0# CAPA 4.3.15 VEJA www.veja.com edição 2415 – ano 48 – nº 9 4 de março de 2015 [descrição da imagem: desenho de uma correte, com elos grandes de cores alternando verde e dourado. Ela atravessa a capa, estendendo-se do canto superior esquerdo para o canto inferior direito da capa. Um dos elos, dourado, no meio da capa, está quebrado, espalhando cacos ao redor.] A CRISE É DE CONFIANÇA O rebaixamento da Petrobras, a falta de convicção nas medidas econômicas e o desentendimento na política são três faces de um mesmo mal: a perda de credibilidade. [parte superior da capa: na esquerda imagem do Cristo Redentor e na direita, Carmen Miranda e D. Pedro II] ESPECIAL RIO 450 ANOS De Villegagnon a Tom Jobim, de Pedro II a Carmen Miranda, VEJA escolheu 450 cariocas da gema ou de adoção que mudaram a cidade, o Brasil e até o mundo. _______________________ 1# SEÇÕES 2# PANORAMA 3# BRASIL 4# INTERNACIONAL 5# GENTE - OSCAR 6# ESPECIAL – RIO DE JANEIRO 450 ANOS 7# ARTES E ESPETÁCULOS _____________________________ 1# SEÇÕES 4.3.15 1#1 VEJA.COM 1#2 CARTA AO LEITOR – A FALTA DE CREDIBILIDADE 1#3 ENTREVISTA – QANTA AHMED – UM ROSTO PARA O INIMIGO 1#4 LYA LUFT – NÃO FUI EU, PROFESSORA 1#5 LEITOR 1#6 1#1 VEJA.COM DIÁLOGO COM JOVENS INSPIRADORES Em suas três edições, o Prêmio Jovens Inspiradores recebeu mais de 30.000 inscrições de estudantes universitários e recém-formados com espírito de liderança e compromisso com a busca da excelência. Foram 115 finalistas e semifinalistas com projetos para os mais diversos desafios dos setores público e privado. Ao longo deste ano, VEJA.com vai ouvir o que esses jovens talentos têm a dizer. Em artigos e debates em vídeo, eles abordarão os principais problemas do país — e contarão o que pretendem fazer para resolvê-los. MUNDO LIVRE Política internacional é o tema do mais novo programa da grade de TVeja, Mundo Livre. Na conversa mais recente, os jornalistas de VEJA Diogo Schelp, Vilma Gryzinski e Duda Teixeira analisam a carreira e o estilo de comando de Vladimir Putin - o político mais surpreendente da atualidade, que desafia o mundo para fazer a Rússia renascer como potência. PERFIL EMPREENDEDOR No Brasil, uma em cada quatro empresas fecha as portas antes de completar dois anos. Para os brasileiros que sonham com o próprio negócio, força de vontade é apenas o primeiro passo para se tornarem empresários sem cair nessa estatística de mortalidade corporativa. "O empreendedor nato é inovador e tem capacidade de articulação para mobilizar pessoas em torno de suas ideias", diz Alexandre Nabil Ghobril, coordenador de pesquisa, desenvolvimento e inovação da Universidade Mackenzie. No site de VEJA, o leitor pode fazer o teste elaborado pelo Sebrae para descobrir se tem perfil empreendedor. OS "COMENDADORES" DO SERTANEJO No aniversário de dez anos de 2 Filhos de Francisco, que levou mais de 5 milhões de pessoas aos cinemas, a dupla Zezé Di Camargo e Luciano se mantém em alta, com canções entre as mais tocadas nas rádios e um novo DVD, Flores em Vida, que sai em março. Além de fazerem sucesso na música, os irmãos goianos, agora com 52 e 42 anos, respectivamente, administram um império que permeia os mercados imobiliário e agropecuário. "Se no final da vida eu morrer sem nada, o que Deus me deu para viver, eu vivi, e sou eternamente grato. Sou um vencedor, antes de chegar ao fim da batalha", diz Zezé em entrevista ao site de VEJA. 1#2 CARTA AO LEITOR – A FALTA DE CREDIBILIDADE Existe uma quase unanimidade entre os estudiosos das disparidades de desenvolvimento entre as nações de que o fator comum a todas que podem ser consideradas bem-sucedidas é a confiança externa e interna que angariaram. No extremo oposto, também existe um fator coincidente a unir as nações que nunca se desenvolveram ou foram protagonistas de quedas históricas monumentais. Na base do fracasso está o fato de nunca terem conquistado credibilidade ou de a terem perdido. Uma reportagem desta edição de VEJA analisa o rebaixamento da Petrobras pela agência de análise de risco Moody's e alerta para o perigo de que essa queda de confiança na estatal brasileira do petróleo se alastre, atingindo outras grandes empresas e até o governo, o que seria um infortúnio de vastas proporções. A reportagem entra nas questões técnicas dessas avaliações e aborda o grau de autoridade das agências para dizer se determinada empresa ou país oferece ou não risco aos investidores. Mostra ainda que de nada adianta um país ou empresa, unilateralmente, declarar que não aceita a avaliação do seu risco, como a presidente Dilma Rousseff tentou fazer ao criticar a decisão da Moody's. No fim das contas, o que prevalece é que os investidores se baseiam nas notas das agências quando decidem sobre onde colocar seu dinheiro. Muitos gestores de fundos multibilionários são obrigados, por regras internas, a tirar o dinheiro investido em empresas e países que perdem determinado grau de confiança das agências de risco. A melhor expressão de credibilidade que um país pode ter são suas instituições. Elas representam a garantia perene de que os atos, e não as palavras ou as promessas de momento de um governante, vão materializar a confiança depositada. As instituições existem para garantir a propriedade privada, o funcionamento sadio dos mercados e o investimento dos governos em infraestrutura e educação de qualidade. Idealmente, elas desenvolvem mecanismos que obrigam os governos a alocar recursos sem afrontar as leis, as penais e as de mercado. Como diz o ditado inglês: "Quer que confiem em você? Seja confiável". Isso vale para governos, empresas e para qualquer pessoa que vive em sociedade. 1#3 ENTREVISTA – QANTA AHMED – UM ROSTO PARA O INIMIGO A médica inglesa, porta-voz do Islã moderado, diz que para derrotar os terroristas é preciso primeiro admitir que eles agem em nome de uma religião, ainda que uma minoria os apoie. FELIPE CARNEIRO A médica inglesa Qanta Ahmed, de 46 anos, trabalhava na Arábia Saudita quando dois aviões derrubaram as Torres Gêmeas, em 2001. "Fiquei chocada com o júbilo de meus colegas. Eram profissionais educados, médicos de alto gabarito, alguns deles formados nos Estados Unidos", diz ela. Esse episódio fez com que Qanta, muçulmana devota e filha de paquistaneses, decidisse voltar para sua Londres natal para se tornar uma porta-voz do Islã moderado. Depois, foi morar em Nova York, onde ajudou bombeiros, policiais e voluntários que participaram do resgate às vítimas dos atentados de 11 de setembro de 2001 a superar seus traumas. Mais recentemente, ela trabalhou em um programa de desradicalização de jovens resgatados das fileiras do Talibã, no Paquistão, em 2012. De Nova York, por telefone, Qanta concedeu a seguinte entrevista a VEJA. Em um encontro para discutir a violência extremista, o presidente americano Barack Obama recusou-se a chamar o terrorismo de "islâmico". Ele estava certo? Obama tem medo de ofender os outros. É assim que funciona o raciocínio politicamente correto. O problema é que isso pode inibir outras coisas. A questão aqui não é de correção política, e sim conseguir identificar corretamente o agressor. Como lutar contra um mal, se nem sequer há coragem de chamá-lo por seu devido nome? Um inimigo genérico, sem rosto? O comportamento de Obama é o inverso daquele discurso que vigorou após o atentado de 11 de setembro de 2001 em Nova York. O que se observou depois desse episódio foi uma retórica do "nós contra eles". O Islã foi transformado em vilão. De uma maneira ou de outra, perde-se o espaço necessário para um diálogo e para a compreensão do fenômeno. Temos de ultrapassar essa barreira e discutir os fatos abertamente. Só assim será possível solucionar a questão. A Casa Branca argumenta que Obama precisa dos muçulmanos moderados na guerra ideológica contra os terroristas. Faz sentido? Isso vai depender da atitude das lideranças islâmicas. Em Nova York, depois de 2001, falou-se em monitorar alguns muçulmanos na cidade. Os líderes religiosos e comunitários ficaram indignados e discursaram muito sobre direitos civis, direitos humanos, islamofobia, tudo isso. Mas eles só falavam sobre direitos dos muçulmanos, e não de todos os cidadãos. Pensei comigo mesma: o Islã ensina que temos um dever pessoal. É preciso cuidar do corpo que Alá nos deu, observar as orações, proteger suas criações e criaturas. Tudo isso implica que nós, muçulmanos, temos um dever para com a sociedade. Temos de mantê-la em paz. Nenhum daqueles líderes muçulmanos estava pensando na sociedade nova-iorquina, que tinha toda a razão em ter medo naquela época. Eles só pensavam em si mesmos. Há certa cumplicidade dos clérigos muçulmanos com os grupos radicais e suas ideologias extremistas? Em toda a história do islamismo, houve pouquíssimos momentos em que se debateu a sério o perigo das ideologias tóxicas que aparecem em nosso meio. É preciso muita coragem para mudar esse comportamento. O descontentamento no mundo islâmico com as charges com Maomé, como as que foram publicadas pelo jornal francês Charlie Hebdo, torna mais difícil uma colaboração dos moderados? Não faz sentido que pessoas sejam assassinadas em um país como a França para vingar um crime contra uma lei de blasfêmia que não é islâmica, e sim islamista (relativa a vertente política do Islã). O problema está nos vários regimes que sustentam a ideologia islamista. Neles, qualquer um pode ser atacado se for acusado de islamofóbico. Há um paradoxo muito grande. Os radicais querem ser respeitados, querem que nosso profeta Maomé seja tratado com consideração e não permitem que cartuns com sua imagem sejam publicados. Mas, quando se olha dentro do mundo islâmico, é fácil perceber que não há respeito pelas outras culturas, por outras crenças. Isso está errado. Mais de 6000 cristãos tiveram de fugir do Iraque. Quase nenhum país do Golfo Pérsico permite a construção de igrejas, com exceção do Catar. No Níger, na África, foram destruídas igrejas católicas e neopentecostais. Dá para dizer que os islamistas estão ganhando a guerra? Eles já instituíram o terror em vários países e agora estão estendendo seus domínios pelo mundo. Com o atentado no Charlie Hebdo, jornais passaram a evitar charges com Maomé. É como se a lei da blasfémia, que já está sendo aplicada em teocracias, agora tivesse de ser obedecida também na Europa. O medo de Obama de chamar os terroristas de muçulmanos tem uma raiz parecida. O radicalismo está expandindo seu alcance territorial. Há um vácuo de poder na Líbia, e é natural que o Isis tentasse ocupá-lo. Não há dúvida de que os islamistas estão levando a melhor. O papa Francisco disse que "a liberdade de expressão não dá o direito de insultar a fé do próximo". O papa estava assim legitimando ataques como o do Charlie Hebdo? Não é agradável ver sua religião sendo ofendida. Mas, na prática, a limitação da liberdade de expressão sempre se torna totalitarista, como tem acontecido nos países islamistas. Alguns governantes do mundo islâmico, como o egípcio Abdel Fatah Sisi e o rei jordaniano Abdullah II, já acordaram para o perigo? Sim. Acredito que o vídeo que mostrou o piloto jordaniano Muaz Kasasbeh sendo queimado vivo em uma cela, divulgado pelo grupo terrorista Estado Islâmico, alterou muita coisa. Foi um choque. A cena gerou uma indignação em todos os lugares, inclusive nos países de maioria muçulmana. No Cairo, a Universidade Al Azhar, que vinha sendo criticada por suas inclinações condescendentes com o terror, divulgou um comunicado no qual dizia que esse ato não tem respaldo no Islã e pediu que os responsáveis sejam punidos. Em grande parte, isso aconteceu porque Kasasbeh era um muçulmano devoto. Ele não só fazia parte da força aérea de um país muçulmano como tinha cumprido o hajj (a peregrinação para Meca, considerada sagrada), observava as cinco orações diárias e memorizou o Corão quando criança. Esse piloto era um símbolo de um país muçulmano moderno e por isso sua morte incomodou tanto. Até então não existia a ideia de que qualquer um poderia se tornar a próxima vítima? Na Síria, há relatos até de crucificações, mas que não provocaram nenhum ultraje. Talvez agora tenhamos atingido um ponto de inflexão. Demorou um pouco para que o Estado Islâmico fosse percebido como uma ameaça a todo o mundo, e não somente um fenômeno localizado. O Estado Islâmico defende a criação de um califado regido pela charia, a lei islâmica. Isso faz sentido segundo o Carão? Os islamistas acreditam que a única maneira possível de o Islã manifestar-se é na forma de um Estado. O Corão, porém, não fala absolutamente nada a respeito disso. O livro sagrado é totalmente vago sobre como as pessoas devem se governar. Não especifica a maneira de regular uma sociedade. O termo dawla, que significa o Islã como um Estado, não figura entre as 80.000 palavras do Coroo. Por que, então, há tantos governos baseados no Islã político dentro e fora do Oriente Médio? Os políticos usam a religião para se legitimar. A Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, por exemplo, são monarquias que se legitimam sob o argumento de serem as guardiãs da lei islâmica. No passado, fizeram acordos com os clérigos para se manter no poder. Deixaram o clero oprimir a população em nome do Islã para assim reforçar a própria autoridade. A ideia de "punição impiedosa", por exemplo, não existe no Islã, mas encontrou um vasto apoio no mundo islâmico moderno com apedrejamentos, vergastadas e amputações. É fácil ver que acontecem mais violações de direitos humanos em países de maioria muçulmana do que em outros lugares. Esses métodos cruéis não eram tão frequentes como hoje. Em cinco séculos de história legal do Império Otomano, houve apenas um caso de apedrejamento até a morte. Os atuais governantes podem até apresentar seus motivos como religiosos, principalmente os da Arábia Saudita, que se dizem guardiões das cidades sagradas de Meca e Medina, mas a verdade é que não o são. Eles são meramente políticos totalitários. Muita gente achou que os protestos contra as ditaduras, que ficaram conhecidos como Primavera Árabe, espalhariam democracias pelo Oriente Médio. Por que isso não aconteceu? Para algo assim surgir, é preciso haver universidades, jornais e tribunais independentes. São esses os requisitos que poderiam trazer a mudança cultural necessária para uma democracia plena. Quando morei na Arábia Saudita, entre 1999 e 2001, a internet tinha acabado de entrar no país. Os celulares começaram a ser vendidos enquanto eu estava lá. Tentava me informar pela rede, mas havia tantos sites bloqueados que era frustrante. A monarquia tinha, e ainda tem, o controle absoluto da informação. A população, é claro, fica menos capaz, menos preparada. Infantil, até. Quando surge uma oportunidade como a Primavera Árabe, ela não sabe o que fazer. Não foi escrito nenhum manifesto político. Não apareceu nenhuma ideia sobre como criar uma economia saudável. Foi uma revolta emocional, não racional. O fracasso era o único desfecho possível. Como se desradicalizam crianças no Paquistão? O projeto do qual participei atendia crianças que estavam envolvidas em atividades do Talibã. Elas eram informantes, soldados ou estavam se preparando para ataques suicidas com explosivos. O programa funcionava em uma escola técnica para crianças e jovens entre 10 e 20 anos. Ao mesmo tempo que aprendiam uma profissão, eles recebiam instrução islâmica de clérigos moderados, que ajudavam os pequenos a traduzir e a interpretar os textos árabes corretamente. O objetivo era desfazer o trabalho dos talibãs, que se aproveitaram da ignorância das crianças e de adultos iletrados para manipulá-los à sua própria vontade, distorcendo o que de fato diz o livro sagrado. O trabalho deu resultado? Não é fácil conseguir isso. Os meninos recebem ajuda de psicólogos e de jovens que estabelecem com eles uma relação de irmão mais velho. Quando eles terminam a escola, esse contato continua uma vez por semana e chega o momento de reinserção na comunidade. Há, contudo, um ressentimento forte da população, pois eles foram informantes do Talibã ou participaram de alguma operação bélica. A senhora é uma defensora de Israel, como se diz? Não me considero assim. Israel é um país constituído e não precisa da minha ajuda. Sou pragmática. Israel foi fundado na mesma época em que criaram o Paquistão. Ambos são legítimos, e não vejo como isso possa ser discutível. Quando viajo para Israel, contudo, sempre fico um pouco triste. Não encontrei a pluralidade que existe lá em nenhum país do Oriente Médio. Isso inclui mulheres muçulmanas na direção de hospitais, cristãos israelenses na corte suprema e judeus que foram perseguidos e banidos de outros países levando vida digna. É daquela maneira que toda a região ao redor deveria ser. Por que há tanto antissemitismo no mundo islâmico? Todo totalitarismo precisa de um inimigo central, que possa ser considerado como "o outro" e leve a culpa pelos problemas da sociedade. Esse sentimento transforma-se, quase sempre, em antissemitismo. Foi assim com o comunismo, com o nazismo e é assim com o islamismo. Infelizmente, lendo os livros de história, sabemos dos tipos de discriminação genocida que essa espécie de sentimento pode produzir. Mas não só. Na realidade, a perseguição aos cristãos não tem nada de diferente: todos são considerados infiéis que merecem morrer. 1#4 LYA LUFT – NÃO FUI EU, PROFESSORA Fatos espantosos na política, que comanda a economia e o resto neste naufrágio lento e grave que precisa ser detido, nos lembram o menino que, fazendo na sala de aula algo reprovável, diante do olhar severo da professora aponta o dedo para um colega e diz depressa: "Não fui eu, profe, foi ele!". O primeiro impulso de quem comete um malfeito é esquivar-se da culpa e mentir acusando outros. É preciso caráter e honradez para assumir responsabilidades. Quando isso acontece no segmento público, de governo, sobretudo em altos escalões, é dramático, e envergonha a todos. Merecemos algo mais e melhor, que nos ajude a acreditar nas autoridades que nos governam (ou desgovernam). Pois perdemos essa confiança, o que se compara a uma enfermidade séria ou mutiladora. Como crianças que descobrem que não podem confiar no pai ou na mãe e ficam relegadas ao desalento, ao pessimismo, à confusão. Nestes tempos de aflição e vexames que nos diminuem aos olhos de outros países, mal se compreende que tudo isso tenha acontecido sem que a gente soubesse — às vezes fingíamos não notar ou nem queríamos saber. O que fizeram com bens, empresas, fortunas quase incalculáveis, que pertenciam afinal ao povo brasileiro e serviriam para construir centenas de escolas, creches, postos de saúde, hospitais, casas e estradas? O que fizeram, aliás, com a confiança de tantos? Tarde começamos a enxergar, como adultos capazes de questionamentos sérios, e cobranças mais do que justas. Não aceitamos mais as toscas acusações, disfarces, ocultamentos, fatos e atos para desviar a atenção da dura realidade que só os muitos ingênuos, ou interessados em manter a situação, se negam a ver. É hora de urgentemente mudar, de nos unirmos em nome do direito, da justiça, da honra. Temos entre nós alguém como o juiz Sérgio Moro, que, apoiado por homens sérios do Ministério Público Federal, representa homens e mulheres, velhos e jovens de bem atingidos na sua honra pela atitude de governantes, grandes empresários, políticos e até membros do Judiciário que há anos acobertam males que solaparam não só a economia mas a confiança e a honra do país — sombria e real constatação. O impensável cortejo de ignomínias assumiu tal dimensão que muitos admitem — como se isso os desculpasse — que sem suborno, sem roubo e mentira não conseguiriam nem exercer suas funções e seu trabalho (vejam-se pronunciamentos de vários diretores das hoje malvistas empreiteiras). Muitos milhares de inocentes perderão — e já vêm perdendo — o emprego, começando pelos trabalhadores do gigante Petrobras e de centenas de empresas a ele ligadas que vão fechar ou reduzir dramaticamente seu funcionamento. O iludido povo brasileiro pagará essas contas. O que dirão, o que farão o funcionário de escritório eficiente, o operário exausto, o professor mal pago, o médico incansável, a dona de casa aflita, o pai de família revoltado, que com seus impostos sustentaram entidades ineficientes que deveriam prover boa saúde, educação, transportes e outros? Que falha em nosso discernimento nos fez escolher tão mal governantes e representantes? Faltou a base de qualquer nação: educação. Que não deve nivelar por baixo nem facilitar, mas proporcionar a todos a merecida ascensão na sociedade. Alguém bem informado escolhe diferentemente daquele submetido a uma manipulação impiedosa, mantido feito gado impotente longe do progresso que precisa ser distribuído entre todos os brasileiros, até os mais desvalidos — e não haveria mais as multidões de desvalidos que ainda povoam o país. O que eles, os mais pobres entre os pobres, e todos os que têm acesso a alguns bens recebem neste dramático momento não são desculpas nem projetos reais, mas acusações absurdas, posturas toscas, tentativas desastradas de tapar o sol cruel da realidade. Somos as nossas escolhas: talvez se possa escolher diferente, pelo nosso bem e pelo bem deste país, que não deveria estar tão vexado e afastado da posição que pode ter no mundo civilizado. LYA LUFT é escritora 1#5 LEITOR OS SEGREDOS DE RICARDO PESSOA Peço ao senhor Ricardo Pessoa, empreiteiro da UTC que tanto já prejudicou o Brasil financiando campanhas políticas na ilegalidade, que pelo menos nos ajude a começar a limpar a sujeira no país, mesmo que esse processo seja efetivo só para nossos netos e bisnetos ("O que ele sabe é dinamite pura", 25 de fevereiro). MARCELO DE LIMA SANTOS Belo Horizonte (MG), via smartphone Excelente a cobertura de VEJA dos desdobramentos da Operação Lava-Jato — com muita coisa ainda a ser desvendada. É de assustar todo esse escândalo que rodeia os corredores do Planalto. Fica a pergunta: quanto tempo ainda vai levar para que o nome de todos os envolvidos nessa trama venha à tona? GEORGE ALEX VARGAS GUEDES Porto Alegre, RS A cada semana, na capa de VEJA, somos apresentados a um cidadão com uma carga elevadíssima de falcatruas, "propinatos" e outras coisas mais. Aí você diz: igual a esse não aparece outro. Não é que apareceu o cidadão Ricardo Pessoa, que, no meio da multidão, é "pessoa" acima de qualquer suspeita? Esse colocou os demais no bolso. Coitada da nossa Petrobras e de todos nós. OSÉAS FERNANDES Cachoeira de Itapemirim, ES O que tem sido mostrado pela Operação Lava-Jato é só uma ponta do que acontece no Brasil há mais de cinquenta anos (alguns dizem que começou com a construção de Brasília). Existe uma relação promíscua nas obras públicas entre fiscais e fiscalizados, em que o grande prejudicado é o contribuinte brasileiro. Só que a impunidade tende a fazer o problema crescer, como aconteceu nas obras da Petrobras. Nesse caso, o problema foi agravado por uma administração ruinosa, que quase quebrou a empresa. Evidentemente, não passaremos daqui para a frente sem empreiteiras, que, aliás, têm demonstrado muita competência técnica. Há esperança de que o escândalo sirva para dar um choque de moralização no serviço público e vez a empreiteiras menores, já que tudo tem sido concentrado nas mãos de algo como dez empresas, que fazem todas as obras (ou talvez só as repassem) aqui e até no exterior. RICARDO GUILHERME BUSCH São Paulo, SP Há peixe graúdo em Brasília que não dorme mais, com medo de ser preso após o desdobramento da investigação da Operação Lava-Jato. O bicho vai pegar para os políticos envolvidos nesse megaescândalo. OSVALDO ALVES FONTENELLE Goiânia, GO Os "petralhas" evoluíram muito, e rapidamente, em seus malfeitos. Desde o café da manhã de dona Benedita da Silva em Buenos Aires, passando por Bancoop/ João Vaccari Neto, República de Ribeirão Preto, Aloprados, dólares na cueca, Erenice Guerra, Rose Noronha, mensalão, outras gatunagens e, agora, o petrolão. Nunca se viu nada como isso na história universal. ROBERTO CARDERELLI São Paulo, SP A confusão que o PT faz entre partido e governo já havia sido demonstrada de maneira bucólica quando dona Marisa Leticia, ex-primeira-dama, no começo do governo Lula, fez um canteiro de flores vermelhas, em forma de estrela, no Palácio do Planalto. ENI MARIA MARTIN DE CARVALHO Botucatu, SP JOAQUIM LEVY Como posso acreditar num ministro da Fazenda como Joaquim Levy, que se condiciona a ser subordinado a uma presidente da República que é incapaz e maquiadora das contas públicas, como ocorreu com o superavit primário em 2014 ("Os trabalhos de Levy", 25 de fevereiro)? DALMI DE MELO REZENDE Formiga, MG MARINE LE PEN A entrevista com a deputada francesa Marine Le Pen ("Unidos pelo nacionalismo", 25 de fevereiro) possui características ideológicas muito distintas para os dias de hoje. Fiquei impressionado com a omissão histórica referente à libertação da França realizada por forças americanas, canadenses, australianas e inglesas durante a II Guerra Mundial. A França e os franceses têm uma dívida de gratidão muito grande com os Estados Unidos. As questões relacionadas aos imigrantes são decorrentes da política imperialista e colonialista que a França usou (e da qual abusou) na África e na Indochina durante séculos. Suas posições com relação aos radicais islâmicos, judeus, russos e ucranianos são meramente retóricas e colocadas para admiração dos seus eleitores. Daqui do Brasil espero que os eleitores franceses reflitam melhor sobre suas alternativas de voto, porque a França é um decisivo protagonista mundial para a preservação dos valores democráticos. HÉLIO PILNIK São Paulo, SP É assustador que a França, a pátria do Iluminismo, tenha uma líder tão obscurantista como Marine Le Pen. E o grande paradoxo é que alguém da direita francesa conserve os mesmos vícios da esquerda, como o antiamericanismo, a hostilidade à União Europeia, os nacionalismos, a simpatia pela Rússia de Vladimir Putin, o apoio ao esquerdismo da Grécia e, para completar, o apoio aos regimes bolivarianos da América Latina. Saber que essa líder francesa detém 30% das intenções de voto do país deve ser um tormento para a outra grande parcela dos franceses. JOSÉ ASSIS SIMÕES UTSCH Curitiba, PR A líder da direita francesa Marine Le Pen me impressionou pela alienação e percepção equivocada da geopolítica atual. Pareceu-me que sua cabeça mistura dogmas esquerdistas, como antiamericanismo e estatismo, com xenofobia anti-islâmica. Se ganhar, vai ser um desastre para a Franca. GERALDO C. CARVALHO JR. São Luís, MA Fiquei estarrecido com a entrevista de Marine Le Pen a VEJA. Há muito não leio um festival de tolices com tal nível de irracionalidade. Entre as pérolas da madame Le Pen, podemos citar: 1) a Rússia não é agressora. Foram os Estados Unidos que criaram condições para os conflitos na Ucrânia; 2) a Otan não deveria existir; 3) Putin não tem pretensões expansionistas. É de estarrecer que a possível futura presidente da França tenha opiniões tão desconectadas da dura realidade. Esperamos que, no exercício do poder, se ainda houver tempo, ela modifique radicalmente seus conceitos estapafúrdios, notadamente no tocante à temida e poderosa Rússia. ERNANI CUNHA Rio de Janeiro, RJ Na entrevista de páginas amarelas de VEJA, a deputada francesa Marine Le Pen afirmou que "direita e esquerda" não existem na França. No Brasil ocorre o mesmo. Desde 2003, com a entrada do então presidente dito "esquerdista", Lula, a oposição intitulada de "direita" ficou indolente. Na realidade, o que existe no Brasil e na França são amontoados de partidos de "centrão", que ficam em cima do muro e agem de acordo com conveniências de interesses sórdidos. Ah, se o Brasil, de fato, tivesse uma direita radical... As coisas não estariam neste alto grau de putrefação em que se encontram nossa política e sociedade. LUIGI SERRATRICE BOTTO São Pauto, SP DRONES Sobre a reportagem "Proibido voar alto" (25 de fevereiro), informamos que, desde 2009, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) tem analisado e acompanhado a evolução das discussões sobre o tema em nível internacional, pois a regulamentação também está em discussão em vários países do mundo. A Anac participa de iniciativas como a Joint Authorities for Rulemaking on Unmanned Systems e o Painel de RPAS (Remotely-Piloted Aircraft Systems), da Organização de Aviação Civil Internacional (Oaci), fóruns mundiais em que são definidas recomendações de diretrizes normativas aos países relativas à aviação civil. A Anac instituiu um grupo de trabalho sobre RPA em 2013, que tem discutido internamente e com outros órgãos públicos, além de ter realizado eventos públicos para interessados. Em 2011, a Anac emitiu a primeira autorização para a operação aérea de RPA pelo Departamento de Polícia Federal. Desde então, tem trabalhado na concepção, na elaboração e no aprimoramento de normativos para regular a operação de RPA no Brasil. A proposta de regulamentação será submetida a audiência pública ainda neste semestre para a participação dos interessados e da sociedade em geral, garantindo a devida transparência ao processo decisório. GABRIELA LEAL Assessora de comunicação social da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) Brasília, DF SEGREDOS DE RICARDO PESSOA 2 Sobre a reportagem "O que ele sabe é dinamite pura" (25 de fevereiro), esclarecemos que o ministro da Defesa, Jaques Wagner, não recebeu nenhuma doação da empresa UTC, do senhor Ricardo Pessoa, de forma clandestina. Nem teria motivo para tal. Todos os recursos doados à sua campanha estão declarados legalmente. O ministro lamenta que a acusação tenha sido divulgada a partir de uma delação premiada que não se oficializou. SONIA CARNEIRO Assessoria de comunicação social Ministério da Defesa Brasília, DF CRISE HÍDRICA Com relação à reportagem "Vai dar para escapar?" (25 de fevereiro), as informações são, no mínimo, contraditórias quando dizem que, "desde o início da crise hídrica, o governador Geraldo Alckmin foi superado pela população na capacidade de tomar providências para minimizá-la". Como poderia a população ter economizado 100 bilhões de litros de água se não tivesse o governo do estado iniciado, ainda em janeiro de 2014, uma ampla campanha publicitária alertando-a para a gravidade do problema? O Estado de São Paulo foi o único ente federativo a implantar o bônus; o único a reduzir o consumo per capita de água em 2014; o único a aumentar a interligação dos sistemas e a realizar obras essenciais e inovadoras. Ninguém ficou parado em São Paulo, nem o governo nem a população, cuja participação tem sido fundamental para o enfrentamento do problema. Cerca de 80% dos moradores da região metropolitana reduziram o consumo de água, em uma demonstração de solidariedade e consciência. São Paulo adotou todas as medidas necessárias para garantir o abastecimento e seguirá trabalhando sempre em defesa de sua população. VINÍCIUS TRALDI Assessoria de imprensa do governo do Estado de São Paulo São Paulo, SP CRACK Os depoimentos de personagens da reportagem "Os filhos do crack" (25 de fevereiro), feita pelo jornalista Leonardo Coutinho, com as singelas fotos de André Liohn, mostram como VEJA pode ser um instrumento educativo e informativo, e contribuir com a sociedade na qual vivemos, que está doente de tudo: de políticos (principalmente do setor da saúde), de educação, de amor e de respeito ao ser humano, porque estamos em uma guerra contra a dependência química, que cada vez aumenta mais por falta de informação do poder público e dos lares já doentes. JARDEL LUÍS ZALOTIM Campinas, SP Chorei só de olhar as fotos da reportagem sobre o vício em crack, antes mesmo de lê-la. As expressões da bebê Lethicia, tão pequena, inocente, indefesa, foram perfeitamente captadas e passam ao leitor quão terrível e dramática é a situação dessa família. FLAVIA JANOT Rio de Janeiro, RJ VEJA se supera a cada edição — não só expondo sem temor as vísceras dos desmandos e da corrupção no Brasil, mas também se firmando como um importante veículo de utilidade pública. As fotos em que a criança é exposta são mais úteis que qualquer propaganda oficial. Pungente, sobretudo, o seu olhar para a mãe e a avó, como se buscasse entender as razões para tanto sofrimento. Como filho de alcoólatra que se deixou sucumbir pelo vício, causando danos irreparáveis a toda a família, não pude conter as lágrimas. Obrigado. VEJA, pois sei que essa reportagem trará imensuráveis benefícios ao combate a esse câncer social. VALTER GOMES BARBOSA Brasília (DF), via tablet A reportagem de VEJA expôs, sem rodeios, a dura realidade dos viciados nessa droga mortal, somente conhecida pelos familiares dos dependentes. Sem distinguir classe social, o crack está deixando como herança uma legião de jovens despidos de valores morais, improdutivos e sem futuro. RENNI A. SCHOENBERGER Joinville, SC Sou policial militar no Maranhão. Durante a minha rotina de trabalho, lido diretamente com usuários de drogas e traficantes. Outro dia fomos procurados por uma mãe que pedia ajuda porque o filho tinha "furtado" panelas de sua casa e as trocado por crack. Ao chegar ao local, nós o encontramos deitado sobre um monte de lixo; só pele e ossos. Não há droga mais letal para destruir uma família do que o crack. ANTONIO MARCOS ALVES DA SILVA Imperatriz, MA J.R. GUZZO Excelente o artigo "Supremo Tribunal Cultural" (25 de fevereiro), de J.R. Guzzo, no qual são apontados os desmandos dos atuais poderosos do governo petista que vêm sucateando nossa tão esquecida cultura. Os comentários sobre os Arcos do Jânio refletem exatamente o pensamento de milhões de paulistas e paulistanos que aprenderam a admirar e conviver com aquele grande achado e que agora têm de olhar para o grande emaranhado de rabiscos feitos por alguns que se intitulam artistas e emporcalham a cidade. PAULO FONSECA São Paulo, SP CLINT EASTWOOD A entrevista com o ator e diretor Clint Eastwood ("Impávido colosso", 25 de fevereiro) mostra o perfil de uma pessoa com um comportamento a ser seguido. Depois de mais de oito décadas, ele sabe o que quer da vida e não lhe falta vontade de evoluir e produzir mais e melhores filmes, em vez de calçar chinelos, gastar o estofamento de um velho sofá e saborear o sucesso. De Dirty Harry aos dias atuais, atuando ou por trás das câmeras, Eastwood é para Hollywood como tabasco para um bloody mary: marcante e indispensável. HUMBERTO BELTRAN Nova Alvorada do Sul, MS PARA SE CORRESPONDER COM A REDAÇÃO DE VEJA: as cartas para VEJA devem trazer a assinatura, o endereço, o número da cédula de identidade e o telefone do autor. Enviar para: Diretor de Redação. VEJA - Caixa Postal 11079 - CEP 05422-970 - São Paulo - SP: Fax: (11) 3037-5638; e-mail: veja@abril.com.br. Por motivos de espaço ou clareza, as cartas poderão ser publicadas resumidamente. Só poderão ser publicadas na edição imediatamente seguinte as cartas que chegarem à redação até a quarta-feira de cada semana. ________________________________________ 2# PANORAMA 4.3.15 2#1 IMAGEM DA SEMANA - #RUSSOS ESTÃO CHEGANDO 2#2 DATAS 2#3 CONVERSA COM MARIANA XAVIER – MAIS LOUCA É QUEM ME DIZ... 2#4 NÚMEROS 2#5 SOBEDESCE 2#6 RADAR 2#7 VEJA ESSA 2#1 IMAGEM DA SEMANA - #RUSSOS ESTÃO CHEGANDO Depois da Ucrânia, em estado de guerra suspensa, as próximas vítimas tremem. O que as lindas gêmeas Anya e Katya, com suas modernas roupinhas camufladas, estão fazendo ao celular? Certamente não mandando emoticons fofos, sobre paz e amor. Embora tenham mais potencial como armas na guerra de propaganda, elas estão alistadas no Exército da República Popular de Donetsk. Nunca ouviram falar nesse país? É porque não existe de direito, mas de fato, como uma das regiões da Ucrânia ocupadas pelos rebeldes que querem ser anexados pela Rússia, na qual identificam suas origens. É esse conflito que está suspenso de forma tão precária que nem o mais extravagante dos otimistas acreditaria que o copo de Vladimir Putin já está meio vazio. De onde veio a vodca que incendeia a Ucrânia muita coisa ainda há de jorrar. O pânico mais imediato está nos Países Bálticos, que temem a manipulação de sua população de origem russa com os mesmos propósitos expansionistas vistos na Ucrânia. A presidente da Lituânia, Dália Grybauskaite, invocou as "novas circunstâncias geopolíticas" ao anunciar a reinstauração do serviço militar obrigatório. Número atual do contingente militar lituano: 7900 integrantes. Pode ser coisa de rato que ruge, mas a presidente já chamou a Rússia de "Estado terrorista". O mais próximo disso que o cauteloso secretário de Estado dos EUA, John Kerry, já chegou foi reclamar que os russos persistem em contar "mentiras na minha cara". Nossa, quem imaginaria que seriam capazes de uma coisa dessas? Desmoralizado por seu próprio presidente, Barack Obama, que o mandou proferir um discurso churchilliano contra a Síria enquanto ele decidia não fazer nada, Kerry representa tudo o que resta entre o expansionismo putiniano e suas próximas vítimas. E até Anya e Katya sabem que a distância entre Kerry, embora honrado e bem-intencionado, e Churchill abrange umas três voltas à Rússia. E ainda sobra um bocado de chão. VILMA GRYZINSKI 2#2 DATAS MORRERAM Leonard Nimoy, ator, diretor, fotógrafo e poeta americano, o Mr. Spock da série de TV e dos filmes Jornada nas Estrelas. Nascido em Boston, filho de judeus, Nimoy fez de um gesto oriundo de uma vertente ortodoxa de sua religião — os dedos mínimo e anelar juntos, separados do médio e do indicador, também unidos —, seguido da frase "Live long and prosper" (na dublagem, ficou como "Vida longa e próspera"), um símbolo da cultura nerd. Embora o orelhudo Spock se pautasse pela razão, não vencia suas emoções. Isso transparecia na amizade com o Capitão Kirk e em episódios nos quais era tomado pelo amor, como quando se derretia pela humana Leila Kalomi. Nimoy tinha uma relação conflituosa com o personagem, evidenciada em duas autobiografias: Eu Não Sou Spock (1977) e Eu Sou Spock (1995). Dia 27, aos 83 anos, de doença pulmonar, em Los Angeles. Renato Rocha, ex-baixista carioca da extinta banda brasiliense Legião Urbana. O músico, que nasceu em São Cristóvão, cresceu no Distrito Federal, onde se envolveu com o movimento punk até passar a integrar o Legião, formado por Renato Russo, Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos. Permaneceu no grupo de 1984 a 1989, período em que coassinou sucessos como Ainda É Cedo (com Renato Russo, Bonfá, Dado e Ico Ouro Preto) e Quase sem Querer (em parceria com Renato Russo e Dado). Deixou a banda pouco antes da gravação do disco As Quatro Estações. Entregue ao álcool e às drogas, Negrete, como era conhecido, se atrasava constantemente para os compromissos do grupo. Em 2012, morando nas ruas do Rio, disse na televisão que perdera tudo para o vício. Nos últimos meses, porém, voltara a tocar em tributos ao Legião. Dia 22, aos 53 anos, no Guarujá. Donald R. Keough, executivo americano que presidiu a Coca-Cola de 1981 a 1993 e costuma ser lembrado como um dos responsáveis pela globalização da empresa e pelo fracasso na introdução de uma nova fórmula para o refrigerante. Nascido em Iowa, serviu na Marinha no fim da II Guerra. Depois de deixar a Coca-Cola, comandou o banco de investimentos Allen & Company. Dia 24, aos 88 anos, em Atlanta. Clark Terry, trompetista americano de jazz que fez parte das orquestras de Count Basie e tocou com outros gigantes do gênero, como Dizzy Gillespie, Louis Armstrong e Billie Holiday. Mentor de Miles Davis, Terry, que nasceu no Missouri, ganhou um Grammy honorário em 2010. Popularizado como solista da banda do programa The Tonight Show, foi professor na William Paterson University. Dia 21, aos 94 anos, em Pine Bluff, Arkansas. David Martins Miranda, pastor paranaense que fundou, em 1962, a Igreja Pentecostal Deus É Amor. Atualmente, ela tem cerca de 22.000 templos espalhados, segundo a instituição, por mais de setenta países. Dia 21, aos 79 anos, em São Paulo. TER|24|2|2015 CONDENADO à prisão perpétua o ex-fuzileiro naval Eddie Ray Routh pelo assassinato, em 2013, de Chris Kyle, cuja autobiografia inspirou o filme Sniper Americano, de Clint Easíwood. Routh, 27 anos, baleou Kyle, 38, pelas costas, em um campo de tiro, usando armas da vítima; na ocasião, matou também Chad Littlefield, 35 anos. A mãe do criminoso havia pedido ao sniper que ajudasse Routh, diagnosticado como psicótico. Ex-integrante da Marinha, Kyle era considerado o atirador mais letal dos EUA, com 160 mortes — e um herói nacional. 2#3 CONVERSA COM MARIANA XAVIER – MAIS LOUCA É QUEM ME DIZ... Por causa de seus 82 quilos, a atriz foi chamada de baleia numa rede social. Respondeu, e ainda ouviu: "Morra gorda, então". Que tipo de sentimento leva uma pessoa a ofender outra com base em seu peso? É um incômodo com o trabalho, a alegria ou o sucesso do outro. Muito mais livremente atacadas, as magras também sofrem? Sim, mas não tanto, porque estão mais próximas das capas de revista. As musculosas também. O fato é que ninguém é obrigado a me achar, gorda, bonita. Ser gordo é saber que o tempo todo olham para você e falam a seu respeito? Vejo as pessoas comentando, mas é mais pelo trabalho que pela forma física. Na real, o que mais escuto é: "Pensei que você era mais gorda". O que acha do suposto elogio: "Ela é gordinha, mas tem o rosto lindo"? Preconceituoso. É como se, do pescoço para baixo, nada prestasse. Não tenho o corpo de menina do Fashion Rio, claro, mas como minha batatinha frita. Qual a pior coisa que pode acontecer para quem está acima do peso: ser chamado de acima do peso em vez de gordo, ouvir sugestões de dieta ou o ar de piedade? O ar de piedade. A pessoa supõe que você não pode ser feliz daquele jeito. E tem palavras que são péssimas, tipo "fortinha". Não, querida, não sou fortinha, estou gorda mesmo. E gente que deduz que você está grávida? Prefiro que digam que estou gorda a que achem que estou grávida. A gordura ou a falta dela podem ser associadas a traços de comportamento? É mito que gordinha é mais fogosa. Como não é verdade que todo gordo é engraçado. Já fez papéis em que sua forma física não tivesse sido levada em conta pelo diretor? Apenas um. Ser gorda acabou sendo positivo profissionalmente, pois entrei em um perfil específico. Todas querem ser secas e loiras. Gordo é gordo porque quer? A maioria não, mas muitas pessoas acham que gordo fica em casa o dia todo agarrado a uma panela de brigadeiro. Já vi muitos casos envolvendo questões emocionais graves. 2#4 NÚMEROS 23,05 reais será o valor que cada brasileiro passará a pagar anualmente para custear os gastos dos 513 deputados federais. Na última semana, a Câmara aprovou um pacote de aumento de gastos e novos benefícios aos parlamentares. 12,93 reais por cidadão é quanto custam anualmente os congressistas na Espanha. No Reino Unido, o gasto com os integrantes da Câmara dos Comuns é de 16 reais. Já a França supera o Brasil: 25,37 reais por habitante. 0 país, entre as maiores democracias do mundo, tem leis que autorizam o pagamento das passagens aéreas do cônjuge de parlamentar pelos contribuintes, uma das medidas do pacote anunciado pelo novo presidente da Câmara, Eduardo Cunha. 2#5 SOBEDESCE SOBE Turquia - O país tem três cidades - Izmir, Istambul e Bursa - na lista das cinco que mais cresceram no mundo em 2014, segundo o Brookings Institution. Desburocratização - Um novo programa do governo permitirá abrir uma empresa em até cinco dias e fechá-la em um dia pela internet." Etnicons" - Os emoticons da Apple que mostram expressões faciais terão agora cinco "tons de pele", além do amarelo. DESCE Tarifa telefônica - Por determinação da Anatel, as operadoras estão obrigadas a reduzir em até 22% o preço das chamadas de telefone fixo para celular. Com ou sem recibo? - Médicos, dentistas e psicólogos terão de informar à Receita o CPF dos pacientes já neste ano, o que facilitará o cruzamento de dados e dificultará as fraudes no setor. Fernando Pimentel - Na contramão de seus antecessores, o governador de Minas criou mais quatro secretarias e elevou para 21 o número de pastas no estado. 2#6 RADAR LAURO JARDIM ljardim@abril.com.br • GOVERNO NÃO GOSTOU Não é só Lula que tem reclamado de Dilma Rousseff. Dilma detestou e comentou com alguns interlocutores a ida de Lula, na terça-feira passada, a um ato "em defesa da Petrobras". O FIM DO REGIME Dilma Rousseff fará mais um mês da dieta que já a levou a perder 13 quilos. Depois, emenda na fase mais difícil — a manutenção. TEMPO QUENTE Cássio Cunha Lima, o líder do PSDB, mostrava a alguns oposicionistas no plenário do Senado na quinta-feira o artigo da Constituição que dá aos senadores a prerrogativa de processar o procurador-geral da República por crime de responsabilidade. EM DÍVIDA Menina dos olhos de Dilma Rousseff na campanha, o célebre Pronatec é motivo de dor de cabeça para Robson Andrade, o presidente da CNI. Andrade anda reclamando pelos cantos do governo — e motivos não lhe fartam: o Ministério da Educação está inadimplente em 250 milhões de reais com o Senai, que é parceiro do governo no programa. Andrade tem circulado em alguns gabinetes de ministros cobrando a fatura. O máximo que conseguiu foi ouvir que neste mês seria pago o vermelho de 2014. Em relação aos meses de janeiro e fevereiro - um total de mais 140 milhões de reais —, nem um real lhe foi prometido. • CONGRESSO PISCA-PISCA 1 Afinada, a dupla Renan Calheiros e Eduardo Cunha está funcionando como um pisca-pisca em relação ao governo: quando um acende, o outro apaga. Na reunião da cúpula do PMDB com Aloizio Mercadante e Joaquim Levy, na segunda-feira 23, no Palácio do Jaburu, Cunha defendeu a aprovação do pacote fiscal do governo. Na saída do encontro, de madrugada, Mercadante agradeceu o apoio: "Obrigado por sua posição". PISCA-PISCA 2 Renan, que passava na hora da demonstração de gratidão, aproveitou a deixa. "Eduardo, seu apoio realmente foi importante, como um contraponto", disse Renan. Ou seja, se é um "contraponto" significa que o PMDB pensa de forma contrária ao ajuste fiscal. Mercadante deve ter entendido o recado. Em outras ocasiões recentes, era Cunha quem batia e Renan quem amaciava. • LAVA-JATO A QUEM SERVE? Um interlocutor de Ricardo Pessoa, que o visitou na carceragem de Curitiba há duas semanas, fez a seguinte pergunta ao empreiteiro da UTC: "A quem serve o seu silêncio? A sua mulher e seus filhos ou ao João Vaccari Neto, Lula e o PT?". FALA, RICARDO A propósito, na terça-feira 24, de manhã, o telefone tocou na sala da força-tarefa do Ministério Público que investiga a Lava-Jato. Do outro lado da linha, um interlocutor da UTC. Com a proposta de conversar sobre uma eventual delação premiada. Os procuradores vão ouvir, mas estão descrentes. Nas vezes anteriores em que se reuniram, representantes de Ricardo Pessoa queriam um acordo em que o dono da UTC não assumiria responsabilidade nem mesmo pelos fatos sobre os quais o MP já tem provas. De qualquer forma, as conversas recomeçaram. FARTA CLIENTELA Nelson Jobim, que já trabalha para a Odebrecht na Lava-Jato, ganhou mais um cliente no escândalo. A Camargo Corrêa o contratou. MAIS UMA A Polícia Federal desconfia que Paulo Roberto Costa ainda esteja escondendo uma conta na Suíça. • BRASIL APROPRIAÇÃO INDÉBITA Desde dezembro, Rio de Janeiro e Alagoas não repassam aos bancos o dinheiro que recolhem na folha de pagamento dos servidores que tomam empréstimos consignados. Luiz Fernando Pezão e Renan Filho entesouraram até agora 450 milhões de reais e 50 milhões de reais, respectivamente. • PETROBRAS FUNDO DO POÇO Em 27 de setembro de 2010, quando a Petrobras protagonizou uma megacapitalização de 120 bilhões de reais, seu valor de mercado era de 270 bilhões de dólares. Hoje, vale 15% disso (41 bilhões de dólares). Pior: vale menos que algumas petrolíferas de segundo escalão, das quais o leitor nunca deve ter ouvido falar, como Anadarko (43 bilhões de dólares), Occidental (61 bilhões) e ConocoPhillips (81 bilhões de dólares). DO MERCADO Luciano Coutinho deixará o conselho de administração da Petrobras, mas, como o BNDES tem direito a uma cadeira, vai indicar seu sucessor. Não será alguém do banco, mas um executivo da iniciativa privada. • ECONOMIA 7 BILHÕES DE REAIS Se a encrencada Sete Brasil afundar, o Banco do Brasil perderá cerca de 7 bilhões de reais — a soma de sua exposição na empresa e nos estaleiros que orbitam em sua volta. UM PRESENTE PARA EIKE A Caixa Econômica Federal deu um prêmio a Eike Batista: o banco federal entrou, sem necessidade, no processo de recuperação judicial do estaleiro OSX para reaver 1,1 bilhão de reais. A Caixa, segundo a Lei de Falências, deveria estar blindada porque o pagamento do financiamento estava garantido pela alienação fiduciária de bens da OSX, suficiente para cobrir quase duas vezes o valor da dívida. Agora, a Caixa vai receber o dinheiro de volta parcelado em quarenta anos — um belo negócio, mas só para Eike. Toda a operação na Caixa foi tocada pelo diretor jurídico Jailton Zanon, indicado por Ricardo Berzoini. • OLIMPÍADA TOCHAS MILIONÁRIAS Aloizio Mercadante recebeu um orçamento feito pelos organizadores da Rio-2016 para a aquisição de tochas olímpicas: 10 milhões de reais para a compra de 15.000 unidades. Arregalou os olhos e avisou aos responsáveis pela incandescente fatura: refaçam as contas que o dinheiro está curto. • GENTE VAI VENDER Andressa Urach, que apareceu como um furacão em janeiro no mercado de subcelebridades, depois que ficou a um passo da morte em decorrência de complicações de uma aplicação de hidrogel, lançará no segundo semestre, pela Planeta, um livro de memórias voltado para o público evangélico, com a mesma estrutura do projeto editorial do best-seller Nada a Perder, escrito pelo bispo Edir Macedo. No livro, vai falar de prostituição, drogas e, claro, de sua conversão à Igreja Universal, ocorrida em fevereiro. 2#7 VEJA ESSA EDITADO POR RINALDOGAMA “Vou contar um segredo. A presidente do Brasil me disse uma vez: 'Ai, Pepe, é preciso ter paciência estratégica com a Argentina...!.” - JOSÉ MUJICA criticando, no jornal argentino Perfil - em uma de suas derradeiras entrevistas como presidente do Uruguai -, a postura da Casa Rosada em relação à integração regional. “Tomara que tenhamos tempo de evitar a mexicanização.” - PAPA FRANCISCO, revelando, em e-mail enviado ao vereador portenho Gustavo Vera, sua preocupação com o avanço do narcotráfico na Argentina. Diante da repercussão negativa da declaração, o Vaticano disse que não houve intenção de estigmatizar o povo do México. “Pode ter tido (...), vamos dizer assim, uma 'escorregadazinha', mas eu acho que prontamente a responsabilidade aflora e esse comprometimento é o que vai permitir a gente ter os juros caindo." - JOAQUIM LEVY, ministro da Fazenda, garantindo, em palestra na Câmara de Comércio França-Brasil, em São Paulo, que o país está no controle das contas públicas. “Eu não acho corporativismo.” - EDUARDO CUNHA (PMDB-RJ), presidente da Câmara Federal, defendendo a aprovação de um pacote de reajustes de verbas parlamentares que permite aos deputados usar dinheiro das respectivas cotas para pagar passagem de seu cônjuge do estado de origem até Brasília. “Hoje, policial é babá de bandido. Ele fica esperando o menor cometer uma infração para pegá-lo em flagrante.” - JOSÉ MARIANO BELTRAME, secretário estadual de Segurança do Rio, ao defender, em O Globo, a redução da maioridade penal. “A falha humana que eu mais gostaria de corrigir é a agressividade. Ela pode ter sido uma vantagem na época dos homens das cavernas (...). Agora, ela ameaça destruir todos nós.” - STEPHEN HAWKING, físico britânico, durante uma visita ao Museu da Ciência de Londres. Por favor, não me impeçam de ser do jeito que eu sou. Eu não quero ser velha e doente como muitos da minha idade. Por favor, não criem mais uma pessoa velha.” - YOKO ONO, 82 anos, viúva de John Lennon, em mensagem divulgada no seu site. “A brasileira, em geral, ama malha com elastano, que estica. E, por questões climáticas, também se tornou especialista em mostrar o corpo. Ninguém aguenta panos e panos. É o reinado do vestido tomara que caia.” - ALEXANDRE HERCHCOVITCH, estilista, na ELLE de março, que chega às bancas no dia 6. “A história recente está infestada de exemplos que demonstram que todas as tentativas de criar sociedades felizes — trazendo o paraíso à Terra — criaram verdadeiros infernos.” - MARIO VARGAS LLOSA, escritor peruano, Nobel de Literatura, em sua coluna publicada no diário espanhol El Pais e em outros veículos. EPÍGRAFE DA SEMANA A pretexto dos 450 anos do Rio de Janeiro “As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos.” - ÍTALO CALVINO, nome-chave da literatura italiana do século XX (1923-1985). ________________________________________ 3# BRASIL 4.3.15 3#1 ONDE HÁ FUMAÇA... 3#2 DE OLHOS BEM ABERTOS 3#3 UM NOVO FENÔMENO 3#4 UM OUTRO PERSONAGEM 3#1 ONDE HÁ FUMAÇA... ..há fogo? O grande temor agora é que a perda do "grau de investimento" da Petrobras contamine com desconfiança toda a economia, o que seria desastroso — e o governo, o que seria catastrófico MALU GASPAR E MARCELO SAKATE No ranking de fatores que define se as nações vão prosperar ou manter-se no atraso, a credibilidade figura no topo. É a confiança no futuro e nas instituições que, no fim das contas, faz com que as pessoas firmem contratos, invistam e emprestem dinheiro umas às outras. O economista americano e prêmio Nobel Douglass North, um dos que se debruçaram sobre o tema, demonstrou que a solidez das instituições é uma variável mais importante para o desenvolvimento de um país do que suas riquezas naturais, seu bom clima ou a fertilidade de seu solo — e que é a credibilidade que faz a diferença entre o crescimento e o atraso. O rebaixamento da nota da Petrobras pela agência de classificação de risco Moody's, anunciado na semana passada, é sintoma de que o Brasil está realizando uma perigosa inflexão para o pior dos caminhos. Hoje, aos olhos do mundo, a maior companhia brasileira deixou de ser considerada um investimento seguro para se tornar uma aposta especulativa. A tendência é que em breve outras casas de avaliação de risco anunciem a mesma conclusão. Se isso ocorrer, os efeitos para a Petrobras serão nefastos. Mas, se a queda na confiança alastrar-se por toda a economia, os problemas do Brasil poderão atingir dimensões calamitosas. Com a nova nota, fecham-se para a Petrobras os portões de um mercado de crédito de 15 trilhões de reais, três quartos do dinheiro disponível no planeta para empréstimos de melhor qualidade — leia-se a juros mais baixos e com exigências de garantias mais brandas. Esse mercado agora se fecha porque a maior parte dos fundos de investimento e de pensão do mundo só pode aplicar seus recursos em títulos de companhias e países que tenham o selo de confiança de pelo menos duas das três grandes agências de risco — além da Moody's, as outras são a Standard & Poor's e a Fitch (que, por ora, mantêm a nota da Petrobras um nível acima do grau especulativo). Os 5 trilhões que sobram são disputados a cotoveladas por um contingente de companhias e países que, sem escolha, pagam caro pelo dinheiro e são obrigados a oferecer garantias draconianas por ele. Para a Petrobras — que tem visto minguar seus recursos, drenados pela corrupção, má gestão e alta do dólar, entre outros fatores —, o rebaixamento da nota pela Moody's significa um tombo e tanto. Sua dívida, de 135 bilhões de dólares, é a maior do planeta. Sua fome de investimentos, pantagruélica. Para aumentar a produção no pré-sal, por exemplo, essencial para manter o dinheiro entrando no caixa, a estatal precisará de recursos vultosos. E terá de raspar seu já esvaziado caixa se até 30 de junho não conseguir publicar um balanço auditado. Certos empréstimos exigem como pré-requisito para o crédito a divulgação periódica desses relatórios, sob pena de o devedor ter de antecipar pagamentos. Sobre esse assunto, o relatório da agência foi direto. "A Moody’s não vê nenhuma garantia concreta de que essas demonstrações financeiras estarão disponíveis". Ao saber do rebaixamento, a presidente Dilma Rousseff optou pela reação que tem exibido com preocupante frequência, a de negar a realidade. Para Dilma, "faltou conhecimento à Moody's sobre a Petrobras, e a agência, infelizmente, não correspondeu" (a presidente absteve-se de dizer a quê). A Moody's vinha adiando o anúncio do rebaixamento da estatal desde 29 de janeiro, o dia seguinte ao da divulgação do balanço apresentado pela ex-presidente da Petrobras Graça Foster, sem aval de auditoria e com um cálculo não oficial de perdas de 88,6 bilhões de reais. Na ocasião, um executivo da agência telefonou para um membro da cúpula da Petrobras e comunicou oficialmente o rebaixamento. O representante da Petrobras ainda tentou argumentar que a falta do balanço não significava necessariamente uma situação financeira ruim. Não funcionou. Foi então que o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, entrou no circuito e telefonou para a cúpula da agência. Conseguiu que ela segurasse o relatório por um mês, prometendo que, nesse período, o balanço auditado seria publicado — o que, como se sabe, não aconteceu. Perto do fim do prazo, logo após o Carnaval, o ministro foi pessoalmente a Nova York para pedir mais tempo à agência. Dessa vez, não foi atendido. No dia seguinte ao do anúncio da Moody's, as ações da Petrobras caíram 5% e o dólar subiu de 2,83 para 2,87 reais. Pesou, aí, o medo de que o passo seguinte fosse o rebaixamento da nota de risco dos títulos do Brasil. O raciocínio por trás dessa interpretação é simples: sem dinheiro disponível no mercado, a Petrobras será obrigada a recorrer a seu principal acionista, o Estado. E, se o governo for obrigado a salvar a empresa num momento em que ainda tenta pôr as próprias finanças em ordem, um dos dois será sacrificado. "Qualquer tentativa de capitalização por parte da Petrobras será bem mais difícil agora sem o grau de investimento. Além disso, a tentativa de reequilibrar as contas públicas iria para o espaço", diz o consultor e ex-diretor do Banco Central Alexandre Schwartsman. A reduzida margem de manobra do governo é um problema também na área política. Na busca pela reeleição, Dilma Rousseff e seu time de campanha enveredaram pelas ruelas cavilosas do populismo e da falsa propaganda. Agora, premida pela realidade, pelo isolamento político e pela queda vertiginosa de sua popularidade, a presidente se vê num beco tão estreito que qualquer movimento parece difícil. A forma como lidou com a greve de caminhoneiros na semana passada ilustra isso. No auge do movimento, os motoristas interditaram 130 pontos em estradas federais. Sem interlocução com os grevistas nem margem para negociação, a mesma Dilma Rousseff que, no discurso de posse, reconheceu erros e prometeu "implantar, na Petrobras, a mais eficiente e rigorosa estrutura de governança e controle que uma empresa já teve no Brasil" optou pela saída mais fácil: comprometeu-se a congelar o preço do diesel por seis meses, numa franca recaída na ingerência que já custou 60 bilhões de reais à estatal, obrigada pelo governo a segurar os preços dos combustíveis. Como lembra o professor de economia da universidade de Columbia José Alexandre Scheinkman: "Para confiarem, as pessoas preferem esperar atitudes a se fiar em palavras". Por ora, Dilma Rousseff e seu governo não estão ajudando. O TERMÔMETRO DA CREDIBILIDADE As notas conferidas pelas agências de risco funcionam como um guia para os investidores e são passaporte para o mercado de crédito global. Veja abaixo como funciona o sistema da Moody's, uma das três grandes do mundo, que rebaixou na semana passada a nota da Petrobras. GRAU DE INVESTIMENTO Juros: De 3% a 5%, conforme o tipo de empréstimo. Acesso a recursos: 75% do crédito disponível no mundo. Praticamente sem risco de calote Aaa — Empresas: Microsoft. Países: Alemanha e EUA Risco de calote muito baixo Aa1 — Empresas: Shell, Apple; Países: França Aa2 Aa3 — Empresas: Sinopec, Toyota; Países: Chile e China Baixo risco de calote A1 — Países: Japão A2 — Empresas: Bp A3 — Países: México Algum risco de calote. Os títulos podem ser especulativos Ba1 — Empresas: Ambev Baa2 — Empresas: Ecopetrol, Vale; Países: Brasil Baa3 — Países: Índia GRAU ESPECULATIVO Juros: Mais de 5% Acesso a recursos: Mais limitado - apenas 25% do capital disponível. Risco substancial de calote Ba1 — Países: Portugal e Rússia Ba2 — Empresas: PETROBRAS Ba3 — Elevado risco de calote B1 — B2 — Países: Líbano B3 — Altíssimo risco de calote Caa1 — Países: Argentina e Grécia Caa2 — Caa3 — Empresas: PDVSA; Países Ucrânia Estão prestes a dar calote Ca — O calote já foi dado C — Fontes: Moody’s e mercado REPROVAÇÃO POPULAR A presidente Dilma tem sua pior avaliação desde a posse EVOLUÇÃO DA AVALIAÇÃO DO GOVERNO DE DILMA ROUSSEFF (em%) RUIM/PÉSSIMO Março 2011: 7 Janeiro 2012: 6 Março 2013: 7 Fevereiro 2014: 21 Fevereiro 2015: 44 REGULAR Março 2011: 34 Janeiro 2012: 33 Março 2013: 27 Fevereiro 2014: 37 Fevereiro 2015: 33 ÓTIMO/BOM Março 2011: 47 Janeiro 2012: 59 Março 2013: 65 Fevereiro 2014: 41 Fevereiro 2015: 23 NÃO SABE Março 2011: 12 Janeiro 2012: 2 Março 2013: 1 Fevereiro 2014: 1 Fevereiro 2015: 1 Fonte: Datafolha LULA CHAMA PARA A BRIGA O ex-presidente Lula chegou ao Ato em Defesa da Petrobras, na última terça-feira, exercitando um de seus talentos mais notórios - o de animador de plateias. Aos sindicalistas que lotaram o auditório da Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro, convocados pela Federação Única dos Petroleiros e pela Central Única dos Trabalhadores, ele tentou minimizar a responsabilidade do PT no escândalo do petrolão — "Qual é a vergonha que a gente pode ter se, numa família de 86.000 trabalhadores, alguém fez uma caca?" - e esforçou-se para levantar o moral da tropa ("Nós ganhamos as eleições e parece que estamos com vergonha de ter ganhado. Eles perderam e estão todos pomposos por aí”). No fim, porém, o animador de auditórios deu lugar ao incitador de multidões. Voltando o olhar para o presidente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, João Pedro Stedile, disse; "Eu quero paz e democracia. Mas, se eles não querem, nós sabemos brigar também, sobretudo quando o Stedile colocar o exército dele do nosso lado". A decisão de entrar em cena e "chamar para a briga" é parte da estratégia de Lula para tentar tirar o PT das cordas, reduzir o impacto das passeatas antigoverno previstas para o próximo dia 15 de março e assim procurar impedir o nocaute antecipado do "projeto do partido", que é como os petistas se referem à perspectiva de prolongar sua estada no poder a partir de 2018. Trata-se de uma aposta arriscada. Antes de Lula, o presidente do PT, Rui Falcão, já havia convocado os petistas a defender o governo nas ruas quando uma onda de passeatas tomou o país em 2013. A iniciativa redundou em fracasso. Os poucos partidários que seguiram a orientação do dirigente acabaram escorraçados pelos manifestantes, e, para Falcão, restou, além do vexame, um apelido - Falcollor, em memória de um também ex-presidente que fez o Brasil amanhecer vestido de preto ao acreditar que as massas seguiriam a sua voz. GABRIEL CASTRO AÇÃO INFRUTÍFERA Sobem os empréstimos do BNDES para empresas, mas o investimento não decola 2010 EMPRÉSTIMOS DO BNDS (em reais): 168 bilhões Taxa DE INVESTIMENTOS (em % do PIB, no terceiro trimestre: 20,5 2011 EMPRÉSTIMOS DO BNDS (em reais): 140 bilhões Taxa DE INVESTIMENTOS (em % do PIB, no terceiro trimestre: 20 2012 EMPRÉSTIMOS DO BNDS (em reais): 156 bilhões Taxa DE INVESTIMENTOS (em % do PIB, no terceiro trimestre: 18,7 2013 EMPRÉSTIMOS DO BNDS (em reais): 190 bilhões Taxa DE INVESTIMENTOS (em % do PIB, no terceiro trimestre: 19 2014 EMPRÉSTIMOS DO BNDS (em reais): 190 bilhões Taxa DE INVESTIMENTOS (em % do PIB, no terceiro trimestre: 17,4 Fontes: BNDES e IBGE “LEVY ESTÁ MUITO ISOLADO” Reverter a crise de confiança pela qual o Brasil passa depende de uma mudança completa nas atitudes e prioridades da política econômica - tarefa complexa, para a qual o governo Dilma Rousseff talvez não esteja preparado. Quem afirma é o economista e ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga. Para ele, nem mesmo o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, tem cacife para resolver o problema. "Ele está muito isolado", diz Armínio, na entrevista que deu à editora Malu Gaspar. Quais são as chances de recuperar a confiança dos investidores no Brasil? A grande dificuldade dessa situação é que ela foi construída justamente pelo grupo que está no poder. E ele vem conduzindo os assuntos econômicos de forma equivocada. Já há algum tempo afirmo que o modelo que temos hoje está fadado ao fracasso. Os resultados estão aí. É um modelo que não entrega investimento, crescimento nem aumento de produtividade. O senhor quer dizer que o governo Dilma precisa mudar suas convicções sobre a economia? Teria pelo menos de mudar de atitude. A questão é que, quando não há convicção no que se está fazendo, como agora, não há como despertar confiança. Mas esperar isso deste governo talvez seja pedir demais. O ministro Joaquim Levy não representa essa mudança? Trazê-lo para o ministério foi positivo, mas ele está muito isolado. Seu trabalho está concentrado na questão fiscal. Isso é um remendo. É necessário muito mais. O que exatamente? Precisamos mudar o rumo em quase tudo o que importa. É uma agenda extensa. Estou falando de fazer a reforma tributária, de destravar o investimento em infraestrutura e de modificar o funcionamento do mercado de crédito, atacando a presença maciça dos bancos públicos. Ela é hoje muito além da conta. Devemos, enfim, rever o modelo de inserção do Brasil na economia mundial. Trata-se de um tremendo desafio. Mesmo o ajuste que o Levy está se propondo a fazer já é difícil. No ano passado, as coisas descarrilharam totalmente. Ainda que dê certo, será insuficiente. Quer dizer que o ministro Levy está enxugando gelo? Não há saída que não a recessão? A situação tende a piorar, sim. A economia está ainda ameaçada por eventos externos, como a crise energética, que tem origem no desenho do setor. Ela não se corrige do dia para a noite. O governo também enfrenta uma série de dificuldades políticas. A própria investigação policial sobre o petrolão, que é fundamental, tem impacto na economia. Quando se analisa tudo isso em conjunto, fica claro que não foi à toa que a Petrobras perdeu o grau de investimento. Os investidores olham o Brasil com muita preocupação. A taxa de juros efetiva sobre a dívida, aquela que se apura quando se levam em conta os subsídios que o governo dá, chega a quase 20%. É uma coisa incrível. Uma situação muito complexa, para a qual não vejo solução rápida. Nesse cenário, é inevitável que o Brasil perca o grau de investimento? Ainda é cedo para chegar a essa conclusão, mas certamente existe o risco. A revista The Economist diz que os países com a nota do Brasil estão em condições melhores. É verdade, mas há que lembrar que também estão na mesma faixa países com muitos problemas, como a Rússia. A situação lá também não é de dar inveja. O fato é que o Brasil perdeu aquele charme de país emergente que vinha reencontrando o caminho para o crescimento. O senhor acha que as instituições estão falhando? De modo geral, não. Nossas principais instituições vêm passando por testes duros e têm se saído bem. No caso do mensalão, o Ministério Público, a polícia e o Judiciário fizeram seu papel. O petrolão ainda está em jogo, mas os investigadores têm sido corretos. E a imprensa tem tido um papel crucial. O que me deixa preocupado é ver o ex-presidente Lula fazer aquele discurso raivoso sobre a Petrobras. Da maneira como ele colocou as coisas, as instituições ficaram ameaçadas. Foi um discurso antidemocrático, de falta de apreço por um ambiente aberto ao debate. Que efeitos a crise da Petrobras terá sobre o resto da economia? A Petrobras é um gigante, responsável por uma parte importante do investimento no Brasil. Sua crise, portanto, tem impacto indireto na confiança geral. É difícil medir, mas certamente ele será sentido sobre toda a cadeia de fornecedores. Isso é muito sério. Não há como tapar o sol com a peneira. A possível quebra das empreiteiras pode piorar o quadro econômico? É inevitável que, durante as investigações, algumas empreiteiras enfrentem dificuldades e saiam do mercado. Certas pessoas acham que isso não será problema porque a mão de obra disponível será facilmente absorvida por outras empresas que as substituirão. Só que essa transição não acontece da noite para o dia. Vejo pela frente momentos difíceis. A economia vai sofrer. Mas o país não vai quebrar por causa das empreiteiras. Apesar dos desdobramentos do petrolão, a faxina é essencial para dar uma nova chance ao Brasil. UM ENREDO TRAGICÔMICO Era para ser um daqueles acontecimentos que lustram a autoestima de um país por atestar o bom funcionamento das instituições. Mas o julgamento, atualmente suspenso, do ex-bilionário Eike Batista por crimes de insider trading e manipulação de mercado ganhou contornos de pastelão nos últimos meses. Responsável pelo processo, o juiz Flávio Roberto de Souza teve seu afastamento pedido pela defesa do empresário depois de declarar que o réu era megalomaníaco. Em seguida, autorizou a apreensão de bens de Eike, aparentemente apenas para poder usufruir um pouquinho deles, como fez parecer ao ser flagrado dando uma volta num dos carros apreendidos, um Porsche Cayenne. Divulgada a notícia pela coluna Radar, de VEJA.com, descobriu-se que outros dois veículos retirados da garagem de Eike a mando do juiz Souza haviam ido parar... na garagem do juiz Souza. O magistrado - que, soube-se depois, deve quase 200.000 reais à Caixa Econômica Federal e foi condenado a indenizar em 12.700 reais a proprietária de um apartamento que alugava - declarou considerar "absolutamente normal" o destino dado aos bens de Eike. No fim da semana, ele foi afastado do caso pela Corregedoria Nacional de Justiça. Aí começa o lado trágico da história. Ao quebrar, no fim de 2013, o império X causou prejuízos milionários a dezenas de fornecedores e acionistas que acreditaram nas promessas bilionárias de Eike. Desde então, ele foi alvo de três denúncias do Ministério Público, que o acusou de inflar o preço das ações com declarações enganosas e de lucrar com informação privilegiada na venda dos papéis. Tudo o que se esperava, num país ávido por mais transparência e ética nos negócios e no trato da coisa pública, era um julgamento célere e correto. O episódio da semana passada lançou dúvidas sobre o preparo do Judiciário para casos desse tipo, postergou ainda mais uma decisão - e criou o risco de transformar em vítima quem não o é. COM REPORTAGEM DE ANA LUIZA DALTRO E BIANCA ALVARENGA 3#2 DE OLHOS BEM ABERTOS Aliados, PT e PMDB parecem adversários, tantas são as intrigas, as desconfianças e as disputas. Juntos, eles comandam metade dos 39 ministérios da Esplanada, administram um orçamento multibilionário e formam o principal pilar de sustentação política do governo da presidente Dilma Rousseff. Desde que se tornaram formalmente aliados, em 2010, PT e PMDB enfrentam as dificuldades naturais de uma união sacramentada sob interesses e objetivos nem sempre comuns — ou, como agora, totalmente comuns, e, por isso mesmo, inconciliáveis. Os dois partidos disputam mais uma vez a supremacia. O PT, da presidente Dilma Rousseff, comanda as principais áreas do governo. O PMDB, do vice-presidente Michel Temer, é soberano no Congresso. Num momento em que se avizinha uma terrível crise econômica, que exigirá firmeza do governo e difíceis consensos no Parlamento, a harmonia entre os dois partidos deveria se impor como meta. Mas o que se vê é exatamente uma trilha inversa. Petistas e peemedebistas parecem opositores, tratam-se como opositores e atingiram um nível de diálogo típico dos mais ferrenhos opositores. O PT não passa um dia sem pôr em dúvida a fidelidade e as intenções do parceiro no Congresso. Já o PMDB não perde uma oportunidade de acusar o PT de monopolizar o poder, isolando seus quadros do processo decisório do governo. Para os peemedebistas, o PT deseja enfraquecê-los e, assim, reduzir a dependência política do parceiro. Para os petistas, o PMDB boicota o governo para delimitar seu poder num momento de fragilidade. O curioso é que ambos estão corretos em seu diagnóstico. O clima de desconfiança mútua é tão acirrado que envenenou até as relações sempre cordiais entre a presidente Dilma e o vice Michel Temer. Desde que o segundo mandato começou, eles mal conversam. O motivo? Intrigas e mais intrigas disseminadas pelos dois lados. Aliados de Temer acusam o ministro-chefe da Casa Civil, Aloizio Mercadante, de semear a discórdia ao espalhar boatos de que o PMDB transformou o Palácio do Jaburu, a residência oficial do vice-presidente, no "palácio da conspiração" contra o governo. "O Mercadante vive dizendo que o PMDB está querendo tomar o lugar da presidente. Isso a gente não aceita", diz o peemedebista Geddel Vieira Lima, que ainda acusa: "Ele é que quer tomar o lugar do vice". Na semana passada, o ministro marcou uma conversa com o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que é do PMDB, para tratar de assuntos que antes eram responsabilidade de Temer. O tempo fechou de vez. O vice telefonou para Dilma e a alertou de que a aliança estava em risco. A conversa, convenientemente vazada, levou Mercadante a confrontá-lo e a cobrar um desmentido público. Temer foi duro: "Eu disse isso à presidente e vou manter". "Mas não era para sair nos jornais", retrucou Mercadante. "Não interessa", devolveu o vice. E isso em apenas dois longos meses de novo governo. ROBSON BONIN 3#3 UM NOVO FENÔMENO Um pequeno empresário de Santos fez fortuna em negócios com Cuba e países africanos graças a privilégios obtidos na agência do governo para o comércio exterior. Como explicar sua ascensão fenomenal? Parentesco com Lula e proximidade com empreiteira podem ser o segredo. DANIEL PEREIRA E HUGO MARQUES O personagem ao lado, com ar de Che Guevara playboy, se chama Taiguara Rodrigues dos Santos. É figura conhecida na rede de negócios de empresas brasileiras em Cuba, na África e na Europa. Até 2009, ele ganhava a vida em Santos, no litoral de São Paulo, onde se estabelecera como pequeno empresário, dono de 50% de uma firma especializada em fechar varandas de apartamentos. Taiguara tinha uma rotina compatível com seus rendimentos. Seu apartamento era um quarto e sala. Na garagem, um carro velho. A partir de 2009 a vida dele começou a mudar para melhor — muito melhor. De pequeno empresário do ramo de fechamento de varandas, ele se reinventou como desbravador de fronteiras de negócios no exterior. Abriu duas empresas de engenharia e, em questão de meses, fechou negócios em Angola. O primeiro contrato no país africano destinava-se a construir casas pré-moldadas e tinha o valor de 1 milhão de dólares, conforme registro no Ministério das Relações Exteriores. No segundo, de 750.000 dólares, comprometia-se a construir uma casa de alto padrão. Até aqui o que se tem é um empreendedor ambicioso que vislumbrou oportunidades de mudar de patamar vendendo seus serviços em países com os quais o governo Lula estabelecera inéditos laços de cooperação comercial. Mas a história de Taiguara é, digamos, bem mais complexa. Conta o advogado Rafael Campos, representante da proprietária de um imóvel alugado por Taiguara: "Ele me falou que estava indo para a África no vácuo das grandes empreiteiras que expandiam negócios por aquele continente". A vida além-mar, pelo jeito, ofereceu a Taiguara grandes dificuldades práticas. Tendo recebido o dinheiro, as obras não saíram. Seus clientes angolanos acionaram a Justiça brasileira em busca de reparação, o que combinou com um inferno astral em que ele teve dezenove títulos protestados e passou 25 cheques sem fundos. Se 2009 foi de esperança, os anos seguintes, 2010 e 2011, foram de amargura com o fracasso na África, e Taiguara teve o desgosto adicional de ver seu nome no Serviço de Proteção ao Crédito. Mas... ...a maré mudou, e mais tarde Taiguara reemergiu em glória. Havia comprado uma cobertura dúplex de 255 metros quadrados em Santos, dirigia um Land Rover Discovery de 200.000 reais e tomou gosto por viagens pelas capitais do mundo, hospedando-se sempre em hotéis de alto luxo. VEJA perguntou a Taiguara como ele explica a reviravolta em sua vida empresarial. Não obteve resposta. Taiguara é filho de Jacinto Ribeiro dos Santos, o Lambari, amigo de Lula na juventude e irmão da primeira mulher do ex-presidente. Funcionários do governo e executivos de empreiteiras costumam identificá-lo como "o sobrinho do Lula". Em 2012, uma de suas empresas de engenharia, a Exergia Brasil, foi contratada pela Odebrecht para trabalhar na obra de ampliação e modernização da hidrelétrica de Cambambe, em Angola. O acerto entre as partes foi formalizado no mesmo ano em que a Odebrecht conseguiu no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) um financiamento para realizar esse projeto na África. Uma coincidência, certamente. Orgulhoso, Taiguara postou fotos das obras na hidrelétrica de Cambambe numa rede social. "E tome água! Vamos gerar energia!", escreveu. A Odebrecht não quis informar o valor do contrato com a Exergia Brasil, que vigorou em 2012 e 2013. Em nota, disse que segue "padrões rigorosos de contratação de fornecedores, levando em conta sua capacidade técnica, financeira e de execução". A Exergia contratada pela Odebrecht é uma empresa portuguesa com extenso portfólio de clientes em Portugal e na África. Filiado ao PT, Taiguara tornou-se sócio da empresa portuguesa no que veio a se chamar Exergia Brasil. A Exergia Brasil ocupa o 8º andar de um prédio antigo localizado no centro de Santos e tem apenas cinco funcionários. Desde a sua fundação, informa o Conselho Regional de Engenharia de São Paulo, ela jamais realizou uma obra no estado. São desconhecidas as razões pelas quais a Exergia de Portugal precisou de um sócio brasileiro, sem nenhuma experiência ou capacidade técnica para ter o gigante Odebrecht como cliente. O desafio de engenharia na África é grande. O projeto prevê a ampliação em cinco vezes da capacidade de geração de energia da hidrelétrica de Cambambe, localizada no Rio Kwanza, o maior de Angola. Taiguara não quis dizer o que sua empresa agregou ao projeto nem como sua expertise chamou a atenção da Odebrecht. Disse que as perguntas eram "caluniosas" e "desrespeitosas". Em março do ano passado, o governo brasileiro organizou uma missão empresarial a Cuba, que foi precedida por uma visita do ex-presidente Lula aos irmãos Fidel e Raul Castro. A programação oficial previa que os empresários passariam três dias na ilha. O ponto alto seria uma incursão ao Porto de Mariel, cuja obra de modernização é realizada pela Odebrecht, que, como no caso de Angola, conta com financiamento sigiloso do BNDES. Taiguara vislumbrou uma nova oportunidade — e foi bem-sucedido, graças à ajuda de amigos e amigos de amigos no Ministério do Desenvolvimento. Entre eles, Mônica Zerbinato. Secretária particular de Lula durante mais de uma década e mulher de Osvaldo Bargas, também assessor do ex-presidente, Mônica abriu para Taiguara as portas da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex), o órgão oficial que organizou a missão empresarial a Cuba. Servidora da Apex, ela intercedeu junto aos colegas para que incluíssem o dono da Exergia Brasil na missão. Foi uma costura rápida e indolor. "Como já havia explicado a Mônica, tenho uma empresa de engenharia no Brasil, e nossa área de atuação está focada na África. Estamos principalmente em Angola e Moçambique" escreveu Taiguara na mensagem em que apresentou suas credenciais. Na sequência, ele deixou claro a força de seus apoios: "Devido a várias circunstâncias, temos como principal cliente em Angola a Odebrecht. Na semana passada, fui convidado pelo doutor Alexandrino, da Odebrecht, para ir a Cuba visitar suas obras e, claro, prospectar o mercado como um todo". O doutor mencionado é Alexandrino Alencar, diretor da Odebrecht com atuação reconhecida em mercados externos. Alencar foi apontado por um dos delatores do esquema de corrupção na Petrobras como o elo da empreiteira com os operadores do esquema de pagamento de suborno a políticos e funcionários públicos. Antes disso, o executivo aparecera como coadjuvante num enredo protagonizado por Lula. Foi em 2011, quando o ex-presidente representou o governo brasileiro numa viagem à Guiné Equatorial. Lula levou o "doutor Alexandrino" na comitiva oficial e, depois de uma conversa com o ditador Teodoro Obiang Mbasogo, credenciou a Odebrecht a fazer negócios naquele país, que, coincidência extraordinária, foi tema da escola de samba Beija-Flor, ganhadora do Carnaval carioca neste ano. Só pode ser mesmo coincidência que, entre os 193 países do planeta Terra, a fabulosa tirania de Obiang, amigo de Lula, tenha sido escolhida como tema da Beija-Flor. Coube ao próprio chefe do escritório da Apex em Cuba, Hipólito Rocha Gaspar, confirmar a inclusão do empresário na excursão. "Taiguara, bom dia. Na missão, consta seu nome como integrante da comitiva da Odebrecht. Chegando, favor entrar em contato com o nosso escritório", escreveu o servidor. Segundo a Odebrecht, Taiguara nunca prestou serviço à empreiteira em Cuba. Ao contrário do que revela a troca de mensagens, a Odebrecht afirmou que Taiguara nem sequer figurava na relação de seus representantes oficiais. Em novembro de 2012, a Camargo Corrêa patrocinou uma viagem de Lula a Moçambique. O ex-presidente, depois de encerrar seu mandato, em 2010, disse que dedicaria parte de seu tempo "a vender o Brasil lá fora". Em outras palavras, empregaria sua influência e seus conhecimentos para ajudar as empresas nacionais a expandir seus mercados no exterior. A empreiteira queria ajuda para destravar negócios no país africano. Quem também estava lá? O onipresente Taiguara, que posou todo prosa para registrar como era majestoso o hotel em que estava hospedado. A Camargo Corrêa informou que nunca teve relação contratual com a Exergia Brasil. Atualmente, Cuba é o mercado prioritário do empresário Taiguara. "Viva la revolución", festejou numa rede social. Em novembro passado, ele participou da Feira Internacional de Havana, na qual se mostrou ao lado de Fábio Luís da Silva, o Lulinha. Taiguara e o filho do ex-presidente são amigos. O site da Exergia Brasil foi, inclusive, criado por uma empresa do primogênito do petista. Em Havana, os dois receberam um tratamento especial de Hipólito Gaspar (veja o quadro ao lado), que reservou dois Mercedes para eles. O custo do aluguel dos carros, segundo o servidor, teria ficado a cargo dos dois convidados. Hipólito também pediu autorização à presidência da Apex no Brasil para reservar um espaço, dentro do estande brasileiro na feira, para que Taiguara e Lulinha se reunissem reservadamente com representantes do governo cubano, o principal comprador no evento. A direção da agência negou o pedido. Nem Taiguara nem a Exergia Brasil constam da lista oficial de participantes da feira elaborada pela Apex. Mônica Zerbinato, amiga da família, disse que apenas encaminhou os pedidos. A agência não soube dizer quem o empresário representou no evento nem se ele fechou negócios. Taiguara também se negou a fazê-lo. Ele esclareceu que Lulinha estava de férias em Cuba e, ao acompanhá-lo, lhe fazia uma gentileza. A proximidade com o poder em qualquer governo traz vantagens a empresários. Mas, com frequência, traz também problemas. Taiguara e sua Exergia Brasil encarnam as duas faces dessa moeda. AMIGOS, AMIGOS. NEGÓCIOS... Criada no governo Lula com o nobre propósito de promover empresas brasileiras no exterior e atrair investimentos estrangeiros para o país, a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex) tornou-se mais um cabide de empregos e ponta de lança de negócios de interesse dos companheiros - caso de Mônica Zerbinato, que guiou, como mostra a reportagem ao lado, Taiguara Rodrigues dos Santos pelo caminho das pedras da máquina pública. Dão expediente no órgão a irmã do secretário particular de Dilma Rousseff e uma ex-cabeleireira da presidente. Dos agraciados pelo poder na Apex, um soube aproveitar muito bem as facilidades. Trata-se de Hipólito Rocha Gaspar, chefe do escritório da agência em Cuba. No ano passado, ele foi investigado internamente. Segundo a primeira parte da denúncia, o advogado Filipe Figueiredo procurava empresários brasileiros e, dizendo-se sócio de Hipólito, cobrava deles o pagamento de "honorários". A segunda parte dava conta de que do achaque se beneficiavam também integrantes do governo cubano e outros dirigentes da Apex A Apex confirma que apurou o caso, mas, não tendo conseguido provas, arquivou-o. Servidores da agência encarregados da investigação contam uma história diferente. Ao acessarem o e-mail funcional de Hipólito, eles realmente não acharam provas cabais de cobrança de propina, mas ficou evidente a associação entre o chefe do escritório da Apex em Cuba e o advogado Filipe Figueiredo. Eles vendiam lotes extras de convites a empresas brasileiras para que participassem de eventos oficiais. Os e-mails também mostraram que Hipólito organizou um esquema paralelo de negócios com os cubanos, que funcionava nos moldes clássicos da corrupção: as empresas brasileiras interessadas pagavam pedágio contratando advogados indicados por Hipólito. Os chefes dos escritórios da Apex em Angola e Dubai foram demitidos por problemas parecidos. Hipólito, por razões que ainda precisam ser elucidadas, permaneceu no cargo. Em janeiro, Filipe Figueiredo pediu ajuda ao escritório da Apex em Bruxelas para negócios que ele prospectava em Paris e Lisboa. Ao encaminhar o pedido, o advogado, que não tem vínculo com a agência, apresentou-se novamente como amigo e parceiro de Hipólito. Apesar disso - ou por causa disso -, o pedido dele não acionou nenhum alerta. Hipólito, como se descobriu, fez cortesias ao sobrinho e a um filho de Lula. Ter tido como padrinho o mensaleiro José Dirceu contribuiu também para que prosperasse na Apex a noção de que "com Hipólito ninguém mexe". 3#4 UM OUTRO PERSONAGEM Advogados da Lava-Jato que se reuniram com o ministro da Justiça foram convidados para o encontro pelo ex-coordenador jurídico da campanha de Dilma Rousseff. Flagrado em conversas impróprias com advogados das empreiteiras investigadas na Operação Lava-Jato, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, tornou-se alvo de um processo na Comissão de Ética Pública da Presidência da República. Os integrantes do órgão deram dez dias para que explique seus encontros fora da agenda com advogados de empreiteiros presos no escândalo de corrupção na Petrobras. Na edição passada, VEJA revelou que Ricardo Pessoa, dono da UTC, preso em Curitiba, ouviu de seus advogados que partiu do ministro a iniciativa de chamar os defensores para uma conversa reservada, ocasião em que foram alertados de que havia uma reviravolta no processo. O ministro também argumentou sobre a inadequação de levar em frente o acordo de delação que Ricardo Pessoa negocia com a Justiça. O empresário é guardião de segredos letais para muitos figurões do governo. Dirigentes da empreiteira confirmaram que, apenas no ano passado, Pessoa entregou 30 milhões de reais para as campanhas do PT e da presidente Dilma Rousseff, dinheiro obtido por meio de propinas de contratos superfaturados da Petrobras. A conversa com os advogados em Brasília criou constrangimentos ao ministro porque, se admitida, caracterizaria uma interferência ilegal de uma autoridade no processo judicial. Cardozo, primeiro, negou. Depois, admitiu o encontro, que teria sido "casual", mas não confirmou ter falado sobre delações ou investigações da Operação Lava-Jato. Há um novo personagem nessa história. Segundo executivos da UTC, para estabelecer um canal direto e seguro com os defensores da empreiteira, o ministro Cardozo recorreu a Flávio Caetano, secretário nacional de Reforma do Judiciário, que foi coordenador jurídico da campanha de Dilma Rousseff no ano passado. Caetano é velho conhecido dos advogados da UTC, Sérgio Renault e Sebastião Tojal, com quem chegou a trabalhar. Nos dias que antecederam o misterioso encontro de Sérgio Renault com Cardozo em Brasília, Caetano telefonou para Tojal para avisar que o ministro desejava encontrá-los. Procurado por VEJA, o secretário confirmou a ligação, mas negou que tenha repassado recados do ministro. "Flávio Caetano é amigo há mais de quinze anos do doutor Sebastião Tojal, com quem tem mantido ao longo do tempo parceria acadêmica. O telefonema em questão se deveu a um trabalho acadêmico a ser publicado que ainda está em curso", informou o secretário por meio de uma nota. ROBSON BONIN __________________________________________ 4# INTERNACIONAL 4.3.15 4#1 A MORTE DA CIVILIZAÇÃO 4#2 NOBEL DO ASSÉDIO 4#1 A MORTE DA CIVILIZAÇÃO Os terroristas do Isis atacaram um museu no Iraque. Para eles, assassinar pessoas e destruir culturas serve ao mesmo propósito. Ao conquistarem a França e a Bélgica durante a II Guerra, os nazistas saquearam as obras de arte de famílias ricas, museus, palácios e igrejas. Quadros e objetos variados foram fotografados, catalogados e depois guardados em minas de sal com desumidificadores para que não sofressem com os bombardeios. As obras-primas preferidas por Adolf Hitler seriam expostas após a guerra em um museu na Áustria, seu país natal. Os terroristas do Estado Islâmico, grupo que desde o ano passado ocupa vastas áreas da Síria e do Iraque, são de uma linha diferente de genocidas. Na semana passada, quebraram a marretadas inúmeras peças do Museu de Mosul, no Iraque. Em um sítio arqueológico nos arredores da cidade, destruíram com furadeira estátuas de touros alados e com cabeça humana que guardavam as portas da cidade de Nínive, na antiga Assíria, entre o século IX a.C. e o VII a.C. O touro alado de Mosul, na foto acima, era uma divindade que, na crença dos povos babilônicos, protegia as cidades de forças demoníacas. Enquanto os nazistas queriam substituir uma civilização por outra, o Estado Islâmico almeja expurgar qualquer vestígio civilizatório. Na ideologia desse grupo, que tem um inegável aspecto religioso (leia a entrevista na pág. 15), devem-se seguir à risca os passos e as palavras de Maomé, que viveu nos séculos VI e VII. Na alucinante justificativa do militante que aparece no vídeo da destruição divulgado na internet, na quinta-feira passada, "o profeta nos ordenou que nos livrássemos de todas as estátuas e relíquias, e seus companheiros fizeram o mesmo quando conquistaram países depois dele". Segundo os fundamentalistas, não deve haver nenhum objeto que sirva de culto, mesmo sendo esse de uma sociedade extinta há milénios. O raciocínio é o mesmo usado pelo Talibã, que em 2001 destruiu com dinamite e mísseis duas estátuas de Buda em Bamiyan, no Afeganistão. O que vem a seguir, de acordo com os membros do Estado Islâmico, é uma guerra contra "Roma". Na falta de um papa com um exército, a palavra poderia ser interpretada como sendo a Turquia, os Estados Unidos ou a Europa. A vitória islamista nessa guerra, que, segundo a propaganda religiosa feita pelo Isis na internet, acontecerá em uma cidade perto de Aleppo, na Síria, dará início à contagem regressiva para o fim do mundo. Dar início ao apocalipse — esse é o objetivo do Estado Islâmico, e não a construção de uma nova sociedade. Daí a investida sem tréguas contra qualquer civilização, antiga ou moderna. O vídeo da destruição no museu tem apenas cinco minutos, mas parece durar mais. Ao vê-lo, a reação mais comum é de aflição, incômodo. "Em muitas pessoas, as cenas de destruição no museu provocaram uma sensação parecida com aquela gerada pelos filmes de decapitação. Isso é a prova do simbolismo forte que a cultura tem para todos nós", diz o pesquisador de antiguidades americano Charles Jones, da Universidade Penn State. Ele completa: "Para os habitantes que tiveram de fugir de Mosul, a sensação de desamparo é ainda maior". Um alento para quem se chocou com as cenas em Mosul está na ignorância dos terroristas. As primeiras estátuas jogadas ao chão pela turba do museu não eram originais, mas réplicas de gesso. Leves, caíram vagarosamente no chão. Algumas até acabaram expondo as barras de metal que lhes davam estrutura. Depois da invasão americana do Iraque em 2003, organizações internacionais decidiram levar os originais para lugares seguros, entre eles o Museu Britânico, em Londres. Infelizmente, não foi isso que aconteceu com os touros alados de Nínive, pesados demais. Outras peças haviam sido saqueadas previamente para ser vendidas no mercado negro de arte. O que espanta ainda mais é que ações desse tipo não são perpetradas por uma tribo distante que só agora tomou conhecimento do que é uma sociedade desenvolvida. Mais de 20.000 estrangeiros (que não são sírios ou iraquianos) já se juntaram às fileiras do Estado Islâmico. Os que foram criados em nações ricas são os que mais carregam consigo o ímpeto de destruir qualquer referência à modernidade e a outras culturas. Entre os terroristas vindos da Europa está um homem que foi apelidado de John Jihadista. Com roupas negras e balaclava cobrindo o rosto, ele aparecia com frequência falando com sotaque inglês nos vídeos do Estado Islâmico. Neles, John Jihadista cortou a cabeça de jornalistas e agentes humanitários. Na semana passada, sua identidade foi revelada. Seu nome é Mohammed Emwazi. Nascido no Kuwait, ele cresceu em Londres. Formou-se em ciências da computação pela Universidade Westminster e sonhava em integrar a milícia islâmica Al Shabab, na Somália, filiada à Al Qaeda. Em uma viagem à Tanzânia, foi detido e deportado para a Inglaterra. Em 2012, viajou para a Síria e se juntou ao Estado Islâmico. Com mais dois ingleses, tomava conta dos reféns do grupo. O trio era chamado de "The Beatles" pelos próprios terroristas. COM REPORTAGEM DE PAULA PAULI 4#2 NOBEL DO ASSÉDIO Laureado com o prêmio da Paz, pai de três meninas, Rajendra Pachauri, secretário-geral do órgão de mudanças climáticas da ONU, é acusado de abuso sexual. JENNIFER ANN THOMAS O engenheiro e economista indiano Rajendra Pachauri era visto por seus pares como um líder rigoroso, sujeito incansável na luta contra o aquecimento global. Aos 74 anos, casado e pai de três meninas, ganhou destaque inicialmente como diretor-geral da Teri, instituição indiana que há quatro décadas é bastião das pesquisas de climatologia. Tornou-se mundialmente conhecido como presidente do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), órgão da ONU, desde 2002. Há oito anos recebeu, em nome do IPCC, o Nobel da Paz. Na semana passada, o mundo de Pachauri começou a derreter. Uma ex-funcionária da Teri, de 29 anos, denunciou-o por assédio sexual. Em seguida, como é comum em acusações desse tipo de crime, outras duas mulheres também se manifestaram. Pachauri, informam os relatos, cometia abusos fazia pelo menos dez anos, com preferência por jovens com parca experiência profissional. O detalhamento feito pelas vítimas, assombroso, manchou em definitivo a imagem do cientista e pode ferir também a credibilidade das duas respeitadas instituições que ele comanda. Ao menos duas das vítimas dos assédios apresentaram dezenas de e-mails e mensagens de SMS enviados pelo cientista a elas em que ele claramente abusava de seu poder para forçar a aproximação (veja parte dessas conversas no quadro na pág. ao lado). Escreveu Pachauri em um dos e-mails: "O que me assombra são as suas palavras da última vez que 'apalpei' seu 'corpo'. Isso seria aplicável a alguém que te molestaria. Eu te amei em alma". Os advogados do cientista alegaram que ele teria sido hackeado, com alguém fazendo-se passar por ele nas mensagens. Existe a possibilidade de um reputado líder da ONU ser alvo de hackers? Sim. Mas supostos criminosos invadiriam e-mails e celulares ao longo de dez anos apenas com o intuito de ofender diversas de suas funcionárias, e sem ser notados? Pouquíssimo provável. O assédio virtual era o atalho para agressões que, com alguma frequência, se davam nas instalações da Teri, em Nova Délhi. Diz uma das vítimas, que trabalhou no edifício em 2005: "Ele me atacou, fez isso com outras. Suas investidas físicas e atitudes, normalmente simplificadas como 'comportamento inapropriado', eram de conhecimento comum e se transformaram em fofoca de corredor". Segundo outra ex-funcionária, que disse ter sido alvo dos ataques em 2013, Pachauri tinha o hábito de "levantar as mulheres como se fossem crianças; algumas saíam correndo ao ver que ele se aproximava". O diretor-geral da Teri pedia para colocar as jovens escolhidas por ele no 5º andar do prédio, o que resultou na infame alcunha de "as meninas do 5º andar". Depois de ingressar na empresa, a maioria dessas "meninas" começava a receber e-mails, SMS e ligações do chefe, incluindo convites para jantar com bons vinhos. De acordo com as testemunhas, o cientista chegou a abraçar, apalpar, agarrar e beijar à força suas vítimas. Não há, evidentemente, relação direta entre a postura pessoal de Pachauri e suas atividades profissionais, mas também nesse campo ele atraíra dúvidas. Logo depois da premiação com o Nobel, em 2007, foram apontados erros crassos em dados apresentados no relatório divulgado pelo IPCC a cada seis anos sobre a situação climática do planeta. Dois anos depois, vazaram e-mails de cientistas do IPCC que indicavam a participação do secretário-geral em um esquema de manipulação de informações. Suspeita-se que Pachauri tenha forçado a barra para que o já catastrófico cenário de aquecimento global, provocado pelo ser humano, ficasse com contornos ainda mais apocalípticos. "Quando acredito em algo, defendo. Não fujo", disse ele a VEJA, no ano passado, em resposta às acusações de controle das informações, que considera exageradas por apontarem apenas equívocos pontuais. Pachauri conseguiu contornar a situação e manter-se na presidência da instituição. Isso até surgirem as acusações de assédio sexual. No dia seguinte ao da manifestação da primeira funcionária, na terça-feira 24, ele renunciou ao cargo. É natural que, depois do escândalo, se tema até pelo futuro de entidades como a Teri e o IPCC, mesmo porque, sabe-se agora, muita gente se calou, durante muito tempo, a respeito do mau comportamento do chefe, quase sempre por medo, obviamente. Não é correto, contudo, jogar os erros de Pachauri nas costas dos milhares de pesquisadores sérios envolvidos com os estudos do IPCC. Seria o mesmo que atribuir aos funcionários do Fundo Monetário Internacional os crimes sexuais cometidos pelo ex-presidente do órgão, o francês Dominique Strauss-Kahn, acusado de atacar mulheres. Diz o climatologista brasileiro Jean Ometto, do IPCC, em opinião compartilhada por seus colegas: "O escândalo sexual é problemático, mas não pode comprometer a solidez e a relevância de nosso trabalho científico". Em outras palavras: sim, Pachauri deve ser punido se for comprovada a culpa; mas a atitude estúpida do até então renomado climatologista não deve, de forma alguma, prejudicar as pesquisas que procuram evitar ou ao menos mitigar os efeitos catastróficos das inegáveis mudanças climáticas que afetam toda a Terra. OS DIÁLOGOS COMPROMETEDORES Mensagens de e-mail e SMS trocadas entre Rajendra Pachauri ex-presidente do IPCC, órgão da ONU, e duas funcionárias de seu instituto em Nova Délhi são as principais evidências de que ele assediava mulheres havia ao menos dez anos. Abaixo, o conteúdo de parte dessas conversas incriminatórias, todas de 2013. Por SMS PACHAURI "Apenas para provar quanto eu a amo, vou entrar em jejum depois da partida de críquete amanhã. Vou rompê-lo quando você me disser que acredita que eu a amo com sinceridade e com uma incomensurável profundidade". FUNCIONÁRIA "Acredito em você e sei disso, mas me senti violada. Por favor, você não pode me agarrar nem me beijar". PACHAURI "Nunca quero deixá-la desconfortável, mesmo quando isso exige que eu vá contra meus próprios instintos". FUNCIONÁRIA "Não sou e não quero ser apenas um rosto bonito no seu escritório. Isso machuca e é um pouco desmoralizante. Tenho pouca experiência e não estou nem perto de chegar aonde você está. Jamais farei algo fora da linha estando consciente, nem vou me aproveitar de situações.” Por e-mail PACHAURI "Aqui estou, presidindo uma reunião do IPCC, e sorrateiramente lhe mandando mensagens. Espero que isso demonstre os meus sentimentos por você". FUNCIONÁRIA "Se você se sente atraído por alguém, você se sente atraído. Isso não quer dizer que é amor. Amor é diferente. Sexo é lindo e prazeroso apenas quando você está com a pessoa certa, e eu não posso amar todo mundo. Você teve duas noites de ficadas casuais. Eu só fui para a cama com quem eu namorei, e não com quem apenas saí para jantar". Depoimento de uma vítima à polícia indiana "Em várias ocasiões o doutor Pachauri, contra a minha vontade, agarrou meu corpo, me abraçou, segurou as minhas mãos, me beijou e tocou meu corpo de maneiras inapropriadas". _______________________________________ 5# GENTE - OSCAR 4.3.15 JULIANA LINHARES. Com Daniella de Caprio e Thaís Botelho VAMOS PERGUNTAR A ELAS? • Elas usam roupas deslumbrantes com decotes equinociais, posam para capas de revistas, ganham centenas de milhares de dólares em comerciais de produtos de beleza e, muitas, vários milhões para fazer filmes ancorados em seu talento — e beleza —, mas sobem nos Louboutins quando ouvem a pergunta clássica do tapete vermelho: "De onde é o seu vestido?". Atrizes, ah, atrizes, tão belas, tão inteligentes — imaginem o QI necessário para superar a implacável concorrência — e tão mimadas que agora exigem falar só de assuntos sérios, como fez PATRÍCIA ARQUETTE ao ganhar o Oscar de melhor atriz coadjuvante por Boyhood e sacar de um par de óculos e um discurso engajado: um brado pela paridade salarial entre homens e mulheres em Hollywood. Então vamos perguntar a Patrícia, que, pobrezinha, tem uma fortuna de apenas 24 milhões de dólares: sabe a diferença entre salário e remuneração? Já ouviu falar no sistema pelo qual atores de ambos os sexos são remunerados de acordo com o cálculo do retorno que seus filmes trarão? Tudo bem, Patrícia. Valeram os aplausos entusiásticos de Meryl Streep, humilhada com três Oscar e dezesseis indicações, cruelmente discriminada por uma mixaria de 45 milhões de dólares de patrimônio. Podemos falar na beleza das torres gêmeas, a modelo inglesa e, vá lá, atriz ROSIE HUNTINGTON-WHITELEY e a australiana MARGOT ROBBIE, aquela que fazia uivar o lobo de Wall Street? Na excepcional bravura que demonstraram ao cortar, identicamente, as lucrativas cabeleiras? Não? Então perguntemos a Margot, que vestia burca Saint Laurent: sabia que usou conjuntos variáveis explicativos errados ao dizer que o colar emprestado de 1,5 milhão de dólares, réplica de uma peça da joalheria Van Cleef feita para Wallis Simpson, a mulher que fez um rei abdicar do trono, vale mais que sua vida? Na verdade, empresas de seguro americanas trabalham com um cálculo médio de 8 milhões de dólares por alma, em caso de acidentes de avião — almas comuns, não de estrelas em ascensão como ela. Era só uma brincadeira? Tudo bem, passemos a JENNIFER LOPEZ, terrivelmente massacrada ao ascender do Bronx para o topo do estrelato musical, com fortuna de 315 milhões de dólares. Não vamos fazer como o apresentador machista que babou sobre seus globos de ouro no prêmio de mesmo nome. Já que ela usou dois vestidos, um no Oscar e o outro na festa pós, dos renomados estilistas libaneses Elie Saab e Zuhair Murad, gostaríamos de saber se ela considera comprovado que o sistema de divisão do poder no Líbano, baseado no consociativismo, não tem sustentabilidade. Está na cara que não precisa sustentar nada? Certíssima. E a pobre LUPITA NYONG'O alvo de brutal preconceito em escala global ao ser considerada a mulher mais bela do mundo? O que será que vão dizer, agora que o vestido exclusivo de Francisco Costa, com 6000 pérolas japonesas e valor de 150.000 dólares, sumiu do hotel? O furto vai dar prejuízo ou aumentar a procura por modelos semelhantes? SCARLETT JOHANSSON, o que é pior: ser considerada uma deusa das telas, receber críticas pelo inocente comercial de um produto israelense ou levar cafungada no pescoço de um sujeito que nem é do ramo, como JOHN TRAVOLTA? As críticas ao modelo de Azzedine Alaïa foram desinformadas, LADY GAGA? É ruim ter menos dinheiro que Jennifer, só 220 milhões de dólares? E é verdade que Veja limpa mesmo as sujeiras mais profundas? _______________________________________ 6# ESPECIAL – RIO 450 ANOS 4.3.15 6#1 RIO DE JANEIRO 450 ANOS 6#2 L’ALLIANCE NORMANDO-TUPI” 6#3 NO TEMPO DO ONÇA, DO VILLA, DO TOM 6#4 SEU LUGAR ERA NA FRENTE 6#5 MÃOS À OBRA 6#6 GENTE QUE FEZ 6#7 NOITES CARIOCAS 6#8 ARTE DE PÉ NO CHÃO 6#9 IMPÉRIO DA SELVA 6#10 O RIO NA REPÚBLICA 6#11 COM E SEM CAUSA 6#12 EM PROSA, VERSO E DESENHO 6#13 RETRATOS DO TEMPO 6#14 ALÉM DA FRONTEIRA 6#15 O CHAMADO DAS IDEIAS 6#16 SEXO E A CIDADE 6#17 QUESTÃO DE INTERPRETAÇÃO 6#18 EM NOME DO ESPANTO 6#1 RIO DE JANEIRO 450 ANOS Escolher 450 pessoas que mudaram a história do Rio de Janeiro, do Brasil e até do mundo exigiu muita pesquisa e sabedoria. Mas selecionar quem, mesmo tendo todas as qualificações para isso, não entraria na lista exigiu coragem. Há graça nesse tipo de amostragem até mesmo nas omissões. São elas os motivos da discussão mais acalorada e de discordâncias. No caso do Rio, que foi capital do Brasil na Colônia, na Monarquia e na República, haveria omissões notáveis mesmo que tivéssemos decidido escolher três ou quatro nomes para cada ano de vida da cidade. Os 450 homens e mulheres escolhidos formam um painel humano, cultural, artístico, político, econômico e científico que enobreceria qualquer grande capital do mundo. Suas contribuições, para o bem e para o mal, ainda vivem, mas eles já estão mortos. A combinação dessas duas circunstâncias talvez seja o único critério de escolha dos nomes que vai pairar sobre todas as contestações legítimas. Ao Rio de Janeiro, nossos parabéns e admiração neste 1º de março de 2015, seu 450º aniversário! 6#2 L’ALLIANCE NORMANDO-TUPI” A construção do Brasil aos olhos do europeu do século XVI. Ficou para a história, escrita pelos vitoriosos portugueses, a imagem do invasor francês predador das riquezas da orla carioca. Mas Henrique II e sua corte emprestavam às incursões no Brasil um ar de legalidade e nobreza, chamando o aliciamento dos morubixabas tupinambás de "Aliança Normando-Tupi" — celebrada em 1550 na famosa "Festa brasileira em Rouen", com a encenação da vida selvagem nos trópicos coreografada por meia centena de índios brasileiros. Foi a mais pomposa recepção a brasileiros na Europa, nunca superada até os dias de hoje. Ali estava representada a elite de uma Europa rasgada pela disputa entre católicos e protestantes, nomes que ainda ecoam na história: a ardilosa florentina que ensinou os franceses a comer com garfo e faca, Catarina de Medícis, mulher de Henrique II, rei que se consultava com Nostradamus e comissionou para expandir seu reino no Novo Continente o intrépido Nicolas de Villegagnon. Ele construiu um forte na Baía de Guanabara, de onde se correspondia com o teólogo Calvino, cujos seguidores fizeram no Rio de Janeiro a primeira celebração protestante nas Américas. 1- AMÉRICO VESPÚCIO (1454-1512) Melhor cartógrafo do que navegador, o florentino Vespúcio chegou depois de Cristóvão Colombo, que pensou ter encontrado a Ásia. Vespúcio chamou o que viu de Novo Mundo, viveu para contar sua história e, em 1507, o alemão Martin Waldseemüller colocou pela primeira vez o nome América sobre um mapa do continente. Colou. Em 1º de janeiro de 1502, integrante de uma expedição a serviço do rei de Portugal, já tendo nomeado portos, ilhas, montes e rios com nomes da Virgem Maria, de Santa Lúcia e de outros santos, ele acordou secular. Balizou com o nome de Rio de Janeiro a baía que os índios chamavam de "Iguaá-Mbara", origem mais provável de Guanabara. 2- ESTÁGIO DE SÁ (1520-1567) No que foi a primeira grande batalha naval da história do continente americano, as forças do português Mem de Sá tomaram o Forte da Ilha de Villegagnon, ou Forte Coligny, erguido pelos franceses na Baía de Guanabara. Mem de Sá voltou para a sede do governo-geral, em Salvador, e seu sobrinho Estácio de Sá foi encarregado de acabar com os franceses. Onde hoje é a praia da Urca, Estácio reuniu colonos em um povoado, que, em 1º de março de 1565, chamou de São Sebastião do Rio de Janeiro, em honra ao mártir cristão morto a flechadas em 288 da era cristã pelos legionários do imperador romano Diocleciano. Dois anos mais tarde, já tendo expulsado os franceses, Estácio foi atingido por uma flecha envenenada em 20 de janeiro, dia de São Sebastião. Morreu um mês depois. 3- NICOLAS DURAND DE VILLEGAGNON (1510-1571) Quem pousa no Aeroporto Santos Dumont quando sopra o vento leste e olha à esquerda vê, no fim da pista, a Escola Naval na Ilha Mem de Sá, antes chamada Villegagnon, separada do continente por um canal estreito ladeado por palmeiras. Quando o Brasil tinha 60 anos de idade, esse era o lugar certo para estar quem quisesse ver ou fazer história. A ilhota abrigava uma fortificação francesa. Guarnecida com artilheiros escoceses e pastores calvinistas, era a base de Nicolas Durand de Villegagnon, segundo registro em sua lápide, "o mais célebre homem do mar de seu tempo". Encarregado de fundar um império colonial francês no Hemisfério Sul, a "França Antártica", Villegagnon já havia voltado para a França quando o português Mem de Sá derrotou a guarnição da ilha. 4- ANDRÉ THEVÉT (1516-1590) Frade franciscano integrado à missão de Villegagnon, registrou com fidelidade cenas de índios caçando, plantas, paisagens e a tomada do forte pelos portugueses, mas legou à posteridade um mistério: o desenho de uma preguiça com feições humanas. 5- MEM DE SÁ (1504-1572) Governador-geral da colônia, em Salvador, entrou para a história mais pelos feitos do sobrinho Estácio. 6- JOSÉ DE ANCHIETA (1534-1597) "A arte da gramática da língua mais usada na costa do Brasil." Assim Anchieta, o jesuíta santificado pelo papa Francisco, intitulou seu estudo exaustivo e pioneiro da língua tupi. Ele notou que os tamoios, do Rio de Janeiro, "nunca pronunciam a última consoante do verbo afirmativo". A economia de consoantes desapareceu e o falar carioca popular hoje abusa delas com os chiados no final dos "esses" — e das vogais, como no clássico "Ó o auê aí ó". 7- ARARIBOIA (século XVI) Chefe dos índios inimigos dos tamoios, Arariboia estava "exilado" no Espírito Santo. Os portugueses o buscaram. Voltou com fúria. "Dos tamoios, não ficou um com vida", diz um relato da época. Ganhou uma sesmaria e virou samba-enredo: "Arariboia loteou Niterói / E fez do índio seu office-boy". 8- CUNHAMBEBE (século XVI) Chefe tupinambá, antropófago, xodó dos franceses e líder da rebelião dos índios da costa brasileira contra a catequizacão e o domínio português. O aventureiro alemão Hans Staden foi sucesso editorial em seu tempo na Europa com os relatos sobre os selvagens do Brasil e, em especial, sua convivência com Cunhambebe, ou Konian Bebe. Escreveu Staden: "...Konian Bebe tinha uma grande cesta cheia de carne humana diante de si e estava a comer uma perna, que ele fez chegar perto de minha boca, perguntando se eu também queria comer. Respondi que somente um animal irracional devora a outro, como podia então um homem devorar a outro homem? Cravou então os dentes na carne e disse: 'Jau ware sche', que quer dizer: 'Sou uma onça, está gostoso!'. Depois disso, retirei-me de sua presença". 9- INÊS DE SOUSA (século XVI) Mulher do governador Salvador Correia de Sá, organizou um batalhão feminino com "todas de chapéu, como os homens", e ajudou a defender as praias cariocas dos franceses. 10- JEAN COINTA (século XVI) Encantado com os atributos visíveis das mulheres índias, desentendeu-se com o virtuoso Villegagnon e foi despachado para longe. Mudou de lado e entregou aos portugueses a planta do Forte Coligny, o que facilitou a vitória lusa. 11- OLIVIER VAN NOORT (século XVI) Primeiro holandês a circum-navegar o globo, Vau Noort era de Utrecht, às margens do Reno. Portanto, não era um vlaming, ou flamengo. No entanto, como os principais contatos comerciais dos portugueses com os Países Baixos se davam em Bruges, na região de Flandres, terra dos vlamingen, os lusos generalizavam e chamavam todo holandês de flamengo. Por essa razão, a malsucedida tentativa de Van Noort de estabelecer um entreposto holandês no litoral do Rio de Janeiro em 1599 deu a seu ponto de desembarque o nome de Praia do Flamengo. 12- PIERRE RICHIER (século XVI) Pastor calvinista da missão de Villegagnon, em 10 de março de 1577, oficiou o primeiro culto protestante no Brasil. O sermão sobre o Salmo 27, versículo 4 ("...que eu possa viver na casa do Senhor todos os dias da minha vida, para contemplar a bondade do Senhor"), e o hino 122 ("À minha voz, ó Deus, atende") chegaram aos ouvidos dos chefes tupinambás convidados como sons indecifráveis de um mundo distante. 13- ANTÔNIO SALEMA (morto em 1586) Matou e escravizou milhares de índios tamoios, aliados dos franceses. Esse episódio é ilustrado com perfeição na explicação do pesquisador americano Jared Diamond exposta no livro de 1997 Armas, Germes e Aço a respeito do triunfo dos invasores europeus sobre os nativos americanos e africanos. Além de canhões e o aço das espadas e lanças, Salema contaminava os índios, dando-lhes objetos infectados com o vírus da varíola. 14- JEAN-FRANÇOIS DUCLERC (morto em 1711) Chegou ao Rio de Janeiro em 1710 com mais de 1000 homens com o objetivo de saquear a cidade. Foram derrotados. Quase 400 franceses morreram e sessenta foram feitos prisioneiros. A derrota, no entanto, deixou lições que outro corsário francês, Duguay-Trouin, saberia aproveitar no ano seguinte. 15- RENÉ DUGUAY-TROUIN (1673-1736) Desembarcou no Rio de Janeiro em 1711 com 5000 homens e 72 canhões. Em menos de duas horas, o maior ataque da história colonial era um sucesso. Duguay-Trouin partiu meses depois levando sessenta navios mercantes, três embarcações pesadas de guerra, duas fragatas e um imenso lastro de metais preciosos e mercadorias. Os prejuízos ao Rio de Janeiro foram calculados em 25 milhões de libras — o equivalente hoje a quase 10 bilhões de reais. 16- DOM SEBASTIÃO (1554-1578) É improvável que aos 11 anos, já rei de Portugal, sob a regência da mãe há oito anos, dom Sebastião, o Desejado, tenha sabido da fundação da cidade do Rio de Janeiro. Aos 24 anos, desembarcou à frente das tropas portuguesas no Marrocos, logo derrotadas pelos mouros em Alcácer-Quibir. Dom Sebastião desapareceu na batalha, apressando o fim da dinastia de Avis e dando origem ao "sebastianismo", a duradoura lenda do messias que voltaria para salvar Portugal e que atravessou o oceano e as eras, chegando ao Brasil. Antônio Conselheiro, o louco que levantou o povoado de Canudos no fim do século XIX, era "sebastianista" e invocava o rei para ajudá-lo na luta contra "a república ateia". Dom João VI, que trouxe a corte portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808, fugindo da expansão napoleônica, era um Bragança e tinha parentesco tênue com a casa real de Avis. Fernando Pessoa cantou assim o mais famoso rei de Portugal: "Minha loucura, outros que me a tomem / Com o que nela ia / Sem a loucura que é o homem / Mais que a besta sadia / Cadáver adiado que procria?". 6#3 NO TEMPO DO ONÇA, DO VILLA, DO TOM E de outros grandes ou pequenos desbravadores. 17/18- TOM JOBIM (1927-1994) No Rio, ele é nome de aeroporto. No Brasil, sinônimo de música brasileira de qualidade. No mundo, compositor — com VINÍCIUS DE MORAES (1913-1980), seu parceiro de trinta anos — de Garota de Ipanema, uma das músicas mais tocadas em todos os tempos. Tom burilou a bossa nova, e um país sem expressão musical no exterior virou a mesa. 19- ALEIXO MANUEL, O VELHO (século XVI) Não havia um único profissional da saúde no Rio quando este português desembarcou na cidade, abriu um consultório em sua casa e introduziu o hábito de ir ao médico, no lugar do curandeiro. Cirurgias eram, basicamente, amputações de membros. 20- ANTONIO JORGE (século XVI) Os primeiros remédios vendidos no Rio eram produzidos por este padre português na botica do Colégio dos Jesuítas. A mistura de substâncias vindas da metrópole com ervas locais fez tanto sucesso que se espalhou por toda a colônia e virou produto de exportação: o primeiro manufaturado 100% brasileiro a cruzar fronteiras. 21- GASPAR DE LEMOS (século XVI) Foi ele o comandante da nau que levou a carta de Caminha e as boas-novas ao rei de Portugal: o Brasil fora descoberto. Sua segunda missão além-mar não foi menos pomposa: mapear pela primeira vez o litoral brasileiro junto com Américo Vespúcio. 22- GONÇALO COELHO (século XVI) Os cariocas não seriam cariocas se este navegador português não tivesse erguido uma casa de pedra perto da praia. A construção impressionou os índios, que a batizaram de... carioca — em tupi, casa de branco. O termo pegou. 23- MATEUS NUNES (século XVI) O primeiro vigário do Rio de Janeiro, nomeado em 1569 pelo bispo da Bahia com "poder de repreender, castigar e sentenciar a todos aqueles que vivessem mal, sentenciando até dez cruzados sem agravo nem apelação, bem como de conhecer os casos da Santa Inquisição, sentenciando segundo o Senhor o alumiasse". 24- SEBASTIÃO GONÇALVES (século XVI) O primeiro sapateiro a deixar registro disso na história do Rio. 25- RICARDO DO PILAR (1635-1700) Frans Post e Albert Eckhout vieram antes, mas este alemão foi o primeiro pintor de renome na Europa a morar no Rio. O Mosteiro de São Bento guarda uma de suas obras: o óleo Senhor dos Martírios, de 1690. 26- LUÍS VAHIA MONTEIRO, O ONÇA (1660-1732) Coronel de infantaria em Portugal, foi nomeado governador do Rio, onde repetiu o padrão colonial no exercício do poder. Distante da corte, admoestável por seus erros apenas por cartas formais do rei, começou duro, mas justo. Aos poucos foi seduzido pelo poder absoluto e deu-se aos abusos. Ganhou o apelido que redundou na lenda de que "no tempo do Onça" tudo era melhor. 27- CONDE DE BOBADELA (1685-1763) António Gomes Freire de Andrade, depois feito conde, foi governador e capitão-general do Rio de Janeiro de 1733 a 1763. Desafiou Lisboa e permitiu que se abrisse no Rio uma tipografia, aos olhos da corte uma perigosa manifestação da liberdade de expressão. Denunciado, mandou fechá-la. 28- DOMENICO CAPACCI (1694-1736) Ele e Diogo Soares, jesuítas, chamados de os "padres matemáticos", montaram um observatório astronômico no Rio e produziram as primeiras cartas de navegação da costa brasileira com marcações de latitude e longitude. 29- LUIZ NOGUEIRA DE BRITO (século XVII) As Ordenações Filipinas, compilação jurídica adotada por Portugal e Espanha durante a União Ibérica (fusão dinástica entre as monarquias dos dois países), previam a organização de "quadrilheiros", grupos que, a mando das autoridades locais, alcaides e ouvidores-gerais eram encarregados de prender malfeitores. Foram os embriões das polícias militares. Nogueira de Brito organizou o primeiro grupo de quadrilheiros no Rio de Janeiro. 30- JOSÉ JOAQUIM EMERICODE MESQUITA (1746-1805) Mulato, filho de um português com sua escrava, foi o maior compositor setentista do Brasil. Tocava órgão nas missas da igreja da Ordem Terceira do Carmo, no Rio, que atraíam multidões. 31- ANTÔNIO DE MORAIS E SILVA (1755-1824) Carioca que estudou em Coimbra, produziu em 1789 o primeiro dicionário de língua portuguesa compilado por um brasileiro. 32/33- JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA (1767-1830) Dom João VI encantou-se com esse padre, o primeiro grande compositor de música sacra no Brasil, que dividiu a capela imperial com MARCOS PORTUGAL (1762-1830), músico consagrado da corte portuguesa. 34- FREI LEANDRO (1778-1829) Carmelita, fez do Jardim Botânico um centro de pesquisas. 35- FRANCISCO MANUEL DA SILVA (1795-1865) Compositor oficial do império, é o autor da música do Hino Nacional. 36- OSÓRIO DUQUE-ESTRADA (1870-1927) Poeta e fã de inversões linguísticas, fez a letra do Hino Nacional. 37- ALEIXO GARY (século XIX) Francês, inaugurou o depósito de lixo. De seu nome vem o termo "gari", lixeiro. 38- LEON RODDE (século XIX) Dom Pedro II conheceu o telefone em 1876, na Filadélfia, na exposição comemorativa do centenário da independência dos Estados Unidos. O entusiasmo do imperador levou-o a instalar os primeiros aparelhos, que ligavam seu gabinete de trabalho aos dos principais ministros. Mas a primeira demonstração pública do telefone foi feita na loja de "novidades elétricas" do americano Leon Rodde, no Rio. 39- INÁCIO JOSÉ PACHECO (século XVIII) Cooptou outros militares e formou uma das maiores quadrilhas de seu tempo no país, especializada em roubo e tráfico de pólvora - algo como um miliciano dos tempos coloniais. 40- JOSEPH STRUKS (século XVIII) O doutor formado na Alemanha trouxe para o Rio o que havia de mais avançado na medicina europeia. Os colegas tentaram impedi-lo de trabalhar, mas ele conseguiu um visto. Para se manter incógnito, virou "José Estruque". 41- JOÃO FRANCISCO MUZZI (morto em 1802) O grande legado deste italiano que também atuava como cenógrafo foi ilustrar o primeiro mapa botânico do Rio, permitindo conhecer a fundo a flora fluminense. 42- ARAÚJO PORTO-ALEGRE (1806-1879) Na sua gestão à frente da Escola de Belas Artes, os brasileiros aprenderam a pintar como brasileiros, em vez de copiar os europeus. Também foi pintor oficial da corte, e nessa função projetou o cenário para os festejos da coroação de Dom Pedro II. 43- BARÃO DO LAVRADIO (1816-1892) Médico higienista, foi um dos primeiros chefes do Instituto Vacínico do Império. José Pereira Rego, eis seu nome de batismo, foi feito barão por dom Pedro II por sua luta pela erradicação da febre amarela. 44- BARÃO DE CAPANEMA (1824-1908) Guilherme Schüch, filho de austríacos, formado em engenharia e física, instalou o primeiro telégrafo no Brasil, em 1852, a partir de experiências que realizara em laboratórios da Escola Militar. Também inventou um formicida para combater a saúva - aquela que, se o Brasil não acabasse com ela, acabaria com o Brasil. Bisavô de Gustavo Capanema, ministro da Educação de Getúlio Vargas, chefe de Carlos Drummond de Andrade. 45- EMMANUEL LIAIS (1826-1900) O Cometa Olinda nunca tinha sido estudado nem batizado quando cruzou o céu do Brasil em 1860. Diretor do Observatório Imperial, esse francês estava ao telescópio e fez as duas coisas. Virou grande impulsionador da astronomia no país. 46- ANGELO AGOSTINI (1843-1910) Este artista gráfico italiano tirou o chão dos conservadores ao utilizar caricaturas e cartuns para criticar a Igreja, o império e a escravidão em sua Revista Illustrada. Era definida na época como "a bíblia da abolição para os que não sabem ler". 47- CÂNDIDO RONDON (1865-1958) Ao demarcar as fronteiras nacionais, embrenhou-se em terras indígenas. Mapeou etnias nunca contatadas, liderou uma comissão de cientistas para estudar a cultura das tribos, criou o Parque Nacional do Xingu e mudou a maneira de o país ver os índios. 48- PASCHOAL SECRETO (1868-1920) O cinema mal tinha sido inventado quando esse empresário italiano abriu o primeiro cinematógrafo, na elegante rua do Ouvidor. Em áreas próximas, ergueu um conglomerado de diversões que incluía teatros, cafés, cervejarias e casas de jogos com apostas. 49/50- HENRIQUE LAGE (1881-1941) Fundou a primeira fábrica de aviões do Brasil, a Companhia Nacional de Navegação Aeronáutica. Casou-se com a cantora lírica italiana GABRIELLA BESANZONI (1888-1962) e para ela construiu um palacete no Jardim Botânico. Quando ele morreu, ela, sem filhos e estrangeira, foi dar aula de canto na Itália. A propriedade virou patrimônio nacional e é hoje o Parque Lage. 51- ROQUETTE-PINTO (1884-1954) Por obra deste médico e antropólogo carioca a rádio Sociedade do Brasil, a primeira do país, fez com que poesia, música, literatura, ciência e língua portuguesa se difundissem nacionalmente. 52/53- NAIR DE TEFFÉ (1886-1981) Na Presidência - ou seja, sob escrutínio da nação inteira —, o marechal HERMES DA FONSECA (1855-1923) encerrou em um ano o luto pela morte da primeira mulher e se casou com Nair, 31 anos mais nova. Ousada, ela rapidamente ganhou mais luz que o marido: em recepção no palácio, tocou um maxixe ao violão, ritmo e instrumento pouco nobres. Primeira mulher a publicar caricaturas em vários jornais, assinava Rian (seu nome ao contrário) e não perdoava nem o companheiro Hermes. 54- VILLA-LOBOS (1887-1959) Antes de executar a façanha de pôr o Brasil no mapa da música clássica, viajou pelo país, tocando chorinho e conhecendo ritmos regionais. A diversidade de influências marcou sua obra, inicialmente criticada por fugir do padrão. "Não escrevo dissonante para ser moderno", explicou. "O que escrevo é consequência cósmica dos estudos que fiz." 55- ÁLVARO ALBERTO (1889-1976) Este almirante foi o primeiro a criar um plano de indústria nuclear nacional. Encomendou aos alemães centrífugas para a produção de urânio enriquecido em plena II Guerra. A iniciativa foi o embrião das duas únicas usinas brasileiras, em Angra dos Reis. O complexo leva seu nome. 56- RODOLFO MAYER (1910-1985) Nascido em São Paulo, foi para o Rio em 1935. É dele o papel de Alfredo Medina, o protagonista da primeira novela radiofônica do país, Em Busca da Felicidade, de 1941, levada ao ar "pelas ondas do éter" da Rádio Nacional. No teatro, faria sucesso com o monólogo As Mãos de Eurídice, de Pedro Bloch. 57- MARIA OLENEWA (1896-1965) Primeira bailarina da mais renomada companhia russa, a de Anna Pavlova, trocou seu país pelo Brasil e aqui introduziu o ensino de balé clássico, na Escola Oficial de Bailados do Rio. 58- JOAQUIM ARCOVERDE CAVALCANTI (1850-1930) Arcebispo do Rio, pôs o Brasil, hoje o maior país católico do mundo, na cúpula do Vaticano ao se tornar cardeal, o pioneiro da América Latina. 59- RODRIGO MELO FRANCO DE ANDRADE (1898-1969) Criou o embrião do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. 60- LOURENÇO FALLAS (século XIX) Em 1834, este espanhol importou dos Estados Unidos 217 toneladas de gelo para misturar a frutas tropicais, como jabuticaba e pitanga, e assim produziu os primeiros sorvetes do Brasil. Gerou um novo hábito: dom Pedro II, quando criança, adorava ir a suas duas lojas na cidade. 61- RENATO MURCE (1900-1987) Revelou muitos talentos musicais em seus programas — Angela Maria, Agnaldo Rayol, Luiz Gonzaga, Ivon Cury. Criou um quadro de professor e alunos em uma sala de aula que, décadas depois, inspiraria Chico Anysio e Ronald Golias. 62- CELSO SUCKOW DA FONSECA (1905-1966) Bebeu da fonte de países com educação mais organizada e estruturou o ensino técnico de qualidade no Brasil. 63- MARIE JOSEPHINE DUROCHER (1908-1893) Nascida na Franca, única aluna do curso de parteiras quando ele foi instaurado na Faculdade de Medicina do Rio, diplomou-se em 1834, adquiriu enorme clientela e virou parteira da casa imperial. Em sessenta anos de profissão, abriu caminho para a mulher num mundo proibido, o da medicina. 64- ARTUR BISPO DO ROSÁRIO (1909-1989) Diagnosticado com esquizofrenia, passou meio século em hospícios, onde transformou delírio em arte, tendo restos e sucatas por matéria-prima. Teceu jaquetas, estandartes e mantos, montou cenários e, no seu estúdio improvisado, antecipou-se à arte contemporânea. 65- BURLE MARX (1909-1994) Mago do paisagismo, revolucionou os jardins públicos e privados. Em seus projetos, eles adquiriram formas sinuosas e plantas nativas até então consideradas simples mato. Artista de muitos talentos, desenhava jóias, pintava e esculpia. Também cantava óperas, dava festas memoráveis e inventava refrescos, dos quais passava a receita aos amigos. 66- MARIA LENK (1915-2007) Maior nome da natação feminina brasileira até hoje, só não ganhou medalha olímpica porque, em seu ápice, a II Guerra estourou e duas Olimpíadas foram canceladas. 67- ABELARDO BARBOSA (1917-1988) Inventor de uma fórmula caótica e tumultuada de programa de auditório, com direito a peças de bacalhau lançadas ao público, dançarinas insinuantes — as chacretes — e muitos calouros, Chacrinha permaneceu 32 anos no ar, com grande audiência. Sua receita: "Fazer o que os outros não têm coragem de fazer'". 68/69- DAVID NASSER (1917-1980) Reportagens de impacto, texto envolvente, fotos caprichadas. A fórmula de Nasser e seu parceiro, o fotógrafo francês JEAN MANZON (1915-1990), fez disparar a tiragem de O Cruzeiro. É verdade que boa parte das histórias era pura invenção para vender revista, mas a dupla deu uma guinada na atrasada imprensa da época. 70- LIAN PONTES DE CARVALHO (1918-1995) Seu invento tem o mérito dos modismos da areia que não saem de moda. A coisa toda começou com uma bola de tênis descascada quicando sobre uma tábua. Assim nasceu o frescobol, recém-alçado a "patrimônio imaterial do Rio". É o único esporte sem vitorioso. Só tem graça quando os dois lados vão bem. 71- LYGIA CLARK (1920-1988) Com o neoconcretismo, movimento que ajudou a fundar, mudou a forma de ver a arte — mais sensorial e participativa. Sobre a série Bichos, placas de alumínio que se articulam em formas diversas por meio de dobradiças, escreveu: "É um organismo vivo, uma obra essencialmente ativa". 72- CARLOS WALTER MARINHO CAMPOS (1928-2000) Na década de 70, ninguém queria explorar petróleo na Bacia de Campos. Este geólogo mineiro insistiu, venceu e fez a economia carioca mudar de patamar. Foi ainda o primeiro a acreditar na existência de grandes reservas do pré-sal. 73- JOÃOSINHO TRINTA (1933-2011) O gênio do Carnaval ficou conhecido por uma frase: "O povo gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual". 74- WALTER CLARK (1936-1997) A Rede Globo ainda engatinhava, nos anos 60, quando ele assumiu o comando da emissora, ditou a grade de programação que todo mundo copiaria depois e, por meio das afiliadas, fez o Brasil viver dentro e diante da televisão. 75- NEWTON DUARTE, O BIG BOY (1943-1977) "Hello, crazy people" era o bordão deste disc-jóquei de vozeirão empostado que antecipou uma mania mundial. A imensidão de gírias muitas vezes o fazia incompreensível, mas pouco importava. O cara revelou novidades musicais que, a partir das pistas do Rio, embalaram os jovens de todo o Brasil. 76- PEPÊ (1957-1991) Pepê virou nome de praia na Barra da Tijuca. Pepê virou nome de barraca de sanduíche. Mais carioca, impossível. Morreu em um acidente de asa-delta no Japão. 6#4 SEU LUGAR ERA NA FRENTE Elas tinham atitude 77- ANA BARROSO (século XVI) Boa de política, essa portuguesa ganhou uma sesmaria em local estratégico, com visão panorâmica para a Guanabara. Teve papel essencial na vigilância da costa contra os invasores nos primórdios da colônia, função atípica para uma mulher. 78- JACINTA DE SÃO JOSÉ (1715-1768) Numa época em que as mulheres só obedeciam, ela ficou conhecida por se rebelar contra uma determinação real. Para estimular o crescimento demográfico na colônia, baixou-se um decreto que dificultava a vida de reclusão em conventos. Jacinta o ignorou e fundou a Ordem das Carmelitas Descalças no Rio. 79- ANGELA DO AMARAL RANGEL (século XVIII) Mulher não publicava poemas aqui antes que essa moça de origem rica, cega, enfrentasse os tabus da época e as próprias limitações físicas e se firmasse como a primeira mulher a ingressar na Academia dos Seletos, embrião do que viria a ser a Academia Brasileira de Poesia. 80/81- TERESA ROSA (século XVIII) Primeira brasileira a obter o direito ao divórcio, só conseguiu dar um fim ao casamento depois de provar que o marido, leproso, de quem cuidara a vida toda, havia levado uma amante para viver com eles. O processo marcou época pela raridade. O direito legal ao divórcio só chegou ao Brasil em 1977, ao ser aprovado um projeto de lei de NELSON CARNEIRO (1910-1996), senador pelo Rio de Janeiro. 82- CHIQUINHA GONZAGA (1847-1935) Separada e rompida com a família, foi ganhar a vida compondo para o teatro e regendo orquestras — num tempo em que não havia sequer feminino para a palavra maestro. Priorizou os sons brasileiros em suas composições, uma delas a primeira marchinha de Carnaval, O Abre Alas. Antes, a elite dançava valsa e polca nos bailes. Nas ruas, os cordões puxavam até hinos patrióticos. Aos 52 anos, apaixonou-se por um adolescente de 16, adotou-o como filho e viveram juntos até sua morte. 83- JULIA LOPES DE ALMEIDA (1862-1934) Precursora do feminismo militante, em seus textos conclamava as mulheres a ser mais ativas e mais protagonistas perante o Estado e a família. Almejava uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, mas seu marido, Filinto de Almeida, ficou com a vaga. 84- MARIA LACERDA DE MOURA (1887-1945) Estudiosa do papel feminino na sociedade, escreveu livros que foram exportados para a América Latina e a Europa e centenas de artigos em jornais sobre temas tabus, como virgindade e amor livre. 85- BERTHA LUTZ (1894-1976) Zoóloga formada na Sorbonne, voltou ao Rio insuflada pelos ares parisienses e desencadeou a primeira campanha pelo voto feminino. Foi custoso, mas ganhou a parada: em 1932, as brasileiras adquiriram o direito de ir às urnas bem antes de francesas, argentinas, portuguesas e tantas outras. 86- ERMELINDA LOPES (século XIX) A primeira mulher a se formar em medicina no Rio e a segunda no Brasil. Precisou lutar contra todos, inclusive o pai. Especializou-se na França e seguiu carreira bem-sucedida. 87- ARACY DE ALMEIDA (1914-1988) Quando o morro ainda era o reduto do samba e a sociedade torcia o nariz para os sambistas, todos homens, a cantora de grandes sucessos, a preferida de Noel Rosa, era a única mulher a circular à vontade entre boêmios e malandros. Os mais jovens conheceram-na como a jurada brava do programa de Silvio Santos. 88- MIRIAM ETZ (1914-2010) A primeira mulher de biquíni na praia do Rio não era carioca, e sim essa modelo alemã. Ela mesma confeccionou o duas-peças que deixava à mostra uma parte ínfima do torso. Foi um escândalo. Hoje, inverteu-se: o que menos se vê é tecido. 89- EULÁLIA LOBO (1924-2011) Antes dela, o Brasil não tinha nenhuma mulher Ph.D. Doutora em história, escreveu sobre os hábitos e costumes das classes mais pobres do Rio. 6#5 MÃOS À OBRA Eles deram forma à cidade 90- OSCAR NIEMEYER (1907-2012) Suas curvas de concreto moldaram obras no mundo todo, inclusive uma cidade inteira, Brasília, mas seu gênio saiu do Rio — da silhueta das montanhas, da orla sinuosa, das ondas do corpo das cariocas. Estava escrito: ele nasceu em Laranjeiras, numa rua íngreme, mas tão íngreme que despertou no menino o encanto pelas curvas imortalizadas pelo arquiteto. 91- JOÃO PEREIRA DE SOUZA (1540-1605) Esse português enrolado com o Fisco decidiu comprar uma faixa de terra na orla da Baía de Guanabara e povoá-la. O apelido que ganhara como chefe de artilharia de um navio de guerra, Botafogo, batizou o bairro — e o time de futebol. 92- SALVADOR CORREIA DE SÁ (1547-1631) Governador do Rio nos primórdios, por motivos defensivos aterrou um canal e uniu ao continente os morros Cara de Cão, Pão de Açúcar e Urca, que formavam uma ilha. Criou um dos mais celebrados cartões-postais do planeta. 93- BALTAZAR DE ABREU CARDOSO (século XVI) Rico senhor de terras, deu um primeiro passo na direção da Zona Norte por uma razão curiosa. Livrou-se de uma cobra prestes a dar o bote, atribuiu o fato à ajuda divina e ergueu no local a Capela de Nossa Senhora da Penha, hoje famosa na versão com 365 degraus. 94- FRANCISCO GONÇALVES (século XVI) As primeiras fortificações do Rio levavam a assinatura desse ultraespecialista em construção importado de Lisboa com a missão de erguer barreiras de proteção na colônia recém-conquistada. 95- PEDRO FERRAZ (século XVI) Custou muito tempo e dinheiro, mas esse monge conseguiu, ao lado de outros, plantar no Rio uma de suas joias sacras: fundou o Mosteiro de São Bento, que une em seu interior o barroco ao rococó. 96- MARTIM CORREIA DE SÁ (século XVII) Foi o primeiro governante do Rio nascido no Rio — e ocupou o cargo duas vezes. Desbravou o lamaçal para pôr no cenário fortificações e igrejas. 97- CONSTANTINO MENELAU (século XVII) Um marco civilizatório no Rio surgiu em sua gestão como governador: o advento da rua pavimentada. 98- LUÍS DE VASCONCELOS E SOUSA (1742-1809) Vice-rei, deixou como legado uma obra de engenharia trabalhosa. Aterrou uma lagoa para criar o passeio público, a primeira área de lazer do Rio. 99/100- MESTRE VALENTIM (1745-1813) Embora o mestre do entalhe seja mais conhecido pelos belos interiores barrocos, são dele os projetos que deram o tom do Rio do século XVIII, com seus chafarizes, praças e áreas de lazer. Formou artistas do Brasil todo, um deles SIMEÃO JOSÉ DE NAZARÉ (1775-1858), ex-escravo que importou o neoclassicismo em voga na Europa para a escultura do Rio colonial. O melhor de seu trabalho ainda se vê na Igreja de São José, no Centro. 101- CONDE DOS ARCOS (1771-1828) Às vésperas da chegada da corte portuguesa ao Brasil, era preciso correr para dar um certo verniz à cidade que passaria de colônia a império: para o grande acontecimento, mandou pintar fachadas, limpar ruas e remover mendigos. 102- GRANDJEAN DE MONTIGNY (1776-1850) Foi figura decisiva na célebre Missão Artística contratada por dom João VI para afrancesar o Rio. Radicou-se aqui, transferiu o DNA da arquitetura europeia a seus pupilos e ainda se pôs ele mesmo a embelezar a cidade com chafarizes, fontes e praças. 103- ANTONIO ALVARES DA CUNHA (século XVIII) Primeiro vice-rei do Brasil no Rio capital, promoveu um salto de urbanização na cidade ao mandar aterrar esgotos, melhorar defesas e construir hospitais. Terminou a vida pobre e pediu dinheiro emprestado para retornar a Portugal. 104- JOSÉ FERNANDES ALPOIM (século XVIII) Português, criou o primeiro curso de engenharia do país, no qual lecionou por quase três décadas. É de sua autoria a Casa dos Governadores, o futuro Paço Imperial. 105- PEREIRA PASSOS (1836-1913) Prefeito do "bota-abaixo", refez a cidade com ares de Paris. Ergueu o Theatro Municipal, o Museu Nacional de Belas Artes, a Biblioteca Nacional, alargou avenidas e varreu cortiços. Nos morros, nasceram as primeiras favelas. 106- ANDRÉ REBOUÇAS (1838-1898) Engenheiro renomado, amigo de Pedro II a ponto de acompanhá-lo no exílio quando o império acabou, foi um raro negro a integrar a elite da época — e era ativo abolicionista. Assinou projetos inovadores de aqueduto, estrada de ferro e até um torpedo. Dá nome ao túnel que liga as zonas Norte e Sul. 107- FRANCISCO DE PAULA BICALHO (1847-1919) Foi o engenheiro imbuído da hercúlea tarefa de supervisionar a transformação urbanística pela qual o Rio passou na virada para o século XX. Tornou-se nome de rua no Centro. 108- LUIZ RAPHAEL VIEIRA SOUTO (1849-1922) Dirigiu as obras da Avenida Beira-Mar, um ícone de modernidade na época, que influenciou outras do gênero no país. A avenida que leva seu nome tem os endereços mais caros do Rio. 109- AUGUSTO FERREIRA RAMOS (1860-1939) Precisou bater em muitas portas para viabilizar seu projeto: uma via aérea que ligasse os morros da Urca e do Pão de Açúcar, igual a outras duas existentes no mundo, na Espanha e na Suíça. Contou depois que fez "espalhafatosas promessas de lucros mirabolantes" para atrair investidores. Enfim conseguiu recursos, importou bondinhos e cabos da Alemanha e fundou a Cia. Caminho Aéreo Pão de Açúcar, até hoje administradora da pequena gaiola de vidro que, pendurada entre o céu e o mar, descortina aquela vista fantástica a seus passageiros. 110- PAULO DE FRONTIN (1860-1933) O prefeito-engenheiro construiu em menos de uma semana um canal que regularizou a saída de água nos chafarizes, onde a população se abastecia. Vivesse hoje, quem sabe, a seca estaria resolvida. 111- CARLOS SAMPAIO (1861-1930) No centenário da Independência, este prefeito correu em ritmo pré-olímpico para fazer a faxina, riscando do mapa áreas degradadas, como o Morro do Castelo, onde a cidade começara. 112/113- HEITOR DA SILVA COSTA (1873-1947) O engenheiro executou tarefa bíblica: pôr o Cristo Redentor no Corcovado. Primeiro desenhou o projeto e definiu altura e posição. Então encomendou ao escultor francês PAUL LANDOWSKI (1875-1961) o molde em gesso em três partes (corpo, cabeça e mãos), que vieram de navio. Aí começou a luta. O morro não tinha estrada, nem água para a argamassa, que foi bombeada de um riacho distante. Enormes guindastes erguiam material e operários, sem equipamento de segurança. Lá em cima, a estátua de mais de 1000 toneladas ganhou concreto revestido de triângulos de pedra-sabão e foi fixada à base chumbada na rocha. Estava pronto o cartão-postal. 114/115- HENRIQUE DODSWORTH (1895-1975) Para encerrar um ciclo de quatro décadas de grandes intervenções urbanísticas, suprimiu igrejas históricas, 525 casas e boa parte da Praça XI para rasgar a Avenida Presidente Vargas e a Esplanada do Castelo. É dele a escolha do local onde anos depois seria construído o Maracanã. A construção mesmo só ocorreria dez anos mais tarde. Coube ao prefeito ANGELO MENDES DE MORAIS (1894-1990) entregá-lo pronto para a Copa do Mundo, em 1950. 116- LE CORBUSIER (1887-1965) Foi no Rio, onde esteve três vezes, que o pai da arquitetura moderna teve um estalo e imaginou uma espécie de viaduto de 100 metros de altura ao longo da costa sob o qual se ergueriam moradias populares. Muito diferente, muito revolucionário e muito impraticável. Sua marca na cidade é o Palácio Capanema, a cuja construção prestou assessoria. Gostava de ver o terreno de cima. Sobrevoou a cidade na primeira visita. Na segunda, chegou a bordo de um zepelim. 117- ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY (1900-1944) O que o autor de O Pequeno Príncipe tem a ver com isso? Piloto da Aéropostale, o correio aéreo que aproximou o Brasil do resto do mundo, conhecia a cidade e estava no voo em que Corbusier teve seu estalo criativo. 118- LÚCIO COSTA (1902-1998) A modernidade na arquitetura chegou ao Brasil por sua iniciativa. Reformulou o curso da Escola Nacional de Belas Artes e trouxe ao país o papa das pranchetas Le Corbusier. Entre os marcos de seu talento estão o plano piloto de Brasília e o Palácio Gustavo Capanema, no Rio. Mas só gostava de duas arquiteturas: a colonial e a modernista. 119- AFFONSO REIDY (1909-1964) Há algo mais belo para ocupar a imensa área livre à beira-mar do que um conjunto de espigões? Bem, felizmente, o arquiteto do Museu de Arte Moderna foi na contramão da maioria: projetou o parque do Aterro do Flamengo e deu destaque à valorização do espaço público. 120/121- LOTA MACEDO SOARES (1910-1967) Rica e educada, ela não precisava encarar nenhum trabalho duro, mas tomou as rédeas da construção do Aterro do Flamengo e legou à cidade uma extensa área de lazer e a preservação de uma vista deslumbrante. Vivia um romance público com a poeta americana ELIZABETH BISHOP (1911-1979), que ficou mais de duas décadas no Rio e aqui se inspirou para escrever uma parte de seus contos e poemas. 6#6 GENTE QUE FEZ O talento deles era empreender 122- IRINEU EVANGELISTA DE SOUZA (1813-1889) Pense em estaleiro, ferrovia, iluminação a gás, cabo submarino para telégrafo. Foi tudo obra do barão de Mauá. Maior empresário do Império, ele plantou o embrião do capitalismo em um país atrasado e escravocrata. Acabou falido. 123- ISABEL DIAS (século XVI) Mulher do leiloeiro oficial do Rio, é dela o primeiro comércio com autorização da coroa para funcionar na cidade. Vendia de tudo em um mesmo lugar, um minishopping center colonial. 124- PETRONILHA FAGUNDES (1671-1717) Sua intensidade ao gerir o engenho que herdou do bisavô às margens de uma lagoa se repetia na vida privada. Aos 31 anos, apaixonou-se por um rapaz de 16. O cartão-postal sob seu domínio ganharia o nome do futuro marido: Lagoa Rodrigo de Freitas. 125- FELICIANA DA PENA (morta em 1656) Tida como a primeira self made woman fluminense, foi do zero ao topo da elite econômica fazendo de seu engenho o mais produtivo da época. Sua fortuna: 100 escravos e 2 milhões de dólares em valores de hoje. 126- CONDE DA BARCA (1754-1817) Não apenas convidou ao Rio a Missão Artística Francesa, que deu ares parisienses ao urbanismo colonial, como também importou os ventos da liberdade: instalou na própria casa a Impressão Régia, gráfica que rompeu de vez com a proibição de imprimir textos no país. 127- MARIANA EUGENIA CARNEIRO LEÃO (século XVIII) Fazendeira e inovadora, plantou café antes que o grão se valorizasse, ficou milionária e virou nome de rua. 128- DANIEL PEDRO FERRO CARDOSO (século XIX) As formigas dizimavam as plantações de café quando este engenheiro veio com a solução: um inseticida que, por salvar a lavoura, ganhou patente das mãos de Pedro II. 129/130- EDUARDO LAEMMERT (1806-1880) Com o irmão, HENRIQUE LAEMMERT (1812-1884), criou o GPS do Rio na época: o Almanak Laemmert, que localizava todas as lojas, restaurantes, repartições, clubes, serviços — enfim, tudo o que funcionava para servir o público. Lançado em 1844 e atualizado anualmente até 1914, era consultado por todo mundo. 131- FRANCISCO DE PAULA BRITO (1809-1861) Este negro em tempos escravocratas se tornou o primeiro grande editor brasileiro. Um de seus oitenta periódicos, O Homem de Cor, tratava exclusivamente do preconceito racial e foi decisivo na campanha abolicionista. 132/133- GUILHERME GUINLE (1882-1960) Banqueiro e empresário dos setores elétrico e petrolífero, uniu-se ao engenheiro EDMUNDO DE MACEDO SOARES (1901-1989), mais tarde ministro, para formular o projeto da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). Era a base do plano de Vargas para semear uma indústria brasileira. Fundada em 1941, a usina ainda está em atividade em Volta Redonda, mas privatizada. 134- BAPTISTE LOUIS GARNIER (1823-1893) Caçula de um clã de reputados livreiros em Paris, instalou no Rio a Editora Garnier. Teve o mérito de fazer circular pela primeira vez aqui autores europeus e de impulsionar a literatura local com a publicação de obras de Machado de Assis e José de Alencar. 135- BARÃO DE DRUMMOND (1825-1897) Construiu um bairro, Vila Isabel, e ali o primeiro zoológico do Rio. Sorteava prêmios com base em números gravados nos ingressos, cada qual correspondente a um animal. Copiada, a ideia virou o ilegal jogo do bicho, fonte de receitas para o Carnaval antes de ele ser bancado por ditadores africanos. 136- CONRADO JACÓ DE NIEMEYER (1831-1905) Com pouco mais de 5 quilômetros de cenário deslumbrante ao longo de um penhasco sobre o Atlântico, a Avenida Niemeyer, que aproximou a Zona Sul da Barra da Tijuca, pôs na história o nome deste engenheiro, que, com técnicas inovadoras, venceu finalmente o desafio de abrir uma via na rocha. 137/138- FREDERICK STARK PEARSON (1861-1915) A Light disseminou a eletricidade e iluminou o Rio. Primeira grande empresa com capital estrangeiro no Brasil, é obra do investidor americano Pearson e de seu sócio canadense. ALEXANDER MACKENZIE (1860-1943), que, para obter as concessões necessárias, contratou Rui Barbosa como consultor. 139- FREDERICO FIGNER (1866-1947) O plano inicial do imigrante checo era vender no Rio um gravador de voz recém-inventado por Thomas Edison, mas esse foi só o começo. Ele transformou sua Casa Edison na primeira gravadora de discos do Brasil. 140- MANUEL LEBRÃO (1868-1933) Os salões ornados de espelhos belgas da Confeitaria Colombo, fundada por este português, foram o epicentro da agitação cultural e política do Rio na virada do século XX. Ali, Olavo Bilac compôs o Hino à Bandeira e o ainda desconhecido Villa-Lobos tocava piano por uns trocados. O glamour se foi, mas a casa continua na ativa. 141- FRANCISCO SERRADOR CARBONELL (1872-1941) Seu projeto não chegou a ser uma Broadway no Rio, mas ele pôs de pé um circuito de teatros e cinemas, inaugurando na cidade a área batizada de Cinelândia e o gosto por filmes. Apresentou ainda ao carioca o cachorro-quente, que engrossava seu faturamento na bilheteria. 142/143- OCTAVIO GUINLE (1886-1968) Não havia no Rio um hotel à altura dos ilustres visitantes aguardados para o centenário de independência do Brasil. A pedido do presidente Epitácio Pessoa, Guinle fundou o Copacabana Palace. Não ficaria pronto para a efeméride, mas ornou com glamour a orla e elevou a régua da hotelaria brasileira. Seu irmão EDUARDO GUINLE (1878-1941), igualmente com dinheiro de sobra, construiu um palacete em Laranjeiras, na então distante Zona Sul. Veio a se tornar a residência oficial do governador, e seu jardim, o Parque Guinle. 144- ANTONIO JOAQUIM PEIXOTO DE CASTRO (1888-1979) A Refinaria de Manguinhos, de sua propriedade, chegou a prover o Rio de 90% do combustível consumido ali e atraiu fábricas ao polo industrial que se formava na entrada da cidade. Vendida na década de 1990, hoje namora a falência. 145- ASSIS CHATEAUBRIAND (1892-1968) Fincou as raízes de seu conglomerado de imprensa na então capital da República. Mecenas e truculento, cultivava ou fuzilava poderosos nas páginas de seus jornais, os quais manipulava sem pejo conforme seus interesses. 146- RAIMUNDO CASTRO MAYA (1894-1968) Fez dinheiro produzindo óleos vegetais, mas marcou a cidade ao fundar e presidir o Museu de Arte Moderna do Rio. Deixou como legado a maior coleção pública de obras de Portinari, hoje exposta no Museu Chácara do Céu. 147- JOSEPH VILLIGER (Século XIX) O engenheiro suíço emigrou para o Rio e não gostou das cervejas do império. Abriu uma cervejaria com 32 funcionários e receita própria, que foi ajustando ao seu paladar. Os cariocas aprovaram — em 1888 nascia a Brahma. Por que Brahma? Ninguém sabe. 148- MARY ANGÉLICA (1900-1998) Toda a alta sociedade da República, inclusive as primeiras-damas, se vestia no ateliê desta uruguaia, que fez fama e dinheiro copiando o corte europeu. 149- ADOLFO AIZEN (1907-1991) Este imigrante russo apresentou os quadrinhos ao Brasil nos anos 30. Publicava em jornais cariocas tiras de heróis como Tarzan e Mandrake, que importava dos Estados Unidos. Por mais de meio século, sua editora foi a maior do gênero no país, até quebrar. 150/151/152- ALBERTO MONTEIRO DE CARVALHO E SILVA (1887-1969) O patriarca do clã Monteiro Aranha — dono de negócios em vários setores — sacudiu a alta sociedade carioca. Vivia a três — ele, a mulher, BEATRIZ, a elegante Beatrizinha, e o sócio OLAVO EGYDIO DE SOUZA ARANHA (1887-1972). O convite para uma de suas festas era passaporte para o high society. 153/154- JOAQUIM MONTEIRO DE CARVALHO (1913-2008) Chamado de Baby, transformou a herança do pai, Alberto, no mais poderoso conglomerado industrial do Rio. Não descuidou da tradição familiar: junto com o playboy JORGE GUINLE (1916-2004), o baixinho que conquistava estrelas de Hollywood, bancava festas em que a regra era não ter regra. 155- JOSÉ OLYMPIO (1902-1990) Começou como empacotador de livros em São Paulo e montou a editora que lançou a literatura moderna. Chegou a imprimir 2000 títulos entre os anos 40 e 50. Trouxe uma novidade: pagar direitos autorais. 156- ROBERTO MARINHO (1904-2003) Fez da empresa da família, as Organizações Globo, um gigante da comunicação, e de sua rede de televisão — presente em todas as casas —, a mais influente formadora de opinião do país. 157- AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT (1906-1965) Empreendedor, fundou a primeira rede de supermercados do país, Disco, e uma editora que leva seu nome. Lançou Gilberto Freyre, Jorge Amado, Graciliano Ramos. Produziu discursos de cunho liberal para o amigo JK. É dele o slogan "50 anos em 5". 158- ADOLPHO BLOCH (1908-1995) Editor implacável e hábil bajulador de políticos, montou um império de mídia. Seu carro-chefe era a revista Manchete, lançada em 1952. Inovadora para sua época, transformou-se na semanal mais lida do país apostando em fotojornalismo de excelência e textos elaborados. 159- HENRIQUE DE BOTTON (1908-1994) O funcionário que se casou com a filha do dono ascendeu a presidente da Mesbla e transformou a antes atacadista na maior potência do varejo nacional. A rede faliu em 1999, mas o edifício art déco com o relógio encravado na torre até hoje guia os cariocas. 160- SAMUEL WAINER (1910-1980) Seu jornal, o Ultima Hora (sem acento mesmo), foi mais do que um órgão oficioso da segunda era Vargas. Incomodou a concorrência com gráficos, cores, fotos ampliadas, cartuns e muita agilidade nas reportagens. 161/162- JOAQUIM GUILHERME DA SILVEIRA (1910-1997) Nos anos 60, ele e o irmão MANUEL SILVEIRA (1882-1974) transformaram a Fábrica Bangu em sinônimo de moda para a alta-roda, que, sim, ia ao subúrbio atrás de novidades. Comandava um grande acontecimento social — o Miss Bangu, precursor dos concursos de beleza — e era patrocinador de festas lendárias. 163- WALTHER MOREIRA SALLES (1912-2001) Banqueiro muito bem-sucedido, serviu a três governos como embaixador. Discreto e habilidoso, foi importante negociador da dívida externa brasileira, então de grandes proporções. 164- CARLOS NIEMEYER (1920-1999) Quando a massa da população brasileira ainda não tinha TV, era no seu Canal 100, exibido nos cinemas sempre antes de a sessão começar, que se assistia ao melhor do futebol. Durou até a década de 80. 165- PAULO GEYER (1921-2004) A fortuna ele fez em São Paulo, com o conglomerado petroquímico Unipar, mas a maior coleção privada de pintura brasileira do século XIX, composta de mais de 4000 peças, ele guardava em sua mansão no Cosme Velho, no Rio. Doada ao estado, fará parte de um museu ali mesmo. 166- HANS STERN (1922-2007) A notoriedade mundial das pedras brasileiras é obra desse refugiado judeu alemão, o primeiro a fazer da joalheria do Brasil um negócio multinacional. Também inventou uma rua de luxo ao instalar a sede da H. Stern na Garcia d'Ávila, em Ipanema. 167- ÊNIO SILVEIRA (1925-1996) À frente da editora Civilização Brasileira, divulgou autores e ideias de esquerda em plena ditadura militar. 168/169- ALFREDO MAYRINK VEIGA (1877-1928) Comerciante próspero, entusiasmou-se com a experiência da rádio de Roquette-Pinto, a primeira do país, e fundou a segunda, à qual deu seu sobrenome. No começo, só transmitia gravações. A virada se deu com a contratação de CÉSAR LADEIRA (1910-1965), locutor que fez e desfez celebridades, às quais ofereceu pela primeira vez contrato com salário fixo. Seus slogans viravam quase sobrenome: Carmem Miranda era "a pequena notável", Francisco Alves, "o rei da voz" e Aracy de Almeida, "o samba em pessoa". 170- CARLOS IMPERIAL (1935-1992) Excepcional marqueteiro de si mesmo, autointitulado Rei da Pilantragem e por anos locutor oficial das campeãs do Carnaval carioca, como agente e produtor abriu portas e alavancou carreiras no mundo da música, a exemplo da de Roberto Carlos. 171- MAURO TAUBMAN (1950-1994) Juntou o estilo surfista californiano ao jeitão das areias cariocas e virou ícone nacional da moda jovem. Nos anos 80, todo mundo queria ter uma mochila Company. 6#7 NOITES CARIOCAS Dos cassinos para as boates, a vida noturna mudou de patamar 172- JOAQUIM ROLLA (1899-1972) Apostou e ganhou com o vibrante Cassino da Urca, onde consagrou Carmen Miranda e trouxe brilho, luxo e música à noite carioca. O jogo foi proibido em 1946, mas ele reagiu e ergueu um bem-sucedido centro de exposições, hoje o Pavilhão de São Cristóvão. 173- CARLOS MACHADO (1908-1992) Em sociedade com o pianista Sacha Rubin, austríaco — ou turco, segundo desafetos — radicado no Rio, fundou a célebre boate Sacha's. No teatro de revista, inaugurou o show com mulatas seminuas, imagem até hoje colada ao Brasil no exterior. 174- BARÃO MAX VON STUCKART (século XX) O barão austríaco fugido da II Guerra abriu a seletiva e intimista boate Vogue, em Copacabana. Mudou o comportamento e o público da noite, ao promover o encontro da alta sociedade com a música popular. O cozinheiro importado da Rússia, Gregoire Belinzanski, incorporou ao cardápio nacional o estrogonofe e o frango à kiev. 6#8 ARTE DE PÉ NO CHÃO Prodigiosos, no samba e na bola 175- CARTOLA (1908-1980) Com ele, todos aprenderam que o mundo é um moinho e as rosas não falam. Mas, sobretudo, ele ensinou o que é o Rio — o samba, a Mangueira, o Carnaval, o botequim, a Mangueira, a boemia, as paixões, a Mangueira. Sem ele, o Rio não seria o Rio. 176- TIA CIATA (1854-1924) Foi nos fundos da casa de Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, que o samba começou a crescer e aparecer. Sua roda de samba na Praça Onze, a primeira da cidade, era frequentada pelos papas do ritmo. Nas palavras de Mário de Andrade: "Feiticeira como não havia outra, mãe de santo famanada e cantadeira ao violão". 177- DONGA (1890-1974) Era 1916 e uma composição coletiva, Pelo Telefone, ganhou forma no terreiro de Tia Ciata e se tornou o primeiro samba jamais gravado. Donga, o cantor, se apropriou sozinho da autoria, o que lhe rendeu inimizades eternas. 178- PIXINGUINHA (1897-1973) Seu amor ao Rio era tanto que seu coração batia feliz quando via a cidade e seus olhos ficavam sorrindo. 179- FRANCISCO ALVES (1898-1952) Mais portentosa voz do rádio, intérprete maior do samba-canção, entre os músicos sua fama era de sovina e inveterado filador de cigarros. Para ele, Noel Rosa compôs Mas Como... Outra Vez?. 180- HEITOR DOS PRAZERES (1898-1966) Seu Pierrô Apaixonado, de 1936, ainda é ouvido em todo baile de Carnaval. Na velhice, este portelense abraçou a pintura e tornou-se um artista renomado. 181- PAULO DA PORTELA (1901-1949) A escola foi fundada na sua casa. Sempre bem-vestido, só deixava entrar quem estivesse arrumado. É dele o primeiro samba-enredo, que deu o título à Portela em 1939. 182- ARY BARROSO (1903-1964) Aquarela do Brasil é seu maior samba-exaltação, mas foi outra canção ufanista, Rio de Janeiro, que ganhou (e não levou) uma indicação ao Oscar em 1944. 183- ANDRÉ FILHO (1906-1974) Compôs Cidade Maravilhosa, hino da cidade. Ganhou pouca fama e nenhum dinheiro: os direitos autorais foram repartidos entre vários autores — menos ele. 184- JOÃO DE BARRO (1907-2006) Fertilíssimo autor de mais de 500 músicas, assina o, provavelmente, mais longevo conjunto de marchinhas carnavalescas. 185- MÁRIO REIS (1907-1981) Foi sambista pouco ortodoxo: era rico, bonitão e cantava com jeito macio e solto — daí ser visto como um precursor da bossa nova. 186- ALMIRANTE (1908-1980) Cantor, pesquisador, muito antes de Silvio Santos inventou (no rádio) o programa de auditório com prêmios em dinheiro. 187- NOEL ROSA (1910-1937) Morreu de tuberculose aos 26 anos, sem um tostão. Em oito anos de atividade, compôs mais de 300 obras-primas. Se tivesse escrito uma única frase, "quem acha vive se perdendo", do lindo samba Feitio de Oração, já teria lugar assegurado entre os grandes. 188- NELSON CAVAQUINHO (1911-1986) "Tire o seu sorriso do caminho / Que eu quero passar com a minha dor." A voz rouca, que só fez sucesso depois dos 60 anos, com o clássico A Flor e o Espinho, é a marca de um Rio que já passou em nossa vida. 189- JAMELÃO (1913-2008) Os desfiles de Carnaval sem a voz do mais famoso puxador de samba-enredo, da Mangueira, pareceriam atravessar a avenida em silêncio. Ele cantou o Carnaval por quase cinco décadas. No último desfile, tinha 93 anos. 190- MILTINHO (1928-2014) Com timbre anasalado, gravou 100 discos e inúmeros sucessos, entre eles a marchinha dos 400 anos da cidade, o Rancho do Rio: "Foi Estácio de Sá quem fundou / E São Sebastião abençoou / Rio é quatrocentão / Mas é um broto no meu coração". 191- JOÃO NOGUEIRA (1941-2000) No seu Clube do Samba, de 1979, o gênero se reabilitou. Valorizou a velha guarda e fez murchar a onda de composições melosas que predominava então. 192- LAMARTINE BABO (1904-1963) Em 1949 compôs hinos para os onze times do Campeonato Carioca — seis em um dia só. "Uma vez Flamengo, sempre Flamengo"; "Sou tricolor de coração"; "Botafogo, Botafogo, campeão desde 1910"; "Vamos todos cantar de coração / A Cruz de Malta é o meu pendão". Torcia para o América, clube para o qual escreveu o mais bonito dos hinos. 193- MÁRIO FILHO (1908-1966) Irmão de Nelson Rodrigues, dá nome ao Maracanã. Foi dono de O Mundo Esportivo, o primeiro jornal do gênero no país. Perto do Carnaval de 1932, sem jogos para noticiar, patrocinou o primeiro desfile de escolas de samba. Inaugurava "o maior espetáculo da Terra". 194- DOMINGOS DA GUIA (1912-2000) Zagueiro elegante e habilidoso, no tempo em que a posição era sinônimo de truculência, o Divino Mestre foi ídolo absoluto do futebol carioca pré-Maracanã. Pai de Ademir da Guia. 195- LEÔNIDAS DA SILVA (1913-2004) A primeira vez que, deitado no ar, chutou para trás e fez um gol de bicicleta foi em 1932, pelo Bonsucesso. 196- HELENO DE FREITAS (1920-1959) Rico, boêmio, temperamental, galã, consumidor de drogas e bebidas — e um dos maiores jogadores de seu tempo. Morreu aos 39 anos, internado em um hospital para doentes mentais. 197- BARBOSA (1921-2000) Quando aquela bola do uruguaio Ghiggia entrou, o goleiro negro foi condenado à morte em vida. Tinha 29 anos em 1950. Diria, depois: "Apenas três pessoas calaram o Maracanã: Frank Sinatra, o papa João Paulo II e eu". 198- ZIZINHO (1921-2002) Primeiro no Flamengo, depois no Bangu, brilhou no Maracanã. De Nelson Rodrigues: "Não há bola no mundo que seja indiferente a Zizinho". 199- NILTON SANTOS (1925-2013) Não há muito mais a dizer de um jogador cuja alcunha, no Botafogo e na seleção, era A Enciclopédia. 200- DIDI (1928-2001) O primeiro gol no Maracanã foi marcado por ele, jogando em uma seleção juvenil. Inventou a folha-seca, o inesperado chute que faz a bola cair abruptamente a caminho das traves. 201- GARRINCHA (1933-1983) A perna direita era 6 centímetros mais curta. O rápido drible punha no chão os "Joões", como ele chamava os defensores adversários. O camisa 7 fazia rir. 6#9 IMPÉRIO DA SELVA O Rio virou Rio à sombra da corte 202- DOM JOÃO VI (1767-1826) O capítulo mais obscuro e globalmente desconhecido das guerras napoleônicas foi o fato fundador do Brasil. Apanhado na rabeira das reviravoltas geoestratégicas na Europa, o então príncipe regente largou de Portugal e atravessou a Baía de Guanabara em março de 1808 com tesouros inestimáveis: a biblioteca real, o arquivo do Estado e o poder transformador da corte portuguesa. Num dia, o Rio era uma cidade suja e acanhada em um continente longínquo. No outro, continuava o mesmo, mas era a sede do império português. 203- DONA MARIA I (1734-1816) Ter sido casada com o tio, por motivos dinásticos, e assumir o trono de um país em tempos sombrios era bem ruim. A primeira rainha de Portugal já sofria de problemas mentais graves quando chegou à cidade desconhecida. Só saía do Convento do Carmo guiada por suas damas. Daí a expressão "Maria vai com as outras". 204- RODRIGO DE SOUSA COMINHO (1755-1812) O anglófilo conde de Linhares dominava os ouvidos de dom João. Rejeitando as aberturas da França napoleônica, vieram ambos parar no Brasil. 205- CARLOTA JOAQUINA (1775-1830) Pousar em solo carioca os pés duplamente bourbônicos já carregando o título de Megera de Queluz dá uma ideia do temperamento dessa princesa espanhola, que mordeu as orelhas do marido na noite de núpcias, conspirou contra ele e continuou a atormentá-lo na vinda — e na volta — ao Brasil. 206- FERNANDO JOSÉ DE ALMEIDA (século XIX) Construiu e dirigiu o teatro favorito da corte, o São João, atual João Caetano, hoje com a peça Chacrinha, o Musical. 207- ELIAS ANTÔNIO LOPES (século XIX) A paisagem diminuiu, mas permanece o encanto da Quinta da Boa Vista, residência real presenteada por este bem-sucedido traficante de escravos. Hoje, é o Museu Nacional. 208- DOM PEDRO I (1798-1834) O fundador do Brasil independente, proclamado imperador aos 23 anos, afundou a própria reputação com a incompetência política e o tratamento brutal às esposas — ao contrário do que era dado às amantes, por quem se derretia. Ejetado de volta a Portugal, notabilizou-se pela guerra ao próprio irmão e pela restauração do absolutismo. 209- CONDE HOGENDORP (1761-1822) Bom burguês holandês, aderiu à causa de Napoleão Bonaparte, a quem acompanhou na derrota. Acabou exilado em Nova Sião, dando conselhos liberais e inúteis a Pedro I. 210- JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADA E SILVA (1763-1838) A cabeça política por trás da independência e da construção do Estado brasileiro, foi pago por Pedro I com a moeda habitual dos poderosos: ingratidão. 211- CONDE DE GESTAS (1768-1837) O francês da luxuriante Floresta da Tijuca recebia os imperadores Pedro e Leopoldina com exóticos morangos com chantili. 212- FRANCISCO GOMES DA SILVA, O CHALAÇA (1791-1852) Amigo de boemia e secretário de gabinete de Pedro I, não escreveu as picarescas memórias com seu nome. Mas poderia ter escrito. 213- MARQUESA DE SANTOS (1797-1867) A sedução e certos segredinhos de alcova faziam o "amante fiel, constante, desvelado, agradecido e verdadeiro" comer na mão desta paulista, a quem o Demonão, também conhecido como Pedro I, chamava de Titília. E de outras coisas. 214- BERNARDO PEREIRA DE VASCONCELLOS (1795-1850) "Estou neste lugar para defender os interesses gerais e não para fazer a corte a ninguém", disse o político conservador, liberal em política e economia, ao assumir como deputado. Incrivelmente, sobreviveu e foi regente entre os dois Pedros. 215- VISCONDE DE PONTE FERREIRA (1795-1874) Amigo e médico de Pedro I, o "doutor Canudo" trouxe para o Brasil o primeiro estetoscópio. 216- IMPERATRIZ MARIA LEOPOLDINA (1797-1826) Uma irmã dela se casou com Napoleão e um irmão se tornou imperador da Áustria, mas a esta Habsburgo perdida na selva sobrou um mau partido dinástico e péssimo marido, que não respeitava sequer uma arquiduquesa da mais importante casa real da Europa. Morreu com menos de 30 anos, sem ver o filho tornar-se Pedro II. 217- DONA AMÉLIA (1812-1873) Só uma filha da aristocracia europeia menor receberia a tarefa de se tornar a segunda esposa do imperador selvagem e violento, a quem acompanhou no retorno a Portugal. Viúva aos 21 anos, passou o resto da vida no Palácio das Janelas Verdes, chorando a perda da única filha, Maria Amélia. 218- MARIA II (1819-1853) O pai foi à guerra com o irmão para colocar no trono de Portugal a louríssima carioca Maria da Glória, que reinou por dezenove anos como Maria. 219- DOM PEDRO II (1825-1891) Quanto pior ficava o Brasil republicano, mais parecia melhor o reinado de 58 anos do tolerante, inteligente, bem informado e só algumas vezes descompassado Pedro II, que fez por merecer o apodo de Magnânimo e se apagou no exílio sem queixas nem mágoas. Magnanimamente. 220- DIOGO FEIJÓ (1784-1843) Padre, paulista, pessimista e liberal, foi regente num período conturbado e perigoso para a unidade nacional, que precipitou a declaração de maioridade do adolescente Pedro II. 221/222- MARQUÊS DE PARANÁ (1801-1856) Criador do magnificamente chamado Partido Regressista, depois Partido da Ordem, garantiu a governabilidade na era Pedro II. Morreu cedo, deixando viúva MARIA HENRIQUETA NETO (morta em 1887). Ela herdou um quinhão de terras cuja parte mais alta é até hoje conhecida como Morro da Viúva. 223- DUQUE DE CAXIAS (1803-1880) Outro raro merecedor do título de Pai da Pátria, atravessou os dois reinados combatendo rebeliões internas e batalhas externas que definiram a formação do Brasil. Pôs em fuga, na imensamente custosa Guerra do Paraguai, o prototirano latino-americano Solano López. Tornou-se o único brasileiro a ter recebido o título de duque. 224- ALMIRANTE TAMANDARÉ (1807-1897) Repetiu na Marinha o que Caxias fez no Exército: organizou e profissionalizou os quadros e ajudou a vencer o Paraguai. 225- EUSÉBIO DE QUEIROZ (1812-1868) Como ministro do Supremo Tribunal da Justiça, entendeu o peso da pressão da Inglaterra e decretou extinto o tráfico negreiro. A lei, que não pegou efetivamente, leva o seu nome. 226- CONDE DE GOBINEAU (1816-1882) Um dos precursores das teorias de pureza racial, o embaixador da França na corte de Pedro II tinha péssima opinião sobre o Brasil mestiço e ótimas relações com o tolerante imperador. 227- CONDESSA DE BARRAL (1816-1891) Portuguesa educada na França, já falava seis idiomas quando chegou ao Brasil para ser preceptora das filhas de Pedro II. Sua cultura e influência impressionaram o abolicionista José do Patrocínio: "Ela está acima dos partidos, do governo e do próprio imperador". Ou do lado; teve um longo e sólido romance com ele. 228- IMPERATRIZ TERESA CRISTINA (1822-1889) Princesa das Duas Sicílias, trouxe como dote a capacidade de cantar trechos de ópera e de fielmente suportar o marido como imperatriz consorte. Morreu assim que a família imperial chegou ao exílio em Portugal. 229- VISCONDE DE OURO PRETO (1837-1912) Teve uma participação bizarra e enviesada na proclamação da República. Em princípio, Deodoro da Fonseca queria apenas pedir sua detestada e ministerial cabeça ao imperador. No meio do caminho, a tropa começou a gritar "Viva a República". Vai daí que caiu o regime. 230- CONDE D'EU (1842-1922) Orleans, da família real francesa, por parte de pai e Saxe-Coburgo por parte de mãe, tinha impecáveis credenciais aristocráticas e nenhum poder quando se casou com a jovem princesa Isabel, que o amava incondicionalmente, ao contrário de todos os outros brasileiros, que abominavam o príncipe consorte. 231- VISCONDE DE TAUNAY (1843-1899) Produziu um dos mais vívidos relatos sobre a Guerra do Paraguai e manteve uma pouco conhecida correspondência com o amigo Pedro II. Este, recém-exilado, pedia: "Fale-me de Petrópolis". 232- DOM OBÁ (1845-1890) Garboso e imponente, filho de escravos e neto de um chefe guerreiro, por causa dessa conexão intitulava-se rei iorubá. Raro negro na fila do beija-mão de Pedro II, foi perseguido na era republicana. 233- PRINCESA ISABEL (1846-1921) Nunca saberemos como seria o Brasil governado por uma rainha gentil, amável e bem-intencionada, embora ela tenha se revelado pouco capacitada no período como regente. Deixou o nome escrito em ouro, para sempre, na Lei Áurea. 234- BARONESA DE LORETO (1849-1931) Melhor amiga da princesa Isabel, testemunhou e registrou em diário o momento mais amargo do Império: a viagem da família imperial para o exílio em Portugal. 6#10 O RIO NA REPÚBLICA Os círculos de poder que marcaram a cidade 235- DEODORO DA FONSECA (1827-1892) O palco foi o Campo de Santana, hoje um parque dentro da Praça da República. Este herói de guerra, fiel soldado do Império, foi convencido por republicanos a sair de sua casa ali perto e confrontar o primeiro-ministro, tido como inimigo do Exército. No calor da discussão, à sua revelia, proclamou-se a República. Fazer o quê? Deodoro, com um febrão, assumiu o papel de líder, confraternizou-se com os soldados e foi para casa repousar. Dias depois, virou o primeiro presidente do Brasil. 236- QUINTINO BOCAIUVA (1836-1912) Ao lado de Benjamin Constant e de Deodoro da Fonseca, foi o único civil visto com as tropas na manhã de 15 de novembro, quando a República foi proclamada. Foi também talvez um dos poucos republicanos genuínos e, quem sabe por essa razão, muito cedo se indispôs com os líderes depois da vitória. 237- FLORIANO PEIXOTO (1839-1894) Manobras o fizeram vice do inimigo político Deodoro. Com a renúncia deste, assumiu o poder, debelou a Revolta da Armada, massacrou a oposição e consolidou a República. Ironia: o Marechal de Ferro acabou seus dias num sítio no subúrbio de Deodoro. 238- INOCÊNCIO SERZEDELO CORRÊA (1858-1932) Já tínhamos uma República. Faltavam cidadãos. Serzedelo, criador do Tribunal de Contas da União (TCU), foi o primeiro brasileiro a praticar integralmente a cidadania e a lembrar aos donos do poder que um presidente da República não é um rei sem coroa. Ele não atendeu a um pedido de Floriano para arranjar emprego para um parente do antecessor e recusou as contas do Executivo. Floriano ameaçou-o de prisão. Ele manteve a decisão e se demitiu. 239/240- CAMPOS SALLES (1841-1913) O ministro da Fazenda do presidente Campos Salles, JOAQUIM MURTINHO (1848-1911), tentou pôr ordem na casa, estabelecendo cortes severos de gastos para conter a hiperinflação. Saneou a economia, mas o mandato acabou antes que Salles pudesse colher os frutos do ajuste. Ficou só com a parte amarga, deixando de aproveitar um momento de glória do Rio, que vivia sua belle époque como coração cultural e do poder. 241- RODRIGUES ALVES (1848-1919) Aproximava-se a festa dos quinze anos da República. O Rio de Janeiro passava por uma epidemia crônica, na qual a febre amarela se intercalava com a peste bubônica. Este paulista tratou as doenças e curou a população, com campanhas violentas e impopulares de vacinação e limpeza. Deu ainda as condições para seu embelezamento nos moldes de Paris. 242- WENCESLAU BRAZ (1868-1966) Para um presidente que atravessou a I Guerra inteira, uma crise política paralisante no Rio de Janeiro e a devastadora epidemia de gripe espanhola, até que ele fez muito: deixou um país em ordem, com a economia estável. 243- PINHEIRO MACHADO (1851-1915) Conhecido como "fazedor de presidentes", o senador gaúcho tinha enorme poder no Congresso. Atiçava uma disputa política no Rio que ameaçava descambar em guerra civil. Morreu assassinado, com uma punhalada nas costas, próximo à rua que hoje tem seu nome. 244- GETÚLIO VARGAS (1882-1954) Nenhum presidente governou mais tempo do Rio — dezenove anos em dois mandatos em que o Brasil andou para a frente e para trás, ao sabor de suas manobras políticas. No fim, engolfado por uma crise, deu um tiro à queima-roupa no coração em seu quarto, hoje ponto de visitação no Palácio do Catete. 245- JÚLIO CAETANO HORTA BARBOSA (1881-1965) O general que organizou a bem-sucedida campanha O Petróleo É Nosso na era getulista arregimentou militares, estudantes e intelectuais para a causa do monopólio estatal do óleo negro. Resultou na criação da Petrobras, em 1953. 246- MACIEL FILHO (1904-1975) Foi o redator da carta-testamento de Getúlio Vargas. Tudo bem planejado: três cópias foram preparadas. 247- LOURIVAL FONTES (1899-1997) No primeiro governo Vargas, cuidou com mão de ferro do marketing getulista como diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda, um órgão de censura que vendia o presidente como o "pai dos pobres". 248- GOIS MONTEIRO (1889-1956) Chefe do Estado-Maior do Exército durante o Estado Novo, derrubou Getúlio, mas não concretizou o grande sonho: sentar-se à cadeira da Presidência. 249- GREGÓRIO FORTUNATO (1900-1962) O chefe da segurança de Vargas assumiu a responsabilidade pelo atentado contra o jornalista Carlos Lacerda em agosto de 1954. O incidente, nunca completamente elucidado, agravou a crise política no Palácio do Catete e culminou com o suicídio do presidente. 250- PLÍNIO SALGADO (1895-1975) Fundador da Ação Integralista Brasileira, que bebia do fascismo italiano até nas marchas com camisas-verdes e saudações com o braço em riste, liderou duas tentativas de invadir o Palácio do Catete para derrubar Vargas. 251- EURICO GASPAR DUTRA (1883-1974) Foi dele um ato de enorme repercussão no Rio: a proibição dos jogos de azar. Adeus, Cassino da Urca. Adeus, vedetes e noitadas fabulosas. 252- JUSCELINO KUBITSCHEK (1902-1976) A ideia de mudar a capital para o centro do país era velha, mas foi JK quem a pôs em prática. Assim, esvaziou a importância do Rio. O criador de Brasília, no entanto, nunca fixou endereço lá. Preferia seu apartamento em Ipanema, num prédio de Niemeyer. 253- JOÃO GOULART (1918-1976) A capital era em Brasília, mas Jango sentia-se mais perto de tudo no Palácio do Catete, no Rio. Dali telefonou, com o golpe já na rua, para o ministro da Aeronáutica, Anísio Botelho, que queria jogar napalm na tropa do general Olympio Mourão, parada entre Minas e Rio: "Queimar gente? De jeito nenhum". 254- COSTA E SILVA (1902-1969) O Ato Institucional nº 5, o AI-5, que fechou o Congresso e deu início aos anos de chumbo, foi baixado pelo presidente no Palácio Laranjeiras, hoje residência do governador. Costa e Silva tomou posse em 1967, mas não se mudou para Brasília. Foi o último presidente a, de fato, governar a partir do Rio. 255- HÉLIO BELTRÃO (1916-1997) Soa improvável, mas o Brasil já teve um ministro da desburocratização, cargo ocupado cuidadosamente por Beltrão de 1979 a 1983. 256- ERNESTO GEISEL (1908-1996) Concluiu a obra que JK começou: uniu a cidade-estado à Guanabara, trazendo novos problemas e drenando recursos da ex-capital. A contrapartida: a fusão rendeu ao novo estado os royalties do petróleo. 6#11 COM E SEM CAUSA O que importa é contestar 257- JOAQUIM JOSÉ DA SILVA XAVIER (1746-1792) Três atos fundamentais na trajetória de Tiradentes tiveram o Rio como palco. Na cidade, aproximou-se do movimento contra a dominação portuguesa e viu nascer a semente da revolta, apaixonou-se e, depois da Inconfidência Mineira, voltou para morrer, enforcado e esquartejado na praça que leva seu nome. 258- MARQUÊS DE AGUIAR (1752-1817) Vice-rei na Bahia, Fernando José de Portugal e Castro, conde e depois marquês, expôs desmandos, corrupção, inépcia e má gestão da burocracia colonial. Ligou-se ao Rio quando foi ministro depois da transferência das cortes. Morreu pobre e alcunhado de "o homem mais honesto do império". 259- BENJAMIM CONSTANT (1833-1891) Herói na Guerra do Paraguai, era pacifista. Militar de carreira, propôs o fim das Forças Armadas. Trouxe o positivismo para o Rio e propagou seu lema: "O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim". A ele se deve o "ordem e progresso" da bandeira brasileira. 260- JOSÉ LOPES DA SILVA TROVÃO (1848-1925) Abandonou a medicina para se dedicar a enterrar o império. Escreveu o historiador Sérgio Buarque de Holanda: "Ele arrebatava os ouvintes no seu trovejar contra a monarquia". 261- MADAME CHRYSANTHÈME (1870-1948) Sob esse pseudônimo, Cecília Rebelo de Vasconcelos propagandeou o feminismo em linguagem ousada para seu tempo. "Virgindade imoral e anti-higiênica" era o título de um de seus artigos, dos mais de 1500 que publicou no jornal O Paiz. 262- IRINEU MACHADO (1872-1942) Senador pelo Rio, foi apelidado na imprensa de "o terrível oposicionista" e "formidável demolidor". Fez carreira no populismo, ainda incipiente na época. Mordia e assoprava: sustentava-se em vários empregos públicos. 263- JOÃO CÂNDIDO (1880-1969) Apontando a artilharia de quatro navios de guerra para a cidade, o Almirante Negro, como era chamado, liderou a Revolta da Chibata contra os castigos físicos a que os marinheiros eram submetidos. O governo cedeu, mas, assim que os revoltosos depuseram as armas, foram punidos. 264- JOSÉ OITICICA (1882-1957) Nunca houve um anarquista como ele — pelo menos não no Rio de Janeiro. Ao longo de todo o ano de 1918, esteve por trás de uma onda de greves e reivindicações que resultaram em lei marcial e prisões, inclusive a sua. Foi escritor, professor e filólogo, mas nunca abandonou a causa. 265- GRACILIANO RAMOS (1892-1953) A mudança definitiva do autor de Vidas Secas de Alagoas para o Rio se deu sob a mira da polícia: veio preso, de navio, suspeito de participar de um levante comunista. Durante quase um ano, passou por quatro presídios, inclusive o de Ilha Grande, sem acusação formal. Dessa experiência resultaram Memórias do Cárcere e a sublime demonstração de superioridade sobre o regime policial de Getúlio Vargas: "É-me indiferente estar preso ou solto". 266- SOBRAL PINTO (1893-1991) Por que Defendo os Comunistas. O livro, escrito em 1979 por esse católico conservador, justifica o apelido de Senhor Justiça e embute a essência do direito e da democracia. Sobral explicou que defendia os comunistas nos tribunais justamente porque no regime comunista os acusados não têm direito de defesa. 267- BARBOSA LIMA SOBRINHO (1897-2000) Presidente da Associação Brasileira de Imprensa, esteve à frente da campanha pela anistia e foi o primeiro signatário do pedido de impeachment de Fernando Collor. 268- LUÍS CARLOS PRESTES (1898-1990) Presidiu o Partido Comunista Brasileiro com fidelidade canina às ordens que recebia de Moscou. 269- SIQUEIRA CAMPOS (1898-1930) Foi um dos poucos sobreviventes da Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, grupo de militares insurgentes que tentou tomar o Forte de Copacabana, na Avenida Atlântica. Eterno rebelde, juntou-se a todos os movimentos que contestaram a elite política. 270- MADAME SATÃ (1900-1976) Lenda na Lapa boêmia, onde fazia bicos como segurança — de purpurina e sombra nos olhos, João Francisco dos Santos, o Madame Satã, era homossexual e transformista temido. Tinha três homicídios e 29 processos nas costas. 271- NISE DA SILVEIRA (1905-1999) Lutou contra tudo e todos para humanizar o tratamento psiquiátrico no Brasil, substituindo medicamentos e internação por oficinas de arte, que via como ponte entre o inconsciente dos doentes e o mundo. Inventou métodos de terapia reconhecidos internacionalmente. 272- DOM HELDER CÂMARA (1909-1999) Nelson Rodrigues dizia do "Bispo Vermelho": "Dom Hélder só olha para o céu para saber se leva o guarda-chuva". Era religioso, mas tinha a política correndo nas veias. Começou sua militância no integralismo e, como um pêndulo que não conhece a posição de equilíbrio, migrou para o esquerdismo radical. 273- CARLOS LACERDA (1914-1977) Fez o caminho oposto de dom Hélder Câmara, mas igualmente sem passar pelo centro: foi do comunismo para a direita. Extraordinário orador. Os adversários o chamavam de O Corvo. No golpe de 1964, fez do seu palácio de governador uma trincheira de onde, pelo rádio, desafiava os inimigos, principalmente Aragão, o Almirante Vermelho, a invadir seu reduto. Era expoente da UDN, o partido que mais se opôs a Getúlio Vargas. 274- ZUZU ANGEL (1921-1976) Fazia roupas coloridas e rendadas, mas não ficou conhecida como estilista, e sim como mãe de Stuart Angel Jones (1946- 1971), eternamente inconformada com a prisão e o desaparecimento do filho durante a ditadura militar. Morreu em 1976 em um acidente automobilístico dentro do túnel que hoje leva seu nome. 275- LEONEL BRIZOLA (1922-2004) Era chamado de "o engenheiro", mas sua especialidade como político era a demolição. Foi o deputado federal mais votado antes da ditadura e governador três vezes, a primeira no Rio Grande do Sul e as outras no Rio de Janeiro. A seu desapego pelas instituições democráticas e ao populismo irresponsável, atribui-se a escalada do crime violento nas favelas cariocas, que ele proibia a polícia de vigiar. 276- RUBENS PAIVA (1929-1971) Em janeiro de 1971 cumpria o mandato de deputado federal quando foi preso em casa por militares do Exército, em Ipanema, para nunca mais ser visto. Foi morto sob tortura e seu corpo ocultado, em circunstâncias que só foram esclarecidas no ano passado. 277- PAULO FRANCIS (1930-1997) O mundo para Francis tinha dois centros, Nova York, onde era correspondente da Rede Globo e morreu, e o Rio de Janeiro, onde foi enterrado, no cemitério São João Batista. A um leitor de Sorocaba que lhe mandou um e-mail dizendo ser errada sua pronúncia da palavra tomate ("tomatchi"), respondeu: "Eu falo igual a meus amigos do Leblon e estou me lixando para como vocês aí pronunciam as palavras". 278- HERBERT DE SOUZA (1935-1997) "Meu Brasil / Que sonha com a volta / Do irmão do Henfil / Com tanta gente que partiu.” Betinho é o "irmão do Henfil" da música de João Bosco e Aldir Blanc. Motivou a classe média em uma campanha contra a fome. Ele e Henfll eram hemofílicos e ambos morreram vítimas da aids, contraída em transfusões de sangue. 279- HÉLIO OITICICA (1937-1980) Neto de José, foi o único verdadeiro vanguardista da arte brasileira. Com suas instalações e parangolés (capas e estandartes coloridos), foi performático muito antes que isso tivesse nome. 280- HENFIL (1944-1988) Passou uma temporada em Nova York e, sem falar uma palavra de inglês, comunicou-se melhor com as pessoas do que quem domina perfeitamente o idioma. A comunicação sem barreiras culturais era seu dom. Suas criações, a Graúna, o Bode Orelana e os Fradinhos, nasceram clássicas, atemporais e vão sobreviver muitas décadas depois que a ditadura militar tiver sido esquecida. 281- EDSON LUÍS (1950-1968) Estudante do segundo grau, 18 anos, caiu morto por um tiro da polícia em uma passeata. Seu corpo, carregado como um mártir pelos líderes estudantis, incendiou os protestos contra o regime. 282- CAZUZA (1958-1990) Morreu de aids aos 32 anos, sem temer o olhar do público mesmo quando os efeitos terminais da doença já eram evidentes. O corpo esquálido, a pele escurecida, os olhos fundos, a bandana escondendo o pouco que sobrou dos cabelos, mas a voz ainda forte cantando versos carregados por música hipnótica. É a imagem de Cazuza que fica. ABOLICIONISTAS 283- PERDIGÃO MALHIEROS (1824-1881) Com a abolição da escravatura, abriu-se no Brasil a discussão jurídica a respeito da precedência do direito de propriedade sobre a lei que libertou os escravos. Malheiros demonstrou que a "ilegitimidade moral" desfazia qualquer laço de propriedade de um ser humano sobre outro. 284- JOÃO ALFREDO CORREA DE OLIVEIRA (1835-1919) A princesa Isabel sancionou, mas sem a atuação parlamentar de Correa de Oliveira a Lei Áurea corria o risco de ser derrotada em plenário. 285- JOAQUIM NABUCO (1849-1910) "A grande questão para a democracia brasileira não é a monarquia, é a escravidão." Essa frase do pernambucano Nabuco ecoou no Parlamento no Rio de Janeiro, no qual cumpria mandato de deputado. Ela o define como estadista. 286- JOSÉ DO PATROCÍNIO (1853-1905) Com sua verve simples mas certeira, tornou-se o grande nome do abolicionismo brasileiro ao inflamar o movimento e levá-lo às ruas. Seus ganhos com os jornais que editava, como O Abolicionista, lhe possibilitaram um feito: foi o primeiro a comprar um carro no Rio. 287- JOÃO CLAPP (século XIX) Membro de um clube de libertos em Niterói, dirigiu uma escola noturna para negros, uma das primeiras instituições organizadas desse gênero, e ajudou a formar a Confederação Abolicionista. Secretamente, ela ajudava cativos em fuga. 288- HORÁCIO JOSÉ DA SILVA (século XIX) O estivador e capoeirista conhecido como Prata Preta foi o grande líder popular da Revolta da Vacina, em 1904. Sob seu comando, 2000 pessoas se entrincheiraram no Centro do Rio contra a vacinação obrigatória. Acabou preso. 6#12 EM PROSA, VERSO E DESENHO Eles registraram o Rio como ele foi 289- CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (1902-1987) "Você já viu? / Você já reparou? / Andou mais devagar para curtir / essa inefável fonte de prazer: / a forma organizada / rigorosa / esculpintura da natureza em festa, puro agrado / da Terra para os homens e mulheres." O poeta fala sobre sua cidade real, o Rio. As outras viraram retratos na parede, pedras no caminho... 290- FERNÃO CARDIM (1549-1625) "Cousa formosíssima e a mais aprazível que há em todo o Brasil." Assim o padre Cardim abriu a série infinita de louvação ao Rio. 291- MARQUÊS DO LAVRADIO (século XVII) Em cartas, o marquês deu vazão a sua má vontade para com o Rio. Assim o descrevia: "A preguiça destes habitantes é sumamente extraordinária, e os está reduzindo à decadência e à miséria". 292- ANTÔNIO JOSÉ DA SILVA, O JUDEU (1705-1739) Nascido no Rio, foi o maior dramaturgo de língua portuguesa do século XVIII. Ele e toda a família foram para a fogueira da Inquisição em Portugal. 293- LUIZ GONÇALVES DOS SANTOS (1767-1844) Depois de narrar em detalhes a chegada de dom João VI, fez fama e carreira como cronista, sendo que seus plágios da Gazeta do Rio de Janeiro nunca o derrubaram. 294- LUÍS DOS SANTOS MARROCOS (1781-1838) Esse bibliotecário veio obrigado ao Rio de Janeiro, lugar que detestou de cara, para acompanhar o acervo real. Aos poucos, foi descobrindo as mulatas e os encantos da cidade. A mudança de humor e seus motivos libidinosos estão registrados em suas cartas. 295- MARTINS PENA (1815-1848) Nas suas comédias teatrais, colocava em cena questões do cotidiano — rivalidades políticas, abusos de autoridade, irregularidades no comércio — na boca de personagens comuns. 296- JOAQUIM MANUEL DE MACEDO (1820-1882) Em A Moreninha revelou a vida dos jovens do Rio no século XIX, os saraus, passeios e modismos. 297- GONÇALVES DIAS (1823-1864) Deu origem à literatura em que os índios são bons selvagens e integrantes da formação histórica do Brasil. 298- JOSÉ DE ALENCAR (1829-1877) Da infância e juventude no Ceará, foi para a Europa e voltou direto para o Rio carregado do romantismo patriótico que marca sua ficção idealizada. 299- MANUEL ANTÔNIO DE ALMEIDA (1830-1861) No único livro que escreveu, Memórias de um Sargento de Milícias, trata dos dramas de pessoas pobres e da classe média. Foi um choque para uma literatura em que apenas a aristocracia merecia ter suas histórias contadas. 300- MACHADO DE ASSIS (1839-1908) O maior escritor brasileiro. Seus romances psicológicos pertencem às mais altas correntes do pensamento e, assim, são universais. Mas, como bônus, Machado nos revela muito do Rio de seu tempo. 301- ALUÍSIO AZEVEDO (1857-1913) Sensualidade rasgada, homossexualismo, baixezas — em O Cortiço, Azevedo expõe desejos e mazelas da sociedade nunca antes colocadas na literatura com pretensões à seriedade. 302- ARTUR AZEVEDO (1855-1908) Irmão de Aluísio, foi menos sisudo e, com diálogos leves, divertidos e sutilmente críticos, criou o teatro de revista. 303- RAUL POMPEIA (1863-1895) Positivista, abolicionista, defensor da república, imprimiu suas convicções à literatura. Sua obra mais conhecida, O Ateneu, transporta para o ambiente de uma escola as fissuras da rígida aristocracia do Rio no fim do século XIX. 304- EUCLIDES DA CUNHA (1866-1909) Seu magistral retrato da Guerra de Canudos fez dele uma celebridade instantânea no Rio, onde a obra foi publicada. Mas o que eletrizou mesmo a sociedade foi sua desventura amorosa ao tentar matar e ser morto pelo amante da mulher, que ainda matou seu filho quando este procurou vingar o pai. 305- LUÍS EDMUNDO (1878-1961) Nas 680 páginas de O Rio de Janeiro do Meu Tempo, um compêndio do começo do século XX, as cariocas são avessas ao sol e tão pálidas que pareciam "evadidas de um cemitério". 306- JOÃO DO RIO (1881-1921) Um vívido e saboroso retrato da cidade na virada para o século XX está nos relatos deste cronista que desfrutava tudo que revelava. 307- LIMA BARRETO (1881-1922) Seus livros denunciam o que ninguém queria ouvir: que as obras de urbanização no Centro e na Zona Sul criariam guetos de pobreza nos morros e nos subúrbios. 308- OLIVEIRA VIANA (1883-1951) A favor do historiador, o mérito de adicionar o fator sociológico no estudo da formação brasileira. Contra, a alardeada convicção da superioridade da raça branca. 309- J. CARLOS (1884-1950) Maior caricaturista dos anos 1920, de seu traço saltaram quase com vida real a Melindrosa, o Almofadinha e tantos outros tipos da cidade. 310- MANUEL BANDEIRA (1886-1968) Ao pernambucano Bandeira é atribuída a invenção da meia porção, saída para pagar menos nos botecos do Rio. Estava sempre duro. Tuberculoso, precisava com frequência refugiar-se nos sanatórios de cidades montanhosas. O coração de sua poesia universal era municipal, era carioca, era do beco em que morava, de onde teve de sair contra sua vontade: "Beco que cantei num dístico / Cheio de elipses mentais / Beco das minhas tristezas / Das minhas perplexidades / (Mas também dos meus amores, / Dos meus beijos, dos meus sonhos) / Adeus para nunca mais!" 311- BARÃO DE ITARARÉ (1895-1971) "De onde menos se espera, daí é que não sai nada". Já ouviu essa pérola de sabedoria? Então você conhece o gaúcho Apparicio Torelly, que, intérprete da nostalgia monarquista do Rio, tão presente nos luxos das escolas de samba, se deu um título de nobreza. Virou barão e alertou: "O fígado faz muito mal à bebida". 312- PEDRO CALMON (1902-1985) Autor caudaloso, sua História do Brasil tem sete volumes e 940 ilustrações. Nas atitudes era mais sucinto. Reitor da atual UFRJ, nos anos 1960 barrou a PM: "Entrar na universidade, só através de vestibular". 313- PEDRO NAVA (1903-1984) Mineiro adotado pelo Rio, na análise de Carlos Drummond de Andrade, "possuía essa capacidade meio demoníaca, meio angélica, de transformar em palavras o mundo feito de acontecimentos". Formou-se em medicina, mas adoeceu, sem cura, de literatura. Da medicina ficou com a capacidade científica de observar e relacionar emoções e eventos. 314- FERNANDO SABINO (1923-2004) 315- PAULO MENDES CAMPOS (1922-1991) 316- OTTO LARA RESENDE (1922-1992) 317- HÉLIO PELEGRINO (124-1988) Com prosa limpa e vigorosa, Fernando Sabino produziu reportagens internacionais, escreveu sobre o cotidiano e falou das paixões humanas, inclusive das próprias e da dos amigos: O Encontro Marcado inspira-se na amizade da vida inteira com os conterrâneos mineiros e também escritores Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos. Foi a partir do Rio que os autointitulados "quatro cavaleiros do apocalipse" ganharam projeção nacional. 318- ENEIDA (1904-1971) Dispensando os quatro sobrenomes, Eneida — na juventude militante comunista, presa onze vezes — escreveu a primeira obra importante sobre o Carnaval do Rio. Com conhecimento de causa: gostava da folia e criou o Baile do Pierrot, em Copacabana. 319- ANTÔNIO NÁSSARA (1910-1996) Um dos mais originais criadores da caricatura brasileira, é dele a autoria da hipnótica marchinha carnavalesca Alá-lá-ô... "Viemos do Egito/ E muitas vezes / Nós tivemos que rezar / Allah! Allah! Allah, meu bom Allah! / Mande água pra ioiô / Mande água pra iaiá / Allah, meu bom Allah!" 320- NELSON RODRIGUES (1912-1980) "Muitas vezes é a falta de caráter que decide uma partida. Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos...", dizia Nelson, o repórter policial da alma humana, descrente de suas qualidades, sob as quais descobria patologias: "Convém não facilitar com os bons, convém não provocar os puros. Há no ser humano, e ainda nos melhores, uma série de ferocidades adormecidas". Cronista esportivo, desdenhava a neutralidade: era Fluminense apaixonado e sábio: "Com sorte você atravessa o mundo, sem sorte você não atravessa a rua." 321- RUBEM BRAGA (1913-1990) De suas crônicas sobre o Rio na segunda metade do século passado, descortina-se o Brasil que passava por grandes mudanças na política e no comportamento. 322- ANTÔNIO CALLADO (1917-1997) Seu romance Quarup vai do Rio ao Xingu e volta. Uma viagem de dez anos com personagens em vivas discussões políticas, ideológicas e sociais tão em voga no período entre a morte de Getúlio Vargas e o fim do governo João Goulart. 323- ANTONIO MARIA (1921-1964) Foi o cronista do Rio boêmio nos anos 50. Seu talento transbordou para a composição de canções melancólicas em que "a vida passa, e eu sem ninguém / E quem me abraça não me quer bem". 324- MILLÔR FERNANDES (1923-2012) Enfim, um escritor sem estilo. "Viva o Brasil / Onde o ano inteiro / É primeiro de abril." Pra que estilo? 324- SÉRGIO PORTO (1923-1968) Foi Stanislaw Ponte Preta o cronista do Febeapá — Festival de Besteira que Assola o País, e em pleno regime militar: "O cavalheiro nervoso entrou no hospital dizendo 'eu sou coronel, eu sou coronel', o médico tirou o estetoscópio do ouvido e perguntou: 'Fora esse, qual o outro mal do qual o senhor se queixa?'." 326- IBRAHIM SUED (1924-1995) Panteras, locomotivas e deslumbradas povoaram as colunas sociais, em que cavalos não desciam escadas, mas muita gente endinheirada subia. Entre agrados e favores, havia até notícias. E muitas. Ademã e ele ia em frente. 327- PÉRICLES (1924-1961) O Amigo da Onça, um anti-herói falso e debochado, foi publicado por quase vinte anos na revista O Cruzeiro. 328- CARLINHOS DE OLIVEIRA (1934-1986) Outro cronista implacável com a "patetocracia", o regime político do Brasil. 329- JOÃO UBALDO RIBEIRO (1941-2014) Em Viva o Povo Brasileiro, celebrou o homem comum de pensamentos incomuns. 330- TARSO DE CASTRO (1941-1991) Jornalista e conquistador, mais conhecido hoje por causa do filho, João Vicente de Castro, do Porta dos Fundos, que já namorou Cleo Pires, Daniella Cicarelli e, agora, Sabrina Sato. A lista do pai teve Candice Bergen. Precisa mais? Quando ela escreveu avisando que ia se casar com o cineasta francês Louis Malle, Tarso telegrafou de volta: "Dos Malle, o menor”. 6#13 RETRATOS DO TEMPO O cotidiano contado em pincéis 331- NICOLAS-ANTOINE TAUNAY (1755-1830) Na Missão Artística Francesa que dom João VI mandou buscar, o maior nome era o desse paisagista. 332- JEAN-BAPTISTE DEBRET (1768-1848) Mas foi Debret, pintor das pessoas e cenas do cotidiano, que o imperador nomeou retratista oficial da corte. Taunay produziu quinze belos quadros a óleo e, cinco anos depois, voltou para casa. Debret ficou quinze anos e, de regresso à França, publicou em três tomos sua Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. 333- JOAQUIM CÂNDIDO GUILLOBEL (1787-1859) Engenheiro militar de formação, foi o principal cronista visual do Rio antes de Debret. Antecipou o cartão-postal: retratava cenas e pessoas em pequenas aquarelas que vendia. 334- THOMAS ENDER (1793-1875) O pintor austríaco chegou ao país na comitiva da princesa Leopoldina, a primeira mulher de Pedro I, com a missão de retratar o Brasil para o pai dela, o imperador Francisco I da Áustria. Em quase um ano, produziu 800 desenhos e aquarelas. 335- JOHANN MORITZ RUGENDAS (1802-1858) O pintor alemão fez gravuras realistas de negros acorrentados e açoitados que chocaram os europeus. 336- AUGUSTO STAHL (1828-1877) Tinha estúdio na Rua do Ouvidor, no Rio, mas correu o Brasil. No Nordeste, documentou as dificuldades na construção da segunda estrada de ferro brasileira, entre o Recife e o Rio São Francisco. 337- VICTOR MEIRELLES (1831-1903) Predileto de Pedro II, fez o óleo A Primeira Missa no Brasil. 338- PEDRO AMÉRICO (1843-1905) Seus quadros corretos e detalhados de batalhas da Guerra do Paraguai ainda encantam. 339- MARC FERREZ (1843-1923) Fez as famosas vistas fotográficas em 360 graus da cidade. Suas fotos dos índios brasileiros eram concorridas na Europa. 340- AUGUSTO MALTA (1864-1957) O primeiro fotógrafo oficial da prefeitura do Rio de Janeiro registrou festas, regatas e enchentes com a visão despretensiosa de fotojornalista. 341- OSWALDO GOELDI (1895-1961) O maior gravurista brasileiro retratou um Rio de tons escuros e cenas soturnas, reflexo de sua alma atormentada, bem distante do clichê alegre e luminoso a que a maioria recorre. 6#14 ALÉM DA FRONTEIRA Eles colocaram o Rio e o Brasil no mapa 342- NICOLAS LOUIS DE LACAILLE (1713-1762) O abade francês, célebre astrônomo, que catalogou mais de 10.000 estrelas, passou um tempo no Rio de Janeiro em 1730. Ali tirou um pouco os olhos do céu e os fixou nas prestadoras de serviços sexuais que, registrou no seu diário, "concentravam-se mais no Arco do Teles, no Terreiro do Paço". 343- MARIA GRAHAM (1785-1842) A escritora inglesa, preceptora das filhas de dom Pedro I, deixou um diário que é fonte de pesquisa histórica permanente sobre o cotidiano no Rio. Escreveu da Inglaterra ao embaixador Charles Stuart: "(...) que lugar tão miserável é o Rio de Janeiro e quão pouco o senhor tem para diverti-lo e tanto mais para aborrecê-lo (...). Estou finalmente agora num país civilizado e positivamente tentando me comportar como cristã". Achou os negros, tanto os livres quanto os escravos, "muito alegres no trabalho". A indignação com o sistema de escravidão só a assaltou na visita ao mercado de negros na Rua do Valongo: "De ambos os lados estão armazéns de escravos novos, chamados aqui peças, e aqui as desgraçadas criaturas ficam sujeitas a todas as misérias da vida de um negro novo, escassa dieta, exame brutal e açoite". 344- CHARLES DARWIN (1809-1882) Na famosa viagem do HMS Beagle, foi dar no Rio em 1832. Sobre a paisagem, o pai da teoria da evolução anotou: "Sublime, pitoresca, cores intensas, florestas parecidas, porém mais gloriosas que as das gravuras". Ficou estarrecido com a pobreza da dieta de carne-seca, rapadura e frutas cristalizadas importadas da Europa, quando em uma caminhada pela Serra do Mar viu dezenas de animais para caça e árvores frutíferas. 345- ÉDOUARD MANET (1832-1883) Aos 17 anos, passou dois meses no Rio. Fez alguns desenhos e trocou cartas com os pais. Nelas, o futuro pintor impressionista revela um traço comum com tantos visitantes europeus: o encanto com a natureza e o desprezo pelas limitações da civilização. Achou limpíssima a água na Ilha de Paquetá e o Paço Imperial, "um casebre". 346- SARAH BERNHARDT (1844-1923) Pôs o Rio no circuito das turnês internacionais que os artistas faziam para ganhar a vida na baixa temporada europeia. Gostou do tratamento de rainha e voltou quatro vezes. Na última, em cena, quebrou a perna e nunca se recuperou. Dez anos depois, precisou amputá-la. 347- BARÃO DO RIO BRANCO (1845-1912) O Mercedes-Benz Protos com que se locomovia no Rio está guardado como relíquia no Museu Histórico Nacional. Foi patrono da diplomacia brasileira, o "dilatador do Brasil", por suas bem-sucedidas negociações de fronteiras no norte do país. É nome de avenida no Rio, mas famoso mesmo por ter seu rosto estampado na cédula de 1000 cruzeiros que o espírito carioca transformou em unidade monetária, o barão, logo desmoralizado pela inflação galopante. 348- ALBERT EINSTEIN (1879-1955) Em viagem pela América Latina, o cientista esteve brevemente no Rio em 1925. Destaque para seu terno de linho leve e seus sapatos arejados, que contrastavam com os dos anfitriões, vestidos para o inverno europeu. Em seus diários fez apenas um registro neutro, burocrático sobre a visita. Sorte nossa. Sobre a estada em Buenos Aires escreveu, segundo seu biógrafo, Albrecht Fölsing: "As questões científicas eram tão estúpidas que era difícil permanecer sério". 349/350 STEFAN ZWEIG (1881-1942) O austríaco autor de Brasil, País do Futuro, expressão que virou quase uma condenação, veio para o Rio fugindo do nazismo. Instalou-se em Petrópolis com a mulher, LOTTE (1908-1942). Suicidaram-se, juntos, meses depois, deixando uma comovente nota em que pedem desculpas aos amigos feitos no Rio de Janeiro, a quem agradecem pela "acolhida fraternal". 351- OSWALDO ARANHA (1894-1960) O diplomata gaúcho é nome de avenida e de uma escola municipal no Rio de Janeiro. Um filé com alho típico de alguns restaurantes da cidade também leva seu nome. Ministro das Relações Exteriores durante a II Guerra, foi decisivo na reversão da política getulista de pró-alemã para o lado dos aliados. Em 1947, como chefe da delegação brasileira na recém-criada ONU, presidiu a Assembleia-Geral que dividiu a Palestina e criou Israel. 352- BIDU SAYÃO (1902-1999) "Bela menina, voz de cristal / deslumbrava multidões / o seu talento, dom divinal / é diva internacional." Em um tempo em que ditador africano não comprava espaço no Carnaval, a escola de samba Beija-Flor, em 1995, homenageou Bidu Sayão, a cantora lírica carioca que logo ficou maior do que a cidade e o Brasil. Foi, por quinze anos, estrela no Metropolitan Opera House, em Nova York. 353- CHARLES BURKE ELBRICK (1908-1983) Embaixador americano no Brasil sequestrado em 1969 no Rio por grupos terroristas, teve a liberdade trocada pela soltura de quinze presos políticos. Falava português, espanhol, alemão e francês. Nas 78 horas em que ficou no cativeiro, segundo relato dos dois lados, foi conversador e simpático. 354- A CARMEN MIRANDA (1909-1955) Trabalhou em uma confecção de chapéus no Centro do Rio, La Femme Chic, onde pegou gosto pelos turbantes. Estrela em Hollywood, irritava-se quando diziam que projetava uma imagem americanizada do Brasil. 355- RONALD BIGGS (1929-2013) Bandido procurado no mundo todo depois de assaltar um trem pagador na Inglaterra, achou abrigo no Rio. Protegido pela burocracia e por um providencial filho brasileiro, virou atração turística e reforçou o enredo de cinema: na hora do aperto, os malfeitores fogem para as praias cariocas. 6#15 O CHAMADO DAS IDEIAS Pensar, pesquisar, preservar. Não seria bom imitar também? 356- JANUÁRIO DA CUNHA BARBOSA (1780-1846) Boa parte do que se pode saber sobre o Brasil se deve a este padre que gostava de história e poesia, a quem Pedro II confiou documentos e objetos que dariam origem ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Só é preciso procurar e superar as camadas de negligência. 357- VISCONDE DO URUGUAI (1807-1866) Conservador e teórico da centralização do poder, seus Estudos Práticos sobre a Administração das Provindas no Brasil tornaram-se o manual da gestão pública no Império. Os resultados não foram exatamente brilhantes, mas ajudaram no milagre da unificação nacional. 358- AUGUSTO TEIXEIRA DE FREITAS (1816-1883) Causídico do Império soa como algo aborrecido, mas até hoje os nobres colegas discutem como ele consolidou as bases do direito civil no Brasil. 359- FRANCISCO ADOLFO DE VARNHAGEN (1816-1878) Nunca antes a história do Brasil tinha sido contada por brasileiros. A obra de Varnhagen, pró-Portugal, compreende o período entre a chegada da corte e a independência. 360- LADISLAU NETTO (1838-1894) Diretor do Museu Nacional, o naturalista foi grande divulgador da teoria da evolução de Darwin e também do mau uso que se faz dela até hoje, como justificativa moral de conceitos de superioridade racial. 361- DOMINGOS JOSÉ FREIRE (1843-1899) O mundo das bactérias ainda começava a ser desvendado quando ele desenvolveu uma vacina contra a febre amarela. Ganhou o apodo de "Pasteur brasileiro", mas sua vacina teve menos sucesso. 362- RUI BARBOSA (1849-1923) Um baiano numa lista de cariocas ilustres? No caso do homem que se transformou em arquétipo de cabra inteligente, vale por sua atuação maior do que a vida, na cidade que era o centro do poder, como abolicionista, republicano, constitucionalista e cultivador de rosas no jardim de sua casa em Botafogo. O mais próximo que jamais tivemos de um pai da pátria como os fundadores dos Estados Unidos enrascou-se como ministro da Fazenda, provocando a primeira hiperinflacão brasileira. Se até Rui se deu mal... 363- CAPISTRANO DE ABREU (1853-1927) Abreu, ao contrário de Varnhagen, imprime uma visão crítica à sua análise do período colonial. 364- ADOLFO LUTZ (1855-1940) Toda vez que alguém enrola a língua para falar do mosquito Aedes aegypti está se referindo, mesmo sem saber, a este especialista em medicina tropical levado de São Paulo para o Rio por outra eminência, Oswaldo Cruz. Foi ele quem descobriu que a febre amarela é transmitida pelo inseto invencível. 365- HENRIQUE MORIZE (1860-1930) No fim do século XIX, o astrônomo francês fundou a física experimental no Brasil nos laboratórios do que viria a ser a UFRJ. 366- MIGUEL COUTO (1864-1934) Sinônimo de hospital de emergência, um dos pioneiros nos estudos de saúde pública também trilhou a ponte de escritores técnicos que fizeram a travessia para a Academia Brasileira de Letras. 367- VITAL BRAZIL (1865-1950) Inventou o soro antiofídico e montou os dois grandes institutos de pesquisa na área: o Butantã, em São Paulo, e o Vital Brazil, no Rio. 368- EVARISTO DE MORAES (1871-1939) Filho do fundador do Partido Socialista e quase homônimo advogado, formulou as leis trabalhistas da era Vargas, inovadoras à época. Conseguiu a absolvição do amante da mulher de Euclides da Cunha, assassino do escritor. 369- ANTÔNIO EVARISTO DE MORAES FILHO (1933-1997) Mereceu a honra de ser chamado "advogado da liberdade" por defender durante o regime militar, entre outros, os ex-presidentes João Goulart, JK, Jânio Quadros e FHC. 370- OSWALDO CRUZ (1872-1917) O castelo em estilo mourisco que construiu para a família e que virou sede da fundação com seu nome é a marca mais visível do homem que é considerado o criador da saúde pública no Brasil. Involuntariamente, foi o precursor da associação entre vacinação obrigatória e revolta popular, com a campanha que liderou contra a febre amarela. 371- JULIANO MOREIRA (1872-1933) Pioneiro da psiquiatria brasileira e de tratamentos menos desumanos, baniu algemas e camisas de força, que eram padrão, à época, para doentes mentais. 372- CARLOS CHAGAS (1879-1934) Nunca antes um cientista havia descrito o ciclo completo de uma doença infecciosa. Ao conseguir esse feito, associou seu nome para sempre à doença de Chagas, mas também a seu tratamento. 373- EUGÊNIO GUDIN (1886-1986) Ave rara numa terra estranha, lançou a base teórica para o liberalismo econômico e os fundamentos do ensino superior de economia no Brasil. Durou sete meses como ministro da Fazenda cortador de despesas públicas do governo Café Filho. Se nem Gudin conseguiu... 374- JÚLIO PIRES PORTO-CARREIRO (1887-1937) Precursor dos nomes hifenizados e das ideias de Freud no Brasil. Traduziu sete livros do criador da psicanálise, com quem manteve correspondência. Numa delas, o pai da psicanálise fala da vontade de aprender português, que lhe parecia "assustadoramente difícil". 375- FRANCISCO CAMPOS (1891-1968) Conhecido como Chico Ciência pela capacidade de produzir leis, redigiu sozinho a Constituição do Estado Novo e da primeira fase do regime militar. 376- OROZIMBO NONATO (1891-1974) Um assassino só poderá ser condenado quando houver um cadáver e arma. Óbvio, não? Sim. Mas não antes de Orozimbo Nonato, ministro quando o Supremo Tribunal Federal (STF) ficava no Rio de Janeiro, ter feito disso uma verdade processual. 377- PONTES DE MIRANDA (1892-1979) Todos os sessenta volumes do Tratado de Direito Privado que apareciam nas estantes dos escritórios de advocacia eram do autor da jurisprudência até hoje mais citada do país. Frequentou a lendária boate Hippopotamus até morrer, aos 87 anos. 378- LÉLIO GAMA (1892-1981) Um dos melhores centros de pesquisa em sua área no mundo, o Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), no Jardim Botânico, nasceu da parceria deste matemático e astrônomo carioca com Leopoldo Nachbin. 379- GUSTAVO CAPANEMA (1900-1985) Ministro da Educação por uma década, deixou como legado o princípio da administração municipal do ensino fundamental e o primeiro edifício modernista do Rio, de onde despachava. 380- AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO (1905-1990) Autor da primeira lei que condena a discriminação racial no país, de 1951. 381- OTÁVIO GOUVEIA DE BULHÕES (1906-1990) Modernizou o sistema tributário brasileiro — sim, ele era pior — e lançou a ideia de criação do Banco Central. 382- SAN TIAGO DANTAS (1911-1964) Brilhante formulador e articulador de ideias políticas, mesmo quando erradas, lidou fielmente com dois presidentes catastróficos, Jânio Quadros e João Goulart. 383- EVANDRO LINS E SILVA (1912-2002) O "criminalista do século" trovejava perante jurados deslumbrados que abrandavam a pena de homicidas como o playboy Doca Street, que assassinou a namorada por ciúme nos anos 1970. 384- PAULO NIEMEYER SOARES (1914-2004) Neurocirurgião que criou uma técnica para tratar a epilepsia, empregada até hoje, carregava para os menos informados a honra de ser irmão de Oscar. 385- ROBERTO CAMPOS (1917-2001) Em pleno fervor nacionalista, o político e economista liberal defendia propostas como a criação da Petrobras com capital estrangeiro. Para os inimigos, era Bob Fields. Para todos os outros, um homem de extraordinária visão. 386- JOSÉ LEITE LOPES (1918-2006) Trabalhou firme e decisivamente para a criação do CNPq e do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. 387- CELSO FURTADO (1920-2004) A corrente desenvolvimentista nunca teve uma inteligência tão superior no comando. Nem terá. Ocupava uma diretoria do recém-criado BNDE (hoje com o S) quando lançou sua grande obra, Formação Econômica do Brasil. Dirigia sem nenhuma ilusão a Sudene quando sobreveio o golpe de 1964. 388- LEOPOLDO NACHBIN (1922-1993) Seu trabalho genial na área de topologia resultou em um livro usado até hoje por estudantes das melhores faculdades estrangeiras. 389- CÉSAR LATTES (1924-2005) O mais prestigiado banco de currículos da academia nacional leva o nome deste físico que, aos 22 anos, foi o mais jovem fundador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no Rio. Seu nome encabeça a lista de autores do histórico artigo publicado na revista científica Nature que descreve o método de identificação fotográfica de uma subpartícula atômica fugidia, o méson pi. Por essa descoberta, o inglês Cecil Powell ganhou o Prêmio Nobel de Física em 1950. Lattes foi injustiçado? A resposta não é simples. Powell era o chefe do grupo do qual Lattes participava. O fato de o nome de Lattes aparecer acima do de Powell no artigo da Nature nada significa. É prática comum que o nome do orientador do grupo apareça na assinatura dos artigos científicos abaixo do de seus colaboradores. 390- JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA (1925-2006) Criou a Lei das Sociedades Anônimas e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), dois pilares para o estabelecimento de companhias abertas no Brasil. Morou nos últimos cinquenta anos de sua vida em uma suíte do Copacabana Palace. 391- MÁRIO HENRIQUE SIMONSEN (1935-1997) Não houve cargo público importante que ele não tenha ocupado ou assessorado como economista — ministro da Fazenda e do Planejamento — em governos militares nem grandes questões econômicas que não o tenham absorvido. Especialista em inflação, fervoroso defensor do equilíbrio fiscal, era a voz econômica mais influente em seu tempo. 392- JOSÉ GUILHERME MERCHIOR (1941-1991) Numa cidade em que era mais fácil encontrar um lugar vazio no Posto 9 do que alguém que se definisse como direitista, sua mente iluminada dividiu em dois lados o campo político: ele e o resto. 393- RICARDO MAÑÉ (1948-1995) Foi no Rio da década de 80 que este matemático uruguaio resolveu um dos problemas mais complicados da teoria do caos, encontrando um padrão em um fenômeno que parecia aleatório. 6#16 SEXO E A CIDADE Elas insinuaram-se no desejo coletivo de todo o Brasil — e até fora dele 394- EUFRÁSIA TEIXEIRA LEITE (1850-1930) Não existiam prédios e não havia aterro na Enseada de Botafogo quando, do alto de seus 12 anos, ela entrou no coração de Joaquim Nabuco, o futuro gigante do abolicionismo, e para sempre permaneceu lá: sem casamento, por desejo da própria Eufrásia, mas com paixão carnal e intelectual, brigas e uma coleção de cartas, que, segundo a lenda, ela levou para o túmulo. Com um corpo feito para o pecado — e livremente usado para isso — e uma cabeça boa para os negócios, foi morar em Paris, onde aumentou a fortuna familiar como investidora profissional e ficou conhecida como a dama dos diamantes negros. 395- LUZ DEL FUEGO (1917-1967) Uma ilha de 8000 metros quadrados na Baia de Guanabara foi o único lugar do Rio de Janeiro onde se realizou sistematicamente a fantasia equivocada de tantos estrangeiros sobre os hábitos cariocas: todo mundo ficava nu. Enrolada em Cornélio e Castorina, suas jibóias de estimação e exibição, a nudista militante, nascida Dora Vivacqua e capixaba, botava fogo na imaginação nacional e ganhava a vida. Nos bailes de Carnaval, os garçons usavam gravata-borboleta. E mais nada. 396- VIRGÍNIA LANE (1920-2014) A viúva, o brotinho, a madame, o velho na porta da Colombo e, acima de todos, a vedete do teatro de rebolado sassaricavam no Rio de Janeiro dos anos 40, no auge do Cassino da Urca. Com as pernas roliças que eram padrão de beleza na época, ela ganhou fama por se promover como amante de Getúlio Vargas — e um pouco de infâmia também, por causa de versões cada vez mais delirantes. Foi enterrada em Piraí maquiada, de maiô de pérolas e cercada de plumas. 397- NORMA BENGELL (1935-2013) O pioneiro, trêmulo e dialeticamente arrastado nu frontal de Os Cafajestes, filmado em Cabo Frio, a propeliu para o panteão das mulheres proibidas aos 27 anos. Como nem a criação na Alemanha natal de seu pai tinha dado um jeito em sua vocação para o caos, ela foi insegura, confusa e infeliz com todos os homens de sua vida, inclusive o único com quem se casou, o galã italiano Grabriele Tinti. Também não se deu bem em todas as outras atividades. 398- LEILA DINIZ (1945-1972) Nem no Rio havia existido antes uma mulher como Leila. E todas as que vieram depois tomaram emprestado alguma coisa dela. "Transo de manhã, de tarde e de noite", dizia a linda, livre e aloucada atriz. Numa célebre entrevista ao Pasquim, em 1969, que resultou no exemplar mais vendido do jornal, pontificou: "Você pode amar muito uma pessoa e ir para a cama com outra. Já aconteceu comigo". 6#17 QUESTÃO DE INTERPRETAÇÃO Personagens do palco e da tela NO CELULOIDE 399- HUMBERTO MAURO (1897-1983) Mineiro de Volta Grande, já fazia cinema na vizinha Cataguases quando sentiu que estiolaria se não fosse para o Rio. Foi. Criou a Phebo Sul América, a primeira produtora de cinema do Brasil. Em A Voz do Carnaval, de 1933, simplesmente lançou Carmen Miranda. 400- ADEMAR GONZAGA (1901-1978) Na pioneira Cinédia, um estúdio aos moldes de Hollywood na Zona Norte, o cinema nacional nascia pelas mãos desse produtor. Ele também criou o primeiro cineclube do país e uma revista de prestigio, a Cinearte. 401- OSCARITO (1906-1970) Ator das caretas e das piadas sonsas. Fez dupla com Grande Othelo. Ambos levaram o jeito carioca de ser para onde houvesse um cinema no Brasil. 402- MÁRIO PEIXOTO (1908-1992) Seu único filme, Limite, produzido no Rio dos anos 30, é um clássico sempre revisto e estudado. 403- JOSÉ CARLOS BURLE (1910-1983) Ex-médico e misto de diretor, produtor e ator, fundou a Atlântida Cinematográfica, que lançou a dupla Oscarito e Grande Othelo e firmou a imagem do Rio como capital cultural do país. 404- LUIZ SEVERIANO RIBEIRO JR. (1912-1993) Comprou a Atlântida de Burle, focou nas chanchadas e dominou todo o ciclo: fazer, distribuir e exibir os filmes. A empresa que ele tornou gigante é dona da cadeia Kinoplex. 405- GRANDE OTHELO (1917-1993) Negro, feio, 1,50 metro de altura, foi o mais improvável dos grandes atores brasileiros. Fez comédia, drama e crítica social em peças e filmes. Ciceroneou Orson Welles na visita do americano ao Rio e filmou com o alemão Werner Herzog (Fitzcarraldo), experiência que assim resumiu: "Horrível". 406- WATSON MACEDO (1918-1981) O diretor por excelência das chanchadas. Quando a fórmula se esgotou, até tentou filmes mais sérios, mas não deu certo. Sua especialidade era fazer rir. 407- ANSELMO DUARTE (1920-2009) Superou a parceria com Eliana e deixou para trás as chanchadas. Ganhou papéis sérios. Fez O Pagador de Promessas, premiado em Cannes. 408- ELIANA (1926-1990) Fazia par romântico com o mocinho. Cantava, dançava e encantava seu público, que a tratava com delicadeza incomum para as atrizes da época — foi uma espécie de precursora da namoradinha do Brasil. 409- JECE VALADÃO (1930-2006) Ator que se vendia como "o maior cafajeste do cinema nacional", fez mais de cinquenta filmes, sempre como vilão. "A única vez em que fui mocinho me arrependi amargamente", dizia. 410- JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE (1932-1988) Teve a ousadia de filmar Macunaíma, de Mário de Andrade. A crítica gostou. Morreu de câncer de pulmão aos 56 anos. 411- EDUARDO COUTINHO (1933-2014) Documentarista dos seres invisíveis ao radar da sociedade do espetáculo. Morreu tragicamente esfaqueado pelo filho com problemas mentais. 412- GLAUBER ROCHA (1939-1981) Com Terra em Transe, esse baiano carioca ganhou o prêmio da crítica do Festival de Cannes, na França. Sabia contar uma história linear com imagens nem tanto. Genial é o adjetivo que quase se segue a seu nome. NA RIBALTA 413- LEE SCHUBERT (1871-1953) Ele já era um produtor de teatro consagrado em Nova York, em 1939, quando viu Carmen Miranda tocar no Cassino da Urca e a levou para a Broadway. A carreira internacional da Pequena Notável deslanchou. 414- ODUVALDO VIANNA (1892-1972) Autor e diretor que criou a mais importante companhia teatral do Rio de Janeiro nos anos 20. Foi pioneiro em dividir o palco em ações simultâneas, usando a iluminação para efeito dramático. 415- PROCÓPIO FERREIRA (1898-1979) Abraçou a arte comercial e a comédia, sua especialidade, no tempo em que só o drama era considerado nobre. Interpretou mais de 500 personagens em 461 peças. É sinônimo de teatro. 416- JOÃO CAETANO (1908-1963) Primeiro a montar uma companhia preocupada em formar atores, é o pai do teatro profissional no Brasil. No palco que leva seu nome foi assinada a Constituição de 1824 e se apresentam até hoje todos os grandes artistas nacionais. 417- DULCINA DE MORAES (1908-1996) Uma das maiores estrelas dos palcos de todos os tempos, criou sua própria companhia e instituiu novos padrões. Entre outras coisas, aboliu os cenários pintados em favor dos construídos e implantou a folga semanal para os atores. 418- ZIEMBINSKI (1908-1978) Polonês que desembarcou no Rio aos 33 anos sem falar português, mudou métodos e costumes no teatro brasileiro. Ensaiava oito horas por dia durante oito meses antes de declarar-se pronto para representar. 419- MARIA CLARA MACHADO (1921-2001) Autora de teatro infantil de qualidade. Criou o Teatro Tablado, que foi escola de grandes atores. 6#18 EM NOME DO ESPANTO Depois deles, nada jamais foi como antes 420- COSME VELHO PEREIRA (século XVII) Grande desmatador, dá nome a um dos bairros mais arborizados do Rio. Arrancou a vegetação nativa da Floresta da Tijuca para cultivar cana-de-açúcar e laranja. Reconstituída, a região é um dos cartões-postais do Rio. 421- RODOLFO BERNARDELLI (1852-1931) Ninguém passeia pelo Rio sem cruzar com uma estátua de Bernardelli, mexicano que se mudou para o Brasil aos 14 anos. José de Alencar no Flamengo? É dele. Duque de Caxias no Largo do Machado? É dele. General Osório na Praça XV? Tudo dele. 422- ERNESTO NAZARETH (1863-1934) Tremendo pianista, criou o chorinho, que ele chamava de "tango brasileiro". Deixou mais de 200 peças. Uma delas intitula-se Carioca. O ano é 1913; o estilo, "tango brasileiro". 423- OLAVO BILAC (1865-1918) Parnasiano de belíssimos decassílabos, fez hino, cantou a bandeira, a nação, a Via Láctea, mas nunca a cidade em que nasceu e morreu. Aquela praça, no Centro, leva o seu nome. 424- ALCEU AMOROSO LIMA (1893-1983) Assinava suas crônicas como Tristão de Athayde. Católico fervoroso, insurgiu-se contra a ditadura militar quando ela, na visão dele, violou preceitos cristãos. 425- DI CAVALCANTI (1897-1976) Pintava malandros, favelas, Carnaval. Fazia tapetes, joias, caricaturas. Mas tinha um talento imbatível para pintar "mulatas capitosas". A musa: Marina Montini, de Vila Isabel, uma estonteante mulata de interminável 1,80 de altura. 426- ISMAEL NERY (1900-1934) Foi o primeiro pintor surrealista do país, mas o que os cariocas não esquecem é que se casou com Adalgisa Nery, poeta e linda, que, dizem os linguarudos, capturou o coração de Getúlio Vargas. 427- OTTO MARIA CARPEAUX (1900-1978) Nascido Otto Karpfen na Áustria, foi um dos melhores presentes que o nazismo deu ao Rio. Chegou aqui aos 40 anos. Não sabia nada de português e era capaz de chamar a cidade que escolheu para viver de Fluss von Januar. Quatro anos depois, já lançava um livro em português perfeito. Era feio e gago, mas gago em doze idiomas. 428- PORTINARI (1903-1962) O pintor paulista radicou-se no Rio e adorava o mar. Mas só para olhar. Não entrava na água nem gostava de andar de barco. 429- EVA KLABIN (1903-1991) Além de tudo — do patrimônio artístico, das reuniões com David Rockefeller —, foi uma das primeiras moradoras da Lagoa Rodrigo de Freitas. Comprou uma casa ali em 1952. 430- PAULO RÓNAI (1907-1992) Esse húngaro refinado e brilhante fugiu do nazismo e chegou aqui certo de que não sabia nada de português. Passara antes por Lisboa, onde não entendeu patavina do que diziam os portugueses comedores de vogais. Ao chegar ao Rio e ouvir a fala mansa dos cariocas, entendeu tudo. E como. Coordenou a tradução para o português de A Comédia Humana, obra-prima de Honoré de Balzac, talvez a melhor tradução já feita em qualquer idioma. 431- AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA (1910-1989) O Aurélio ensina que "carioca" vem do tupi e significa "casa de branco". 432- IBERÊ CAMARGO (1914-1994) O grande pintor gaúcho viveu a glória e a tragédia no Rio. Ali chegou à fama. Ali matou a tiros, numa breve discussão, um engenheiro que nunca vira antes. Foi absolvido por legítima defesa. 433- ORLANDO SILVA (1915-1978) "Lábios que beijei / Mãos que eu afaguei / Numa noite de luar assim / O mar na solidão bramia / E o vento a soluçar pedia / Que fosses sincera para mim." Sua morte, a morte do "cantor das multidões", parou o Rio de Janeiro como nunca antes e nunca depois. 434- ALOYSIO DE OLIVEIRA (1914-1995) Sua gravadora lançou toda a turma da bossa nova. 435- CLARICE LISPECTOR (1920-1977) Era linda, falava com "r" carregado e escrevia divinamente, mas era uma mulher depressiva. Consolava-a a beleza do Leme, bairro que adorava. "Minha terra é aqui." 436- MARLENE (1922-2014) Era paulista. Contrariando os pais, mudou-se para o Rio na juventude e tornou-se mais carioca que os cariocas: estrela do Cassino da Urca, estrela do Copacabana Palace, estrela da Rádio Nacional e — simplesmente — a primeira cantora a puxar um samba-enredo na avenida. 437- DIAS GOMES (1922-1999) O autor de O Bem Amado e Roque Santeiro também tratou do Rio nas suas novelas. Em Bandeira 2, mostra o submundo dos bicheiros cariocas. Em O Espigão, o arranha-céu do enredo seria erguido no bairro de Botafogo. 438- FLÁVIO CAVALCANTI (1923-1986) "Um instante, maestro. Nossos comerciais, por favor." 439- EMILINHA BORBA (1923-2005) Nasceu na Mangueira. Conquistou o coração do Brasil. Morreu em Copacabana. 440- MARIA AUGUSTA NIELSEN (1923-2009) Nos anos 60, ensinou uma geração inteira de garotas cariocas a ter boas maneiras. O concurso Miss Brasil era sua praia. Comandava tudo com mão de ferro e bengala na mão, com a qual marcava o ritmo do desfile no Maracanãzinho. 441- HERON DOMINGUES (1924-1974) Gaúcho, chegou ao Rio aos 20 anos para tornar-se a voz do Repórter Esso. Acabou no Irajá, onde há uma rua que leva o seu nome. 442- JANETE CLAIR (1925-1983) Era mineira, mas a Selva de Pedra era o Rio de Janeiro. Suas novelas na Globo saíam do Rio e hipnotizavam o Brasil, com audiência, às vezes, de 100% dos televisores. 443- CASTOR DE ANDRADE (1926-1997) O bicheiro mandou e desmandou no Carnaval do Rio durante três décadas. 444- CLÓVIS BORNAY (1916-2005) Era o Rio em transe. O que não era na Sapucaí era com ele, no Baile de Gala do Municipal. Filho de mãe espanhola e pai suíço, virou sinônimo de extravagância e luxo. 445- SÉRGIO RODRIGUES (1927-2014) Alguém definiu o genial designer e criador da poltrona Mole, que é mesmo toda mole, assim: "Ele fez coexistir o Brasil brasileiro com o Brasil de Ipanema". 446- CHICO ANYSIO (1931-2012) Em Maranguape, no Ceará, nasceu Francisco Anysio de Oliveira Paula Filho. No Rio, nasceu Chico Anysio, 200 personagens. 447- ERNANI PIRES FERREIRA (1934-2012) De todos os lugares do planeta, só no Jockey Club da Gávea alguém conseguiu proferir 322 palavras em um minuto. Era o melhor locutor de corridas de cavalos do mundo. Em 1938, entrou para o Guinness. 448- ARDUÍNO COLASSANTI (1936-2014) Astro de Como Era Gostoso Meu Francês, era italiano. Acariocou-se, apresentou o surfe aos cariocas e teve um caso com Leila Diniz. 449- TIM MAIA (1942-1998) Rio Mon Amour. Azul da Cor do Mar. 450- RAUL SEIXAS (1945-1989) Ídolo da geração hippie nos anos 70, suas músicas viraram hino da contracultura. Baiano, fez sucesso no Rio depois de "ter passado fome por dois anos aqui na Cidade Maravilhosa". CONSULTORIA • Antonio Carlos Fernandes, doutor em geologia e pesquisador ao Museu Nacional • Armando Guedes Coelho, consultor em petróleo e energia • Beatriz Kushnir, diretora-geral do Arquivo Geral da Cidade • Carlos Engemann, doutor em história da UFRJ • Christiane Fleury, especialista em moda • Cláudia Heynemann, supervisora de pesquisa do Arquivo Nacional • Carlos Eduardo Barata, museólogo especialista em iconografia carioca • Fernanda Bicalho, doutora em história da USP • Isaac Roitman, doutor em microbiologia e membro da Academia Brasileira de Ciências • Isabel Lustosa, historiadora e doutora em ciência política • Lúcia Maria Velloso, doutora em história e coordenadora do arquivo da Casa de Rui Barbosa • Manolo Florentino, doutor em história da UFRJ • Marcia Amantino, doutora em história da UFRJ e da Universidade Salgado de Oliveira • Marco Antonio Villa, historiador e cientista político • Marcus Vinícius Nogueira Soares, doutor em literatura brasileira • Marieta Ferreira, doutora em história da FGV • Mary Del Priore, historiadora especializada em Império • Maurício Vicente Ferreira Júnior, historiador e diretor do Museu Imperial • Mônica Xexéo, diretora do Museu Nacional de Belas Artes • Paulo Alcântara Gomes, doutor em engenharia da UFRJ • Paulo Rezzutti, membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP) e especialista em I Reinado • Pedro Corrêa do Lago, editor e marchand • Regina Wanderley, coordenadora de pesquisa do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro • Rosa Maria Araújo, doutora em história e presidente do MIS do Rio _____________________________________________ 7# ARTES E ESPETÁCULOS 4.3.15 7#1 ARTE – CORPO PRESENTE 7#2 CINEMA – VALE TUDO 7#3 SHOWBIZ – MADRE SUPERIORA 7#4 LIVROS – UM BRILHANTE EM ESTADO BRUTO 7#5 VEJA RECOMENDA 7#6 OS LIVROS MAIS VENDIDOS 7#7 ROBERTO POMPEU DE TOLEDO – QUAL MORTE? 7#1 ARTE – CORPO PRESENTE Unia retrospectiva em São Paulo mostra por que as performances e os objetos energéticos da artista sérvia Marina Abramovic despertam um fervor religioso. MARCELO MARTHE Marina Abramovic bate às portas de um centro espírita no interior de Goiás. A artista sérvia quer incluir em seu novo filme cenas com o médium João de Deus. Pioneira da performance, modalidade artística que fez sucesso nos anos 60 e 70, Marina não apenas sobreviveu à fossilização daquela forma radical de pressão do corpo: hoje, é pop star das artes que tem fãs como a cantora Lady Gaga e o rapper Jay Z. Mas tais credenciais não a livraram da burocracia no espirituoso Brasil profundo. "Tive de aguardar por dez dias a permissão dos espíritos", contou a VEJA, em seu inglês temperado com consoantes dos Bálcãs. Após obter um o.k. do Além, participou de cirurgias espirituais com desenvoltura. "Segurei as facas com as quais o médium operava sem anestesia", diz. O episódio ocorreu meses atrás, quando Marina se preparava para o que chama de "meu momento brasileiro". A partir de 11 de março, o Sesc Pompeia, em São Paulo, recebe a maior retrospectiva de sua obra já realizada na América do Sul. Em abril haverá outra pequena mostra na galeria paulistana Luciana Brito. Nos quase três meses que passará no país, ela conduzirá um workshop com artista e encontros com o público. Uma biografia de Marina está ganhando edição nacional. O filme rodado por aqui também será lançado em breve. "Quero investigar os diversos tipos de energia que os seres humanos experimentam. O Brasil é um campo vasto", diz. Lidar com sangue e exercitar a paciência são tarefas de que Marina sempre se desincumbiu. Ela é filha de dois heróis nacionais da extinta Iugoslávia: o pai foi um militar graduado no regime comunista e a mãe era a comissária das artes. Com empurrão materno, obteve até o diploma de "pintora acadêmica". Mas, ainda estudante, nos anos 60, a tímida Marina descobriu que virava uma fera ao explorar um meio então em voga entre artistas alternativos: performances em que submetia seu corpo a extremos (quase sempre nua, e acintosamente linda), para escândalo da careta elite cultural do país do marechal Tito. "Até hoje, os pintores sérvios me odeiam", diz. Em uma de suas primeiras performances, ela espetava furiosamente a ponta de uma faca entre os dedos abertos, até se cortar toda. Em outro trabalho famoso, as pessoas eram convidadas a usar objetos para fazer o que quisessem com seu corpo. A certa altura, um homem quase disparou uma pistola contra o pescoço da artista. A mostra no Sesc trará um vídeo de sua aventura mais arriscada: após atear fogo a uma estrutura com a forma da estrela comunista, Marina desmaiou no centro dela — ela ignorava o fato de que as chamas consomem oxigênio. Como observou o crítico americano Arthur C. Danto, as performances provocadoras das décadas de 60 e 70 não foram apenas um subproduto afetado da cultura hippie. Em seus melhores momentos, artistas como Marina corporificaram — literalmente — expedientes que em outras épocas foram caros à pintura. "A performance resgata o horror das representações barrocas de agonia", escreveu Danto. No caso de Marina, a metáfora religiosa vem a calhar. Ela foi moldada não só pela disciplina comunista, mas pelo misticismo da família — um de seus tios-avós foi patriarca da Igreja Ortodoxa. Desde cedo, o esoterismo e o budismo também tiveram peso notável em seu universo. Daí vem a chave para compreender a evolução de sua obra: ela foi do radical ao transcendental. Deixou de lado as performances violentas e passou a investir em experiências que buscam provocar uma empatia quase religiosa. O que está em sintonia com o espírito dos tempos atuais: suas performances mais recentes espelham o interesse do público por um vago misticismo que abarca desde a simpatia pelo Dalai-Lama até a crença em dietas purificadoras. O evento que a popularizou, apresentado no MoMA nova-iorquino em 2010, é um exemplo dessa afinação com o "estado mental" (para usar um termo caro a Marina) do público. Com o celebratório título de A Artista Está Presente, a performance resumia-se a colocar Marina numa cadeira, fitando por minutos a fio, sem desviar o olhar, os espectadores que se revezavam à sua frente. Quando, de surpresa, o alemão Ulay, seu ex-marido e parceiro performático, apareceu para encará-la, sobreveio a choradeira: Marina foi às lágrimas, e parte do público ao redor também. Seu trabalho costuma despertar esse fervor, e se alimenta dele. "O que busco é mudar o estado de consciência das pessoas em larga escala", afirma. A ferramenta para isso é o famoso método Abramovic. Testado com devoção por discípulos como Lady Gaga, ele consiste em jejuar, ficar sem falar por vários dias e sentar-se em meio à natureza, emitindo sons característicos. "Seguindo o método à risca, a pessoa atinge a clareza mental", diz Marina. Parte do processo se dá com auxílio dos cristais que a artista busca no Brasil. Ao produzir a mostra Terra Comunal, o Sesc comprou 1,5 tonelada da matéria-prima para a construção dos Objetos Transitórios, esculturas que, a acreditar no método, permitem que as pessoas absorvam boas vibrações. Entre várias unidades da instituição, aliás, Marina escolheu o prédio projetado por Lina Bo Bardi por detectar ali uma "fábrica de energia" adequada. Escrita por James Westcott, um ex-assistente, a biografia Quando Marina Abramovic Morrer (Edições Sesc) revela que anos atrás, em suas andanças pelo Brasil, a artista de 68 anos não resistiu à atração magnética de uma especialidade nacional: fez uma cirurgia de aumento dos seios com um pupilo de Ivo Pitanguy. "Eu admito mesmo, dane-se: estava com 40 anos e aquilo me revigorou." O corpo da artista é sagrado. XAMÃ DA ARTE Em conversa com VEJA, Marina Abramovic explica por que seu trabalho hipnotiza as pessoas - e enaltece o poder da mente. A senhora ganhou fama com performances em que se cortava e corria riscos reais. Por que abandonou a violência? Aquilo se tornara fácil demais para mim. Fazer cortes no corpo é moleza. Muito mais difícil é controlar a mente. Tem gente que não entende o sentido de uma performance em que fico sentada numa cadeira por dez horas. Mas é algo torturante. E nada é mais radical do que extrair arte do nada. Num trabalho que apresentei recentemente em Londres, não havia propriamente obras, só paredes em branco e minha presença. As pessoas estavam ali para tomar consciência de si mesmas. Isso, sim, é novo e ousado. A arte pode curar o mundo? Se a arte for só uma commodity lucrativa, ela não mudará nada. Mas, se sair do círculo dos apreciadores e se dirigir à sociedade, há uma chance de que isso ocorra. Sou afortunada porque meu trabalho consegue tocar o coração das pessoas. Naquela mesma mostra em Londres, havia gente de todas as idades e classes sociais. Estavam todos juntos, de olhos fechados, sorvendo o silêncio dentro de si mesmos. Sem temer o contato olhos nos olhos. Não tendo receio de ser tocados. Dou às pessoas ferramentas para que se encontrem. Alguns dizem que a senhora tem poderes telepáticos e pode ver a aura das pessoas. É verdade? Claro. Todo mundo pode fazer isso. Só que fomos aprisionados pelas novas tecnologias e não temos tempo para nos devotar à mente. Mas, se ficarmos bastante tempo sentados aqui, você verá minha aura. Então a senhora pode ler minha mente ou enxergar minha aura agora? Vejo que sua mente está cheia de perguntas. Bem, falando sério: eu precisaria me concentrar muito. Mas os seres humanos têm capacidades que nem imaginam. Em estado de concentração, podemos ver almas e até prever o futuro. Os monges tibetanos podem dominar a telepatia com poucos anos de prática. É simples. 7#2 CINEMA – VALE TUDO Em Kingsman: Serviço Secreto, o espião Colin Firth instrui um rapaz da periferia londrina na arte de vestir ternos, aniquilar supervilões e pôr esnobes no seu devido lugar. ISABELA BOSCOV O que pode ser mais escandaloso do que uma menina de 11 anos perfurando e desmembrando malfeitores? Talvez Colin Firth, de terno e modos impecáveis mas fúria incontrolável, empalando o pastor de uma igreja batista e despachando os fiéis com machadadas, facadas, tiros ou até com as mãos nuas, ao som das guitarras melodiosas de Free Bird ("Agora estou livre como um pássaro", diz a letra), do Lynyrd Skynyrd. Em Kick-Ass, de 2010, o diretor inglês Matthew Vaughn colocou a pequena Chloë Grace Moretz no centro de um espetáculo de ultraviolência humorístico, cartunesco e às vezes trágico — uma decisão tão extrema que aceitá-la (e divertir-se) ou rejeitá-la (e repugnar-se) eram as únicas alternativas. O mesmo se pode dizer de Kingsman: Serviço Secreto (Kingsman: the Secret Service, Inglaterra, 2015), que estreia nesta quinta-feira. Para quem tomar o partido da promotoria, o novo filme de Vaughn será passível de indiciações não só por violência desenfreada como também por insensibilidade social, racial e ideológica. Entrar na brincadeira, porém, é de longe a opção mais sensata e agradável. Colin Firth é Harry Hart, codinome Galahad, membro de um seletíssimo grupo de cavalheiros que há mais de século se organiza nos moldes da Távola Redonda do Rei Arthur para eliminar vilões que constituam ameaça à civilização e punir a falta de boas maneiras em geral, sempre operando a partir de uma alfaiataria na Savile Row londrina. O bilionário de língua presa Richmond Valentine (Samuel L. Jackson) é um alvo natural: atropelando todas as regras da dicção e da educação, ele pretende reverter o aquecimento global com um plano maléfico. Na sequência que introduz o enredo, uma sucessão de homens perigosos — e uma mulher especialmente letal — se matam uns aos outros em um chalé nos Andes argentinos sem nunca derramar uma gota de um copo de uísque que vai passando de mão em mão, enquanto o refém que atraiu toda aquela gente ali (Mark Hamill) assiste a tudo sem entender nada. Sobrevivem, claro, Valentine e sua capanga, Gazelle (a argelina Sofia Boutella), que usa as próteses de lâminas sobre as quais caminha para graciosamente fatiar adversários. Entre estes está Lancelot (Jack Davenport); o Kingsman necessita, então, preencher sua vaga, e cada integrante propõe um candidato. O de Harry é Eggsy (Taron Egerton), filho de um colega caído em combate anos antes. Eggsy, contudo, não é feito do tecido com que se costuma talhar essa elite: é um baderneiro que largou a escola, tem uma mãe promíscua e um padrasto mau-caráter, e fala e se veste como um orgulhoso egresso dos bairros operários. Mas, graças a sua inteligência e talentos excepcionais, Eggsy vence as objeções classistas de Arthur (Michael Caine) e vai disputar a vaga com um punhado de esnobes no treinamento coordenado por Merlin (Mark Strong). Pela primeira vez, Eggsy quer se sair bem em algo: e quem não quereria, depois de ver Harry nocautear um bando num pub usando apenas uma caneca de cerveja, um guarda-chuva Swaine Adeney Brigg e um par de sapatos George Cleverley? A espionagem, na Inglaterra, foi por muito tempo um clube nem tão diferente assim do que o autor Mark Millar parodia no quadrinho adaptado por Matthew Vaughn e pela corroteirista Jane Goldman. Os agentes eram recrutados nas universidades de Cambridge e Oxford, num pacto de confiança tácita entre iguais. Em sua dramatização, no romance O Fator Humano, dos casos reais dos espiões duplos Kim Philby e Guy Burgess, o escritor Granam Greene mostra como, assim que se detectam vazamentos de informação para os soviéticos, as suspeitas recaem sobre um agente saído da bem menos exclusiva Universidade de Reading: não ocorre a ninguém que o homem de Cambridge seja o verdadeiro culpado. E, no entanto, o mais célebre (ainda que fictício) espião inglês foi personificado por um escocês filho de uma faxineira e um caminhoneiro. Quando Sean Connery ganhou o papel de James Bond, o diretor de O Satânico Dr. No, Terence Young, brincou de Pigmalião com ele: levou-o a alfaiatarias, a restaurantes, a gentlemen's clubs — exatamente como Harry faz com Eggsy. Matthew Vaughn, que começou como produtor de Guy Ritchie e se graduou na direção com Nem Tudo É O que Parece, Kick-Ass e X-Men — Primeira Classe, é um cineasta dos mais imaginativos na matéria de transpor quadrinhos para a tela com o atrevimento e as tintas hiperbólicas que eles pedem. Vaughn tem ainda a virtude de caráter de conhecer a fundo antigos filmes de espionagem — não só os 007 com Connery e Roger Moore, mas também os filmes com Michael Caine no papel de Harry Palmer ou os de James Coburn como o agente Flint, cujo DNA é facilmente detectável em Kingsman. Outros genes, porém, são mais inusitados: os de Busby Berkeley, rei daqueles musicais com coreografias extravagantes dos anos 30 e 40, estão na sequência em que, aos acordes majestosos de Land of Hope and Glory, de sir Edward Elgar, centenas de cabeças explodem em um festival de cores. Levar algo assim a sério não é só absurdo; é quase de maus modos. 7#3 SHOWBIZ – MADRE SUPERIORA Aos 59 anos e trinta depois de sua estreia no cinema, em A Cor Púrpura, a americana Whoopi Goldberg conta que anda com a agenda lotada, apesar das reclamações de sempre de que tudo é mais difícil para atores negros e atrizes acima de uma certa idade. Além de atriz — detesta que a chamem de "comediante" —, escritora e apresentadora do programa The View, da emissora ABC, ela é produtora do musical Mudança de Hábito, baseado no filme homônimo estrelado por ela em 1992, que estreia na próxima quinta-feira em São Paulo e também está em cartaz em outras onze cidades no mundo. De seu escritório em Nova York, a vencedora do Oscar de coadjuvante por Ghost — Do Outro Lado da Vida conversou com o editor Mário Mendes sobre o teatro da Broadway, o humor dos Três Patetas, a diversidade étnica em Hollywood, os padrinhos poderosos e a descoberta da "era de ouro" da TV antes de todo mundo. Qual a principal diferença entre o filme Mudança de Hábito e o musical? No filme, a trilha sonora é uma série de sucessos da Motown. Mas a gravadora tinha planos de fazer um musical próprio e não liberou as canções para a peça. Então convocamos Alan Menken (autor de trilhas para desenhos da Disney como A Bela e a Fera e A Pequena Sereia) e ele entendeu completamente o espírito do show. Além disso, Deloris Van Cartier, a personagem principal, que no cinema era uma cantora em fim de carreira, agora é uma jovem iniciante. Por que atualmente os musicais da Broadway são em sua maioria adaptações de filmes de sucesso? Sempre houve muito de Hollywood na Broadway e vice-versa, mas acho que essa é apenas mais uma fase que, como tudo na vida, vai passar. Eu mesma produzi outro musical, Thoroughly Modern Millie, que era originalmente um filme musical (Positivamente Millie, de 1967, estrelado por Julie Andrews). A senhora começou a carreira fazendo comédia stand-up e continua se apresentando assim até hoje, certo? Não gosto de dizer que faço stand-up. Prefiro me definir como uma contadora de histórias. No stand-up tem-se de ser engraçado o tempo todo; já um contador de histórias pode ser mais ou menos engraçado no decorrer da sessão. Prefiro assim. A senhora concorda que o stand-up é um gênero dominado por homens? Não vejo assim e acho que dei certo com as minhas histórias no palco porque é algo que sei fazer bem. Por acaso tive a sorte de ter um diretor como Mike Nichols, que me viu e disse: "Ei, essa garota é boa mesmo!". E outro diretor, Steven Spielberg, escutou. Isso é que eu chamo de um começo promissor. Desde o princípio a senhora quis fazer comédia? Sempre preferi o humor. Quando criança eu adorava ver Os Três Patetas - muito mais do que os Irmãos Marx -, que eram engraçados de um jeito simples e sem pretensão com aqueles esquetes tão perfeitos que funcionam até hoje. A senhora sente que a idade é um fator que interfere mais na carreira das atrizes que na dos atores? Não me preocupo com isso. Sou chamada o tempo todo para trabalhos de todo tipo. No momento apresento um programa na televisão, faço shows em cassinos, dublo desenhos animados, escrevo livros e ainda neste ano vou rodar na Itália um filme de terror. Mas, veja bem, quando recebo um convite para um filme, não precisa ser necessariamente o papel da estrela. E ainda tenho a vantagem de que as pessoas não conseguem detectar facilmente a minha idade. Existem hoje mais papéis importantes para atores negros no showbiz? Esse é um cenário que mudou muito para continuar a mesma coisa. Depois do Oscar para 12 Anos de Escravidão, no ano passado, todo mundo aplaudiu e achou que finalmente algo havia mudado. Entretanto, neste ano não indicaram Chadwick Boseman, que está espetacular em James Brown, nem nenhum outro ator afro-americano. Mas o que falta realmente na indústria são produtores que invistam em material que contemple etnias diversas. Resumindo: a situação não é mais tão terrível quanto já foi, mas também não é tão boa quanto pode vir a ser. Como produtora, procuro ajudar a remediar isso. O que a senhora leva em conta ao escolher um papel? Adoraria responder que sou uma pessoa ponderada e objetiva que analisa cuidadosamente cada roteiro. Não é verdade. Faço o que me emociona e o que me estimula a participar. Aliás, se houver no Brasil algum diretor com um novo projeto, pense em mim, baby. O politicamente correto é uma limitação para o humor? Não dou a mínima ao politicamente correto e sempre digo o que quero e o que penso. Mas nunca de modo ofensivo ou maldoso. De resto, se as pessoas não entenderem o que estou dizendo, sinto muito. Como a senhora se define politicamente? Não me defino. Apoio causas que considero importantes, como os direitos civis do indivíduo. Não acho que todo mundo deve gostar de todo mundo nem que se tenha de seguir este ou aquele estilo de vida. Mas é preciso respeitar o direito de cada um viver do modo que bem entender. Eu sei, sempre há questões religiosas que interferem nessas discussões. Mas é bom lembrar: quem eram mesmo os amigos e seguidores de Jesus? Marginais, miseráveis, prostitutas - e Ele nunca deu as costas a nenhum deles. A senhora continua alérgica ao casamento? Entenda, não tenho nada contra o casamento, mas não é para mim. Por acaso estou escrevendo um livro sobre relacionamentos. O título é Do You Really Wanna Do That? (Você Realmente Quer Fazer Isso?). Como a senhora vê a atual era de ouro da TV americana? Quando me falam em era de ouro da TV, respondo com I Love Lucy e Além da Imaginação. Sempre houve bons papéis e bons roteiros na TV - e, quando se é ator, não importa o gênero nem o veículo com que se trabalha. Pode ser desde uma websérie até as séries de que eu gosto, como How to Get Away with Murder e Sherlock. Não ligo se vou aparecer em tela grande ou pequena e desde o princípio fiz muita TV. Já apresentei talk show noturno, tive minha própria sitcom, participei de Star Trek: the Next Generation e hoje sou uma das apresentadoras do The View. Acho que os colegas é que estão atrasados e resolveram finalmente me alcançar. 7#4 LIVROS – UM BRILHANTE EM ESTADO BRUTO A vida e a arte de Elis Regina são desvendadas em uma biografia sem retoques. Os filhos da cantora, de forma exemplar, não se opuseram à publicação. SÉRGIO MARTINS Elis Regina de Carvalho Costa (1945-1982) foi a maior cantora brasileira. Interpretava cada música como se a letra estivesse tatuada em sua carne. Foi hábil em acompanhar as evoluções e revoluções musicais de seu tempo — do samba ao rock, do jazz à disco music — e tinha uma sensibilidade finíssima para novos talentos: lançou à fama, entre outros, Milton Nascimento, João Bosco e Aldir Blanc, Fagner e Belchior. Sua morte precoce, causada por uma overdose de álcool e cocaína, não apenas a transformou em mito, mas causou um frenesi sebastianista entre os amantes de MPB. Desde então, várias artistas emergentes foram saudadas como "a nova Elis". Mas só Elis Regina tinha o talento distintivo e o canto rasgado de Elis Regina. Nada Será Como Antes (Master Books; 424 páginas; 49,90 reais), biografia minuciosa e sem retoques escrita pelo jornalista Júlio Maria, mostra como essa gaúcha tímida se transformou em uma referência internacional — e o preço, muitas vezes alto, que ela pagou por suas escolhas. Nada Será Como Antes é o primeiro registro biográfico de fôlego sobre uma personagem do showbiz nacional desde a querela deflagrada em 2013 pelo Procure Saber, grupo de medalhões da MPB — Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque, entre outros — que defendia a necessidade de autorização prévia dos biografados ou de seus herdeiros para que livros desse feitio fossem publicados. Repórter aguerrido, Júlio Maria levantou histórias em que sua biografada aparece sob uma luz antipática. Cauteloso, submeteu o texto à aprovação dos três filhos da cantora. Dois deles examinaram a obra. Não, não gostaram de tudo — mas, com exemplar respeito à história, não pediram mudanças. João Marcello Bôscoli confessou que "gostou menos" da mãe ao ler certos trechos; Pedro Mariano disse que a "entendeu melhor". Maria Rita preferiu não ler, mas afirmou que não seria ela a determinar o que deveria ou não ser publicado. Simpatizante da causa do Procure Saber, Milton Nascimento, surpreendentemente, foi a fonte de alguns casos saborosos de Nada Será Como Antes. Relatou, por exemplo, a razão de não haver nenhuma composição sua em Falso Brilhante, show de 1975 que, ao colocar no palco uma versão dramatizada da história da cantora, mudou a maneira de conceber espetáculos musicais no país. A cantora telefonou para Milton quando o artista mineiro dava uma festa. Foi atendida por um convidado gaiato que se fez passar pelo anfitrião e disse à cantora que nunca mais pedisse músicas suas. Quando soube do caso, tempos depois, Milton rompeu com o engraçadinho. De gênio forte (daí o apelido Pimentinha), Elis ia da ansiedade à depressão em questão de minutos. Era capaz de fazer uma declaração amorosa ao então namorado Solano Ribeiro para em seguida golpeá-lo com uma revista. Ou de brigar aos berros com Ronaldo Bôscoli, seu primeiro marido, e no minuto seguinte conversar normalmente, como se nada tivesse acontecido. Bôscoli dizia que ela era "ciclotímica". Também era ferrenhamente competitiva. No Fino da Bossa, programa que ela comandou de 1965 a 1967, ao lado de Jair Rodrigues e do Zimbo Trio, Elis às vezes vetava outras cantoras de potencial. Nana Caymmi viajou do Rio de Janeiro a São Paulo, onde o programa era realizado, só para descobrir que havia sido cortada do show. A rivalidade com Nara Leão não foi menor. "Nara canta mal, mas fala bem", disse Elis ao jornal Última Hora. O encontro com Maysa em uma boate foi feio: Maysa saiu xingando ("gauchinha de m...") e Elis respondeu de pronto: "Pinguça". Maysa então jogou uma garrafa (de uísque, claro) na rival, que só escapou de ser atingida porque o produtor Roberto Menescal conseguiu interceptar o míssil no ar. Foi na temporada de Trem Azul, espetáculo de 1981, que Elis começou a usar cocaína. Elifas Andreato, cenógrafo do espetáculo, conta que um dia ela teve de ser jogada no chuveiro para que o efeito da droga se dissipasse. A cantora Wanda Sá se lembra de um jantar no qual Elis a chamou para cheirar no banheiro: "Ela parecia uma expert no assunto". Contudo, a notícia de sua morte foi surpreendente. Apenas as pessoas do meio artístico sabiam do vício de Elis. Mas a Elis que emerge de Nada Será Como Antes não é apenas difícil e temperamental. Ela era também uma artista generosa, que fez muito por seus compositores. E colocou paixão em tudo o que fez. Julio Maria desencavou uma carta, até aqui inédita, que Elis escreveu para o filho João Marcello Bôscoli quando ele tinha apenas 1 ano. Eis o trecho final: "Só me falta dizer muito obrigado por você ser tudo o que você é, por você ter nascido e por você ter me dado a felicidade de dividir tão intimamente o meu corpo. Sejamos felizes, é o que quero. E é o que há de ser, meu filho. Sou tua sempre. Mamãe". João Marcello nunca havia lido a carta antes de vê-la transcrita na biografia. 7#5 VEJA RECOMENDA DVD O MENSAGEIRO (KILL THE MESSENGER, ESTADOS UNIDOS, 2014. IMAGEM) • Gary Webb, repórter do pequeno jornal local californiano San José Mercury News, topou em 1995 com uma história que lhe pareceu absurda, mas apetitosa demais para ser ignorada: cantou-lhe uma informante que a CIA fazia vista grossa ou até acobertava as atividades de certos figurões do narcotráfico para que eles ajudassem a financiar os contras — as milícias antissandinistas da Nicarágua. Interpretado com energia característica por Jeremy Renner, o jornalista aciona uma fonte aqui, outra ali, e descobre que a ideia de um conluio está longe de ser fantasiosa. Descobre, também, que está mexendo com gente muito graúda e perigosa. Webb vai em frente e, mesmo ciente de que há falhas na apuração, publica a reportagem — mas, aos louros que colhe por ela, segue-se uma truculenta campanha para desacreditá-lo, até que não lhe restem mais carreira nem família. O diretor Michael Cuesta, veterano de séries como A Sete Palmos, Dexter e Homeland, conta a história de Webb (que se suicidou em 2004) sem subtrair dela os equívocos do protagonista, mas com admiração franca pelo repórter que não se deixou intimidar. DISCO ST. VINCENT (UNIVERSAL) • Sobrinha de Tuck Andress (do duo de jazz Tuck & Patti), Annie Erin Clark trabalhou nas turnês do tio e depois foi estudar na Berklee School of Music, de Boston. Adotou o nome artístico St. Vincent em uma dupla homenagem: a uma avó e ao hospital em que o poeta Dylan Thomas deu seus últimos suspiros. O álbum que leva seu nome é o quarto de sua discografia-solo. É também o mais acessível de sua carreira (mas, por "acessível", não se imagine nada como as tolices pop de uma Katy Perry). Há sempre um ruído extra para quebrar o óbvio, seja nos timbres eletrônicos de Rattlesnake, canção de abertura, seja na guitarra seca e nos teclados que lembram o som dos anos 80 em Birth in Reverse (a mesma década inspira Every Tear Disappears, que parece saída de um disco do cantor inglês Gary Numan). Curiosidade: a canção Huey Newton poderia sugerir que St. Vincent se inclina ao radical chique. Trata-se, afinal, do nome de um líder do movimento Panteras Negras, assassinado em 1989. Mas a música surgiu de um sonho alucinado, quando a cantora exagerou no sedativo para se livrar do jet lag causado por uma viagem internacional. Nesse delírio, conversava com Newton — e eles só falaram de amenidades. LIVROS SUDÁRIO, DE JOHN BANVILLE (TRADUÇÃO DE CASSIO ARANTES LEITE; BIBLIOTECA AZUL; 296 PÁGINAS; 39,90 REAIS) • Já se disse que um traço marcante da ficção moderna é o "narrador não confiável". Se em Cervantes, Dickens ou Balzac o leitor podia acreditar no que lhe dizia o narrador — fosse ele impessoal ou um personagem falando em primeira pessoa —, nos romances posteriores com frequência a voz que conta a história dissimula, esconde fatos ou mente descaradamente. Fica então o aviso: não confie em Axel Vander, protagonista de Sudário. Sua única honestidade é declarar-se um mentiroso. O personagem é calcado no crítico belga Paul de Man (1919-1983), consagrado teórico do desconstrucionismo que fez carreira nos Estados Unidos. Na juventude, De Man escreveu artigos antissemitas para um jornal de seu país — e nunca fez um mea-culpa: só depois de sua morte os textos infames seriam redescobertos. Vander também tem esqueletos racistas no armário, e, logo que começa o livro, está a ponto de ser desmascarado. Mas há outras, mais profundas, fraudes em sua vida. O irlandês John Banville cria uma fascinante rede de mentiras. OS MIL OUTONOS DE JACOB DE ZOET, DE DAVID MITCHELL (TRADUÇÃO DE DANIEL GALERA; COMPANHIA DAS LETRAS; 568 PÁGINAS; 64,90 REAIS, ou 45,90 NA VERSÃO ELETRÔNICA) • Lançado em 2004 — e ainda sem tradução no Brasil —, Cloud Atlas, caudaloso romance cuja ação saltava abruptamente de uma era histórica para outra, consagrou o inglês David Mitchell, 46 anos, como um virtuose literário, sempre seguro no domínio de diferentes registros e dicções de época. Os Mil Outonos de Jacob de Zoet é, à primeira vista, mais convencional. O leitor encontra aqui um romance histórico, situado no Japão — mais especificamente, na ilha artificial de Dejima, entreposto comercial na costa de Nagasaki — da virada do século XVIII para o XIX. Mas esse mergulho ficcional em um ponto singular do passado é tão ousado quanto o painel de Cloud Atlas. O holandês Jacob de Zoet, personagem que dá título ao livro, é um escriturário da Companhia das Índias Orientais encarregado de investigar possíveis desvios de fundos de seus compatriotas. Ele se apaixona por uma habilidosa e culta parteira japonesa, Aibagawa Orito — e no meio desse amor reprimido irrompem todas as tensões culturais do lugar e do tempo. CINEMA SR. KAPLAN (MR. KAPLAN, URUGUAI/ESPANHA/ALEMANHA, 2014. JÁ EM CARTAZ NO PAÍS) • Jacobo Kaplan (Héctor Noguera) nunca aprendeu a nadar. Resolve corrigir essa falha aos 76 anos, despencando na piscina de uma festa elegante em que já havia submetido a mulher, com quem está casado há cinquenta anos, a outros vexames. Volta para casa ensopado e humilhado, porém decidido a fazer jus ao nome judaico que recebeu dos pais na Polônia, de onde escapou da fúria nazista para dar com os costados em Montevidéu. Jacó é o personagem bíblico que lutou com um anjo, e o confuso sr. Kaplan vê a chance de uma luta com o diabo quando a neta Lottie (Nuria Fló) diz frequentar um bar de propriedade de um alemão a quem os jovens se referem como "velho nazi". Na companhia de seu motorista, o desajeitado ex-policial Contreras (Néstor Guzzini), ele traça um plano mirabolante para sequestrar o suposto criminoso de guerra e levá-lo a julgamento em Israel. O humor sardônico do diretor Álvaro Brechner retrata com tintas suaves as frustrações impostas pela idade. No final, um toque tarantinesco evita que se caia no melodrama ou no expediente fácil de uma comédia de erros. 7#6 OS LIVROS MAIS VENDIDOS FICÇÃO 1- Cinquenta Tons de Cinza. E.L. James. INTRÍNSECA 2- Cinquenta Tons Mais Escuros. E.L. James. INTRÍNSECA 3- Cinquenta Tons de Liberdade. E.L. James. INTRÍNSECA 4- Se Eu Ficar. Gayle Forman. Novo Conceito 5- O Pequeno Príncipe. Antoine de Saint-Exupéry. AGIR 6- Para Onde Ela Foi. Gayle Forman. NOVO CONCEITO 7- Divergente. Veronica Roth. ROCCO 8- Insurgente. Veronica Roth. ROCCO 9- Convergente. Veronica Roth. ROCCO 10- Garota Exemplar. Gillian Flynn. INTRÍNSECA NÃO FICÇÃO 1- Eu Fico Loko. Christian Figueiredo de Caldas. NOVAS PÁGINAS 2- Nada a Perder 3. Edir Macedo. PLANETA 3- Bela Cozinha: As Receitas. Bela Gil. GLOBO 4- O Capital no Século XXI. Thomas Piketty. INTRÍNSECA 5- O Diário de Anne Frank. Anne Frank. RECORD 6- A Teoria do Tudo. Jane Hawking. ÚNICA 7- Diário de um Adolescente Apaixonado. Rafael Moreira. NOVAS PÁGINAS 8- Sniper Americano. Cgris Kyle. INTRÍNSECA 9- Sonho Grande. Cristiane Correa. PRIMEIRA PESSOA 10- A Economia da Desigualdade. Thomas Piketty. INTRÍNSECA AUTOAJUDA E ESOTERISMO 1- Ansiedade. Augusto Cury. SARAIVA 2- Não Se Apega, Não. Isabela Freitas. INTRÍNSECA 3- Geração de Valor. Flávio Augusto da Silva. SEXTANTE 4- O Poder da Escolha. Zibia Gasparetto. VIDA & CONSCIÊNCIA 5- De Volta ao Mosteiro. James Hunter. SEXTANTE 6- 60 Dias Comigo. Pierre Dukan. BEST SELLER 7- O Monge e o Executivo. James Hunter. SEXTANTE 8- O Livro do Bem. Ariane Freitas e Jessica Grecco. GUTENBERG 9- As Regras de Ouro dos Casais Saudáveis. Augusto Cury. ACADEMIA DE INTELIGÊNCIA 10- A Arte da Guerra. Sun Tzu. VÁRIAS EDITORAS 7#7 ROBERTO POMPEU DE TOLEDO – QUAL MORTE? Escolha sua morte preferida: (1) súbita, (2) longa, com demência, (3) longa, com idas e vindas no tratamento de um órgão doente, (4) câncer. O médico inglês Richard Smith cravou câncer, e causou comoção, não só entre seus leitores, na edição digital do British Medical Journal, como mundo afora. As quatro opções segundo Smith, que já dirigiu a revista em que hoje escreve na versão digital, esgotam, "essencialmente", os modos de morrer. ("Suicídio, assistido ou de outra forma, é uma quinta, mas a deixo de lado por ora", acrescentou ele, em seu artigo.) Dos quatro tipos de morte, a pior, para ele — e para todo mundo, presume-se —, é a precedida pela demência. A da luta contra a degeneração de um órgão acaba contaminando outros órgãos, e compreende desesperadas tentativas de cura, muitos médicos, muitos hospitais, e arrastada agonia. Já morrendo de câncer, com a ajuda de convenientes doses de "amor, morfina e uísque", argumenta Smith, "você pode dizer adeus, refletir sobre sua vida, deixar últimas mensagens, talvez visitar lugares especiais pela última vez, ouvir as músicas favoritas, ler os poemas mais queridos e preparar, de acordo com suas crenças, o encontro com seu fabricante (maker, em inglês; ele é ateu) ou o gozo do eterno esquecimento". Richard Smith contraria o senso comum dos nossos tempos, segundo o qual é preferível a morte súbita, e recupera o charme, se é que se pode dizer assim, da morte à antiga, com o moribundo rodeado de entes queridos. A morte súbita é identificada basicamente com o ataque cardíaco, e foi cantada por João Cabral de Melo Neto num poema inspirado pela morte do também poeta W.H. Auden, ocorrida enquanto dormia. Auden, segundo João Cabral, teria sido premiado pela morte "com a guilhotina, fuzil limpo, do ataque cardíaco". Smith reconhece que a maioria das pessoas prefere a morte súbita. Ele costuma dizer-lhes: "Pode ser bom para você, mas pode ser muito duro para as pessoas à sua volta. Se você quer morrer de repente, viva cada dia como se fosse o último, assegurando-se de que os relacionamentos mais importantes estão em boa forma e os negócios estão em ordem". A morte com charme à antiga é a dos romances do século XIX, época em que se morria em casa, não no hospital, e dos filmes ambientados no mesmo século. Se o moribundo for um aristocrata, ou grande burguês, morre entre coloridas almofadas, finos lençóis e, nos casos mais afortunados, cama com dossel. Modelo muito mais antigo é a morte de Sócrates, rodeado de discípulos e gastando filosofias. O problema é que o fim de Sócrates foi por condenação à morte — categoria não contemplada na tipologia de Smith. Ou seja: morreu no gozo da saúde. Já no câncer morre-se depauperado e com dores, às vezes horrendas — motivo pelo qual leitores do médico inglês reagiram com indignação, relatando desesperados casos de familiares. Ainda mais indignados ficaram por Smith sugerir aos governos que gastem menos com pesquisas do câncer e mais com as da demência e das doenças mentais. Em reforço à sua preferência, Smith cita o cineasta Luís Buñuel, que confessou ter de início flertado com a ideia da morte súbita, para depois mudar de opinião. "Não tenho medo da morte", escreveu. "Tenho medo de morrer sozinho num quarto de hotel, com minhas malas abertas e um roteiro de filme no criado-mudo. Eu quero saber que dedos fecharão meus olhos." (A propósito: a morte de Auden, cantada por João Cabral, foi num quarto de hotel, na Áustria.) Buñuel, que morreu de câncer, em 1983, nos conduz ao centro da disjuntiva morte súbita versus morte anunciada. A preferência pela morte súbita não é apenas pela ausência de dor; é também pelo desejo de poupar-se de encarar a fera olho no olho. Se a morte escapa da consciência, acredita-se, como que se escapa de morrer. Também se escapa da terrível questão do comportamento que se terá na hora fatal. Estarei pronto? Saberei encará-la com tranquilidade e serenidade? Propor a escolha do tipo preferido de morte é um exercício fútil, claro. Escreve João Cabral, no mencionado poema: "Se morre da morte que ela quer. / É ela que escolhe seu estilo, / sem cogitar se a coisa que mata / rima com sua morte ou faz sentido". O artigo de Richard Smith tem, no entanto, o mérito de fazer pensar na morte. Nos dias que correm reina a convicção de que o melhor é não falar nela. Quanto menos se falar, mais sossegada ela ficará em seu canto. Finge-se que ela não existe, na vã esperança de que ela resolva não existir mesmo.