0# CAPA 11.2.15 VEJA www.veja.com Editora ABRIL Edição 2412 – ano 48 – nº 6 11 de fevereiro de 2015 [descrição da imagem: capa com fundo preto. No canto inferior esquerdo, uma vela, grande, vermelha, com desenhos de estrelas na parte frontal. Demonstra que estava acesa e que a pouco tempo foi apagada pois ainda está saindo fumaça. Esta fumaça forma as palavras “US$ 200 milhões”, e mais algumas imagens de cifrão $.] PT 35 ANOS A ventania de denúncias que apagou o brilho da festa de aniversário do partido de Lula e Dilma. [outros títulos: parte superior, lado esquerdo, foto do lutador Anderson Silva.] ANDERSON SILVA O doping e a mentira nocauteiam o campeão [lado superior direito: imagem de um cérebro humano] ESQUIZOFRENIA 1 milhão de brasileiros sofrem sem saber da doença mental, fácil de ser diagnosticada. _______________________ 1# SEÇÕES 2# PANORAMA 3# BRASIL 4# ECONOMIA 5# INTERNACIONAL 6# GERAL 7# ARTES E ESPETÁCULOS _____________________________ 1# SEÇÕES 11.2.15 1#1 VEJA.COM 1#2 CARTA AO LEITOR – SOB O SÍMBOLO DE “MOCH” 1#3 ENTREVISTA – EDUARDO CUNHA – A BASE DE APOIO CONFLAGRADA 1#4 CLAUDIO DE MOURA CASTRO – OS ZIGUE-ZAGUES DO CONFORTO 1#5 LEITOR 1#6 MAÍLSON DA NÓBREGA – A PETROBRAS PODE SER PRIVATIZADA? 1#7 BLOGOSFERA 1#1 VEJA.COM O VILÃO DA SECA NO SUDESTE A crise hídrica do Sudeste motivou uma busca por explicações científicas para a falta de chuvas. O aquecimento global é o vilão mais apontado por cientistas e ativistas. Para Augusto José Pereira Filho, meteorologista do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP e um dos maiores especialistas do Brasil em previsões climáticas, a razão é outra. "O fenômeno é causado por fatores como a era geológica em que vivemos e o movimento atmosférico natural do planeta. Trata-se de um ciclo que tem ocorrido a cada cinco ou dez anos", afirma. Em entrevista ao site de VEJA, Pereira Filho explica que o desmatamento da Amazônia e o aumento da concentração de CO2 não estão por trás da estiagem e revela por que a próxima seca deve acontecer em 2019. A FONTE SECOU Dos pilares da economia, o emprego foi o único que não se deteriorou em 2014, sustentado não só pela criação de vagas, mas também pelo grande contingente de brasileiros em idade ativa que não estavam em busca de trabalho. Em 2015, com o aperto nas regras do seguro-desemprego, muitos desses brasileiros voltarão a procura. Mas não devem esperar boas notícias: o indicador de "emprego futuro", que apura a confiança da população em relação ao trabalho, atingiu seu pior nível desde 2009. REFORÇO PARA O EXAME DA OAB Cerca de 350.000 bacharéis em direito encaram anualmente o Exame de Ordem Unificado da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O resultado é desastroso: oito em cada dez são reprovados e, portanto, não podem exercer a profissão no Brasil. Neste ano, uma parceria entre o site de VEJA e a AppProva, startup especializada em simulados educacionais, vai oferecer aos candidatos um programa de estudos que inclui testes e relatórios que detalham os pontos fracos do estudante. Além de mostrar como participar, reportagem de VEJA.com lista os temas mais comuns e os que possuem a maior taxa de erro na temida prova da OAB. MELHOR CHAMAR O SAUL O roteirista, diretor e produtor americano Vince Gilligan já tinha uma série conhecida, Arquivo X, quando se lançou em um projeto que entraria para a história da televisão, Breaking Bad, sobre o pacato professor de química Walter White, que vira um poderoso traficante. Agora, Gilligan se prepara para estrear um projeto que nasce à sombra de Breaking Bad: a série Better Call Saul, sobre o advogado de White. Ao site de VEJA, Gilligan diz que é mais fácil torcer por Saul: "Walter é um sociopata. Saul não: é o perdedor que quer fazer a coisa certa". 1#2 CARTA AO LEITOR – SOB O SÍMBOLO DE “MOCH” A Operação Lava-Jato apurou que a organização criminosa instalada na Petrobras loteou as diretorias. Uma servia ao PMDB, outra ao PP e demais partidos da base aliada. A diretoria de Serviços, comandada por Renato Duque e Pedro Barusco, era exclusiva do PT. Com a divulgação na semana passada do depoimento de Barusco dado à Polícia Federal em novembro de 2014, o foco da Lava-Jato recaiu sobre o PT, justamente no momento em que o partido comemorava 35 anos de sua fundação. Barusco estima que o PT tenha tirado em dez anos meio bilhão de reais em propinas cobradas por ele e Duque das empreiteiras investigadas no escândalo do petrolão. Vale repetir. Meio bilhão de reais. Essa montanha de dinheiro foi extraída dos noventa maiores contratos de empresas com a Petrobras entre 2003 e 2013. Barusco é aquele que se ofereceu para contar o que fez junto com Renato Duque na Petrobras e se prontificou a devolver ao Tesouro Nacional o equivalente a 100 milhões de dólares do montante desviado. O PT surgiu no horizonte político em 1980 como uma estrela iluminada pela feliz conjugação da esquerda democrática com o sindicalismo de resultados. Carismático, bom negociador e anticomunista, Lula completava o quadro de esperança do país, que se preparava para enterrar o regime militar, abrindo espaço para um quadro político dinâmico e consensual, totalmente diferente daquele polarizado entre esquerda e direita tradicionais, tão corruptas quanto dogmáticas. Há 35 anos o PT era um partido de ideias alinhadas com o que havia de mais universal, contemporâneo e inovador na esquerda mundial, a rejeição ao totalitarismo soviético, a disposição ao diálogo entre patrões e empregados e a convivência produtiva entre os governos e os mercados. Lula se insurgia contra os barões da esquerda dogmática. Em um comício como primeiro presidente do PT, ele disparou: "Aqueles que têm o privilégio de ler um belo livro de Marx ou Lenin confortavelmente deitados, evitem ditar regras aos trabalhadores". A experiência de poder, em especial de poder federal, acabou com o que sobrara daqueles tempos heroicos. O PT, como tantas outras forças revolucionárias da história, sucumbiu à maldição de Saturno, o dito clássico segundo o qual as revoluções devoram os próprios filhos. O PT devorou seus ideais originais. A corajosa universalidade deu lugar ao nacionalismo canhestro. O partido chegou aos 35 anos vergado sob o peso das ideologias retrógradas contra as quais se insurgia. Chegou mestre em fisiologismo, prática que prometera erradicar. Chegou com a imagem, justa ou não, de a mais corrupta organização partidária brasileira. Melancolicamente, o símbolo do PT aos 35 anos de idade é o "Moch", diminutivo de mochila, apelido entre os corruptos de João Vaccari Neto, tesoureiro do partido, que, na semana passada, foi levado "sob vara" a depor. Essa operosa mochila levava a políticos do PT dinheiro vivo e sujo do esquema do petrolão. Triste efeméride para quem chegou ao Palácio do Planalto para consertar "tudo isso que está aí" e em doze anos de poder o que fez mesmo foi aderir às piores práticas da política e aprimorá-las. 1#3 ENTREVISTA – EDUARDO CUNHA – A BASE DE APOIO CONFLAGRADA O novo presidente da Câmara diz que as relações do PMDB com o PT e o governo não são nada boas e alerta sobre a necessidade de uma reaproximação. Caso contrário... DANIEL PEREIRA O deputado federal Eduardo Cunha, do PMDB do Rio de Janeiro, foi eleito, no domingo passado, dia 1º, presidente da Câmara dos Deputados, na qual cumpre o quarto mandato. A única surpresa foi não ter chegado lá antes. As malhas de suas alianças foram tecidas longe dos olhos do mundo exterior, onde é uma figura desenvolta e temida, sobre quem se falam, em segredo, cobras e lagartos. Economista, tem como característica, reconhecida por aliados e adversários, a capacidade inigualável de ler, entender e usar a seu favor os detalhes arcanos, mas decisivos, dos regimentos, leis, portarias e outros documentos que norteiam a vida pública brasileira. Formalmente é aliado, mas vai dar muito trabalho a Dilma Rousseff. Que avaliação o senhor faz da participação do governo na eleição para presidente da Câmara? Houve uma tentativa de interferência na disputa pela presidência da Casa. A manobra foi capitaneada por Pepe Vargas, ministro de Relações Institucionais, o representante do Executivo no Congresso Nacional. Não sei se ele atuou com ou sem o conhecimento da presidente da República. A tentativa de cooptar parlamentares foi ampla. Houve ameaça de demissão de aliados nos estados, promessa de cargos e de liberação de emendas para os novos deputados e pressão sobre ministros para que exigissem de seus partidos a adesão à candidatura do PT. É do jogo político você expressar a sua opinião, mas a pressão do jeito que foi feita, de maneira grosseira e ameaçadora, deixará sequelas não só em mim, mas nos parlamentares e nos partidos que sofreram coação. Que tipos de sequela? Como pode o governo começar um novo mandato com pressões e ameaças contra a própria base aliada, ainda mais quando se sabe da necessidade de o Executivo ter no Congresso uma base sólida e unida para aprovar medidas econômicas consideradas impopulares? Como pode um ministro usar o nome da presidente para coagir outros ministros, parlamentares e partidos e depois se sentar à mesa para negociar? Eles dificultaram a própria vida. Não achem que o Parlamento se curvará à pressão. Ou se muda esse método, ou se mudam as pessoas que adotam esse método. O ministro Pepe Vargas se inviabilizou como interlocutor com o Congresso. Ele chegou ao absurdo de comparar a disputa a um jogo de futebol, dizendo que dá carrinho, puxa a camisa, derruba, mas, depois, vai tomar cerveja com todo mundo. Isso não é declaração de quem quer estabelecer uma relação produtiva com o Congresso. Isso é conversa de botequim. Esse episódio interfere na relação da Câmara com a presidente? Tudo dependerá de como será o dia seguinte. Como presidente da Câmara, atuarei em linha com a minha campanha. O que preguei será cumprido no exercício do mandato, porque senão estarei cometendo estelionato eleitoral. Quem me elegeu não quer me ver na oposição, tampouco espera que eu seja submisso ao governo. Espera de mim independência e harmonia. Da parte do PMDB, haverá sequelas. O ministro Pepe Vargas tentou impor o PT em detrimento de outros partidos da base. Isso quebrou a relação de confiança. Se não houver uma recomposição, eles colherão os frutos da conversa de botequim que tiveram. A aliança do PMDB com o PT caminha para o fim? Não quero misturar a posição de presidente da Câmara com a de líder partidário, que também sou, mas o PMDB identificou claramente as digitais do governo numa tentativa de desestabilizar o partido. O governo patrocina a criação de outros partidos, e já há uma tentativa de cooptação de parlamentares peemedebistas. O PT escolheu trabalhar deliberadamente pelo esfacelamento do PMDB. O PMDB não tem dúvida disso, e o resultado é uma união interna como nunca vista antes. Vamos enfrentar essa disputa. O PMDB terá candidato à Presidência em 2018? A candidatura pode ser consequência desse processo. Time que não joga não tem torcida, e o PMDB está há muito tempo sem jogar. Mas não dá para discutir isso no primeiro dia de um novo mandato presidencial. É muito difícil prever o que acontecerá. Houve caneladas com o PT nas eleições de 2010 e na disputa pela presidência da Câmara. Prevejo mais dificuldades nas próximas eleições municipais. Há divergências crescentes entre PT e PMDB sobre temas relevantes. Neste momento, a prioridade do PMDB é reagir à tentativa do PT de enfraquecer e reduzir o poder do partido. A presidente quer a ajuda do Congresso para aprovar as medidas de ajuste fiscal. Ela terá o apoio dos parlamentares? Pela minha experiência, alguma dificuldade haverá e provavelmente alguma modificação na proposta original será feita. Se o governo fizer uma articulação à altura do tamanho da sua base, talvez tenha mais facilidade. Se fizer uma articulação do tamanho da votação recebida pelo candidato do PT à presidência da Câmara, certamente a dificuldade será imensa. Que encaminhamento será dado a eventuais pedidos de cassação de parlamentares denunciados pelo Ministério Público no escândalo do petrolão? Em primeiro lugar, ter processo, denúncia ou inquérito não significa que o parlamentar quebrou o decoro. Existem vários deputados e senadores alvo de denúncias e inquéritos no Supremo Tribunal Federal, e ninguém disse que eles deveriam responder a processo por quebra de decoro parlamentar. No caso do petrolão, criou-se a expectativa de que todos os envolvidos sejam processados. Isso só acontecerá se for estritamente cumprido o regimento da Casa. Sou um escravo do regimento. Até por isso não tenho como influir no andamento dos processos. Nem se eu quisesse poderia ser benevolente ou fazer o mal. Um dos investigados no petrolão é o ex-diretor da Petrobras Jorge Zelada, indicado para o cargo pela bancada de deputados do PMDB. Até a realização da Operação Lava-Jato, o senhor nunca tinha ouvido falar no funcionamento do esquema de corrupção na estatal? O PMDB realmente indicou o Zelada por meio do deputado Fernando Diniz, falecido em 2009, um grande companheiro que coordenava a bancada de deputados de Minas Gerais. Era esse grupo que tinha relação com o Zelada. Eu nunca tinha ouvido falar nada sobre o esquema de corrupção. Agora, o fato de fazer a indicação não significa que você seja responsável pelos atos desabonadores de quem quer que seja. Muitos técnicos procuram os partidos para conseguir a nomeação a um cargo, praticam malfeitos e depois querem responsabilizar aqueles que os indicaram. Não é certo. É claro que existe uma responsabilidade implícita por você não ter averiguado bem quem indicou. Os partidos precisam ser mais seletivos nessa busca. As investigações revelaram a existência de um megaesquema de corrupção na Petrobras. É possível que ele tenha funcionado durante uma década, movimentando bilhões de reais, sem o conhecimento do governo e dos partidos que se beneficiaram dele? Olha, eu fico chocado quando vejo um funcionário de terceiro escalão da Petrobras fazer uma delação premiada e devolver 100 milhões de dólares. E esse funcionário de terceiro escalão não foi indicado por partido político. O problema da Petrobras começou com um decreto presidencial, ainda no governo de Fernando Henrique, que dispensou a empresa do cumprimento da Lei de Licitações. A Petrobras passou a ter licitações bilionárias por meio de carta-convite a empresas cadastradas. Ali foi aberta a porta para o esquema de corrupção, porque a ocasião faz o ladrão. É muito fácil haver manipulação, cartel, clube de empreiteiras. Um dos juristas mais renomados do país, Ives Gandra Martins diz que já há base jurídica para um pedido de impeachment da presidente da República. O senhor concorda com essa tese? Não conheço os argumentos dele e, por isso, não posso comentá-los. Mas acho que não é cabível um pedido de impeachment em razão do petrolão. Os atos que estão sob investigação e que porventura resultem em algum tipo de culpabilidade aconteceram no mandato anterior, e você não pode punir alguém por exercício de mandato anterior. Atuando ao lado do tesoureiro PC Farias, o senhor participou da vitoriosa campanha de Fernando Collor à Presidência em 1989 e comandou uma estatal durante o governo dele, que teve o mandato cassado. Ver o agora senador Collor entre os acusados de beneficiários do petrolão lhe causa surpresa? São processos distintos, em momentos distintos, com naturezas distintas, e eu também não conheço os detalhes das acusações que pesam sobre o senador. Desconheço os fatos e não gosto de atribuir culpa previamente a quem quer que seja. A presunção da inocência deve prevalecer. No caso do impeachment do Fernando Collor, havia um processo político associado a um suposto esquema de corrupção. Não me lembro dos detalhes, mas era algo em dimensão muito menor do que o que se verifica agora. O fato de um funcionário da Petrobras de terceiro escalão devolver 100 milhões de dólares transforma aquele escândalo em pequenas causas. Acho que há corrupção na máquina pública independentemente do partido que esteja no governo. O desafio, permanente, é fechar as portas para o roubo. Que fundamento tem a história muito propalada em Brasília de que o senhor relata os principais projetos em tramitação para negociar vantagens com os interessados nas matérias? Isso é um absurdo. Agora mesmo enfrentei um processo eleitoral em que disse que não tinha ouro nem prata para oferecer. Quem ofereceu ouro e prata foi o ministro Pepe Vargas, e, portanto, se há bancada remunerada, quem a criou foi o Poder Executivo, não eu. O relato de medidas relevantes é pela minha capacidade de debater e apreciar conteúdo. Sou a favor da livre-iniciativa, do crescimento e da melhora das condições de competitividade dos setores económicos. É natural que eles procurem como interlocutores aqueles, como eu, que comungam de suas ideias. Essas histórias folclóricas partem de meus oponentes, daqueles que tentam depreciar o trabalho dos outros. O senhor é evangélico. Como presidente da Casa, impedirá ou dificultará a tramitação de projetos que têm a oposição dos evangélicos? Sou frontalmente contrário e tudo farei para evitar qualquer flexibilização na legislação do aborto. Também não vejo na Casa uma maioria para aprovar uma eventual proposta que autorize a união civil de pessoas do mesmo sexo. O senhor é favorável à redução da maioridade penal? Em tese, sim. Não dá para considerar que uma pessoa de 18 anos hoje é igual a uma pessoa de 18 anos de trinta anos atrás. O mundo está completamente diferente. Se você pode votar aos 16 anos, por que não pode ser responsabilizado com a mesma idade? Essa é uma posição pessoal. Não comandarei eventual esforço pela discussão do tema. Setores do PT estão aferrados à ideia totalitária de censurar a imprensa no Brasil, que eles, para não chocar, chamam de "regulação da mídia". Existe a possibilidade de uma aberração dessas prosperar no Congresso? Sou absolutamente contrário à regulação da mídia, seja de conteúdo, seja de natureza econômica. Esse é um tema, como no caso do aborto, em que tenho uma posição radical. O PMDB se originou de uma frente para combater a ditadura. A liberdade de expressão e a democracia são princípios fundamentais para o partido. Você pode me xingar e me atacar à vontade. Se eu me sinto ofendido, tenho o direito de recorrer à Justiça. Está na lei. Como diz aquele velho ditado: para má imprensa, mais imprensa. 1#4 CLAUDIO DE MOURA CASTRO – OS ZIGUE-ZAGUES DO CONFORTO Parece que somos dominados pelo imperativo do conforto material, quem sabe, fruto da pulsão espontânea. Para promovê-lo, gira uma descomunal indústria, mitigando nossa sede infinita de tornar a vida mais agradável. Mas não é bem assim. Historicamente, o desconforto já foi uma escolha. As palavras "comodidade", "cômodo" e "conforto" surgiram na Franca há menos de três séculos. E isso não aconteceu por acaso, mas sim quando aparecem as primeiras preocupações e invenções nessa direção. Houve tempo em que as roupas eram verdadeiros instrumentos de tortura. O desconforto era enorme e nem tinha nome. Luís XIV vivia em Versalhes, mais tarde considerado o maior e o mais desconfortável palácio do mundo. O poderoso monarca não tinha conforto. Na época, o mobiliário era extravagante, mas apenas para exibir as riquezas do dono. Nos ambientes em que se morava, praticamente não havia mobiliário. Porém, ainda no século XVIII, ocorre a primeira revolução do conforto. A moda fica mais solta e adota algodão e seda, mais macios. Aparecem cadeiras confortáveis, com braços e um espaldar menos hostil à coluna. Inventam-se os estofados, dando lugar aos sofás. Mesas de todos os tamanhos pipocam onde podem ser mais úteis. Surge o vaso sanitário com descarga, o que permitiu importá-lo para dentro de casa. E o bidê? O de Madame de Pompadour era cravejado de rubis. Mas as trapalhadas na França interrompem essa revolução, que só vai reaparecer na Inglaterra, no século seguinte, com a disseminação do conforto residencial, incluindo o WC dentro de casa. Daí para a frente, a marcha é inexorável. Não obstante, anda em zigue-zagues e custou a chegar ao Brasil. Até meados do século XX, fora das capitais, ainda se usava a "casinha", longe da casa. Hoje, a ideologia do conforto varreu nossa sociedade. É um grande motor da publicidade e do consumismo. Contudo, o avanço não é linear, havendo atrasos técnicos e retrocessos. Em três áreas enguiçadas, conforto e desconforto se embaralham. A primeira é o conforto acústico. Raras salas de aula oferecem um mínimo de condições. Padecem os professores, pois só berrando podem ser ouvidos. Uma conversa tranquila é impossível na maioria dos restaurantes. Em muitos, não pode haver conversa de espécie alguma. O bê-á-bá do tratamento acústico é trivial. Por que temos de ser torturados por tantos decibéis malvados? A segunda é o conforto térmico. Quem gosta de sentir frio ou calor? Na verdade, não se trata de gostar, mas de ser atropelado por imperativos culturais. Por não precisarem se impor pela vestimenta, oficiais britânicos usavam bermuda e camisa de mangas curtas nos trópicos. Mas, no Rio de Janeiro, a aristocracia do Segundo Império não saía de casa sem terno, colete e sobrecasaca, todos de espessa casimira inglesa. E mais: gravata, camisa de peito duro, cartola e luvas. E, se assim fazia a nobreza, o povaréu tentava imitar. Até o meio século passado, as elegantes usavam casaco de pele na capital. Hoje, a moda deu cambalhota, o chique é sentir frio. Quanto mais importante, mais gélido será o gabinete da autoridade. Mas a maneira de conquistar esse conforto térmico tende a ser equivocada. Estive em um belo hotel do Nordeste amplamente servido pela agradável brisa do mar e cuja propaganda é ser "ecológico". No entanto, é ar condicionado dia e noite, pois a arquitetura não permite a circulação natural do ar. Pior, como na maioria das nossas edificações, o isolamento é péssimo. Um minuto desligado, e quase sufocamos de calor. Uma parede comum de alvenaria tem um décimo da resistência térmica recomendada pela Comunidade Europeia. E do excesso de vidros, nem falar! A terceira é uma birra pessoal, já que minha profissão me leva a falar em público. Os arquitetos não descobriram que o PowerPoint requer uma sala que escureça e uma iluminação que não vaze na tela. Sem isso, ou a projeção fica esmaecida ou, se é apagada a luz, do professor só se vê o vulto. A solução é ridiculamente simples: um spot no conferencista. E assim vamos, aos encontrões com o desconforto, em um recorrente zigue-zague. CLÁUDIO DE MOURA CASTRO é economista 1#5 LEITOR PETROLÃO Desde o escândalo do mensalão (em 2005), somado aos demais episódios de corrupção, o governo do PT já deveria estar definitivamente longe do poder. Quem sabe agora, mesmo que tardiamente, isso ocorra. A reportagem "Todos contra todos" (4 de fevereiro) nos dá essa esperança ao abordar o chamado "salve-se quem puder, doa a quem doer", no caso do petrolão. Aliás, é incompreensível a verdadeira "blindagem" que cerca a dupla dinâmica Lula&Dilma, que some sempre quando é conveniente. Por onde anda Lula? Dilma apareceu pifiamente após a reeleição e nada disse sobre o petrolão. Triste realidade. RODRIGO HELFSTEIN São Pauto (SP), via snartphone A delação premiada dos empreiteiros presos tornou-se o maior instrumento contra uma provável alegação petista de que tudo não passa de mentira, como aconteceu no mensalão. Que os políticos provem que o que foi dito — e o que ainda será — em juízo não tem fundamento. SIDNEY DE OLIVEIRA NOVAES JR. Foz do Iguaçu, PR Quiçá essa reação em cadeia atinja o seu ápice com todos os corruptos na cadeia. Sem distinção de raça, cor, religião e cacife político. É o mínimo que a Justiça deve fazer para decepar de vez a corrupção que grassa forte no Brasil. MARCOS A.L. SANTANA Palmas (TO), via smartphone Folgo em saber que o Brasil conta com operadores do direito dotados de consciência e providos de respeito pelo processo como o juiz federal Sérgio Moro. Faltam aos juristas do país a sensibilidade e a honestidade dele. GABRIEL CORDEIRO MARTINS DE OLIVEIRA São Paulo (SP), via smartphone A genial capa da edição 2411 de VEJA (4 de fevereiro) aborda, com fina ironia, o desmantelamento da quadrilha responsável pelo maior escândalo de corrupção no Brasil. O juiz federal Sérgio Moro vai mandando para a caçapa todas as "bolas podres" do sórdido projeto engendrado pelos petistas em busca da eternização no poder. DURVAL MONTEIRO São Paulo, SP Gostei muito da capa de VEJA, mas num futuro bem próximo gostaria que a revista publicasse: "Reação e cadeia!". PAULO SERGIO LAGUARDIA Belo Horizonte (MG), via tablet As chicanas de nossas leis parecem impedir esclarecimentos e devidas punições. GILDON SUCKEVERIS São Pauto, SP CHILE Gostaria de expressar minha profunda discordância com o artigo "A receita do retrocesso" (4 de fevereiro). A revista afirma que, ao eliminar o lucro nas escolas privadas com financiamento público, o governo prejudicaria a liberdade dos pais de educar seus filhos nelas. Isso não é assim: continua a ser vasto o setor de escolas privadas financiadas com contribuições públicas nas quais os pais são livres para educar seus filhos. Só que eles não podem fazer da educação financiada pelo Estado um negócio. Ninguém será forçado a "migrar a contragosto", como diz o artigo, para as escolas públicas. E as reformas não apontam no sentido da "proibição" da meritocracia, e sim no de incentivá-la, mas com base em um campo de jogo que está nivelado, e não inclinado em favor de quem tem vantagens adicionais marcadas por sua posição social. JAIME GAZMURI MUJICA Embaixador do Chile no Brasil Brasília, DF DANIEL YERGIN Não poderia ter sido mais lúcida a entrevista do economista americano Daniel Yergin ("A nova era do petróleo começou", 4 de fevereiro). O entrevistado ficaria deslumbrado se soubesse das andanças mundo afora do então presidente Lula, a vender as maravilhas da matriz energética etanol — mais do que as do pré-sal do Geisel, que ele surrupiou assumindo a paternidade. MÁRIO COBUCCI JÚNIOR São Pauto, SP RADAR Com relação às notas "Jogo pesado 1" e "Jogo pesado 2" publicadas na coluna Radar (4 de fevereiro), o ministro da Defesa, Jaques Wagner, esclarece que não esteve reunido com a advogada Patrícia, filha de Ricardo Pessoa, da construtora UTC. Manteve conversa com a direção da empresa OAS sobre as atividades do Estaleiro Enseada Paraguaçu, situado em Maragojipe (BA), que, nas últimas semanas, teria demitido trabalhadores. SÔNIA CARNEIRO Assessora de imprensa do Ministério da Defesa Brasília, DF BOLSA-TRAVESTI Prefeito Haddad, se o senhor tem verba para gastar com essas pessoas que podem lhe render votos (nada contra elas), por que não existem desde outubro, nos centros de saúde da capital paulista, as fraldas em tamanho G para os idosos cadastrados no programa de fraldas geriátricas? Eles não rendem votos, não é mesmo, prefeito? MARIA CONCEIÇÃO CIORLIA São Paulo, SP BUMLAI Pela segunda semana consecutiva, o nome do empresário José Carlos Costa Marques Bumlai apareceu na revista como se estivesse envolvido no caso que investiga irregularidades na Petrobras. Em nome da verdade, há que esclarecer que José Carlos Costa Marques Bumlai nunca teve envolvimento com o apoiamento à indicação de nenhum diretor da Petrobras, tampouco apresentou pessoa alguma envolvida nessas investigações a quem quer que seja. MÁRIO SÉRGIO DUARTE GARCIA Advogado de José Carlos Costa Marques Bumlai São Paulo, SP ROBERTO POMPEU DE TOLEDO Como superintendente do Sarah à época de sua inauguração, em setembro de 1980, acredito que a "utopia dentro da utopia" de seu brilhante comentário sobre o médico Aloysio Campos da Paz Júnior, que chamo de utopia realista, será possível quando a gente tiver a dedicação integral e exclusiva dos profissionais de saúde, como acontece em outros países e no Brasil com membros do Judiciário, do Ministério Público e de algumas carreiras. Para isso, além de salários dignos, é preciso ter amor pelo que fazemos. JOSUÉ FERMON Ouvidor-geral Ebserh/MEC — Hospitais Universitários Federais Brasília, DF Roberto Pompeu de Toledo mencionou a Rede Sarah como caso único, no Brasil, de excelência em hospitais públicos. Sugiro-lhe unia visita ao Hospital de Câncer de Barretos, 100% público (SUS), que não atende pacientes particulares nem de planos de saúde, recebe parte de seus custos do governo e muito de fontes privadas (legais), e é gerido com sabedoria, dedicação e genialidade por Henrique Prata. CARLOS EDUARDO DOMENE Médico e presidente da Sobracil 2015-16 São Pauto, SP ÁGUA E LUZ Nesta semana dispensei meus últimos pacientes, pois minha clínica ficou sem água. Todos os doentes são examinados não apenas com um simples olhar, mas com a utilização das mãos. A cada paciente devemos lavar as mãos antes e depois, evitando assim a contaminação entre os doentes. Tentei comprar álcool em gel: desapareceu do mercado. Tentei comprar outra caixa-d'água: também desapareceu ou está com o preço altíssimo. É inadmissível que os governos e a total falta de oposição deixem a situação chegar aonde finalmente chegou. Teremos de cavar poços e ter geradores de energia? Estamos acima de um dos maiores ou do maior aquífero do mundo. Não sou engenheiro, nem ao menos geólogo, mas será que não existe uma solução? Já faltavam segurança, saúde e educação. Agora faltam água e luz. Com o devido respeito a nações tão sofridas, será que teremos de mudar o nome do país para Estados Unidos da Coreia do Norte Brasileira ou Brasil Venezuelano? PROF. DR. REINALDO TOVO FILHO Médico especialista em dermatologia pela Sociedade Brasileira de Dermatologia São Paulo, SP Correção: o posto de gasolina que era usado por doleiros para fechar negócios ficava em Brasília, não em Curitiba, ao contrário do que informou a reportagem "Até agora, ele ganhou quase tudo" (4 de fevereiro). PARA SE CORRESPONDER COM A REDAÇÃO DE VEJA: as cartas para VEJA devem trazer a assinatura, o endereço, o número da cédula de identidade e o telefone do autor. Enviar para: Diretor de Redação. VEJA - Caixa Postal 11079 - CEP 05422-970 - São Paulo - SP: Fax: (11) 3037-5638; e-mail: veja@abril.com.br. Por motivos de espaço ou clareza, as cartas poderão ser publicadas resumidamente. Só poderão ser publicadas na edição imediatamente seguinte as cartas que chegarem à redação até a quarta-feira de cada semana. 1#6 MAÍLSON DA NÓBREGA – A PETROBRAS PODE SER PRIVATIZADA? Diante dos notórios desmandos na Petrobras, muitos defendem a privatização da estatal. Sob o prisma da racionalidade econômica, a medida geraria enormes benefícios para a empresa, seus funcionários e o país. As privatizações da Vale e da Embraer demonstraram que mesmo estatais bem geridas podem colher gigantescos ganhos de eficiência depois de privatizadas. Elas se livram das amarras do controle do governo — nomeações políticas, regras de licitação, descontinuidade administrativa, gastos de propaganda de interesse do governo e por aí afora. Mas a privatização da Petrobras dificilmente teria o apoio da sociedade. A ação empresarial do Estado se acentuou a partir do século XIX na Europa. Países que não reuniam as condições que enriqueceram o Reino Unido buscaram criá-las via empresas estatais — como bancos e ferrovias — para fomentar a industrialização. A teoria econômica, desde Adam Smith, justifica a criação de estatais quando o setor privado não é capaz de prover bens e serviços essenciais ao desenvolvimento. São as "falhas de mercado". A partir da primeira metade do século XX, a esquerda viu outras razões para criar estatais ou estatizar empresas privadas: atividades-chave deveriam ser guiadas pelo interesse nacional, e não pelo objetivo único do lucro. O mesmo se dizia de setores "estratégicos", como o de petróleo e o de ferrovias, e dos associados à defesa, caso das áreas espacial e nuclear. No intervalo das duas grandes guerras, partidos socialistas abraçaram essas ideias. O Partido Trabalhista britânico, vencedor das eleições de 1945, as adotou sob a liderança do primeiro-ministro Clement Attlee. Foram estatizados a indústria do carvão, as ferrovias, os telégrafos, a siderurgia, a energia elétrica, a aviação civil e o Banco da Inglaterra (o atual banco central), que fora controlado por capitais privados desde sua fundação (1694). Já estavam sob o controle do governo o petróleo e a BBC. No início, a impressão foi de melhoria na operação das empresas, mas depois se percebeu, em especial nos anos 70, que nem as premissas da estatização eram corretas nem as estatais eram eficientes. Passados 34 anos da aprovação da plataforma de Attlee, o eleitorado britânico elegeu o Partido Conservador e aprovou a privatização, afinal implementada, com firmeza, pela primeira-ministra Margaret Thatcher. Na volta ao poder com o primeiro-ministro Tony Blair (1997), os trabalhistas mantiveram as privatizações. No Brasil, as ideias da esquerda europeia se acentuaram pelas crenças antiliberais de nossas origens culturais. As primeiras estatais surgiram no princípio do século XX e se alastraram no pós-guerra. O apoio à privatização nos anos 1980 se inspirou no exemplo britânico e nas ineficiências das estatais. O processo iniciou-se com a devolução, ao setor privado, de empresas antes estatizadas. Acelerou-se na década de 90 com a venda de empresas industriais e das estatais das áreas de telecomunicações e energia, além da Vale, da Embraer e de bancos estaduais. Contrário a tudo isso, Lula, à la Tony Blair, manteve as privatizações depois que se elegeu. O apoio à privatização nunca se estendeu a estatais como o Banco do Brasil e a Petrobras. Tende a continuar assim por muito tempo, pois elas são símbolos venerados por uma maioria favorável a esse tipo de ação do Estado. Como disse Edmar Bacha, símbolos existem também em países avançados, como os aeroportos nos Estados Unidos, que são estatais. O mesmo se dirá da BBC no Reino Unido e do petróleo na Noruega. A diferença em relação ao Brasil é a forma como as estatais são administradas. Lá, seus gestores são profissionais gabaritados, escolhidos de forma impessoal, geralmente por headhunters. Adotam-se princípios de governança corporativa típicos das empresas privadas de capital aberto. Sem ambiente nem apoio para privatizar a Petrobras, uma forma de coibir a repetição do escândalo do petrolão é guiar-se pelo exemplo de países ricos, incorporando suas regras de escolha dos dirigentes e de gestão das estatais. Os ganhos de eficiência não seriam tão espetaculares quanto na privatização, mas a operação e a produtividade da empresa seriam bem melhores. MAÍLSON DA NÓBREGA é economista 1#7 BLOGOSFERA EDITADO POR KÁTIA PERIN kperin@abril.com.br COLUNA REINALDO AZEVEDO DILMA Dilma Rousseff está perdidaça! Quase emendo um "coitada!" aqui, mas me lembrei depois que ela venceu a (re)eleição há meros três meses. De súbito, veio-me à memória seu dedo acusatório contra os adversários durante a campanha. Eles queriam a fome do povo. Eles queriam provocar recessão. Pois é... www.veja.com/reinaldoazevedgo BLOG LEONEL KAZ PEPPA DILMA Não pretendo fazer nenhuma comparação entre humanos e bichos, o que seria descabido e de mau gosto. O que desejo é escrever sobre um certo "mundo da fantasia" que não corresponde a realidade alguma. Assim é o mundo do desenho animado de Peppa Pig. Assim parece ser o mundo do país desanimado de Dilma. No entanto, em tudo há algo a ponderar. Por exemplo: o porquê do sucesso de Peppa. www.veja.com/leonelkaz DE NOVA YORK CAIO BLINDER TERRORISMO Deixo no ar duas perguntas depois da queima do piloto jordaniano ainda vivo pelo Estado Islâmico: quem realmente vai se aventurar à tarefa de lutar? E quem mais ganha com a destruição dessa categoria de barbárie, além de nós, que nos consideramos civilizados? www.veja.com/denovayork CIDADES SEM FRONTEIRAS CICLISTAS EM LONDRES Desde que o prefeito de Londres, Boris Johnson, apresentou seu plano de construir uma superciclovia, os habitantes da capital inglesa se dividem sobre a medida. Parte deles apoia o prefeito, enquanto a outra parte não quer vê-lo nem pintado de ouro. Sua proposta é criar duas enormes ciclovias expressas em forma de X que cruzarão a cidade de cima a baixo e se conectarão às margens do Rio Tamisa, num projeto que está sendo chamado de "crossrail" de bikes. O desenho prevê uma faixa exclusiva para bicicletas paralela à calçada e separada das faixas dos carros por um canteiro. Na maior parte do trajeto, esse canteiro mede cerca de 2 metros de largura, o que permite que desempenhe a dupla função de garantir a segurança dos ciclistas e oferecer vagas para estacionar as bikes. No último ano e meio, 23 ciclistas morreram na cidade. www.veja.com/cidadessemfronteiras CAÇADOR DE MITOS ÁGUA OU PETRÓLEO? A água é um recurso renovável, fácil de captar e muito mais abundante que o petróleo. Mas então por que as represas estão vazias e os tanques de petróleo transbordam? Não só o Brasil ou os países pobres sofrem com a estiagem. Faltou água nos Estados Unidos no verão de 1999, quando uma seca atingiu a costa leste. Na Austrália, em 2007, a falta de chuvas levou à ruína produtores de frutas à base de irrigação. Já as reservas de petróleo só crescem — e o preço do barril está em queda porque a produção está alta demais em relação à demanda mundial. De vez em quando o petróleo encarece, mas faltar, não falta. A resposta para esse mistério é uma simples palavra: preço. www.veja.com/cacadordemitos SOBRE IMAGENS MARK KAUFFMAN A carreira do fotógrafo Mark Kauffman (1923-1994) tem duas marcas importantes: ele foi o fotógrafo mais jovem a emplacar — aos 17 anos — uma capa na revista Life, em 1940, e foi o autor da capa da primeira edição da revista Sports Illustrated, em 1954. Kauffman trabalhou na Life por três décadas e produziu mais de vinte capas. Era versátil como todo bom fotojornalista. Foi bom retratista, cobriu conflitos e eventos esportivos, e fez editoriais de moda. Um destaque do seu acervo são as fotos do primeiro-ministro britânico Winston Churchill em cenas do cotidiano na sua propriedade na cidade de Kent, na Inglaterra. www.veja.com/sobreimagens • Esta página é editada a partir dos textos publicados por blogueiros e colunistas de VEJA.com _______________________________________ 2# PANORAMA 11.2.15 2#1 IMAGEM DA SEMANA – LIVING LA VIDA LOCA 2#2 DATAS 2#3 CONVERSA COM SHEISLANE HAYALLA – JUSTIÇA COM AS PRÓPRIAS MÃOS 2#4 NÚMEROS 2#5 SOBEDESCE 2#6 RADAR 2#7 VEJA ESSA 2#1 IMAGEM DA SEMANA – LIVING LA VIDA LOCA Uma pequena contribuição para capturar o espírito do tempo na Argentina. A sequência de acontecimentos descrita a seguir começou no domingo passado, quando o jornal Clarín divulgou uma notícia exclusiva sobre o caso do procurador Alberto Nisman, encontrado morto um dia antes de ir a uma comissão do Congresso para dar detalhes sobre o que denunciava como um acordo ilícito da presidente Cristina Kirchner para encobrir a participação de agentes do governo iraniano no atentado de 1994 que matou 85 pessoas em uma associação judaica. Nisman, dizia o Clarín, havia cogitado pedir a prisão de Cristina e do chanceler Héctor Timerman. Em resposta, Jorge Capitanich, o chefe da Casa Civil, chamou a reportagem de "lixo" e rasgou o jornal diante das câmeras. Viviana Fein, a promotora que investiga a morte, desmentiu que houvesse um rascunho do pedido de prisão. O Clarín publicou o documento descartado em que constava o pedido de prisão. Viviana Fein disse que havia se enganado. Capitanich voltou a chamar o jornal de "lixo". Viviana Fein disse que ia sair de férias. Em visita à China, a presidente tuitou que os presentes a uma conferência estavam interessados em "aloz" e "petlóleo". O insulto pegou mal nas redes sociais chinesas. Cristina tuitou um enigmático não pedido de desculpas ("Sorry. É que é tanto o excesso de ridículo e absurdo, que só se digere com humor"). Os anfitriões chineses, gente de longuíssima memória, fizeram que não perceberam. Viviana Fein disse que não ia sair de férias. Durante uma entrada ao vivo na televisão do governo, apareceu atrás da repórter um carro de uma pequena empresa de dedetização com o cartaz: "Matamos por encomenda". Coincidência. Aníbal Fernández, ex-foragido da Justiça e atual secretário-geral da Presidência, mandou vários tuítes à atriz Mia Farrow, que havia levantado suspeitas sobre o caso Nisman. Ah, sim, a ex-tenista Martina Navratilova também vai levar uma chamada do governo argentino por ter se pronunciado a respeito. VILMA GRYZINSKI 2#2 DATAS MORRERAM Odete Lara, atriz paulistana, a "musa do cinema novo". Atuou ainda na televisão e no teatro, além de gravar um disco como cantora. Filha de imigrantes italianos, Odete Righi Bertoluzzi iniciou sua trajetória artística pela TV, em 1952, numa adaptação da peça Luz de Gás, do britânico Patrick Hamilton, levada ao ar pela Tupi. Após passar pelo Teatro Brasileiro de Comédia, estreou no cinema com O Gato de Madame (1956), em que contracenava com Mazzaropi. A consagração, no entanto, viria mesmo com Boca de Ouro (1963), de Nelson Pereira dos Santos, Noite Vazia (1964), de Walter Hugo Khouri, e sobretudo O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), de Glauber Rocha. Também trabalhou em Os Herdeiros (1970), de Caca Diegues. No total, foram mais de trinta filmes. Na televisão, participou de novelas como O Dono do Mundo (1991) e Pátria Minha (1994), ambas de Gilberto Braga. Na música, dois LPS se destacaram em sua carreira: Vinícius e Odete Lara (1963), que resultou das apresentações ao lado do poeta, no espetáculo Skindô, e Contrastes (1966), com músicas de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Desde o fim dos anos 70 se dedicava ao budismo, utilizando seu sítio, em Nova Friburgo (RJ), como local de meditação. Publicou três livros autobiográficos: Eu Nua, Minha Jornada Interior e Meus Passos em Busca de Paz. Dia 4, aos 85 anos, de infarto, no Rio. Carl Djerassi, químico austríaco e um dos responsáveis pelo surgimento da pílula anticoncepcional. Filho de judeus, aos 16 anos refugiou-se com a família nos Estados Unidos, devido à ascensão do nazismo. Em 1951, Djerassi e outros dois colegas conseguiram sintetizar a noretindrona, que se tornaria o principal componente da pílula. Na década de 80, passou a cultivar a carreira literária, escrevendo romances e peças teatrais. Dia 30, aos 91 anos, de câncer nos ossos e complicações no fígado, na Califórnia. Dalmo Gaspar, ex-lateral-esquerdo, autor do gol de pênalti que deu o bicampeonato mundial ao Santos na vitória de 1 a 0 diante do Milan, no Maracanã, em 1963. Nascido em Jundiaí, Dalmo era um dos astros da estupenda equipe que tinha Pelé, Coutinho e Pepe, entre outros craques. Atuando defensivamente, Dalmo fez apenas quatro gols durante os anos em que vestiu a camisa do time (de 1957 a 1964). Além dos dois mundiais de clubes, conquistou duas Libertadores e cinco campeonatos paulistas. "Lamento ter perdido um grande amigo (...), um lateral como poucos e um homem de grande caráter", declarou Pelé. Batedor "oficial" de penalidades do Santos, o Rei, contundido, não jogou a célebre partida contra o Milan — e, por isso, Dalmo acabou encarregado de fazer a cobrança. Dia 2, aos 82 anos, de complicações do Alzheimer, em Jundiaí. Homero Ferreira, compositor carioca, autor da marchinha carnavalesca Me Dá um Dinheiro Aí (1959). Nascido em uma família de músicos, aprendeu a tocar violão ainda criança. Criou a canção que o tornaria célebre em parceria com os irmãos Glauco e Ivan. A inspiração veio do bordão de um dos quadros que Glauco escrevia para o programa Praça da Alegria, então levado ao ar pela extinta TV Rio. O primeiro a gravar a composição foi Moacyr Franco, que interpretava um mendigo no humorístico. Curiosamente, Homero trabalhou até se aposentar como bancário. Dia 2, aos 86 anos, de causa não divulgada, no Rio de Janeiro 2#3 CONVERSA COM SHEISLANE HAYALLA – JUSTIÇA COM AS PRÓPRIAS MÃOS Ao levar o segundo lugar no Miss Amazonas, ela arrancou a coroa da vencedora. Seu nome é uma releitura de Lislane e Lisliane, irmã e prima. O artístico Hayalla significa "estrela que nunca vai deixar de brilhar. Não foi um abuso arrancar a coroa da vencedora? Há tempos ouvia de cirurgiões plásticos e outros profissionais que trabalham com misses que o concurso estava comprado. Procurei o organizador do evento e ele disse para eu não me preocupar. Quando ela venceu, fiquei indignada. Éramos palhaças num circo armado. Por que acha que merecia ter ganhado o título? Miss deve apoiar causas sociais, ainda mais se tiver dinheiro, como a outra, que é neta de desembargador. Mas eles nunca ajudaram ninguém: enquanto eu apoio duas entidades. Já ganhei o apelido de Miss do Povo e Miss dos Travestis. E em termos de atributos físicos? Tenho espelho em casa e sei que sou bonitinha. Peso 55 quilos e tenho 1,75 metro. Ela tem 5 quilos a mais e não passa de 1,65. Não houve um certo despeito? Acabo de levar também o segundo lugar no Miss Globo Internacional, no Azerbaijão. Se fosse inveja, teria quebrado a coroa no concurso mundial. Vai à Justiça defender sua versão? Só se for processada. Meu advogado está sentadinho, bonitinho, esperando vir processo contra mim. Até hoje, nada. Todas as misses sempre dizem que querem promover a paz mundial. Você prefere o quebra-quebra? Quero promover a verdade. Chega de tramóias. Já recebeu convite de trabalho? Quando me inscrevi no concurso, recebi um da Globo para participar de uma série com o Cauã Reymond. Seria nos mesmos dias da preparação do evento, e desistir dele custaria ao menos 4000 reais. Depois, tive proposta para ser garota-propaganda de roupas e de uma empresa que quer financiar minha carreira. De quem arrancaria a coroa para sempre? Dos políticos. Nada funciona neste país. 2#4 NÚMEROS 9 vezes, em média, aumentou o percentual de pais nos Estados Unidos que não querem que os filhos se casem com alguém que apoie um partido político diferente do seu, de acordo com estudo da Universidade Stanford. Entre os republicanos, esse percentual era de 5% em 1960 e passou para 49% cinco décadas depois. Entre os democratas, ele aumentou de 4% para 33%. 80% dos americanos, se confrontados com a oportunidade de escolher uma pessoa para ajudar, elegeriam alguém que compartilhasse sua preferência partidária. Essa porcentagem supera a de cidadãos propensos a favorecer alguém pelo fato de ser da mesma cor ou etnia - 60%. 50% da propaganda política nos Estados Unidos se destina a atacar os adversários, o que indica forte polarização política. Presente também no Brasil, essa polarização, segundo o estudo de Stanford, está ligada ao avanço das redes sociais, que facilitam o encontro de pessoas partidárias da mesma opinião. 2#5 SOBEDESDE SOBE RISCO DE APAGÃO - O risco de um blecaute no Brasil ultrapassou pela primeira vez desde 2004 o limite de 5%, o teto de segurança, e está em 7,3% ROBÔS CHINESES - Por causa do crescimento da indústria automotiva e do encarecimento da mão de obra, a China investiu em robôs industriais e será o país com o maior número deles em 2017 DIAMANTES - Começaram nas últimas semanas as obras para a instalação da mina de Nordestina, na Bahia, que multiplicará por oito a produção brasileira dessas pedras DESCE "BEBEU, PERDEU" - O governo federal tirou do ar as peças mais infelizes da campanha, como a que mostrava duas garotas rindo de outra com a frase "Bebeu demais e esqueceu o que fez? Seus amigos vão te lembrar por muito tempo" PICASSO - A decisão da neta do pintor de vender o acervo de 10.000 trabalhos do avô deve derrubar os preços do artista no mercado ROBERT MUGABE - Lembrando que no Zimbábue ditadores não caem, o governo de Harare mandou fotógrafos apagar imagens do tropeço que levou ao chão o presidente, há 35 anos no poder 2#6 RADAR LAURO JARDIM ljardim@abril.com.br • BRASIL BALANÇO DA CORRUPÇÃO Depois de a PwC ter se recusado a assinar o balanço da Petrobras sem que a empresa provisionasse os atos de corrupção ocorridos na companhia, agora é a vez da KPMG. A firma de auditoria está exigindo que a Eletrobras e outras estatais de energia provisionem em seus balanços a conta da corrupção. DILMA TEM PRESSA Com o petrolão espalhando óleo sujo para tudo quanto é lado, sobretudo para os lados do PT e de partidos aliados ao seu governo, Dilma Rousseff sabe que não é hora de deixar vaga uma cadeira no STF — e lá há uma vazia desde julho passado, quando Joaquim Barbosa pediu o boné. É no STF que muito do que o país está vendo hoje estarrecido será decidido. Na última quinta-feira, em conversa com o presidente do Senado, Renan Calheiros, no Palácio do Planalto, Dilma foi direto ao ponto: "Se eu mandar ao Senado um nome para o STF, ele será aprovado em quanto tempo?". Respondeu Renan de bate-pronto e, também, sem rodeios: "Depende do nome, presidente". E mais não se conversou sobre o assunto. Ou seja, Dilma não adiantou ali quem ela pretende indicar. • LAVA-JATO NA MIRA A Odebrecht tem informações de que os procuradores, quando negociam delações premiadas dos empreiteiros e operadores presos, pedem sem circunlóquios: "O que você sabe sobre a Odebrecht?". CAIXA DOIS Algumas das empreiteiras encrencadas na Lava-Jato têm um novo mote jurídico para sua defesa — uma tese, aliás, modelada por Márcio Thomaz Bastos para livrar a cara do PT no mensalão. Em resumo, o que vai se alegar é que o crime que cometeram foi de caixa dois. PT, TREMEI O depoimento de novembro que veio a público na quinta-feira não foi o único que Pedro Barusco deu à Justiça. Barusco continua falando. SEM FORO A lista de políticos envolvidos na Lava-Jato que Rodrigo Janot apresentará no fim do mês trará cerca de dez políticos sem mandato — ou seja, sem foro privilegiado. • PSDB NIKI SERRA José Serra tomou posse como senador exibindo uma nova face. A mudança não foi política, mas no rosto mesmo. Em novembro, Serra submeteu-se, no Hospital Albert Einstein, a uma cirurgia plástica facial. Entre os colegas no Senado, muitos o acharam a cara do ex-piloto Niki Lauda. • CÂMARA DEMITA O SECRETÁRIO O empenho do governo para evitar a vitória de Eduardo Cunha beirou o desespero. Fernando Pimentel chegou a receber um telefonema inusitado do Planalto. Nele, exigia-se a demissão de Bernardo Santana, secretário de Segurança de Minas Gerais, que nem um mês no cargo completara. Santana foi indicado pelo PR, que ameaçava pular para o barco de Cunha — como, aliás, pulou. Pimentel conseguiu contornar a situação. • GOVERNO NA GARUPA Dilma Rousseff queimou a perna há duas semanas ao descer da garupa de uma moto no Palácio da Alvorada. Os passeios de Dilma dentro do jardim da residência oficial têm sido frequentes e com diferentes pilotos. • MMA DINHEIRO CONFISCADO Dana White, o chefão do UFC, bloqueou os cerca de 6 milhões de dólares que Anderson Silva receberia por sua volta ao octógono — 800.000 dólares pela luta e o restante oriundo do pay-per-view. Só liberará a grana depois que todo o processo do doping chegar ao fim. • GENTE INFLAÇÃO DO CACHÊ Cauã Reymond está pedindo 1 milhão de reais para começar a conversar com empresas que querem tê-lo como garoto-propaganda. Há quatro anos, antes de Avenida Brasil, portanto, chegou a aceitar 80.000 reais para estrelar campanhas. 2#7 VEJA ESSA EDITADO POR RINALDO GAMA “Prefiro não me ouvir. Já canto e me ouço todo dia. Coloco outro som. Eu cantando para mim mesmo não dá.” - MICHEL TELÓ, cantor, ao revelar, na PLAYBOY de fevereiro, que ele e a mulher preferem o americano John Mayer como trilha sonora romântica “Essa é uma história velha, inflada e 'reciclada'.” - BENJAMIN NETANYAHU, primeiro-ministro de Israel, defendendo, no Facebook, sua mulher, Sara, acusada de ter embolsado o dinheiro arrecadado com a reciclagem de garrafas de bebida compradas com recursos públicos para a residência oficial. “Há todos os motivos para se vacinar, mas não há motivos para não fazê-lo.” - BARACK OBAMA, presidente americano, ao alertar os pais, durante uma entrevista à NBC News, sobre os riscos do surto de sarampo nos EUA. Por motivos religiosos ou apoiadas na ideia de que vacinas provocam autismo, muitas famílias têm se mobilizado contra a vacinação no país. “A epidemia de ebola é pior que a guerra. Na guerra, pelo menos, você podia abraçar as pessoas, consolá-las." - IRMÃ MARIA TERESA MOSER, da Congregação Missionárias da Consolata, que atua na Libéria, na BBC Brasil. “Ajudem-nos a reformar nosso país e deem algum espaço fiscal para fazermos isso, senão continuaremos sufocados e vamos nos tornar uma Grécia deformada em vez de reformada.” - YANIS VAROUFAKIS, ministro grego das Finanças, no britânico Financial Times . “O resto do mundo não pode depender só dos Estados Unidos como motor do crescimento.” - JACK LEW, secretário do Tesouro americano, em documento ao Congresso daquele país. “É muito fácil jogar ao lado do melhor do mundo.” - NEYMAR, craque do Barcelona, referindo-se, durante coletiva, ao argentino Messi — ignorando que há dois anos a Bola de Ouro vem sendo dada ao português Cristiano Ronaldo, do rival Real Madrid. “Vossa Excelência será o presidente dos ilustres senadores que o apoiaram, mas perde a legitimidade para ser presidente dos partidos de oposição.” – AÉCIO NEVES, senador (PSDB-MG), dirigindo-se a Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do Senado, durante a escolha dos cargos da Mesa Diretora da Casa. Renan lançara a candidatura de Vicentinho Alves (PR-TO) para a primeira-secretaria, posto que, pelo critério da proporcionalidade, deveria ficar com o PSDB. “Veja em que conta Vossa Excelência leva a democracia! Por isso deu no que deu! Vossa Excelência perdeu a chance de ser presidente da República porque é estreito!” - RENAN CALHEIROS, respondendo a Aécio Neves. “Perdi de cabeça erguida, e Vossa Excelência venceu (a eleição para a presidência do Senado) envergonhado!” - AÉCIO NEVES, reagindo ao ataque de Renan Calheiros. “Quem se aproxima das chamas pode se queimar. E Nicolás Maduro (presidente da Venezuela) está se aproximando das chamas.” - HENRIQUE CARRILES, governador do Estado de Miranda e o principal líder da oposição venezuelana, na Folha de S.Paulo. “No México moderno, ainda há estados em que a punição por roubar uma vaca é mais severa do que por raptar uma mulher.” - JENNIFER CLEMENT, escritora mexicana, autora de Reze pelas Mulheres Roubadas, que trata do aumento do número de garotas sequestradas em seu país pelo narcotráfico, que as transforma em escravas sexuais, falando ao jornal O Estado de S. Paulo. EPÍGRAFE DA SEMANA A pretexto do peso de conviver com a falta de sanidade — no âmbito da família, da política, do país. “Nos indivíduos, a loucura é algo raro - mas, nos grupos, nos partidos, nos povos, é regra.” - FRIEDRICH W. NIETZSCHE, filósofo alemão (1844-1900). ______________________________________ 3# BRASIL 11.2.15 3#1 O HOMEM DA MOCHILA 3#2 VIGIAR E PUNIR 3#3 AQUI SE FAZ... 3#4 PREGAÇÃO SOLITÁRIA 3#1 O HOMEM DA MOCHILA O PT desviou meio bilhão de reais dos cofres da Petrobras ao longo de dez anos. O dinheiro foi usado, entre outras coisas, para financiar as campanhas eleitorais do partido de 2010 e 2014. DANIEL PEREIRA E ROBSON BONIN Em outubro passado, os investigadores da Operação Lava-Jato, reunidos no quartel-general dos trabalhos em Curitiba, olhavam fixamente para uma fotografia pregada na parede. A investigação do maior esquema de corrupção da história do país se aproximava de um momento decisivo. Delator do petrolão, o ex-diretor Paulo Roberto Costa já havia admitido que contratos da Petrobras eram superfaturados para enriquecer servidores corruptos e abastecer o cofre dos principais partidos da base governista. Na foto afixada na parede, Paulo Roberto aparecia de pé, na cabeceira de uma mesa de reunião, com um alvo desenhado a caneta sobre sua cabeça. Acima dela, uma anotação: "dead" (morto, em inglês). Àquela altura, a atenção dos investigadores estava voltada para os outros personagens da imagem. Era necessário pegá-los para fechar o enredo criminoso. Em novembro, exatamente um ano depois de a antiga cúpula do PT condenada no mensalão ter sido levada à cadeia, o juiz Sérgio Moro decretou a prisão de executivos das maiores empreiteiras brasileiras, muitos dos quais apa aparecem abraçados a Paulinho, sorridentes, na fotografia estampada no Q.G. da Lava-Jato. A primeira etapa da missão estava quase cumprida. Entre os alvos listados na foto, apenas um ainda escapava aos investigadores. Justamente o elo da roubalheira com o partido do governo, o personagem que, sabe-se agora, comprova com cifras astronômicas como o PT — depois de posar como vestal nos tempos de oposição — assimilou, aprimorou e elevou a níveis inimagináveis o que há de mais repugnante na política ao conquistar o poder. Na quinta-feira passada, agentes da Polícia Federal chegaram à casa do tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, com uma ordem judicial para levá-lo à delegacia a fim de prestar esclarecimentos sobre seu envolvimento no petrolão. Vaccari recusou-se a abrir o portão. Os agentes pularam o muro para conduzi-lo à sede da PF em São Paulo. Eles também apreenderam documentos, aparelhos de telefone celular e arquivos eletrônicos. Esse material não tinha nada de relevante. Vaccari, concluíram os agentes, já limpara o terreno. Num depoimento de cerca de três horas, o tesoureiro negou as acusações e jurou inocência. Nada que abalasse o ânimo dos investigadores. No Q.G. da Lava-Jato, um "dead" já podia ser escrito sobre a cara carrancuda do grão-petista. A nova fase da operação foi um desdobramento de depoimentos prestados pelo ex-gerente da Petrobras Pedro Barusco, em novembro, como parte de um acordo de delação premiada. Barusco conquistou um lugar de destaque no panteão da corrupção ao prometer a devolução de 97 milhões de dólares embolsados como propina, uma quantia espantosa para um servidor de terceiro escalão. Ao falar às autoridades, ele disse que o PT arrecadou, entre 2003 e 2013, de 150 milhões a 200 milhões de dólares em dinheiro roubado de noventa contratos da Petrobras. Segundo Barusco, o principal operador do PT no esquema nos últimos anos era Vaccari, chamado por ele de "Mochila", por andar sempre com uma mochila a tiracolo. Barusco contou que o tesoureiro — identificado como "Moch" nas planilhas que registravam o rateio do butim surrupiado — participou pessoalmente das negociações, por exemplo, para a cobrança de propina de estaleiros contratados pela Petrobras. Descendo a detalhes, Barusco narrou ainda uma história que, apesar de envolver um valor bem mais modesto, tem um potencial político igualmente explosivo. O ex-gerente declarou que, em 2010, o então diretor de Serviços da Petrobras, Renato Duque, solicitou ao representante da empresa holandesa SBM no Brasil, Júlio Faerman, 300.000 dólares para a campanha petista daquele ano, "provavelmente atendendo a pedido de João Vaccari Neto, o que foi contabilizado pelo declarante à época como pagamento destinado ao Partido dos Trabalhadores". Em 2010, Dilma Rousseff disputou e conquistou o primeiro de seus dois mandatos presidenciais. A situação do tesoureiro do PT deve se agravar nos próximos dias com o avanço das negociações para o acordo de delação premiada do empreiteiro Ricardo Pessoa, dono da construtora UTC. Pessoa coordenava "o clube do bilhão", o grupo das empreiteiras que desfalcava a Petrobras. Vaccari recorria a ele com frequência para resolver os problemas de caixa do PT. Os dois conversaram várias vezes no ano eleitoral de 2014. Num desses encontros, segundo integrantes da investigação que já ouviram uma prévia das histórias pouco edificantes prometidas por Pessoa, Vaccari negociou com a UTC o recebimento de 30 milhões de reais em doações eleitorais. Cerca de 10 milhões de reais seriam destinados à campanha à reeleição de Dilma Rousseff. Os 20 milhões restantes, distribuídos por Vaccari ao PT e aos partidos da base aliada. A lei não impede a doação privada, desde que declarada — ou feita por dentro, como se diz no jargão. O problema é que, segundo depoimentos formais, como os prestados pelo doleiro Alberto Youssef e pelo empresário Augusto Mendonça, as fornecedoras da Petrobras doaram às campanhas petistas e aliadas dinheiro surrupiado da estatal. O que entrou oficialmente nos cofres do PT foi o produto do roubo planejado e executado pelo partido. A propina foi institucionalizada para ganhar ares de legalidade e burlar a fiscalização da Justiça Eleitoral. Nunca antes na história deste país a ousadia foi tamanha. Pessoa também está disposto a implicar na trama o tesoureiro da campanha à reeleição de Dilma, Edinho Silva, parceiro de Vaccari na coleta de doações eleitorais. Conforme VEJA revelou na edição passada, o empreiteiro contou a amigos que teve uma reunião em São Paulo com Luciano Coutinho, presidente do BNDES, a oito dias do segundo turno da eleição presidencial de 2014. Pessoa negociava um financiamento para o consórcio que administra o Aeroporto de Viracopos, do qual a UTC faz parte. Segundo o empresário, no fim da reunião Coutinho lhe disse que Edinho Silva entraria em contato para pedir ajuda financeira à campanha de Dilma. Edinho de fato fez o contato, e a UTC doou mais 3,5 milhões de reais. Coutinho, no entanto, negou ter intermediado a operação. Divulgado apenas na semana passada, o depoimento de Barusco também traz informações preciosas sobre Renato Duque, ex-diretor de Serviços da Petrobras, apelidado por ele de My Way, título de uma música de Frank Sinatra. Indicado pelo ex-ministro José Dirceu e amigo de Vaccari, com quem mantinha encontros frequentes, Duque embolsou 40 milhões de dólares em propina, segundo Barusco. O servidor também contou que costumava pagar quantias semanais em espécie ao ex-diretor. Para tanto, chegou a guardar em casa 3 milhões de reais em dinheiro vivo, valor que foi transferido para o exterior diante do cerco das autoridades. De acordo com Barusco, Duque sempre recorria a terceiros para receber a propina e era muito desorganizado no controle de suas contas pessoais. Certa vez, teria depositado 6 milhões de dólares no exterior por orientação de um tal "Roberto", que depois teria sumido com o dinheiro. Ladrão que rouba ladrão... Barusco era o braço-direito de Duque na diretoria e na operação clandestina. Não se mostrava insatisfeito por trabalhar com ele. Com relação a Vaccari, a postura era um pouco diferente. Barusco admitiu que, num dos acertos com um grupo de empresários, recebeu um valor por fora, que não era do conhecimento de Vaccari. O adicional foi negociado diretamente com os corruptores porque o ex-gerente não concordava com a divisão estabelecida pelo tesoureiro. Ladrão roubando ladrão... Ex-servidores da Petrobras e empreiteiros não querem pagar sozinhos pelos crimes bilionários cometidos no petrolão. Alegam que o megaesquema de corrupção na maior empresa brasileira não funcionaria com tantos tentáculos, e durante tantos anos, sem o conhecimento do governo. Escaldados pelo julgamento do mensalão, eles não aceitam receber as maiores penas enquanto o que chamam de topo da organização fica impune ou sujeito a penalidades brandas. Querem a ajuda da cúpula do PT e do governo, sobretudo do ex-presidente Lula e de Dilma Rousseff, na defesa diante dos tribunais. Do contrário, ameaçam implicar os dois diretamente no caso. A lógica é simples: ou todos se salvam ou todos morrem afogados. Por enquanto, tais apelos não surtiram efeito. Lula tem se recusado a receber executivos antes considerados aliados de primeira hora. Já o governo Dilma alega que os desfalques bilionários são de responsabilidade da gestão comandada pelo antecessor. O PT também ofende a inteligência alheia. Esquecendo-se do mensalão, que, segundo o próprio partido, era um esquema de caixa dois, seus dirigentes agora afirmam que nunca receberam doação ilegal. Na semana passada, o PT ainda teve coragem de comemorar seus 35 anos de fundação com aplausos a Vaccari, e o líder-mor do partido não se constrangeu em defendê-lo. A estrela, que já simbolizou a esperança dos brasileiros em tempos mais republicanos na política, cedeu lugar à mochila, à cueca e a tudo aquilo que guarde dinheiro sujo. A festança petista, que contou com a presença de Lula, Dilma e Moch, esconde uma enorme tensão nos bastidores. A maior parte dos protagonistas do petrolão presos preventivamente continua encarcerada, os pedidos de habeas corpus são rejeitados sucessivamente pela Justiça e novas prisões não estão descartadas. Alegria, por ora, só naquela imagem afixada na parede. O PT, DO TESOUREIRO JOÃO VACCARI, RECEBEU 200 milhões de dólares da Petrobras. PAULO ROBERTO COSTA, EX-DIRETOR DE ABASTECIMENTO, RECEBEU PELO MENOS 28 milhões de dólares em propina. RENATO DUQUE, EX-DIRETOR DE SERVIÇOS, RECEBEU PELO MENOS 40 milhões de dólares em propina. NESTOR CERVERÓ, EX-DIRETOR INTERNACIONAL, RECEBEU PELO MENOS 30 milhões de dólares em propina. JÚLIO FAERMAN, LOBISTA DA EMPRESA SBM, TERIA DOADO CLANDESTINAMENTE 300.000 dólares à campanha do PT em 2010. EM DÓLAR - Júlio Faerman, lobista da holandesa SBM: plataformas, propina e "reforço" para a campanha eleitoral do PT. RICARDO PESSOA, DONO DA EMPREITEIRA UTC, ACERTOU COM VACCARI A “DOAÇÃO” DE 30 milhões de reais à campanha do PT e aliados em 2014. PARCERIA - Ricardo Pessoa, dono da UTC: acertos com Vaccari de obras superfaturadas e repasses de dinheiro para a campanha. PEDRO BARUSCO, EX-GERENTE DE SERVIÇOS, RECEBEU PELO MENOS 98 milhões de dólares em propina. CONFISSÕES - Em acordo de delação, Pedro Barusco, ex-gerente da Petrobras, contou que o esquema de corrupção continuou ativo mesmo depois da Operação Lava-Jato. A propina era negociada em investimentos da empresa Sete Brasil criada durante o governo Dilma para explorar o pré-sal. FIDELIDADE - O ex-presidente Lula disse a amigos que, quando se ataca um companheiro, na dúvida ele fica com o companheiro. O companheiro em questão é João Vaccari, o "Moch". COM REPORTAGEM DE RODRIGO RANGEL E HUGO MARQUES 3#2 VIGIAR E PUNIR A história do gerente da Petrobras que, assim como Venina Velosa, foi punido por fazer um dossiê revelando as traquinagens de Renato Duque, o homem de José Dirceu na estatal. THIAGO PRADO Na Petrobras dos últimos anos, denunciar internamente falcatruas lá cometidas se tornou sinônimo de problemas — não para os malandros que as fazem, mas para aqueles que queriam varrê-las para longe da estatal. A ex-gerente executiva de Abastecimento Venina Velosa que o diga. Descobriu em 2008 uma série de contratos superfaturados na empresa e acabou transferida para um período de inatividade na distante Singapura. Desde 7 de janeiro, os procuradores responsáveis pela Operação Lava-Jato depararam com outro exemplo de funcionário que foi para a geladeira por ser curioso demais. Trata-se de Fernando de Castro Sá, ex-gerente jurídico da diretoria de Abastecimento, aquela comandada pelo notório Paulo Roberto Costa, com 21 anos de serviços prestados à Petrobras. VEJA teve acesso às denúncias feitas por Castro Sá dentro da Petrobras, um dossiê de mais de 500 páginas em que questionava os rumos da Diretoria de Serviços, comandada por Renato Duque entre 2003 e 2012. O material foi entregue por Castro Sá em 2009 ao então gerente executivo da área jurídica, Nilton Maia, subordinado direto do ex-presidente José Sérgio Gabrielli. O "pecado" do denunciante, que só agora vem à tona, foi questionar milionários acréscimos de preço em obras e a atuação do clube das empreiteiras na Petrobras. O calvário de Castro Sá teve início quando decidiu não dar um parecer favorável à assinatura de três aditivos para os serviços de terraplenagem da Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco. Era um contrato de 429 milhões de reais, que estava nas mãos da Odebrecht, Queiroz Galvão, Camargo Corrêa e Galvão Engenharia. De acordo com o trâmite normal de qualquer empresa, um aditivo só é pago depois da assinatura formal dos responsáveis pelo gasto. Na inacreditável Petrobras dos tempos de Duque e Gabrielli, não. Um dos aditivos denunciados por Castro Sá foi celebrado em janeiro de 2009, cinco meses antes da assinatura que o autorizou. Foi por detectar o descontrole que o ex-gerente irritou seus superiores. Em paralelo a esse questionamento, Castro Sá vinha alertando a empresa sobre os prejuízos causados pelos memorandos firmados entre a Petrobras e a Associação Brasileira de Engenharia Industrial (Abemi), presidida por Ricardo Pessoa, da UTC. Na teoria, a parceria visava a melhorar o desempenho e o cumprimento dos contratos. Na prática, o clube das empreiteiras começava a dar as cartas em todas as condições de pagamento na estatal. Procedimentos foram criados, por exemplo, para facilitar a remuneração de obras afetadas por chuvas. A ousadia do gerente teve um preço. Dias depois das denúncias, foi exonerado da função pelo superior Maia, teve a remuneração cortada de 28.000 reais para 7000 reais e passou a trabalhar em uma sala sem computador. Mais: chegou ao cúmulo de responder a uma sindicância na Petrobras. As práticas de intimidação não pararam por aí. Em uma ocasião, Paulo Roberto Costa insinuou que o dossiê não passava de uma tentativa de chantagem. Foi o estopim para Castro Sá ameaçar levar o seu caso para a imprensa. O ardil fez efeito. Como em um passe de mágica, semanas depois, Nilton Maia lhe comunicou que a sindicância estava encerrada. Durante anos, os funcionários da Petrobras foram constrangidos a não denunciar os esquemas de corrupção na estatal. Venina, por exemplo, contou que certa vez Paulo Roberto Costa a chamou em uma sala, apontou para a foto de Lula na parede e perguntou: "Você quer derrubar todo mundo?". Agora que o escândalo do petrolão explodiu, Venina conclamou os funcionários da Petrobras a criar coragem para falar tudo o que sabem. Castro Sá foi o primeiro. Quem será o próximo? 3#3 AQUI SE FAZ... ...e aqui se paga. É o que a Justiça quer garantir ao bloquear 282 milhões de reais de membro do TCE e da empresa que ele teria favorecido. É mais fácil o metrô de São Paulo passar um ano sem registrar nenhum atraso do que um caso de corrupção terminar com a recuperação do dinheiro roubado. Para fugir a essa regra, a Justiça determinou o bloqueio de 282 milhões de reais em contas da multinacional francesa Alstom, do conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Estado Robson Marinho e de outros nove envolvidos em um escândalo cujas origens remontam ao início dos anos 1980. O dinheiro bloqueado corresponde ao valor atualizado, até junho de 2014, de dois contratos que a Alstom firmou com duas empresas estatais de energia do governo paulista em 1983, no total de 223 milhões de reais. O acordo nunca saiu do papel e os contratos acabaram vencendo, mas a Alstom insistia em validá-lo e, para isso, recorreu ao TCE. Em 1998, o tribunal decidiu a questão em favor da empresa, contra a opinião de técnicos, que defendiam a anulação dos contratos e a abertura de uma nova licitação. Para a sua vitória, a multinacional contou com o fundamental apoio de Marinho. Ex-chefe da Casa Civil do tucano Mário Covas e conselheiro do TCE, ele foi o relator do processo. Os anos se passaram e uma investigação do Ministério Público Estadual iniciada em 2008 concluiu que Marinho recebeu uma propina de 2,7 milhões de dólares, na Suíça, para tomar a decisão que favoreceu a empresa francesa. A Alstom está envolvida em outro escândalo de corrupção no Brasil, o do cartel de trens e metrô em São Paulo, descoberto depois que a empresa alemã Siemens fez um acordo de leniência com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), em 2013. No despacho que determinou o bloqueio das contas do conselheiro, da empresa francesa e de outros envolvidos no caso, a juíza Maria Gabriella Pavlópoulos Spaolonzi afirmou que as tentativas de Marinho de desfazer-se de seu patrimônio, como pôr à venda sua casa de praia em Ubatuba, no Litoral Norte de São Paulo, além das "dificuldades com as quais o cenário econômico acena para empresas instaladas no Brasil", justificam a necessidade da medida. Agora, a Justiça vai rastrear os bens e contas dos atingidos pelo bloqueio para saber quanto sairá dos bolsos de cada um. Marinho foi afastado do cargo de conselheiro do TCE em agosto de 2014. PIETER ZALIS 3#4 PREGAÇÃO SOLITÁRIA O agora senador Antônio Reguffe pretende economizar 16 milhões de reais dos cofres públicos. Como? Dispensando mordomias e cortando exageros que o cargo oferece. José Antônio Reguffe se tornou um especialista na arte de criar constrangimentos a seus pares. Em 2006, quando foi eleito deputado distrital em Brasília, seu primeiro ato foi renunciar às mordomias e aos benefícios do cargo. Nada de carro, motorista, verba indenizatória ou 14º e 15º salários. Enfrentou como consequência a indiferença dos colegas, mas a iniciativa repercutiu bem. Na eleição seguinte, em 2010, tentou uma vaga no Congresso e acabou sendo o deputado federal mais votado do país em números proporcionais. Na Câmara, repetiu o exemplo. Dispensou assessores, devolveu passagens de avião, recusou cotas e auxílios disso e daquilo. Resultado: apesar das ácidas críticas dos parlamentares, em 2014 ele saiu das urnas com o título de mais jovem senador da história do Distrito Federal. Na semana passada, logo depois da posse no novo cargo, Reguffe anunciou que estava abrindo mão de uma série de regalias destinadas aos nobres senadores. Em caráter irrevogável, ele não aderiu ao plano de saúde que reembolsa serviços médicos sem nenhum limite. Zerou os gastos com verba indenizatória e passagens aéreas — respectivamente, 15.000 e 6000 reais por mês. Cortou pela metade os gastos com funcionários do seu gabinete, reduzindo o total de assessores de 55 para doze. E, como fizera na Câmara, abdicou do auxílio-moradia de 3800 reais — uma ajuda esdrúxula para os parlamentares da capital. Durante a campanha, Reguffe foi duramente criticado pelos adversários. "Ele usa a austeridade como demagogia. Em oito anos como parlamentar, não aprovou nenhum de seus 34 projetos", disse, durante a campanha, o então candidato do PT ao Senado, Geraldo Magela. O petista, que tinha a máquina do governo a seu dispor, terminou a disputa em terceiro lugar — e gastou 3,8 milhões na campanha, dez vezes o orçamento declarado por Reguffe. Diante da aprovação nas urnas, o novo senador do PDT não pensou duas vezes: "Se os colegas fizerem a mesma coisa, economizaremos mais de 1 bilhão de reais dos impostos pagos pela população". Na semana passada, Reguffe chegou ao Senado dirigindo o próprio carro. Foi barrado pelos seguranças e teve de se identificar para entrar no prédio, algo que não acontece com os parlamentares que desembarcam do carro oficial com motorista. A austeridade do senador não poupou nem sua esposa. Embora trabalhasse no Congresso havia anos, ela pediu demissão para evitar insinuações de nepotismo. NA PONTA DO LÁPIS Se a iniciativa de cortar alguns custos fosse imitada pelos demais oitenta senadores, o Parlamento economizaria 1,3 bilhão de reais nos próximos oito anos Redução de funcionários 10,7 milhões Passagens aéreas Salários extras 135.000 Plano de saúde Verba indenizatória 2 milhões Auxílio-moradia 365.000 Carro oficial Auxílio-alimentação 3,4 milhões Total: 16,6 milhões de reais ADRIANO CEOLIN _______________________________________ 4# ECONOMIA 11.2.15 É ÓLEO E ÁGUA A Petrobras precisa estancar os prejuízos para salvar a sua parte saudável. Essa será a missão de seu novo presidente. MALU GASPAR As virtudes da empresa... Produção: 2,2 milhões de barris de petróleo ao dia, o maior volume entre as empresas de capital aberto Reservas provadas: 16,6 bilhões de barris Dinheiro em caixa: 62 bilhões de reais Plataformas (Brasil): 126 Patentes registradas: 100 ano, em média ... e onde ela perde dinheiro Dívida líquida: 260 bilhões de reais, a maior do mundo entre as empresas não financeiras Valor de mercado: 126 bilhões de reais (230 bilhões de reais de perdas durante a gestão Graça Foster) Populismo: 60 bilhões de reais de prejuízo com a venda de combustíveis subsidiados Corrupção: 4 bilhões de reais de perdas estimadas Politicagem: 3 bilhões de reais de perdas com os projetos das refinarias no Maranhão e no Ceará A Petrobras, em seus mais de sessenta anos de história, nunca havia passado por crise semelhante. A empresa parece fazer água por todos os lados. A cada semana de investigação das autoridades federais, fica mais explícita a gravidade da expropriação de seu patrimônio, na última década, para alimentar a corrupção. Os prejuízos causados por decisões empresariais equivocadas ou meramente motivadas por interesses politiqueiros também provocaram uma sangria bilionária em seus cofres. Nos três últimos anos, suas ações caíram 65%, o que representou uma perda de 230 bilhões de reais em seu valor de mercado. Não obstante, em meio a toda essa tormenta sem precedentes, a empresa vem acumulando recordes de produção petrolífera e é hoje a maior produtora mundial, entre as companhias de capital aberto. Com a saída de Graça Foster, esperava-se que o governo encontrasse um substituto de competência inequívoca para assumir a presidência, um executivo capaz de estancar os rombos que fazem a Petrobras perder dinheiro e comandar o plano de investimentos necessários para ampliar a produtividade na exploração. Acima de tudo, os investidores ansiavam por ver a companhia sob o comando de uma administração com autonomia para trabalhar em busca de resultados financeiros positivos, e não submissa às vontades do Planalto. Depois de muita especulação e informações desencontradas sobre quem seria o sucessor de Graça Foster, o governo anunciou na sexta-feira a indicação de Aldemir Bendine, até então o presidente do Banco do Brasil, para assumir a Petrobras. Bendine, que fez toda a carreira no BB e possui experiência nula na indústria do petróleo, poderá comprovar, com o tempo, se foi uma escolha acertada de Dilma Rousseff. Mas, nas atuais circunstâncias, a sua indicação representou uma grande frustração para os investidores. A reação beirou o escárnio. A interpretação é que o Planalto enviou ao mercado e ao país uma mensagem explícita: não abre mão de controlar, no cabresto, o que se passa na empresa, mesmo que isso possa significar um passo a mais em direção ao fundo do poço. As ações da estatal caíram 6,52% depois do anúncio e estão próximo de seu menor valor em dez anos. "A presidente escolheu um sujeito submisso a ela, e o nome de Bendine foi vazado antes mesmo da reunião do conselho", afirma o analista Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura. "A indicação demonstra que a presidente parece não entender a gravidade da situação enfrentada pela Petrobras." Bendine subiu à presidência do Banco do Brasil pelas mãos do ex-ministro Guido Mantega, cumprindo o papel de reduzir as taxas de juros dos financiamentos, como determinado pelo governo — o que resultou na redução da rentabilidade do banco. Tais credenciais mostram que Bendine dificilmente comandará com autonomia a Petrobras. E o que é mais complicado ainda: dado o contexto interno da estatal, terá sérios problemas para exercer o comando sobre seus funcionários mais capacitados, que já se encontram em um estado de frustração profunda diante dos desmandos dos últimos anos. Em resumo, no atual contexto, em que a diretoria executiva, eminentemente técnica, decidiu renunciar por causa de seu confronto aberto com o governo, será dificílimo para Bendine controlar a Petrobras. Um episódio ocorrido na semana passada dá a medida da animosidade que aguarda o novo presidente da estatal. Ao recusar o convite para integrar o comando da empresa, uma funcionária de alto escalão explicou a razão, apontando para o retrato de Dilma na parede do escritório: "Não confio nesse governo". A amigos, um dos diretores demissionários desabafou: "A Dilma pensa que é presidente da Petrobras e que pode controlar a empresa de Brasília. Não pode". As atribulações políticas ocorrem em um momento delicado. A companhia sofre de um endividamento colossal e precisa limpar não só o balanço, mas o dia a dia de suas operações, das influências nefastas que a colocaram no epicentro do maior escândalo de corrupção do Brasil. A saída de Graça Foster, que estava programada para março, foi precipitada justamente pela divergência entre o governo e a diretoria em torno de um número que quantificasse com exatidão a sangria de ativos e recursos provocada pelo petrolão. O capítulo final dos três anos de Graça e sua equipe ocorreu depois da divulgação de uma estimativa de 88,6 bilhões de reais em desvalorização de ativos da empresa, entre outros motivos, por causa do pagamento de propinas e de contratos superfaturados. Para o Planalto, a divulgação desse número foi um equívoco, porque a contabilidade seria imprecisa, e apenas serviu para alimentar especulações. Com Bendine, um homem de total confiança, o governo influirá diretamente na apuração dos prejuízos. A tarefa nada fácil será chegar a um método contábil e a um número que possam ser avalizados por uma auditoria independente. Funcionário de carreira do Banco do Brasil, onde começou como estagiário, Aldemir Bendine, chamado de Dida pelos amigos, ocupava a presidência da instituição desde 2009. Em sua gestão, expandiu a concessão de empréstimos e ampliou o patrimônio do banco, em um período no qual os concorrentes privados, temendo o aumento da inadimplência, reduziram a liberação de financiamentos. Aos olhos do governo, os resultados obtidos por Bendine foram exemplares, mas ele também acumulou problemas nesses últimos seis anos. Em 2011, a aquisição do Banco Postal por 2,3 bilhões de reais, sem a contratação de um parecer técnico, foi questionada pelo Ministério Público. Em 2012, Bendine foi multado em 122.000 reais pela Receita, porque o valor de seus bens não batia com os seus rendimentos. Numa transação no mínimo pouco usual para um executivo do setor financeiro, em 2010, o então presidente do BB comprou um apartamento de 160 metros quadrados por 150.000 reais e pagou em dinheiro vivo. À época, corretores avaliavam imóveis semelhantes em pelo menos 300.000 reais. Essas, porém, não são as únicas suspeitas. Na última sexta-feira, o Ministério Público Federal de São Paulo pediu a abertura de um inquérito policial para apurar a concessão de um empréstimo de 2,8 milhões de reais do BB a uma amiga de Bendine, a socialite Val Marchiori, empresária que passou à categoria de subcelebridade emergente depois de participar do programa Mulheres Ricas, da Rede Bandeirantes. Marchiori é mulher do dono do frigorífico Big Frango, de Rolândia, no Paraná, que no ano passado foi comprado pelo grupo Friboi. Bendine está sendo investigado ainda por causa de uma denúncia de seu ex-motorista segundo a qual teria saído de um prédio comercial de São Paulo com uma sacola repleta de dinheiro. Bendine se defende de todas as acusações. Diz que sempre guardou dinheiro vivo em casa, mesmo sendo presidente da maior instituição financeira da América Latina, nega irregularidades no empréstimo a Marchiori e afirma que seu ex-motorista está mentindo. Não se pode antecipar se a nova diretoria diminuirá o aparelhamento partidário a que foi submetida a Petrobras. Por seu comando já passaram nomes como José Eduardo Dutra e Sérgio Gabrielli, filiados ao PT. O comando da área de comunicações está a cargo de Wilson Santarosa, quadro histórico do partido. O PMDB, da base aliada de Dilma, também possui sua cota de nomeações. O ex-senador cearense Sérgio Machado, que deixou a presidência da Transpetro na semana passada, é ligado a Renan Calheiros, o presidente do Senado. Seu sucessor não foi nomeado. Como se diz no mercado financeiro, dinheiro ruim contamina dinheiro bom. Quanto mais a Petrobras demora em se livrar de suas fontes de prejuízo, mais prejudica a sua parte operacional sadia. Sem a publicação de um balanço financeiro auditado, a empresa terá sérias dificuldades para pagar as suas dívidas. Para os analistas, isso significa que existe um risco não desprezível de seus débitos serem cobertos pelo Tesouro, com o dinheiro dos impostos pagos pelos brasileiros. Seria mais um episódio vergonhoso de socialização de prejuízos na história do país. COM REPORTAGEM DE ISABELLA DE LUCA _______________________________________ 5# INTERNACIONAL 11.2.15 AINDA MAIS BRUTAIS Os terroristas do Estado Islâmico queimam vivo um piloto jordaniano e conseguem a proeza de unir contra si inimigos até recentemente irreconciliáveis. FELIPE CARNEIRO Os terroristas sempre usaram métodos horripilantes para espalhar o medo e ganhar poder. O grupo Estado Islâmico (Isis), que domina áreas da Síria e do Iraque e prega um califado sem fronteiras regido por leis religiosas, não tem tido páreo nessa tática. Entre as atrocidades listadas em um relatório da ONU estão a crucificação e o enterro de crianças vivas. As que escapam da morte são vendidas em feiras, treinadas como soldados ou enviadas para a morte com explosivos presos ao corpo. Mulheres sírias e iraquianas são "casadas" a cada noite com um terrorista diferente, numa modalidade hipócrita de estupro coletivo. O mais recente ato de selvageria, gravado em vídeo e divulgado na internet na semana passada, cruzou os limites até mesmo para os padrões consagrados do jihadismo, que mata mais muçulmanos do que membros de qualquer outro grupo religioso. As imagens mostram os integrantes do Isis ateando fogo a um prisioneiro enjaulado, o piloto jordaniano Muaz Kasasbeh. Em câmera lenta, com uma trilha sonora hipnótica ao fundo, as chamas avançam em direção à gaiola, alastram-se pelo piso e sobem pela roupas do homem. Ele se desespera, urra, bate as mãos contra as barras de ferro e ajoelha-se para morrer. Por fim, uma escavadeira despeja entulho sobre seu corpo. A cena de horror teve impacto principalmente na Jordânia, a terra natal de Muaz. O país árabe, governado pelo rei Abdullah II, estava sob pressão para abandonar a coalizão de nações lideradas pelos Estados Unidos que desde agosto bombardeia acampamentos, centros de treinamento e armazéns com arsenal do Estado Islâmico. A morte de Muaz tinha potencial para intensificar a oposição da população jordaniana aos bombardeios na Síria. O rei apelou para o princípio do "olho por olho, dente por dente" para conseguir o efeito contrário: unir as principais tribos no combate ao Isis. "Nossa guerra será implacável e vai atingi-los em seu próprio território", prometeu Abdullah. Em seguida, sua Força Aérea retomou os ataques. Entre as vítimas, segundo o Isis, estava a refém americana Kayla Mueller, que trabalhava com ajuda humanitária. A reação do reino hachemita, porém, está longe de selar o fim do Estado Islâmico. Primeiro, porque a Jordânia não tem a força militar necessária para isso. Mesmo os bombardeios de retaliação da semana passada só foram possíveis com o apoio logístico dos Estados Unidos e com a consultoria de inteligência de Israel. Segundo, porque a única maneira de vencer o Estado Islâmico é com uma invasão por terra. Os bombardeios aéreos só servem para destruir a infraestrutura militar e as fontes de renda do grupo. O Exército mais capacitado para essa missão é o dos Estados Unidos. O problema é o que vem depois — anos de atoleiro no Afeganistão e no Iraque eliminaram qualquer apetite dos americanos por enviar tropas ao mundo islâmico. Só resta aos Estados Unidos dar apoio militar, incluindo o envio de armas, às forças regionais que já combatem o Isis. Essa cooperação é feita com o Exército iraquiano e com as milícias curdas. Quem está em melhores condições para lutar contra o Isis, porém, é o Exército do ditador sírio Bashar Assad — cujo regime os Estados Unidos vêm tentando derrubar por meio da ajuda militar aos rebeldes sírios não islamistas. Se a prioridade é destruir o Isis, porém, não é absurdo imaginar que os americanos tenham de cooperar diretamente com as forças de Assad em um futuro próximo. "Só conseguimos derrotar o Talibã no Afeganistão porque apoiamos o Exército local, que lutou por terra, enquanto dávamos apoio aéreo", diz Steven Bucci, ex-comandante das Forças Especiais do Exército americano. A luta contra o Isis já criou outras alianças bizarras. Em setembro passado, a Jordânia libertou da prisão Abu Qatada, um ideólogo e recrutador da Al Qaeda, o grupo terrorista do falecido Osama bin Laden, que tem criticado os métodos do Isis. Na semana passada, o rei soltou mais um alqaedista, o xeque Abu Mohammad Maqdisi. Estranho mundo em que mentores da Al Qaeda se tornam porta-vozes da moderação. ________________________________________ 6# GERAL 11.2.15 6#1 GENTE 6#2 ESPORTE – A MENTIRA DO CAMPEÃO 6#3 CRIME – O BANDIDO E SEU LABIRINTO 6#4 SOCIEDADE – UM DILEMA ÉTICO FALSO E EXAGERADO 6#5 ESPECIAL – ESQUIZOFRENIA – O PESADELO ACORDADO 6#6 ESPECIAL – ESQUIZOFRENIA – O TERROR SILENCIOSO 6#1 GENTE JULIANA LINHARES. Com Danielle De Caprio e Thais Botelho FAMÍLIA CINCO-ESTRELAS Mudanças tectônicas estremecem o clã Meneghel. A mais transformadora abrange as negociações de XUXA para trocar a Globo pela Record, com salário especulado de 1 milhão de reais por mês e planos de um programa à la Ellen DeGeneres. Já o mundo de sua filha, SASHA, passa por transições adequadas à idade. Aos 16 anos, ela apareceu ao lado da mãe num baile em Miami, como uma visão de encantadora — e quase adulta — beleza, envolta num vestido vermelho de parar a festa. Sasha ganhará em maio um segundo irmão por parte do pai, o ator Luciano Szafir, e não pretende mais seguir carreira no vôlei profissional. Não faltarão opções, embora Xuxa diga que a filha é tímida e não se vê no centro das atenções. "No baile, as garotas passavam direto pela Xuxa para fazer selfie com ela", diz o maquiador Ton Reis. TEÓRICO DA JOGATINA MÁGICA A esquerda toda está louquinha por ele — e uma parte da direita também, por outros motivos. O bonitão YANIS VAROUFAKIS, ministro das Finanças do novo governo da Grécia, pertence a uma espécie de PSOL helênico e aspira a ser um porta-voz do hoi polloi, embora esteja mais para hoi oligoi, a elite globalizada atual: estudou na Inglaterra, deu aulas na Austrália e no Texas, disserta sobre a teoria dos jogos, foi da diretoria de um gigante americano dos games e se descreve com um oximoro — "marxista libertário". A mulher é artista plástica, loira e rica. Ele estreou no circuito Londres, Roma e Berlim de terno agarradinho, sem gravata e com a proposta de achar uma solução mágica para a dívida grega. Wolfgang Schäuble, o ministro das Finanças da Alemanha, pacientemente explicou: "Promessas eleitorais feitas à custa de terceiros não são realistas". DE BOLA CHEIA Com um deus no armário e uma deusa na retaguarda. TOM BRADY está tranquilo no olimpo do esporte americano: já se igualou ao maior quarterback da história do futebol nativo ao salvar a pátria dos Patriots, o time pelo qual conquistou o quarto campeonato. O deus é Ganesh, o "removedor de obstáculos", divindade indiana com cabeça de elefante que ele guarda no vestiário, entre bilhetes de seu preparador físico e espiritual, Alex Guerrero. A deusa, todo mundo sabe, é GISELE BÜNDCHEN, que aguentou firme ao lado do marido toda a crise das bolas suspeitamente desinfladas, que poderia acabar com a reputação e a carreira dele. Aos 37 anos, ele certamente vai adiar os planos de aposentadoria, e ela ainda precisa se manter no posto de modelo mais bem paga do mundo antes de realizar o sonho de viver "descalça, cercada por animais, numa casa de árvore, feito Tarzan e Jane". Mas um bom tempinho sobrará ao campeão para ensinar jogadas ao filho mais velho, JOHN, de uma relação anterior, e atrair o mais novo, BENJAMIN, que "não liga muito" para o futebol americano. KÁTIA EM DIA DE KATE Quantas mulheres não têm o sonho secreto de viver um dia de princesa? Realizá-lo aos 53 anos é um direito inalienável, exercido em todos os rendados detalhes por KÁTIA ABREU. A ministra da Agricultura foi conduzida ao altar pelos filhos do primeiro casamento, IRAJÁ, deputado, e IRATÃ, vereador, ambos de Tocantins. O marido, Moisés Gomes, engenheiro da Agência Nacional de Águas, possivelmente nem notou que o vestido de 6 metros de renda lembrava o usado por KATE MIDDLETON. "Levou dois meses para ficar pronto", conta a estilista Wanda Borges. Seus modelos custam a partir de 20.000 reais, mas o de Kátia foi um presente. Os brincos de pérolas (14.300 reais) são obra da filha de Wanda, que desenhou as jóias. Dilma Rousseff, de caftã roxo com rendas e ainda acalorada pela derrota na votação da presidência da Câmara, anunciou à noiva, que se arrumava: "Perdemos, Kátia. Eduardo ganhou". Em seguida, a amizade falou mais forte: "Mas você está linda, magra!". 6#2 ESPORTE – A MENTIRA DO CAMPEÃO Pego em um exame antidoping ao retornar aos ringues, o brasileiro sinônimo de MMA pode entrar para a galeria dos ídolos caídos, ainda que consiga provar inocência. FERNANDA ALLEGRETTI E RENATA LUCCHESI “Quem supera vence", acreditava o gênio alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832). A frase — com o perdão da referência nobilíssima diante de um tema bruto — parecia moldada à perfeição para explicar o retorno aos ringues do brasileiro Anderson Silva, ex-campeão de MMA, sigla em inglês para artes marciais mistas, depois de treze meses. Não era para menos: após perder o cinturão dos pesos-médios do UFC para o americano Chris Weidman, em julho de 2013, Anderson, o Spider, como é conhecido, voltou a enfrentá-lo em dezembro do mesmo ano. Num chute, contudo, teve fraturada a perna esquerda. Desde então, não fez outra coisa a não ser empenhar-se na recuperação para voltar ao octógono. Ao derrotar por pontos, no domingo 1º de fevereiro, o americano Nick Diaz, ele parecia ter alcançado a tal superação de que se falou no início deste texto. Parecia. Flagrado no exame antidoping na terça-feira 3, corre o risco de ir à lona, independentemente do fato de conseguir ou não provar sua inocência. Não é difícil entender o porquê. Tido como um atleta-modelo — seja por suas recorrentes declarações em favor de um esporte "limpo", seja por sua postura politicamente correta —, Spider tem sobre si agora uma sombra que não combina com os ídolos. O lutador submeteu-se a testes antidoping nos dias 9, 19 e 31 de janeiro. No primeiro deles foi detectada a presença das substâncias drostanolona e androsterona, esteroides proibidos dentro e fora do período de competições. Anderson será ouvido no dia 17 pela Comissão Atlética de Nevada, órgão governamental que regula a modalidade. Se for considerado culpado, poderá receber suspensão de nove meses a um ano, além de multa. A luta na qual derrotou Diaz — que, aliás, também foi pego no antidoping (pelo consumo de maconha, e pela terceira vez!) — talvez tenha o resultado anulado. A comissão, por meio de seu diretor executivo, Bob Bennett, afirmou ao jornal Folha de S.Paulo que, em vez de ter terminado com a vitória do brasileiro, o combate pode passar a ser considerado "sem resultado". As duas substâncias que apareceram no exame antidoping de Silva são esteroides derivados da testosterona. "Não há outro objetivo quando se usam esteroides senão o aumento da massa muscular e da força", explica o fisiologista Turibio Leite de Barros, especializado em medicina esportiva. "A dúvida é como a drostanolona e a androsterona foram tomadas. Pode ser, sim, que tenha havido contaminação ou que alguém tenha administrado as substâncias sem ele saber, mas, para o doping, não importa a intenção nem a quantidade. Importa se o exame deu positivo ou negativo." Especula-se que, no afã de superar a lesão que o afastara das lutas, postergar a aposentadoria — está com 39 anos — e voltar ao topo do esporte que o levou a conquistar milhares de fãs mundo afora, até mesmo entre pessoas que nada entendem de MMA, Spider tenha decidido recorrer à urgência dos esteroides. O doping é um problema incrustado no MMA. Desde dezembro de 2013, quando as comissões atléticas que regulamentam a modalidade aumentaram o número de testes feitos fora do período de competições, uma alta porcentagem de atletas já foi pega. De dezesseis lutadores submetidos a exames minuciosos, cinco — ou 31% deles — testaram positivo para esteroides ou drogas recreativas. Dentro da modalidade, o caso Anderson Silva está longe de ser algo isolado. Jon Jones, Chael Sonnen e Vitor Belfort protagonizaram rumorosos flagrantes. Fora do octógono, vale lembrar ídolos como o argentino Maradona, cuja imagem deixando o campo na Copa dos EUA, em 1994, para um exame que atestou o uso de cinco substâncias proibidas é para lá de melancólica. O ciclista americano Lance Armstrong, considerado um herói após vencer sete vezes a Volta da França e um câncer nos testículos, também se viu obrigado a abandonar os esportes depois da confirmação de que usava testosterona sintética e outras drogas. O ciclista não se arrependeu. Em entrevista recente à BBC, declarou que faria tudo de novo, já que, na época, o uso de doping era "disseminado". Spider pode não ser um trapaceiro profissional como Armstrong, no entanto, precisará provar isso. Por meio de seu empresário, Ed Soares, o lutador declarou que não havia consumido nenhuma droga e que sua posição sobre doping continuava a mesma. O depoimento oficial de Anderson só deve ocorrer após a conclusão do caso — o lutador pode requerer contraprova. Se for inocentado, será, sem dúvida, uma superação. Mas talvez ela não se pareça nunca com uma vitória. O UFC já acusou o golpe. 6#3 CRIME – O BANDIDO E SEU LABIRINTO Criminoso mais procurado do Brasil, Playboy, o chefão do tráfico e do roubo de carga que manda e desmanda na favela com a conivência de policiais corruptos, fala a VEJA e diz que está pensando em se entregar. LESLIE LEITÃO Por fora, a casa de dois cômodos incrustada no alto de uma ladeira em nada se distingue das demais moradias do Morro da Pedreira, um dos mais perigosos do Rio de Janeiro, na Zona Norte. O bandido mais procurado do Brasil poderia estar em qualquer uma delas. Mas, aos poucos, quem segue pelo labirinto de ruelas rumo ao esconderijo do traficante que manda naquela área percebe que a casa no alto da favela é especial. O caminho ladeira acima é balizado por jovens com fuzis. Eles fazem a guarda de Celso Pinheiro Pimenta, o Playboy, por cuja captura se oferece recompensa de 50.000 reais. Playboy tem 32 anos. Há dezessete está no crime. Em dezembro, seu bando invadiu um galpão do departamento de trânsito da cidade e roubou 197 motos. Pouco antes o grupo havia tomado uma piscina pública, pulado na água com fuzis e se exibido para as próprias câmeras em uma coreografia sinistra de nado sincronizado. As imagens de escárnio chocaram os brasileiros e, exibidas na internet, envergonharam o Brasil no exterior. O óbvio apelido de Playboy lembra a origem de garoto de classe média da Zona Sul que escolheu o caminho do crime, subiu na hierarquia e hoje é o número 1 do morro, que ele comanda usando a combinação clássica: assistencialismo e terror. Compra a liberdade a preço alto, pago em dinheiro a policiais corruptos. Nesta entrevista a VEJA, Playboy pondera os riscos para sua vida e avalia a hipótese de se entregar à Justiça: "Não é por mim, que sou traficante, mas pela minha família". Com 1,70 metro, pele amarelada, dentes brancos e bem cuidados e uma conversa que denota certo estudo, apesar da frequente omissão dos plurais, o traficante que comanda atualmente o maior esquema de roubo de cargas do país conta que viu o cerco policial apertar depois dos episódios em que sua gangue zombou do poder público. A coisa agravou-se com a guerra sangrenta que sua facção trava contra um bando rival para expandir seus domínios. Playboy só vê para si dois desfechos possíveis: cadeia ou morte. "Todas as informações que tenho são que a polícia não quer me prender, quer me matar", diz, sorvendo uísque escocês em copo de plástico, com duas pedras de gelo de água de coco. Cogita a prisão, mas que não seja por muito tempo. "Não quero pegar trinta anos. Estão botando tudo na minha conta. Quero ficar uns anos e viver minha vida." Todo mundo na favela sabe da presença de Playboy mas silencia sobre o assunto, um círculo de proteção envolto em medo e endurecido por um poderio bélico de 100 fuzis. Ele está sempre em um endereço diferente. As duas sessões de entrevista que deu a VEJA, de mais de sete horas, foram intermediadas por um ex-comparsa que deixou o crime e hoje trabalha na ONG AfroReggae, à qual Playboy recorreu para tentar negociar uma rendição. Às vezes, o traficante sai do morro e vai pessoalmente à guerra contra quadrilhas rivais. Cada saída é milimetricamente planejada. O resto do tempo ele passa entrincheirado na favela, onde vive a maior parte dos seis filhos. No ano passado, o chefão foi capturado próximo à Pedreira e passou horas algemado. No fim de uma longa negociação, a cifra total, em espécie e em produtos, ultrapassou a casa do milhão. Acertou pagamento de 648.000 reais aos policiais envolvidos na transação. Ainda entregou dois fuzis AK-47 e correntes que seus homens iam tirando do pescoço à medida que tudo era pesado em uma balança: deu 4,5 quilos de ouro. Em outra ocasião, desembolsou 400.000 reais para livrar seu braço-direito e outros 300.000 para que soltassem o motorista particular — por sinal, um ex-PM. Corrupção policial é a regra. Viaturas e blindados da PM batem ponto na favela recolhendo a propina, que chega a 100.000 reais por mês. Embora não negue o chamado "arrego", Playboy se recusa a entregar os nomes da banda podre que alimenta: "Não alcagueto polícia (sic) que é homem comigo". Também guarda a sete chaves o faturamento da quadrilha, que, segundo a polícia, ultrapassa 1 milhão de reais mensais. Na região da cidade onde ele reina, faltam luz, água, escola e sobram lixo e pobreza. É o cenário ideal para angariar simpatia, apoio e poder à base de assistencialismo. Ao estilo de outros chefões de favelas cariocas, Playboy distribui mensalmente centenas de cestas básicas e botijões de gás. Em datas festivas, acrescenta ao pacote caixas de brinquedos. E, nas bocas de fumo que comanda, faz vigorar uma regra: qualquer um que apresenta receita médica leva no ato dinheiro para comprar o remédio, sistema que ele batizou de "caixa eletrônico". Todas as normas no morro é ele quem dita. Uma enorme faixa anuncia que carro roubado, por exemplo, não pode mais circular naquelas bandas. Estava atraindo a atenção da polícia. Na lógica peculiar da bandidagem, Playboy se define como um "mal necessário". O que ele não aborda é o medo que provoca. Na Pedreira, quem desobedece às suas leis está sujeito a punições do tribunal do tráfico. Playboy arbitra sobre tudo. No caso do saque às motos do departamento de trânsito, que ele nega ter ordenado, diz que mandou devolvê-las assim que soube do ocorrido. "Não mandei ninguém pegar aquelas motos, o pessoal do morro foi lá e fez. Mas não eram 197, e sim 105." Rivais e desobedientes em geral são alvo do tribunal da Pedreira. Nem mesmo policiais escapam de passar pelo jugo do chefão. No ano passado, os homens de Playboy capturaram dois agentes do Batalhão de Operações Especiais (Bope), que circulavam à paisana em seu pedaço. O dono do morro calculou que o prejuízo que teria ao mandar eliminar dois integrantes da tropa de elite seria alto e deixou que partissem. Sobre execuções, Playboy se esquiva. É investigado em quinze inquéritos na Divisão de Homicídios. Condenado a quinze anos e oito meses por assalto, está foragido desde 2009, quando, autorizado pela Justiça, saiu do presídio para visitar a família e não voltou. Filho de um dono de bancas de jornal e de uma dona de casa de Laranjeiras, típico bairro de classe média carioca, Playboy mantém poucos elos com a vida pré-bandidagem. O mais forte certamente é com a mãe, que sobe a Pedreira com boa frequência para ver o filho. Com a única irmã, funcionária de uma multinacional, os contatos são esporádicos. O gosto por cores berrantes, relógios pesados e correntes de ouro, que ele ostenta nas redes sociais, destoa dos hábitos que tinha nos tempos em que era um menino tímido e franzino conhecido como Mamadeira. Estudava em colégio de padre, onde cravou 93 em religião. "Não havia nada que pudesse indicar que ele se tornaria um criminoso", diz um amigo de adolescência, hoje empresário. Por volta dos 14 anos, Playboy começou a frequentar bailes funk e fez amizade com um grupo de assaltantes mirins de seu bairro. Logo passou a andar armado com um revólver, que gostava de mostrar, e foi preso duas vezes antes de completar 18 anos. A mãe suplicava que voltasse à vida de antes, o que ele até tentou, inclusive entrando na Aeronáutica pelas mãos de um padrinho militar, mas acabou expulso depois de ser preso em um assalto. Aos 22 anos, deu-se um fato decisivo para o voo mais alto no crime. Roubou onze armas de um quartel e vendeu-as a um traficante da Ilha do Governador. Como nunca recebia o pagamento, ele resolveu pegar tudo de volta e levar para o Complexo da Maré, onde entrou como herói e reencontrou um amigo das colônias de férias em Laranjeiras, Pedro Dom, com quem formaria a maior quadrilha de roubo a residências do Rio. Àquela altura, Mamadeira já era Playboy. 6#4 SOCIEDADE – UM DILEMA ÉTICO FALSO E EXAGERADO Aprovada na Inglaterra, a fertilização a partir do DNA de duas mulheres e um homem manipula células antes da fecundação — não lida, portanto, com o início da vida. ADRIANA DIAS LOPES É compreensível que toda novidade na área da reprodução humana estimule debates morais e éticos acalorados. Afinal, como ocorre quando se discute a legitimidade das pesquisas com células-tronco embrionárias, toca-se em uma questão central da condição humana — o início da vida. Um embrião pode ser considerado um ser humano, ou não passa de um amontoado de células ao qual não se pode conferir humanidade? Deve haver um limite na manipulação de um embrião? Questionamentos como esses, no entanto, não podem ser alimentados quando se mergulha com mais atenção no conteúdo da lei aprovada na semana passada na Inglaterra que autoriza a criação de embriões com material genético de duas mulheres e um homem. Chamada de transplante de DNA mitocondrial, a técnica tem como objetivo impedir a transmissão de doenças graves para o embrião, como certos casos de epilepsia, retardo mental, alguns tipos de cegueira e problemas musculares. Pela técnica proposta, durante a fertilização in vitro, ocorre a substituição do DNA mitocondrial doente da mãe biológica pelo saudável de uma doadora (veja o quadro abaixo). A transferência de material genético entre as duas mulheres é feita antes da formação do zigoto, a célula com núcleo único resultante da fecundação do óvulo pelo espermatozoide. E isso faz toda a diferença. O que se manipula no transplante de DNA mitocondrial são células ainda não fecundadas. Ou seja, que ainda não formaram o embrião. Mesmo pesquisadores que em algumas questões científicas admitem ser conservadores defendem o procedimento. "O uso de células-tronco embrionárias humanas é um atentado à vida, mas a manipulação de um óvulo não tem nada disso", diz a biofísica Alice Teixeira Ferreira, especialista em biologia molecular, da Universidade Federal de São Paulo. Um óvulo é uma célula, e não um ser humano em desenvolvimento." Há, evidentemente, algum barulho entre aqueles que defendem arraigadas convicções religiosas, para quem a reprodução humana é uma manifestação exclusiva da vontade de Deus e ponto final. Qualquer iniciativa científica seria, portanto, condenável, a começar pelo uso de métodos anticoncepcionais não naturais. Os embriões gerados a partir da nova técnica vêm sendo chamados de "bebês de três pais", num recurso de simplificação. É um exagero. O DNA mitocondrial, aquele da doadora, não transmite características genéticas ao feto. Localizado no citoplasma celular, ele representa apenas 0,02% dos genes de um ser humano, associados às proteínas essenciais à fabricação de energia celular. A herança genética é quase toda uma função do DNA nuclear. Responsável por 99,98% do código genético humano, o DNA nuclear determina a cor de nossos olhos, a textura de nosso cabelo, a estatura, a propensão para engordar e sofrer de doenças, entre outras características. No transplante mitocondrial, o DNA nuclear é totalmente preservado. Diz o geneticista Salmo Raskin, diretor do Laboratório Genetika e integrante do Projeto Genoma Humano: "Uma criança concebida a partir de um óvulo que teve seu DNA mitocondrial alterado não terá nenhuma semelhança com a doadora — e sim com a mãe e o pai". A retirada do DNA de um óvulo é uma técnica extremamente delicada. O procedimento só se tornou viável com o desenvolvimento de microscópios de última geração, com softwares capazes de rastrear com precisão porções minúsculas do material genético, sem risco de danos em sua retirada. No início dos anos 2000, só era possível extrair a mitocôndria do embrião já formado, com 0,5 milímetro de diâmetro — a medida de um óvulo é pelo menos 30% menor. Nesses casos, cerca de 2% do DNA mitocondrial doente acabava sendo transferido inadvertidamente, comprometendo a formação do embrião, aumentando a possibilidade de o problema materno ser transmitido para o feto. Até muito pouco tempo atrás, em 2013, ainda sobrava 0,3% do DNA mitocondrial doente. Hoje, graças aos avanços tecnológicos, praticamente não há resíduo do material mutado durante a transferência. Desenvolvido por pesquisadores da Universidade de Newcastle, na Inglaterra, o transplante de DNA mitocondrial permaneceu sob análise dos órgãos regulamentadores de reprodução assistida do Reino Unido por cinco anos, e depois pelo Parlamento inglês durante cerca de um ano. A aprovação na Câmara dos Comuns, na terça-feira passada, ocorreu por boa margem, 382 votos a 128. Para o procedimento entrar em vigor, ainda é preciso a validação da Câmara dos Lordes, prevista para ocorrer até o fim de fevereiro. Será aprovada. A técnica dificilmente seria acatada no Brasil. A Lei de Biossegurança, de 2005, proíbe o manejo de célula germinal humana. É uma pena. A autorização desse tipo de manipulação representa um grande avanço para evitar a transmissão de doenças de origem genética. Nas palavras do primeiro-ministro britânico David Cameron, os parlamentares que disseram sim não brincaram de Deus, apenas garantiram a possibilidade de que "dois pais que queiram um bebê saudável possam tê-lo". A CONSTRUÇÃO DE UM ÓVULO Como é o procedimento que permite a formação de um óvulo com o DNA de duas mulheres. O DNA As células possuem dois tipos de DNA DNA nuclear - Responde por 99,98% do código genético humano e está localizado no núcleo das células. Define as características físicas e vários aspectos de nossa saúde. DNA mitocondrial - É responsável por 0,02% do material genético humano e está localizado no citoplasma. Controla a produção de energia das células. PASSO 1- O DNA nuclear é extraído do óvulo da doadora. O DNA mitocondrial da célula é mantido. PASSO 2 – O DNA O DNA nuclear do óvulo da mãe é retirado e transferido para o óvulo da doadora que foi manipulado. PASSO 3 - O óvulo da doadora, com material genético de duas mulheres, é fertilizado em laboratório. PASSO 4 - O embrião é implantado no útero materno. Fonte: geneticista Salmo Raskin, diretor do Laboratório Genetika e integrante do Projeto Genoma Humano. 6#5 ESPECIAL – ESQUIZOFRENIA – O PESADELO ACORDADO A doença é complexa e assustadora, mas é fácil identificá-la. Ainda assim, 1 milhão de brasileiros têm a patologia e nunca foram diagnosticados ou tratados. É uma dor cruel e desnecessária. NATALIA CUMINALE É comum que os pais falem sobre as desventuras dos filhos com doença mental, mas o inverso é raro: os filhos saudáveis quase nunca revelam como foi ter sido criado por progenitores com transtorno psíquico. Para jogar luz sobre o assunto, VEJA convidou os leitores que têm, ou tiveram, pais com alguma doença mental a partilhar suas histórias. Generosamente, em questão de horas, três dezenas deles aceitaram o convite e escreveram à revista. A maior parte contou casos de mãe com esquizofrenia. São narrativas de sofrimento e dor, mesmo as que tiveram final feliz. No conjunto dos relatos, porém, salta aos olhos como a falta de diagnóstico ou a de tratamento (ou ambas), além da ausência de um conhecimento elementar sobre a esquizofrenia, aprofundam terrivelmente o martírio dos doentes e familiares. Em seu clássico manual Surviving Schizophrenia (Para sobreviver à esquizofrenia), o psiquiatra Edwin Fuller Torrey tem uma definição lapidar para a importância de conhecer a patologia e apoiar o paciente: "Com compreensão, a esquizofrenia é uma tragédia pessoal. Sem compreensão, é uma catástrofe familiar". Torrey tinha uma irmã com esquizofrenia. Ela morreu, em 2010, aos 70 anos. A Organização Mundial da Saúde estima que existam 29 milhões de pessoas com esquizofrenia no mundo. Só no Brasil, são 2 milhões. A metade não se trata, nem sabe que tem a doença, e seus familiares pouco ou nada conhecem dela. É um universo de 1 milhão de brasileiros doentes — um total de 5 milhões de pessoas, contando-se os familiares — que enfrentam um sofrimento diário, cruel, às vezes insuportável, e, no entanto, desnecessário. Entre os que escreveram a VEJA, uma leitora contou que, aos 12 anos, percebeu que a mãe começara a ter "comportamentos estranhos e mania de perseguição". Filha única, morando sozinha com a mãe, sem a ajuda de parentes, ela não sabia o que fazer. "Foram anos sem dormir, ouvindo minha mãe gritar com as vozes que ela tinha na cabeça e me acusar de apoiar as 'pessoas' que a perseguiam", escreveu. A mãe proibia a filha de abrir as janelas, achava que a TV filmava dentro de casa e, para não ser espionada despida, só tomava banho à noite, no escuro. Aos 16 anos, a filha convenceu uma tia a autorizar a internação de sua mãe numa clínica no interior de São Paulo. A mãe fez o tratamento, saiu da clínica, parou de tomar os remédios e voltou às crises. Aos 18 anos, a filha a internou outra vez. O drama se repetiu. Ela resolveu afastar-se da mãe para construir uma vida. "Minha infância e minha adolescência foram roubadas diante dessa doença terrível", escreveu. Aos 30 anos, fez nova tentativa. Enfim, a mãe continuou o tratamento depois da internação. "Hoje, ela toma os remédios e vive muito mais leve, apesar de continuar desconfiada. Ela ri, conversa, tem consciência de tudo o que faz." Outro leitor tinha 12 anos quando a mãe engravidou de novo. Corria o ano de 1985. Sua mãe começou a "cochichar sozinha e praguejar pelos cantos". Fez o parto em casa porque temia que lhe roubassem o bebê no hospital. Denunciava complôs mirabolantes ("Eles querem me matar, eles querem me matar") e xingava rivais imaginárias (''Aquela prostituta dos infernos quer roubar o meu marido"). Certa vez, deu sete facadas no marido, que sobreviveu. Ao completar 18 anos, o filho conta que saiu de casa para servir na Marinha, no Rio de Janeiro. A mãe passou a percorrer as delegacias da cidade denunciando que o filho fora sequestrado. Como a família tinha poucos recursos, passaram-se anos assim. Só na primeira década deste século, com a expansão dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs), que dão assistência a doentes mentais durante 24 horas, sua mãe começou a ser tratada. Tinha esquizofrenia. A menção mais antiga a uma doença muito semelhante à esquizofrenia está em papiros egípcios de 1500 anos antes de Cristo. Embora antiga, ela só apareceu na literatura médica no início do século XIX e ganhou o nome atual apenas no começo do século XX, batizada pelo psiquiatra suíço Eugen Bleuler. Decorridos 100 anos de estudos, sabe-se que a esquizofrenia é uma doença do cérebro. Está naquela matéria rugosa que abriga o centro de controle de tudo o que somos, fazemos, pensamos e sentimos. Daí sua complexidade e seu mistério. Ela não é causada por famílias más ou pais incompetentes. Sua causa ainda é desconhecida, mas sabe-se que é uma combinação de fatores ambientais e genéticos. Apesar de complexa, misteriosa e assustadora, a esquizofrenia pode ser diagnosticada com facilidade. Basta uma consulta de uma hora com um psiquiatra. Os sintomas mais evidentes são a tendência ao isolamento social; a sensação de estar sendo perseguido; a alteração do padrão de pensamento, com ideias incoerentes; a dedicação exagerada a assuntos filosóficos e à religião; o desleixo com as obrigações do trabalho ou estudo; a dificuldade para dormir; e a falta de prazer nas atividades habituais. O tratamento, embora não seja definitivo, pode ser altamente eficaz. Estima-se que, depois de serem tratados por dez anos, 25% dos doentes se recuperem totalmente; 25% melhorem bastante, tornando-se relativamente independentes; 25% melhorem, mas necessitem de uma rede de apoio; 15% precisem permanecer hospitalizados; e 10% morram — na maioria, cometendo suicídio. No cérebro de pessoas saudáveis, a dopamina, neurotransmissor associado às sensações de prazer e recompensa, é liberada em quantidades equivalentes para os lobos frontal e temporal, responsáveis, respectivamente, pela elaboração do pensamento e pela memória. Em um portador de esquizofrenia, há menos dopamina no lobo frontal e excesso de dopamina no lobo temporal. O resultado é apatia, lentidão de pensamento, delírios e alucinações, em geral auditivas. Nas palavras da professora americana Elyn Saks, "é como ter um pesadelo acordado". Aos 27 anos, Elyn recebeu o diagnóstico de "esquizofrenia crônica grave" e o prognóstico de que iria passar a vida em hospitais. Hoje, tem 59 anos e toma remédios todos os dias. Cursou grandes universidades (Vanderbilt, Yale, Oxford), é especialista em legislação sobre doença mental na Universidade do Sul da Califórnia e escreveu um livro estupendo sobre sua "viagem pela loucura". O sucesso de Elyn não é um caso isolado. Há outros famosos e bem-sucedidos que tiveram a doença, a começar pelo matemático John Nash, laureado com o Nobel em 1994. Sua história foi contada no filme Uma Mente Brilhante. Um dos primeiros famosos a receber o diagnóstico de esquizofrenia foi o genial bailarino russo Vaslav Nijinsky. Quem o examinou foi o próprio Eugen Bleuler, o criador do termo. A consulta ocorreu em Zurique, em março de 1919, época em que Nijinsky, já tomado pelas perturbações da doença, escreveu um diário de valor magnífico, em que relatou alucinações e delírios no momento mesmo em que aconteciam. Quando sua mulher saiu do consultório de Bleuler para lhe contar o diagnóstico, Nijinsky desconfiou que a notícia era ruim e recebeu-a com uma frase que ficou famosa: "Femmka (esposinha), você traz minha sentença de morte". Nijinsky tinha 30 anos. Viveu mais trinta, sofrendo mais que a morte em sucessivas internações em hospícios. Hoje, quase um século depois, o avanço da medicina sepultou esse passado de horrores. Mas o tripé da catástrofe (falta de diagnóstico, falta de tratamento, desconhecimento da doença) ainda provoca calamidades inomináveis, como a que sucedeu ao cineasta Eduardo Coutinho, assassinado a facadas pelo próprio filho, cuja esquizofrenia era desconhecida — tragédia contada na reportagem publicada nas páginas seguintes. 6#6 ESPECIAL – ESQUIZOFRENIA – O TERROR SILENCIOSO A história de um cineasta famoso, um filho doente mental e uma tragédia. ANDRÉ PETRY Quando atendeu o telefone, Pedro Coutinho foi surpreendido pela voz aterrorizada de sua mãe: — Seu irmão matou seu pai! Está tentando me matar! Me ajude, por favor, me ajude! A notícia brutal afogou-o numa torrente de adrenalina. Atônito, Pedro pediu à mãe que repetisse o que dissera. Em prantos, ela tornou a descrever o horror e implorar socorro. Eram pouco mais de 11 da manhã de domingo, 2 de fevereiro de 2014. Pedro passava o fim de semana com a filha de 13 anos no seu apartamento no centro de Petrópolis. Avisou à mãe que desceria imediatamente a serra em direção ao Rio de Janeiro e desligou, mas continuava incrédulo. Afinal, seu irmão, Daniel, 41 anos, um ano mais novo, morou quase toda a vida com os pais e nunca fora violento com eles. Agarrado a esse histórico pacífico, Pedro pensou que a mãe pudesse estar delirando. Temia ligar de volta para ela e correr o risco de complicar as coisas com um telefonema inoportuno. Fez uma ligação para o cineasta Eduardo Escorel, vizinho de bairro de seus pais, e pediu-lhe que fosse até o apartamento deles conferir o que se passava. Do Leblon, Escorel tomou um táxi na mesma hora. Ao chegar ao número 826 da Avenida Lineu de Paula Machado, na Lagoa, a paisagem humana em frente ao prédio, com uma aglomeração incomum de bombeiros e policiais, já denunciava a desordem da morte. Escorel cumpriu então o penoso dever de ligar para Pedro: — Sinto muito, Pedro. As notícias são ruins — disse ele, desviando-se do açoite das palavras exatas. — Meu pai morreu mesmo? — foi a angustiada pergunta de Pedro. Aos 80 anos, o consagrado cineasta Eduardo Coutinho, diretor do premiado Cabra Marcado para Morrer, fora assassinado pelo próprio filho com duas facadas na barriga, que provocaram uma hemorragia letal. Figura única no cinema nacional, ele tinha uma cabeleira branca prestes a levantar voo, uma barba de anteontem, uma magreza de faquir e um olhar suplicante, quase desesperado, atrás de um grande par de óculos. Nos últimos tempos, andava doente e frágil, embora continuasse extraordinariamente inventivo. Havia dois anos, tivera uma pneumonia. Seis meses depois, outra, ainda mais grave. Tinha um enfisema pulmonar, herança de décadas de um tabagismo feroz, e dera para andar tateando pelas paredes e caindo a toda hora, em casa e na rua. No apartamento da Lagoa, onde morava havia quatro décadas, Coutinho vivia com o filho Daniel e a mulher, Maria das Dores, a Dorinha, dezoito anos mais jovem. Por escassez de dinheiro ou de interesse, os estragos do tempo foram se perpetuando no apartamento, que lentamente adquiriu um aspecto de museu decadente. Nunca fora pintado, o assoalho estava gasto, havia infiltrações nas janelas, mas o que tornava o ar irrespirável ali dentro eram as demandas alheias. Encaramujado em si mesmo, Daniel não saía do quarto, mas sua presença imperava em todo o apartamento, com a exigência de que todos fizessem um silêncio de ferro. Os pais, indagados a que hora iam sair, tinham de dar uma resposta cirúrgica: "Às 3 horas". Quem se debulhasse em imprecisões prolixas — "Acho que lá pelas 3 horas, talvez um pouco antes..." — era bruscamente intimado a calar-se para não ferir sua sensibilidade auditiva incomum. Um dia, Coutinho, a mulher e a cunhada Rita, reunidos no escritório, riram alto de alguma coisa. Daniel enfiou a cara na porta, espiou o grupo ostensivamente e saiu. Em seguida, ouviu-se um estrondo. Ele espatifara um vaso de cristal no chão da sala. Assustada, a mãe perguntou por que fizera aquilo. Recebeu uma resposta inesquecível: o esgar de um sorriso. Completando a aflição da vida familiar, Coutinho e a mulher vergavam sob o peso de um casamento corroído e impregnado de acusações que no passado haviam servido para ferir e agora apenas requentavam um rancor cansado. Mesmo depois das separações conjugais, durante as quais buscava abrigo na casa de um amigo, Coutinho acabava sempre voltando para casa. Afinal, era a sua casa. Mas a asfixia doméstica o empurrava para a rua. Nos dias úteis, fugia para sua sala no Centro de Criação de Imagem Popular, que ajudara a fundar nos anos 80. Não usava celular, não respondia a e-mails, não escrevia em computador. "Tenho duas Olivetti, nenhuma funciona direito", dizia, com seu imperturbável sotaque paulistano que nem décadas de Rio de Janeiro conseguiram amansar. Passava os dias burilando novas ideias. Estava fazendo um novo filme, com o título provisório de Palavras, centrado em conversas com adolescentes. Nos fins de semana, distraía-se por horas a uma mesa na calçada da livraria Ponte de Tábuas, perto de sua casa. Era seu outro refúgio. Sentado ao ar livre, podia fumar seus cigarros intermináveis e recebia recados como se estivesse em seu escritório. Em junho de 2013, oito meses antes de sua morte, a livraria fechou, e Coutinho perdeu esse recanto de paz. Um dia, ao ser perguntado por que não ficava em casa nas horas de ócio, deu uma resposta inequívoca como um trovão: "É insuportável". Estavam extraviados no passado aqueles dias inigualáveis de 1970 quando Coutinho se apaixonou por sua então futura mulher. Filmava Faustão, o drama shakespeariano, ambientado no agreste de Pernambuco. As locações ficavam em Brejo da Madre de Deus, perto de Caruaru. Dorinha era figurante no filme, não tinha fala, mas, no frescor de seus 19 anos, capturou a atenção de Coutinho. Ela, moça do interior, de família pobre, com estudos até a 3ª série, também se encantou com o diretor de 37 anos, com sua cabeleira negra e a barba muçulmana, que já começava a mostrar os primeiros fios brancos. Concluídas as filmagens, Coutinho voltou para casa e mandou as passagens para Dorinha juntar-se a ele no Rio. Ela foi. Em 1971, tiveram o primeiro filho, Pedro. Foi uma alegria só. Às portas dos 40 anos, Coutinho realizara o sonho de ser pai. O bebê tinha 3 meses quando Dorinha voltou a engravidar. Dessa vez sobreveio um drama que um dia ressuscitaria: a toxoplasmose. O diagnóstico saiu logo no início da gravidez. Transmitida através das fezes do gato, a toxoplasmose é quase inofensiva para pessoas saudáveis, mas é grave para gestantes. O parasita — Toxoplasma gondii — pode infectar a placenta e o feto, causando danos neurológicos severos, como atraso no desenvolvimento mental e motor, paralisia cerebral e epilepsia. O caso de Dorinha era tão sério que o médico sugeriu que o casal discutisse a interrupção da gravidez. Com um recém-nascido no colo e 20 anos de idade, Dorinha desorientou-se com a notícia de uma infecção grave da qual nunca ouvira falar. Coutinho tomou o assunto para si e resolveu manter a gravidez, apesar dos riscos. Com sua brava decisão, fez nascer o filho que um dia o mataria e cujo risco de suicídio seria um de seus pesadelos mais latentes. "Foi uma dificuldade muito grande carregar essa gravidez. Cheguei a ter medo", disse Dorinha, no depoimento que prestou à Justiça, na dilacerante condição de testemunha de acusação contra o próprio filho. Oito meses depois do diagnóstico, com saúde aparentemente perfeita, Daniel nasceu no mesmo dia que Pedro, 3 de agosto. O drama da toxoplasmose ficou no passado, talvez por discrição, talvez por segredo. Pedro só soube da doença depois do crime, quando a mãe lhe contou pela primeira vez as circunstâncias difíceis da gestação do irmão. É provável que nem Daniel soubesse. Sua mãe, antes de começar o depoimento à Justiça, pediu que Daniel, algemado no banco dos réus, fosse retirado da sala. Com a impaciência dos burocratas, o juiz Fábio Uchôa indagou por que Dorinha não queria "depor na frente do acusado". Desprotegida na amplidão do tribunal, ela encolheu os ombros e pendurou uma reticência num fiapo de voz trêmula: "É muito difícil para mim falar de um filho..." Daniel foi retirado. Em circunstâncias felizes, a coincidência do nascimento no mesmo dia pode sublinhar o afeto entre irmãos, presenteando-os com mais um laço fraternal. No caso de Pedro e Daniel, só ajudou a condimentar uma hostilidade crescente e mútua. Na infância, tudo funcionava como uma sinfonia. Os meninos comemoravam o aniversário numa única festa, estudavam na mesma escola, o prestigiado Colégio Andrews, eram bons alunos e frequentavam o mesmo clube, o Piraquê, pertinho de casa. No entanto, eram o oposto em tudo. Nas recordações da mãe, Pedro era carinhoso, cordato, responsável. "Ele gostava de brincar comigo, pedia meu colo", diz. Daniel era descuidado, meio agressivo, imprevisível. "A gente nunca sabia como ele ia reagir." Os meninos começaram a brigar. No início, eram brigas infantis. Com o tempo, chegaram aos socos e pontapés, para desespero da mãe, que implorava por calma, mas carecia da força e da autoridade para impor sua ordem de paz. No aniversário de 12 e 13 anos, os garotos vestiram a camiseta do Flamengo, cantaram Parabéns, apagaram as velas, e nunca mais festejaram a data juntos. De repente, sem um desentendimento terminal, uma desavença insuperável, pararam de brigar e se afastaram. Pedro diz: "Acho que nos demos conta de que as brigas estavam ficando cada vez mais sérias. Então, simplesmente paramos de brigar e cada um foi para o seu lado". Os dois ainda passaram mais de dez anos dividindo o mesmo quarto e trocando só as palavras indispensáveis. No fim da adolescência, as diferenças aprofundaram o fosso entre os irmãos. Pedro acordava cedo e perturbava Daniel com os barulhos matinais. Daniel deitava-se tarde e incomodava o sono noturno do irmão. Daniel fumava, Pedro nunca acendera um cigarro. Daniel não trabalhava, começara a beber e envolver-se com drogas, primeiro maconha, depois cocaína. Pedro tinha começado a trabalhar cedo, nunca consumira drogas nem era de beber. Daniel passara a levar a namorada para casa, trancava-se no quarto com ela e impedia Pedro de entrar. Com o salário de assessor do Ministério Público Federal, seu primeiro emprego, Pedro comprou sua paz pagando ele mesmo uma reforma das dependências de empregada, onde Daniel e a garota passaram a ter a privacidade desejada sem desalojá-lo. Coutinho testemunhou o afastamento dos filhos com olhos distantes. Na época, vivia o auge de Cabra Marcado para Morrer, lançado em 1984. O filme tornou-se um marco na história do cinema documental do Brasil e arrebatou doze prêmios numa luminosa trajetória no exterior. Com o sucesso, Coutinho ganhou impulso para alçar um voo ambicioso. Pediu demissão do Globo Repórter, da Rede Globo, onde trabalhava havia dez anos, e apostou na carreira de cineasta. As constantes viagens internacionais e a participação no júri de festivais de cinema afastavam-no do cotidiano familiar. Dorinha encarregava-se dos meninos, trovejava seu ciúme diante das longas ausências do marido e nunca lhe perdoou a renúncia à estabilidade financeira de um emprego na Globo, cobrança que manteve em carne viva. A aposta de Coutinho não rendera o dinheiro esperado, mas não lhe faltava trabalho. Quando recebia algum pagamento, anunciava à família: "Temos dinheiro para viver mais quatro meses". Em vez de trazer alívio, o aviso atiçava a insegurança financeira de Dorinha e acionava a cachoeira de lamentações. Coutinho estava percorrendo um caminho único no cinema nacional. No começo, carecia de coragem para enfrentar a grandeza de Cabra, e escapava de si mesmo fazendo o que ele próprio chamou de "filmezinhos", até que, com o tempo, encontrou sua identidade no cinema, consolidando uma carreira de diretor e roteirista que chegou ao fim com sete filmes de ficção, 22 documentários, incontáveis prêmios e uma homenagem póstuma na festa do Oscar de 2014, quando seu nome foi incluído na lista das celebridades falecidas no ano — logo ele que detestava a autopromoção e as futilidades da publicidade. Com irresistível humor ranzinza, abatia no voo qualquer ameaça de o tratarem como "sumidade" do cinema. Em 1998, quando Coutinho começava as pesquisas para filmar Santo Forte, documentário que levou uma braçada de prêmios e marcou seu reencontro com a consagração, Pedro deixou a casa dos pais. Tinha 26 anos. Ganhara um posto de promotor de Justiça na cidadezinha de Sapucaia, a 150 quilômetros do Rio, na divisa com Minas Gerais, onde conheceu Fernanda, sua primeira mulher e mãe de sua filha. O afastamento físico entre ele e Daniel, somado ao passar do tempo, essa combinação que recompõe tantas relações familiares moídas no convívio diário, operou o milagre inverso: separou os irmãos para sempre. Já faz trinta anos que se tratam com a frieza dos estranhos. "Não existe afeto entre nós", diz Pedro. Quando fala do irmão, ele conjuga o verbo no passado. Até hoje, não o visitou no manicômio judicial de Bangu, onde Daniel está preso à espera de julgamento. "Não me sinto preparado para visitá-lo." Na adolescência, Daniel não era um líder nem o terror da vizinhança ou das meninas, mas era um pouco de tudo isso. Tinha alguma força física, o impulso natural para aventuras e uma estampa, corrigida por uma plástica no nariz, que atraía as garotas, formando um conjunto de atributos que se delatavam no apelido que ganhou: Dani Boy. "Nessa época, acho que Daniel era feliz", diz Pedro. Do fim da adolescência em diante, algo esquisito começou a acontecer, e Daniel passou a ser cada vez menos Dani Boy. Por volta dos 18 anos, sua turma do Clube Piraquê entrou numa pancadaria com um grupo rival. Deu polícia, os pais foram chamados, e Coutinho tirou o filho do clube para mantê-lo longe de confusões. O círculo social de Daniel estreitou-se. Mais tarde, num vendaval de fatalidades, perdeu três amigos em seis meses. Um morreu em razão de um defeito congênito no coração. Outro, num acidente de carro. O terceiro foi assassinado numa disputa por drogas. Na época, sacudido pela sucessão de mortes, Daniel dizia: "Não quero mais ter amigos". Sua vida social ficou ainda mais reduzida. Na faculdade de comunicação social, começou a ter problemas acadêmicos, ele que sempre fora um bom aluno. Levou seis anos para concluir o curso de jornalismo. Não teve amigos nem namoradas. Formado, quis trabalhar nos filmes do pai, pelos quais nunca se interessara antes. Participou de Babilônia 2000, no Morro do Chapéu Mangueira, onde Coutinho colocou cinco equipes de filmagem na virada de 31 de dezembro de 1999. Não deu certo. Daniel era relapso, distraía-se demais, desagregava a equipe. O pai decidiu que não podia mantê-lo. Daniel tentou ainda trabalhar como assessor do então candidato a deputado estadual Roberto Dinamite, o ex-craque do Vasco. Também não funcionou, e encerrou-se aí sua última conexão social. Em 2006, cansado das discussões domésticas com Daniel, Coutinho mandou-o para a casa da família em Mauá, a 65 quilômetros do Rio. "Eduardo não queria mais ficar no mesmo ambiente que ele", disse Rita, irmã de Dorinha, no seu depoimento à polícia. Segundo ela, os parentes achavam que a impertinência e o ócio de Daniel eram "coisas de garoto mimado". No início, Daniel sentiu-se bem em Mauá. Depois, desenvolveu um medo de ficar sozinho. Em menos de dois anos, voltou para a casa dos pais no Rio, encarcerou-se nas próprias sombras no quarto de empregada e nunca mais soube o que era vida social. Atormentada com o isolamento do filho, Dorinha culpava o marido por não lhe dar um emprego. A essa altura, já era visível que havia algo mais complicado do que um "garoto mimado". Daniel tinha 34 anos. Coutinho não conseguia abrir os olhos da mulher. "Ele não tem condições de trabalhar", dizia. "Ele precisa se tratar." Mas ninguém sabia do quê. Em casa, o ambiente se deteriorava num ar saturado de tensão. Coutinho tinha medo de que o filho, por qualquer razão, se suicidasse de repente. Daniel mal saía do quarto. Lia cinco, seis livros ao mesmo tempo, um pedaço de cada um. Deitava-se cedíssimo, por volta das 18 horas, e às 5 da manhã já estava acordado. Temia ser internado, ainda que ninguém soubesse se era uma medida necessária ou recomendável, e sempre pedia ao pai que não o mandasse para um hospital. Nos últimos tempos, Dorinha vivia um inferno particular. Protegia Daniel como uma leoa, como fez a vida toda, mas criou um medo do próprio filho, dentro da própria casa. Na definição cortante de Pedro, a rotina no apartamento "era um terror silencioso". A notícia de que Daniel era pacífico talvez esconda uma realidade mais áspera. Em seu depoimento à polícia, quatro dias depois do crime, Rita, que sempre visitava Dorinha, disse que por três vezes desconfiou de que Daniel a tivesse agredido. Nessas ocasiões, Rita encontrou Dorinha "chorando e com hematomas", mas ela sempre negava ter sido atacada pelo filho. Rita suspeita que a irmã ocultava as agressões para proteger Daniel. Pelo menos uma vez, Rita tratou de sua desconfiança com Coutinho. Ele ficou sem saber o que fazer. Achava que, se Daniel fosse internado, poderia ficar pior do que estava. Além do mais, ele "ficaria com muita raiva de seus pais". Tragicamente, optou-se por deixar as coisas como estavam. Os últimos dias foram particularmente angustiantes. Daniel pediu ao pai que levasse uma prostituta para casa, para aliviá-lo das urgências agravadas pelo seu longo isolamento. Uma ou duas semanas antes do crime, disse à mãe que queria se matar. Assustada com a confidência do suicídio, a mãe fez o que pôde para demovê-lo da ideia. Alegou que sua presença era fundamental para ajudá-la a cuidar de Coutinho, cuja saúde vinha fraquejando. Numa lógica delirante, Daniel concluiu, como ele próprio contou mais tarde, que a melhor forma de cuidar dos pais era matá-los antes de matar a si mesmo. Era intolerável viver como vivia. Dormia com uma faca ao seu lado para defender-se de agressões imaginárias no meio da noite. Ouvia vozes que lhe ordenavam o suicídio. Tinha certeza de que era a encarnação do demônio, e essa condição especial provocava inveja e rancor "das vozes". Na véspera do crime, Daniel passou o dia "fumando, bebendo água e falando sozinho", segundo contou à polícia. Estranhamente, esse depoimento jamais chegou aos autos do processo. Foi gravado em vídeo em 6 de fevereiro, quatro dias depois do crime. Tem apenas dez minutos e 34 segundos de duração. Nele, Daniel responde a perguntas do delegado Rivaldo Barbosa, chefe da Divisão de Homicídios, cuja imagem não aparece. Fala num ritmo mecânico, marcando o compasso com os dois dedos indicadores. Daniel não costuma usar o pronome "eu" e, de vez em quando, conjuga o verbo no pretérito mais-que-perfeito. Seu depoimento: — Olha, lembro de pegar uma faca... — Onde? — pergunta o delegado. — Na cozinha. — Quantas facas? — Acho que uma, não, duas, uma ou duas, não lembro. Lembro que fui lá e perpetrei o ato. — Onde? — No quarto dos meus pais. Fui primeiro na minha mãe e depois no meu pai. Tentei perfurar o abdômen (da mãe) com a faca. Ela reagiu e correu para o corredor, e se trancou no banheiro. — E aí? — Meu pai acordou e lutou também, mas consegui perfurar. Uma vez perfurado pela segunda vez, ele ficou no chão... O delegado quis saber o que Daniel dizia ao pai enquanto o atacava: — Sempre tentava acalmá-lo e dizendo que era o melhor para ele. Que estava fazendo aquilo para o bem dele. Não era uma coisa de raiva. Em seguida, contou que se esfaqueou duas vezes na barriga, mas não conseguiu se matar. — Nessa altura, já me arrependera e decidi chamar a ambulância — disse ele. Contou então que foi até o banheiro, onde sua mãe estava trancada, bateu à porta e avisou: — Mãe, espera que vou chamar a ambulância. Depois disso, bateu à porta do vizinho no 6º andar, segurando a barriga aberta, e pediu ajuda. Na tarde de 2 de julho, cinco meses depois do crime, Daniel depôs na Justiça. Dessa vez, seu depoimento foi menos detalhado quanto à mecânica do assassinato e mais informativo em relação às suas razões doentias. Ele disse que acordou de manhã cedo, "em pânico" com o risco que corria e decidido a suicidar-se. Quando se viu no espelho do banheiro, de cabeça raspada, reparou que seu couro cabeludo tinha "várias sequências 666", o símbolo da besta. A revelação deu-lhe a certeza de que ele era o próprio demônio. O juiz Fábio Uchôa quis saber se Daniel ainda tinha as sequências gravadas na cabeça. "Claro", respondeu ele, com uma vivacidade prestativa. "Gostaria muito de mostrar para o senhor." O juiz dispensou a oferta. Daniel voltou a pedir para exibi-las. O juiz voltou a dispensá- la. Por fim, Daniel lamentou não ter raspado os cabelos antes do depoimento, de modo que os números diabólicos pudessem ser vistos. "Porque é impressionante mesmo", disse ao juiz. No final, fez um adendo: "Quem entrou no quarto dos meus pais acreditava que era satanás". Seu depoimento durou menos de catorze minutos. Não se sabe qual era o estado mental de Daniel dez ou cinco anos antes nem se os sintomas do seu transtorno eram muito ou pouco evidentes. No dia 7 de outubro, porém, oito meses depois do crime, quando o conceituado psiquiatra Joel Birman o examinou no manicômio judicial de Bangu, a pedido da defesa de Daniel, seu quadro era alarmante. Birman espantou-se que um caso tão grave nunca tivesse recebido tratamento, como se pode ver num trecho de seu laudo, reproduzido na página ao lado. De acordo com seu diagnóstico, Daniel tem esquizofrenia paranoide, possivelmente desde o início da idade adulta, período em que começou a afastar-se dos amigos. O termo "esquizofrenia" — de origem grega: skhizein (dividir) e phren (mente) — só surgiu na primeira década do século XX, criado pelo psiquiatra suíço Eugen Bleuler. É um distúrbio esmagador que faz o paciente ouvir vozes e sentir-se perseguido, alucinações que Daniel nunca relatara à família. É possível que esses delírios tenham se agravado só recentemente. O diagnóstico ressuscitou a memória da toxoplasmose que a mãe teve na gravidez de Daniel. Estudos recentes indicam que casos agudos de infecção pelo Toxoplasma gondii podem provocar os sintomas psicóticos da esquizofrenia. O caso de Dorinha era agudo. _________________________________ 1- E possível afirmar que o examinado é portador de uma doença mental grave há muito tempo. A doença em questão é a esquizofrenia paranóide, onde se destaca um delírio sistemático e uma alucinação sempre presente. O dito delírio tem a característica religiosa e mística, onde o tema do diabo se repete em todos os seus meandros. Chama atenção o contraste entre a gravidade do estado mental de Daniel Coutinho durante longo tempo e a quase inexistência de qualquer tratamento psiquiátrico e psicológico. Nos... ___________________________________ O parricídio — crime de quem mata pai ou mãe, ou outro parente próximo, como irmão, avô, tio, neto — é um desafio às nossas noções de justiça, castigo, perdão. Daniel deve ir preso? Deve ser inocentado? Deve ser tratado? Interdito em todas as culturas, modernas ou antigas, o parricídio viola, de uma só tacada, dois mandamentos bíblicos: "Não matarás" e "Honrarás pai e mãe". É um tema tão fascinante que está na mitologia e nas grandes obras da literatura universal. Em Édipo Rei, peça encenada pela primeira vez mais de quatro séculos antes da era cristã, Sófocles cria um parricida enganado e arrependido. Em Hamlet, Shakespeare dramatiza a ambição desmedida que leva um irmão a matar o outro para usurpar-lhe o trono e a mulher, desencadeando a fúria do órfão que quer vingar a morte do pai. No magnífico Os Irmãos Karamazov, Dostoievski narra o assassinato do pai pelo seu primogênito. Para Sêneca, o parricídio é "um crime que faz qualquer ser humano tremer de horror". Felizmente, os parricídios são raros. Nos Estados Unidos, um levantamento que reuniu dados de 1976 a 2007 mostra que compreendem menos de 1 % dos homicídios em que se conhece a relação de parentesco entre assassino e vítima. No Brasil, quatro pesquisadoras — Paula Gomide, Ana Maria Teche, Simone Maiorki e Singra Cardoso — recolheram reportagens da imprensa e dados da internet e encontraram 246 casos entre 2005 e 2011. Com esses dados à mão, traçaram o perfil do parricida brasileiro: é homem, age sozinho, usa arma branca e comete o crime em casa, exatamente como Daniel. Com uma diferença: a larguíssima maioria dos parricidas são filhos que sofreram abusos severos — psicológicos, físicos, morais, sexuais — na infância ou na adolescência. Respondem por algo como 90% dos casos. Os parricidas com distúrbio mental, como Daniel, são uma minoria quase invisível, dado que surpreende quem associa doença mental à violência. (Cerca de 84% dos portadores de transtornos psíquicos passam a vida sem cometer nenhum ato violento.) A presença da esquizofrenia, no entanto, levanta uma dúvida amarga sobre o infortúnio dos Coutinho: terá sido uma tragédia desnecessária? A psiquiatria informa que, sob tratamento e medicação adequada, Daniel, muito provavelmente, não teria surtado a ponto de esfaquear os pais, e tudo indica que na manhã do 2 de fevereiro de 2014 ele tenha tido o primeiro surto psicótico de sua vida. O poeta Ferreira Gullar, ele próprio pai de um esquizofrênico, escreveu um artigo para o jornal Folha de S. Paulo duas semanas depois do crime e, embora amigo de Coutinho, não se furtou a prolatar uma sentença peremptória: "Não sei por que os pais não solicitaram atendimento médico para interná-lo, mas não tenho dúvida de que se o tivessem feito aquela tragédia dificilmente teria ocorrido". O diagnóstico de Gullar doeu nos familiares porque, àquela altura, ninguém sabia, nem a família, se Daniel tinha mesmo uma patologia psíquica. Nem Pedro sabe dizer por que Daniel nunca foi diagnosticado e tratado. "Esse era um assunto sempre doloroso na família", diz. A tolerância dos Coutinho pode ter sido resultado daquela esperança ingênua de que tudo melhore sem o temporal de verdades e dores que costuma desabar quando se aborda um problema de frente. Pode ter sido produto daquela percepção tão peculiar que nos faz enxergar com nitidez o que se passa com a família dos outros, mas nos cega diante do que acontece em nossa própria. Pode ter sido vergonha ou preconceito, comuns em casas ricas, remediadas e pobres, em razão do estigma secular da doença mental. O fato é que os pais de Daniel tentaram três vezes a ajuda de um psiquiatra, em distintas fases de sua vida. Mas o rapaz logo deixava de ir às consultas e, assim, nunca teve um diagnóstico claro nem fez um tratamento continuado. Com amigos, Coutinho tampouco tratava do assunto. A família toda era tão discreta que parecia esconder-se de si mesma. João Roberto do Nascimento, funcionário do edifício da Lagoa desde 2001, diz que alguns moradores nem sabiam que o famoso cineasta vivia no mesmo prédio. A vizinha do 6º andar, Ana Beatriz da Silva Aguiar, conta que viu Daniel só duas vezes em trinta anos: quando ele era criança e quando bateu à sua porta para pedir ajuda, com as vísceras pulando para fora da barriga, depois de ter matado o pai. Como cineasta, Coutinho tinha o coração escancarado para ouvir a história de vida dos outros. Tinha um interesse voraz pelas pessoas anônimas, geralmente pobres, das quais arrancava confissões espantosas em seus filmes. Por isso, alguém o chamou de "psicólogo das lentes". Como pai e marido, era fechado feito uma ostra, nunca dividia com ninguém as intimidades da vida familiar. Numa entrevista em 2012, disse: "Do que eu sou, eu não falo porque nem sei nem quero". Até amigos se surpreenderam ao descobrir, depois do crime, que Coutinho tinha um filho com um distúrbio mental, inclusive Ferreira Gullar. Seus filmes, apenas seus filmes, eram a forma de lidar com as próprias dores e desesperanças, com seu fascínio e seu horror pela miudeza do cotidiano. Era uma esplêndida manhã de domingo quando Daniel entrou no quarto dos pais com uma ou duas facas na mão. Primeiro, dirigiu-se à mãe. Ela dormia em um colchonete no chão. De cócoras, pegou-a por trás. Segurou-a pelo ombro com a mão esquerda. Com a direita, cravou-lhe a primeira facada, na altura do seio esquerdo. A mãe começou a gritar, acordando o marido deitado na cama. Ela desvencilhou-se do filho, fugiu para a cozinha. Na fuga, caiu. O filho desferiu-lhe novos golpes. Livrou-se dele outra vez, levantou-se. Correu para o interfone, caiu de novo. Queria uma chave para trancar-se em algum cômodo, alcançou o banheiro, refugiou-se ali, ensanguentada, gritando sem parar, tomada de pânico. O pai, acordado, foi atacado pelo filho. Lutou quanto pôde. Fugiu do quarto. Tentou pegar o interfone, foi impedido. Levou duas facadas na barriga, caiu, o corpo inerte, debruçado sobre uma poça de sangue no chão da sala. O filho fincou uma faca na própria barriga. Nada. Fincou de novo. Nada. Além da dor dos golpes, não sentia nada. Subitamente, tendo sobrevivido ao próprio ataque, entendeu que as vozes haviam lhe traído. Tinham lhe dito que conseguiria se matar com uma facada na barriga. Desferiu duas, e não obteve o resultado prometido. Enganado pelas vozes, com as quais mantinha "uma intensa comunicação mental", Daniel de Oliveira Coutinho, em surto psicótico da esquizofrenia paranoide, atribuiu o fracasso do suicídio a uma possível "proteção demoníaca" e descobriu então, traído e perplexo, que era mais difícil morrer do que continuar vivendo. "Quando me olho no espelho, vejo três cicatrizes", diz Dorinha, que foi internada em dois hospitais. "Tem uma grande, que deve ter pego perto de cinquenta pontos." Coutinho, tudo indica, morreu pouco depois de ser atacado. Na tarde de 2 de fevereiro, o perito Francisco Eduardo Silva fez o exame cadavérico. Encontrou ferimentos no tórax, no abdómen, na mão direita e "grande quantidade de sangue na cavidade abdominal". Em 26 minutos, encerrou o trabalho e concluiu que a morte de Coutinho fora causada pela "secção quase completa" da aorta abdominal, a principal artéria do abdômen, que provocou a hemorragia fatal. Pedro, depois de receber o telefonema desesperado da mãe em que pedia socorro trancada no banheiro, desceu a Serra de Petrópolis em seu Renault Sandero. Entregou o volante à namorada, Érika, uma ruiva doze anos mais jovem, e viajou a bordo de uma esperança vã: que seu pai tivesse sobrevivido aos ataques, tal como sua mãe. Uma hora depois, ao chegar ao edifício dos pais na Lagoa, viu amigos ali reunidos com as expressões inconfundíveis do luto. Desceu do carro, olhou para a portaria no exato momento em que os bombeiros retiravam do prédio um corpo dentro de um saco de plástico preto. Era o cadáver de seu pai. Com uma voz pequena, Pedro rememora: "Fiquei olhando eles colocarem o corpo no rabecão". Coutinho está enterrado no Cemitério São João Batista, em Botafogo. Dorinha, com a ajuda da irmã Rita, tenta carregar uma dor maior que ela. A trágica viuvez e a prisão do filho destruíram seu mundo. Faz tratamento psicológico, toma remédios. Recuperou-se bem das facadas, mas seu estado depressivo é indomável. Numa de suas raras saídas, encontrou por acaso uma velha amiga no Shopping da Gávea. Ficou assustada, o corpo inteiro tremia. Pensou em voltar para Pernambuco, sua terra natal. Também pensou em mudar-se para a casa de Mauá, mas continua no apartamento da Lagoa. Traumatizada, tem medo de visitar Daniel sozinha. Sempre leva Rita. As visitas lhe fazem mal. Volta para casa arrasada. Pedro, que tem a mesma fisionomia e a mesma fala atropelada do pai, enfrenta tudo com resignação comovente. Luta em silêncio para não deixar a tragédia definir sua vida. "Talvez uma hora eu consiga visitar Daniel", disse ele, mais recomposto, agora que a tragédia fez um ano. Cuida da mãe, da filha Maria Eduarda, hoje com 14 anos, e da enteada Isabelle, de 18, que o tem como pai e mora com ele. Daniel não dá entrevistas, não recebe amigos da família e, mesmo quando a mãe vai visitá-lo, fica impaciente depois dos primeiros minutos de conversa, ansioso para acabar logo com aquilo. Em dezembro, pediu ao seu advogado, João Bernardo Kappen, 33 anos e fã da obra de Coutinho, que só tornasse a vê-lo depois do julgamento, o que pode ocorrer até março. Daniel pode ser levado ao tribunal do júri ou ser sentenciado a cumprir pena de internação de um a três anos num manicômio judicial. Ele se arrepende do que fez, mas mantém a certeza de que agiu pelo bem dos pais. Na sua percepção, as sequências de 666 ainda estão lá, cicatrizadas na cabeça, mas agora Daniel já não acredita que seja a encarnação viva do demônio. A Kappen, ele fez um apelo incomum na boca de um preso: pediu ao advogado que não tentasse libertá-lo. Quer ficar no manicômio de Bangu, onde está medicado e se sente bem. _______________________________________ 7# ARTES E ESPETÁCULOS 11.2.14 7#1 CINEMA – QUESTÃO DE CONTEXTO 7#2 CINEMA – FALSO REALISMO 7#3 MÚSICA – BIBLIOTECA MUSICAL 7#4 LIVROS – O CRONISTA DA CATÁSTROFE 7#5 VEJA RECOMENDA 7#6 OS LIVROS MAIS VENDIDOS 7#7 J.R. GUZZO – A PALAVRA “I” 7#1 CINEMA – QUESTÃO DE CONTEXTO Sniper Americano recria a experiência moral e mental da guerra com uma riqueza de nuances que vem sendo atropelada tanto por seus críticos mais virulentos quanto por seus apoiadores mais fervorosos. ISABELA BOSCOV É raro que já no seu trailer um filme consiga propor com tanta clareza seu dilema moral: no telhado de um prédio em Fallujah, o atirador de precisão Chris Kyle, interpretado por Bradley Cooper, tem na sua mira uma mulher iraquiana e o filho pequeno dela, que saem para a rua. O atirador e o observador a seu lado alertam o comando: a mulher está carregando algo; é uma granada de alto impacto, que ela entrega ao menino; ele está indo na direção dos soldados americanos. O tiro é válido? O comando pode dar mais alguma informação? Negativo, é a resposta: Kyle terá de decidir sozinho. Nada poderia ser mais atroz do que isso — ter de decidir se uma criança pretende matar, e se deve morrer. Para saber se Kyle dispara ou não, e por que o faz ou não faz, é preciso ver Sniper Americano (American Sniper, Estados Unidos, 2014), que estreia no país no dia 19. Aliás, é preciso assistir a Sniper Americano, e ponto. Cercado de uma névoa de controvérsia tão espessa e enganadora quanto a própria névoa da guerra — e a dessa guerra em particular —, o filme de Clint Eastwood exige ser visto com espírito desarmado (sem jogo de palavras) para que se possa apreciar não só sua formidável desenvoltura e segurança como o equacionamento silencioso que vai tomando corpo no íntimo de Kyle, e impregnando a narrativa. Associados na imaginação popular a assassinos frios que atiram por esporte — como de fato os soldados servios atiravam contra transeuntes bósnios em Kosovo, nos anos 90 —, nos modernos exércitos profissionais como o americano ou o britânico os snipers são uma necessidade da guerra: por contraditório que pareça, evitam morte e destruição (veja o quadro na pág. ao lado). É seguro que, com seus 160 tiros fatais confirmados (seu total extraoficial é de 255), o recorde entre os americanos, Kyle tenha poupado várias vezes esse número de vidas, tanto americanas quanto iraquianas. Quando abate o indivíduo que carrega uma RPG, o que está escondido com uma metralhadora num telhado, o que espera os soldados numa esquina com uma AK-47 — ou destrói o armamento inimigo, outra função essencial sua —, o sharpshooter está eliminando aqueles alvos que poderiam causar imensa destruição física e um grande número de baixas entre seus homens e entre os inocentes inadvertidamente pegos no confronto. Está também abalando o moral do inimigo, já que seu fogo é imprevisível e ilocalizável — e por isso em Fallujah, por exemplo, a ação dos snipers foi decisiva para que se chegasse a uma trégua com os insurgentes. E, no entanto, ainda que os snipers hoje trabalhem sempre em dupla de atirador e observador, ou em unidades de quatro homens ou mais (por exemplo, em missões de reconhecimento), sua relativa solidão é verdadeira, o peso de suas decisões é inalterável e a intimidade com o alvo em sua mira não tem paralelo nas outras situações de combate. A tração sobre sua psique, portanto, é incalculável. A oposição entre essas facetas da atividade de seu protagonista é a real matéria-prima de Sniper Americano. Como disse o próprio Clint Eastwood — ou seu personagem — em Os Imperdoáveis, um marco não só do faroeste como da discussão contemporânea sobre a violência, "matar um homem é uma coisa infernal. É tirar dele tudo que ele tem, e tudo que jamais vai ter". Matar 160 homens, ou 255, ainda que em situação de necessidade imperativa e conforme as regras militares, é todos os sete círculos do inferno. O próprio Chris Kyle, que foi assassinado em 2013, aos 38 anos, por um marine traumatizado a quem procurava ajudar, deixou em suas memórias — o best-seller também ele intitulado Sniper Americano (Intrínseca) — uma visão bem menos arrazoada de suas quatro passagens pelo Iraque: seu tom é marcadamente mais jingoísta e cheio de bravata que o do Chris Kyle do filme — que foi composto pelo roteirista Jason Hall, postumamente, com a ajuda de Taya, a viúva de Kyle (no filme, uma ótima atuação de Sienna Miller), e outras fontes. Em menino, o texano Kyle aprende com o pai que existem três tipos de pessoa: as ovelhas, os lobos, e os cães pastores, cujo papel é defender as ovelhas dos lobos. Ser um lobo é o que há de mais desprezível; ser um cão pastor, o que há de mais nobre. No centro de Sniper Americano, portanto, está a mesma discussão que Clint Eastwood, de 84 anos, vem travando durante todas as últimas décadas. Filme a filme, o cineasta que no passado foi o pistoleiro lacônico e implacável dos westerns, e o irascível e sumamente compassivo (para com as vítimas, e só para com as vítimas) policial "Dirty" Harry Callahan, vem examinando os efeitos da violência cometida em um espírito de justiça, ou do que seus perpetradores crêem ser justiça (leia ao lado). É o que ele faz novamente em Sniper Americano: retratar a corrosão que a violência acarreta mesmo quando norteada pelo senso de responsabilidade. O Chris Kyle do livro nunca chega a admitir os matizes da sua experiência como Seal no Iraque; o do filme, vivido por Bradley Cooper como um homem cujo interior vai ficando cada vez mais compacto e opaco, também não articula vocalmente suas ambiguidades, mas as exprime de maneira inequívoca. Com a família, toda vez que volta da guerra, Kyle é irritadiço, impaciente, entediado: não só as mortes pelas quais responde lhe pesam, como ele não sabe mais o que fazer de si quando não está olhando pela mira de seu rifle. É um viciado em crise de abstinência. Essa complexidade e a ambivalência de Eastwood sobre seu personagem — meio admiração, meio estranhamento — perderam-se no debate inflamado de que Sniper Americano se tornou alvo. Atacado com palavras vitriólicas pelo documentarista Michael Moore, pelo comediante Seth Rogen e pelo apresentador Bill Maher, e defendido com igual medida de histeria e ignorância por figuras como Sarah Palin, o filme enfrenta um fenômeno semelhante ao que se verificou no Brasil com Tropa de Elite, o dos julgamentos baseados na reação da plateia: quando Sniper Americano estava ainda sendo exibido em circuito restrito, todas as resenhas o cobriram de elogios. Quando passou a circuito amplo e estourou na bilheteria (já superou os 320 milhões de dólares no mundo e deve se tornar o segundo filme proibido para menores de 18 anos mais rentável da história, depois de A Última Tentação de Cristo), o vento virou: agora, como muitos dos espectadores são da opinião de que Kyle é um herói sem ressalvas, o filme é uma patriotada, um libelo republicano, uma homenagem a um fascista, um manifesto xenófobo — no livro e no filme, Chris Kyle se refere aos iraquianos como "selvagens", de onde muitos automaticamente inferem que Eastwood partilha de sua opinião. Mas por que então a cena descrita no primeiro parágrafo estaria no coração do filme, como de fato está? Pelas mesmas razões, presumivelmente, que levaram Eastwood a fazer um filme do ponto de vista dos japoneses na II Guerra. Para os americanos, o front do Pacífico foi o mais sangrento do conflito; as noções de honra dos japoneses e a crueldade com que tratavam seus prisioneiros de guerra lhes pareceram sempre incompreensíveis, e foram intensamente demonizadas. Em Cartas de Iwo Jima (2006), no entanto, Eastwood foi pela primeira vez no cinema americano — ou no japonês — procurar os homens por trás dessas imagens fixas. Sniper Americano desde a primeira cena indica que seu personagem é o estrangeiro; no cenário em que ele se move como mito ou herói, uma mulher e uma criança nutrem um desejo tão absoluto de expulsá-lo dali que se dispõem a morrer para matá-lo. Um lado não entende as razões do outro, mas cada um dos lados crê que suas razões são tão legítimas quanto claras. Já a guerra, essa é cada vez mais nebulosa. AS INDICAÇÕES Melhor filme Ator - Bradley Cooper Roteiro adaptado Montagem Mixagem de som Edição de som AÇÃO OFENSIVA, VALOR DEFENSIVO Com papel importante em todas as guerras desde o século XVIII, na I e na II Guerra Mundial o sharpshooting foi tornado pela Alemanha peça essencial no combate em trincheira e em área urbana: a tradição dos alemães em equipamentos ópticos de altíssima precisão constituiu uma vantagem inicial de que eles tiraram o máximo proveito. Seus adversários rapidamente entenderam a inteligência estratégica com que os alemães aplicavam o sharpshooting e desenvolveram suas próprias formas de incorporá-lo ao combate. Na Batalha de Stalingrado, a ação dos snipers soviéticos foi decisiva para estancar o avanço dos nazistas sobre a cidade. Entre as lendas do período estão Vassili Zaitsev e Lyudmila Pavlichenko (veja o quadro ao lado), que atuavam sem os benefícios dos modernos rifles de precisão, como miras ultrapotentes, cálculo informatizado e até estações barométricas. Embora mal compreendido, ou mesmo tachado de covarde ou assassino, o sniper poupa vidas. Por mais planejada que seja uma ação de combate, granadas e rajadas de armas automáticas vão voar de ambos os lados; são imensas as probabilidades de que inocentes e combatentes sejam mortos ou feridos, e edificações destruídas. O fogo do sniper, porém, é selecionado e de alto valor. Se bem treinado no reconhecimento de alvos, ele protege os homens que estão no chão, com visão limitada, e minimiza o impacto do fogo inimigo. Nos conflitos modernos, sua ação pode evitar o uso de armamento pesado ou de apoio aéreo. Agindo conforme as regras e no melhor de sua capacidade, enfim, o sniper não produz dano colateral - a morte ou a mutilação de civis - e ainda reduz as oportunidades de que os outros combatentes o produzam. ALGUNS DOS HOMENS E MULHERES MAIS LETAIS DA HISTÓRIA Acostumado desde criança a caçar, o finlandês Simo Häyhä ganhou dos seus inimigos soviéticos o apelido de Morte Branca: fez 505 tiros fatais confirmados em um período de apenas 100 dias durante a II Guerra. Häyhä nem sequer usava mira telescópica: preferia a velha cruzeta de metal. Em março de 1940 foi atingido por um tiro soviético e perdeu quase toda a face esquerda. Mas sobreviveu. Só morreria em 2002, aos 96 anos. Durante cinco semanas de 1942, na Batalha de Stalingrado, Vassili Zaitsev (1915-1991) matou 225 alemães, incluindo-se aí um grande número de oficiais e nada menos que onze snipers inimigos. Seu total de mortes confirmadas, porém, é bem maior: algo como 400. Retratado por Jude Law no filme Círculo de Fogo, de 2001, Zaitsev também começou na infância, caçando nos gelados Urais. Dada a intensidade com que treinava snipers - cerca de meio milhão de homens e mulheres foram preparados para a função -, o Exército Vermelho produziu várias outras figuras notórias nessa categoria, entre as quais a bela Roza Shanina, morta em ação em 1945, aos 20 anos, com 59 mortes confirmadas, e a ucraniana Lyudmila Paviichenko (1916-1974), a recordista entre as mulheres, com 309 alvos abatidos. Embora menos lembrado que Zaitsev, o georgiano Vasilij Kvachantiradze (1907-1950) teve um rendimento excepcional: dos 534 alemães que abateu, 215 eram oficiais da Wehrmacht. O americano Carlos Hathcock (1942-1999), com 93 mortes confirmadas na Guerra do Vietnã, é o autor do tiro mais célebre da história do sharpshooting: de uma longuíssima distância, ele matou um sniper vietcongue ao cravar uma bala pela mira da arma do adversário diretamente no seu olho. Hathcock deteve por muito tempo também o recorde de tiro fatal mais longo em combate, disparado de uma distância de 2286 metros do alvo. O recorde atual, porém, pertence ao inglês Craig Harrison, que em 2009 abateu dois talibãs em um ninho de metralhadoras a 2475 metros. O canadense Francis Pegahmagabow "(1891-1952), com 378 alemães abatidos durante a I Guerra Mundial, é uma lenda da categoria. Seu total pode ser muito maior: ele fazia questão de que seus tiros fatais só fossem creditados quando verificados pessoalmente em campo por um oficial. VÁRIAS REFLEXÕES SOBRE A VIOLÊNCIA Clint Eastwood tem se dedicado repetidas vezes a questionar os mitos do modo de vida americano e a dissecar os eleitos nefastos da violência. OS IMPERDOÁVEIS (1992) Do que trata: no maior dos faroestes da era moderna, um pistoleiro de aluguel volta à ativa para salvar seu rancho e sua família, e envolve-se num impasse sem solução entre justiça e violência. "Matar um homem é uma coisa infernal", diz o veterano Bill Munny a um jovem que deseja segui-lo na carreira. SOBRE MENINOS E LOBOS (2003) Do que trata: um terrível ato de violência cometido contra um garoto reverbera décadas depois, de maneiras cada vez mais profundas e trágicas, na vida de todos que foram tocados pelo episódio. MENINA DE OURO (2004) Do que trata: um treinador de segunda linha cede à insistência de uma jovem para treiná-la no ringue. À ascensão da boxeadora interpretada por Hilary Swank segue-se uma das quedas mais tristes já retratadas no cinema. GRAN TORINO (2008) Do que trata: um operário aposentado defende, por questão de princípio, os vizinhos asiáticos que tanto despreza da ação de uma gangue - mas não só descobre neles uma ética em comum como, no desfecho, faz a violência dos agressores se voltar contra eles próprios de forma arrasadora. 7#2 CINEMA – FALSO REALISMO Marion Cotillard é ótima, mas Dois Dias, Uma Noite destoa na obra dos irmãos Dardenne. Sandra mal e mal se recuperou de uma depressão, mas vai voltar à linha de montagem de uma fábrica no interior da Bélgica. Uma amiga, porém, a avisa de que a direção promoveu uma votação: ou Sandra retorna ao trabalho, ou a equipe recebe o bônus anual de 1000 euros. E, dos dezesseis colegas, só dois votaram por abrir mão do dinheiro. Mas, como o capataz fez uma campanha suja contra ela, Sandra ganha direito a uma nova votação na segunda-feira de manhã. Desmoronando, mas encorajada pelo marido (Fabrizio Rongione), ela passará o fim de semana visitando os companheiros, um por um, e pedindo a eles que votem em seu favor. Sem o emprego, sua família não chega ao fim de cada mês, e terá de deixar sua casa para voltar à habitação social. Sem o bônus, muitos dos colegas passarão necessidade. Tomado como impasse moral, Dois Dias, Uma Noite (Deux Jours, Une Nuit, Bélgica/França/Itália, 2014), já em cartaz no país, é pleno de interesse. Visto como cinema, bem menos. Se o filme anterior dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, O Garoto da Bicicleta, irradiava luz e calor na sua dissecção de um drama tão crível quanto trágico — um garoto rejeitado pelo pai tem de aceitar que este não o ama para então se deixar amar pela mulher que pretende adotá-lo —, aqui é arranjada e esquemática a sua visão dos males do capitalismo global e da insegurança das classes trabalhadoras ameaçadas por uma economia recessiva. A fábrica é pequena na medida exata para que nenhum sindicato interfira — uma improbabilidade num país europeu. Os colegas de Sandra formam um corte estatístico da demografia belga — alguns velhos, outros mais jovens, uma família árabe, um imigrante africano —, e também suas reações se distribuem proporcionalmente entre os polos do apoio irrestrito e da rejeição total. Mesmo o naturalismo tantas vezes sublime dos Dardenne aqui é forçado: as dezenas de cenas de Sandra tocando campainhas ou batendo em portas e apresentando-se a quem as abre são um falso recurso realista, já que o intervalo de tempo abrangido pelo título obviamente está comprimido nas duas horas habituais. Em meio a tudo isso, a indômita Marion Cotillard, como Sandra, briga consigo mesma, com o mundo e todos nele para recobrar seu senso de valor pessoal. Ela merece concorrer ao Oscar, mas o filme não faz muito por merecê-la. ISABELA BOSCOV 7#3 MÚSICA – BIBLIOTECA MUSICAL Indicado ao Oscar por dois filmes, o francês Alexandre Desplat é um dos mais versáteis autores de trilhas sonoras. Na música de O Grande Hotel Budapeste, de Wes Anderson, ouvem-se o cimbalom, instrumento de percussão de origem húngara, e o mandolim, espécie de avô do bandolim. Em O Jogo da Imitação, de Morten Tyldum — cuja trilha foi composta e gravada em exíguas três semanas —, os dedilhados de piano e as cordas e percussão nervosas traduzem a luta contra o relógio do matemático inglês Alan Turing, interpretado por Benedict Cumberbatch, para decifrar os códigos secretos dos nazistas. No mais convencional Caçadores de Obras-Primas, dirigido e estrelado por George Clooney, a trilha é inspirada nas composições pomposas de sir Malcolm Arnold (1921-2006) e Elmer Bernstein (1922-2004). São criações tão diferentes entre si que mal dá para acreditar que saíram da pena do mesmo compositor — o francês Alexandre Desplat, de 53 anos, que neste ano concorre duplamente ao Oscar de trilha sonora, por Hotel Budapeste e por O Jogo da Imitação. "Sou uma biblioteca cinematográfica e musical. Na minha casa ouvia-se de jazz e música clássica a fado", disse ele em entrevista a VEJA. Na Hollywood "clássica", as trilhas eram geralmente grandiloquentes e traziam a assinatura de músicos que tinham um pé no terreno erudito — caso, entre outros, do próprio Malcolm Arnold e de Erich Korngold (1897-1957). Na segunda metade do século passado, a música pop, em suas mais variadas vertentes, penetrou com força nas trilhas. E, embora a orquestra não tenha sido aposentada, apareceram magos do teclado como Vangelis e Hans Zimmer. Múltiplo, Desplat incorpora todas essas tendências. Flautista de formação (tocou em Alfagamabetizado, de Carlinhos Brown), abandonou o sonho de se tornar concertista porque ele não preencheria suas ambições. "Os temas de Alex North para Spartacus e de John Williams para Guerra nas Estrelas foram fundamentais para que eu decidisse me transformar em autor de trilhas sonoras", diz. Desplat não apenas escreve para orquestras, como faz questão de regê-las — tanto que, em dezembro do ano passado, comandou a Sinfônica de Londres numa noite dedicada às suas obras. Além de conter dezenas de trabalhos para o cinema francês, seu currículo conta com colaborações com cineastas como Stephen Frears e Roman Polanski e filmes da franquia Harry Potter. A indicação dupla ao Oscar é a sétima (e oitava) de sua carreira. Ele é considerado o favorito, ainda que os temas de Interestelar estejam entre as melhores criações da carreira de Hans Zimmer. Desplat sonha um dia trabalhar em parceria com Edu Lobo. O francês é mesmo um grande fã da música brasileira: diz que prefere a voz de Elis Regina à de Édith Piaf. SÉRGIO MARTINS 7#4 LIVROS – O CRONISTA DA CATÁSTROFE Marcha de Radetzky, obra-prima de Joseph Roth, reconstitui, em tom melancólico, o fim do Império Austro-Húngaro. “Temos tantas obrigações para com Voltaire, Herder, Goethe e Nietzsche quanto as temos para com Moisés e seus pais judeus." Assim escrevia o romancista e jornalista judeu Joseph Roth (1894-1939) a seu amigo, o vienense e também ele escritor e judeu Stefan Zweig, em 1933, poucos meses depois da chegada ao poder de Adolf Hitler na Alemanha. Alarmado com a crescente inclinação europeia à cegueira moral e à bestialidade política, Roth buscava expressar com essa frase poderosa não a idolatria intelectual do típico judeu culto e cosmopolita — coisa que ele era —, mas algo mais fundo na sua psicologia: o sentimento de pertencer a uma civilização em vias de desaparecer. Nascido em Brody, na atual Ucrânia, Joseph Roth seria para sempre um produto e um súdito leal do Império Austro-Húngaro, do imperador Francisco José I. E razões para tanto não lhe faltavam: a monarquia dos Habsburgo criou, ainda que precariamente, um vasto império multiétnico no qual gerações de judeus puderam viver em certa paz. É o fim desse mundo que o portentoso romance Marcha de Radetzky (tradução de Luis Sérgio Krausz; Mundaréu; 424 páginas; 31 reais), obra-prima de Roth, canta em tom de elegia. Misturando em sua prosa minuciosamente elaborada o olhar do cronista (o autor foi correspondente em Paris e Berlim durante anos) e o do romancista de pendor épico, Roth monta um grande painel do mundo austro-húngaro anterior à I Guerra Mundial. O leitor percorre esse universo através da história de três gerações da família Trotta, do capitão Joseph Trotta, alçado à nobreza por um gesto heróico na Batalha de Solferino (1859), até a degradação sem sentido de seu neto, o tenente Carl Joseph (em muito uma representação dos próprios tormentos de alcoólatra do autor), que termina seus dias nos limites eslavos do império, vizinho à Rússia. No lugar do sentido usual do épico, esse tipo de narrativa heroica que habitualmente nos pinta o quadro geral de uma época, aqui percebemos o todo pelas partes, o grandioso pelo diminuto: na repetição inquestionada dos mesmos rituais banais, como a abertura da correspondência ou o uso reiterado de frases feitas na conversação em família, sente-se toda a rigidez do império comandado por Francisco José. Sem aventuras típicas do épico, domina o romance — esplendidamente bem traduzido — a sensação de catástrofe iminente, de colapso antevisto. Ele viria, de fato, e Roth e seu amigo Stefan Zweig foram vítimas muito peculiares do desmoronamento do mundo a que pertenceram. EDUARDO WOLF 7#5 VEJA RECOMENDA DISCOS SHADOWS IN THE NIGHT, BOB DYLAN (SONY MUSIC) • Desde que a cantora e pianista Diana Krall vendeu milhões de cópias reciclando bossa nova e canções americanas do início do século XX, o disco de standards virou tão obrigatório quanto um álbum natalino. Bob Dylan, que havia saudado Jesus, Papai Noel e grande elenco em Christmas in the Heart (2009), também adentrou o mercado dos standards — mais precisamente, do repertório de Frank Sinatra — em Shadows in the Night. Mas, felizmente, faz tudo à maneira de Dylan. Apesar de ter gravado no estúdio da Capitol Records, em Los Angeles (onde Sinatra registrou alguns dos melhores momentos de sua carreira), ele trouxe as composições para o seu universo sonoro. Trocou a orquestra e os arranjos pomposos por sua banda — na qual a steel guitar chorosa de Donny Herron paira acima dos outros instrumentos. A voz que foi definida por David Bowie como "uma mistura de cola e areia" jamais poderia igualar a elegância de Sinatra, mas está mais afinada do que em trabalhos anteriores. Faixas como I’m a Fool to Want You (uma das raras composições de Sinatra) ganham um registro mais sofrido, e a operística Some Enchanted Evening se transforma num blues. SOUNDS OF THE 80s, VÁRIOS INTÉRPRETES (WARNER) • Sounds of the 80s é um programa da rádio BBC de Londres no qual a apresentadora Sara Cox celebra a produção de uma década de ombreiras e cortes de cabelo horrendos — mas cuja música era o fino, com estrelas pop em início de carreira (Madonna, Whitney Houston), diversos subgêneros derivados do punk (o new romantic, por exemplo) e os últimos suspiros criativos de heróis do rock (Rolling Stones). Inspirado por Sara Cox, este álbum duplo apresenta clássicos dos anos 80 com nova roupagem, a cargo de artistas veteranos e da novíssima geração do pop inglês. Grande parte dos convidados optou pela recriação em vez da cópia. O cantor Sam Smith, por exemplo, empresta sua voz e seu estilo doloroso a How Will I Know, de Whitney Houston. Mas são os veteranos que roubam a festa: o Manic Street Preachers faz uma deliciosa cover de Start Me Up, dos Rolling Stones, em ritmo de dance music; Lisa Stansfield coloca soul na originalmente desanimada You're the Best Thing, do duo pop The Style Council; e a musa caipira Dolly Parton canta Lay Your Hands on Me, de Bon Jovi, com mais vigor do que o intérprete original. DVD GLORIA (ESTADOS UNIDOS, 1980. VERSÁTIL) • Gloria Swenson (Gena Rowlands) é uma quarentona nova-iorquina, ex-amante de um mafioso, que vai tocando a vida numa vizinhança suspeita do Bronx. Certo dia, ao pedir uma xícara de açúcar no apartamento vizinho, ela ganha de quebra um garotinho de 8 anos (John Adames) e um caderno com registros de operações fraudulentas — o pai do menino é um contador da máfia que sabe demais, e a família está prestes a ser chacinada. Contrariada por ver ameaçadas a paz — ela odeia crianças — e a vida, Gloria torna-se fugitiva dos antigos comparsas. De salto alto, roupas de grife, arrastando o garotinho por uma mão e empunhando o revólver na outra, ela não vacila e enfrenta os perseguidores a bala. O trepidante misto de drama feminino e filme de gângster foi escrito pelo diretor John Cassavetes (1929-1989) apenas para ser vendido a um grande estúdio e financiar uma de suas cultuadas produções independentes. Felizmente ele mesmo acabou dirigindo sua mulher, Gena — indicada ao Oscar —, neste que é um dos bons momentos do cinema americano da virada da década de 70 para a de 80. LIVRO CINEMA OBJETOS CORTANTES, DE GILLIAN FLYNN (TRADUÇÃO DE ALEXANDRE MARTINS; INTRÍNSECA; 256 PÁGINAS; 34,90 REAIS OU 19,90 NA VERSÃO ELETRÔNICA) • Repórter de um jornal de Chicago, Camille Preaker não fica nem um pouco entusiasmada quando seu editor a convoca para cobrir o que parece ser obra de um assassino em série — uma menina morta, outra desaparecida — em sua cidade natal, a pequena Wind Gap, no Estado do Missouri. Camille vê-se compelida a voltar à casa onde viveu seus conflituosos anos de infância e adolescência. Lá estão as origens de um sofrimento que a jornalista expressa inflingindo cortes à própria pele. Mas ela não cabe no estereótipo de vítima de uma família abusiva: Camille é também uma investigadora arguta, que logo estará abrindo caminhos que a polícia local negligencia. Ela mesma uma nativa do Missouri, Gillian Flynn sabe explorar os meandros obscuros que se escondem sob a pacata vida do Meio-Oeste americano. Foi o que fez no sucesso Garota Exemplar, seu terceiro romance, convertido em um ótimo filme dirigido por David Fincher. E é o que já se vê nessa sua obra de estreia, lançada em 2006 e só agora traduzida no Brasil. CORAÇÕES DE FERRO (FURY, ESTADOS UNIDOS/INGLATERRA/CHINA, 2014. JÁ EM CARTAZ NO PAÍS) • Aficionados de filmes de guerra têm muito com que se entreter neste misto de drama e aventura: em abril de 1945, numa esticada final para além das linhas inimigas, os destacamentos americanos de tanques enfrentam os ataques cruentos dos alemães, transtornados com a derrota iminente (a II Guerra terminaria logo mais, em 8 de maio), e têm de suportar condições de combate cada vez mais precárias. Para o time do tanque Fury, faltam munição, combustível, alimento, peças de reposição — e, o mais grave, algum descanso. Embora exausto, Wardaddy (Brad Pitt), o comandante da unidade, continua impelindo seus soldados adiante. A essa altura, todo sentido que poderia haver na guerra já se esvaiu para eles: matar é só o que importa. Para fazer completa justiça a essa visão desencantada, só faltaria o diretor David Ayer, de Marcados para Morrer, ter riscado da página alguns diálogos repletos de lugares-comuns e escapado dos estereótipos — batem ponto aqui o soldado devoto, o representante de uma minoria étnica, o caipira ignorante e o novato ingênuo, figuras indefectíveis em nove de cada dez filmes do gênero. 7#6 OS LIVROS MAIS VENDIDOS FICÇÃO 1- Se Eu Ficar. Gayle Forman. Novo Conceito 2- O Pequeno Príncipe. Antoine de Saint-Exupéry. AGIR 3- Para Onde Ela Foi. Gayle Forman. NOVO CONCEITO 4- Cinquenta Tons de Cinza. E.L. James. INTRÍNSECA 5- Somente Sua. Sylvia Day. PARALELA 6- O Irmão Alemão. Chico Buarque. COMPANHIA DAS LETRAS 7- Cidades de Papel. John Green. INTRÍNSECA 8- A Culpa É das Estrelas. John Green. INTRÍNSECA 9- A Menina que Roubava Livros. Markus Zusak. INTRÍNSECA 10- O Sangue do Olimpo. Rick Riordan. INTRÍNSECA NÃO FICÇÃO 1- Nada a Perder 3. Edir Macedo. PLANETA 2- O Capital no Século XXI. Thomas Piketty. INTRÍNSECA 3- O Diário de Anne Frank. Anne Frank. RECORD 4- Sonho Grande. Cristiane Correa. PRIMEIRA PESSOA 5- Eu Sou Malala. Malala Yousafzai. COMPANHIA DAS LETRAS 6- Livre. Cheryl Strayed. OBJETIVA 7- A Teoria do Tudo. Jane Hawking. ÚNICA 8- Bela Cozinha: As Receitas. Bela Gil. GLOBO 9- Aparecida. Rodrigo Alvarez. GLOBO 10- Uma Breve História do Tempo. Stephen Hawking. INTRÍNSECA AUTOAJUDA E ESOTERISMO 1- Ansiedade. Augusto Cury. SARAIVA 2- Não Se Apega, Não. Isabela Freitas. INTRÍNSECA 3- O Poder da Escolha. Zibia Gasparetto. VIDA & CONSCIÊNCIA 4- Geração de Valor. Flávio Augusto da Silva. SEXTANTE 5- 60 Dias Comigo. Pierre Dukan. BEST SELLER 6- Eu Não Consigo Emagrecer. Pierre Dukan. BEST SELLER 7- De Volta ao Mosteiro. James Hunter. SEXTANTE 8- As Regras de Ouro dos Casais Saudáveis. Augusto Cury. ACADEMIA DE INTELIGÊNCIA 9- O Monge e o Executivo. James Hunter. SEXTANTE 10- A Arte de Fazer Acontecer. David Allen. CAMPUS 7#7 J.R. GUZZO – A PALAVRA “I” Uma das complicações da política brasileira de hoje é que a poeira não baixa. Deveria baixar, pela lei da gravidade; "se subiu tem de descer", dizia Raul Seixas numa de suas muitas observações notáveis. Mas no Brasil da presidente Dilma Rousseff a lei da gravidade parece não estar funcionando. Seria mais uma dessas leis que não pegam? O fato concreto é que a poeira em volta do governo, quase sempre levantada por ele mesmo, continua subindo — e o inconveniente disso é que deixou de existir a opção de esperar que a poeira baixe antes de tomar decisões, como recomenda a sempre tão prudente sabedoria popular. Esperar como? Antes de se desmanchar uma nuvem já vem outra, e se alguém ficar esperando o ambiente clarear corre o risco de passar a vida sem fazer nada. No momento, com a catástrofe que o Palácio do Planalto criou ao se deixar moer como picadinho na eleição de Eduardo Cunha para a presidência da Câmara dos Deputados, subiu um poeirão de estrada de terra em Mato Grosso em tempo de seca. Vai ficar aí por tempo indeterminado — e o resultado é que a vida pública brasileira continuará no voo cego que vem fazendo nos últimos quatro anos. Sempre há a esperança de que bata um vento capaz de limpar a atmosfera, mas a experiência informa que está rodando no governo Dilma um programa pelo qual os ventos, caprichosamente, não têm tido a bondade de produzir os efeitos esperados deles — a cada vez que venta, ao contrário, tudo o que se tem é mais poeira. Mal começou o ano de 2015, e mal começou o segundo mandato da presidente, e já estamos em pleno breu. Para ficar numa lista resumida, continua em perfeita forma a tempestade de areia levantada no ano passado pelo assalto sem precedentes, e sem limites, aos cofres da Petrobras — só possível, na vida real, pela colaboração prestada aos assaltantes durante doze anos seguidos por parte dos dois governos do PT; no melhor dos casos, é um espetáculo de inépcia, negligência e imperícia que respeitados juristas já acham vizinho da cumplicidade. Do fim do ano para cá, a coisa só fez piorar. Seguiu-se, logo de cara, a nuvem de pó desse incompreensível novo ministério. Logo depois veio a revelação de que o Brasil corre o risco de um desastre no fornecimento de energia elétrica — ao contrário da afirmação pública da presidente, um ano atrás, de que graças ao seu governo o país tinha energia de sobra, barata e eterna. As contas públicas de 2014 fecharam com um rombo inédito na história: o governo federal arrecadou por volta de 1,2 trilhão de reais, mas conseguiu gastar quase 350 bilhões de reais a mais do que isso. Enfim, na eleição da Câmara, Dilma e seus grandes estrategistas políticos lançaram-se a uma aventura desesperada. Inventaram de declarar guerra a Eduardo Cunha, embora ele comande uma porção decisiva do PMDB, partido que há doze anos é o principal aliado do próprio governo, perderam e criaram uma nova liderança para a oposição, mais perigosa que todas as que já estavam aí. A vitória de Cunha parece um desses casos clássicos em que a malícia é superada pela burrice. Dilma queria derrotar o PMDB para pagar menos por seu apoio. Vai pagar mais, e não pode fazer nada contra a bizarra espécie de aliado-adversário que criou. Não pode, é claro, expulsar o PMDB do governo, como não podia desde o começo da briga; não pode retaliar nem os partidos anões que comprou com cargos e que a traíram votando em Cunha. Quem iria colocar em seus lugares? Para piorar, o candidato da presidente ficou com pouco mais de 25% dos votos na eleição — uma soma ridícula, francamente, para quem pretende a "hegemonia" na vida política brasileira, como está escrito nos documentos oficiais do PT. A torcida do governo, agora, tenta se animar com a ajuda que imagina receber de gigantes do movimento de massas como Gilberto Kassab e Renan Calheiros — é a isso que está reduzida. Mais que tudo, Dilma pôs em circulação, inteiramente de graça, a palavra "impeachment". É um despropósito, levando-se em conta que não está provada até agora nenhuma conduta criminal em relação a ela. Só está provado que faz um governo horrível, mas a Constituição não diz que o governo tem de ser bom; diz apenas que tem de ser eleito. Se é ruim, o remédio prescrito pela lei são eleições de quatro em quatro anos. Ao mesmo tempo, o Congresso não é obrigado a esperar decisões da Justiça para depor presidente algum; fez exatamente isso, por sinal, com Fernando Collor. Eis aí o que pode acabar sendo, para Dilma Rousseff, a mãe de todas as poeiras.