem em suas mãos a responsabilidade de combater as maçãs podres em meio a suas comunidades. E a segunda questão só pode ser respondida com um "não". Se na última semana a desculpa para matar inocentes eram desenhos de humor, no passado já foram evocadas leis contra o uso de véu em repartições públicas ou motivações geopolíticas. Não importa. O Charlie Hebdo foi um bode expiatório para algo muito mais amplo. O ataque começou por volta das 11h30. Dois homens encapuzados e vestindo roupas militares, com fuzis automáticos AK-47, um lançador de granadas e cintos com munição estacionaram um Citroen C3 preto próximo à sede do jornal Charlie Hebdo. Eram os irmãos Chérif Kouachi, de 32 anos, e Said Kouachi, de 34, franceses descendentes de argelinos. Eles se aproximaram da porta do edifício e forçaram a cartunista Corinne Rey, que fora pegar a filha no jardim de infância, a digitar o código no interfone para abrir a porta. Em francês perfeito, eles se apresentaram como sendo da Al Qaeda. "Não vou te matar porque você é uma mulher. Nós não matamos mulheres. Mas você tem de se converter ao Islã, ler o Corão e se cobrir", disse um deles a Corinne. Na recepção, eles atiraram contra um funcionário da empresa Sodexo, responsável pelo serviço de manutenção do prédio. Subindo as escadas, os dois perguntavam por Charb, o apelido do diretor do jornal, Stéphane Charbonnier, de 43 anos. Gritavam "Alá é Grande" e "Vamos vingar o profeta Maomé". Dentro da redação, encontraram jornalistas e cartunistas reunidos para decidir os assuntos que seriam abordados na próxima edição. Separaram homens de mulheres e chamaram os profissionais pelo seu nome. Rajadas de tiros começaram a ser ouvidas, enquanto as pessoas tentavam se esconder embaixo das mesas. O local ficou cheio de corpos, sangue e cacos de vidro. Na fuga de carro, os terroristas trocaram tiros com a polícia, na rua. Um dos guardas caiu no chão, ferido na perna. Da calçada, ele levantou a mão para pedir clemência. Um dos terroristas se aproximou caminhando e deu-lhe um tiro à queima-roupa na cabeça. A vítima era Ahmed Merabet, um muçulmano responsável pela patrulha no 11º Distrito da capital francesa, onde fica a redação do jornal. No total, doze pessoas foram mortas. Foi o pior ato de terrorismo em solo francês nos últimos cinquenta anos. O reitor da Grande Mesquita de Paris, Dalil Boubakeur, indignou-se. "O atentado foi uma fragorosa declaração de guerra", disse. "Estamos horrorizados com a brutalidade e a selvageria". Ao saírem da cena, os dois mascarados gritaram: "Vingamos o profeta", uma referência ao fato de que o Charlie Hebdo publicou diversas vezes charges fazendo troça de Maomé, considerado um profeta pelos muçulmanos. Trata-se de uma ingenuidade achar que, ao assassinar doze pessoas a sangue-frio, os terroristas estão apenas pedindo respeito à sua religião. "O Corão não diz nada sobre proibição a representações de Maomé. Existem algumas imagens antigas dele que são aceitas pelos muçulmanos", diz a teóloga Lídice Ribeiro, coordenadora do Centro de Teologia da Universidade Mackenzie, em São Paulo. Nos primórdios do islamismo, havia o temor de que fazer isso era perigoso, pois poderia suscitar uma adoração indesejada a Maomé. Mas a preocupação se dispersou e imagens do seu rosto ou sua representação com um círculo branco tornaram-se comuns em obras de arte e peças que adornavam casas e templos de muçulmanos de vários países. "Há vinte ou trinta anos, nenhum muçulmano via a retratação da imagem de Maomé como uma questão de vida ou morte", diz a historiadora americana Kecia Ali, da Universidade Boston e autora do livro The Lives of Muhammad (sem tradução para o português), que mostra as mudanças na interpretação do Corão ao longo da história. A patrulha só surgiu recentemente, pelos fuzis dos extremistas radicais. O atentado ao Charlie Hebdo não foi, portanto, uma reação genuína a uma ofensa mortal — e, ainda que fosse, não seria justificado. Seu objetivo foi o mesmo compartilhado por outros grupos terroristas: espalhar o medo entre a população e abrir caminho para instalar uma visão totalitária e utópica da sociedade, em que não há espaço para a divergência. Era por isso que o Charlie Hebdo, satírico e crítico de tudo e de todos, incomodava tanto os extremistas. O jornal foi fundado em 1992. Uma versão anterior, o Hara-Kiri, foi proibida, em 1970, por satirizar a morte do ex-presidente Charles de Gaulle, oito dias após uma tragédia em uma boate que matou 146 pessoas e foi explorada por tabloides sensacionalistas. A manchete satírica que rendeu censura foi: "Baile trágico em Colombey, um morto". Para manter o pasquim vivo, os jornalistas mudaram o nome para Charlie Hebdo (oficialmente baseado no personagem Charlie Brown, na verdade uma piada com o falecido general). Em 1981, fechou as portas por problemas financeiros, até ser reaberto onze anos depois. Semanalmente, o Charlie Hebdo trazia charges satirizando a todos: políticos franceses de esquerda, centro e direita. Também não poupava judeus, católicos nem muçulmanos. Em 2006, republicou as charges sobre o profeta Maomé do jornal dinamarquês Jyllands Posten que provocaram a fúria de fundamentalistas em todo o mundo. Os editores do Charlie Hebdo foram processados por grupos islâmicos franceses, mas ganharam a batalha nos tribunais com o apoio do então ministro do Interior Nicolas Sarkozy, posteriormente eleito presidente. Em 2011, a redação do tabloide sofreu um atentado a bomba depois de lançar uma edição cuja capa trazia um desenho de Maomé dizendo "Cem chibatadas se você não morrer de rir". Em 2012, uma edição que fazia piada tanto de judeus quanto de muçulmanos levou o Palácio do Eliseu a ordenar o fechamento de escolas, representações diplomáticas e centros culturais franceses em vinte países por medo de represálias de extremistas islâmicos. Charb, diretor do semanário morto na semana passada, era um defensor muito lúcido da liberdade de expressão, especialmente a de criticar a hipocrisia, as ideias absolutistas e os poderosos. "O humor nos humaniza, nos torna vulneráveis, abre um espaço para que possamos rir de nós mesmos", diz o ilustrador chileno Francisco Olea, autor do desenho que se tornou viral na internet e aparece na capa de VEJA, feito em homenagem a Charb e aos outros mortos do Charlie Hebdo. "O fundamentalismo, em qualquer de seus formatos, carece disso. É linear e evita a reflexão." Por não aceitar se dobrar à intimidação, Charb estava na lista de jurados de morte dos principais grupos islamistas. Recentemente, uma edição da revista Inspire, publicada na internet pela Al Qaeda da Península Arábica, grupo ao qual os terroristas que atacaram o Charlie Hebdo diziam pertencer, trazia um anúncio com o nome de onze pessoas que deveriam ser assassinadas. Charb era uma delas. "Sim, nós podemos", dizia o título, ironizando a frase da campanha do presidente americano Barack Obama. "Uma bala por dia mantém o infiel longe." Paralisados por noções como o antiamericanismo (que identifica o combate ao terror como uma agenda exclusiva dos Estados Unidos, o que não é verdade), pelo discurso da vitimização comum nos países árabes e pelo esquerdismo acéfalo, não faltaram cidadãos do mundo ocidental dispostos a dar um tiro no próprio pé, legitimando o atentado de alguma forma ou negando que tivesse ligação com religião. A primeira falácia espalhada por esses cidadãos é que os atentados são uma reação às intervenções militares dos Estados Unidos no Oriente Médio. Ora, a guerra ao terror foi uma reação aos atentados da Al Qaeda que mataram 3000 inocentes em solo americano, em 2001, e não o contrário. A segunda falácia é que os árabes não são os culpados pelos próprios problemas (veja a entrevista na pág. 72). A terceira é que o "problema" do ataque ao Charlie Hebdo vai implicar o fortalecimento da extrema direita europeia, um raciocínio que anda de mãos dadas com a ideia de que o radicalismo islâmico é uma reação à xenofobia. Isso é falso, porque a maior parte dos muçulmanos europeus reprova a violência e porque as principais vítimas dos grupos terroristas vivem em países de maioria islâmica (veja a reportagem na pág. 75). Um combate frontal ao problema, começando por reconhecer que se trata, sim, de uma questão religiosa, seria a melhor forma de proteger não só a população não islâmica, como os próprios muçulmanos do terror. Na Europa, é preciso apoiar os imãs moderados e identificar e encarcerar os que financiam e estimulam os extremistas. "O papel da sociedade é isolar os radicais. A maioria da população muçulmana adotou para si os valores democráticos, e isso precisa ser reforçado", diz o cientista político Erik Bleich, da Universidade de Middlebury, nos Estados Unidos. Chérif e Said Kouachi nasceram em Paris e, embora parte de uma família secular, cresceram em um orfanato e passaram a praticar o islamismo. Na adolescência, começaram a rezar em uma mesquita no distrito de Stalingrado, onde o jovem imã Farid Benyettou, nascido em 1981, recrutava islamistas para a célula terrorista Buttes-Chaumont — nome do parque em que faziam treinamento. Ali, corriam para ficar em forma e tinham aulas teóricas de como operar um fuzil. Alguns membros do grupo foram para a Síria juntar-se aos jihadistas. Chérif também se alistou e em 2005 chegou a comprar uma passagem para Damasco, de onde tentaria voar para o Iraque. Foi preso antes de embarcar e acabou condenado a três anos na prisão. Foi detido outra vez em 2010, por planejar a fuga do terrorista Smain Ali Belkacem, que cumpre prisão perpétua. Por falta de provas, foi solto. Seu irmão Said passou alguns meses treinando com armas e fabricando bombas com a Al Qaeda, no Iêmen, em 2011. O homem que matou uma policial um dia depois do atentado ao Charlie Hebdo chamava-se Amedy Coulibaly e fez parte da célula terrorista Buttes-Chaumont, a mesma frequentada pelos irmãos Kouachi. Na sexta-feira, Coulibaly fez reféns em um supermercado de comida kosher, judaica, em Porte de Vincennes, em Paris. Na mesma tarde, os irmãos Kouachi entraram em uma gráfica em Dammartinen-Goele, a 35 quilômetros da capital, e sequestraram uma pessoa. Os oficiais invadiram ambos os locais e mataram os três terroristas. Quatro dos reténs que estavam com Coulibaly morreram. Ao saírem atirando pelas ruas enquanto eram perseguidos pela polícia, os três radicais inauguraram uma nova fase do terrorismo islâmico. Nos ataques que prevaleceram nos últimos quinze anos, o mais comum era um extremista explodir-se em algum lugar ou detonar uma bomba a distância. Atualmente, os artefatos explosivos estão sendo substituídos por outros métodos de matança. Execuções, tiros e emboscadas já provocam mais vítimas, em números absolutos, ainda que, isoladamente, os ataques sejam menos letais. A tendência é que os atentados se tornem mais prolongados e envolvam vários momentos de tensão, como se viu na semana passada em Paris. Com o treinamento militar que receberam, os terroristas tiveram condições de escapar do local do crime, atrair as forças de segurança para uma caçada espetacular e, com isso, ganharam mais notoriedade aos olhos de outros jihadistas e conseguiram espalhar o medo entre a população por mais tempo. "O impressionante no caso de Paris é que os terroristas decidiram não acabar com a própria vida depois do ataque. Eles fugiram para tentar fazer ataques adicionais", diz o americano Michael Kugelman, especialista em segurança nacional do Wilson Center, em Washington. "Isso é uma novidade. Eles agora se sentem poderosos, o que é o oposto da cultura do martírio que existia no passado." Em meio a uma multidão de cartazes "Eu sou Charlie", "Não temos medo" foi uma frase que apareceu isolada, mas com letras grandes e luminosas, em uma manifestação contra as mortes no atentado de quarta-feira, enquanto os dois terroristas ainda eram caçados pela polícia. A afirmação, mais do que uma constatação sobre a qual ninguém tem dúvida, soou como um chamado à esperança. Se depender dos funcionários do Charlie Hebdo que escaparam do atentado, alguns por estarem viajando no dia, a sociedade francesa não sucumbirá aos desígnios dos fundamentalistas. Com a ajuda de outros jornais franceses, do Google e do inglês The Guardian, Patrick Pelloux, um colunista do Charlie Hebdo, anunciou que a publicação vai circular na próxima semana com 1 milhão de cópias, muito mais do que os 50.000 exemplares costumeiros. "A estupidez não vai vencer", disse Pelloux. As caricaturas de Maomé continuarão sendo impressas. "Não se pode permitir que os extremistas imponham sua sacralidade aos que não compartilham sua religião", diz o cientista político iraniano Mehdi Mozaffari, autor do livro Fatwa, Violence and Discourtesy. "Exigir que todos obedeçam à lei não é racismo. Não é islamofobia. É democracia." Ser contra a tirania, é isso que faz todos nós sermos Charlie. HERÓIS DA LIBERDADE - Da esquerda para a direita, cinco dos onze mortos que estavam na redação do jornal Charlie Hebdo: Bernard Maris, Georges Wolinski, Jean Cabut, Charb (o diretor) e Tignous O Jornal atacado fazia sátira do Islã,... Um integrante do Estado Islâmico prepara-se para decapitar Maomé, que diz: "Eu sou o profeta, idiota!". O mascarado responde: "Cala a boca, infiel. ..mas também outras religiões, como o catolicismo,... O papa Bento XVI, em um confessionário, dá um conselho a um bispo. "Faça cinema, como Polanski", diz ele, em referência ao diretor polonês acusado de pedofilia que é apoiado por intelectuais. ..e de políticos de todas as tendências Marine Le Pen, líder do partido de direita Frente Nacional, prestes a queimar um imigrante: "O que querem 25% dos franceses? Uma Joana d'Arc que mande os outros para a fogueira. COM REPORTAGEM DE PAULA PAULI 5#2 O LOMBO DURO DOS POETAS A Franca enfrentou muitas revoluções e debates de ideias até conquistar o que os islamistas querem destruir. “Seríamos muito infelizes se os poetas não tivessem lombo", disse o bispo de Blois sobre a surra que um aristocrata havia mandado dar no pensador e satirista Voltaire, um dos principais nomes do Iluminismo, em 1726. Voltaire não cometera nenhuma ofensa específica. Apanhou apenas por ser o que era, um polemista irrefreável que usava as palavras como arma contra pessoas e ideias para ele desprezíveis. O franzino poeta quis se vingar em um duelo, mas foi preso antes e se exilou na Inglaterra, onde aprendeu a admirar as vantagens de um sistema político com separação de poderes e de uma imprensa que desfrutava uma liberdade ainda inexistente em sua França natal. Cem anos depois, o cartunista Honoré Daumier enfrentou uma reprimenda semelhante pela audácia de suas litogravuras de poderosos, retratados de maneira nada lisonjeira. Luiz Felipe I, o último rei da França, que governou entre a Revolução Francesa e a proclamação da Segunda República, era relativamente tolerante com piadas na imprensa. Daumier, que o retratou como um gigante gordo e insaciável, foi o único a receber uma punição severa. O ilustrador cumpriu seis meses de prisão, mas saiu de lá com o mesmo espírito mordaz de antes. Foram necessários muitos Voltaires e Daumiers para que os franceses conquistassem o direito de expor suas opiniões e debochar dos poderosos sem temor. Algumas guerras religiosas tiveram de ser superadas até que os cidadãos adquirissem a liberdade plena para professar a fé que quisessem. Isso custou à França mais de três séculos de intensas lutas internas e externas, milhares de cabeças cortadas em guilhotinas e incansáveis embates de ideias até o país conseguir absorver, consolidar e propagar valores que hoje compõem o cerne das democracias ocidentais: um sistema político justo, a separação entre Igreja e Estado, as liberdades individuais e os direitos humanos. Tudo o que os extremistas islâmicos mais abominam. As conquistas dos franceses não seguiram uma lógica linear. Sua história é feita de avanços e retrocessos, tanto no campo das ideias quanto na prática. Um exemplo é a noção de igualdade. Durante séculos, a França vacilou em dar mais importância à igualdade perante a lei ou à igualdade de renda. Desafiador, também, foi encontrar um equilíbrio entre os conceitos de igualdade e de liberdade. No seu Manual Republicano do Homem e do Cidadão, de 1848, Charles Renouvier propôs uma solução: "É a fraternidade que vai levar os cidadãos (...) a reconciliar seus direitos de tal forma que permanecerão livres e, na medida do possível se tornarão iguais". Nos últimos anos, a reivindicação dos muçulmanos franceses de ser tratados de maneira diferente, com direitos exclusivos (como o de poder exigir que suas mulheres usem véu), entrou em choque com a noção republicana de que os direitos são dados a indivíduos, não a comunidades. Para os terroristas, essa é uma discussão fútil. Para eles, a escolha é entre a adesão incondicional às leis islâmicas e a morte. DIOGO SCHELP 5#3 A TIRANIA DO SILÊNCIO Uma cruel inversão de valores leva muitos a fechar os olhos à dimensão político-religiosa de atentados bárbaros e, imediatamente depois deles, culpar a "islamofobia". VILMA GRYZINSKI Em algum lugar entre dois extremos está a razão. Uma das extremidades é bem conhecida: a cada vez que é cometido um atentado sanguinário em consonância com os ensinamentos do fundamentalismo muçulmano, multiplicam-se as reações garantindo que a violência não tem absolutamente nada a ver com a religião revelada há 1400 anos a Maomé, por inspiração divina segundo acreditam seus seguidores. Ao contrário, dizem, o Islã é a religião da paz e quem comete atrocidades em seu nome está desvirtuando seus fundamentos. Ou talvez seus autores tenham lá no fundo suas razões, pelos motivos de sempre — a exclusão, a perseguição, o domínio imperialista e outras distorções infantis que povoam o universo mental daqueles que querem, no fim de tudo, pôr a culpa nos americanos. Entre estes, incluem-se muitos americanos, fruto da civilização ocidental avançada na qual os enormes benefícios do pensamento livre de controles do Estado e da Igreja redundaram, em sua forma distorcida, no impulso masoquista de culpar a si mesmos por todas as atrocidades, contanto que cometidas por gente de pele mais escura, cabelos mais encaracolados e roupas mais exóticas. E do outro lado, quem está? Surpreendentemente, a extrema direita, que deveria estar bradando por sangue, pronta para cravar seus dentes islamofóbicos em vítimas inocentes e tirar proveito dos atos de barbárie, tem demonstrado, pelo menos em público, contenção e argumentos razoáveis. "Por que chegamos a esse ponto? Qual o percurso desses assassinos, as ramificações das fileiras do Islã radical em nosso solo, seus financiamentos? Que países os apoiam? As perguntas são muitas e legítimas. O tempo da negação e da hipocrisia já passou. É preciso proclamar em alto e bom som o repúdio absoluto ao fundamentalismo islâmico", disse sobre o massacre de quarta-feira Marine Le Pen, herdeira, líder e candidata razoavelmente viável a presidente pela Frente Nacional, um dos partidos europeus classificados ora de populistas, ora de ultradireitistas. É sob o pretexto de não fazer o jogo desses partidos que as esquerdas nem esperam esfriar os corpos das vítimas da mais poderosa ideologia político-religiosa das últimas décadas para invocar os perigos da islamofobia. Aliás, não só as esquerdas. Na Alemanha, o centro e a direita também se uniram à condenação a um movimento que surgiu nos últimos meses, o Pegida — acróstico de Patriotas Europeus contra a Islamizacão do Ocidente. Chamados de tudo — de inocentes tolamente manipulados a neonazistas —, cerca de 17.000 alemães manifestaram-se comportadamente em Dresden, em um ato que terminou em frente à histórica catedral, de luzes apagadas como sinal de repulsa a eles. É claro que todos esses partidos ou movimentos têm esqueletos xenofóbicos no armário, que procuram esconder ou, devidamente, extirpar. E é lamentável que acabem se constituindo quase que na única opção àqueles que não acreditam que não existe problema algum na militância político-religiosa do islamismo radical, mesmo quando os próprios radicais proclamam sua pureza teológica — a cena em que um acusado de roubo tem a mão decepada por integrantes do Estado Islâmico foi divulgada na semana passada como outra atroz demonstração de que seguem ao pé da letra a sharia, o conjunto de leis muçulmanas originais. Entre as duas pontas, sobra pouco espaço para pessoas razoáveis e corajosas como Flemming Rose, editor do jornal dinamarquês que encomendou charges sobre Maomé que provocaram reação brutal em 2005, não só entre os muçulmanos que cortam alegremente cabeças e mãos, mas entre cidadãos comuns para os quais a liberdade de expressão é um valor desprezível ante suas crenças religiosas e seus cúmplices atordoados pelo medo da islamofobia. "Encomendei as charges em resposta a vários incidentes de autocensura na Europa provocados por um crescente sentimento de medo e de intimidação no trato de assuntos relacionados ao Islã", escreveu Rose, que depois fez um livro com o título reproduzido nesta reportagem, A Tirania do Silêncio. "E continuo a acreditar que esse é um tópico que nós europeus precisamos enfrentar, desafiando os muçulmanos moderados a se pronunciar." Rose está em todas as listas de cabeças a prêmio de grupos fundamentalistas. Quantos moderados estão dispostos a protegê-lo para que o massacre na redação do Charlie Hebdo não se repita? 5#4 O APELO DA INSENSATEZ Por que milhares de jovens europeus — e até um brasileiro — se convertem ao islamismo radical e viajam para a Síria e o Iraque com o objetivo de cometer atrocidades. FELIPE CARNEIRO A Europa é a região do mundo com o maior índice de desenvolvimento humano. O berço do Estado laico, da república e da democracia. Pelos seus méritos, o continente sempre atraiu imigrantes de todo o globo. A França tornou-se o lar de mais de 6 milhões de muçulmanos, vindos principalmente do norte da África. Como explicar, então, que ao menos 2000 europeus tenham feito a travessia no sentido inverso para se juntar ao Estado Islâmico e a outros grupos tenebrosos na Síria, no Iraque e em outros países do Oriente Médio? Segundo estimativas oficiais, cerca de 90% deles são homens com menos de 40 anos, como os irmãos Chérif e Said Kouachi. O primeiro foi preso em 2005 quando tentava viajar para a Síria e depois para o Iraque, onde se juntaria à Al Qaeda. Said, por sua vez, passou alguns meses no Iêmen. Experiência semelhante buscava o goiano Kayke Ribeiro Guimarães, de 18 anos, sete deles vividos na Espanha, preso pela polícia da Bulgária ao tentar viajar para a Síria. Em comum, esses jovens reproduzem o discurso da vitimização de muçulmanos pelo mundo, inculcado em sua cabeça por imãs que atuam por toda a Europa. Os clérigos radicais, que antes entravam em contato com os adolescentes dentro das mesquitas, hoje fazem a abordagem principalmente pela internet. A linguagem que usam é própria para criar aquilo que os sociólogos chamam de "senso de pertencimento", a noção de que se é parte de uma comunidade maior. Como são jovens, ainda buscando um rumo na vida, eles se confortam facilmente com a ideia de que não estão mais tão sozinhos no mundo. Todos se chamam de akhi e ukhti, palavras árabes para "irmão" e "irmã". Com seus colegas, aprendem o que deve ser elogiado e recusado, para assim angariar a confiança dos demais. "Legal" é mash’Allah (literalmente, "como Alá quer"). "Proibido" é haram. Quando os jovens já se sentem à vontade, os recrutadores os convencem de que é preciso ir à Síria defender os akhi que estão sendo massacrados pelo ditador Bashar Assad. Para reforçarem o convite, os veteranos fazem circular por smartphones e pelo YouTube vídeos editados no estilo de videoclipes e videogames, em que a matança dos "inimigos do Islã" é glorificada. Eles apelam para a emoção, deixando de lado o convencimento pela argumentação e pela exposição de fatos. É principalmente no uso das técnicas de vídeo que eles têm levado a melhor. "Enquanto os governos tentam recorrer à razão dos jovens para que não se radicalizem, os jihadistas estão adotando técnicas modernas de produção de conteúdo que, se não são infalíveis, estão claramente se mostrando eficientes", diz o cientista político alemão Peter Neumann, diretor do Centro Internacional para o Estudo da Radicalização (ICSR, na sigla em inglês), na Inglaterra. Ao chegar à Síria, o novo recruta é apresentado a um ambiente em que a violência dá popularidade e ele se sente parte de um grupo vitorioso. Não há uma cobrança para que os novatos acatem todos os ritos ditados pela ideologia religiosa. Eles não são muito cobrados para que aprofundem o conhecimento sobre o Corão ou que sigam à risca a sharia, a lei islâmica. Isso fica para depois. Muitos hábitos do modo de vida ocidental, como assistir a filmes americanos ou usar roupas de marca, são permitidos. A pornografia é liberada, a julgar pelo fato de que uma das diversas fontes de receita do Estado Islâmico é o tráfico de material impróprio. A motivação para ir à luta então vem principalmente da ideia de que seu grupo tem levado a melhor na guerra contra os outros. Eles se sentem seguros no território que conquistaram e acreditam que toda invasão ou morte de um akhi é sempre respondida à altura, com a decapitação de jornalistas, soldados, voluntários de organizações de direitos humanos ou qualquer outro "representante" da turma rival. A filosofia de fundo não é religiosa, mas tribal, muito parecida com a praticada entre as gangues nas periferias das grandes cidades no resto do mundo. Toda vez que matarem um dos meus, um dos outros deverá ser sacrificado. Ao adotarem o caminho do extremismo, eles extravasam o desejo, natural da idade, de ir contra o status quo, de lutar contra o "sistema". Isso sempre existiu na Europa. Nos anos 1970, a Alemanha e a Itália tiveram de lidar com grupos terroristas de esquerda muito semelhantes aos que estamos vendo agora: jovens educados que acreditam em uma revolução utópica, movidos por uma ideologia que endossa a violência. Tanto antes como agora, a opção de se arrepender e de abandonar esses grupos não existe. Quem tenta pode ser morto pelos companheiros akhi. Os extremistas, então, se tornam vítimas do próprio extremismo. 5#5 O FASCISMO EM NOME DE ALÁ Há mais de um ano o cientista político egípcio Hamed Abdel-Samad vive protegido pela polícia alemã. Ele é autor do livro Der Islamische Faschismus ("O Fascismo Islâmico", em alemão), sem previsão de lançamento em português. A obra, que esteve durante mais de vinte semanas entre as mais vendidas na Alemanha, procura provar que há semelhanças entre o nazismo e o fundamentalismo islâmico. Samad, que defende essa ideia também em palestras, recebeu inúmeras ameaças de morte. Filho de um imã de uma tribo próxima ao Rio Nilo, ele foi abusado sexualmente duas vezes na infância, algo que atribui em parte à religião, e militou durante dois anos na Irmandade Muçulmana. Na semana passada, Samad repudiou o ataque à redação da Charlie Hebdo, mas criticou também a hipocrisia das pessoas que no passado diziam que a revista estava indo longe demais ao publicar charges de Maomé e que hoje divulgam em suas páginas de Facebook mensagens em defesa da liberdade de expressão. Ele também criticou a ideia de que o atentado não tem nada a ver com o Islã. Ele falou a VEJA por telefone de Berlim, onde mora. NATHALIA WATKINS Seu último livro equipara o islamismo político ao nazismo. Quais são os elementos em comum? Existem diversas semelhanças entre os dois. Os nazistas cultivavam a supremacia racial. Consideravam que os arianos eram superiores aos demais seres humanos. Do mesmo modo, os muçulmanos fundamentalistas também se vêem como os escolhidos. Acham que são mais elevados moralmente que o restante da humanidade. Assim como os nazistas, eles desumanizam aqueles que consideram diferentes, inimigos ou infleis, e tornam legítima sua aniquilação. Não é por acaso que o antissemitismo aparece nos dois casos. Assim como os fascistas europeus, o grupo radical egípcio Irmandade Muçulmana, os terroristas do Estado Islâmico (também conhecido como Isis) e os palestinos do Hamas não concordam com o fato de que os judeus tenham o direito de viver. Por fim, há semelhanças na estrutura organizacional. Tanto Adolf Hitler quanto os chefes dos extremistas islâmicos são aceitos entre seus seguidores sem nenhuma negociação, de maneira cega. O conteúdo moral e ético de suas ordens jamais é questionado. Para os islamistas, a lei que rege os homens foi criada por Alá e deve haver alguém encarregado de aplicá-la, o aiatolá iraniano Ali Khamenei ou o líder do Estado Islâmico, Abu Bakr al Baghdadi. Por isso, fazem o que querem. O senhor também comparou o Islã a uma droga. Isso não se aplica igualmente a qualquer outra religião, quando levada ao extremo? Sim, todas as religiões podem ser como drogas. Até o budismo. Tudo depende da quantidade em que são consumidas. O limite é ultrapassado quando alguém ou um grupo insiste que as regras de convivência ditadas pela sua religião devem reger todas as situações da vida. O cristianismo enfrentou esse problema na Idade Média, durante a Inquisição. Atualmente, pelo menos na Europa, tanto o judaísmo quanto o cristianismo aceitam uma função diferente na sociedade. Os católicos reconhecem o papa não como um chefe político, mas um líder espiritual. Do Vaticano, ele não determina as políticas mundiais como um chefe de Estado. Por que no mundo islâmico é diferente? No Islã muita gente acredita que o Corão é a palavra de Deus, enviada diretamente do céu para os seres humanos. O texto divide o mundo entre bons e maus, fiéis e infiéis, e determina que o islamismo deve prevalecer sobre todas as outras religiões, o que significa controlar o mundo. Se as mensagens são interpretadas à luz do que se sabe hoje, então pode haver uma mensagem que ajude as pessoas a conviver. Do contrário, quando o Corão é aplicado sem nenhuma relativização, o resultado é sempre um regime fascista, como o do Irã. O Hamas fez isso na Faixa de Gaza. A mesma coisa também aconteceu na Somália e no Sudão. Não há espaço para a democracia quando se faz uma interpretação literal do Corão. O Islã diz que as leis são as leis de Deus e isso não é negociável. Em uma democracia, quem faz as leis são os seres humanos. Por que o senhor considera Maomé um ditador? Ele dizia ter acesso direto a Deus, recebia as leis e as implementava. Ninguém na sua comunidade poderia negociar com ele sobre isso. Como o Estado Islâmico consegue recrutar tantos cidadãos ocidentais para lutar no Iraque e na Síria? Em mesquitas ou sites de internet, membros do Estado Islâmico dizem a jovens que em seus países eles são vistos como criminosos e diferentes. E garantem que todos são iguais e prósperos no califado que estão construindo. Além disso, afirmam que lá os jihadistas podem ganhar muito dinheiro. Quando uma cidade é tomada e um banco é roubado, por exemplo, os combatentes recebem uma boa recompensa. Eu já vi o anúncio de um egípcio que convidava outros muçulmanos para ir para o Estado Islâmico dizendo que poderiam ganhar até 5000 dólares por dia. Com tudo isso, o jovem que se sente um pária na Alemanha ou nos Estados Unidos acha que descobriu uma oportunidade de ganhar dinheiro, de se tornar o prefeito ou o juiz de uma cidade síria ou iraquiana ou de comandar uma tropa. Todos os dias, o Estado Islâmico anuncia que conquistou cidades e dá a impressão de estar vencendo, mesmo que não esteja. O Isis também não recorre à velha retórica da vitimização muçulmana, como faz a Al Qaeda. Seus membros apresentam-se como os fortes que certamente vencerão no final. Isso tudo melhora a autoestima. Assim, enquanto a Al Qaeda recrutava só suicidas, o Isis diz convocar os novos conquistadores do mundo. Essa é a diferença. O Isis não pode se enfraquecer por disputas internas? Sim, e é por isso que, assim como os nazistas, o Isis criou milícias para aterrorizar dissidentes. Todos os grupos radicais, do Estado Islâmico ao nigeriano Boko Haram ou ao libanês Hezbollah, formam milicianos para impor sua ideologia na sociedade à base da violência. Não há espaço para a diversidade. Qualquer demonstração de individualismo é considerada uma ameaça, uma traição. Em 2010, o senhor previu o declínio do Islã. O avanço do Estado Islâmico no Oriente Médio não prova o contrário? Pode parecer que o grupo está em ascensão, mas, do meu ponto de vista, este é o começo da queda. A sociedade tribal e patriarcal do mundo islâmico não tem respostas às questões da modernidade, pois não permite a liberdade, uma condição básica para a democracia. Mesmo depois de ditadores como Hosni Mubarak, do Egito, ou Muamar Kadafi, da Líbia, terem sido depostos, seus países não se tornaram democráticos. A ascensão de grupos radicais como o Estado Islâmico levará mais adiante à queda do mundo árabe. Por quê? No tempo de Maomé, para um ditador sobreviver bastava ter um exército forte, roubar e fazer escravos. Hoje a economia funciona de maneira diferente. Os países precisam de um sistema bancário que funcione, de uma diplomacia capaz de cultivar boas relações com outros países. Ter soldados prontos para morrer não será suficiente para muitos governos do mundo islâmico. Esse declínio será ainda mais vertiginoso daqui a vinte anos, quando o petróleo secar. As reservas são hoje a fonte do terror, mas um dia elas não estarão mais lá. Pelo que vejo, os governantes não estão criando alternativas econômicas viáveis ao petróleo. O senhor já foi acusado de ser tão beligerante quanto os muçulmanos radicais ao dizer que o Islã político deve ser exterminado militarmente. A crítica faz sentido? Só um ingênuo pode achar que um grupo como o Estado Islâmico pode ser derrotado com diálogo, ainda que de um lado esteja o papa e do outro os representantes dos extremistas. Não há conversa possível, porque eles não acreditam que a outra parte tem o direito de existir. Querem o poder total para controlar o mundo. A única opção é bombardeá-los e combatê-los com soldados. Apenas isso não solucionaria o problema, claro. Subjugá-los exige enfrentá-los pelo ar e por terra e, ao mesmo tempo, ter uma estratégia para lidar com o mundo árabe, como um novo Plano Marshall (feito para levantar a Europa arrasada após a II Guerra). Os pacifistas, que acreditam que a guerra não é a solução, precisam ver a situação concreta. Se os Estados Unidos não tivessem bombardeado os terroristas que se aproximavam da minoria religiosa dos yazidis em agosto, no Iraque, haveria um genocídio. Os soldados curdos não teriam conseguido impedir o avanço deles sem ajuda. Se esses pacifistas lessem história, aprenderiam que muita gente tentou negociar com Hitler, mas de nada adiantou. Apesar da diplomacia, o nazista tomou a Checoslováquia, a Polônia e outros países. Muitos dos alemães que me criticam hoje não existiriam se os americanos não tivessem desembarcado na Normandia e libertado a Alemanha dos nazistas. Obviamente, eu prefiro não ver uma gota de sangue sendo derramada. No mundo atual, contudo, há grupos como o Estado Islâmico, que degola inocentes, estupra meninas e dizima minorias. Não podemos só ficar fazendo correntes humanas e acendendo velas, achando que isso trará paz. O senhor já foi da Irmandade Muçulmana. Por que abandonou o grupo? Meu pai é um imã, e eu aprendi a declamar o Corão de memória. Na universidade, entrei para a Irmandade, atraído pelo mesmo sonho que o Estado Islâmico vende hoje, o de ser parte de uma revolução. Queríamos derrubar o ditador egípcio Hosni Mubarak e participar de uma mudança social. É uma ideia muito sedutora. Durante dois anos, presenciei a lavagem cerebral que eles fazem. Em um dia muito quente, levaram-nos para um treinamento no deserto. Deram uma laranja a cada um de nós e pediram que andássemos até cair de cansaço e sede. Então nos mandaram sentar, ajoelhar e descascar a laranja. Foi um momento de êxtase. O chefe, porém, nos disse que deviamos enterrá-la e comer só a casca. Eu pensei: "Como assim? Ele só pode estar querendo me quebrar, tirar minha dignidade". O objetivo é ensinar todos a obedecer cegamente. Fazem essas coisas para que os homens não possam dizer "não". Isso é perigoso. Até hoje, quando descasco uma laranja, sinto um sabor amargo na boca. O meu próximo passo foi ir para a Europa, onde comecei a estudar o Islã do ponto de vista científico. Foi então que comecei a ver todas as contradições e a escrever sobre isso. O senhor afirma que foi abusado sexualmente em sua infância e põe a culpa em parte na religião. Por quê? Não culpo a religião, mas é um fato que vivi em uma sociedade em que a violência ocupa um papel bem forte na família e na educação. Uma criança não pode falar certas coisas. A religião tem muito disso, pois força a uma hipocrisia moral. Espera-se que os indivíduos se comportem como anjos, mas na realidade eles são pessoas normais, e isso não dá certo. Em boa parte do mundo islâmico, os homens, quando jovens, não podem se relacionar com mulheres antes de casar, mas têm desejos sexuais. Muitos acabam pegando um menino menor para se satisfazer. Cria-se assim uma atmosfera propícia para diversos crimes, e ninguém pode expô-los. Eu tinha 4 anos e meio quando fui abusado, e isso foi extremamente doloroso. Na segunda vez, eu tinha 11 anos. Ficou absolutamente claro que alguma coisa estava muito errada. Meus pais nunca souberam, até a publicação do meu primeiro livro. Eles evitaram falar comigo sobre isso. Em Berlim, o senhor ainda recebe ameaças de morte? Sim. Elas começaram em junho de 2013, quando fui dar uma palestra no Cairo, depois das eleições em que Mohamed Mursi, da Irmandade Muçulmana, se saiu vitorioso. Um acadêmico, um político e um influente líder religioso disseram em um canal de televisão da Irmandade que eu deveria ser morto. Nem sequer seria preciso esperar que o Estado fizesse isso. Qualquer muçulmano poderia tomar a iniciativa porque eu teria atacado Maomé e o Islã. O político que disse isso tinha sido ninguém menos que o líder da campanha de Mursi. Na época, o ministro de Relações Internacionais da Alemanha pediu que os homens que tinham incitado esse crime fossem presos. Nada aconteceu, e Mursi apareceu abraçando esse político na televisão. Eu saí de lá e pedi à minha família que não me defendesse publicamente, pois isso seria perigoso. Mesmo assim, meus parentes receberam Ameaças. 5#6 A GUERRA INTERNA A retórica e os atentados contra o Ocidente servem para propagar a ideologia dos terroristas islâmicos, mas suas principais vítimas são outros muçulmanos. Os terroristas islâmicos planejam e fazem atentados nos Estados Unidos e na Europa também como propaganda para atrair novos recrutas. O terrorismo no próprio mundo islâmico tem como objetivo atemorizar e calar os moderados ou desestabilizar com bombas os poucos países, como o Egito, que se recusam a deixar a vida de seus cidadãos ser dominada por religiosos — e, claro, aniquilar facções rivais. Os terroristas sunitas do Estado Islâmico têm como objetivo mais imediato derrotar os alauitas que formam o governo sírio. Eles dirigem sua violência contra os xiitas do Iraque e os curdos na região. O objetivo de longo prazo do Estado Islâmico é a formação de um "califado", uma região sob o domínio do clero islâmico, ocupando largas porções dos territórios da Síria e do Iraque. De forma geral, o que se observa é uma crescente radicalização desses grupos, com a formação de milícias de controle interno cruéis o suficiente para dissuadir qualquer tentativa de resistência ou sedição. Segundo levantamento do Centro Internacional para o Estudo da Radicalização, de Londres, e da rede inglesa BBC, só em novembro do ano passado 5042 pessoas foram mortas pelo terrorismo islâmico em catorze países, dos quais nove são de maioria muçulmana. Uma pesquisa de 2011, feita pelo Centro Americano de Contraterrorismo, mostrou que, das vítimas do terror cuja religião se podia identificar, 82% eram muçulmanas. Basta ter interesses conflitantes com os dos líderes desses grupos para que um muçulmano, por mais obediente que seja à sua religião, seja considerado "infiel", podendo, então, ser morto ou escravizado. A exemplo do que ocorria na Alemanha nazista, onde judeu era quem o regime quisesse que fosse judeu, nas regiões dominadas pelo terror islâmico infiel é quem desafia o poder dos extremistas. Em uma das charges publicadas pelo Charlie Hebdo, um terrorista se prepara para degolar Maomé, que voltou à Terra e diz: "Eu sou o profeta, idiota!", enquanto o assassino berra: "Cala a boca, infiel!". É difícil encontrar uma crítica mais demolidora dos assassinos que dizem lutar uma guerra santa. Nas mãos desses facínoras, até Maomé seria martirizado. COM REPORTAGEM DE PAULA PAULI ___________________________________________ 6# GERAL 14.1.15 6#1 GENTE 6#2 POLÍCIA – PERSEGUIÇÃO INSANA 6#3 CIÊNCIA – UMA BELA SINFONIA PUERIL 6#1 GENTE JULIANA LINHARES. Com Daniella de Caprio e Thaís Botelho NÃO PARECE, MAS É BOA DE BRIGA Fazer uma vilã espumejante depois da insuperável Carminha e substituir uma atriz mais velha, Drica Moraes, sem nenhuma explicação na trama e bastidores em chamas, seriam desafios suficientes para travar muitas atrizes. Mas MARJORIE ESTIANO enfrentou sua reentrada na novela Império com uma mistura de garra e leve autoironia. "Drica não voltará. Marjorie é um arraso", fulminou o autor Aguinaldo Silva, dizendo exatamente o oposto do que havia declarado na época do afastamento da intérprete principal da personagem Cora. Fora do padrão sexy estonteante das grandes estrelas de novela, Marjorie é magrinha, meio desconfiada e cheia de tatuagens ("Esfiha, quibe e tabule", brinca sobre o significado de uma delas, em árabe). Também canta e lançou um disco no ano passado. "Ela é muito talentosa como atriz e como cantora. Trabalha bem e canta bem", abençoa Gilberto Gil, que participou de uma das faixas. ELAS SÃO BIZINHAS, E DAÍ? Elas têm a seu favor beleza, fama, a intrepidez da juventude e, claro, o fato de não morarem no Afeganistão. Assim, podem aparecer beijando meninos; depois, meninas; usar roupas femininamente sensuais ou provocantemente masculinas e até dar pito na rainha quando o assunto envolve o mundo flex KRISTEN STEWART, 24 - A vampirinha que namorou o ator Robert Pattinson, seu parceiro na saga Crepúsculo, famosamente traído com um diretor de cinema, apareceu de cuequinha e aos beijos com a ex-assistente pessoal. MICHELLE RODRIGUEZ, 36 - Veloz e furiosa na vida amorosa, a atriz de origem latina protagonizou cenas incandescentes com a linda aí do lado direito e depois teve um namorico com o igualmente belo ator Zac Efron. "Tenho ido para os dois lados. Faço o que quiser", dispara. CARA DELEVINGNE, 22 - Modelo, badalada e da casta superior da Inglaterra, pode fazer todas as loucuras. E corresponde ao estereótipo, seja com o ídolo juvenil Harry Styles, depois com Michelle e agora com coleguinhas. IRELAND BALDWIN, - 19 Linda pelo lado da mãe, Kim Basinger, e briguenta pelo do pai, Alec Baldwin, está namorando uma cantora de rap: "Falar em raça ou do fato de sermos duas mulheres é antigo. Este é um novo mundo". ELLEN PAGE. 27 - A fase de namorar rapazes passou e a gracinha do filme Juno vestiu a gravata em público há alguns meses. Invectivou contra a rainha Elizabeth por conceder honraria a um político irlandês tipo brucutu. AUDÁCIA, AUDÁCIA, SEMPRE AUDÁCIA Com sua beleza incomum, MARIANA WEICKERT fez uma boa carreira como modelo. Na transição para a TV, manteve a inconfundível voz de modelo, o jeito desencanado e a imbatível disposição de se arriscar — incluindo, recentemente, pegar porcos em fazenda, fazer "cirurgia" espiritual e se passar por garota da noite. Em março, estreia mais um programa, acumulando com outros dois, em diferentes canais. "Nunca fiz curso de expressão corporal, treinamento com fonoaudiólogo, nada. Acho que gostam de mim porque sou natural, palpiteira e desprovida do talento de atuar", diz Mariana. No novo reality show, a ideia é reaprumar salões de beleza. Como fugir da banalidade? "Gosto das intrigas desse universo. Vou explicar às donas de salão, por exemplo, que elas não podem dar bronca em funcionário na frente de cliente." A DONA DO OURO NEGRO Ela começou como secretária e ficou conhecida por um negócio de roupas sob medida. Estudou em Londres, mas nunca completou um curso universitário. Quando comprou uma licença de exploração de petróleo, o ouro negro jorrou e agora a nigeriana FOLORUNSHO ALAKIJA aparece como a mulher mais rica da África, com fortuna de 7,3 bilhões de dólares. Deixou para trás a empresária angolana Isabel dos Santos, que por incrível coincidência é filha do presidente do país. Em termos de tonalidade de pele, a nigeriana ultrapassou a apresentadora americana Oprah Winfrey, que durante anos foi a mulher negra mais abonada do mundo. A queda dos preços do petróleo ainda não bateu. 6#2 POLÍCIA – PERSEGUIÇÃO INSANA Em vídeo, PMs do Rio culpam vítimas por ação policial que terminou com a morte de uma estudante a tiros de fuzil. Na semana passada, a Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro exonerou do comando do Batalhão de Choque o coronel Fábio de Souza, que uma reportagem de VEJA mostrou ter enviado a um grupo de policiais mensagens com incitação à violência e exaltações ao nazismo. Em seu lugar, assumiu o coronel Wilman René Alonso, ligado ao mesmo grupo. A troca de cabeças não deve ser suficiente para eliminar o culto à violência gratuita que se disseminou pela corporação, juntamente com a prática de atirar primeiro e só perguntar depois. Os resultados desse método podem ser vistos no vídeo obtido por VEJA que ilustra esta reportagem (assista em VEJA.com). As imagens, gravadas pelas câmeras de um carro de patrulha, registram em detalhes a ação policial que culminou na morte da universitária Haíssa Vargas Motta, de 22 anos, em Nilópolis, na Baixada Fluminense, às 5 da manhã de 2 de agosto de 2014. A sequência é espantosa. Haíssa, na companhia de três amigas, volta de uma festa no banco de trás de um Hyundai, guiado por um colega. Uma patrulha da Polícia Militar avista o carro e o considera suspeito — simplesmente porque, como alegaram mais tarde os PMs, o modelo, o HB20, é um dos mais roubados no Rio e seu motorista usava boné. Em apenas 24 segundos de perseguição, o PM Márcio José Watterlor Alves, com o corpo para fora do carro, dispara nove tiros de fuzil contra o veículo. Um deles atinge as costas de Haíssa. Ela é socorrida e levada a um hospital no Hyundai. Suas amigas, desesperadas, seguem o trajeto no carro da polícia. No caminho, Alves e o colega se dirigem a elas como se fossem as responsáveis pela tragédia: "Por que não pararam?". Depois, recuam: "Não justifica ter dado o tiro". Ao relatar a ocorrência pelo rádio, Alves comenta atônito: "Não sei nem o que falo". Em novembro, o PM foi indiciado por homicídio doloso — seu terceiro auto de resistência (morte a tiros) em quatro anos de PM. O jovem que dirigia o carro declarou em depoimento não ter parado por pensar que os policiais perseguiam uma moto que ia atrás dele. Depois de um período em queda, o número de mortes atribuídas a policiais no Rio voltou a subir. Segundo dados do Instituto de Segurança Pública estadual, as "mortes por intervenção policial" aumentaram de 416 em 2013 para 546 até novembro de 2014. O caso dos PMs de Nilópolis traduz a estatística para a vida real. E explica por que é tão difícil eliminar do imaginário popular a noção de que polícia e cidadãos tantas vezes estão em campos opostos. LESLIE LEITÃO 6#3 CIÊNCIA – UMA BELA SINFONIA PUERIL Nos três primeiros anos de vida de uma criança, o cérebro realiza mais conexões neurais do que na idade adulta. Um dos campos da medicina que mais avançam é o da investigação de como os estímulos podem exercitar os mecanismos mentais de um bebê. NATALIA CUMINALE, de Cambridge (EUA) Ao primeiro esgar, os pais, rápida e comovidamente, abrem um sorriso — como se a reação do bebê não fosse um mero reflexo, alheio à gracinha paterna. O choro incessante, a primeira palavra, o passo titubeante, o levanta e cai, a birra e as perguntas intermináveis, cada vez mais irrespondíveis. Aquela coisinha que até outro dia mal balbuciava e dormia dois terços do tempo começa a formar frases completas. Os primeiros três anos de uma criança são uma extraordinária sinfonia cognitiva, motora e de linguagem. Sem nenhum conhecimento sobre o mundo que o espera, um bebê nasce afeito a se adequar, com o passar dos dias, ao ambiente ao qual será exposto. Na orquestra do cérebro, os instrumentos vão aparecendo, somam-se aos que já se apresentaram, em uma movimentação complexa e delicada que não se repetirá nunca mais, mesmo na adolescência e, especialmente, na maturidade. Os fatores genéticos são decisivos, mas os estímulos externos recebidos durante os 36 primeiros meses da infância são cruciais na construção da arquitetura cerebral. Poucas horas depois do parto, cada neurônio já realiza 2500 sinapses. Rapidamente, as conexões se multiplicam, chegam a 700 novas por segundo, atingem trilhões (um adulto tem metade das conexões neurais de um bebê). "Em nenhuma outra fase da vida as respostas aos estímulos são tão rápidas, amplas e intensas", disse a VEJA Jack Shonkoff, diretor do Centro de Desenvolvimento Infantil da Universidade Harvard, nos Estados Unidos. "O cérebro da criança depende de experiências e interações para conseguir se desenvolver. Toda interação entre os pais e a criança durante esse período terá repercussão futura." As principais pesquisas sobre o desenvolvimento infantil sob a ótica da neurociência surgiram no fim da década de 90. Deram um passo fenomenal, recentemente, com a evolução dos exames de imagem, que permitiram entender melhor o que se passa no cérebro de crianças muito pequenas. Poucas áreas da ciência evoluíram tanto nos últimos dez anos, ancoradas em um princípio: se é verdade que o cérebro de um adulto se forma na primeiríssima infância, se é verdade que o menino é o pai do homem, saber o que vai por dentro do crânio de um bebê é crucial. Nellie, a menininha da foto que abre esta reportagem, com 128 eletrodos conectados ao cérebro, faz parte de uma pesquisa da Universidade de Uppsala, na Suécia. O objetivo dos pesquisadores é entender o mecanismo cerebral de um autista, em comparação ao de bebês saudáveis, dilema ainda não solucionado pela medicina. Ela tem pouco menos de 1 ano, fase em que a plasticidade cerebral está em seu auge e as alterações são perceptíveis. Passado esse período de proliferação de conexões, dá-se um processo conhecido como poda neural, depois do qual as ligações entre neurônios subutilizadas são desligadas, em um processo de seleção natural, e apenas as decisivas permanecem. É o fim do turbilhão, o início da calmaria. Do ponto de vista dos cientistas, fecha-se a magnífica janela de oportunidade para investigar as estruturas mentais. A formação do cérebro começa cedo. Três semanas depois da concepção, o tronco cerebral, responsável por funções básicas como respiração, batimentos cardíacos e reflexos, já começa a ser montado. Ainda durante a gestação, o feto já é capaz de sentir sabores da dieta da mãe e de escutar sons externos, inicialmente a voz dos país, como revela o documentário A Vida Secreta dos Bebês, realizado pela BBC e exibido em capítulos desde o início de janeiro pelo Fantástico, da Rede Globo. Pelo menos um terço dos 20.000 genes que formam o genoma humano é recrutado para a elaboração do órgão mais complexo do ser humano. A evolução do cérebro respeita uma hierarquia. Em primeiro lugar amadurecem os circuitos subcorticais que processam atividades mais simples, que comandam funções como os reflexos e a coordenação dos movimentos. Depois é a vez dos circuitos mais complexos, como o córtex pré-frontal, associado a decisões elaboradas, como o planejamento, o comportamento e a personalidade. O momento da aquisição de cada habilidade é conhecido como período sensível. A visão e a audição são formadas nos primeiros meses de vida. Entre os 6 e os 12 meses de idade, abre-se uma porta que permite a diferenciação da fala. Na hierarquia neural que processa as informações visuais, os circuitos de nível inferior, que analisam cor, forma ou movimento, estão totalmente maduros muito antes dos circuitos de nível superior, que interpretam estímulos sofisticados, como o reconhecimento de rostos. De nada adianta, portanto, a tentativa de criar um "superbebê". O mesmo se dá na alfabetização. Mostrar um livro com figuras a uma criança que está aprendendo a falar e apontar as ilustrações é melhor do que a tentativa de ensinar as palavras escritas. A capacidade de decodificar a linguagem escrita ocorre somente mais tarde. Os especialistas comparam esse processo ao da construção de uma casa: bases sólidas garantem um prédio forte e indestrutível. "De todos os órgãos fetais, o sistema nervoso central é o mais sensível às influências externas. O estímulo começa desde o nascimento e vai até a adolescência", diz Saul Cypel, neuropediatra da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal. Tudo o que uma criança vê, toca, sente, experimenta é traduzido em milhares de sinapses — para o bem e para o mal. Quem acredita que um bebê é muito pequeno para se incomodar com uma briga entre os pais, por exemplo, está enganado. Ainda recém-nascido, ele já consegue entender a diferença entre uma voz calma e um grito nervoso. Sabe também da importância do colo, do canto e da conversa. O organismo tem uma memória biológica. Aqueles que vivenciaram situações estressantes, como discussões frequentes entre os pais, ou sofreram abuso físico ou emocional podem ter seu desenvolvimento prejudicado. A experiência negativa ativa o sistema de resposta ao stress e produz em excesso substâncias que se tornam danosas ao organismo (veja o quadro ao lado). A exposição prolongada ao stress durante a infância está relacionada a um maior índice de derrame, infarto, diabetes e depressão na vida adulta. O stress tóxico, como é chamado pelos especialistas, também ocorre quando o pequeno recebe cobranças exageradas e ainda não possui maturidade para lidar com as demandas. "É muito frequente ver casos de crianças que têm uma inteligência adequada para a idade, mas sem maturidade emocional correspondente", explica Cypel. "Em geral, isso ocorre porque elas não foram incentivadas durante o processo de desenvolvimento a adquirir a autonomia necessária para então chegar à próxima etapa." O estudo mais clássico sobre o tema é do neurocientista americano Charles Nelson, realizado em orfanatos da Romênia, frios e paradoxalmente silenciosos. Nelson percebeu que os bebês, deitados sozinhos no berço por horas, raramente choravam e passavam a maior parte do tempo encarando um teto branco. Muitas vezes, balançavam as mãos na tentativa de estimular a si próprios. Alguns dos órfãos eram estrábicos, pois não foram estimulados a desenvolver a capacidade de seguir com os olhos nos primeiros anos de vida. Todas as crianças da instituição cumpriam a mesma rotina: acordavam às 6h30, cochilavam entre 13 e 15 horas e eram colocadas de volta na cama às 20 horas. As interações com adultos eram raras. "Fiquei de coração partido quando cheguei lá. É triste ver dezenas de crianças completamente abandonadas devido a um terrível experimento de engenharia social", disse Nelson a VEJA. Ele se refere às medidas impostas pelo ditador comunista Nicolae Ceausescu, deposto e morto em 1989. Em 1966, Ceausescu proibiu a contracepção, vetou os abortos e criou um imposto celibato — cobrado das famílias que tinham menos de três filhos. O objetivo da medida descabida era construir uma classe trabalhadora numerosa e leal. O resultado alcançado: 170.000 crianças vivendo em orfanatos logo ao fim do regime. "As condições eram precárias. As crianças com problemas de desenvolvimento neurológico e doenças infecciosas ficavam em uma ala separada, e muitas vezes amarradas", diz Nelson. "Em outra, dezenas dividiam o mesmo espaço. Quase não tinham amor, carinho e atenção necessários a qualquer bebê." Para avaliar o impacto desse tipo de cuidado no desenvolvimento infantil, o pesquisador americano acompanhou 136 crianças sem doenças, com idade entre 6 e 31 meses. Metade delas foi adotada ou voltou para a família biológica. A outra metade permaneceu no orfanato. Existia ainda um grupo de controle composto de crianças que nunca haviam sido abandonadas. Foram estimados por meio de sensores a atividade cerebral, o desenvolvimento emocional e intelectual, a linguagem e a saúde mental. Os resultados se mostraram desoladores. Os órfãos tinham QI cerca de 30 pontos abaixo, uma média de 70 pontos ante os 100 dos que nunca tinham ido para uma instituição. Apresentavam maior incidência de doenças mentais, 56% contra 14%, respectivamente. As crianças das instituições sorriam menos e respondiam pouco à interação social. A capacidade delas de criar laços afetivos também era menor, e sua atividade cerebral tinha reduções significativas. A pesquisa de Nelson demonstrou também que as crianças retiradas dos orfanatos antes de completar 2 anos apresentaram melhores resultados do que aquelas que saíram mais tarde. "Esse estudo fornece a melhor evidência já obtida de que os primeiros anos de vida constituem um período crucial, no qual uma criança precisa receber estímulos, contato emocional e físico. Caso contrário, o desenvolvimento será bloqueado", afirma Nelson. Embora o cérebro consiga se adaptar e mudar ao longo da vida, essa capacidade diminui gradativamente à medida que o tempo passa. O esforço fisiológico para aprender uma nova atividade é muito maior depois da segunda década de vida do que aos 10 anos e exponencialmente maior quando comparado aos três primeiros anos. Por isso, deve-se investir na construção de habilidades cognitivas, sociais e emocionais o mais cedo possível. Calcula-se que, a cada dólar investido nos primeiros anos de vida, haja uma economia de pelo menos 9 dólares com gastos em saúde mais à frente. "Como regra, qualquer situação adversa que acontece nos primeiros anos de vida é pior do que a que acontece depois", diz Nelson. Entendida a partitura da sinfonia pueril e belíssima dos primeiros anos, a ciência agora busca encontrar mecanismos psicológicos e químicos, por meio de terapias e medicamentos, para dar uma segunda chance ao cérebro dos adultos que foram bebês apresentados à vida de modo torto, sem estimulação, sem cores e sem carinho. O CÉREBRO EM CONSTRUÇÃO A formação do cérebro começa desde cedo — durante a gestação, o feto já sente sabores e escuta sons. Sua construção segue uma linha hierárquica, começando com circuitos simples e evoluindo para os mais complexos. Embora a genética tenha influência predominante, os estímulos e as experiências nos primeiros anos de vida são capazes de formar conexões neurais novas e mais fortes. Cada parte desse processo é crucial para o desenvolvimento do bebê. ATÉ O 3º MÊS Principais áreas do cérebro ativadas: • Tronco cerebral, cerebelo e tálamo (responsáveis pelos reflexos) • Regiões sensoriais (audição, tato, visão) Sistema límbico (relacionado às emoções) O que o bebê faz: • Sente o cheiro do leite da mãe • Diferencia sons (música ou tom de voz) • Começa a sustentar a cabeça O que os pais devem fazer • Conversar e cantar, já que a voz proporciona prazer e tranquilidade • Amamentar e dar carinho, para que o bebê se sinta acolhido • Evitar ambientes barulhentos e sair da rotina ENTRE 4 E 6 MESES Principais áreas do cérebro ativadas: • Córtex pré-frontal, córtex cingulado anterior e amígdala (relacionados às características psicológicas) • Córtex frontal (funções executivas) O que o bebê faz: • Leva as mãos à mamadeira, acaricia o seio da mãe • Interage mais com a mãe ou o pai • Fixa o olhar, segue objetos e pessoas, já que as condições visuais progridem • Sorri quando está em contato com familiares O que os pais devem fazer • Conversar e buscar respostas a partir de interação, com brincadeiras do tipo "Cadê? Achou" • Proporcionar estímulos sensoriais com brinquedos de texturas diferentes • Investir em objetos para chupar e morder, já que as funções motoras se desenvolvem a partir da cabeça até os pés ENTRE 7 E 9 MESES Principais áreas do cérebro ativadas: • Lobos parietal, temporal, occipital e frontal (atividades sensorial e motora) O que o bebê faz: • Balbucia de uma forma mais complexa • Atende a palavras comuns, como seu nome • Aproveita passeios em ambientes diferentes • Senta-se sem apoio • Estranha pessoas desconhecidas ou familiares com quem tenha pouca convivência O que os pais devem fazer • Mostrar brinquedos e ilustrações • Dar objetos musicais e chocalho, para mostrar que o som vem de fontes distintas • Oferecer cubos ou objetos que se encaixam, para estimular a noção espacial • Responder às tentativas do bebê de se comunicar, para que ele melhore essa habilidade ENTRE 10 E 12 MESES Principais áreas do cérebro ativadas: • Córtex motor (atividade motora) • Lobos frontal e temporal (onde estão as áreas dominantes para a linguagem) O que o bebê faz: • Fica de pé (primeiro com e depois sem apoio) • Segura e aponta objetos • Diz uma ou duas palavras (mamãe, papai) • Começa a entender causa e efeito (eu choro, a mamãe chega) • Gosta de imitar os pais O que os pais devem fazer: • Mostrar livros com ilustrações • Dar brinquedos para empurrar e puxar (como carrinhos) • Brincar com objetos que estimulem a imaginação da criança (bonecos, fantoches) • Colocara criança de pé com a ajuda de um apoio ENTRE 1 E 2 ANOS Principais áreas do cérebro ativadas: • Córtex pré-frontal (funções cognitivas avançadas) O que a criança faz: • Bate palmas coordenadas ao ouvir uma música • Recebe e joga bola • Tem linguagem mais refinada, com aumento do vocabulário e construção de frases • Brinca com os familiares • Interessa-se por outras crianças e por brincar com elas, mas também brinca só • Atende a ordens dadas pelos pais • Tenta comer sozinha • Já se reconhece no espelho • Anda sozinha • Gosta de canções infantis e pede para repeti-las O que os pais devem fazer: • Contar histórias e nomear figuras em livros, para ajudar a criança a aprender • Estimular a socialização com outras crianças • Incentivar o contato com outro idioma ENTRE 2 E 3 ANOS Principais áreas do cérebro ativadas: • Lobos frontal, temporal e parietal (associados à linguagem) • Áreas pré-frontal e límbica (capacidade executiva avançada) O que a criança faz: • Brinca de forma ainda mais imaginativa e criativa • Gosta de ouvir histórias • Demonstra com mais ênfase alegria, tristeza e raiva • Insiste em querer que seus desejos sejam atendidos • Faz perguntas o tempo todo • Começa a inibir comportamentos, controlar impulsos e planejar ações O que os pais devem fazer • Falar corretamente com os filhos, para que eles aprendam sem erros • Propor brincadeiras e jogos simples • Narrar histórias e deixar a criança contar a própria história, para estimular a imaginação • Fazer programas individualizados e em família • Impor limites na educação, já que é nessa fase que o comportamento dos filhos é esculpido FALE MENOS, MAS FALE BEM Poucas situações são mais fascinantes do que a da mãe que, debruçada no berço do recém-nascido, conversa com ele, mesmo sabendo que o pequeno não adquiriu ainda nenhuma linguagem, a não ser a corporal. Intuitivamente, a mãe acredita que a partir do diálogo de uma mão só o bebê aprenderá um idioma, qualquer que seja ele, evidentemente. É assim mesmo que funciona. Estima-se que 90% das palavras presentes no vocabulário de uma criança venham dos pais. A novidade: um estudo apresentado em outubro passado nos Estados Unidos por psicólogos da Universidade Temple mostrou que a qualidade das palavras ditas é mais relevante do que a quantidade, como sempre se imaginou. De nada adianta a mãe dizer "bola" e o pai repetir várias vezes "bola, bola, bola". Fale menos, mas fale bem. É preciso narrar situações, construir frases, apresentar alguma elaboração. "O livro, mesmo um muito simples, é fundamental para intermediar esse processo de interação entre os pais e a criança", diz João Batista Araújo e Oliveira, presidente do Instituto Alfa e Beto, organização que desenvolve programas para a primeira infância. "Qualquer publicação tem uma estrutura sintática muito mais complexa que a nossa fala do dia a dia." A nova linha de pesquisa vira do avesso um dos levantamentos mais reputados sobre o tema, realizado há duas décadas, também nos Estados Unidos. Na ocasião, viu-se que, aos 4 anos, uma criança criada em um lar de família abastada terá ouvido 45 milhões de palavras, ante 13 milhões de uma que viveu em um lar pobre. Aos 36 meses, um bebê criado em uma família com nível socioeconômico melhor tem um vocabulário de 1200 palavras, contra 400 palavras dos mais pobres. Embora o total de palavras não seja a única variável determinante, quanto mais amplo for o vocabulário de uma família, mais fácil será a criação de diálogos elaborados. "É muito difícil separar a qualidade sintática da pobreza semântica", resume Oliveira. O VILÃO DO DESENVOLVIMENTO Durante os primeiros anos de vida, o cérebro é extremamente sensível a novas experiências - para o bem e para o mal. Situações negativas podem causar alterações químicas e elétricas, prejudicando a arquitetura cerebral. É o chamado STRESS TÓXICO O QUE É - Crianças submetidas frequentemente a situações estressantes - abandono, abuso, discussão entre os pais, familiares com problemas emocionais, exigências exageradas - podem desenvolver uma alteração no sistema de resposta ao stress. O QUE OCORRE - Sob stress prolongado, esse sistema se torna mais sensível. Ou seja, é ativado por qualquer pequeno estímulo. Há uma sobrecarga de cortisol, o hormônio do stress, e adrenalina. Com isso, o corpo fica em estado de alerta, há aumento da frequência cardíaca e da pressão arterial. Os níveis de açúcar e de proteínas inflamatórias também são elevados na corrente sanguínea. CONSEQUÊNCIAS * Conexões nervosas ficam mais curtas e em menor quantidade. O neurônio à esquerda, submetido de forma prolongada ao stress tóxico, possuí uma arquitetura claramente enfraquecida . * O hipocampo relacionado à memória e ao aprendizado, pode ter seu tamanho diminuído. O stress tóxico atrapalha a capacidade de adquirir novas informações e de diferenciar as situações seguras das perigosas . * O córtex pré-frontal, responsável pelas funções executivas avançadas, também é reduzido. * A amígdala, que atua como reguladora das emoções e dos sentimentos, torna-se mais sensível. Em experimentos de ressonância magnética, ela fica mais ativada para situações de medo e raiva. A LONGO PRAZO Além de prejudicar o desenvolvimento na primeira infância, o stress tóxico está relacionado a doenças cardiovasculares, diabetes, depressão e abuso de drogas, entre outros problemas. Fontes: Saul Cypel, neuropediatra da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, e Centro de Desenvolvimento Infantil da Universidade Harvard. TV E TABLET, COM MODERAÇÃO Para muitos pais, é difícil resistir à tentação de deixar a criança por algum tempo em frente à TV. Em geral, elas se acalmam e permanecem quietas. Esse sucesso pode ser atribuído aos cortes rápidos e ao excesso de cores primárias - características de qualquer vídeo infantil. "O interesse das crianças pelos eletrônicos relaciona-se com o colorido, o movimento, a sucessão de cenas e o controle que possuem sobre os aparelhos, que modificam e até encerram diante de alguma frustração", diz Saul Cypel, neuropediatra da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal. No cérebro, as imagens ativam o lobo occipital (associado à percepção da imagem) e agem nas regiões pré-frontal e límbica, responsáveis pela atenção, pela emoção, pelo prazer e pelo planejamento. Apesar de educativos e lúdicos, esses vídeos podem, sim, interferir no desenvolvimento das crianças. A Academia Americana de Pediatria não recomenda nenhum acesso a programas de TV antes dos 2 anos de idade. Estudos já demonstraram que bebês com idade entre 8 e 16 meses que passam mais tempo diante da TV possuem repertório de linguagem menor. Ficar duas ou mais horas em frente à tela está relacionado a um risco seis vezes maior de ter atraso de linguagem. Há problemas também para o desenvolvimento da atenção. Antes dos 10 meses, o mecanismo de atenção voluntária do bebê não está completamente desenvolvido. Ou seja, para ele não é tão simples escolher onde focar sua atenção, e deixá-lo em frente à TV pode atrapalhar essa transição. Outra pesquisa mostrou que as crianças que assistiram a programas violentos antes dos 3 anos tinham duas vezes mais risco de desenvolver transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) entre os 5 e os 8 anos. Quanto ao tablet, faltam estudos específicos para avaliar seus possíveis danos. O que os médicos dizem é que nem sempre o uso da tecnologia é completamente condenável - desde que seja mediado pelos pais. Dependendo da forma como for utilizado, o tablet poderá ser uma ferramenta para ensinar as crianças e ajudar no aprendizado. Não é recomendável utilizar-se sempre dele para evitar a interação com a criança, deixando assim de ensiná-la. BABÁ ELETRÔNICA - Não é recomendável substituir a interação com os pais pelos aparelhos. ________________________________________ 7# ARTES E ESPETÁCULOS 14.1.15 7#1 LIVROS – O ANO QUE ACABOU COM TUDO 7#2 CINEMA – DE CARA LIMPA 7#3 CINEMA – NASCE UM ASTRO 7#4 VEJA RECOMENDA 7#5 OS LIVROS MAIS VENDIDOS 7#6 J.R. GUZZO – ESPEREM O BARÍTONO 7#1 LIVROS – O ANO QUE ACABOU COM TUDO Uma história de 1922 reconstitui, mês a mês, um dos momentos mais brilhantes e barulhentos da arte e da literatura modernistas. JERÔNIMO TEIXEIRA O explorador irlandês Ernest Shackleton, líder de excursões pioneiras à Antártica, morreu nos Estados Unidos, em janeiro de 1922, de um ataque do coração. Certo episódio de seus relatos impressionara um americano (mais tarde naturalizado britânico) que, naquela altura, trabalhava como funcionário de um banco, mas já começava a ser reconhecido como um dos grandes poetas de sua geração. Shackleton contava que, exauridos pela caminhada nas imensidões desoladas do polo, ele e seus companheiros tinham por vezes a ilusão visual de que havia um novo membro acompanhando o grupo. No poema The Waste Land (traduzido de várias formas em português — A Terra Desolada ou Devastada são as versões mais felizes), publicado no fim de 1922, T.S. Eliot incorporou a história em versos elegantes mas carregados de estranheza. Na tradução de Ivan Junqueira: "(...) somos dois apenas, lado a lado, / Mas, se ergo os olhos e diviso a branca estrada / Há sempre um outro que a teu lado vaga / A esgueirar-se envolto sob um manto escuro, encapuzado". É absolutamente fortuito que a morte do explorador e a publicação do poema tenham ocorrido no mesmo ano. Mas tal é a caprichosa natureza dos marcos cronológicos: eles parecem unir eventos díspares em conjunções que, vistas à distância de algumas décadas, parecem milagrosas. O escritor inglês Kevin Jackson toma uma expressão do crítico americano Harry Levin para definir, já no título, o ano ao qual dedicou um livro inteiro: Constelação de Gênios (tradução de Camila Mello; Objetiva; 568 páginas; 59,90 reais ou 29,90 na versão eletrônica). Há mesmo um notável desfile de gênios nesse saboroso panorama: escritores como o inglês D.H. Lawrence e o alemão Thomas Mann, artistas como o russo Wassily Kandinsky e o francês Henri Matisse, cineastas como o americano Buster Keaton e o austríaco Fritz Lang, músicos como o austríaco Arnold Schoenberg e o francês Erik Satie. São todos monstros sagrados do modernismo, a estética de agitação, provocação e ruptura que estava em pleno vigor nos círculos literários e boêmios do entreguerras. Elástico, o conceito abarca uma enorme variedade de artistas e movimentos, e é certo que seus primórdios podem ser traçados no fim do século XIX, se não antes. Alguns dos personagens de Kevin Jackson já haviam ultrapassado o tempo de escândalo juvenil e caminhavam para a consagração e o "aburguesamento" — emblemático é o episódio em que o pintor espanhol Pablo Picasso aparece comprando um carrão de luxo, e com motorista particular. O que, então, tornaria 1922 um ano tão relevante? Jackson elege dois marcos da literatura em língua inglesa: Ulisses, o monumental romance do irlandês James Joyce, e o já citado A Terra Desolada, de Eliot. Um terceiro autor aparece como protagonista, não tanto pelo que publicou em 1922, mas por seu papel de agitador e promotor da nova literatura: o poeta americano Ezra Pound (Jackson, no entanto, não dá o devido destaque ao papel de Pound como leitor e até revisor do grande poema de seu amigo Eliot). O livro percorre todo o ano, com um capítulo para cada mês e, dentro de cada capítulo, verbetes sobre um artista, um fato histórico, um acontecimento artístico. É uma estrutura que convida o leitor a pular páginas em busca do artista ou escritor que mais o interessa. Mas só a leitura sequencial fornece a dimensão do "frenesi de inovação" que de fato tomou conta de 1922. É de lamentar, apenas, que a narrativa seja truncada por uma tradução pedregosa e inepta, que desconhece até títulos de obras já traduzidas no Brasil — A Jovem Parca, poema do francês Paul Valéry, transforma-se em O Jovem Destino (Shackleton, a propósito, morreu na ilha britânica da Geórgia do Sul, e não no sul da Geórgia). Foi um ano de obras-primas, como Ulisses e A Terra Desolada. Foi um ano de estreias: na Inglaterra, Alfred Hitchcock dirigia seu primeiro filme. Número 13 (que se perdeu), e na Alemanha era encenada pela primeira vez uma peça de Bertolt Brecht, Tambores da Noite. De viagens e experiências formativas: o jovem George Orwell vai à Birmânia (atual Mianmar) servir como policial do Império Britânico, e o também jovem Ernest Hemingway, então residindo em Paris, treinava seu estilo econômico como correspondente internacional na Itália — entrevistou Mussolini — e na Turquia (e o autor americano ainda treinava boxe com o amigo e mentor Ezra Pound). De pontos finais: o francês Marcel Proust, em pleno trabalho de revisão dos últimos volumes de Em Busca do Tempo Perdido, morreu em novembro, e Franz Kafka trabalhava em seu último romance, O Castelo (que ficou inacabado — e, a rigor, sem ponto final). E foi até um ano de marcos do que talvez anacronicamente se possa chamar de cultura pop: o trompetista Louis Armstrong deixava a Nova Orleans natal para se tornar uma estrela do jazz em Chicago, e o expressionista Nosferatu, do alemão Friedrich Murnau, deitou as convenções básicas dos filmes de vampiro. No comportamento, há rupturas, escândalos e esquisitices. A liberada "melindrosa", com seus vestidos e cabelos curtos, ganhava uma versão estilizada na capa de Life, e gurus como o inglês Aleister Crowley e o armênio George Gurdjieff vendiam seu esoterismo aos incautos. Kevin Jackson não descuida da crônica mundana: vemos Vivien, mulher de Eliot, tendo um caso com o filósofo Bertrand Russell, e páginas mais adiante o compositor russo Igor Stravinski está na cama com a estilista francesa Coco Chanel. Os espíritos provinciais folgarão em saber que a Semana de Arte Moderna de São Paulo está lá, com elogios desmesurados para Mário de Andrade (nada se diz sobre Oswald). Mas é sobretudo seguindo a recepção crítica de Ulisses que o livro dá ao leitor a noção da quebra radical representada pela literatura modernista: os resenhistas reclamam da "obscenidade" do livro, declaram-se confusos e lançam contra Joyce a esdrúxula acusação de "bolchevismo literário". O status de "clássicos do século XX" que hoje desfrutam as obras-primas modernistas tende a obscurecer este fato: para os contemporâneos, elas foram um choque. 7#2 CINEMA – DE CARA LIMPA Em Livre, Reese Witherspoon faz como sua personagem e deixa pelo caminho toda a bagagem acumulada. Nunca essa boa atriz esteve melhor, ou foi tão honesta e tão instigante. ISABELA BOSCOV Barraca, saco de dormir, panela, fogareiro, botijão de gás, roupa, comida, garrafas d’água, livros, desodorante, um milhão de miudezas: quando Reese Witherspoon termina de montar sua mochila, ela está quase da sua altura, e provavelmente mais pesada do que ela própria. Levantar essa monstruosidade nas costas é uma briga de bar. Reese, que mede pouco mais de 1 metro e meio, ajoelha e cai, deita e rola no carpete sujo do quarto de motel, fica de quatro, bufa, contorce-se e, quando finalmente consegue se pôr de pé, já está com as pernas esfoladas. Serena e desapressada, a câmera do diretor canadense Jean-Marc Vallée acompanha essas indignidades sem se afastar e sem se constranger. Tão íntima é a proximidade dela com a atriz, aliás, que se tem a sensação de que, se quisesse, poderia oferecer-lhe ajuda. Mas Reese, como sua personagem, está por conta própria; ou se vira sozinha, ou fica no chão — e nada nos últimos quinze anos, desde que ela fez Eleição com o diretor Alexander Payne, poderia ser tão benéfico para a atriz quanto essa contingência. Assim como em Eleição ela deixou que Payne aproveitasse para a protagonista, a jovem carreirista Tracy Flick, seu cerne duro, cortante e tenaz, em Livre (Wild, Estados Unidos, 2014), que estreia no país nesta quinta-feira, ela dá a Vallée carta branca para expor e usar as facetas contraditórias de sua personalidade: a tenacidade e a inteligência são as de costume, mas estão aqui também a propensão à imprudência, a vontade tão férrea que às vezes perde de vista as razões do que quer, a incapacidade de fazer as coisas — as boas e as ruins — pela metade. E, se vulnerabilidade e fragilidade não são nem nunca foram traços perceptíveis na atriz, tem-se aqui uma habilidade patente para machucar a si mesma, ou deixar que o façam. Todos esses aspectos integram de forma decisiva o desempenho de Reese, de 38 anos, como Cheryl Strayed, uma moça que caminhou quase 1800 quilômetros da Califórnia ao Estado de Washington na Pacific Crest Trail (ou PCT) em penitência e exorcismo. Responsável, trabalhadora, estudiosa e ambiciosa, Cheryl perdeu o chão com a morte prematura de sua mãe (no filme, uma amorosa e radiante Laura Dern, vista apenas em flashbacks). Ao longo de quatro anos de desintegração e de luto caótico, Cheryl largou os estudos, viciou-se em heroína, transou com qualquer um em qualquer lugar, destruiu sistematicamente seu bom casamento — até que, atônita com o ponto a que chegara, decidiu que iria sair andando, e que não pararia de andar até virar a mulher que sua mãe acreditava que ela fosse. Escolheu fazê-lo na árdua PCT, atravessando todo tipo de terreno, muito embora não tivesse nenhuma experiência no assunto; ou se curaria ou morreria tentando curar-se, era o espírito da empreitada. Nem a PCT tem as conotações místicas do Caminho de Santiago, nem a jornada de Cheryl ou o filme de Jean-Marc Vallée fazem esse tipo de associação. É mais como se Cheryl necessitasse descobrir até que ponto está decidida a viver, e se submetesse ao castigo físico da trilha como maneira de purgar de seu organismo o entorpecimento das drogas, do sexo inconsequente e da tristeza. Não há aqui momentos de iluminação afora os da mais banal materialidade. Cheryl tem de desistir da trilha depois de uma semana e voltar à estaca zero, derrotada por um simples frasco de gás de cozinha (comprou o errado). Perde várias unhas dos pés e tem de andar com os dedos em carne viva até aprender que deveria calçar um par de botas um número maior que o seu. Quase morre de desidratação porque se irritou com o conselho de que deveria levar mais água em certo trecho. Demora semanas até entender que está carregando peso em excesso e deixar parte dos pertences para trás. Em termos metafóricos e também práticos, trata-se de reaprender o essencial: como manter-se viva e inteira pelos próprios meios. E, na solidão frequentemente absoluta da trilha, sem ruído que a distraia nem companhias que acobertem seus sentimentos, lidar com as lembranças da mãe e a ruína que se seguiu à sua perda — fragmentos de memória que Jean-Marc Vallée, que foi DJ antes de ser cineasta, costura ao presente de Cheryl amparando-se no dom gêmeo de seu roteirista, o escritor inglês Nick Hornby (de Alta Fidelidade), para exprimir afetividade através de imagens que se reiteram, de citações literárias e por meio da música. A versão de Simon & Garfunkel para El Condor Pasa, em particular, ganha significados que vão bem além de seu valor como relíquia kitsch dos anos 60: repetida vez após vez enquanto Cheryl progride pela PCT e invocada por ela nos momentos de frustração ou desespero ("Prefiro ser o martelo a ser o prego" é seu verso preferido), a canção aos poucos vai como que se reconstituindo e ganhando uma beleza tão original quanto cristalina. Com oito longas realizados em vinte anos de carreira, Vallée ultimamente vem se confirmando como um talento na encenação desse tipo de batalha íntima: nos ternos C.R.A.Z.Y. e A Jovem Rainha Victoria, ou nos bem mais conflagrados Livre e Clube de Compras Dallas (que deu o Oscar a Matthew Mc-Conaughey, ao lado de quem Reese fez um papel pequeno mas instigante em Amor Bandido), ele inspira suficiente confiança em seus atores para que eles então rejeitem as proteções que costumam cercá-los e se joguem sozinhos na fogueira, até redescobrirem o que têm de mais genuíno. Reese, de qualquer forma, já vinha dando sinais de que buscava uma correção de rota: embora tivesse comprado os direitos de adaptação de Garota Exemplar especificamente para estrelar o filme, acatou a argumentação do diretor David Fincher de que era a atriz errada para o papel, desistiu dele e restringiu-se à função de produtora; em vez de bobagens românticas como Surpresas do Amor e Água para Elefantes, que fez depois de ganhar seu Oscar por Johnny & June, tem procurado trabalho com cineastas como Atom Egoyan e os irmãos Coen; e tem também usado seu cacife para alavancar projetos menores que a interessam pessoalmente, como o drama A Boa Mentira, no qual sua presença em cena dura o mínimo necessário para garantir o financiamento. Livre, porém, é seu passo mais largo. Da mesma forma que sua personagem, ela deixa pelo caminho mais de uma década de bagagem acumulada como uma das figuras mais notoriamente controladoras do cinema americano e se reduz ao seu fundamental. Nunca foi tão boa atriz. 7#3 CINEMA – NASCE UM ASTRO Até aqui quase um desconhecido, o inglês Jack O'Connell, de 24 anos, eletriza o convencional Invencível, dirigido por Angelina Jolie. Se Livre é exceção num ano que para as mulheres foi em geral fraco, para os homens 2014 foi espetacular: Benedict Cumberbatch em O Jogo da Imitação, Eddie Redmayne em A Teoria de Tudo, Bradley Cooper em Sniper Americano, Miles Teller e J.K. Simmons em Whiplash, Jake Gyllenhaal em O Abutre, Michael Keaton em Birdman, Channing Tatum e Steve Carell em Foxcatcher, Oscar Isaac em O Ano Mais Violento — a lista de ótimos personagens interpretados por atores em excelente forma não só é longa como inclui vários nomes que apenas agora estão se consolidando ou mesmo despontando. Como o inglês Jack O'Connell, de 24 anos, que eletriza Invencível (Unbroken, Estados Unidos, 2014), em cartaz a partir de quinta-feira. No papel de Louis Zamperini, um rapaz encrenqueiro que tomou jeito quando começou a praticar atletismo, quebrou recordes juvenis e fez bonito nos 5000 metros na Olimpíada de Berlim, em 1936, O’Connell irradia carisma e energia. Já como o tenente que em 1943 caiu com seu B-24 no Pacífico, passou 47 dias à deriva junto com dois colegas e foi resgatado apenas para ter diante de si dois anos de inferno como prisioneiro de guerra dos japoneses, O'Connell alcança um feito bem mais complexo: ele nuança o desespero, torna modesto o heroísmo e modula a perseverança, sem no entanto perder nada de sua instintividade. A única coisa que ele tem contra si é a mesma coisa que tem a seu favor: sensatamente, Angelina Jolie constrói todo o filme em torno da atuação de O'Connell; mas, assim como em sua estreia atrás das câmeras, Na Terra de Amor e Ódio, ela se mostra uma diretora profundamente convencional, dada àquele tipo de edificação com que há um século Hollywood banaliza e pasteuriza os personagens que quer reverenciar. Angelina tem, sim, um traço original, mas ele é um tantinho insólito: ambos os seus trabalhos na direção se detêm, a ponto da fetichização, na relação doentia de um captor com seu capturado. Nos dois campos de prisioneiros pelos quais passou, Zamperini (que morreu em julho último, aos 97 anos) foi a vítima preferencial do guarda Mutsuhiro Watanabe. Conforme narra a escritora Laura Hillenbrand no best-seller homônimo em que Invencível se baseia, Watanabe (interpretado pelo astro pop Miyavi) era um psicopata que tirava prazer inequivocamente sensual de torturar os homens à sua mercê: adorava fraturar traqueias, golpear cortes de cirurgia, deixar prisioneiros expostos ao frio ou amarrados a postes dias seguidos — e então brincava com eles e dava-lhes doces ou cigarros, como se fossem seus amigos. Zamperini, que era uma celebridade nos Estados Unidos, atraiu a atenção dele de imediato. É real, por exemplo, o episódio mostrado no filme em que todos os prisioneiros do campo são obrigados a fazer fila para socar seu rosto, um depois do outro, assim como a cena em que, gravemente subnutrido, ele tem de sustentar uma viga de madeira acima da cabeça. A nota estranha é a voluptuosidade com que essas cenas são filmadas, e a equiparação de sofrimento com santidade. Nem o tom exaltado de Angelina é capaz de vencer o talento de O'Connell. Mas, para vê-lo em um filme tão honesto e potente quanto ele próprio, uma pedida bem melhor é o drama de prisão irlandês Starred Up. ISABELA BOSCOV 7#4 VEJA RECOMENDA DISCOS BETWEEN DOG AND WOLF, NEW MODEL ARMY (VOICE MUSIC) • Liderado pelo cantor e guitarrista inglês Justin Sullivan, o New Model Army tem uma sina semelhante à da Portuguesa de Desportos: assim como o time de futebol brasileiro, possui trajetória respeitável, goza da simpatia de muita gente, mas se mostra ineficaz em transformar essas qualidades numa história de sucesso. Só que, enquanto a Lusa caiu para a terceira divisão do Campeonato Brasileiro, Sullivan e companhia não perderam o rumo. Between Dog and Wolf, seu novo disco, mantém as características marcantes do grupo, como a bateria tribal e o baixo em primeiro plano — tarefas cumpridas de modo exemplar pelos novos integrantes, Michael Dean (bateria) e Geri Monger (baixo), substitutos de Robert Heaton (que morreu de câncer, em 2004) e Peter Nelson (que pediu as contas três anos atrás). As canções não têm mais o peso das produções dos anos 1980: estão mais polidas, o que é resultado da colaboração do New Model Army com o produtor Joe Barresi (que trabalhou com Soundgarden e Queens of the Stone Age). Sullivan, porém, mantém sua fúria intacta, como se nota na interpretação de I Need More Time e Qasr El Nil Bridge. RAINHA DOS RAIOS, ALICE CAYMMI (JÓIA MODERNA) • Alice Caymmi tem voz: filha de Danilo, neta de Dorival e sobrinha de Dori e Nana, ela herdou da família o timbre grave e forte. Mas, acima de tudo, Alice tem ideias. Após uma claudicante estreia fonográfica em 2012, está lançando um disco poderoso. Ela é ousada a ponto de recriar de forma personalíssima duas canções manjadas: Meu Mundo Caiu, de Maysa, com uma introdução de guitarra que parece saída de uma trilha de western spaghetti, e Sou Rebelde, versão de um pop brega latino que fez sucesso por aqui nos anos 80, com a cantora Lilian. A parceria com o produtor e instrumentista Diogo Strausz resultou em uma sonoridade que inclui o trip-hop, um hip-hop com batida mais lenta, e o dubstep, uma dance music mais quebrada. Esses elementos aparecem em Como Vês (de Bruno Di Lullo e Domenico Lancellotti) e nas duas composições de Caetano Veloso: Jasper (do disco Estrangeiro) e Homem (acrescida de efeitos, digamos, ruidosos). Alice também acerta nas versões de Princesa, funk de MC Marcinho, e Meu Recado, parceria sua com Michael Sullivan. Na voz de outras cantoras, essas músicas descambariam para um tom jocoso. Mas a moça tem sabedoria. LIVROS A PIRÂMIDE DO CAFÉ, DE NICOLA LECCA (TRADUÇÃO DE JOANA ANGÉLICA D'AVILA MELO; BERTRAND BRASIL; 238 PÁGINAS; 35 REAIS) • Imi é um garoto húngaro que foi abandonado na porta de um orfanato, acompanhado só de um bilhete escrito pela mãe adolescente: "Tentei mantê-lo comigo, mas chora demais e os clientes reclamam". Início triste e propício para um drama piegas. Mas o italiano Lecca — em seu primeiro livro publicado no Brasil — não está interessado em contar uma história edificante de superação. Embora ignore de onde veio, Imi consegue ser feliz à sua maneira entre solidão, maus-tratos e poucos prazeres. Mantém, sobretudo, um sonho: viver em Londres, lugar que guardaria todos os tesouros. Mas, aos 18 anos, quando chega à cidade e consegue um emprego na rede internacional Proper Coffee, descobre que a vida é mais complexa do que preparar o capuccino perfeito. Na trama que levou sete anos para concluir e lhe rendeu três prêmios literários, Lecca é hábil ao explorar sutilezas e evocar emoções com uma prosa enxuta. Como resumiu um crítico italiano: "Seria uma indelicadeza recusar este cafezinho". MEMÓRIAS DE UM OFICIAL DE INFANTARIA, DE SIEGFRIED SASSOON (TRADUÇÃO DE LUÍS REYES GIL; MUNDARÉU; 328 PAGINAS; 33 REAIS) • Nascido em um lar abastado e educado na prestigiosa Universidade de Cambridge, o inglês Siegfried Sassoon (1886-1967) deixou o conforto de sua mansão no campo para enfrentar os horrores da I Guerra Mundial. Alistou-se no exército da Inglaterra tão logo o conflito eclodiu, em 1914, e no ano seguinte foi combater no front francês. Sua trajetória é tão heróica quanto acidentada: Sassoon foi condecorado por atos de bravura, sofreu ferimentos no campo de batalha e, enquanto se recuperava de um deles, quase foi levado à corte marcial por lançar um manifesto pacifista. Ele passou à história, porém, por outra razão: é um dos grandes memorialistas da I Guerra. Após consagrar-se com poemas sobre a guerra, Sassoon escreveu uma trilogia na qual — valendo-se do alter ego George Sherston — relata a dureza da vida nas trincheiras e suas sequelas emocionais. Memórias de um Oficial de Infantaria é um desses belos volumes. Curiosamente, a vida pessoal do autor não foi menos acidentada ao fim da guerra: ele teve diversos casos gays, depois se casou com uma mulher — e, ao se separar dela, abraçou uma existência carola e solitária. TELEVISÃO THE FALL — A SEGUNDA TEMPORADA (DISPONÍVEL A PARTIR DE SEXTA-FEIRA NO NETFLIX) • Após estrangular belas morenas, o psicopata Paul Spector (Jamie Dornan) submete as vítimas a um ritual de purificação que inclui até manicure: ele pinta suas unhas com esmalte vermelho. Há, decerto, algo de macabro no prazer da detetive que o persegue, Stella Gibson (Gillian Anderson): ela usa o mesmo esmalte, atiçando a fantasia do assassino. Embora em lados opostos, os protagonistas de The Fall se parecem: são, a um só tempo, caça e caçador. Bonitão que curte uma "pegada forte" na cama, Spector poderia ser o Christian Grey dos sonhos das fãs de Cinquenta Tons de Cinza (ironicamente, aliás, é sua encarnação de fato: Dornan viverá o amante sadomasô na adaptação do livro para o cinema). Mas não é bom render-se a seu charme: sob o disfarce de manso pai de família em Belfast, na Irlanda do Norte, seu personagem oscila da eficiência gélida à indiscrição desastrada conforme é consumido pelo vício em matar. Interpretada com jeito blasé pela ex-estrela de Arquivo X, Stella é viciada em sexo e descarta suas presas com frieza. Na segunda temporada da série inglesa, essa estranha atração explode. 7#5 OS LIVROS MAIS VENDIDOS FICÇÃO 1- Se Eu Ficar. Gayle Forman. Novo Conceito 2- Para Onde Ela Foi. Gayle Forman. NOVO CONCEITO 3- O Pequeno Príncipe. Antoine de Saint-Exupéry. AGIR 4- O Irmão Alemão. Chico Buarque. COMPANHIA DAS LETRAS 5- A Culpa É das Estrelas. John Green. INTRÍNSECA 6- O Sangue do Olimpo. Rick Riordan. INTRÍNSECA 7- Somente Sua. Sylvia Day. PARALELA 8- Divergente. Veronica Roth. ROCCO 9- Insurgente. Veronica Roth. ROCCO 10- A Escolha. Kiera Cass. SEGUINTE NÃO FICÇÃO 1- Nada a Perder 3. Edir Macedo. PLANETA 2- O Capital no Século XXI. Thomas Piketty. INTRÍNSECA 3- Bela Cozinha: As Receitas. Bela Gil. GLOBO 4- O Diário de Anne Frank. Anne Frank. RECORD 5- Sonho Grande. Cristiane Correa. PRIMEIRA PESSOA 6- Aparecida. Rodrigo Alvarez. GLOBO 7- Eu Sou Malala. Malala Yousafzai. COMPANHIA DAS LETRAS 8- Lidtografia. Lisa Nola. INTRÍNSECA 9- Não Sou uma Dessas. Lena Dunham. INTRÍNSECA 10- Guga – Um Brasileiro. Gustavo Kuerten. SEXTANTE AUTOAJUDA E ESOTERISMO 1- Ansiedade. Augusto Cury. SARAIVA 2- Não Se Apega, Não. Isabela Freitas. INTRÍNSECA 3- O Poder da Escolha. Zibia Gasparetto. VIDA & CONSCIÊNCIA 4- 60 Dias Comigo. Pierre Dukan. BEST SELLER 5- De Volta ao Mosteiro. James Hunter. SEXTANTE 6- Geração de Valor. Flávio Augusto da Silva. SEXTANTE 7- Casamento Blindado. Renato e Cristiane Cardoso. THOMAS NELSON BRASIL 8- O Poder do Hábito. Charles Duhigg. OBJETIVA 9- O Monge e o Executivo. James Hunter. SEXTANTE 10- Quem Me Roubou de Mim? Padre Fábio de Melo. PLANETA 7#6 J.R. GUZZO – ESPEREM O BARÍTONO A presidente Dilma Rousseff começou seu segundo governo com mais uma exibição desta sua estranha habilidade em escolher, entre todas as opções possíveis, sempre aquela que é a pior. Nem foi preciso esperar pelo discurso de posse, mais um fenômeno na arte de anunciar o bem e fazer o mal que tanto atrai a presidente. Bastava, logo de cara, ver os seus ministros. Pelo manual mais elementar do bom-senso, deveriam ser os melhores entre os melhores. Mas Dilma é Dilma. Nomeou os piores que encontrou à disposição no momento, mais uma prodigiosa manada de nulidades, com apenas duas exceções, Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda e Kátia Abreu para o Ministério da Agricultura — e mesmo aí conseguiu se meter em confusão, pois ambos já estão jurados de morte pelo PT e terão de gastar boa parte do seu horário de trabalho simplesmente tentando sobreviver. É típico da presidente: em 39 possibilidades, o número dos cargos que tinha a preencher, acertou duas. Obstinação? Como Dilma jamais explicará ao público nenhuma das escolhas que fez, fica realmente parecendo que estamos diante de um caso de ideia fixa. Em resumo: o ministério do seu segundo mandato é um hino à perseverança no erro. O primeiro governo de Dilma foi um espetáculo praticamente sem intervalos de corrupção, incompetência coletiva e culto à farsa. O Brasil teve um crescimento miserável nos últimos quatro anos, fracasso para o qual não há desculpa. O melhor investimento possível, na média de 2011 para cá, foi o dólar, marca de todas as economias derrotadas; é o que há, em matéria de subdesenvolvimento. A presidente se irrita quando os fatos indicam que o Brasil é um país vira-lata — mas como governante ela insiste em fazer tudo o que pode para garantir que continuemos exatamente assim. Sua última contribuição é esse ministério. É como se Dilma, a exemplo do tenor vaiado que ameaça a plateia ("Esperem só o barítono"), estivesse dizendo: "Vocês acham que o meu primeiro governo foi ruim? Esperem só o segundo". Vai-se ver a lista de novos ministros e quem está lá? Ninguém menos que Jader Barbalho, por exemplo. O nomeado é seu filho, mas nem Dilma acredita nisso; o ministro é Jader mesmo, ex-presidiário por denúncia de corrupção e gigante na história da treva política nacional. É a opção deliberada pelo deboche. Fica pior no Ministério da Educação, responsável por lidar com o problema estratégico número 1 do Brasil. Entre os 200 milhões de brasileiros hoje vivos, é impossível, pela lei das probabilidades, que não haja profissionais com competência para tirar a educação brasileira da miséria em que está enterrada. Mas Dilma nomeia o ex-governador Cid Gomes, do Ceará, um espetacular zé-ninguém na área. O que fez esse Gomes, em toda a sua vida, que o tornasse capaz de ser promovido ao posto de maior autoridade na educação brasileira? O que ele sabe, além de pedir verba, gastar dinheiro e nomear amigos? O ponto de maior destaque em sua biografia é ter fretado um jatinho, quando governador, para um passeio com a sogra pela Europa. É o grande nome de Dilma para comandar a "Pátria Educadora". Mais funesto ainda é o caso do Ministério do Esporte. Às vésperas da Olimpíada do Rio de Janeiro, Dilma veio com um pastor evangélico, um certo George Milton, de um certo PRB; ninguém, até agora, tinha ouvido falar nem de um nem de outro. Quando se ouviu, foi para saber que o homem responde a catorze processos na Justiça e foi pego carregando caixas com 600.000 reais em dinheiro vivo, anos atrás, no Aeroporto da Pampulha. Se isso não é insultar o público, o que seria? O Ministério dos Transportes (orçamento: 20 bilhões de reais) foi doado a um cidadão que até outro dia morava na Penitenciária da Papuda, cumprindo sentença por corrupção — o ex-deputado Valdemar "Boy" Costa, que colocou no cargo Antonio Rodrigues, réu em ação penal por improbidade. Ressuscitou para a Cultura um perdedor comprovado, Juca Ferreira. "A população brasileira não tem ideia dos desmandos que esse senhor promoveu à frente da cultura brasileira", disse dele a senadora Marta Suplicy, do PT — sim, Marta, não a "mídia de direita". A presidente Dilma, há muitos anos, fez uma viagem para fora do Brasil, e provavelmente para fora do planeta Terra, ao confinar a si própria na cápsula segura do Planalto. Quando a polícia estourar a próxima central de roubalheira em seu governo, dirá que ficou "estarrecida" — e continuará convicta de que não tem culpa de nada. Ao permitir a entrada franca do crime organizado em seu ministério, Dilma, mais uma vez, torna muito difícil a posição de quem se esforça para ter alguma simpatia por ela.