0# CAPA 1.4.15 VEJA www.veja.com Editora ABRIL Edição 2419 – ano 48 – nº 13 1º de abril de 2015 [descrição da imagem: o funda da capa é a imagem de uma cabine de avião. À frente, em tamanho grande, o rosto de um homem, usando um quepe de aviador, onde na parte central do quepe, onde ficam os símbolos da aviação, está um avião, de cabeça para baixo, quebrado. O rosto este homem não pode ser enxergado pois o título, os escritos da matéria estão em cima. Abaixo, no canto inferior direito, uma foto pequena do rosto do copiloto Andreas Lubitz.] PILOTO SUICIDA O FATOR HUMANO A ação insana que arrastou para a morte 150 pessoas a bordo de um Airbus A320 é o pior pesadelo de quem viaja de avião e um alerta de que, apesar de toda a tecnologia, a segurança de voo depende da ação de gente de carne e osso. Com crises de depressão, o copiloto Andreas Lubitz escondeu um atestado médico de afastamento do trabalho no dia da tragédia. [outros títulos: parte superior da capa. No lado direito foto da atriz Angelina Jolie, no centro somente título e no lado esquerdo foto de uma bomba de gasolina] ANGELINA JOLIE As consequências da prevenção radical ao câncer. OS RESILIENTES Os setores que resistem à crise e podem salvar o Brasil da recessão. PETROBRAS O buraco da má gestão é ainda mais fundo: 80 bilhões de reais. _______________________ 1# SEÇÕES 2# PANORAMA 3# BRASIL 4# ECONOMIA 5# INTERNACIONAL 6# GERAL 7# ARTES E ESPETÁCULOS _____________________________ 1# SEÇÕES 1.4.15 1#1 VEJA.COM 1#2 CARTA AO LEITOR – UM VOTO DE CONFIANÇA 1#3 ENTREVISTA – EDUARDO PAES – “SÓ MARKETING NÃO RESOLVE” 1#4 LYA LUFT – NO FUNDO DO MAR 1#5 LEITOR 1#6 BLOGOSFERA 1#1 VEJA.COM COMEÇOU A CAIR A crise econômica decorrente das derrapadas do governo começa a ter seus efeitos sobre o mercado imobiliário. O índice FipeZap de fevereiro mostra que o avanço dos preços de imóveis nunca foi tão tímido nas capitais brasileiras. E, pela primeira vez desde que foi criado, o indicador começa a captar quedas. O Distrito Federal é um caso exemplar: o avanço dos preços em doze meses é de 0,18%. Descontada a inflação do período, trata-se de uma queda real de quase 8%. Especialistas consultados pelo site de VEJA garantem: não haverá derretimento de preços. Mas, em 2015, quem estiver disposto a comprar encontrará o caminho livre para negociar descontos impensáveis até bem pouco tempo atrás. HUMORISTAS DE CRISTO De esquetes do YouTube a púlpito de igrejas com shows de stand-up, o humor gospel é um fenômeno recente que ganhou nova visibilidade com a ajuda das redes sociais e a abertura do próprio público cristão, antes resistente à ideia de misturar risadas com o sagrado. Quem também colaborou para a popularidade do estilo foi o canal Porta dos Fundos, que peca (literalmente, na visão dos evangélicos) por fazer piadas que não são apropriadas para toda a família. "Nossos esquetes não têm palavrão nem apelo sexual, são censura livre. Esse é o nosso único compromisso com a religião", diz Jonathan Nemer, do canal de vídeos Desconfinados, que triplicou o número de visualizações no último semestre. O GOLEIRO É UM POPSTAR Por muito tempo, a posição de goleiro teve a pecha de maldita: não tinha charme nem despertava a mesma atenção dedicada a um atacante — ou mesmo a um zagueiro. Mas os goleiros mudaram de status. Hoje, têm salários equiparados aos de artilheiros, tornaram-se líderes em campo, cartolas, garotos-propaganda e até são indicados a melhores do mundo. Nesta reportagem, os ex-goleiros Taffarel, Leão e Zetti, além de Júlio César, titular nas Copas de 2010 e 2014, falam sobre o crescente prestígio da posição. OPOSIÇÃO BOA DE BRIGA Há dois anos, quando a base governista era a maior da história, nenhum deputado de oposição dava tanta dor de cabeça ao governo quanto Ronaldo Caiado (DEM-GO). Recém-empossado no Senado, agora ele causa ciúme em alguns tucanos por seu perfil combativo. O ruralista defende a renúncia de Dilma e trabalha para disputar a Presidência da República em 2018. Antes disso, porém, terá de lidar com a fama de desagregador e evitar a extinção de seu partido, que encolheu perigosamente nas últimas eleições. 1#2 CARTA AO LEITOR – UM VOTO DE CONFIANÇA Resiliência, conceito que a psicologia importou da física, descreve a situação em que uma pessoa, a despeito de todas as adversidades, quedas e golpes que lhe são desferidos pela vida, não se abate, resiste, a tudo vence e reemerge mais forte. Mais recentemente, os analistas passaram a ver resiliência em certas economias que, apesar de toda sorte de abuso por parte dos governos, conseguem manter um inesperado nível de atividade. São economias que desenvolveram um dinamismo próprio, capaz de sobreviver mesmo ao ambiente de negócios mais hostil. Lembram aquelas plantinhas que insistem em brotar das rachaduras do asfalto ou dos pisos de cimento. Seria o caso do Brasil? É cedo para adiantar esse diagnóstico, mas, depois de meses de notícias ruins, a semana que passou trouxe sinais de vida que, no conjunto, mostram uma capacidade de resistência insuspeitada de setores da economia brasileira. Esta edição de VEJA traz quatro reportagens que dão um alívio na sequência de atribulações que os brasileiros têm enfrentado ultimamente. São notícias boas não para este ou aquele partido, para o governo ou para a oposição. São notícias boas para todos os brasileiros. Uma delas registra o salto quântico dado por lavradores e outros trabalhadores braçais da Zona da Mata pernambucana que aprenderam a operar máquinas digitais e robôs de última geração na fábrica de automóveis que a FCA construiu em Goiana, a 70 quilômetros do Recife, um investimento de 7 bilhões de reais. Outro alento vem do agronegócio. Fortemente assentada sobre o maior crescimento de produtividade do setor no mundo, a agricultura brasileira de exportação continuará a expandir-se, segundo estimativas inéditas, a um ritmo muito maior que o do resto da economia. Talvez mais significativo ainda tenha sido o fato de a agência de avaliação de risco Standard & Poor's ter mantido o Brasil no grupo de países que combinam vontade e capacidade de pagar suas dívidas. Não é pouca coisa em um mundo em que a confiança é o bem mais valioso que as pessoas, as empresas e as nações podem ostentar. A Standard & Poor's deu um voto de confiança a Joaquim Levy, ministro da Fazenda, e, por dedução, também a Dilma Rousseff e seu convencimento de que o caminho correto é o atual, com controle de gastos, política monetária adequada e determinação para aguentar o tranco de impopularidade que o ajuste ajuda a aprofundar. Só assim as coisas podem melhorar. A reportagem que relata a compra, nos Estados Unidos, da Kraft pela 3G, empresa brasileira que já havia adquirido a Heinz, completa o conjunto. Não há ufanismo aqui, mas realismo. A Kraft e a Heinz fabricam produtos que chegam todos os dias à mesa de dezenas de milhões de lares americanos. Eles levam à opinião pública da maior economia do planeta a imagem de empresários brasileiros capazes não apenas de operar a maior fusão da história da indústria alimentícia mundial, mas de fazê-lo sob a égide da competência negocial e da capacidade de gestão. Não há melhor maneira de propagar a imagem de um Brasil resiliente. 1#3 ENTREVISTA – EDUARDO PAES – “SÓ MARKETING NÃO RESOLVE” O prefeito do Rio de Janeiro critica o governo federal, defende a alternância de poder e aposta que a Olimpíada vai projetar a imagem de um Brasil eficiente, sério e honesto. MONICA WEINBERG E THIAGO PRADO Eduardo Paes, 45 anos, 22 deles na política, entrou em 2015 com a cabeça em 2016 e os olhos em 2018. No ano que vem, o último de seu segundo mandato na prefeitura do Rio de Janeiro, Paes terá seu destino atado ao sucesso ou ao fracasso da realização da Olimpíada. Para quem considera que a Copa do Mundo no Brasil no ano passado "foi um fracasso", dá para imaginar o padrão de sucesso que Paes espera do evento. Com o governo Dilma trôpego e seu partido, o PMDB, ganhando força, o nome de Paes passou a ser opção natural para a disputa do Palácio do Planalto em 2018. Como virou regra entre os aliados do governo, Eduardo Paes critica o sectarismo do PT e quer punições severas para os implicados no escândalo do petrolão. Por que o senhor decidiu bater de frente com o governo de sua aliada Dilma Rousseff ao exigir que se fizesse valer a renegociação das dívidas de estados e municípios com a União? Vinha tratando o assunto de maneira institucional desde que a lei foi sancionada pelo Congresso Nacional. Aliás, lei que corrige uma injustiça histórica. Voltar atrás seria quebra de contrato, um gesto nada benéfico a um país que luta para manter seu grau de investimento. É inaceitável para mim, como prefeito de uma cidade que zerou sua dívida e produziu superavit primário, acordar devendo à União meio bilhão de reais. Primeiro procurei o ministro Aloizio Mercadante, que me empurrou para o Joaquim Levy, que deu aquela enrolada. Aí conversei com a própria Dilma. Saí de lá sem nenhuma solução. Mas fui leal. Avisei que entraria na Justiça. O senhor se desentendeu com o ministro Joaquim Levy? Ele quer que eu seja carinhoso e compreensivo. Nesse caso não dá. O Levy é um homem sério. Sou defensor da presença dele no governo e apoio o ajuste fiscal. Agora, acho que ele deveria seguir Maquiavel — o mal de uma vez só —, e não despejar sobre nós a cada dia uma notícia pior do que a outra. O senhor não está com um discurso crítico demais para um aliado do governo? Justamente como parte do governo é que me vejo na obrigação de criticá-lo, mas prefiro sempre ir primeiro a Dilma, dizendo o que penso, antes de sair por aí me queixando em público. O que o senhor tem dito à presidente? Reforço minha posição de que o diálogo é essencial neste momento. A eleição foi definida por uma margem estreita de votos. Quando a vitória se dá assim, o mais importante é entender que do outro lado existe um adversário legítimo, e não um inimigo pronto para armar uma conspiração contra o governo. Ter opinião diferente não é crime. Já aconselhei a presidente a escutar quem não concorda com ela. Com todo o respeito que tenho pelo ministro Miguel Rossetto, fiquei apavorado com aquela entrevista que ele deu logo depois dos protestos de 15 de março (em que chamou os manifestantes de golpistas). Também não consigo entender essa organização política do governo. O Mercadante é hoje chefe da Casa Civil e articulador político. Ninguém pode fazer bem as duas coisas. No cenário, o PMDB tem sido essencial para garantir a estabilidade. Não é um partido só de gente pura. Tem seus problemas e equívocos. Mas o governo deveria agradecer todos os dias e com muitas orações o papel que estamos exercendo. Isso é discurso de candidato à Presidência? Bota o jingle aí (fala em tom de brincadeira a um dos assessores). Claro que fico lisonjeado por meu nome ser lembrado. Político que é político só sai de cena se não tem mais voto. Tenho minhas ambições. Mas agora estou absolutamente focado no meu trabalho como prefeito da cidade olímpica, uma cidade que passa hoje por uma transformação urbanística radical. Antes de qualquer coisa, a Olimpíada precisa ser um estrondoso sucesso. 2018 será o ano de o PMDB desgarrar-se do PT? Não tenho a menor dúvida de que será a hora de o PMDB lançar uma candidatura própria à Presidência. O partido precisa se posicionar, ter candidato. Acho até que, em 2018, quando o PMDB apresentar o seu, poderá fazer isso sem virar oposição. É saudável que o PT perca a próxima eleição. Há que reconhecer que houve mudanças e avanços nesse período, mas hoje olho para os nomes do PT e não vejo ninguém melhor do que muitos de nossos quadros. Também pesa a incapacidade de diálogo do PT. É muito sectarismo. Certas alas do governo continuam com as mesmas opiniões e procedimentos de quando eram oposição. Há forças petistas que ainda ficam por aí defendendo besteiras, como o controle da mídia. Essas antas despreparadas estão no mesmo patamar de primitivismo dos que usam a democracia para destruir a democracia. Qual seria o debate mais qualificado a travar agora? Há todas as reformas a encarar — a tributária, a da Previdência — e questões urgentes a ser revistas, como o erro que se cometeu ao adotar o modelo de partilha na exploração de petróleo (em que a Petrobras entra como sócia em todos os campos). Está claro que a empresa não tem capacidade para fazer esse investimento. Por que ninguém tem coragem para enfrentar isso? Há ainda o desafio da qualidade na educação. O MEC precisa ser tratado como prioridade, e não com a brutalidade que temos visto. Você pode vender um slogan por um tempo, mas, se não tiver conexão com a realidade, não sobreviverá. Marketing não resolve governo. O senhor esperava que o ex-governador do Rio Sérgio Cabral e o atual, Luiz Fernando Pezão, aparecessem na lista dos investigados na Operação Lava-Jato? É muito ruim você se ver numa situação dessas, mas acho que nenhum dos dois está diretamente envolvido nessa história. Todo o escândalo me faz pensar que devemos discutir o foro privilegiado neste país de tanta impunidade. Sem o privilégio, talvez o Brasil estivesse melhor hoje. Caixa dois virou lugar-comum e desculpa para justificar qualquer tipo de roubo. Caixa dois que nada. O que tem aos montes por aí é gente comprando pintura bonita para pendurar na parede, lancha, casa de praia e viagem para o exterior. Essa roubalheira é o retrato de um país que não pune, que não enjaula e onde falta rigor. O balanço da Copa do Mundo revelou sobrepreço em dezenas de obras e um legado questionável. Como evitar o mesmo na Olimpíada? A Copa não serve de exemplo para nada. Foi um fracasso. Só serviu para reforçar velhos estereótipos, como o de um país que sabe fazer uma boa festa, cheio de gente bonita, mas que usa o dinheiro para deixar elefantes brancos na paisagem e entrega obras pelo triplo do valor acordado. O pior é que ainda perdemos um estereótipo bom, o da pátria das chuteiras. A Olimpíada dá agora a chance de nos firmarmos diante do mundo de maneira diferente. E qual seria ela? A Espanha usou os Jogos em Barcelona para mostrar que poderia ser um país unido; a Coreia fez de Seul a vitrine dos Tigres Asiáticos; Pequim queria exibir as reformas iniciadas por Deng Xiaoping. O que eu quero enfatizar no Rio é a ideia de um país que, apesar de ter uma quadrilha incrustada no poder assaltando sua maior empresa e tantos outros problemas, não é uma republiqueta das bananas com cucarachos mal resolvidos. Há setores que funcionam, inovam, entregam as coisas no prazo — enfim, um Brasil que dá certo. Muitas das empreiteiras envolvidas no propinoduto da Petrobras têm obras no Rio de Janeiro. Isso o preocupa? Garanto que aqui não há propina nem Paulos Robertos Costa (ex-diretor da estatal). O senhor fala muito em legado olímpico, mas uma das principais promessas para os Jogos, o saneamento quase total da Baía de Guanabara, não deve ser cumprida. Não é um baque? Sem dúvida que é uma grande chance perdida, mas não está na minha alçada: a responsabilidade é do governo estadual. Alguma obra olímpica lhe tira o sono? Neste momento, não. O velódromo estava um pouco atrasado, sim, mas não mais. O interessante é que o atraso era de três semanas e todo mundo caiu em cima. Não deixa de ser uma maneira diferente de ver as coisas no Brasil: já viu brasileiro incomodado com um atraso de três semanas? A corrida é para evitar isso. Atraso em obra é sinônimo de aditivo. O empreiteiro chega para você, governante, e fala: "Ô chefe". Empreiteiro só chama a gente de chefe. Mas depois vem a facada. Por que o senhor puxou para a prefeitura responsabilidades que eram do governo federal na organização da Olimpíada? São muitas alçadas de poder envolvidas nos Jogos e muita burocracia. A Autoridade Pública Olímpica (APO), por exemplo, é desnecessária. Só que os prazos são apertados. Não dá para esperar demais. A burocracia emperrou a assinatura do BRA, carta de garantia em que o governo federal se colocava como fiador de um adiantamento de verbas do COI para o Comitê Rio 2016? O Brasil criou centenas de instâncias de controle que não controlam nada. Os processos vão da Controladoria-Geral da União para a Advocacia-Geral da União, depois para a área jurídica de algum ministério, e ficam ali. Um dia, falei com o pessoal do COI, que estava angustiado com tanta demora em assinar o BRA. O dinheiro que viria depois era necessário para deslanchar a Olimpíada. Ficou decidido então que eu e Pezão daríamos a garantia, e não mais o governo federal. Com a economia de tantos países em crise, não está fácil para o COI atrair candidatos a sediar uma Olimpíada. No Brasil será gasto algo na casa dos 36 bilhões de reais. Vale mesmo a pena? Tenho dois argumentos para defender os Jogos. O primeiro é que, sem eles, não conseguiríamos dinheiro nem teríamos prazos para tirar do papel tantas obras ao mesmo tempo. A Olimpíada significa, portanto, um impulso decisivo para avanços básicos, necessários, mas que vinham sendo adiados, engavetados. O outro ponto é que, dos 36 bilhões gastos, 24 bilhões estão sendo investidos em legados valiosos: o transporte público vai dar um salto de qualidade e a região portuária, há décadas degradada, será completamente revitalizada. Seu candidato a sucessor na prefeitura é o deputado federal Pedro Paulo. E se Cabral quiser entrar no páreo? Aí o Pedro Paulo retira a candidatura. É como Pelé: você escala na hora. Cabral pode ter tido seus equívocos, mas ainda é o melhor quadro do PMDB no Rio. O senhor vem conversando com todos os seus possíveis adversários em 2016: tenta atrair Marcelo Crivella e até já acenou a Romário com a possibilidade de indicar um secretário. O objetivo é dar um nó na oposição? Não. Penso que, se os nomes são bons, quanto maior o arco de alianças, melhor. O senhor já trocou de partido quatro vezes. O que o motivou? Foi um erro. Não tinha crença nenhuma em partido. Hoje tenho mais, mas acho que o Brasil deveria começar a pensar em um modelo de candidaturas independentes. Significaria uma mudança nas relações do poder com a população. O senhor ainda mantém contato com seu ex-secretário e homem forte Rodrigo Bethlem (gravado pela ex-mulher confessando receber propina)? Nunca mais nos falamos. Queria matar o desgraçado. Se cruzar com ele, dou uma bordoada. Foi o momento mais triste da minha administração. José Mariano Beltrame, secretário de Segurança, atribuiu a culpa pelo aumento dos índices de criminalidade nas favelas do Rio a ações "pífias" do estado e da prefeitura no campo social. Ele está certo? Beltrame é preparado, mas discordo dele. Acho preconceituosa a visão de que, se o sujeito não tem acesso a serviço público, vai acabar pegando um fuzil e sair matando. É uma visão distorcida. Temos de parar no Brasil de tentar dar respostas fáceis e politicamente corretas a problemas complexos. 1#4 LYA LUFT – NO FUNDO DO MAR O Brasil naufraga. A cada dia a situação brasileira muda — em alguns aspectos geralmente negativos — tão depressa que, quando se pensa num artigo para esta coluna, já as coisas degringolaram ou se confundiram um pouco mais. Portanto, é sempre em parte um tiro no escuro: quem sabe, até sair o texto, mais coisas graves terão acontecido e não consegui, na hora, atualizar? Mas, para isso, a gente que escreve conta com a compreensão do leitor — algo já meio esquisito de pedir, uma vez que nos solicitam "compreensão" para os fatos mais incompreensíveis. A grande nau com seus 200 milhões de passageiros quase raspa o fundo do mar, onde ficará atolada se não tomarmos medidas. E nós, os comuns mortais, nós, o povo — porque povo não são só os pobres, os miseráveis, os despossuídos, os abandonados pelo governo, os pobres ingênuos iludidos ou os furiosos campesinos que desfilam com bandeiras e camisas vermelhas, ameaçando com foices sem ver os próprios enganos —, o que nós, o povo, repito, podemos fazer? Além de tentarmos levar nossa existência e trabalho da maneira mais decente possível, na dura lida para conseguir pagar as contas e manter uma vida digna para a família, e torcermos para que os que mandam no país tomem as providências salvadoras, pouco podemos fazer, a não ser falar, ler, nos informar, e — isto sim — sair às ruas. Confesso que no dia 15 de março não participei com meus filhos e amigos, e que me dispensei porque, afinal, a cada duas semanas estou com a cara na janela aqui, para milhões de leitores, muito exposta e muito ativa, sem ter de me apoiar na bengala que nos últimos anos uso para trajetos maiores ou mais cansativos, ou para subir alguns degraus. Mas desta vez prometi a mim mesma, se sair a manifestação de 12 de abril, lá estarei, de bengalinha e tudo, orgulhosa de poder fazer algo mais concreto ainda do que um artigo, pelo bem deste país do qual minha família fez a sua pátria há 200 anos, labutando para que ele se torne maior e melhor. Tenho escrito especificamente sobre esta nau vítima de tamanho desastre. Tenho pensado nela insistentemente muitas horas do meu dia, e em alguma hora insone de madrugada, quando acordo, como tantos brasileiros, me perguntando: e agora? O que vai suceder, quem vai comandar? Pois estamos, não oficialmente, mas de fato, sem comando, sem experiente timoneiro que nos guie, os marinheiros aturdidos, alguns líderes apenas começando a tomar pulso e a ajudar no leme. Tomamos consciência do perigo real, e protestamos pacificamente: 2 milhões de pessoas nas ruas do Brasil clamando pelo seu direito a escolas e hospitais públicos decentes, postos de saúde funcionando e dando os remédios básicos, estradas transitáveis; que a economia em redemoinho descendente não trave ainda mais nossa já dura vida cotidiana. Que não desmoronem mais casinhas e edifícios do Minha Casa Minha Vida, malconstruídos, ou erguidos em locais proibidos, como à beira de uma represa. Que os desperdícios em gastos do governo sejam zerados, que as assombrosas revelações, cada dia comprovadas, sobre roubos gigantescos na Petrobras e outras estatais não desabem sobre a população como um maremoto num país ingovernável e paralisado, onde propagandas enganosas causaram o endividamento impagável de milhares de famílias; que se interrompa e reduza o desemprego, que massacra muito mais pessoas do que se imagina; que se corrijam a humilhação e o isolamento do país no cenário internacional, pela patética atuação no campo diplomático. Estamos roçando o fundo do mar de todos os naufrágios: não se divisa uma solução simples que possa mudar o cenário assustador. Que a gente não naufrague, mas que uma fórmula quase milagrosa — que não conheço, mas desejo —, legal e eficiente, ponha este grande leme em mãos firmes e competentes, e nos reintroduza nos países civilizados, dando-nos segurança, paz e esperança: pois esta está cada dia mais ralinha. Que Deus nos ajude! 1#5 LEITOR EDUARDO CUNHA A excelente reportagem "O poderoso Cunha" (25 de março) nos leva a entender o cenário político nacional com a conturbada relação entre o Planalto e o Congresso. O deputado federal Eduardo Cunha, do PMDB-RJ, parece ser "o primeiro-ministro do Brasil". ANTÔNIO SOARES DA SILVA NETO Belém (PA), via tablet Disciplinado, hábil, senhor da palavra, invencível polemista, e também cumpridor do que promete, Eduardo Cunha tem uma conduta política que ainda é uma incógnita. "Até onde ele quer chegar?" é a pergunta que inspira o perfil afilado desse líder assustador, dotado de ambição sem limites. Eduardo Cunha desperta admiração, mas também temor. Ele é um verdadeiro dínamo de eficiência verbal e também prática; fala e faz impelido pelo mesmo impulso. Mas a dúvida é: todo esse pragmatismo titânico que exibe está a serviço de quem? Dele mesmo, de sua carreira pessoal ou do futuro de seu país? Ele trabalha tão febrilmente pelas próximas eleições ou pelas próximas gerações, como deve fazer o autêntico estadista? GILBERTO DE MELLO KUJAWSKI São Paulo, SP Enganam-se aqueles que acreditam que a atual rebeldia do presidente da Câmara está a serviço da Constituição ou do Estado democrático de direito. Eduardo Cunha bate de frente com o Executivo apenas para demarcar território, em defesa de seus pares e de seu partido, buscando angariar mais privilégios, aproveitando- se do fato de que o governo do PT se tornou o saco de pancadas de todos os setores da sociedade, diga-se de passagem, muito merecidamente. SILVIO HAUTZ Guaxupé, MG A verdade sobre o repentino poder de Eduardo Cunha contra o PT resume-se na explicação mais clara para a conjuntura dos fatos: Dilma Rousseff perdeu a maioria no Congresso. Atrelada à própria defesa, mas cometendo erro após erro, ela enfraquece a si mesma e fortalece Cunha. Um exemplo desse fortalecimento foi a demissão de Cid Gomes, então ministro da Educação. A relação do governo com o Congresso não poderia ser pior. JÚLIO RODRIGUES SILVA Florianópolis (SC), via tablet Nem Eduardo Cunha nem Dilma Rousseff merecem o cargo que ocupam. Apesar de estarem lá pela forma democrática, o passado os condena. CARLOS FABIAN SEIXAS DE OLIVEIRA Campos dos Goytacazes (RJ), via tablet Parece que o PMDB já tem candidato a presidente. Sugiro um slogan muito apropriado para os tempos atuais: "Bandido não é parente; Cunha pra presidente!". WILSON CARVALHO Brasília, DF Eduardo Cunha está no mesmo baixo nível de seus pares no Congresso. Não há mérito naquele que bate em bêbado. Cunha está longe de ser nossa tábua de salvação. PROCÓRIO ELVÉCIO PEREIRA Corupá, SC VEJA não informou na reportagem de capa que o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, está na lista do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, conforme já publicado em recente edição. MAURO BAPTISTA CAMILLO São Paulo, SP O deputado federal Eduardo Cunha — que consta na lista do procurador Rodrigo Janot, sobre a Operação Lava-Jato — emergiu utilizando práticas dignas de reprovação em sua passagem pela política fluminense. HÉLIO ARRUDA Salvador, Bahia ARGENTINA A reportagem "A conexão Teerã-Caracas-Buenos Aires" (18 de março), em seus parágrafos finais, me acusa falsamente de ser a interlocutora argentina dos ministros da Defesa das repúblicas do Irã e da Venezuela em conversas sobre um suposto programa nuclear argentino no qual o presidente iraniano teria tido interesse. O texto também contém a afirmação sem base, falsa de toda falsidade e maliciosa, de supostos informantes chavistas — que não foram citados — sobre uma relação pessoal íntima que eu teria tido com o então presidente Hugo Chávez. NILDA GARREÉ Embaixadora da Argentina na OEA Washington, DC, Estados Unidos PROGRAMA MAIS MÉDICOS A bombástica reportagem "Sob ordens de Havana" (25 de março) deveria ser divulgada de forma intensa e extensiva para todo o Brasil, na medida em que demonstra, de maneira clara e cabal, que uma significativa parte dos recursos públicos, oriundos da classe média, é inescrupulosamente, e de forma mascarada, desviada para alimentar a ditadura comunista de Cuba, comandada pelos irmãos Castro. ELINEI WINSTON SILVA Rio de Janeiro, RJ Nada mais me estarrece. Nada mais me indigna. O PT ultrapassou todos os limites e provocou em mim a saturação da indignação. Aos que dizem que vivemos em um "Estado de direito" também vai toda a minha descrença. Se vivêssemos em um verdadeiro Estado de direito, não estaríamos sujeitos a tantos desmandos, a tantas falcatruas, a tantas mentiras. Não há nenhuma instituição no Brasil capaz de pôr um ponto final em tantos "malfeitos". Perdemos a dignidade. Perdemos a vergonha. Perdemos a honra. JOSÉ CARLOS THOMAZ São Paulo, SP ROGÉRIO CHEQUER Eis que desponta um jovem idealista — Rogério Chequer — que se propõe a enfrentar os governantes de peito aberto nas manifestações de rua no Brasil. Sua entrevista a VEJA ("O governo vai ter de ouvir", 25 de março) nos traz posicionamentos que representam os anseios da população, até então confinados em lamentos silenciosos. JOSÉ WAGNER CABRAL DE AZEVEDO Tambaú, SP No domingo (15 de março) participei junto com a minha família do Vem pra Rua na cidade de Mafra, em Santa Catarina. O movimento reuniu umas 2000 pessoas na cidade, o que equivale a 1 milhão em São Paulo, mas eu me perguntava: "E agora? Quais serão os próximos passos?". As palavras de Rogério Chequer me iluminaram, pois expressam exatamente meu sentimento e acredito que o sentimento dos demais que saíram às ruas. Mesmo sem querer que o Vem pra Rua se torne um partido, acredito que o melhor subtítulo para o movimento seja "Vote Certo". FREDY SANDLER Rio Negro (PR), via tablete IMPEACHMENT A presidente Dilma tem duas opções para se livrar do abacaxi que cultivou na própria horta: a renúncia ou o impeachment ("As regras do jogo", 25 de março). Pela sua falta de senso crítico, parece inclinada a escolher a segunda opção, na esperança de se transformar em vítima a ser carregada em triunfo pelos poucos eleitores que ainda acreditam nela. ELIZIO NILO CALIMAN Brasília, DF NOVELA BABILÔNIA As telenovelas retratam o cotidiano na vida do brasileiro, e, mais do que isso, até de forma doentia, o telespectador torce, chora, ri e, enfim, se emociona com o que vê, comportando-se de maneira até assustadora na medida em que, ao conversar, fala sobre a telenovela e os atores como se fossem seus parentes, vizinhos, amigos. A confusão e o estereótipo que se cria em volta deles podem ser constatados em Babilônia, a nova novela das 9 da Globo. O duelo de titãs entre a maldade e o mau caráter, representados pelas grandes atrizes Gloria Pires e Adriana Esteves, agitou o primeiro capítulo da novela, que promete outras surpresas ("Só a maldade salva", 25 de março). Em paralelo, os autores enfrentam a polêmica e o preconceito sobre o beijo lésbico entre Nathalia e Fernanda, uns contra e outros a favor. Certo é que a novela é incômoda como deve ser a própria vida, retratando o cotidiano sem dourar a pílula, ingredientes mais do que necessários para um bom folhetim. RUVIN BER JOSÉ SINGAL São Paulo, SP O CONSELHO DE POLÔNIO Na reportagem "Um diagnóstico perfeito" (25 de março), está errada a citação "Nunca seja nem o credor nem o emprestador" como uma fala de Polônio, conselheiro do rei na peça Hamlet, de William Shakespeare. O que Polônio diz, famosamente, ao filho Laertes, que se prepara para uma temporada de estudos em Paris, é, na excelente tradução de Millôr Fernandes: "Não empreste nem peça emprestado / Quem empresta perde o amigo e o dinheiro / Quem pede emprestado já perdeu o controle de sua economia". PARA SE CORRESPONDER COM A REDAÇÃO DE VEJA: as cartas para VEJA devem trazer a assinatura, o endereço, o número da cédula de identidade e o telefone do autor. Enviar para: Diretor de Redação. VEJA - Caixa Postal 11079 - CEP 05422-970 - São Paulo - SP: Fax: (11) 3037-5638; e-mail: veja@abril.com.br. Por motivos de espaço ou clareza, as cartas poderão ser publicadas resumidamente. Só poderão ser publicadas na edição imediatamente seguinte as cartas que chegarem à redação até a quarta-feira de cada semana. 1#6 BLOGOSFERA EDITADO POR KÁTIA PERIN kperin@abril.com.br COLUNA REINALDO AZEVEDO DITADURAS É preciso que o Congresso tenha a coragem de instalar uma CPI para apurar a participação do Brasil numa espécie de Internacional das Ditaduras de Esquerda. O país desconhece detalhes do Mais Médicos, que transfere 140 milhões de reais por mês para Cuba. O país desconhece as condições de financiamento do BNDES para Cuba, Venezuela e Angola, entre outros. Chegou a hora de jogar luzes na participação do Brasil na Internacional das Ditaduras de Esquerda, www.veja.com/reinaldoazevedo NOVA TEMPORADA FERNANDA FURQUIM ARQUIVO X Sucesso da década de 90, a série Arquivo X está de volta. Os seis episódios inéditos, produzidos novamente por Chris Carter, criador da série, contarão com a presença de David Duchovny e Gillian Anderson, mais uma vez como Fox Mulder e Dana Scully. www.veja.com/temporada COLUNA RODRIGO CONSTANTINO CHAVISMO Um jornalista da BBC tentou comprar oito itens básicos em Caracas. Ele ficou a manhã inteira rodando pela cidade, perdendo um tempo incrível em filas, e no fim conseguiu apenas três dos oito itens! Eis a realidade do socialismo, do bolivarianismo, do chavismo. Eis o resultado inexorável do controle estatal da economia. www.veja.com/rodrigoconstantino TVEJA PT E PMDB O governador reeleito do Pará, Simão Jatene (PSDB), em entrevista a Joice Hasselmann, afirma que a aliança política entre PT e PMDB é "insuficiente para garantir a governabilidade". "E não se trata de maioria numérica no Congresso, mas de representação e credibilidade diante da sociedade", diz. "Ou o governo se dispõe com humildade a rever essa coalizão, ou não vamos avançar." www.veja.com/tveja CIDADES SEM FRONTEIRAS CASA PRÓPRIA O ano de 2015 deverá ser lembrado como o início de um novo capítulo da história humana. Previsões da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam que, até dezembro, a população de crianças com menos de 5 anos será ultrapassada pela faixa com mais de 65. A mudança veio para ficar e promete transformar a relação de forças entre as gerações, que tem como ponto de tensão a aquisição de imóvel próprio. Ter ou não ter uma casa será, gradualmente, a maior cisão entre quem nasceu nas décadas de 80 e 90 (a geração do milênio) e os nascidos nos anos 40 e 50. Enquanto o primeiro grupo talvez jamais consiga adquirir um teto, o segundo já tem o seu, mas é pressionado a ajudar quem não tem e batalha para conquistá-lo. www.veja.com/cidadessemfronteiras VEJA MEUS LIVROS FEIRA DE BOLONHA Acontece em Bolonha, na Itália, entre 30 de março e 2 de abril, a Feira Internacional do Livro Infantil e Juvenil, que neste ano terá a presença de 23 editoras brasileiras. Juntas, pelas estimativas da Câmara Brasileira do Livro (CBL), essas editoras devem fazer negócios de 120.000 dólares, além de fechar outros no valor de 280.000 dólares nos meses seguintes. Organizada há cinquenta anos, a feira é considerada o maior evento mundial voltado para esse segmento de publicações editoriais. Estatísticas mostram que adultos leem, em média, 1,3 livro por ano, enquanto jovens consomem 3,3. www.veja.com/meuslivros • Esta página é editada a partir dos textos publicados por blogueiros e colunistas de VEJA.com _______________________________________ 2# PANORAMA 1.4.15 2#1 IMAGEM DA SEMANA- O PECADO DE NARCISO 2#2 DATAS 2#3 CONVERSA COM MARCO MOREIRA – RECEITA PARA AGRADAR AO FREGUÊS 2#4 NÚMEROS 2#5 SOBEDESCE 2#6 RADAR 2#7 VEJA ESSA 2#1 IMAGEM DA SEMANA- O PECADO DE NARCISO A tentativa de vender um desertor por herói mostra que Obama governa para si. • Na política, a vaidade de governar em benefício da própria imagem frequentemente suplanta a humildade de fazer o que é melhor para o povo. O presidente americano Barack Obama cometeu esse pecado em maio de 2014 quando — sem sequer consultar o Congresso — trocou cinco chefões do Talibã, a milícia fundamentalista afegã, por um soldado que havia cinco anos era mantido refém pelo grupo. Obama anunciou a libertação ao lado dos pais do militar, numa cena calculada para arrancar lágrimas de emoção. Acontece que o filho que voltava à casa não era nenhum herói. O sargento Bowe Bergdahl era um desertor. Ele abandonou seu posto na província de Paktika, no Afeganistão, em junho de 2009, e, ao fazê-lo, pôs os companheiros em perigo. Seis deles morreram em missões infrutíferas para resgatá-lo. Tudo isso era sabido quando Obama tentou mostrar-se como o comandante em chefe que não deixa ninguém para trás. Mas a Casa Branca esquivou-se de todas as evidências e até colocou Susan Rice, assessora de Segurança Nacional, para dizer que Bergdahl havia servido com "honra e distinção". Foi desmentida imediatamente pelo depoimento de membros do batalhão de Bergdahl e, na semana passada, oficialmente pelo Exército, que anunciou que ele responderá à Justiça Militar pelos crimes de deserção e má conduta diante do inimigo, cuja pena máxima é a prisão perpétua. Obama talvez considere a traição contra amigos nada muito grave, pois foi exatamente o que seu governo fez, também na semana passada, ao divulgar um relatório confidencial dos anos 80 sobre o programa nuclear de Israel, um aliado histórico dos Estados Unidos. Ficou parecendo uma resposta birrenta à vitória de seu desafeto Benjamin Netanyahu nas eleições israelenses, há duas semanas. Ah, a vaidade... DIOGO SCHELP 2#2 DATAS MORRERAM Cláudio Marzo, ator paulistano que interpretou papel de galã em diversas novelas nas décadas de 60 e 70. Aos 25 anos, após participar de algumas produções nas extintas TVs Paulista e Tupi e passar pelo Teatro Oficina, mudou-se para o Rio, onde integrou o primeiro grupo de atores contratados pela Globo. Sua estreia na nova casa foi em A Moreninha, de 1965, ano em que a emissora entrou no ar. Com Regina Duarte, fez par romântico em quatro telenovelas de grande repercussão: Véu de Noiva (1969), Irmãos Coragem (1970), Minha Doce Namorada (1971) e Carinhoso (1973). Marzo trabalhou também na extinta TV Manchete e atuou em mais de trinta longas-metragens, com destaque para Nunca Fomos Tão Felizes (1984), de Murilo Salles, e O Homem Nu (1997), de Hugo Carvana. Seu último papel foi na Rede Globo, na série Guerra e Paz, de 2009. Fumante desde a adolescência, Marzo vinha tratando um quadro de enfisema, que se agravou por causa de uma pneumonia. Dia 22, aos 74 anos, no Rio. Jorge Loredo, humorista carioca consagrado pela criação e interpretação de Zé Bonitinho, um galanteador extraordinariamente feio. O personagem apareceu pela primeira vez em 1960 no programa Noites Cariocas — dirigido por Chico Anysio e exibido pela TV Rio —, com o nome de O Bárbaro. Posteriormente, Loredo decidiu rebatizá-lo em homenagem a um cozinheiro que, por não ser nada atraente, recebera dos amigos o irónico apelido de Zé Bonitinho. "O chato não é ser bonito, o chato é ser gostoso" é o seu mais conhecido bordão. Zé Bonitinho fez sua última aparição em 2012, no programa A Praça É Nossa. Loredo atuou ainda no cinema. Dia 26, aos 89 anos, de falência de múltiplos órgãos, no Rio. Daniel Barbará, publicitário e um dos principais profissionais de mídia do país. Nascido no Rio de Janeiro, ingressou na publicidade na década de 60. Passou por agências como McCann-Erickson e DPZ. Presidiu o Instituto Verificador de Circulação (IVC) e a Companhia Brasileira de Multimídia, que editava a Gazeta Mercantil e o Jornal do Brasil. Em 2000, representou o país no júri do Media Lions, no Festival de Cannes. Dia 26, aos 68 anos, de complicações de um transplante de fígado, em Fortaleza. Lee Kuan Yew, considerado fundador da Singapura moderna, que governou, de forma autoritária, por 31 anos (1959-1990). No cargo de premiê, assumido depois que seu país se tornou independente da Grã-Bretanha, Lee conseguiu a proeza de transformar o pequeno entreposto asiático numa das nações mais ricas e menos corruptas do mundo. Os avanços económicos, no entanto, contrastavam com uma política centralizadora e opressiva. Dia 22, aos 91 anos, de complicações de uma pneunomia, em Singapura. Herberto Helder, um dos maiores poetas da literatura portuguesa das últimas décadas. Nascido em Funchal, na Ilha da Madeira, chegou a ingressar nas faculdades de direito e filologia, mas não concluiu nenhum dos cursos. Trabalhou como meteorologista, publicitário, editor e correspondente de guerra (em Angola) — nada, porém, ocupou sua atenção como a poesia. Foram cerca de trinta livros nesse género — sua produção ficcional é curtíssima —, no qual estreou em 1958 com O Amor em Visita. Recluso, avesso a badalações, escreveu em A Morte sem Mestre (2014) que gostaria de "encerrar-me todo num poema". Dia 23, aos 84 anos, de causas não reveladas, em Cascais. 2#3 CONVERSA COM MARCO MOREIRA – RECEITA PARA AGRADAR AO FREGUÊS Ele é o brasileiro que tem mais restaurantes de luxo em Nova York. Com cinco casas na Union Square, prepara-se para abrir a sexta. "Aqui, se eu ficar aumentando o preço sem um bom motivo, fecho." Ah, se no Brasil fosse assim.. Qual a melhor receita para um restaurante caro fracassar nos Estados Unidos? Eu não acredito que os clientes têm sempre razão, mas trabalho como se nunca estivessem errados. O cliente pediu vinho de 500 dólares, mal provou e não gostou? Troco num piscar de olhos. Aqui, quem não seguir essa filosofia fracassa. Criança que dá escândalo, cliente que fala alto ao celular ou fuma bem na porta do restaurante: como o senhor lida com essas situações aí? As pessoas não fazem nada disso aqui. O nova-iorquino costuma ser educado, viajado. E criança não dá escândalo porque o pai, antes de entrar no restaurante, já avisa que ela tem de se comportar. Famosos dão mais trabalho? Só algumas vezes. Henry Kissinger, ex-secretário de Estado, por exemplo, veio jantar uma noite e ninguém falava mais alto do que ele porque todos queriam ouvir o que dizia. O restaurante ficou num silêncio total. Responde às críticas de seus clientes na internet? Cerca de 80% deles fazem comentários. Leio tudo. As críticas de clientes podem ser mais importantes que as de profissionais. No Brasil, restaurantes costumam subir os preços do cardápio sem cerimônia, todo mundo reclama, mas, mesmo assim, eles continuam lotados. Ocorre o mesmo aí? Não. Se eu ficar aumentando os meus preços sem motivo, fecho. Ninguém tolera abusos. Os brasileiros teriam algo a ensinar aos americanos nesse ramo? Sim, a qualidade do serviço dos garçons, por exemplo, é superior no Brasil. Primeiro, porque os garçons brasileiros têm orgulho da profissão. Depois, porque são ágeis. Em Nova York, a atividade é só a porta de entrada para algo maior ou, então, escala para outra profissão. Logo, eles são lentos e, muitas vezes, pretensiosos. 2#4 NÚMEROS 16,5 pontos a mais, em uma escala de 0 a 1000, alcançam em média as alunas americanas na comparação com colegas do sexo masculino em testes que avaliam a capacidade de compreender e interpretar textos, segundo estudo da Universidade Brown. 15 anos é a idade em que a diferença chega ao auge nos Estados Unidos: as meninas obtêm 31 pontos de vantagem sobre os meninos nos testes de leitura. 100% dos 34 países da OCDE apresentam, em graus diferentes, a mesma superioridade feminina para ler e interpretar textos. As explicações vão de aspectos biológicos a culturais, como o fato de a leitura ser vista como atividade mais feminina do que, por exemplo, o esporte. 62 pontos de vantagem para elas foi a diferença observada na Finlândia, país que, entre os da OCDE, apontou a maior desigualdade entre os géneros. No Brasil, a distância é a : nos Estados Unidos, 31 pontos. 2#5 SOBEDESCE SOBE Zona do euro - O crescimento médio dos dezenove países que adotam a moeda atingiu o maior nível em quatro anos. Ave, Putin - Como compensação pela destruição de sua estátua de cera, em 2014, o presidente russo ganhou uma de bronze, em que aparece como um imperador romano. House of Cards - Ao aconselhar um petista a votar no ajuste fiscal "conforme a sua consciência", Lula usou a mesma frase da ardilosa Claire no episódio em que ela faz com que dois deputados traiam seu marido, o ainda mais ardiloso Frank Underwood. DESCE Viagens - Os gastos de brasileiros com viagens ao exterior desaceleraram em fevereiro para o menor nível desde fevereiro de 2011. Confiança - O índice de Confiança do Consumidor (ICC) recuou 2,9% entre fevereiro e março, atingindo o mínimo histórico pelo terceiro mês consecutivo. Land Rover - Depois de Silvinho "Land Rover", a marca sofre a má propaganda da Lava-Jato, que apreendeu carros com Paulo Roberto Costa e Nestor Cerveró. Esse último teria ganhado o seu de um lobista. 2#6 RADAR LAURO JARDIM ljardim@abril.com.br • GOVERNO A NOVA SECOM 1 Duas semanas antes de ser nomeado ministro-chefe da Secom, Edinho Silva produziu um documento interno para ser discutido numa reunião de cúpula do PT comandada por Lula. No texto, Edinho reconhecia que o partido perdera o "embate da comunicação", que o ajuste fiscal "expressa as contradições entre discurso, eleições e prática" e propugnava: "Sem oferecer munições para o nosso exército é impossível aglutinarmos forças". A NOVA SECOM 2 O que será central na ação de Edinho à frente da Secom? O texto dá pistas: "No século XXI, é impossível falar em comunicação sem ter as redes sociais como prioridade". TUDO NO PEN DRIVE Thomas Traumann deu adeus ao Palácio do Planalto na quarta-feira passada levando com ele três pen drives com anotações e memórias do dia a dia com Dilma Rousseff e do governo de modo geral. Mas não pretende publicar livro algum. PERIGO À VISTA Dilma anda encantada com Mangabeira Unger. Está impressionada com sua capacidade de formulação. Já até pediu a ele que dê aulas a outros ministros. • PT AS ASAS DE LULA As viagens de Lula pelo Brasil, seja para o Rio de Janeiro, seja para Brasília, não têm sido em voos de carreira. José Seripieri Júnior, dono da Qualicorp, colocou à disposição de Lula seu Cessna 680, um jato de dois motores capaz de transportar nove passageiros com conforto. Júnior tem sido um amigo generoso para Lula. Também foi na casa dele, em Angra dos Reis, que o ex-presidente passou o réveillon. • LAVA-JATO SOLTA... Ministros do STF têm indicado que vão decidir favoravelmente à concessão dos habeas corpus impetrados pelos advogados dos empreiteiros. O julgamento ocorre entre abril e maio. ...E PRENDE Mas os advogados temem Sérgio Moro. Acham que Moro pode decretar outras prisões, como fez recentemente com Fernando Baiano e Renato Duque. E mais: pode acelerar o julgamento da turma para julho e condená-los. POR TODOS OS LADOS Não serão só políticos, empreiteiros e funcionários de carreira a pagar pelo propinoduto da Petrobras. As empresas de auditoria que assinaram balanços da estatal são a próxima turma a entrar na roda. • CÂMARA TIME DE PESO Andres Sanchez contratou um time de peso para assessorá-lo na Câmara. O secretário parlamentar Alex Gomes, o Minduim, é réu pelo assassinato de dois torcedores da Mancha Alviverde. Gomes foi acusado de ser coautor da morte de André Lezo e Guilherme Moreira, a pauladas e golpes com um ferro, em março de 2012. Andres diz repudiar o ataque e respeitar a ação judicial, mas defende a presunção de inocência de Minduim. Já o assessor André Oliveira foi anotador do jogo do bicho no passado. • ECONOMIA É ALTA OU NÃO É? Não tem sido fácil para Joaquim Levy explicar a necessidade do ajuste fiscal sem ferir as suscetibilidades de Dilma Rousseff. Na reunião de quarta-feira passada entre Dilma, Levy e os nove governadores do Nordeste, novamente o passado de erros da política econômica do primeiro mandato assombrou a fala do ministro da Fazenda. Lá pelas tantas, Levy disse que a relação entre dívida bruta e PIB estava alta - próxima dos 70%. Dilma o interrompeu, embora não em seu tom de bronca costumeiro: "Não é alta, não, Levy". O ministro não discutiu, e nem cabia. Mais à frente, ao esbarrar no assunto novamente, porém, Levy não resistiu:"(...) relação entre dívida bruta e PIB, que não está alta...".Todos riram. Dilma inclusive. A DATA Se tudo sair como o planejado, os encrencados balancetes do terceiro e do quarto trimestres da Petrobras serão publicados no dia 13 de abril. ÀS COMPRAS Depois de comprar em fevereiro a mineira Wäls, a Ambev está negociando a aquisição de outra cervejaria artesanal. Nos EUA, a Inbev inaugurou a estratégia e já comprou três microcervejarias. • TELEVISÃO SBT 1 X IBOPE O SBT acaba de vencer uma batalha judicial contra o Ibope no STJ. Depois de uma decisão da Terceira Turma do Tribunal, o instituto terá de abrir todos os detalhes de sua metodologia de aferição da audiência das emissoras de TV. Desde 2001, o SBT briga para ter acesso ao que considera uma caixa-preta. • LIVROS DIÁRIOS INÉDITOS Renato Russo deixou uma grande quantidade de material desconhecido, que a partir de julho começará a vir a público. Nesse mesmo mês, a Companhia das Letras lança Só por Hoje e para Sempre, o primeiro dos cinco volumes que serão editados nos próximos anos com esse acervo. O livro é o diário escrito pelo cantor em 1993, durante o período em que ficou internado numa clínica carioca voltada para dependentes químicos. O texto é um relato de Renato sobre sua luta contra a dependência, tentando entender como chegou a ela e repensando sua vida a partir dessa perspectiva. "(...) Juntos não precisaremos ter medo. Você é a minha luz, eu sou sua consciência (...). Vamos ser felizes de novo", escreve Renato, numa "carta" escrita para ele mesmo. O livro detalha também, é claro, a intimidade da Legião Urbana. 2#7 VEJA ESSA EDITADO POR RINALDO GAMA “Aos 35 anos eu estava em Gladiador. Agora que tenho 50 não quero mais ser o 'gladiador'. Eu vivo na minha própria pele.” - RUSSELL CROWE, ator neozelandês, garantindo, no jornal inglês Sunday Times, que envelhecer não o incomoda - nem atrapalha sua carreira. “A coisa de que eu menos sinto falta em um casamento é ser chamada de 'a esposa'." - MADONNA, cantora e compositora americana, na L/S Magazine. “A falta da minha mãe é uma gaveta que carrego. Está vazia, e nada pode preenchê-la.” - MARIA RITA, cantora, filha de Elis Regina, em O Globo. “Se meu carma for esse, aceitarei tranquilamente.” - FLÁVIO ROBERTO DE SOUZA, afastado do cargo de juiz federal e do processo contra o ex-bilionário Eike Batista - após ser flagrado guiando o Porsche do empresário -, referindo-se, em O Estado de S. Paulo, à possibilidade de ser preso. Souza, que é budista, está sendo investigado por lavagem de dinheiro. “Irmãs, mais tarde... Olhe para isso! Elas vão devorá-lo! Irmãs!” - CRESCENZIO SEPE, cardeal italiano, dirigindo-se, em tom de brincadeira, a um grupo de freiras em clausura que assediava o papa Francisco durante a recente visita do sumo pontífice a Nápoles. “Eu acredito em vocês. Eu acredito no poder de milhões de conservadores corajosos levantando-se para reacender a promessa da América.” - TED CRUZ, senador republicano, em discurso na Universidade Liberty, na Virgínia, depois de anunciar oficialmente, na internet, sua pré-candidatura à Presidência dos Estados Unidos - saindo na frente dos outros prováveis concorrentes. “As vezes eles me chamam de Arantes; eu acho engraçado. Já rolou um 'Príncipe', mas não gosto." - JOSHUA SEIXAS ARANTES DO NASCIMENTO, filho caçula do Rei Pelé, falando, em entrevista à Folha de S.Paulo, do relacionamento com os companheiros da equipe sub-20 do Santos. Ele não quer saber da camisa 10. “Achava que política era lugar de ladrão e sacanagem. E eu acertei.” - ROMÁRIO, ex-jogador de futebol e senador (PSB-RJ), na PLACAR deste mês. “Não vamos fazer lucro com os Jogos Olímpicos.” – SIDNEY LEVY, diretor-geral do comitê organizador da Rio-2016, na Folha de S.Paulo. “Nem os gregos são preguiçosos nem os alemães são culpados pelos males da Grécia.” - ALEXIS TSIPRAS, premiê grego, em sua primeira visita oficial à Alemanha. “Está difícil achar alguma herança bendita que Dilma 1 tenha deixado para Dilma 2. - AMAURY BIER, ex-secretário executivo do Ministério da Fazenda no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, no Valor Econômico. “Se alguém tem mais responsabilidade política por isso (o petrolão) é Lula, e não Dilma.” - FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, ex-presidente da República (PSDB), na Reuters, agência britânica de notícias. EPÍGRAFE DA SEMANA A pretexto das expectativas em relação ao atual cenário brasileiro “Que a salvação do Estado seja a lei suprema.” - CÍCERO, político e escritor romano (106 a.C.-43 a.C.) ___________________________________ 3# BRASIL 1.4.15 3#1 PARA USO ELEITORAL 3#2 A ROTA DA PROPINA 3#3 O SEGUNDO ESCÂNDALO DA PETROBRAS 3#4 O SUCESSO EXPLODIU O CARTEL 3#5 HORA DE NEGOCIAR 3#6 ARTIGO – DIOGO CASTOR DE MATTOS – DÁ, SIM, PARA ACABAR COM A IMPUNIDADE 3#1 PARA USO ELEITORAL O marqueteiro e alguns ministros da presidente Dilma Rousseff tentaram obter uma cópia da lista dos correntistas brasileiros do HSBC na Suíça. O governo queria saber se havia nomes de adversários. ADRIANO CEOLIN Manter contas bancárias no exterior não é crime. Crime é possuir as contas e não declará-las à Receita Federal — o que configuraria, no mínimo, evasão de divisas. Simples assim. No Brasil, porém, nem sempre as coisas simples são tratadas como tal. A depender da vontade dos que estão no poder, de repente um rato pode virar elefante. Ou vice-versa. Desde a chegada do PT ao Palácio do Planalto, sempre que o partido está acuado por algum escândalo a receita é a mesma: criar, ainda que artificialmente, mais um escândalo, de modo a mostrar que os petistas não inventaram a corrupção. E são, na pior das hipóteses, iguais aos outros. Foi assim no mensalão e em outras tramoias de menor proporção que eclodiram nos últimos anos. E precisava ser assim também no bilionário escândalo de corrupção da Petrobras. Em setembro do ano passado, quando começavam a ruir as bases do esquema da estatal, ministros do governo souberam da existência de uma lista com o nome de milhares de brasileiros que manteriam contas bancárias no exterior. A relação incluiria adversários políticos. Era o que faltava. A matéria-prima para o novo escândalo era farta: uma lista de 106.000 clientes de 203 países que movimentaram 100 bilhões de dólares em contas do HSBC na Suíça. Ao suspeitar que por trás dessas contas poderia haver fraudes, evasão e lavagem de dinheiro, um ex-técnico de informática do banco resolveu entregar a lista a uma associação sediada em Washington que reúne um grupo restrito de jornalistas de várias partes do mundo. A ideia era que esses jornalistas pudessem investigar as suspeitas de irregularidades envolvendo a movimentação do dinheiro nas contas da Suíça e, a partir daí, publicar reportagens com o resultado da apuração. O caso ficou conhecido como SwissLeaks. Do rol de clientes, 8667 são brasileiros em cujas contas passaram 7 bilhões de dólares. Para identificar sonegadores e outros criminosos, era preciso cruzar as informações da lista com as declarações de renda dos correntistas, um trabalho extremamente difícil, já que dados fiscais são protegidos por segredo. A lista em poder dos jornalistas, pelos nomes que ela podia trazer e pelo potencial de causar estragos em biografia de adversários, virou alvo de cobiça. Primeiro, houve uma enorme pressão para que os repórteres brasileiros que integram a associação de jornalistas investigativos — e, por essa razão, tiveram acesso privilegiado à lista vazada pelo ex-funcionário do HSBC — divulgassem os dados sem nenhuma apuração. A ofensiva ocorreu no campo da internet. Como não deu certo, figuras importantes do governo passaram a agir diretamente. O ministro-chefe da Casa Civil, Aloizio Mercadante, foi um dos que se empenharam para obter uma cópia do documento. Dizendo que a presidente Dilma Rousseff estava pessoalmente interessada no assunto, o ministro procurou o jornalista Fernando Rodrigues, o primeiro a receber a relação de nomes. Na tentativa de conseguir o que queria, Mercadante propôs uma parceria entre o governo e o repórter para que este pudesse, enfim, descobrir quais contas eram legais e quais eram ilegais. Àquela altura, só mesmo a quebra do sigilo fiscal dos titulares das contas poderia fornecer essa resposta. Uma cópia da lista, porém, precisava ser repassada ao governo. Meses antes do contato com Mercadante, com o objetivo de checar alguns dados, o jornalista já havia repassado ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) uma pequena amostra da lista. A iniciativa, porém, resultou em vazamentos. Os nomes pinçados, nenhum de grande relevância política, acabaram sendo divulgados de forma irresponsável pela Receita Federal. Mercadante disse que o governo estava bastante interessado em colaborar. O ministro pôs no circuito ninguém menos que Jorge Rachid, o poderoso secretário da Receita Federal, que escalou para a tarefa o coordenador-geral de pesquisa e investigação do órgão, Gerson Schaan. O funcionário do Fisco pediu ao jornalista a íntegra dos dados vazados do HSBC, mas não foi atendido. Ainda na tentativa de conseguir a lista, o ministro José Eduardo Cardozo, da Justiça, determinou à Polícia Federal que investigasse o caso. Embora a motivação seja outra, Mercadante, Rachid e Cardozo têm razões funcionais que justificam o interesse pelo assunto. Mas nada explica o fato de o marqueteiro da presidente Dilma também ter entrado em cena. João Santana tentou obter uma cópia da lista com os jornalistas. Para quê? Como responsável pela imagem da presidente, é difícil saber. Como formulador de estratégias de comunicação, há algumas hipóteses, quase todas totalmente óbvias. Diz Santana: "Nunca tentei, por nenhum tipo de interesse ou curiosidade, ter acesso à cópia, total ou parcial, dessa lista". Nos últimos dias, sem o devido cuidado, foram divulgados nomes de políticos, artistas, jornalistas e empresários que constam na relação de correntistas. O governo também apoiou a abertura de uma CPI no Congresso para apurar o assunto. A primeira sessão foi realizada na semana passada. Foram ouvidos os jornalistas Fernando Rodrigues e Chico Otávio. O presidente da comissão, senador Paulo Rocha (PT-PA), apelou a eles para que entregassem uma cópia da lista aos parlamentares e garantiu que ela não seria usada para "vazamentos" ou qualquer outro objetivo, seja de "interesse de disputa política ou para qualquer outra disputa". Os jornalistas se negaram a fornecer o documento. O CENSOR E O TESOUREIRO No governo Dilma, o Ministério das Comunicações é comandado por um político que quer censurar a imprensa. Na semana passada, o petista Ricardo Berzoini participou de uma audiência no plenário da Câmara dos Deputados e, mais uma vez, expôs seus planos para levar adiante o projeto de regulação e controle social da mídia - o eufemismo que o partido usa para tentar controlar a imprensa. Berzoini presidiu o PT no auge do escândalo do mensalão, entre 2005 e 2010, e sempre foi um dos defensores da tese escapista de que o partido foi "perseguido" pelos veículos de comunicação, o que ajudou a deteriorar a imagem da legenda junto ao eleitorado. Ou seja, para ele, o partido que prometia ética na política enquanto criava a mais devastadora estrutura de corrupção já descoberta encontra-se desgastado com o eleitorado por causa da imprensa, e não pelas irregularidades que cometeu. Na audiência, o ministro expôs sua definição sobre liberdade de expressão: "Não tenho tolerância a ideias contra a liberdade de expressão, mas toda liberdade é combinada com outras". É disso que se trata. No governo Dilma, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência, responsável por gerir as verbas da publicidade estatal, não é mais comandada por um jornalista, um publicitário ou alguém com afinidade no setor. Na semana passada, Thomas Traumann, o ministro da área, pediu demissão, depois de revelado um documento em que ele falava das estratégias heterodoxas do governo para manipular a comunicação. Vai assumir o cargo no lugar dele o ex-deputado estadual Edinho Silva (PT), tesoureiro da campanha presidencial do ano passado. Edinho exibe em seu currículo a façanha de ter conseguido a maior arrecadação eleitoral de todos os tempos. Foram 350 milhões de reais declarados - boa parte do dinheiro oriunda das empreiteiras envolvidas no escândalo da Petrobras. O tesoureiro também é citado no ainda nebuloso episódio que envolve repasses à campanha de Dilma no ano passado. Ao procurar o BNDES em busca de um empréstimo, o engenheiro Ricardo Pessoa, dono da construtora UTC, também envolvida nas denúncias de corrupção na estatal, disse que foi instado por Luciano Coutinho, presidente do banco, a procurar Edinho Silva e fazer uma doação milionária de última hora. O empreiteiro entendeu que a doação era uma condição para ter seu pleito aprovado pela diretoria do banco. Edinho negou a ligação entre uma coisa e outra. Além do petista, o filósofo Renato Janine Ribeiro assumirá o Ministério da Educação. 3#2 A ROTA DA PROPINA Investigadores reconstituíram o trajeto percorrido pelo homem que distribuía dinheiro sujo aos políticos acusados de envolvimento no escândalo da Petrobras. ROBSON BONIN Criada pelo doleiro Alberto Youssef para agradar aos "clientes especiais" da quadrilha que desviou bilhões da Petrobras na última década, a entrega de propina em domicílio, o já imortalizado "money delivery" do petrolão, foi, durante muito tempo, um instrumento de proteção aos corruptos. Alguns dos políticos e empresários mais influentes do país recebiam o dinheiro sujo incólumes em quartos de hotéis, apartamentos e escritórios de norte a sul do país e, em certos casos, até no exterior, sem deixar rastros. Braço-direito do doleiro, Rafael Ângulo Lopez era quem comandava esse serviço. Os corruptos adoravam a sua discrição. Costumavam recepcioná-lo com festa. Até que veio a Operação Lava-Jato e mudou tudo isso. Ângulo fechou com a Justiça um acordo de delação premiada para entregar às autoridades a lista completa dos políticos que receberam as suas entregas. Agora, depois de três meses de colaboração, os depoimentos acabaram de chegar à mesa do ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal (STF), para ser homologados. O "homem das boas notícias", como era conhecido, tornou-se um pesadelo para os corruptos. Em dezembro passado, VEJA revelou parte do conteúdo que o entregador acabara de contar à Justiça em troca da redução de pena. Versão perfeita do "homem da mala", Ângulo passou a última década cruzando o país com fortunas em cédulas escondidas sob as roupas. O ex-presidente e senador Fernando Collor, o tesoureiro nacional do PT, João Vaccari Neto, governadores (Roseana Sarney), ministros do governo Dilma Rousseff (Mário Negromonte) e deputados federais (Nelson Meurer, Luiz Argolo e André Vargas) estavam na sua lista. Ângulo também cumpria missões para as empreiteiras do clube que saqueava os cofres da Petrobras. Os procuradores que interrogaram o entregador nas últimas semanas em São Paulo colheram farto material probatório para levar ao cadafalso alguns desses figurões da República. O entregador confirmou o nome dos corruptos que usavam os seus serviços. Relacionou datas, endereços e valores das entregas. Mas foi além. Valendo-se de sua memória fotográfica, reconstituiu cenas e apontou detalhes da intimidade dos poderosos que são considerados preciosos pelos procuradores para provar a etapa final do esquema de corrupção: quando o dinheiro vivo chegou ao bolso de parlamentares, ministros, empresários... Para descrever as revelações mais importantes do entregador e não deixar nenhuma dúvida sobre o destino das malas de dinheiro, os procuradores reconstituíram detalhadamente alguns dos trajetos. Ângulo narrou aos investigadores que, por determinação de Alberto Youssef, em 2012, acompanhou o executivo José Alberto Piva Campana, da Toshiba Infraestrutura, uma das prestadoras de serviço à Petrobras, em duas entregas de dinheiro ilegal na sede do PT em São Paulo. Nas duas ocasiões — a primeira vez com 200.000 reais e a segunda com 350.000 reais —, o dinheiro, acomodado em malas de viagem, deixou o escritório do doleiro em um Porsche Cayenne blindado. Ângulo dirigiu o carro da sede do escritório do doleiro até a sede do PT. Ele parou o veículo preto na porta do prédio e coube ao executivo fazer a entrega das malas abarrotadas de propina. Para conferirem credibilidade ao relato, os procuradores imprimiram um mapa da região e pediram a Ângulo que mostrasse cada esquina percorrida no dia das entregas. Além de apontar a sede do PT, o entregador descreveu a conversa travada no caminho com o executivo da Toshiba e até a situação climática no dia de cada entrega. A polícia já descobriu que, nesse mesmo ano, a Toshiba recorreu à engrenagem criminosa de Alberto Youssef para pagar 1,5 milhão de reais em propinas. Os pagamentos, segundo o doleiro, foram feitos ao tesoureiro nacional do PT, João Vaccari Neto. Depois da entrega no PT, Rafael Ângulo falou das ligações do doleiro com a Odebrecht, investigada por suspeita de usar contas no exterior para pagar propina aos corruptos do petrolão. A mando de Youssef, Ângulo contou que manteve, entre 2008 e 2012, dezenas de encontros com Alexandrino Alencar, um dos diretores da empreiteira. Registrados por Ângulo em uma planilha de computador, os contatos aconteceram na sede do grupo Odebrecht em São Paulo. Ângulo subia ao 32º piso do edifício e encontrava o diretor na sala de número 25. As conversas eram rápidas. O entregador fornecia a Alexandrino os números de contas bancárias no exterior que deveriam ser usadas para depósitos e também era chamado por ele para buscar comprovantes de depósitos já realizados em contas internacionais. Para que não restasse dúvida de que se tratava mesmo do diretor, os investigadores apresentaram a Ângulo uma fotografia de Alexandrino. Além de fazer o reconhecimento visual, o entregador apontou no seu arquivo um número de celular. Era o contato pessoal de Alexandrino, cujo perfil num aplicativo de conversas mostrava uma foto do diretor na intimidade, usando bermuda xadrez e camiseta branca. Era a partir desse número que os encontros eram marcados. O grosso do serviço, confirmou o delator, era mesmo entrega de dinheiro. Ciente da influência e do prestígio dos destinatários de suas "encomendas", Ângulo registrou em planilhas as entregas que realizou a políticos. Os arquivos identificam os pagamentos por data, apelido do beneficiário, motivo do pagamento e um curioso índexador: para facilitar a identificação dos políticos no meio de tantos pagamentos feitos a comparsas de Youssef, Ângulo acrescentava a palavra "band" — uma referência a "bandido" — ao lado do nome do político. Além desse registro, o braço-direito do doleiro escaneou todos os canhotos das passagens aéreas usadas por ele nas entregas. Assim, ele provou aos procuradores que estava, de fato, no local determinado no dia anotado na planilha de pagamentos. A riqueza de detalhes do arquivo impressionou os investigadores. Ângulo guardava até as notas fiscais de mensalidades de academia que pagou com dinheiro da Petrobras para um dos parlamentares do esquema. Foi recorrendo à planilha que os procuradores pediram a ele que identificasse os pagamentos anotados em nome de Fernando Collor. No arquivo do entregador, o ex-presidente está identificado pelas iniciais "FC". Em março do ano passado, a polícia apreendeu no escritório de Youssef comprovantes de depósitos bancários nas contas pessoais de Collor. O ex-presidente, cassado em 1992 por corrupção, nunca explicou suas relações financeiras com o grupo criminoso. Ângulo contou aos procuradores que, certo dia, foi chamado à sala de Youssef e recebeu um maço de notas que deveria ser entregue a alguém importante que aguardava num luxuoso apartamento em São Paulo. Depois de passar pelos seguranças do prédio, Ângulo foi recebido na porta do apartamento de mais de 600 metros quadrados por uma empregada que o levou até o cliente mais que ilustre. O entregador reproduziu o curto diálogo que manteve com o dono da casa. "Encomenda do Alberto Youssef para o senhor", disse Ângulo. Fernando Collor fingiu espanto: "Que encomenda?". Ângulo arrematou, deixando o pacote sobre a mesa: "O senhor sabe o que é isso!". Collor não respondeu. A polícia tem informações de que o ex-presidente embolsou, ao todo, 3 milhões de reais em propinas. 3#3 O SEGUNDO ESCÂNDALO DA PETROBRAS 80 bilhões: esse é o valor que a estatal calculou ter perdido por causa da insistência do governo em manter, por razões eleitoreiras, o subsídio à gasolina e ao diesel. MALU GASPAR Até onde a vista dos investigadores da Lava-Jato alcança, a roubalheira do petrolão sangrou a Petrobras em 10 bilhões de reais. Ainda que seja difícil recuperar todo o dinheiro, ao final do caso, espera-se, os culpados pelo esquema terão o nome revelado e serão punidos com a prisão. Outra sangria sofrida pela estatal, porém, permanece fora do campo de visão da Justiça e jamais terá seus responsáveis punidos. Ela totaliza 80 bilhões de reais e representa a soma das perdas que a estatal teve com a insistência do governo em subsidiar a gasolina e o diesel. O número é mantido trancado a sete chaves. Além da presidência da estatal, apenas um círculo restrito de técnicos das áreas de abastecimento e desempenho teve conhecimento dele. VEJA teve acesso aos cálculos apresentados pela primeira vez ao conselho de administração no fim de 2013. Na ocasião, a Petrobras tinha em mãos um plano de reajuste de preço para os combustíveis, considerado inadiável. O objetivo era reduzir a flagrante defasagem em relação aos preços praticados no mercado internacional e, com isso, diminuir o endividamento da empresa para níveis aceitáveis dali a dois anos. O aumento, segundo esse plano, deveria começar a valer a partir de 2014. Mas o temor de uma alta da inflação em ano eleitoral fez com que o governo segurasse a medida. A decisão de represar o ajuste feriu em cheio a lógica do mercado. E, mais tarde, cobrou o seu preço. Durante todo o tempo em que o petróleo esteve em alta no mundo, a estatal vendeu combustível no Brasil mais barato do que pagava no exterior. O artifício, além de conter a inflação, pretendia incentivar o consumo — mas o objetivo não foi atingido. "O governo sacrificou a companhia e seus acionistas para financiar um aumento no consumo que depois virou fumaça", avalia Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infra Estrutura (CBIE). Como mais de 50% da receita da Petrobras vem da venda de gasolina e diesel, o subsídio corroeu o caixa da estatal. Para financiar a dívida e ainda, arcar com a exploração do pré-sal e a construção de grandes refinarias, a empresa viu-se forçada a contrair mais empréstimos. Com o crescimento da dívida, a perda do selo de confiança conferido pelas agências de risco tornou-se inevitável. O problema se anunciou no fim de 2010, quando se iniciaram os prejuízos com a venda subsidiada de gasolina e diesel. Alarmada, a diretoria da companhia passou a tentar convencer o governo a autorizar o reajuste — uma medida inescapável diante do aumento do custo nas matérias-primas. Não foi esse o entendimento de quem tinha poder de decisão. Para a presidente Dilma Rousseff, o assunto era um anátema. E ela deixou isso claro ao entregar o comando da estatal a Graça Foster, em 2012. "Você pode fazer o que quiser, menos aumentar a gasolina", determinou. Ordem dada, o assunto ficou congelado até novembro de 2013, quando a direção da Petrobras reagiu. No mesmo dia em que divulgou ao mercado uma forte queda no lucro, Graça informou que a empresa havia elaborado um novo plano para o reajuste dos combustíveis. A fórmula corrigiria as defasagens de preços em etapas, considerando a variação do dólar e a cotação do petróleo. O mecanismo previa aumentos de, no mínimo, 4% e, no máximo, 8%, anunciados em intervalos de três a seis meses. No mês seguinte, numa tentativa de aliviar o caixa da empresa e enviar um sinal positivo aos investidores, o governo chegou a chancelar o primeiro reajuste. Mas bateu o pé: não haveria um segundo tão cedo. O mecanismo de aumentos a intervalos regulares nunca foi implementado. Um novo acréscimo nos preços só ocorreu depois das eleições. O que nunca veio a público é que, por insistência de diretores e conselheiros independentes, a fórmula não foi esquecida. Voltou a ser discutida na Petrobras no fim de 2013, em uma apresentação intitulada "Acompanhamento da fórmula de preço". Atualizada a cada nova reunião de conselho, ela informava qual o reajuste necessário para a companhia atingir a meta de reduzir sua dívida a 35% do patrimônio líquido, patamar considerado saudável. Hoje, com o dólar nas alturas e o preço do petróleo em baixa, a probabilidade de um equilíbrio financeiro sem os reajustes é zero. Sempre que o debate surgia, diretores da Petrobras e representantes do governo se engalfinhavam. Mas o ex-ministro Guido Mantega encerrava o assunto garantindo que ninguém deveria se preocupar, já que o dólar cairia a menos de 2,3 reais e compensaria a defasagem de preços. Em dado momento, pareceu que a previsão do ex-ministro se concretizaria: a cotação do petróleo começou a descer e os preços da Petrobras ficaram temporariamente superiores aos do mercado externo. Mas, com a explosão do dólar desde janeiro, toda a vantagem já se foi. Os 80 bilhões de reais que a Petrobras perdeu não serão recuperados. E, neste caso, não haverá culpados na cadeia. A CONTA CHEGOU O governo segurou o preço da gasolina e do diesel para conter a inflação à revelia da lógica de mercado. Custou caro à Petrobras • 80 bilhões de reais foram as perdas acumuladas com o subsídio desde o fim de 2010. • 50% é quanto a venda dos combustíveis representa da receita da estatal. • 370 bilhões de reais é o tamanho atual da dívida da empresa, que quadruplicou, principalmente, por causa do subsídio. 3#4 O SUCESSO EXPLODIU O CARTEL As empreiteiras que fraudavam licitações na Petrobras eram sete, depois nove, depois dezesseis e, por fim, 23: tanta gente querendo uma boquinha que o negócio melou. ANDRÉ PETRY No seu momento mais vibrante, o cartel das empreiteiras que fraudavam licitações da Petrobras fez um estatuto. Chamava-se "campeonato esportivo". Tinha dezenove pontos e era escrito em linguagem de cartola. O cartel era chamado de "liga", as empreiteiras eram as "equipes" e as licitações da estatal levavam o nome de "competições". As obras em disputa chamavam-se "troféus" e as planilhas que descreviam quem venceria o que eram as "tabelas". Os empresários eram os "dirigentes" e aquelas concorrências que, por alguma razão, acabavam canceladas pela Petrobras eram as "rodadas anuladas". O exercício lúdico da empreita não anula a eficácia do cartel: durante mais de uma década, um número crescente de construtoras fraudou o caráter competitivo das licitações da Petrobras e o "campeonato esportivo" só deixou de funcionar porque seu sucesso foi tão arrasador que se tornou incontrolável. As informações acima constam do acordo de leniência firmado com o Cade, órgão que zela pelas boas práticas econômicas no mercado, e duas construtoras, a Setal Engenharia e a Setal Óleo e Gás, antigas prestadoras de serviços à Petrobras, representadas por nove executivos. Para fazer o acordo, as duas Setal e seus funcionários confessaram participação no cartel, apontaram cúmplices e ofereceram provas. São anotações em tablets, bilhetes manuscritos, planilhas de obras, extratos de contas telefônicas que mostram contatos com empresas rivais, e até comprovante de reembolso de despesas de viagens para comparecer às reuniões do cartel. Com o acordo, as duas Setal podem voltar a prestar serviços ao governo e ganhar redução, ou cancelamento, da multa a que serão condenadas, mas não estão livres de processo criminal. O Cade divulgou uma parte do acordo, balizado de "histórico da conduta". Em todo o escândalo da Petrobras, talvez seja o documento de vocabulário mais estéril e anódino. Em setenta páginas, não aparecem palavras como "propina", "corrupção", "caixa dois". Mas seu conteúdo é um relato primoroso de uma prática criminosa e do impulso tremendo que ganhou com a ascensão de dois nomes à diretoria da estatal — no caso, os notórios Renato Duque, indicado para o cargo pelo PT, e Paulo Roberto Costa, que chegou lá pelas mãos do PP mas logo se democratizou a si mesmo, virando homem de todos, PMDB e PT incluídos. A narrativa permite um raro vislumbre da ossatura de um cartel: seus interesses, desconfianças, divergências, traições. O embrião surgiu em meados dos anos 90, quando as construtoras, ressabiadas pela crise da década anterior, formaram um grupo para discutir contratos com a Petrobras. Era um grupo técnico, liderado pela Abemi, que representa as empresas de engenharia e montagem industrial. Debatiam condições de pagamento, exigências de garantias, critérios para formação de preços, tudo à luz do dia. Entre uma reunião e outra, os empresários foram ganhando intimidade, trocando informações, até que alguns "se aproveitaram do contato mais próximo" e passaram a combinar uma forma de burlar as licitações da estatal. No fim dos anos 90, no início do segundo mandato do presidente Fernando Henrique, o grupo reunia sete empresas. Não tinha hierarquia, nem sempre conseguia fraudar as licitações. Em 2003, no começo do primeiro mandato do presidente Lula, o grupo ganhou mais participantes. Eram nove, no total. Estava formado o "clube das nove". O cartel criou uma certa hierarquia, sob o comando das maiores empreiteiras, mas ainda tinha sucesso limitado. Por volta de 2004, as coisas mudaram. O "clube das nove" aproximou-se de Renato Duque, diretor de Serviços, e Paulo Roberto Costa, diretor de Abastecimento. Foi um lance decisivo. Daí em diante, os acertos do "clube das nove" eram comunicados aos dois diretores, cuja missão era garantir que a Petrobras não convidasse empresas de fora do cartel para disputar as licitações. Era o fim da incerteza. Os acertos passaram a ser "plenamente efetivos e sem surpresas". As reuniões do cartel tornaram-se mais frequentes, às vezes mensais, no Rio ou em São Paulo, na sede da Queiroz Galvão ou na da UTC. Com resultados seguros, as desconfianças e traições se multiplicaram. As empresas escaladas só para fazer número numa licitação eram informadas apenas sobre os termos da "proposta" que elas próprias deveriam apresentar, e ficavam sem saber nada sobre a proposta da empresa escolhida pelo cartel para ser a vencedora. Elas recebiam os termos na última hora, em envelope lacrado, entregue por motoboy. A futura vencedora não revelava o preço que ofereceria por temer que as outras pudessem usar a informação e "furar o cartel". Numa ocasião, a Galvão Engenharia traiu a turma e ganhou duas licitações "por fora". Nas reuniões, havia reclamações de que algumas construtoras, sobretudo a Andrade Gutierrez, andavam fazendo "reuniões paralelas". Mas nem tudo era divergência. Havia, também, a proverbial solidariedade no crime. As empresas impedidas de participar de licitações, por falhas no cadastro junto à Petrobras, às vezes eram absorvidas pelo consórcio vencedor. Quando ocorria disputa interna por uma obra, resolvia-se no voto. Numa licitação na refinaria Vale do Paraíba, em São José dos Campos, a Setal Óleo e Gás e a Odebrecht queriam o mesmo pacote. Deu-se a votação. A Odebrecht levou 6 votos, contra 3 da Setal. Quando a Petrobras passou a convidar outras empresas para as licitações, o "clube das nove" entrou em alerta e começou a cortejar as novas concorrentes. Aos poucos, essas empresas foram entrando para o cartel, até que, em 2007, estava formado o "clube das dezesseis". A essa altura, já no segundo mandato de Lula, o cartel funcionava como um empreendimento de sucesso: tinha hierarquia, reuniões mais ou menos regulares, às vezes quinzenais, com vários participantes e planilhas descritivas das preferências de cada empresa. Entre 2008 e 2009, com a licitação de grandes obras, como o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro, a Petrobras voltou a ampliar a lista de convidadas. O cartel, dessa vez, passou a costurar acordos com as novas empresas — sete, ao todo —, mas sem integrá-las ao grupo. Eram as "esporádicas". Foi nessa época, para dar agilidade a uma estrutura que não parava de crescer, que se elaborou o estatuto do "campeonato esportivo". As empresas dividiam obras milionárias, formavam consórcios para partilhar lucros e tinham sua lista de prioridades. Tudo corria às mil maravilhas. Acostumado ao sucesso, o cartel começou a ficar abusado. Relaxou os mecanismos de controle. Antes, os executivos tomavam cuidado para não se comunicar por telefone ou e-mail, para não deixar rastro do cartel. Mas agora até as secretárias dos empresários se telefonavam para saber hora e local da reunião seguinte. Os próprios executivos passaram a mandar seus funcionários às reuniões. Em alguns casos, despachavam o chamado "escalão operacional", composto de funcionários de alto gabarito, mas sem poder de decisão. As construtoras, que eram identificadas por números nas planilhas do cartel, voltaram a aparecer com seu nome, displicentemente. Nada disso, porém, pôs o conluio em perigo. As dificuldades graves só começaram a aparecer entre 2011 e 2012, no início do primeiro mandato de Dilma. As reuniões congregavam muitos participantes e os conflitos por obras passaram a aumentar enquanto o volume de licitações da Petrobras diminuía. O golpe final, no entanto, aconteceu com a saída de Renato Duque e Paulo Roberto Costa. Os acertos, cada vez mais complicados, perderam a antiga eficácia. Sem Duque e Costa, o "clube das dezesseis" e suas sete "esporádicas" já não tinham garantias de que os acordos selados nas reuniões seriam atendidos, e o cartel começou a se desintegrar. As dezesseis empresas do grupo, mais as sete que gravitavam em torno dele, desvincularam- se. Os signatários do acordo de leniência com o Cade informaram o nome das empresas que jamais foram do cartel. São quinze: Niplan, Egesa, Sinopec, Usimec, Tenace, Potencial, Enesa, Confab, Encalso, Technip, Contreras, MCE, TKK, Serveng e Toyo. A elas, os agradecimentos dos contribuintes. O EMBRIÃO - No fim da década de 90, depois de reuniões técnicas com a Petrobras, sete empresas formam um grupo informal para burlar as licitações da estatal.: TECHINT, SETAL, UTC ENGENHARIA, TENENGE, IESA, GRUPO MPE, MENDES JÚNIOR. O CLUBE DAS NOVE - Em 2003, já havia nove empresas no cartel, que logo ganhou um esplêndido vigor com a ascensão de Renato Duque e Paulo Roberto Costa como diretores da Petrobras.: TECHINT, SETAL, UTC ENGENHARIA, GRUPO MPE, MENDES JÚNIOR, ODEBRECHT; CAMARGO CORRÊA, PROMON, ANDRADE GUTIERREZ. O CLUBE DAS DEZESSEIS - A partir de 2005, outras empresas começaram a se integrar ao cartel, chegando a um total de dezesseis, com outras sete participando dos acertos esporadicamente.: TECHINT, SETAL, UTC ENGENHARIA, GRUPO MPE, MENDES JÚNIOR, ODEBRECHT; CAMARGO CORRÊA, PROMON, ANDRADE GUTIERREZ, GRUPO ENGEVIX, QUEIROZ GALVÃO, SKANSKA, IESA, GALVÃO, GDK, OAS. As sete esporádicas: JARAGUÁ, TOMÉ; SCHHIN, CARIOCA ENGENHARIA, FIDENS, CONSTRUCAP, ALUMINI. 3#5 HORA DE NEGOCIAR Priorizando interesses regionais legítimos, mas contrariando a proposta de ajuste fiscal do governo, deputados aprovam projeto que beneficia estados e municípios. DANIEL PEREIRA Desde o início de seu segundo mandato, a presidente Dilma Rousseff desmente com frequência a candidata Dilma Rousseff, o que tem provocado desgastes para a mandatária. Reempossada em janeiro, ela propôs aumento de tributos, reajuste de tarifas e redução de direitos trabalhistas, exatamente o contrário do que prometera na última eleição. A reação foi imediata. A oposição acusou-a de estelionato eleitoral, enquanto uma pesquisa do Datafolha mostrou que apenas 13% dos brasileiros aprovam o governo, índice comparável ao registrado às vésperas da cassação do mandato do então presidente Fernando Collor de Mello, em 1992. Dilma sabia que essas medidas afetariam sua popularidade e desagradariam ao seu partido, o PT. Apesar disso, adotou-as ao ser convencida pelo ministro da Fazenda, Joaquim Levy, de que só com um ajuste fiscal vigoroso o governo será capaz de reorganizar as contas públicas, restaurar a credibilidade entre os investidores e recolocar a economia nos trilhos. A lógica do ministro é simples: se quiser deter o desemprego, a inflação e a recessão e colher um período de bonança antes da eleição de 2018, Dilma terá de arrumar a casa imediatamente, mesmo que à custa de remédios amargos. Na semana passada, a presidente deu mais uma demonstração de fidelidade à cartilha de Levy, de quem, segundo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, se tornou "refém". Contrariando um compromisso assumido durante a campanha presidencial de 2014, ela afirmou que o governo não tem condições de tirar do papel a renegociação das dívidas dos estados e municípios com a União. Prometida antes mesmo da disputa do primeiro turno, a renegociação, aprovada pelo Congresso, consta de uma lei sancionada por Dilma em novembro do ano passado. "O governo federal não pode dizer a vocês, o que seria absolutamente inconsequente da nossa parte, que temos espaço fiscal para resolver esse problema", declarou a presidente, desautorizando a candidata pela enésima vez. Acordada com PT, PMDB e outros partidos aliados, a renegociação tem como potenciais beneficiários o prefeito de São Paulo, o petista Fernando Haddad, e o do Rio de Janeiro, o peemedebista Eduardo Paes. Estima-se que a dívida paulistana cairá de 62 bilhões para 36 bilhões de reais com a repactuação. O PT conta com esse refresco orçamentado para garantir a reeleição de Haddad. O problema, como lembrou Levy, é que a renegociação, se realizada nos termos previstos em lei, tirará 3 bilhões de reais por ano dos cofres da União, o que inviabilizaria o ajuste fiscal. Essas cifras sensibilizaram a presidente. Foram elas também que levaram o Congresso a reagir de pronto. Deputados e senadores representam suas bases locais. Eles costumam repetir que mandatos são conquistados na ponta, nos municípios, e não nos gabinetes de Brasília. Por isso, foram à luta. Horas depois de Dilma se manifestar sobre o tema, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e o do Senado, Renan Calheiros, ambos do PMDB, costuraram um projeto que dá ao governo trinta dias para renegociar as dívidas de estados e municípios. O texto foi aprovado pelos deputados e seria analisado pelos senadores na semana passada, mas Renan deu uns dias de prazo para Levy apresentar uma proposta que contemple os interesses da equipe econômica e também os de governadores e prefeitos. Renan alega que o governo já jogou parte do custo do ajuste fiscal nas costas dos trabalhadores e dos contribuintes. Agora, quer empurrar outra fatura para estados e municípios. Segundo o senador, a União também tem de contribuir com o esforço diminuindo as despesas. Não pode simplesmente terceirizar o problema. O senador sugeriu publicamente que a presidente reduza à metade o número de ministérios e faça um corte drástico nos cargos comissionados. Nos bastidores, no entanto, o PMDB reivindicou mais um ministério de ponta, de preferência o da Integração Nacional, a acomodação do ex-deputado Henrique Alves na Pasta do Turismo, além de postos estratégicos em estatais. "A renegociação já estava precificada no mercado desde novembro, quando a presidente sancionou a lei. Ao recuar, ela criou um problema desnecessário", afirmou Eduardo Cunha. Se a proposta apresentada por Levy não agradar aos parlamentares, eles aprovarão o projeto que obriga o governo a tirar a renegociação do papel em trinta dias. Se Dilma vetar esse texto, as excelências prometem derrubar o veto. "A palavra final será do Congresso", desafiou Renan Calheiros, cujo filho governa Alagoas e será beneficiado pela medida. Os parlamentares dizem que, caso o governo não ceda, dificultarão outros pontos do plano de reorganização das contas públicas. A retaliação pode ser consumada, por exemplo, com a aprovação da emenda que estende às aposentadorias o índice de reajuste do salário mínimo. Dilma tem mandado os integrantes da equipe econômica debater o ajuste fiscal no Congresso. Na semana passada, pediu o apoio dos governadores do Nordeste ao pacote. São sinais estimulantes do funcionamento das instituições. A presidente se vê obrigada a negociar projetos com o Legislativo. Exercidas e delimitadas as prerrogativas originais de cada poder, presta-se, acima de qualquer coisa, um serviço ao país. 3#6 ARTIGO – DIOGO CASTOR DE MATTOS – DÁ, SIM, PARA ACABAR COM A IMPUNIDADE Recentemente, o governo federal lançou o denominado "pacote anticorrupção". Trata-se de um conjunto de medidas que objetiva dar uma resposta imediata às vozes das ruas e, entre outras coisas, prever o crime de caixa dois e de enriquecimento ilícito de servidores públicos, regular a lei anticorrupção, estabelecer a ficha limpa para servidores comissionados e instituir a ação de extinção de domínio. Fora isso, há ainda um projeto de criar um grupo de trabalho para discutir a agilização de processos. Entre as iniciativas, merece aplausos a que exige a ficha limpa para servidores comissionados, sendo certo que alguns estados já adotam essa estratégia com êxito. Quase concomitantemente, o Ministério Público Federal apresentou um pacote com vinte anteprojetos de lei, aglutinados em dez medidas, contra a corrupção. Entre elas, além de medidas coincidentes com aquelas do Executivo, destacam-se a vinculação de parte da verba publicitária para campanhas contra a corrupção, a proteção do cidadão que reporta a corrupção, o aumento das penas e a transformação da corrupção de altos valores em crime hediondo, a agilização do sistema recursal, a adequação do sistema de prescrições para evitar a impunidade injustificada, a aceleração de ações de improbidade administrativa, ajustes nas nulidades penais para evitar a anulação de grandes casos por falhas de menor importância, a responsabilização objetiva dos partidos, a criminalização da lavagem eleitoral, a prisão preventiva para a recuperação do dinheiro desviado e a recuperação rápida e eficaz na vantagem obtida pelo crime. Na parte das propostas do Ministério Público, observa-se que elas têm três eixos: mudar a cultura de corrupção; aumentar penas e acabar com brechas da lei que favorecem a impunidade, a fim de que a corrupção seja considerada um crime de alto risco; e a recuperação rápida e eficaz do dinheiro público subtraído pelo crime de corrupção. Esses objetivos seguem diretrizes internacionais com que o país se comprometeu em tratados. Muitas dessas propostas já se encontram tramitando no Congresso Nacional há anos. A título de exemplo, citem-se as propostas de incluir a corrupção no rol de crimes hediondos, em relação a que há propostas desde 1992, de criminalizar o caixa dois eleitoral e também o enriquecimento ilícito de servidores públicos. O fato é que até o presente momento não houve vontade política suficiente para atacar os dois grandes males da corrupção: penas risíveis e a impunidade gerada pelo modelo do processo penal brasileiro, que é moroso e ineficaz. O ponto de convergência entre o Poder Executivo e o Ministério Público é que não é mais possível que o sistema atual continue como está. Modificações são imprescindíveis. E o que nos conduziu ao reconhecimento da necessidade imperiosa de mudanças? Um relatório do CNJ de 2013 evidencia o baixo índice de condenação em crimes contra a administração pública e a alta proporção em que esses casos são "cancelados" pelo decurso do tempo (em juridiquês, "prescrevem"). O estudo demonstra que entre 2010 e 2011 a Justiça brasileira deixou prescrever 2918 ações envolvendo crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e atos de improbidade administrativa. Nos crimes de colarinho-branco, a pena demora mais de quinze anos para ser aplicada. Normalmente é aplicada em patamar perto do mínimo legal, que pode ensejar a sua substituição por penas restritivas de direitos, ou seja, penas alternativas à prisão, como prestação de serviços à comunidade e multa. Essa pena é perdoada após ser cumprida em apenas um quarto, por meio do indulto natalino. Isso quando a demora do processo não acarreta o cancelamento do caso criminal (em juridiquês, a "prescrição"), o que é extremamente frequente, ou a sua anulação por meio do habeas corpus, que deveria ser usado apenas quando se discute a liberdade de locomoção, mas tem sido aceito para decidir todo tipo de questão — só na Lava-Jato, já houve mais de 165 habeas corpus. A situação dos processos de corrupção contra parlamentares é ainda mais grave. O Brasil é um dos países com mais autoridades com foro por prerrogativa de função do mundo e possivelmente com mais investigados. Estimativas atuais apontam cerca de 350 parlamentares federais que respondem a investigações ou ações penais no Supremo Tribunal Federal. Nesse contexto, se cada uma das Turmas levasse duas sessões para julgar cada caso (no mensalão foram realizadas 53 sessões), seriam necessárias 350 semanas para finalizar todos os processos. No estudo "Supremo em números", da FGV, concluiu-se que o tempo médio para que uma decisão em sede de liminar seja proferida pela Suprema Corte é de 44 dias, salvo em relação aos habeas corpus, que recebem provimentos liminares no tempo médio de 27 dias. No que se refere a Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs), o prazo médio para a concessão de liminares é de 158 dias. Quanto à publicação dos acórdãos, há casos que demoraram mais de dez anos para ser publicados — do início da década de 90 até meados da década de 2000. Enquanto a Suprema Corte americana julga oitenta processos por ano, a nossa julga 80.000. Diante desse quadro de sobrecarga, a demora recursal e a prescrição, a qual cancela os processos pelo decurso do tempo, encarregam-se de fulminar os casos de réus de colarinho branco, quer quando começam nas cortes superiores, quer quando lá chegam por meio de recursos. Casos emblemáticos como a ação penal contra o deputado federal Paulo Maluf caminham a passos largos para a impunidade. Processado por desvios milionários que envolvem a construção do Túnel Ayrton Senna, em São Paulo, Maluf foi acusado pelo Ministério Público em dezembro de 2006 por desvio de dinheiro público e crimes financeiros. O STF começou o processo somente em setembro de 2011, o qual ainda aguarda julgamento definitivo. Mesmo existindo estatísticas que demonstram que menos de 5% dos recursos especiais e extraordinários em matéria penal são providos, ainda prevalece o entendimento de que o réu tem o direito de aguardar o julgamento do último recurso das sobrecarregadas cortes superiores. Lamentavelmente, a PEC Peluso, que visava a alterar esse quadro e antecipar o trânsito em julgado para as causas cíveis e penais nos tribunais, conferindo um mínimo de racionalidade ao sistema recursal, foi sepultada no Senado Federal já no seu nascedouro. Para mudar essa situação, uma das propostas do pacote anticorrupção do MPF é exatamente viabilizar a execução da pena após o julgamento da primeira apelação. Assim, a repressão penal efetiva aos crimes de colarinho-branco, especialmente de corrupção, no Brasil, ainda é um desejo utópico. Existe todo um aparato institucionalizado para possibilitar a impunidade, o que dificulta ou torna quase impossível a pretensão de responsabilizar penalmente de forma efetiva esses criminosos. Há, contudo, uma esperança. A aprovação das medidas propostas pelo Ministério Público será um significativo avanço na prevenção e repressão da corrupção, podendo ter um forte impacto nos índices desse crime e levar o país a uma nova posição no cenário internacional. DIOGO CASTOR DE MATTOS é procurador da República e participa da investigação da Operação Lava-Jato. ______________________________________ 4# ECONOMIA 1.4.15 4#1 UM PRÊMIO AO AJUSTE 4#2 A SALVAÇÃO DA LAVOURA 4#3 OS INCANSÁVEIS 4#1 UM PRÊMIO AO AJUSTE Graças às correções feitas pela nova equipe econômica, o governo escapou de um vexatório rebaixamento na sua avaliação de crédito. Mas as reformas não podem parar. GIULIANO GUANDALINI Se Dilma Rousseff não fizesse uma correção de rota e insistisse na política econômica de seu primeiro mandato, o Brasil teria caído no precipício. Consultorias nacionais e estrangeiras passaram a incluir em suas análises conjunturais cenários de dificuldades para o país. Havia um risco elevado de o Brasil sofrer uma crise financeira, diziam esses relatórios, que nos comparavam com a falida Grécia. A queda de confiança foi estancada provisoriamente com a indicação de Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda. Dar o cargo a um economista francamente opositor ao receituário do PT foi o primeiro sinal de que Dilma estava disposta a desembarcar do populismo e do descontrole fiscal, mesmo traindo suas promessas de campanha. Levy tem executado a inglória missão de diminuir gastos, segurar verbas, rever projetos e, acima de tudo, contrariar interesses. A chiadeira foi geral. O programa de ajustes, entretanto, obteve na semana passada o esperado aval externo. A agência de classificação de crédito americana Standard & Poor's decidiu manter a atual nota brasileira, e não rebaixá-la, como se temia. Foi uma vitória para Levy — e uma grande notícia para o Brasil, que, pelo menos por enquanto, continuará a fazer parte do clube das economias confiáveis, donas do chamado "grau de investimento", um indicador de baixa probabilidade de calote da dívida pública. Quanto menor o risco, menor o custo do dinheiro. O país consegue obter empréstimos externos pagando juros menores. As taxas pagas pelo governo brasileiro servem também de referência para as operações de obtenção de crédito pelas empresas brasileiras no exterior. Então, se o governo é confiável, o setor privado também se beneficia com acesso a financiamento mais abundante e a um custo mais baixo. Países e empresas detentores da nota máxima, AAA, podem tomar dinheiro pagando juros baixíssimos, ao redor de 2% ao ano para uma operação com vencimento em dez anos. Para o Brasil, cuja nota na escala de classificação é BBB-, o degrau mais baixo entre os países tidos como seguros, a taxa para uma operação semelhante, feita em dólares, está próxima de 5%. Em um passado não muito remoto, antes de o país ser promovido a grau de investimento, o que ocorreu em 2008, o governo só conseguia captar recursos estrangeiros se pagasse juros superiores a 10%. É um valor semelhante ao da Grécia atualmente. A diferença não é apenas de custo. Perder o grau de investimento significa ser proscrito do portfólio de investimentos dos ricos fundos de pensão dos países ricos. Representa a diferença entre contar com um fluxo estável de recursos de longo prazo para os investimentos produtivos ou ficar à mercê do capital especulativo e volátil de curtíssimo prazo. Para chegarem à nota, revisada anualmente, as agências levam em conta o histórico financeiro do país e a estabilidade de suas instituições, além de uma série de indicadores econômicos. O método busca avaliar a capacidade de um país (ou de uma empresa) de pagar em dia a sua dívida. Mesmo com a credibilidade abalada, depois de quatro anos de uma política econômica que embotou o ânimo dos investidores, o Brasil ganha uma nova chance. Parar de fazer besteiras foi o primeiro passo. Como afirmou a analista Lisa Schineller, diretora de avaliação da Standard & Poor's, a decisão de manter a nota brasileira foi motivada pela surpresa positiva representada pelo plano de ajustes apresentado por Levy. A agência deixou claro, entretanto, que acompanhará atentamente a execução das medidas. "A presidente Dilma Rousseff enfrenta um cenário político e econômico extremamente desafiador, em meio à forte queda nos índices de aprovação de seu governo, à contração econômica e às investigações de corrupção na Petrobras", disse Schineller, em um comunicado. "Ao mesmo tempo, a sinalização oferecida pela política econômica mudou de maneira expressiva, algo que não fazia parte de nosso cenário-base. Uma ampla correção vem ocorrendo para fortalecer o compromisso fiscal e eliminar várias distorções, entre elas os preços administrados artificialmente." O inevitável arrocho nas contas públicas e a alta nos juros colocarão a economia brasileira em uma fase de retração. É o preço do ajuste. Se a correção de rumo progredir, abre-se a perspectiva de uma retomada da confiança empresarial e de aumento na atividade na segunda metade do ano. Elevar o potencial de crescimento e retomar a média de 4% ao ano, entretanto, exigirá uma nova rodada de reformas. É o que se espera do governo, tão logo seja quitada a conta dos anos de irresponsabilidade. O TERMÔMETRO DA CREDIBILIDADE As notas conferidas pelas agências de classificação de crédito medem a capacidade de um país ou de uma empresa para honrar as suas dívidas. Quanto melhor a nota, menor o risco, menores os juros pagos e maior a oferta de capital. GRAU DE INVESTIMENTO Juros: De 2% a 5%, conforme o tipo de empréstimo. Acesso a recursos: 75% do crédito disponível no mundo Praticamente sem risco de calote: AAA – Alemanha Risco de calote muito baixo: AA – EUA A – Polônia Baixo risco de calote: BBB – Espanha, México e Brasil GRAU ESPECULATIVO Juros: Mais de 5%. Acesso a recursos: Mais limitado - apenas 25% do capital disponível. Risco substancial de calote: BB – Portugal e Paraguai Elevado risco de calote: B – Equador Altíssimo risco de calote: CCC – Venezuela Est Ao preste a dar calote: CC C O Calote já foi dado: D Fonte: Standard & Poor’s 4#2 A SALVAÇÃO DA LAVOURA Apesar das invasões patrocinadas pelo MST e pela Funai, o agronegócio, que livrou o Brasil da recessão em 2014, deverá crescer neste ano 1,2%. ANA LUIZA DALTRO O agronegócio será a boia de salvação do PIB em 2015. Segundo uma projeção do Ministério da Agricultura e Pecuária, o setor deve expandir-se 1,2% neste ano. Trata-se de uma boa notícia em meio a um mar de números ruins — e, se não permite a ninguém nadar de braçada, é essencial para evitar naufrágios. Especialistas preveem uma retração de 0,8% no resultado geral da economia. A indústria, segundo revelou um estudo da Fiesp na semana passada, deve sofrer um encolhimento de 4,5%. Comparado a outros segmentos, o agrícola tem conseguido se manter praticamente imune à crise. Há duas explicações para entender de onde brota a força do agronegócio, mesmo em tempos de crise interna. A primeira é que ele foi o único setor a registrar um ganho real de produtividade, adubo essencial para o crescimento do país. Enquanto em outras áreas o aumento do custo com a mão de obra corroeu a competitividade das empresas (basicamente porque os salários subiram acima da produtividade), no agronegócio os avanços obtidos com pesquisa e tecnologia mantiveram o país em condições de disputar o mercado internacional. Nos últimos 35 anos, a área plantada de soja espraiou-se 248%, enquanto a produção subiu 506%, segundo um estudo da Conab. E aí vem a segunda explicação para a boa situação do setor: a produção brasileira é voltada para a exportação, não apenas para o mercado nacional. Por isso, é por natureza mais competitiva e sofre menos com a queda na atividade interna. Explica o secretário nacional de Política Agrícola, André Nassar: "Em vez de um país com 200 milhões de pessoas, o nosso mercado é o mundo todo, com 7 bilhões". O Brasil, atualmente, é o maior exportador de soja, açúcar, carne bovina e de frango do planeta. A situação poderia ser ainda melhor, não fosse pela retração no preço internacional das mercadorias que o Brasil exporta. Nesse particular, a valorização do dólar ajudou. Para 2015, o cenário continua promissor. Segundo André Pessoa, coordenador do Rally da Safra, projeto que mapeia todos os anos a produção de soja e milho no país, a subida do dólar beneficiou os produtores, que conseguem preços e margens melhores do que os previstos inicialmente. Diz Marcos Rubin, sócio da consultoria Agroconsult: "As projeções atuais são melhores do que eram dois meses atrás. A potencial crise decorrente da queda no preço das commodities seguramente foi postergada por ao menos mais um ano, em virtude do câmbio favorável". Por causa disso, a previsão de Nassar é que as exportações do agronegócio recuem dos 97 bilhões de dólares do ano passado para algo em torno de 93 bilhões neste ano. Mesmo assim, o saldo da balança comercial para a atividade econômica no campo brasileiro deve ficar positivo, em torno de 78,6 bilhões de dólares. Sem isso, o Brasil teria um abismo de 75 bilhões de dólares na diferença entre exportações e importações. Seria quase vinte vezes pior que o resultado negativo do ano passado, de cerca de 4 bilhões de dólares. A divulgação do PIB na sexta-feira passada demonstra a resistência dos produtores, sempre ameaçados por invasões patrocinadas pelo MST ou pela Funai, que chega a incentivar a "importação" de índios do Paraguai para atazanar os produtores do Centro-Oeste. O Brasil só não entrou em recessão por causa da agropecuária, que cresceu 1,8% no quarto trimestre de 2014, seis vezes o ritmo do setor de serviços, que costuma ter desempenho estelar mesmo nas crises. Um dos responsáveis por esse resultado foi a soja, com um terço das exportações do agronegócio, um avanço de 5,8%. O ano de 2014 entrou para a história como aquele em que o Brasil passou a fazer parte dos dez maiores produtores e exportadores mundiais de grãos e carne. Apesar de todas as dificuldades, em 2015 o campo não vai entregar a rapadura. A FORÇA DO AGRONEGÓCIO Mesmo com a crise, o campo continua a crescer 2013 PIB Agro: 5,2% PIB Brasil: 2,7% 2014 PIB Agro: 1,6% PIB Brasil: 0,1% 2015 (estimativa) PIB Agro: 1,2% PIB Brasil: -0,8% Fontes: CNA e Ministério da Agricultura 4#3 OS INCANSÁVEIS Para os criadores da Ambev, o Brasil ficou pequeno faz tempo. O trio expande a sua receita rigorosa de gestão e fecha mais uma aquisição bilionária nos Estados Unidos. BIANCA ALVARENGA A receita parece simples. Compre uma empresa tradicional, dona de marcas de consumo famosas, retire as gorduras na administração operacional do negócio e multiplique os lucros. Fácil de falar, difícil de fazer, sobretudo em um mercado globalizado e altamente competitivo. Mas é assim que um time de executivos brasileiros vem conquistando a admiração do mundo empresarial dos Estados Unidos, o país que desenvolveu como nenhum outro as técnicas de gestão. Em 2013, quando o fundo 3G, dos brasileiros Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, comprou por 23 bilhões de dólares a Heinz, empresa famosa mundialmente por seus molhos e condimentos, a palavra de ordem era eliminar ineficiências e ampliar os ganhos. E assim foi feito. Até mesmo o megainvestidor americano Warren Buffet, que entrou no negócio em parceria com os brasileiros, admitiu que não havia ninguém melhor que o 3G para executar essa tarefa. "Não fico embaraçado em admitir que a Heinz é muito mais bem administrada pelo presidente do conselho, Alex Behring, e pelo CEO, Bernardo Hees, do que se eu estivesse no comando", disse ele, em uma carta aos acionistas da empresa. "O princípio é o seguinte: se o negócio tem um potencial de ganho e se as práticas de gestão da empresa podem ser melhoradas, é possível ganhar muito dinheiro", afirma Sérgio Lazzarini, professor da escola de negócios Insper. "O Brasil está muito atrás em práticas de gestão. É por isso que o fundo 3G se destaca e é tratado como exemplo a ser seguido aqui e no exterior." Para aumentar os rendimentos, o 3G aplicou o seu conceito de "orçamento de base zero". Trata-se de uma fórmula radical para manter os custos operacionais sob controle. No início do ano, cada área deve justificar detalhadamente todos os gastos previstos. A ideia é começar do zero, sem levar em conta os resultados do período anterior. Assim, evita-se que os bons resultados passados levem a desperdícios e gastos supérfluos. Até mesmo a impressão de arquivos em cópias coloridas deve ser justificada. Os números são avaliados com rigor, e tudo o que não está de acordo com as metas é eliminado — isso incluiu, no caso da Heinz, o corte de milhares de empregos e o fechamento de cinco fábricas na América do Norte. Lemann, figura principal do 3G, também se vale de uma prática do ex-presidente da General Electric Jack Welch, que pregava um modelo de premiação, a cada ano, dos 20% melhores funcionários e a demissão dos 10% piores. Desde 2012, as ações do Burger King subiram 120%, enquanto as do McDonald's aumentaram 2,5%. Na Heinz, o choque de gestão resultou em um crescimento de 50% nas margens operacionais e deu fôlego para que o 3G pudesse se preparar para mais uma transação bilionária. Em janeiro começaram os entendimentos para uma fusão da Heinz com a Kraft, empresa de alimentos processados com 98% de seus negócios concentrados na América do Norte. O acordo foi firmado na semana passada, por cerca de 45 bilhões de dólares. A Kraft Heinz será a quinta maior empresa de alimentos do mundo e maior que a Coca-Cola nos Estados Unidos. A partir da fusão, pretende aproveitar os pontos fortes de cada marca para avançar no mercado europeu e em países emergentes. Conforme os brasileiros ganham musculatura, a concorrência se mexe para não se tornar mais uma presa no caminho do 3G. A Coca-Cola passou a usar a estratégia do "orçamento de base zero" e com a meta de poupar 3 bilhões de dólares até 2019. Os negócios do fundo 3G colocam os sócios Lemann, Telles e Sicupira na liderança de um grupo de empresários brasileiros que fizeram nome como grandes gestores no exterior. Há outros casos. O frigorífico JBS adquiriu as americanas Pilgrim's Pride e Swift, tornando-se o maior produtor mundial de carne. Conseguiu reerguer marcas tradicionais que vinham passando por dificuldades. A Gerdau, a quarta maior empresa de aço no mundo, opera dezenove usinas nos Estados Unidos. Não espere, entretanto, a criação de produtos revolucionários desse grupo de executivos. Lemann e os seus sócios são os Steve Jobs da gestação, não da inovação tecnológica. Eles têm predileção por fazer negócios com empresas de consumo. Buscam adquirir marcas líderes, mas com espaço para aprimorar os processos produtivos, principalmente por meio do famoso choque de eficiência administrativa. Também é sabida a preferência por setores em que o governo não costuma intervir, para diminuir as imprevisibilidades do negócio. Foi por esse motivo que a especulação de uma indicação de Sicupira para a presidência do conselho de administração da Petrobras foi recebida com ceticismo. Na última semana, os brasileiros do 3G foram assunto nos principais jornais de negócios do mundo por ter conseguido criar um império avaliado em pelo menos 260 bilhões de dólares, um valor superior ao PIB de países como a Irlanda e o Peru. A Petrobras também não sai do noticiário internacional, mas por motivos bem menos nobres. UM IMPÉRIO DE 260 BILHÕES DE DÓLARES Esse é o valor das empresas controladas pelo trio de investidores brasileiros, que atua em parceria com o americano Warre Buffett (valores em dólares) AB InBev A maior fabricante de cerveja do mundo Valor de mercado: 197,6 bilhões Faturamento (2014): 47 bilhões Kraft Heinz A quinta maior empresa de alimentos do mundo Valor de mercado: 48,6 bilhões Faturamento (2014): 29 bilhões Burger King e Tim Hortons A terceira maior rede de fast-food do mundo Valor de mercado: 7,7 bilhões Faturamento (2014): 4,2 bilhões Lojas Americanas A 15ª maior varejista do mundo Valor de mercado: 5,7 bilhões Faturamento (2014): 6,8 bilhões _______________________________________ 5# INTERNACIONAL 1.4.15 VAI FICAR AINDA PIOR Enquanto os EUA tentam um acordo nuclear com o Irã, a Arábia Saudita bombardeia milícias xiitas no Iêmen e reivindica o direito de ter uma bomba atômica. FELIPE CARNEIRO O Iêmen é o país mais pobre do Oriente Médio. Oito em cada dez habitantes são viciados no qat, uma planta narcótica que, mastigada, deixa as pessoas eufóricas e agressivas. Eternamente imerso em conflitos internos, o país nunca teve protagonismo fora de suas fronteiras. Na semana passada, o Iêmen passou a ser o centro dos dois principais conflitos do Oriente Médio: a rixa entre muçulmanos sunitas e xiitas e a luta contra o terrorismo. Na quarta-feira 25, uma coalizão de dez países árabes e sunitas, liderada pela Arábia Saudita, iniciou bombardeios aéreos a um aeroporto, a campos de treinamento e à sede da milícia dos hutis no país. Os rebeldes hutis são apoiados pelos aiatolás do Irã, que também seguem o ramo xiita do islamismo. "A Arábia Saudita, sunita, quer evitar a todo custo que o Iêmen caia sob um regime xiita influenciado pelo rival Irã", diz o iraniano Hossein Askari, da Universidade George Washington. Os hutis são da província de Saada, no norte, e historicamente buscaram proteger a religião e a cultura zaidistas — uma das correntes xiitas, seguida por um terço da população. Nunca foram uma ameaça real ao poder constituído do antigo presidente Ali Abdullah Saleh, que era apoiado pelos americanos e foi deposto, em 2011, durante os protestos que varreram toda a região e ficaram conhecidos como Primavera Árabe. Desde 2013, os hutis mostraram-se mais beligerantes, tomaram cidades e cercaram a capital, Sanaa. A demonstração de força estava diretamente ligada ao apoio iraniano, que treinou os milicianos e enviou ao Iêmen mísseis, baterias antiaéreas, radares, explosivos, silenciadores e munição. Nos últimos dois anos, em toda a região, os xiitas estiveram em ascensão. Na Síria, os libaneses do Hezbollah, grupo armado financiado pelo Irã, ganhavam terreno e protegiam com sucesso o ditador Bashar Assad. No Iraque, milícias apoiadas pelo Irã estão reconquistando áreas sob controle do exército terrorista Estado Islâmico (Isis). Na semana passada, os xiitas lutavam em Tikrit auxiliados por bombardeios de caças americanos. A coroação do avanço xiita estava marcada para a terça-feira 31, o prazo-limite para as negociações de seis potências, lideradas pelos Estados Unidos, sobre o programa nuclear iraniano. Embora a intenção declarada fosse a de evitar a bomba atômica de Teerã, informações de bastidores indicavam que as conversas abririam caminho para o Irã ter um arsenal nuclear, apenas atrasando-o em dez anos. A aproximação entre os Estados Unidos e o Irã irritou muita gente. "Nem os árabes nem os israelenses estão felizes com a insistência de Obama em fazer esse acordo", diz o historiador iraniano Abbas Amanat, da Universidade Yale, nos Estados Unidos. "Foi isso que levou o rei Salman, da Arábia Saudita, a assumir uma postura mais autônoma, como demonstra o bombardeio aos hutis no Iêmen." De Riad, o rei Salman, recém-empossado, mandou avisar que se acha no direito de investir em uma bomba atômica. Se o Irã tem esse direito, por que ele não teria? Por não terem interesse em aumentar as tensões com o Irã, os americanos preferiram não participar diretamente dos bombardeios no Iêmen. Sauditas e egípcios anunciaram que estudam enviar tanques e soldados. Abrem-se, assim, duas possibilidades. A primeira é de uma invasão por terra e uma guerra convencional, que poderia sufocar mais rapidamente os hutis. A outra aconteceria na ausência do envio de soldados. Sem um lado capaz de dominar o outro, o conflito se estenderia quase indefinidamente. O presidente iemenita Abd Mansur Hadi fugiu para Riad. As forças governamentais continuam lutando contra os hutis e os aliados de Saleh. No sul, um movimento separatista luta pela volta das antigas fronteiras, quando havia um Iêmen do Norte capitalista e um do Sul comunista. A Al Qaeda está mais para o centro. Ao lutar uma guerra por procuração contra a Arábia Saudita, o Irã põe os Estados Unidos em uma posição delicada — e lança mais uma carta na mesa de negociações nucleares. RETALHOS DE UM PAÍS * O Iêmen está dividido em quatro grupos armados * Hutis (xiitas) * Forças governistas * Al Qaeda (sunitas) * Movimento separatista COM REPORTAGEM DE PAULA PAULI ____________________________________________ 6# GERAL 1.4.15 6#1 AVIAÇÃO – A MENTE DE UM PILOTO SUICIDA 6#2 GENTE 6#3 SAÚDE – “CONHECIMENTO É PODER” 6#4 ESPECIAL – DA TAIPA AO TOUCHSCREEN 6#5 TECNOLOGIA – A ÉTICA DOS ROBÔS 6#1 AVIAÇÃO – A MENTE DE UM PILOTO SUICIDA A derrubada proposital de um Airbus com 150 pessoas a bordo nos Alpes franceses levanta a questão: apesar de tanta tecnologia, há sempre o dramático risco de falha humana. RAQUEL BEER E RENATA LUCCHESI A revelação de que o copiloto Andreas Lubitz deliberadamente provocou a morte de outras 149 pessoas a bordo do Airbus A320-211 da Germanwings, braço da Lufthansa, autoriza pesadelos e a dúvida: é certo confiar tantas vidas ao comandante e a seu parceiro na cabine? Sim, mas os fatores humanos são essenciais para a segurança de voo e devem merecer os mesmos cuidados dispensados às tecnologias. O transporte aéreo é a forma mais segura de locomoção à disposição do ser humano. No momento em que você lê essa frase — ou a qualquer momento do dia ou da noite —, mais de 700.000 pessoas estão viajando em aviões. Isso equivale a ter a população de uma grande cidade ao mesmo tempo no ar voando a quase 1000 quilômetros por hora, de um ponto a outro do planeta, dentro de canudos pressurizados de alumínio a que chamamos de jatos comerciais. Elas estão mais seguras lá em cima do que aqui embaixo. É cerca de vinte vezes mais provável que alguém morra em um acidente de carro indo para o aeroporto de qualquer metrópole do que depois de embarcar em um jato comercial. As pessoas, no entanto, tendem a ter muito mais medo de voar do que de andar de automóvel. É da natureza humana. Voar, mostram a mitologia grega e a lei da gravidade, é uma transgressão. Em sendo assim, deve ensejar alguma punição. São muitos os pesadelos associados a viajar de avião, mas nenhum tão apavorante quanto imaginar que o piloto possa ser inexperiente, incompetente ou estar bêbado ou drogado. Ou, simplesmente, ser doente psicológico com impulsos suicidas. Consola sempre a figura solene e tranquila de um comandante a quem a maturidade deu um ar confiável de quem já se mostrou capaz de manter a calma nas situações mais perigosas. Dá para imaginar, portanto, o pavor dos passageiros do voo 4U 9525 da Germanwings ao ver o comandante do avião esmurrando a porta da cabine e, em seguida, tentando desesperadamente arrebentá-la. O pavor durou pouco, pois em mais alguns minutos todos a bordo estariam mortos. Enquanto sobrou um flash de consciência, porém, a mente dos passageiros foi dominada pela materialização do pesadelo do piloto no comando incapaz de manter o avião no ar — ou, pior, disposto a deliberadamente derrubá-lo. No fim da semana passada, todos os dados indicavam que o A320 da Germanwings foi lançado de propósito a 700 quilômetros por hora sobre os picos gelados dos Alpes franceses pelo copiloto Andreas Lubitz, de apenas 27 anos. Segundo a procuradoria francesa encarregada da investigação, o mais provável é que Lubitz tenha aproveitado a ida do comandante, Patrick Sonderheimer, ao banheiro para trancar a cabine de comando por dentro e, então, alimentar o piloto automático com instruções para forçar a descida rápida do jato dos 38.000 pés da altitude de cruzeiro para 100 pés, provocando a tragédia. Os controladores de voo da França foram os primeiros a perceber o mergulho para a morte do A320. Seus alertas pelo rádio não obtiveram resposta. Enquanto isso, o transponder do A320 emitia automaticamente dados sobre o voo – 37.000, 30.000, 20.000, 10.000, e descendo velozmente —, até que toda a comunicação de dados com o avião cessou e ele desapareceu do radar. O destino trágico do voo 4U 9525 alimenta um conjunto de histórias de terror semelhantes. Em 31 de outubro de 1999, um Boeing 767 da companhia egípcia EgyptAir fazia a travessia de Nova York para o Cairo, capital do Egito. Foi ao chão ainda em território americano. Quem o derrubou foi o copiloto egípcio Gameel al-Batouti, que forçou o Boeing para baixo com o manche aos gritos de "Creio em Deus, creio em Deus!". O comandante Ahmed el-Habashi, também egípcio, tentou impedir o impacto realizando uma manobra oposta, mas não teve sucesso. Ainda não se sabe exatamente o que motivou Al-Batouti. Há tragédias até hoje inexplicadas, mas sobre as quais paira a desconfiança de que teriam sido causadas por suicidas. É, por exemplo, a interpretação mais aceita para esclarecer o sumiço de um Boeing 777 da companhia Malaysia Airlines em março do ano passado. A aeronave desapareceu misteriosamente no trajeto de Kuala Lumpur, na Malásia, para Pequim, na China, e não se acharam os destroços. Como o Boeing 777 não emitiu alertas, enviados automaticamente quando há problemas técnicos, desconfia-se que um dos dois pilotos na cabine intencionalmente derrubou o avião. Isso em nada melhora o pesadelo com o piloto perturbado no comando, mas um estudo da FAA, a entidade americana responsável pela aviação comercial, mostra que a derrubada intencional de um avião de carreira é um dos mais raros eventos catastróficos da aviação. De 2758 acidentes aéreos ocorridos entre 2003 e 2012, apenas oito foram deliberadamente provocados. Os suicidas eram homens entre 21 e 68 anos. Quatro deles tinham bebido e dois tomaram antidepressivos. Um deles já havia tentado suicídio anteriormente. Obviamente, todos escaparam de ser pegos nos testes e exames que poderiam apontar o perigo de entregar a eles o destino de centenas de pessoas indefesas. O alemão Andreas Lubitz não poderia estar na cadeira da direita, posição do copiloto na cabine, no A320 no dia em que se matou e levou com ele 149 pessoas. A polícia encontrou no flat de Lubitz em Düsseldorf um atestado médico que justificaria sua ausência do trabalho naquele dia. O papel estava amassado e jogado sobre a mesa. Os policiais encontraram outros tantos atestados semelhantes que, igualmente, nunca tinham sido apresentados por Lubitz a seus superiores na Germanwings. Isso pode significar que ele voou muitas outras vezes com um quadro de doença psicológica, provavelmente depressão profunda, mas, simplesmente, não teve a oportunidade de derrubar o avião, porque o comandante naqueles voos não saiu da cabine nenhuma vez. Em 2009, quando ainda fazia o curso de piloto na Lufthansa, Lubitz ficou seis meses afastado sem avisar formalmente o motivo à companhia. Seus colegas se lembraram na semana passada de que ele contou ter tido um episódio depressivo. Ao retomar e concluir o programa de trainee, porém, o piloto foi aprovado com ótimas notas em todos os testes teóricos, práticos e médicos, tanto físicos quanto psicológicos. Em 2013, recebeu a licença para pilotar, mas, por falta de vagas na Lufthansa, trabalhou onze meses como comissário de bordo. Atlético, com uma jovem namorada, um cargo bem pago e que sempre desejou, não parecia ter o perfil associado a um depressivo mórbido. Filho de uma família de classe alta, Lubitz era calmo, amável, disputava maratonas e era apaixonado pela aviação, atividade que o atraiu desde os 14 anos como frequentador do clube de voo de sua cidade natal, Montabaur. Nada disso ajuda a explicar o que, fora algum dado surpreendente em outra direção, levou Lubitz a derrubar o A320. A Germanwings poderia ter percebido algo de anormal em seu jovem profissional? Dificilmente, sem a ajuda do piloto ou alguma queixa formal de um colega, a depressão pode ser identificada. Diz o finlandês Aipo Vuorio, psiquiatra especializado em avaliar tripulantes: "Tentamos verificar se o piloto está bem, mas não conseguimos sair do superficial. Mesmo aumentando o número de consultas, nunca teremos 100% de certeza de que identificamos alguém com algum desequilíbrio potencialmente perigoso". Na semana passada, tão logo despontou o relato assustador de que o acidente do Airbus tinha sido provocado por Lubitz, muitas companhias aéreas — incluindo a Lufthansa — anunciaram a proibição da permanência de apenas um membro da tripulação na cabine. Nas próximas vezes em que o comandante for ao banheiro, sua presença deverá ser substituída pela de um piloto ou um comissário de bordo. A medida não elimina totalmente o risco, embora o diminua. Um piloto suicida decidido a derrubar o avião pode fazê-lo mesmo com o comandante ao lado, desde que escolha a hora certa para agir. Nos segundos iniciais da decolagem e nos momentos finais do pouso, o avião está muito baixo para que o comandante possa executar uma manobra corretiva que evite a insanidade de um copiloto suicida. Muito provavelmente a presença do comandante Sonderheimer na cabine teria sido suficiente para evitar que Lubitz derrubasse o A320 da Germanwings. As condições climáticas sobre os Alpes eram perfeitas para a aviação. As instruções de descida dadas pelo copiloto suicida ao sistema de pilotagem automática poderiam ser revertidas. O jato levou dez minutos entre a intervenção assassina de Lubitz nos comandos e o desfecho trágico no topo das montanhas. Quando Sonderheimer tentou voltar à cabine, o copiloto travou a porta, colocando a alavanca que comanda o mecanismo em posição que tornou impossível ao comandante abri-la por fora mesmo usando uma senha de emergência. Com base em sua experiência, certamente Sonderheimer sabia que o avião não estava caindo — estava sendo metodicamente derrubado pelo copiloto. O Airbus se deslocava velozmente para a frente, mas com o bico para baixo em um ângulo de descida muito mais agudo do que seria desejável caso estivesse em procedimento normal de descida para o aeroporto de Düsseldorf, seu destino original. O impacto no solo se deu a 700 quilômetros por hora e espalhou destroços e os corpos por uma área de 2 quilômetros quadrados. A análise da caixa-preta que registra o áudio da cabine — encontrada no mesmo dia do desastre; a outra, que grava dados de voo, não tinha sido achada até a última sexta-feira — mostrou que Lubitz permaneceu assustadoramente calmo. Não falou, e manteve a respiração tranquila, mesmo enquanto seu comandante tentava arrombar a porta ou nos segundos finais, quando ele podia ver o chão aproximando-se velozmente do bico do avião. Os passageiros já estavam em pânico, vendo pelas janelas os picos das montanhas mais altos do que o avião. Diz a psiquiatra Alexandrina Meleiro, da Comissão de Estudos e Prevenção de Suicídio da Associação Brasileira de Psiquiatria: "Os suicidas costumam ficar nervosos na fase em que estão ponderando se e como adotar a atitude extrema. Depois de tomada a decisão, eles entram em um estado de paz". Lubitz, tudo indica, estava nesse estado enquanto arrastava consigo para a morte 149 pessoas que nunca lhe fizeram mal algum — pessoas que, se o viram na entrada do avião, provavelmente sorriram para ele com um misto de simpatia e respeito. BATEU, NÃO CAIU A sequência de fatos que culminou no choque fatal do Airbus 320-211, da companhia aérea Germanwings, com os Alpes franceses. 10h (horário local) - O avião A320-211 do voo 4U 9525 decolou de Barcelona, na Espanha, com destino à cidade alemã de Düsseldorf. 10h27 - Atingiu 11.500 metros (38.000 pés), sua altitude de cruzeiro. 10h30 - "Direto IRMAR obrigado 18G." Na última mensagem da cabine captada pelos controladores de voo franceses, o copiloto confirma e agradece a orientação de seguir direito a IRMAR, ponto fixo da carta de navegação. 10h31 - O jato começou a perder altitude à razão de 1000 metros por minuto. 10h40 - Ele bateu no topo das montanhas voando a 700 quilômetros por hora, apenas 200 quilômetros por hora mais lento que na velocidade máxima de cruzeiro. LOCAL DO IMPACTO: ALPES FRANCESES TENSÃO NA CABINE 10h20 - O copiloto e o comandante conversavam normalmente 10h30 - O comandante saiu da cabine e o copiloto assumiu os controles 10h31 - O comandante tentou voltar para a cabine de comando, mas encontrou a porta trancada por dentro. Ele se identificou pelo interfone e bateu na porta. Em vão Entre 10h31 e 10h40 - O copiloto mudou a altitude de 38.000 pés para 100 pés no FMGS, o computador de bordo do Airbus que comanda o piloto automático. O avião começou a descer rapidamente. O comandante chegou a usar o código de abertura da porta em um sistema de emergência, mas o copiloto havia acionado um dispositivo que impede a abertura por esse meio. O comandante tentou arrombar a porta, chamando a atenção dos passageiros, já conscientes de que algo muito errado estava acontecendo no voo. Com o topo das montanhas se aproximando, o pânico tomou conta dos passageiros. “CUIDADORES DA ALMA” As tragédias costumam embutir outras tragédias, em sucessivas camadas de dor. Entre os 150 mortos do voo 4U 9525 da Germanwings havia dezesseis adolescentes de 15 e 16 anos de um mesmo colégio da cidade alemã de Haltern, na região da Renânia do Norte-Vestfália, de apenas 38.000 habitantes. O luto que a cobriu pode ser comparado, em drama, ao de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, depois do incêndio da boate Kiss, em 2013. A entrada da escola, a Joseph-König-Gymnasium, virou centro de peregrinação e pranto. Psicólogos e religiosos formaram um grupo de apoio a familiares, professores e colegas. Dá-se a essa equipe o nome, na elegante precisão do idioma alemão, de Notfallseelsorger, o equivalente a "cuidadores da alma para casos de emergência". Os estudantes alemães eram vistos na escola como privilegiados. Eles haviam sido sorteados, entre quarenta alunos, para um intercâmbio de uma semana em Barcelona, na Espanha, com o intuito de aprender espanhol morando em casas de família. Duas professoras acompanhavam o grupo na viagem sem volta. Uma das alunas por pouco não escapou. Ela havia esquecido seu passaporte e, evidentemente, não poderia embarcar. Mas a família que a acolheu em Barcelona percorreu os 50 quilômetros até o aeroporto para lhe entregar o documento, e ela finalmente embarcou com os companheiros de estudo e sorrisos. O desastre nos Alpes franceses matou cidadãos de dezoito países, incluindo outros adolescentes, uma criança e dois bebês, um de apenas 7 meses. PREÇO BAIXO, MAS COM SEGURANÇA Voar pagando menos significa expor-se mais ao risco de um acidente? O assunto voltou à tona logo depois da queda do Airbus da Germanwings e pôs no rol das discussões sobre as possíveis causas da tragédia as companhias low cost, ou de baixo custo, entre as quais a alemã é - ou era - uma estrela em ascensão. Há quem acredite que a combinação de um copiloto inexperiente (caso de Andreas Lubitz, que tinha apenas 28 anos e 630 horas de voo) com um avião antigo (o que bateu nos Alpes operava desde 1991 e seria aposentado no fim deste ano) só pode terminar em desastre. A teoria se baseia na ideia de que não haveria como chegar ao "milagre das passagens baratas" sem cortar custos que comprometeriam a segurança. Não é verdade. "As normas são as mesmas para todas as companhias aéreas", explica André Boff, professor de ciências aeronáuticas na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. A estratégia de baratear as passagens começou a ser testada no fim dos anos 60. A primeira companhia a ser bem-sucedida na empreitada foi a americana Southwest Airlines, até hoje uma das maiores do mundo em seu segmento. Para reduzirem em até 45% o custo de cada voo, as empresas não poupam dinheiro em pontos delicados, como a manutenção das aeronaves e o treinamento de mão de obra especializada. A economia se dá em outras frentes: a diminuição da quantidade de empregados em terra; a utilização de aeroportos secundários; a formação da frota com um único modelo; o aumento do número de viagens diárias de cada avião; e a elevação da quantidade de assentos. As companhias também zelam pela pontualidade, já que passar mais tempo no solo incorre em maiores custos. Há até as que cogitaram cobrar o uso do toalete. Diz Boff: "A redução de gastos é uma demanda de todas as empresas de aviação atualmente. Voar é uma operação cara e, com o câmbio e o preço do petróleo instáveis, é natural que elas busquem maneiras de economizar, mas isso não significa negligenciar a segurança". A Germanwings nunca havia registrado um acidente, desde sua criação, em 2002. No ano passado, a companhia alemã alcançou o terceiro lugar no ranking das melhores low cost da Europa, ficando atrás apenas da Norwegian e da easyJet. A seu favor, pesa ainda o fato de integrar o grupo Lufthansa, conhecido pela preocupação com a segurança. No ranking que mensura esse fator entre as sessenta maiores empresas aéreas do mundo, divulgado pelo Jet Airliner Crash Data Evaluation Centre (Jacdec), neste ano, a Lufthansa ocupa a 12ª posição. A Europa, aliás, é um continente bastante seguro para voar: os 28 países da União Europeia têm uma das menores taxas de acidentes fatais do planeta - 1,8 a cada milhão de voos comerciais. FERNANDA ALEGRETTI 6#2 GENTE JULIANA LINHARES. Com Daniella De Caprio e Thaís Botelho CANTA, SAPATEIA E LEVA PARA PASSEAR A atriz CAROL CASTRO não tem medo de aprender nem de ensinar. Para ser a protagonista feminina da versão brasileira de Nine, peça lançada na Broadway em 1982 e transformada em filme em 2007, ela está treinando canto e sapateado, ao mesmo tempo que se prepara para estrelar uma comédia no cinema. Quando chega em casa, começa a segunda jornada. O marido, Raphael Sander, que é modelo, sonha em virar ator. Carol conta que tem ajudado na transição. As lições incluem exercícios de preparação corporal e idas semanais ao teatro. "Também sugeri que lesse Ator e Método, de Eugênio Kusnet, que é a bíblia do teatro. Virou o livro de cabeceira dele", jura. (NEM TANTO) COMO NOSSOS PAIS Eles nasceram sob a mira das câmeras digitais, cresceram à sombra do sucesso planetário dos pais e agora começam a andar com as próprias pernas — às vezes, tropeçando aqui e ali. PRINCE JACKSON, o primogênito do cantor Michael Jackson, acaba de fazer 18 anos e, enquanto não entra na faculdade de cinema, como é seu desejo, vai sendo flagrado com uns cigarrinhos suspeitos na mão, como na semana passada, em Los Angeles. PATRICK SCHWARZENEGGER, filho de Arnold Schwarzenegger, tirou umas feriazinhas no México, longe da namorada, a cantora Miley Cyrus, e foi flagrado pelo jornal Daily Mail num encontro afetuoso com a ex. Há quatro anos, seus pais se separaram quando a mãe de Patrick descobriu que o marido tinha um caso. A mãe não perdoou. Miley, sim. MASTER, SIM. CHEF, NEM PENSAR Eminente advogada de direitos humanos, ex-conselheira de Kofi Annan nas Nações Unidas e, o mais invejado de todos os títulos, senhora GEORGE CLOONEY, AMAL CLOONEY acaba de acrescentar mais uma insígnia à sua portentosa coleção: será a mais nova professora visitante da prestigiosa Faculdade de Direito da Universidade Columbia. A libanesa radicada na Inglaterra não apenas sabe muito bem por que veio ao mundo: sabe também por que NÃO veio. Encostar a negativa barriguinha no fogão, por exemplo, nem pensar. Como deixou claro ao ganhar um livro de receitas do chef de um restaurante onde se apresentou com o meticuloso esplendor de sempre: "O quê? Você acha que eu cozinho?", perguntou. E antes que a resposta viesse: "Não cozinho. E nem espere que eu aprenda". A AURA E A ORA Aos 81 anos, o estilista da Chanel e da Fendi, KARL LAGERFELD, abastece sua aura de lenda viva da moda também fora das passarelas. Para isso, conta com o imutável figurino preto e branco, a cabeleira de peruca georgiana, o gato que trata como gente e os famosos "meninos do Karl", o séquito de modelos masculinos que o acompanha a toda parte e a quem ele presenteia com diamantes. A cantora RITA ORA, 24, nascida em Kosovo e criada em Londres, foi recentemente admitida na cota de darlings do estilista, famoso pelo estratosférico grau de exigência para com os outros e pelo equivalente em admiração por si próprio. Rita recebe convites para a primeira fila de seus desfiles e já ganhou até um vestido batizado de The Ora. O bom gosto de seus últimos figurinos certamente ajudou a encantar o alemão. 6#3 SAÚDE – “CONHECIMENTO É PODER” Ao anunciar a extração das trompas e dos ovários, depois da mastectomia radical, Angelina Jolie dá a última cartada contra a herança genética que a predispunha ao câncer. NATALIA CUMINALE “Não é fácil tomar essas decisões. Mas é possível assumir o controle e enfrentar qualquer problema de saúde. Você pode procurar aconselhamento, aprender sobre as opções e fazer as escolhas que são certas para você. Conhecimento é poder." Assim termina o depoimento da atriz Angelina Jolie publicado na semana passada no The New York Times. No relato, intitulado "Diário de uma cirurgia", Angelina revelou ter se submetido à retirada das trompas e dos ovários. A operação, conhecida no jargão médico como salpingo-ooforectomia, marca a conclusão de um processo iniciado pela atriz há dois anos. Em maio de 2013, também com direito a anúncio público em jornal, ela revelou ter passado por uma dupla mastectomia preventiva. Os procedimentos pretendem minimizar o risco de desenvolver câncer nos ovários e nas mamas. Aos 39 anos, Angelina é portadora de uma mutação no gene BRCA1. Mulheres com essa anomalia têm 85% de probabilidade de desenvolver tumores mamários e risco 60% maior de apresentar câncer no ovário. O defeito genético foi herdado pela atriz das mulheres de sua família. "Perdi minha mãe, avó e tia para o câncer", escreveu. A mãe, Marcheline Bertrand, morreu em 2007, aos 56 anos, depois de uma década de convivência com a doença. Intervenção relativamente simples, a extração das trompas e dos ovários é feita por meio de laparoscopia — de três a quatro incisões de, no máximo, 1 centímetro cada uma no abdômen. O procedimento dura, em média, meia hora e exige apenas um dia de internação. A recuperação é tranquila. A dupla mastectomia preventiva é, sem dúvida, uma cirurgia muito mais complexa. Em 2013, a operação de Angelina foi realizada em três etapas — apenas uma delas, a da extirpação das mamas, se alongou por oito horas. Suas sequelas, no entanto, são infinitamente menores. Sem os ovários, cessa a produção dos hormônios femininos, estrógeno e progesterona. Como consequência, Angelina terá de enfrentar os sintomas de uma menopausa precoce — queda na libido, falhas de memória, depressão, ganho de peso e enfraquecimento dos ossos, entre outros. "Estive planejando isso por algum tempo", revelou. A decisão não teve nada de emocional. Foi racional, calculada. "Estava me preparando física e emocionalmente, discutindo opções com médicos, pesquisando medicina alternativa e mapeando meus hormônios para a reposição de estrógeno e progesterona." Para manter o equilíbrio hormonal, Angelina começou a usar um adesivo transparente com estrógeno e um dispositivo intrauterino com progesterona. Na população geral, o câncer de ovário é pouco frequente, com um caso a cada setenta mulheres. Os tumores ovarianos evoluem lenta e silenciosamente. Em 75% dos casos, são descobertos em estágio avançado. "Nessas circunstâncias, a taxa de cura gira ao redor de 20%", diz Oren Smaletz, oncologista do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. No câncer de mama, 80% dos diagnósticos ocorrem em fases muito iniciais e a imensa maioria das pacientes (99%) se livra da doença. "A extração é o único método eficaz para evitar o câncer de ovário", diz Maria Isabel Achatz, diretora do departamento de oncogenética do A.C. Camargo Câncer Center, em São Paulo. A cirurgia reduz o risco de tumores malignos em 98%. Só não o elimina totalmente porque, em alguns poucos casos, as células cancerosas contaminam o peritônio, uma membrana que reveste a parte interna da cavidade abdominal. Quase sempre, as mulheres que ainda não são mães rechaçam a retirada de trompas e ovários, dado que ela significará um freio definitivo à maternidade. "Sinto profundamente por aquelas mulheres que passam por isso muito cedo na vida, antes que tenham seus filhos", escreveu Angelina, mãe de seis crianças — três delas biológicas, com Brad Pitt. A atriz sugere que é possível preservar os ovários e extirpar apenas as trompas de modo a garantir uma gravidez futura. Essa estratégia, no entanto, ainda está em estudo e se baseia na hipótese de que os tumores ovarianos se originam nas trompas. Não há comprovação segura dessa teoria. A incidência do câncer de ovário aumenta a partir dos 35 anos. Quem decide não operar tem de se submeter a exames semestrais — ultrassonografia transvaginal e monitoramento da proteína CA-125, cuja concentração aumenta na presença de células cancerosas. Ao contrário do rastreamento do câncer de mama, para o qual há exames capazes de detectar tumores com menos de 1 centímetro, o do câncer de ovário não dispõe de métodos considerados totalmente eficazes. "A quantidade de CA-125 pode estar aumentada em patologias benignas, como a endometriose. O ultrassom também produz resultados falso-positivos e falso-negativos", diz Glauco Baiocchi, cirurgião oncológico e diretor de ginecologia do A.C. Camargo. Estima-se que, nos Estados Unidos, apenas uma em cada sete mulheres tome a mesma decisão da atriz. De Angelina: "Sinto-me à vontade com o que virá. Não porque eu seja forte, mas porque isso faz parte da vida. Não há nada a temer". DECISÃO CORRETA Portadora de mutação no gene BRCA1, Angelina Jolie estava no grupo de risco para o desenvolvimento de tumores malignos nas mamas e nos ovários. Como forma de se proteger contra esses dois tipos de câncer, a atriz foi submetida recentemente à retirada dos ovários e das trompas e, há dois anos, a uma mastectomia radical. CÂNCER DE MAMA • 1 em cada 10 mulheres desenvolverá câncer de mama ao longo da vida. • Delas, 5% a 10% são portadoras de tumores hereditários. • Destas, 80% apresentam alterações nos genes BRCA1 ou BRCA2. • Essas mutações genéticas aumentam risco de câncer de mama em 85%. • A dupla mastectomia preventiva reduz em até 95% a probabilidade de desenvolvimento da doença. CÂNCER DE OVÁRIO • 1 em cada 70 mulheres desenvolverá câncer de ovário ao longo da vida. • 10% 1 15% das doentes são portadoras de falhas genéticas. • Essas mutações aumentam em 60% o risco de aparecimento da doença. • A cirurgia preventiva diminui em 98% a probabilidade de aparecimento de tumores malignos nos ovários, O EFEITO ANGELINA Em 2013, ao tornar pública sua decisão de se submeter à mastectomia preventiva, a atriz despertou o interesse das mulheres para os métodos de diagnóstico e prevenção do câncer • Nos Estados Unidos, o número de testes para investigar mutações no gene BRCA, associadas a tumores nas mamas e nos ovários, cresceu 40%. • Depois do primeiro artigo de Angelina, em maio de 2013, a busca na internet pelo termo BRCA dobrou nos Estados Unidos. • No Canadá, o número de mulheres encaminhadas para aconselhamento genético registrou um salto de 90%. Fontes: Glauco Baiocchi Neto, cirurgião oncológico, e Maria Isabel Achatz, médica geneticista, ambos do Hospital A. C. Camargo Câncer Center. 6#4 ESPECIAL – DA TAIPA AO TOUCHSCREEN Com a abertura de uma fábrica da FCA de 7 bilhões de reais na Zona da Mata pernambucana, brasileiros que antes trabalhavam em mangues e canaviais agora comandam máquinas de última geração. PIETER ZALIS, DE GOIANA Adriano Damázio passou quinze dos seus 29 anos catando guaiamum no mangue. Até junho de 2013, ele acordava todo dia às 3 da manhã, caminhava até o manguezal perto de sua casa — uma construção de taipa que ele mesmo ergueu em Igarassu, a 30 quilômetros do Recife — e lá trabalhava até as 4 da tarde, a lama batendo na altura do peito enquanto as mãos hábeis capturavam os famosos caranguejos azulados da região. Assim, vendendo caranguejos aos restaurantes e bares, Damázio conseguia juntar por mês os 120 reais que sustentavam a ele e à mulher, Tathiany, de 23. Transformado em operário de fábrica, Damázio coordena hoje uma equipe de oito pessoas, ganha quinze vezes mais do que antes e mora numa casa de alvenaria. Para isso, não precisou viajar quilômetros em um pau de arara como fizeram, até a década de 70, milhões de nordestinos que foram tentar a vida nas indústrias no Sudeste. Para o ex-catador de caranguejo, a mudança aconteceu na paisagem familiar dos canaviais que dominam a Zona da Mata pernambucana. Se a história de Damázio dá a impressão de seguir na contramão da crise que eleva os números do desemprego e achata os índices de qualidade de vida, o fato que deu origem a ela, pelo mesmo motivo, surpreende mais ainda. A fábrica da Jeep em que Damázio trabalha, localizada na cidade de Goiana, na Zona da Mata norte-pernambucana, é um manancial de água fresca em meio à aridez das previsões econômicas. Prestes a ser oficialmente inaugurada, ela é uma aposta de 7 bilhões de reais da FCA (Fiat Chrysler), o maior investimento no setor automotivo no Brasil na última década — a mais recente fábrica aberta no país, em outubro de 2014, foi a da BMW em Araquari, em Santa Catarina, na qual foram aplicados 600 milhões de reais; a da Land Rover, que será erguida em Itatiaia, no Rio, está orçada em 1 bilhão de reais. É claro que, quando a FCA decidiu investir no negócio, em 2010, a situação do Brasil era bem diferente da atual. O país experimentava um crescimento de 7,6% ao ano e os representantes do setor automotivo riam sozinhos: nunca se havia vendido tanto carro aqui quanto naquele ano, segundo a Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). De lá para cá, o cenário mudou. Especialistas preveem uma queda de até 10% nas vendas deste ano. Nem por isso, no entanto, a FCA adiou os planos para Goiana ou diminuiu a velocidade do investimento. "O mercado automotivo já teve altos e baixos", diz Stefan Ketter, vice-presidente mundial de manufaturas da FCA. "Trabalhamos sempre a médio e longo prazo." Projeções revelam que a persistência será premiada. Um estudo de outubro do ano passado feito pela Anfavea prevê que o mercado automotivo brasileiro, o quarto maior do mundo, dobrará de tamanho nos próximos vinte anos. E, mesmo a curto prazo, pode-se dizer que as notícias não são tão ruins assim. O primeiro carro a sair das linhas de montagem da nova fábrica, o Jeep Renegade, já tem 25.000 interessados. A fábrica da FCA será inaugurada oficialmente em abril, mas está em operação desde outubro do ano passado, com 3700 empregados. A meta é chegar a 10.000 até o início do ano que vem. Não será uma tarefa fácil. Fábricas instaladas em polos automotivos tradicionais, como Betim (MG) ou São Bernardo do Campo (SP), contam em seu entorno com farta mão de obra especializada. Já em Goiana e arredores tudo o que se tem são lavradores — a economia local depende basicamente da cana-de-açúcar. As dificuldades de transformar lavradores em metalúrgicos começam por localizar os candidatos. Diante das limitações de comunicação impostas pelo ambiente rural, a FCA teve de resgatar algumas práticas há muito em desuso nas suas 177 fábricas no mundo. Anúncios pelo rádio e carros de som que percorrem as ruas da região à cata de quem queira trabalhar foram alguns dos recursos que substituíram a seleção de currículos e as apresentações pela internet. Para receber os candidatos, a FCA pediu emprestados das prefeituras das cidades próximas de Goiana pátios de colégios e salas de postos de saúde, onde funcionários do grupo entrevistam os interessados. A partir de abril, o treinamento para os selecionados vai incluir um curso de tecnologia touchscreen — algo que, na cidade, crianças de 4 anos dominam instintivamente, mas que ainda assusta quem nunca pegou um smartphone na mão. O controle touchscreen é usado em todas as linhas de montagem da fábrica de Goiana, a mais moderna do grupo FCA em todo o mundo e a única em que, por exemplo, a programação dos robôs permite que cada linha de montagem seja capaz de produzir até quatro modelos de automóvel (em outras unidades, a produção é de um único tipo de carro por linha). No início, quase todos os 100 engenheiros da fábrica vieram do exterior — da Itália ou dos Estados Unidos. Mas a unidade começa a formar uma pequena elite de especialistas locais. Vinte alunos de cursos de engenharia em Pernambuco foram contratados depois de passar uma temporada no Instituto Politécnico de Turim. Outros dez devem seguir a mesma trilha em agosto. Três universidades já firmaram convênios para cursos ligados à área. A Universidade Federal de Pernambuco terá uma pós-graduação em engenharia automotiva; a Federal da Paraíba, em eficiência energética e logística; e a de Campina Grande, em eletroeletrônica. A FCA vai montar um escritório no Recife para unir os talentos desses três polos. "Seremos o Vale do Silício do setor automotivo", afirma o diretor de recursos humanos da fábrica, Adauto Duarte. Pode soar exagerado, mas já houve casos que chegaram perto disso. A experiência da cidade fluminense de Porto Real é um exemplo. Até o fim da década de 90, Porto Real vivia da agricultura, tinha bois pastando pelas ruas e era mais conhecida por ter sediado a primeira colônia italiana no Brasil. Em 2001, a PSA Peugeot Citroen instalou ali uma fábrica de 500 milhões de dólares, o equivalente hoje a 1,6 bilhão de reais — cerca de um quarto do dinheiro colocado pela FCA na Zona da Mata pernambucana. Catorze anos depois, já foram para lá mais de quarenta grandes empresas do setor automotivo. A arrecadação de impostos cresceu formidavelmente e permitiu enormes avanços, sobretudo na área da educação — hoje, Porto Real é o município com o maior gasto por estudante do Rio de Janeiro, 11.300 reais por aluno a cada ano. Que esse seja também o destino de Goiana. O CHEFE QUE VEIO DO MANGUE Adriano Damázio, que até 2013 trabalhava como catador de caranguejo no mangue e morava em uma casa de taipa que ele mesmo ergueu, hoje coordena uma equipe de oito operários na fábrica da Jeep em Goiana. NA FÁBRICA QUE ELE FEZ Quando Oziel Lopes de Souza, 26 anos, trabalhava na colheita da cana, a jornada ia das 5 da manhã às 5 da tarde. Ao saber que uma fábrica ia chegar à região, ele mandou para lá mais de vinte currículos. Primeiro, foi chamado para participar da construção da planta. Depois que a unidade ficou pronta, conseguiu uma vaga no setor de funilaria. Foram duas semanas de treinamento pesado: "Era muita coisa para aprender", diz. "Mas valeu a pena. ADEUS, CANAVIAL Fábio Rufino da Silva, de 24 anos, chegou a trabalhar 24 horas sem parar na colheita da cana. Sua tarefa era seguir a máquina de cortar cana e recolher os restos que ficavam pelo caminho. "Trabalhava muito e ganhava uma miséria", diz. Hoje, ele monta portas na fábrica de Goiana, tem jornada fixa, de oito horas, e um salário que já lhe permitiu comprar uma casa. "Posso até pagar creche particular para minha filha." Facão na mão, agora, só para tirar foto. O "PLANTADOR DE FÁBRICAS" Quando o engenheiro Stefan Ketter chegou ao Recife, em junho de 2013, para montar a nova fábrica do grupo Fiat Chrysler, na Zona da Mata pernambucana, o diagnóstico de colegas de trabalho e amigos era quase unânime: não tinha como dar certo. A região era cercada por canaviais, não havia uma única indústria por perto e a mão de obra disponível não podia ser menos qualificada. Vinte meses depois, o primeiro Jeep Renegade, um lançamento global do grupo, saiu pronto da linha de produção - e "com uma diferença de apenas três dias em relação ao cronograma original", como frisa Ketter, um brasileiro de 55 anos que saiu do país aos 18 para estudar engenharia na Alemanha e hoje fala português com sotaque. Vice-presidente global de manufaturas da empresa, Ketter é um "plantador de fábricas". Na última década, já ergueu e reformou plantas na China, na Sérvia e na Itália. O engenheiro não gosta de comparar os países onde trabalhou, mas afirma que o atual projeto é "o mais complexo já feito na história da companhia". Envolve tecnologias de várias partes do mundo, 200 fornecedores e a criação, do zero, de um parque industrial para fornecer materiais para a fábrica - além de algumas surpresinhas, claro. A construção de uma rodovia que ligaria a fábrica ao Porto de Suape, por exemplo, não saiu do papel. Promessa do governo pernambucano, estava incluída no PAC e seria fundamental para escoar a produção de Goiana. A obra permanece paralisada até hoje, segundo se diz, por causa de uma licença ambiental ainda não concedida. 6#5 TECNOLOGIA – A ÉTICA DOS ROBÔS As novas tecnologias, cada vez mais próximas de superar até o intelecto humano, impõem um desafio crescente: adequar a legislação e os códigos morais às inovações. FILIPE VILICI O filósofo sueco Nick Bostrom criou uma alegoria inteligente para os problemas jurídicos, éticos e morais que nascem atrelados ao surgimento de toda nova tecnologia. Em um trecho de seu livro Superintelligence (Superinteligência), lançado no ano passado, marco incontornável dos estudos de inteligência artificial, Bostrom narra a história de um grupo de pardais cansado de construir os próprios ninhos. Os pássaros têm uma ideia: capturar ovos de corujas, aves mais fortes, para criar uma força capaz de fazer o trabalho por eles. Um dos pardais intervém: "Não temos de desenvolver antes a arte de domesticar corujas?". Ao que é interrompido pelo líder do bando: "Já será difícil demais achar um ovo. Depois de a coruja crescer, pensamos nesse outro desafio". Os pardais conseguiram a coruja, e não se sabe se a história acabou bem, ou não, para eles. Na fábula de Bostrom, os humanos são os pardais, sempre estudando formas de criar máquinas, as corujas. Mas cada nova tecnologia que surge, selvagem, aparentemente indomesticável, confunde a ordem estabelecida. Como lidar com uma inovação que não existia até ontem? Disse Thomas Jefferson, o terceiro presidente dos Estados Unidos, em 1816: "Leis têm de andar de mãos dadas com o progresso. Quando nos tornamos mais desenvolvidos, descobertas são feitas, modos e opiniões se transformam, e instituições precisam avançar para se manter atuais". Legislações sempre mudaram depois da popularização de inovações. Novidades tecnológicas podem complicar a relação até hoje estável entre homens e máquinas. O advento das inteligências artificiais (IAs) promete tornar homens substituíveis não só em trabalhos braçais, mas em suas até hoje exclusivas inventividade, criatividade, intelectualidade e inteligência emocional. Mais que isso, devem originar máquinas — a exemplo de carros autônomos, drones e robôs — capazes de tomar decisões lógicas sem a necessidade de intervenção humana. Cientistas estimam que nas próximas quatro décadas deve surgir, e se espalhar, o que chamam de superinteligência (não por acaso o nome do livro que abre esta reportagem), uma tecnologia capaz de superar, por si só, todas as habilidades mentais humanas. O incontornável advento de computadores mais espertos, inventivos e independentes lança uma questão já urgente: como controlaremos e conviveremos com criaturas pensantes que, apesar de terem sido criadas por nós, poderão nos superar, replicar-se e desenhar as próprias leis e normas morais? A ficção científica ilumina esse dilema com frequência, em cenários catastróficos. O robô da imagem ao lado, cujo rosto metálico logo se transformará em ícone pop, é o mais recente personagem a serviço do embate entre homem e máquina. Trata-se de Ultron, vilão do próximo filme da franquia Vingadores, com previsão de estreia para o fim de abril. No blockbuster, Ultron é uma superinteligência criada pelo herói Homem de Ferro. Ele se volta contra a humanidade depois de concluir, ao fim de alguma reflexão e pancadaria, que a civilização seria mais próspera e pacífica sem a presença de humanos. Acha estar fazendo o bem, ancorado num objetivo nobre. O vilão de Vingadores 2 é uma boa metáfora para os riscos da IA. Pode vir também da ficção científica a resposta para controlar a tecnologia. Ainda não surgiu solução melhor do que a implementação na vida real das Três Leis da Robótica, redigidas em 1942 pelo escritor americano Isaac Asimov em um dos contos do clássico Eu, Robô. As leis, em resumo, impedem que inteligências artificiais façam mal a humanos ou, por omissão, permitam que isso ocorra. Seria razoável programar nesses moldes os robôs do futuro. À primeira vista, a discussão soa distante da realidade, mas não é tão etérea quanto se imagina. Os avanços tecnológicos sempre levantaram um desafio seminal: como fazê-los andar alinhados com regras e adequá-los às normas morais da sociedade. Disse a VEJA o advogado indiano Sajai Singh, presidente da ITechLaw, associação internacional que visa a adequar legislações às novas tecnologias: "Temos a sensação de correr uma maratona eterna. Quando conseguimos redigir leis adequadas para uma inovação, surge outra e o problema renasce". Foi assim no século XV, com a criação da prensa pelo alemão Johannes Gutenberg. A inédita possibilidade de replicar em larga escala livros, jornais e revistas permitiu que o conhecimento não mais fosse de controle de uma elite, mas sim direito de todos. Em efeito contínuo, legisladores viram-se obrigados a redigir leis capazes de proteger a propriedade intelectual, garantir a liberdade religiosa e de expressão, ou mesmo separar as informações públicas daquelas que deveriam permanecer sigilosas. Quando a humanidade começou a aprender a lidar com a novidade, surgiu, no século XVIII, a máquina de tear, ignição da primeira Revolução Industrial. As nascentes fábricas melhoraram nossa vida em todos os aspectos, mas sobrevieram novas questões, a exemplo da criação de leis trabalhistas. Hoje deparamos não com uma, mas com uma série de invenções que encurralam legisladores e filósofos (veja os quadros desta reportagem). O aumento exponencial do ritmo de desenvolvimento de inovações faz com que a maratona mencionada por Sajai Singh seja cada vez mais frenética. Tomem-se como exemplo os drones militares. Como confiar em naves dotadas de algoritmos habilitados para decidir sozinhos se é válido atacar uma base inimiga cercada de pessoas inocentes? Há também a chegada dos carros autônomos, em teste em cidades como São Francisco, nos Estados Unidos, que se guiam pelas ruas sem condutor. Como os veículos reagirão a um acidente inevitável, em uma situação na qual precisem escolher entre bater em um caminhão, e colocar em risco a vida dos passageiros, ou desviar e atropelar crianças na calçada? Indo além, quem será responsabilizado legalmente por decisões erradas? Os fabricantes ou os proprietários? Começamos a compreender que pode ser necessário adotar uma nova postura: em vez de esperar pelas tecnologias para reagir, vale tentar prever os problemas. No caso da superinteligência, a necessidade de agir por antecipação, de domar a AI antes de ela chegar, pode ser determinante. Ou corremos o risco de nos prender a um dos cenários traçados pelo filósofo Bostrom em seu livro Superintelligence: "Como o destino dos gorilas depende hoje mais de humanos do que dos próprios gorilas, o de nossa espécie pode vir a depender de ações tomadas por máquinas superinteligentes". SUPERINTELIGÊNCIA ARTIFICIAL • Década de popularização: 2050 (*estimativa) • Benefícios: ainda se restringe a teorias, mas se espera que supere e, logo, substitua a capacidade mental humana em todos os campos, inclusive na criação de tecnologias • Principal desafio jurídico: como estabelecer regras a um novo ser pensante, que provavelmente será capaz de tecer as próprias normas éticas e morais? Um caminho é adotar as Leis da Robótica, formuladas pelo escritor Isaac Asimov, pelas quais robôs não podem causar mal à humanidade nem, por omissão, permitir que isso ocorra IMPRESSORA 3D PORTÁTIL • Década de popularização: 2010 • Benefícios: diminui em 95% o custo de desenvolvimento de um produto, em cerca de 60% o gasto com mão de obra e em 10% o preço de próteses médicas. Há estudos para uso na construção civil • Principal desafio jurídico: a possibilidade de fabricar o que for em casa facilita atividades criminosas, a exemplo da impressão em 3D de armas de fogo funcionais, mesmo sem o direito ao porte CARRO SEM MOTORISTA • Década de popularização: 2020 (já em testes) • Benefícios: poderá diminuir em 90% o número de acidentes de trânsito e em 10% o gasto com combustível. Deverá aliviar o trânsito nas grandes cidades • Principal desafio jurídico: como o automóvel dispensa um motorista (a exemplo do protótipo da Mercedes), ainda se discute quem será o culpado por acidentes - o fabricante ou o dono do carro DRONES • Década de popularização: 2010 • Benefícios: versões militares poupam a vida de pilotos em guerras; além do uso recreativo, os modelos civis são testados na agricultura (substituem aviões na disseminação de pesticidas) e no segmento de entregas, a exemplo dos drones que o correio da Alemanha pretende adotar • Principal desafio jurídico: regularizar o uso civil, visto que mesmo um drone comercial do tamanho de uma caixa de pizza pode se tornar perigoso em mãos erradas COM REPORTAGEM DE JENNIFER ANN THOMAS ________________________________ 7# ARTES E ESPETÁCULOS 1.4.15 7#1 TELEVISÃO – COM MUITA RAÇA 7#2 MÚSICA – AMÁLGAMA MAUTNER 7#3 CINEMA – E PARA QUE MAIS? 7#4 CINEMA – Ãããããããhhh? 7#5 VEJA RECOMENDA 7#6 OS LIVROS MAIS VENDIDOS 7#7 ROBERTO POMPEU DE TOLEDO – PERDIDO NAS SENHAS 7#1 TELEVISÃO – COM MUITA RAÇA Séries que celebram a diversidade racial estão em alta. Mas, na saudável competição da TV americana, o que faz sua força é a audiência — não a cor da pele. MARCELO MARTHE Annalise Keating (Viola Davis) é uma advogada feroz: não perde um lance nos tribunais, nem que seja necessário recorrer à intimidação de testemunhas e jurados. Mas, corroída pela suspeita de que seu marido cometeu um crime, Annalise certo dia se despe da couraça. O resultado é uma cena forte da série How to Get Away with Murder, que estreou no Brasil há um mês, no canal Sony. Diante do espelho, a personagem cai no choro enquanto tira suas joias. Em seguida, esvai-se também o ar de mulher bem resolvida e com controle absoluto sobre os homens. Ao arrancar a peruca lisa, os cílios postiços e, por fim, a maquiagem, ela se exibe na sua forma natural: uma mulher negra de meia-idade, com a cabeça coberta por uns ralos fios de cabelo crespo. Um rasgo de mágoa completa a imagem vulnerável: "Por que há uma foto do seu pênis no celular de uma garota assassinada?", diz a advogada ao marido, um professor branco com pinta de cafajeste. Paradoxalmente, a descida ao inferno de Annalise é reveladora do poder que emana hoje de uma atriz como Viola Davis. As fragilidades da heroína tornam-se trunfos: ser negra, estar às portas dos 50 anos e não ter pudor de escancarar as rugas ou o cabelo afro está com tudo no horário nobre. Embora contabilize duas indicações ao Oscar, Viola só explodiu de fato graças à série que tem as digitais da produtora mais bem-sucedida da televisão americana atual. A gordinha e também negra Shonda Rhimes é dona de um latifúndio televisivo. Lançada em setembro do ano passado nos Estados Unidos, How to Get... veio se juntar a outros dois sucessos da sua criadora, Grey's Anatomy e Scandal, para compor um bloco arrasa-quarteirão conhecido como "Shondaland" nas noites de quinta-feira da rede ABC. Mais que mera definição de estilo, a terra de Shonda é a trincheira de um filão: as séries que celebram a chamada "diversidade". A Shondaland não é uma ilha, mas um continente em expansão: o sucesso das três séries provocou uma corrida ao ouro das minorias. A mesma ABC (que segue o padrão família de sua controladora, a Disney) lotou a programação de séries que põem diferentes matizes étnicos em realce. A sitcom Black-ish, atualmente em sua primeira temporada, extrai o riso das contradições de um clã negro de classe alta que busca se equilibrar entre o orgulho racial e a curtição sem culpa do sonho americano. Outra nova comédia, Fresh Off the Boat, explora as trombadas culturais dos imigrantes asiáticos. A família Huang se muda da capital, Washington, para a Flórida com a meta de fazer a vida tocando um restaurante tipicamente americano. Enquanto o pai se desdobra para evitar que os clientes não achem que a comida do lugar seja uma cópia made in China de iguarias locais, o filho mais velho sofre para se adaptar à escola por causa de seus olhos puxados e da merenda que horroriza os coleguinhas — noodles com shoyu. Até o maior êxito da nova safra das séries segue a cartilha da diversidade. Empire, que atraiu quase 15 milhões de espectadores toda semana para a Fox e chegou ao fim de sua temporada inicial no último dia 18, é um dramalhão familiar sobre o clã negro proprietário de uma gravadora de hip-hop. Ao descobrir que tem uma doença fatal, o patriarca Lucious Lyon (Terrence Howard), ex-traficante convertido em astro e produtor de gangsta rap, quer encontrar um sucessor entre os três filhos. No meio-tempo, a ex-mulher Cookie (Taraji P. Henson) sai da cadeia para reclamar sua parte na empresa. Ela apoia o filho do meio, que é gay — o que desperta a fúria do homofóbico Lucious. Com produção musical de Timbaland e roteiro de Lee Daniels, do filme Preciosa, Empire é arrasadora e altamente viciante. Pena que o espectador brasileiro vai demorar uma eternidade para vê-la: a série estreará só em agosto no canal Fox Life. Assim como a Annalise Keating de How to Get... ou a gestora de crises Olivia Pope, vivida por Kerry Washington em Scandal, uma mulher negra de fibra é a alma de Empire. A barraqueira Cookie Lyon resolve os problemas na raça: suas brigas com a jovem Anika (Grace Gealey), que lhe roubou o marido durante sua temporada na cadeia, provocaram êxtase no público americano. "Me diga por que eu não deveria jogar meu drinque na sua cara, sua periguete", diz Cookie, em um entre tantos diálogos edificantes. Resposta da rival: "Porque você nunca se levantaria do chão, vagabunda". O que se viu em seguida foram socos, puxões de cabelo e arranhadas — ou seja, aquele mesmo expediente que o novelão Dinastia manejava tão bem nos anos 80 e os folhetins nacionais não hesitam em resgatar sempre que a situação fica periclitante no Ibope. O uso de um recurso tão consagrado atesta: é a história, em última instância, que determina o sucesso de uma série, não importa se os protagonistas têm a pele branca, negra, amarela, parda ou azul. Shonda Rhimes, aliás, não inventou a roda: os astros negros, bem como seu modo de vida, estão em voga pelo menos desde a sitcom do comediante Bill Cosby, que dominou o horário nobre americano na década de 80. A novidade, portanto, não é propriamente o estouro de uma série como Empire, que oferece uma reciclagem brilhante — mas, reitere-se, só uma reciclagem — de um gênero com raízes estabelecidas. Faz menos sentido ainda chamar as séries da Shondaland de inovadoras. Por baixo da edição moderninha, detecta-se ali um prato requentadíssimo: o novelão meloso feito para arrancar suspiros de certa parcela do público feminino afeita a príncipes encantados. O que há de diferente é o espírito militante: não raro, as séries incorporam itens da agenda politicamente correta e os reproduzem em cacoetes (veja o quadro). Em Scandal e How to Get..., as poderosas protagonistas dispõem de equipes que formam um "painel da diversidade", expressão que Shonda, por sinal, diz odiar: ela prefere ressaltar que está só "normalizando" a dramaturgia, ao espelhar a realidade como ela é. Nessa forma colorida de proselitismo, uma minoria puxa a outra. Vide o caso de Orange Is the New Black, que traz entre suas personagens presidiárias um ator negro e transexual, Laverne Cox. Shonda e outros autores não perdem a chance de fazer patrulha diante de vozes dissonantes: o que mais os irrita são denúncias de que produtores estão recusando atores brancos para dar lugar a negros e latinos em novas séries. De um lado ou de outro dessa briga, aconselha-se acalmar os ânimos. Na saudável competição da TV americana, o que garante a sobrevivência de uma série é a audiência — e não a cor de pele dos atores. VARIAÇÕES DE TOM Os expedientes típicos das series que celebram as diferenças raciais na TV americana. Trabalho em equipe Shonda Rhimes bolou o formato-padrão: em torno da personagem central de suas séries há sempre um numeroso time de coprotagonistas. Isso garante uma galeria da diversidade étnica, como a colorida equipe da advogada Olivia Pope (Kerry Washington) em Scandal. Minoria ao quadrado Além de ilustrarem a variedade racial, essas séries não perdem a chance de fazer proselitismo com outras minorias - e o ideal é concentrar mais de uma "diferença" em um só personagem. Com seu alentado painel de minorias, Orange Is the New Black traz ainda uma presidiária que é negra e transexual. Família inclusiva O apelo universal dos núcleos familiares é usado para extrair graça e certa doçura em cima das diferenças. Apesar dos desajustes e das trombadas culturais, os chineses de Fresh Off the Boat e os negros de Black-ish são a cara da "grande família" americana. Show das poderosas Heroínas negras puxam o cordão da diversidade na TV. Mas - ainda bem – desafiam a visão boboca da correção política: a advogada Annalise Keating (Viola Davis), de How to Get Away with Murder, e a perua Cookie Lyon (Taraji P. Henson), de Empire, são mulheres fortes mas condenáveis. 7#2 MÚSICA – AMÁLGAMA MAUTNER Criador de um amalucado ebó musical, o compositor que é considerado o "avô do tropicalismo" lança uma caixa de CDs da década de 80 e já prepara um novo disco. SÉRGIO MARTINS Quem entrevista Jorge Mautner presencia de perto mutações tão radicais quanto aquelas narradas em Quero Ser Locomotiva. Na canção de 1972, o músico incorpora personagens que vão de "uma serpente d'água cheia de mágoa" a um triste vampiro, que sai às noites com sua capa sombria fazendo "vum, vum, vum". A conversa com o cantor, compositor e escritor de 74 anos centra-se, obviamente, em assuntos musicais, mas também inclui preleções sobre o nazismo e seus propagandistas e até uma curiosa especulação a respeito da influência que um filme baseado na obra de Vinícius de Moraes teria tido sobre o nascimento do presidente dos Estados Unidos. Melhor deixar Mautner contar essa: "A mãe de Barack Obama ficou fascinada com Orfeu Negro. Dois dias depois, envolveu-se com um filósofo do Quênia, que seria o pai de Obama". É esse ebó cultural que faz de Mautner uma figura ao mesmo tempo única e plástica, capaz de se moldar aos anseios de várias gerações: influenciou o tropicalismo, foi incensado pelo movimento manguebit (Chico Science & Nação Zumbi gravaram seu Maracatu Atômico) e caiu no gosto da nova geração da MPB. "Ele sempre foi um aglutinador e tem um discurso artístico muito embasado", diz Berna Ceppas, produtor que trabalhou com Mautner em Eu Não Peço Desculpa — disco em parceria com Caetano Veloso — e Revirão. Acaba de ser lançada uma caixa com quatro discos de Mautner da década de 80 (entre eles, O Poeta e o Esfomeado, registro de um show com Gilberto Gil), e ainda neste ano deve sair o primeiro disco do cantor após a perda do parceiro Nelson Jacobina, morto de câncer em 2012. "Nelson sentia muitas dores, que só aplacavam na hora de ele tocar", lembra o amigo. Com ascendência judaico-alemã e católica e simpatia pelo candomblé, Mautner, tido como o "avô do tropicalismo", fez da mistura a sua palavra de ordem: "José Bonifácio dizia que o Brasil é um amálgama. Pois o tropicalismo é a plenitude desse amálgama". Seus discos são um combinado doido de rock, baladas, sambas e letras nonsense, embaladas por um violino que parece insistentemente fora do tom (ele diz que faz "batuque com um violino"). É uma mistura heterodoxa que, no entanto, não o priva de ter alguns sucessos — comerciais ou de prestigio. Mautner é talvez mais conhecido pelas versões que outros intérpretes fizeram de suas canções. "Ele é uma grande personalidade. Tem inteligência ímpar e consegue imprimir humor às suas canções", diz Gal Costa, que gravou Lágrimas Negras no disco Cantar, de 1974. Wanderléa escolheu Locomotiva para marcar sua transição da jovem guarda para um repertório mais ousado: "A canção me deu oportunidade de fazer uma performance teatral irreverente. Mautner era então um jovem bonitão e continua com seu olhar puro de menino, que me encanta". Mas o estilo de Mautner não se deixa diluir: em 1981, a Warner, sua gravadora, recrutou nomes como Caetano, Pepeu Gomes, Moraes Moreira e Zé Ramalho para fazer de Bomba de Estrelas um disco mais palatável. "No fim, foram eles que acabaram soando como Jorge Mautner", diverte-se o próprio. Embora sua figura de maluco-beleza tenha pouco a ver com a linha dura comunista, Mautner se filiou ao PCB em 1962 e ainda acredita no ideário esquerdista. Notório perdulário, não tem muita noção da vida prática. "Meu pai até hoje vive de uma diária que minha mãe dá para ele", diz Amora Mautner, filha do cantor e diretora de núcleo da Rede Globo. Deve ter sido uma aventura ser filha de Mautner. Nos anos 70, ele andava nu pela casa e ia buscar a filha na escola só de sunga. Parou com essa encenação pessoal de Adão no Éden a pedido do terapeuta da filha. Ao lado de Gilberto Gil e Arnaldo Antunes, Mautner está escalado para a trilha de um espetáculo que terá direção musical de Amora, O Rouxinol e o Imperador da China, com estreia prevista para 2016. "Meu pai é o homem mais livre que eu conheço", diz Amora. E não há aí nenhum exagero. 7#3 CINEMA – E PARA QUE MAIS? A nova Cinderela da Disney é ingênua e singela. Ainda bem: há um público em constante renovação que merece a chance de se encantar com as versões originais dos contos de fadas antes de ser submetido às revisões pós-modernas. ISABELA BOSCOV Quando, no fim do século XVII, o francês Charles Perrault compilou velhas narrativas folclóricas sobre uma menina órfã e sua madrasta má e então adicionou ao enredo um sapatinho de cristal, estava criado aquele que é o mais arquetípico dos contos de fadas — uma história cujo apelo universal é falar ao medo do ser humano de se ver vítima do desamparo e da injustiça, e à sua fé ancestral em soluções mágicas que possam pôr fim à infelicidade. Da célebre análise freudiana publicada em 1976 pelo psicólogo Bruno Bettelheim às incontáveis reedições em forma de literatura ou cinema (como o desenho animado de 1950 da Disney), não há versão da Cendrillon de Perrault que não reconheça nesses três elementos — a órfã, a madrasta e o sapatinho — a fonte da sua perenidade. E são eles, portanto, o fundamento da nova Cinderela (Estados Unidos, 2015) em live action da Disney, que já está em cartaz no país e retoma o essencial: a história de Ella (Lily James), a menina boa e gentil que perdeu a mãe e, mal o pai se casou de novo, foi feita de empregada e saco de pancadas pela madrasta mesquinha e golpista (Cate Blanchett) e suas duas filhas estúpidas e feias (Sophie McShera e Holliday Grainger). Pobre Ella: vestida em trapos e suja das cinzas da lareira ao lado da qual dorme para se aquecer (nem um cobertor lhe dão), ela não poderá ir ao baile no qual o príncipe de impressionantes dotes ortodônticos (Richard Madden) vai escolher sua noiva. Duplo azar, porque a noiva que o príncipe quer é justamente Ella, que ele conheceu durante uma caçada na floresta e a quem se apresentou como um humilde aprendiz (e é — aprendiz de rei). Como Ella também não revelou ao príncipe sua verdadeira identidade, é impossível a eles buscarem-se um ao outro. Ou seria impossível, não fosse a providencial intervenção da fada madrinha (Helena Bonham Cárter, em uma deliciosa versão amalucada da personagem). Com talento para o improviso e invejável fashion sense, a fada madrinha providencia uma carruagem a partir de uma abóbora, transforma os ratinhos que andam atrás de Ella em cavalos e cria, de seus trapos, um vestido simplesmente espetacular, obra da figurinista Sandy Powell: tão importante quanto capitalizar em cima dos temores atávicos das meninas é fazê-las sonhar com a visão de Ella girando e magicamente transformando-se em bela do baile. Por fim, com os chinelos gastos trocados pelos sapatinhos de cristal — um dos quais será deixado na escadaria do palácio ao badalar da meia-noite —, Ella está pronta para cumprir seu destino eterno: reafirmar que até a felicidade mais completa pode virar desgraça, e provar que não existe desgraça que não possa dar lugar à felicidade. Na direção, Kenneth Branagh oferece em Cinderela as mesmas doses mínimas de criatividade visual e narrativa com que, sabe-se lá por quais razões, virou nos últimos anos um favorito para superproduções de estúdio como Thor e Operação Sombra — Jack Ryan. Desta vez, porém, pode-se argumentar em favor de seu estilo correto e prudente: já era hora de interromper a onda de revisões pós-modernas dos contos clássicos (que começou lá atrás, com Shrek, e incluiu Caminhos da Floresta, Malévola, Branca de Neve e o Caçador e por aí vai) e lembrar que existe um público em constante renovação que merece a chance de conhecer as versões originais antes de ser submetido às versões desconstruídas. Esta não é uma Cinderela para adultos vividos; é a Gata Borralheira das crianças pequenas, que precisam achar Ella encantadora, a madrasta apavorante, e o príncipe adorável e nem um tiquinho ameaçador (leia-se, sensual), e para as quais os efeitos singelos do filme já são um mundo de fantasia. Uma missão honrosa, e integralmente cumprida. 7#4 CINEMA – Ãããããããhhh? Difícil decidir quem é mais excêntrico em Vício Inerente, se o autor, o diretor ou o ator. O diretor Paul Thomas Anderson, um talento ímpar do cinema americano que fez seu nome nos anos 90 com Boogie Nights e Magnólia, vem desde Sangue Negro enveredando por um trabalho cada vez mais experimental e estilizado — o qual, com O Mestre e agora Vício Inerente (Inherent Vice, Estados Unidos, 2014), caminha para se tornar hermético (embora continue sensacional). Uma tentativa fútil de resumir Vício Inerente, já em cartaz no país: em 1970, Doe Sportello (Joaquin Phoenix), detetive particular e aficionado de substâncias alteradoras, é visitado em seu bangalô de praia por uma ex-namorada que lhe fala do magnata da especulação imobiliária com quem ela anda saindo e do plano da esposa dele para interná-lo num hospício. Ato contínuo, a ex-namorada (a quem todos se referem sempre pelo nome completo, Shasta Fay Hepworth) desaparece. Doc, que apesar de viver envolto numa bruma canábica é um sujeito muito safo, põe-se a procurar Shasta e se envolve com o policial durão Bigfoot Bjornsen (Josh Brolin), a ex-viciada com enormes dentes falsos Hope Harlingen (Jena Malone), o dentista alucinado Rudy Blatnoyd (Martin Short), vários associados da organização Presa Dourada e um sortimento de mulheres de nomes extravagantes — Japonica, Sortilège, Ensenada, Petunia, Chlorinda. Como todo esse monte de gente se conecta? Boa sorte a quem se disponha a entender: não é acaso que esta seja a primeira adaptação de um romance do recluso e não raro impenetrável Thomas Pynchon a chegar às telas, e não é para menos também que o Doc de Joaquin Phoenix (que já arrasara em dupla com Anderson em O Mestre) anda por Los Angeles com um olhar mais atarantado que o de Mel Gibson. De certa forma, faz todo o sentido que mesmo o espectador mais aplicado se sinta perdido dentro do ultracolorido labirinto noir de Pynchon e Anderson: o grande tema do livro e do filme é a transição da psicodelia dos anos 60 para a paranoia dos anos 70, uma espécie de viagem lisérgica que vai deixando de ser prazerosa para se tornar opressiva. É magistral a maneira clínica com que Anderson retrata o percurso alucinatório de Doc, combinando sempre em cada quadro, sem falha e com brilhantismo, os opostos do rigor e da exuberância. Vício Inerente pode, sim, ser um deleite — mas só para quem tem tolerância a altíssimas concentrações de excentricidade. I.B. 7#5 VEJA RECOMENDA CINEMA EDUARDO COUTINHO, 7 DE OUTUBRO (BRASIL, 2013. JÁ EM CARTAZ NO PAÍS) • Diretor de Cabra Marcado para Morrer (1985), Edifício Master (2002) e Jogo de Cena (2007), documentários que o fizeram célebre entre seus pares e nos circuitos dos festivais, Eduardo Coutinho (1933-2014) costumava mirar sua câmera na direção de pessoas comuns, que antes dele pouco figuravam nas telas. Dessas figuras anônimas ele extraía depoimentos ao mesmo tempo corriqueiros e contundentes, construindo uma filmografia marcada sobretudo por palavras, gestos, olhares e silêncios. Utilizando a mesma dupla de auxiliares de Coutinho — um cameraman e uma técnica de som — e o mesmo formato confessional, Carlos Nader realizou uma longa entrevista-depoimento de 73 minutos com o cineasta, analisando seus filmes, personagens (um sertanejo idoso, uma garota de programa, uma velha cozinheira etc.), influências e desejos. O tom de urgência na fala do velho cineasta parece premonitório — meses depois, ele seria assassinado pelo filho, portador de esquizofrenia —, enquanto a força das imagens retiradas de seus documentários confirma a capacidade do cinema de mostrar os fatos em toda a sua cotidiana normalidade. O filme tem lançamento simultâneo nos cinemas e em DVD. DISCO TO PIMP A BUTTERFLY, KENDRICK LAMAR (INTERSCOPE; DISPONÍVEL APENAS EM FORMATO VIRTUAL OU EM SITES DE STREAMING) • What’s Going On, de Marvin Gaye, e There's a Riot Going On, do grupo Sly & the Family Stone, foram polaroides da comunidade negra americana durante a passagem dos anos 60 para os 70. Essas canções encaravam temas candentes como a Guerra do Vietnã e o racismo. To Pimp a Butterfly, o segundo álbum do rapper Kendrick Lamar, é a versão atualizada dos conflitos anunciados por Gaye e Sly & the Family Stone. As letras abordam, sobretudo, confrontos raciais, recente e demagogicamente inflamados por incidentes entre a polícia e jovens negros. Um trecho sampleado de 2pac Shakur prevê até uma guerra inter-racial. E o próprio Lamar se mostra bem virulento em faixas como The Blacker the Berry: "Você me odeia, não? Odeia meu povo". Mas não é preciso embarcar na militância radical para admirar o disco. As diatribes do rapper vêm forradas de uma produção muito bem cuidada, calcada nas melhores heranças musicais da cultura negra americana. O free jazz permeia For Free, e I utiliza samples de Who's That Lady, funk furioso do grupo The Isley Brothers. LIVROS O TODOMEU, DE ANDREA CAMILLERI (TRADUÇÃO DE ANA MARIA CHIARINI; BERTRAND BRASIL; 140 PÁGINAS; 29 REAIS) • A mimada Ariadne, 33 anos, começa o dia cumprimentando todas as partes de seu corpo — "oi, panturrilha; oi, queixo". Ela tem certos traços de personalidade perversos, que se expressam também em um apreço por jogos sexuais que se aproximam da violência. O marido rico e voyeur gosta de vê-la em atividade com os garotões sarados que ela colhe na praia — mas a brincadeira tem regras rígidas: cada parceiro pode fazer sexo com a desinibida mulher duas vezes, nunca mais do que isso. É claro que Ari, como é chamada pelos amigos, gosta de romper todas as regras, e é claro também que essas transgressões estão fadadas ao desastre. Mais conhecido pela série de romances policiais protagonizados pelo comissário Montalbano, o italiano Andrea Camilleri buscou, neste livro breve mas intenso, inspiração no escandaloso caso de Anna Fallarino, assassinada em 1970 pelo marido, o marquês Camillo Casati Stampa. O resultado combina tensão e erotismo. FUNNY GIRL, DE NICK HORNBY (TRADUÇÃO DE CHRISTIAN SCHWARTZ; COMPANHIA DAS LETRAS; 424 PÁGINAS; 44,90 REAIS, ou 29,90 NA EDIÇÃO ELETRÔNICA) • Misturar cultura pop, crônica de época e intempéries sentimentais de variados graus é uma especialidade do inglês Nick Hornby. Primeiro romance do autor em cinco anos — desde que foi indicado ao Oscar pelo roteiro de Educação —, Funny Girl é uma história passada nos anos 60, nos bastidores de uma série de televisão. A garota engraçada do título é Sophie Straw, uma ex-miss e superfã de Lucille Ball — do clássico seriado americano I Love Lucy — que tenta a carreira artística. Ela vê seus sonhos realizados ao estrelar a comédia televisiva Barbara (e Jim), um sucesso instantâneo. Aí começam as aventuras e desventuras da atriz e de seus parceiros: os roteiristas cúmplices Tony Holmes e Bill Gardiner e o galã mulherengo Clive Richardson. Além de egos e emoções em chamas, há também os executivos da BBC que se ressentem dos altos índices de audiência de um programa que consideram lixo cultural. Hornby explora a própria experiência profissional e desenha belos personagens masculinos em torno dessa moça que, apesar de ganhar a vida fazendo graça, de boba não tem nada. BLU-RAY FESTA NO CÉU (THE BOOK OF LIFE, ESTADOS UNIDOS, 2014. Fox) • Um grupo de crianças-problema é levado, de castigo, para uma visita ao museu — mas lá, em vez de olhar as coleções, elas ouvem de uma recepcionista misteriosa a história do Livro da Vida, que por sua vez contém todas as histórias de todas as pessoas que estão ou estiveram no mundo. Por exemplo, os amigos Manolo, Joaquín e Maria, separados na infância para irem se tornar aquilo que suas famílias desejam deles: Manolo tem de ser toureiro, Joaquín tem de ser herói e Maria, uma educada señorita. Mas quando o trio volta a se reunir, na juventude, a amizade desanda em rivalidade (os dois rapazes, claro, são apaixonados por Maria), e a rivalidade conduz a dramáticas incursões pelo mundo dos que já se foram — cujos senhores, A Morte e seu marido, Xibalba, vivem em eterna competição. Eis aí uma animação verdadeiramente original em todos os aspectos: partindo do folclore mexicano do Dia dos Mortos, o diretor Jorge R. Gutiérrez e o produtor Guillermo del Toro conjuram um espetáculo atordoante de cores, formas e texturas sem paralelo em nenhum outro desenho. 7#6 OS LIVROS MAIS VENDIDOS FICÇÃO 1- O Pequeno Príncipe. Antoine de Saint-Exupéry. AGIR 2- Se Eu Ficar. Gayle Forman. Novo Conceito 3- Simplesmente Acontece. Cecília Ahern. NOVO CONCEITO 4- Cinquenta Tons Mais Escuros. E.L. James. INTRÍNSECA 5- Cinquenta Tons de Cinza. E.L. James. INTRÍNSECA 6- Cinquenta Tons de Liberdade. E.L. James. INTRÍNSECA 7- Para Onde Ela Foi. Gayle Forman. NOVO CONCEITO 8- Divergente. Veronica Roth. ROCCO 9- Convergente. Veronica Roth. ROCCO 10- Insurgente. Veronica Roth. ROCCO NÃO FICÇÃO 1- Nada a Perder 3. Edir Macedo. PLANETA 2- Eu Fico Loko. Christian Figueiredo de Caldas. NOVAS PÁGINAS 3- Bela Cozinha: As Receitas. Bela Gil. GLOBO 4- O Diário de Anne Frank. Anne Frank. RECORD 5- O Capital no Século XXI. Thomas Piketty. INTRÍNSECA 6- Elis Regina — Nada Será Como Antes. Julio Maria. MASTER BOOKS 7- A Teoria do Tudo. Jane Hawking. ÚNICA 8- Sniper Americano. Chris Kyle. INTRÍNSECA 9- Meu Universo Particular. Frederico Elboni. BENVIRÁ 10- Sonho Grande. Cristiane Correa. PRIMEIRA PESSOA AUTOAJUDA E ESOTERISMO 1- Philia. Padre Marcelo Rossi. PRINCIPIUM 2- Ansiedade. Augusto Cury. SARAIVA 3- Não Se Apega, Não. Isabela Freitas. INTRÍNSECA 4- O Monge e o Executivo. James Hunter. SEXTANTE 5- Geração de Valor. Flávio Augusto da Silva. SEXTANTE 6- O Poder da Escolha. Zibia Gasparetto. VIDA & CONSCIÊNCIA 7- De Volta ao Mosteiro. James Hunter. SEXTANTE 8- A Arte de Fazer Acontecer. David Allen. CAMPUS 9- 60 Dias Comigo. Pierre Dukan. BEST SELLER 10- A Arte da Guerra. Sun Tzu. Várias Editoras 7#7 ROBERTO POMPEU DE TOLEDO – PERDIDO NAS SENHAS “O homem é o homem e sua circunstância." Não, esqueça Ortega y Gasset. O homem do século XXI é o homem e suas senhas. As senhas são sua identidade secreta assim como a identidade secreta do Super-Homem é Clark Kent. Clark Kent é um bobalhão grandão, de óculos. Eu, Joaquim das Neves, sou um bobalhão de óculos, ao entrar na cabine do caixa eletrônico. Mas, ao digitar a senha — "chapa do carro do meu pai quando eu era criança" —, transformo-me num Super-Homem capaz de fazer jorrar dinheiro. No cartão de crédito sou "nosso telefone na infância"; no cartão da farmácia, "nome do meu cão mais os quatro primeiros algarismos do telefone de minha primeira namorada"; no UOL, "nome de minha avó materna mais os quatro primeiros números do telefone da avó paterna"; na Net, "nome da minha irmã mais a chapa do carro do meu cunhado". As senhas vão compondo um patchwork de minhas memórias e meus afetos. Digite seu CPF e, em seguida, seu código de acesso. Lá vai: 033.546.880. E o código de acesso? Deixe-me lembrar. "Telefone do antigo escritório?" Não deu. Você tem mais duas tentativas. "Data de nascimento de minha mãe." Não deu. Talvez "data de casamento de meus pais", mas esqueci a data de casamento de meus pais. Vou arriscar. Esta é sua última tentativa. Não, agora me lembro. É "dia e mês de nascimento de minha mãe mais ano de nascimento de meu pai". Lá vai. Não reconheço esta senha. Desculpe, mas seu acesso será bloqueado. Para desbloquear, o senhor terá de responder a algumas perguntas. Qual a última loja em que efetuou compras com o cartão? Casas Bahia. Não confere. Cite um estabelecimento em que faz compras frequentes. Padaria Aracaju. Não confere. O senhor não me poderia fazer perguntas mais fáceis? A raiz quadrada de 80549? Ou o último parágrafo de Ulisses, de Joyce? Diga a data de vencimento de seu cartão. Mas é minha mulher que sempre paga. Desculpe, não posso desbloquear seu cartão. Sou um mero Joaquim das Neves, de quem não se pode reconhecer a identidade porque não sabe o que compra, onde compra e quando paga. Sou um Clark Kent que se atrapalha na hora de trocar a roupa, na cabine telefônica, e por isso não consegue voar. No plano de saúde sou "nome da primeira professora mais dia do aniversário do tio Jorge". Ou será que sou "três primeiras letras da rua da infância mais os três algarismos do número da casa"? Não. Deve ser "telefone do primeiro emprego mais nome do avô da minha mulher". Estou confuso. Sofro de uma crise de asma, estou a ponto de morrer, e não consigo lembrar mais nada: casamento dos pais, nascimento do filho, sobrenome do patrão, nome do cachorro, marca da primeira bicicleta, time do coração, chapa do automóvel, telefone da tia Alzira. Estou bloqueado no cartão e na vida, por isso vou morrer neste saguão, e em minha lápide escreverão: "Aqui jaz alguém que esqueceu sua senha, portanto é inútil tentar identificá-lo". Certa vez experimentei uma senha única para tudo, mas me alertaram: "Não é aconselhável usar a mesma senha para diferentes serviços". Também é aconselhável trocar a senha de tempos em tempos. Eis-me com uma multidão de identidades, o que equivale a não ter nenhuma. Serviria para fornecer um bonito painel da minha vida, mas não para viver — como viver sem senha? Qual o seu nome? Joaquim das Neves. - CPF? 033.546.880. Telefone, com código de área? (12) 8456-7890. Agora digite sua senha, composta de números, letras e sinal. Tente outra vez, pausadamente. Errou de novo, infelizmente não poderemos atendê-lo. Mas se eu já dei meu nome, CPF, telefone? Se quiser, posso dizer o nome de minha avó, do cachorro, do time favorito, o número de meu primeiro telefone, o da chapa do primeiro automóvel, o da data de nascimento de minha filha — o que não sei é combiná-los de forma a satisfazê-lo, senhor. Desculpe, senhor Joaquim das Neves, se é que o senhor se chama mesmo Joaquim das Neves, se é que o senhor é o senhor, se é que tem existência real. Uma vez anotei todas as senhas. Mas onde guardar a anotação? E como lembrar onde foi guardada, depois? Seria preciso outra anotação, com o lugar onde foi guardada, mas onde guardá-la? Não. Anotar também não é aconselhável. A conclusão é que o mais seguro de tudo é esquecê-las todas. Pronto. Estou completamente blindado, inclusive contra mim mesmo. Não sou eu para nada. Não existo. Melhor assim.