ALEGRIA BREVE ###################################################################################################################################################################VERGÍLIO FERREIRA l.a edição brasileira EDITORA VERBO julho de 1972 Prefácio de Leodegário A. de Azevedo Filho Notas bio-bibliográficas e de crítica de João Alves das Neves Capa de Luis Díaz Direitos desta obra reservados para o Brasil por EDITORA VERBO LTDA. Rua Bueno de Andrade, 480 a 484 Caixa Postal 8.811, São Paulo, S.P. VENDA INTERDITA EM PORTUGAL E SEUS TERRITÓRIOS Prefácio LEODEGÁRIO A. DE AZEVEDO FILHO VERGÍLIO FERREIRA tem uma posição muito clara e muito definida na Literatura Portuguesa de hoje. O seu primeiro romance é de 1943: O Caminho Fica Longe, obra influenciada pela técnica cinematográfica e voltada para os tempos de estudante em Coimbra. O desfecho do romance, que é de cunho psicológico, abre uma perspectiva neo-realista, indicando à personagem principal uma solução socio-econômica para a sua problemática humana. Esse caminho neorrealista, que desponta em seu primeiro romance, apesar de predominar nele a problemática psicológica da adolescência, ganhará extensão em Onde Tudo Foi Morrendo (1944) para, afinal, realizar-se plenamente em Vagão J (1946), a sua melhor obra de ficção dentro da estética neo-realista. Em 1949, com a publicação de Mudança, daria novos rumos à sua ficção e à própria ficção portuguesa, inaugurando o romance-ensaio de cunho existencial. A Face Sangrenta (1953) é o livro de contos, aliás um livro esteticamente desigual, constituído de contos escritos em épocas diferentes. Manhã Submersa (1954), Aparição (1959), Cântico Final (1960), Estrela Polar (1962), Apelo da Noite (1963), Alegria Breve (1965) e Nítido Nulo (1971) são os títulos que vêm completar a sua obra de romancista, até aqui. Em relação ao ensaio, também é considerável a sua obra, a partir do estudo Sobre o Humorismo de Eça de Queirós (1943) até Invocação ao meu Corpo (1969). Eis o restante de sua obra ensaística: Do Mundo Original (1957); Carta ao Futuro (1958); Da Fenomenologia a Sartre (1962); André Malraux (1963) e Espaço do Invisível (1965). De todas essas obras, são fundamentais as seguintes: Da Fenomenologia a Sartre e Espaço do Invisível, sem esquecer o estudo sobre Malraux e o seu último livro de ensaios, onde retoma assuntos já meditados em obras anteriores. Quando se fala de Vergílio Ferreira se fala de um escritor que tem o vício de pensar. Para ele, o homem não é um ser pensante, mas o ser pensando. Por isso mesmo, após a busca neo-realista de uma solução socio-econômica para os problemas humanos, que atingiu a sua plenitude ficcional em Vagão J, o seu pensamento deixa o coletivo e se volta decisivamente para o individual, e isso a partir de Mudança. Aceita, espontânea e responsavelmente, a sua condição humana e a discussão em torno dela, fundamentando-se nos postulados básicos do existencialismo. Nesse sentido, já escreveu, pelo menos três obras de real valor: Aparição, Estrela Polar e Alegria Breve. O preparo anterior, que a análise de qualquer dessas obras reclama da crítica, encontra, no romance da condição humana e no existencialismo, uma espécie de ponto de partida, exatamente porque o seu romance é um romance-ensaio ou um romance de idéias. Sirva como exemplo o romance Aparição. Aqui não se trata, como à primeira vista se possa imaginar, de uma aparição fantasmagórica de bruxas ou demônios. Aparição significa a tomada de consciência do eu, o eu aparecendo a si mesmo. Assim, o primeiro contacto do homem consigo mesmo, a primeira indagação em torno do seu eu, eis o sentido dessa aparição. A crença em Deus, ou na existência de algo fora do homem, representa apenas a anulação do próprio homem. O seu humanismo decorre, por isso mesmo, dessa convicção preliminar: da convicção de que o homem está no mundo e só no mundo o homem, através de sua essência, deve procurar resposta para as indagações que faz. Ficcionista da condição humana, o seu humanismo existencial transforma a vida num prodígio e numa tragédia. Num prodígio na medida em que a existência é uma forma suprema de alegria. E numa tragédia porque apenas dentro da vida, e não fora dela, deve o homem indagar-se e conhecer-se, resultando dessa indagação um sentimento permanente e inquietante de angústia. Dentro dos limites da condição humana, portanto, é que se encontra o destino do homem em sua plenitude, nascendo daí o conceito de que a morte é um absurdo. Em qualquer caso, é sempre a condição humana em si que se deve levar em conta, sem deuses fictícios, e sem vida extraterrena. Queremos dizer: o homem deve contemplar-se face a face, deve "aparecer" ao próprio homem, pois o absoluto está nele. A estrutura da narrativa em Alegria Breve é complexa na medida em que o discurso literário funciona como instrumento de profunda análise da condição humana. De início, a fusão num ponto único dos vários tempos da narrativa confere ao romance (narrado em primeira pessoa) uma dimen#são existencial, integrando-se no presente todas as sensações temporais, quer sejam as sensações do tempo em que o narrador escreve, quer sejam as sensações do tempo atualizado pela memória? Na verdade, trata-se de um romance do presente do indicativo, pois nele o tempo é o estar sendo. Nesse tempo único, que é o tempo do ser, introduz-se uma série de planos temporais cruzados, estando assim na expressão do tempo o eixo de sua ficção A condição humana e sua análise em profundidade, dentro de um tempo único, transforma o homem no próprio deus de si mesmo. Essa posição, que vem do existencialismo sartreano, bem diversa da posição assumida pelo existencialismo cristão de Gabriel Mareei, coloca o Absoluto dentro da própria condição humana. Influenciado, em suas origens literárias, pelo pensamento de Malraux, o romancista de Alegria Breve jamais se afastou, tanto em sua obra de -ficção como 11a de ensaio, do seu conceito de humanismo. Daí ser o seu romance um romance da verticalidade humana, como o denominamos em outra parte, mas não um romance de náusea ou prostação. Aqui o conceito de angústia se transforma numa espécie de estado de consciência, e de superação da própria náusea, pois a náusea é apenas um degrau, sendo a angústia o degrau superior, capaz de levar o homem a meditar em torno do seu destino essencial. Daí que não aceite a visão do homem que o nouveau roman nos transmite. No caso, pode aceitar a renovação da técnica narrativa ensaiada por Robbe-Grillet e seus adeptos, mas nunca a negação do humano. Para ele, a visão do' homem, dentro do nouveau roman, é a que se en#contra na última frase de Les Mota et les Choses, de Michel Foucault. E lá está escrito que a negação do humano significa o seu próprio desvanecimento, como à beira do mar um rosto de areia... Em Alegria Breve, como 110 resto de sua obra, Vergílio Ferreira não se afasta da análise, em profundidade. da condição humana. Nessa análise, não raro, nota-se certo resfriamento da emotividade por um contraponto de ironia, naquele sentido de humor que nos faz rir amargamente O erotismo penetra no romance através dê uma linguagem abstrata. A fotografia exterior da realidade é substituída pela intuição da essência do ser. O real se mistura com o irreal, ou este se superpõe àquele, através da própria irrealização do real. Daí decorre uma mudança imprevista de planos narrativos conferindo à estrutura desse romance uma dimensão- bastante complexa, pois nele a linguagem é um instrumento de análise profunda da própria condição humana. Aqui se poderia inclusive falar numa espécie de inversão das relações entre a langue e a parole, na medida em que a parole instaura novos significados, passando a ser o elemento gerador da langue. Assim, a estrutura do significante, dentro do discurso literário, gera novos significados, até mesmo pela subversão da regência tradicional. Através da ruptura do código novas mensagens se afirmam. Antevê-se, em Alegria Breve, a reestruturação de um mundo novo decorrente da própria desintegração que Vergílio Ferreira considera os quatro grandes mitos do mundo moderno: a ação, o erotismo, a arte e a metafísica. Em entrevista conosco, assim se pronunciou a respeito: "A propósito desejo frisar uma vez mais que a Arte não é para mim um valor, direi, um absoluto, senão na medida em que é na sua dimensão que a verdade se revela. Uma coisa é pois o objeto estético — sem dúvida o maior valor dentre os valores propostos por este século; e outra coisa é o sentimento estético que obscuramente promove esse objeto. É pelo objeto, aliás, e para o grande público pelo menos, que esse sentimento retroativamente se esclarece. O objeto estético hoje está em ruínas, mas não o sentimento que só desumanamente poderá julgar-se em vias de também desaparecer. Mas a ruína da arte significa precisamente a ruína de um mundo — que esse, sim, está a desmoronasse. A situação equívoca da arte como valor, pretendi eu anotá-la em Alegria Breve mediante várias referências e entre elas o fato de o artista que deveria de vir à aldeia (como outros pólos unificadores do problema vieram — Miguel, para a ação; Amadeu, para o erotismo, Ema, para a metafísica) não ter vindo realmente. Aliás a problemática metafísica é a cúpula de todos os outros problemas que são os seus sucedâneos. Eis porque ela abre o horizonte final de toda a narrativa e de todas as situações do narrador. Mas justamente o narrador entende que essa problemática deve ser anulada ao estrito nível humano, deve pois, desmoronar-se também. Mas não assim a arte da qual os destroços modernos o são apenas de uma sua forma, justamente a forma atual." Tudo isso nos mostra que o realismo, na ficção de Vergílio Ferreira, não é simples reflexo do real, mas o real desse reflexo. Queremos dizer: o elemento ideológico, em seu romance, passa por um processo adequado de transformação estética, res- guardando-se a autonomia do processo artístico, para utilizarmos uma expressão de Badiou. É claro que o elemento ideológico conduz a narrativa, mas incorporado ao processo de criação estética, o que vale afirmar que no romance se instaura uma nova realidade, que é a própria realidade do romance. A sua arte, como expressão de liberdade, já nasce comprometida com os valores ideológicos que o artista espontaneamente incorporou à sua visão do mundo, tornando-se de grande importância, por isso mesmo, a análise das relações entre ideologia e obra de arte literária em sua. ficção. Esse quadro de valores ideológicos, assumido em responsabilidade pelo escritor, não faz do romance um livro de ensaio, ainda que se trate de um romance de idéias. O processo de transformação estética, nele operado, responde pela autonomia no ato da criação literária, construindo-se um romance-ensaio em que as velhas estruturas do gênero romanesco são fecundadas pelo elemento ideológico. Assim, como preceitua Badiou, embora ideologia não seja obra de arte literária, pois esta não se contenta em ratificar nenhuma ideologia exterior, pode uma ideologia gerar uma .obra de arte literária autêntica, desde que se resguarde a autonomia do processo estético, como ocorre na ficção de Vergílio Eerreira. A realidade da seu. romance é uma nova realidade, por ser produto de criação estética. Tudo isso nos indica que a sua obra de ficção necessita de uma aprendizagem inicial para ser compreendida e analisada. Essa aprendizagem se relaciona com o fato de que Vergílio Ferreira não é um ficcionista que faz ensaio, mas um ensaísta que faz ficção. Na verdade, em sua obra literária, esses dois pólos do problema (ensaio-ficção) não apenas se interpenetram, pois guardam entre si uma interdependência solidária, formando uma estrutura. Seria impossível, com efeito, determinar até que ponto se tem ensaio filosófico ou até que ponto se tem romance na obra literária desse autor, pois na verdade o que se tem é um tipo determinado de romance-ensaio. Queremos dizer: há uma idéia encarnada em sua ficção, posta a viver num mundo reinventado e reordenado pelo escritor. Daí a observação imediata de que as personagens principais, em seus romances, não são personagens planas. Todas são esféricas, envolvidas que estão nessa Forma de neo-humanismo existencial em que a condição humana é o objeto permanente de profunda indagação filosófica. A vida, ao mesmo tempo que é magnífica, é destituída de qualquer significação. Da integração desses contrários, aliás, surge uma filosofia sem qualquer transcendência divina, pois o contrário seria uma solução muito fácil. Tão fácil como ignorar o problema. Resta, assim, a única solução verdadeira, que é a de enfrentá-lo até o seu desgaste. Em outras palavras: o homem deve aceitar a sua própria condição, sem ignorá-la e sem fugir dela, exatamente porque o homem "começa a pensar em si, quando já não tem um valor que possa pensar por ele." A única transcendência que Vergílio Ferreira poderia admitir seria a própria transcendência do ser, segundo Heidegger. Ser homem, por conseguinte, é. assumir a responsabilidade de tudo o que é do homem, de tudo o que ele faz e de tudo o que nele existe. A mensagem de Alegria Breve, afinal, é o desdobramento da mensagem que se encontra em Aparição ou em Estrela Polar. Vergílio Ferreira não abre mão da condição humana para nela, e somente nela, procurar solução para as grandes indagações do próprio homem. Para tais indagações, não há resposta, mas apenas procura. E através dessa procura, numa angústia não raro desconfortante, é que o homem se torna verdadeiramente humano. Assim ocorre com Jaime Faria, protagonista-narrador de Alegria Breve. Se em Aparição se verifica o descobrimento do eu, e em Estrela Polar o seu desdobramento, em Alegria Breve o homem se encontra diante de si mesmo, em plena solidão, numa aldeia abandonada. Sendo o homem um valor em si mesmo, ainda que só no mundo, pode recriar novos valores. Daí o pensamento de Sófocles (Antígona, vv. 332 - 333) que aparece como epígrafe do romance: "Há muitas coisas espantosas, mas nada há mais espantoso do que o homem." Jaime Faria sobrevive, como símbolo da própria sobrevivência doJrumano, dentro d_e um mundo destruído. E nesse mundo ele é o deus de si mesmo. Rio de Janeiro, janeiro de 1972. ALEGRIA BREVE Há muitas coisas espantosas, mas nada há mais espantoso do que o homem. Sófocles, Antígona, vv. 332-333 Capítulo 1 ENTERREI hoje minha mulher — por que lhe chamo minha mulher? Enterrei-a eu próprio no fundo do quintal, debaixo da velha figueira. Levá-la para o cemitério, e como? Fica longe. Ela pedira-mo uma vez, inesperada#mente, acordando-me a meio da noite. Queria que a enterrasse junto ao muro que dá para o caminho, porque se vê daí a casa dela. Habituara-se a olhar para aquele sítio depois que ficou só. E pensava: "verei dali a janela do meu quarto". Mas teria de transportá-la para lá. Não tenho forças e cai neve. A quantos estamos? É inverno, dezembro, talvez, ou janeiro. Tiro a neve com uma pá, traço o retângulo e cavo. Dois cães assomam à porta do quintal, chu#pados de ódio e de fome. Ainda há cães pela aldeia? Rabam-se e univam sinistramente. Tomo uma pe#dra, disparo-a contra um, desaparecem ambos a ganir. E de novo o silêncio cresce a toda a volta, desde a montanha que fico a olhar até me doerem os olhos. Olho-a sempre, interrogo-a. Quando estou cansado de cavar, enxugo o suor e olho-a ainda. Um diálogo ficou suspenso entre nós ambos, desde quan#do? — desde a infância talvez, ou talvez desde mais longe. Um diálogo interrompido com. tudo o que aconteceu e que é necessário liquidar, saldar de uma vez. Estou só, horrorosamente só, ó Deus, e como sofro. Toda a solidão do mundo entrou dentro de mim. E no entanto, este orgulho triste, inchando — sou o Homem! Do desastre universal, ergo-me enorme e tremendo. Eu. Dois picos solitários levantam-se-me adiante, lá longe, trêmulos no silêncio. Entre eles e a aldeia há um vazio escavado na montanha, donde sobem as sombras e a neblina. Pela manhã a neve infiltra-se pelos desfiladeiros, e toda a serra e a aldeia flutuam. Então é como se o tempo se esvaziasse e a vida surgisse fora da vida. Mas agora o ar é puro, transparente, como um sino na manhã. Só as sombras se erguem desde o fundo. Com a neve acumulada tomam um tom violáceo. Mas é um tom nítido como no espetro solar. Os dois picos, de arestas limpas, vibram imperceptivelmente no céu úmido e já escuro. Trago o corpo de minha mulher embrulhado num lençol. É estranho como pesa. Dir-se-ia que a terra o exige com violência. Gostaria de a olhar pela ultima vez, e no entanto não é fácil. O lençol branco confunde-se com a neve. Assim é como se o corpo se confundisse também. A toda a borda da cova, a neve ficou suja da terra acumulada. Será a fundura bastante? Metro e meio, talvez. De comprimento está bem. Encosto-me ao cabo da enxada e é estranho que não reconheça em mim um sentimento distinto. Cansaço, decerto. E o orgulho. E o medo. Será tudo o mesmo? E a resignação, talvez, ou mesmo a plenitude. Estás velho, como o não sabes? estás velho. Talvez seja assim a velhice: um esgotamento longo de tudo. E no centro, breve, uma verdade final. Como um objeto precioso que se tira da terra e se limpa — qual a tua verdade final? Mas estou tão cansado. Agora não. Olho a aldeia abandonada, perdida na montanha, ouço o silêncio. E sinto-me aí disperso, irisado em espaço, íntegro e puro. E nu. Mas quando vou a erguer o corpo, não resisto: sutilmente afasto as dobras do lençol. Então Águeda aparece-me à última luz da tarde de inverno. Magra, sisuda, indignada com a vida. Pus-lhe o terço nas mãos, um pouco talvez para a reconciliar consigo, para ter um sono mais fácil. Mas a face agreste de boca cerzida, as mãos quase enclavinhadas fixaram para sempre a imagem do seu desespero. — Dorme. Cubro-a de novo, suspendo-a a custo. Afinal a cova ficou curta: os joelhos soerguem-se-lhe um pouco. Uma das dobras do lençol deslizou e tenho de me debruçar para a compor. Baixo-me, tremente, uma onda de suor vem bater-me em todo o corpo — que é que me assusta? Onde é que? É tudo tão grande. A noite cresce no céu, é necessário acabar tudo depressa. Sobre nós, os ramos nus da figueira começam a apagar-se na sombra. A terra cai na cova com um rumor fofo. Vou à loja buscar estacas para fazer uma cercadura. Um dia ponho-lhe uma lápida, talvez, ou alinho à volta lascas de pedra como se faz nos canteiros. Possivelmente cairá neve de noite e apagará aquelas manchas de terra. Mas é preferível cobri-la já com neve limpa do quintal. Com a pá vou apanhando pequenos blocos brancos que espalho sobre a sepultura. Depois aliso a superfície para que tudo fique perfeito. Entro enfim em casa e estiro-me num sofá, voltado para a janela de portadas abertas. Para lá do grande vazio, os dois morros sobem pelo céu com uma alvura pálida. Ligeiramente parece-me que se movem quando os fito intensamente. Mas de súbito ergo-me, percorro a casa escura no prazer e no medo de ouvir os meus passos. Ouço- os. São fortes, ó tu — tu quem? São fortes, ressoam pela noite, são os passos do primeiro homem do mundo. Uma alegria terrível inunda-me. É uma alegria absoluta, imperiosa e todavia calma como a lentidão da terra. Armo o gira-discos, abro as janelas e saio. Absurdamente, não cortaram a energia elétrica para a aldeia. Há mesmo três ou quatro lâmpadas que ainda acendem. Decerto, as outras fundiram-se1 (1. queimaram-se). Fora, o ar nítido corta-me, filtrado, branco. Pureza do limite, ó recomeço perfeito. Passo pelas ruas abandonadas, de casas mudas. Fitam-me, rondam- me, coalhadas de vozes e de sombras. Sou eu, estou aqui — se gritasses? Quase todas caem aos bocados, as janelas desconjuntadas, algumas de portas abertas. Se gritasses? Certa noite Águeda e eu ouvimos um grande estrondo como de tremor de terra: um telhado que abatera. Mas agora, nenhum rumor. Só a música. Vem pela janela, multiplica-se nos ocos da serra, avoluma-se no espaço. Mas é uma música suave, direi mesmo delicada. Lembra-me os veios de água pela primavera, as flores alegres dos campos. Estarei alegre? Um acesso de ternura. Passa como onda na aragem fria. De quem esta paz? Música triste como uma alegria desesperada. — Se for capaz de ouvi-la e ficar sereno. . . Deu-ma Ema há muito tempo — num tempo que é já do limiar da memória. Porque o antigo e o novo não são os anos que os medem mas o vazio que os afasta dentro de nós. Subitamente, um uivo subiu longo, angustiado. Vem dos fundos da serra, serpeia à sua volta, sobe ainda por sobre mim, em espiral. Outro uivo respondeu de longe, torneando pelo ar. Os cães, os cães. Deviam ter abalado há muito, como os outros que se foram. Mas estes ficaram ainda, à espera do impossível. Agora os uivos multiplicam-se, enovelando-se na música. Em giros lentos, sobem da fundura dos córregos, circulam em torno da montanha, erguem o desespero até às estrelas. É uma noite sem lua, plácida e nítida, verdade simples. Estrelas, uivos e música. Que é que isto quer dizer? Dou a volta à aldeia toda — supõe que os cães te assaltavam. Desvairados de fome. Tu, despedaçado às dentadas. E só. Mas seria absurdo que isso acontecesse, porque só agora nasceste. Subo ao adro da igreja, olho-a. E repentinamente, absurdamente, ressoa no adro deserto uma forte badalada. Estre#meço: a aprendizagem é difícil. Algum pássaro noturno que embateu no sino? Já não ouço ali a música. Um gato bufou, uma ave, uma sombra, grifando o largo em diagonal como uma seta. Os cães sossegaram: possivelmente a música parou. Na fímbria branca dos telhados, nas árvores ossificadas, no ar imóvel — o silêncio. Vibra, retine como um cristal, ouço-o. Então abruptamente atiro uma patada violenta: para desentorpecer um pé? para tomar posse do mundo: um estrondo reboa com o anúncio de um Deus. Sou eu, ó noite. Trêmulo olhar de lágrimas, na solidão astral, e o frio, o frio, adstringente e nulo, restrito em mim, pequeno, tão só. Terei divindade que chegue? — tão grande o universo. Pequeno e medroso aqui. Atiro a minha patada violenta, respiro até aos ossos o universo in#teiro. Sou .eu. Regresso, enfim, a casa, acendo o lume. Terei de ir à mata cortar lenha. Amanhã? Talvez amanhã. Dorme. Estás tão cansado. Amanhã é um dia novo. Capítulo 2 CERTO dia, pela tarde, um homem foi procurar-me à Escola. A aula estava a acabar e não se me deu assim mandar sair os garotos. Rapidamente a sala ficou vazia. Ouvi os gritos dos rapazes estalarem no pátio, depois um ou outro já ao longe, abrindo aqui e além, e finalmente o silêncio. O homem era um sujeito estranho que eu não conhecia. Indiquei-lhe uma cadeira, ele sentou-se. Luís Barreto — disse ele. — Engenheiro de minas. Jaime Faria — disse eu? O senhor professor há de desculpar. Não sei se o Padre Marques já lhe disse. Era um tipo seco, desidratado. Um vago ar de pasmo errava nos seus pequeninos olhos mortais. — Não vi hoje ainda o Padre Marques—.disse eu para afastar terceiros da conversa. Tinha uma cara ressequida de pergaminho — sessenta anos talvez. Um botão de baquelite1(plástico duro) enterrava-se-lhe como um prego no ouvido esquerdo, donde pendia um fio entrançado que lhe penetrava pela gola do casaco. 0 clarão do poente entrava por uma janela, destacando-lhe a face de gesso. Eu olhava-o à espera de mais palavras, fitava-lhe as mãos gastas, queimadas de milhões de gestos. Falei já com o Padre Marques — disse o homem enfim. — Ele está perfeitamente de acordo. Era dele a voz? — os lábios moviam-se imperceptivelmente. Mas tudo o mais, a face, as mãos, pareciam petrificadas. Pela janela aberta que lhe ficava atrás, via ao longe os dois morros erguidos. Ao embate do sol, estremeciam, contra o céu, em partículas de luz. A capela de S. Silvestre brilhava, branca, no cimo de um deles. Mas tenha a bondade de... As pálpebras breves, engelhadas como as de um sapo. ... um bem para a povoação... minas... desenvolvimento econômico de... Falava baixo, horizontalmente, como uma fita de som, movendo os lábios brevissimamente. Mas agora os dedos das mãos mexiam também, devagar, com um movimento lento e túrbido de cobras de água. É o seu modo de ser importante — pensei; porque só se é importante cultivando uma diferença. Fora, no ar aberto dê maio, só uma palavra anôni#ma pontuando o silêncio. Apliquei-me atento ao que o homem agora dizia infindavelmente, sentado na cadeira, o busto fixo, a máscara pregada. Minas? — perguntei. ... um bem para a povoação. Depois os lábios cerraram-se-lhe, finos, distendi- dos, na palidez do rosto. E os dedos cessaram de mover-se. Só as pálpebras vagarosas. Uma pasta fina de cabelo acamava-se-lhe na testa — cabeleira postiça? o tempo germinava na sala, tenso, inchado. A certa altura, porém, Barreto desencostou-se da cadeira, todo o busto fletido, fechando o ângulo com as pernas. Via-lhe a face envelhecida avançar para mim com os dois olhinhos apagados. Ergueu as mãos, devagar, contrapondo-as uma à outra, os dedos abertos como os de um pato. — Tem saúde? — perguntou. Vibrava-me um olhar gélido e fito. Alguém chamou ao longe para longe, para algum despenhadeiro. Ar cálido e puro, um sorriso breve assoma no horizonte da vida, um perfume passa e entontece. Pela encosta da montanha, manchas verdes aqui e além: centeio? flores silvestres? mas reparo de súbito que a sala está vazia. Devo ter respondido ao homem, ele deve ter-se despedido de mim antes de sair. Vejo apenas a sua cadeira, isolada no pequeno espaço entre as carteiras e a parede — e saio eu também para o sol da tarde. A grande chave da porta range, emperrada, para o silêncio em volta. Estará o Padre em casa? Desço a escadaria da Escola, que fica sobre uma loja de madeiras. Ao longo das ruas tortuosas, uma ou outra pessoa que passa, um vulto breve assoman#do a uma janela. E velhos, de longe em longe, sentados às portas. Haveis de estar aí um dia, vós sós, um dia, mensageiros da noite, tossindo. Em frente da minha casa corre a rua principal. De um lado e doutro há um quintal de oliveiras, agora verde das batatas novas. Entro em casa, demoro-me um instante à janela para a montanha, mas acabo por sair, subindo a rampa que leva ao adro da igreja. A minha biografia começa aqui — na rampa. Nasci a 28 de janeiro de 19..., às três horas da tarde de uma sexta-feira, dizia minha mãe. É a hora de Cristo, dizia minha mulher. Sorrio, encolho os ombros — também o cansaço é verdade. Nasceram três irmãos antes de mim, mas foram morrendo pela infância fora. Nessa altura eram ainda vivos todos três, suponho. Era o começo do verão, talvez, minha mãe e a mãe dela subiam a rampa para a missa de domingo. E um momento, minha mãe hesitou com uma inesperada tontura. Parou, apoiou-se a minha avó: Não sei o que tenho, minha mãe. Ela varou-a de iluminação e alarme: Não me digas! Não me digas que já arranjaste outra desgraça! A "desgraça" era eu. O adro está deserto. Enquadram-no filas de casas, formando blocos, com fiadas de janelas abertas e sem ninguém. Tarde suspensa, aérea de brisas. O espaço do largo cintila, as folhas das tílias tre#mem. A casa do Padre Marques quase pega com a igreja, alongando-se a um dos lados do adro. É baixa, de um só piso, com um jardim empedrado a todo o comprimento. Bato à porta e a pancada ressoa no silêncio. Uma velha veio abri-la, estremecendo brevemente nas longas saias refolhadas de negro. Fechou a porta, abriu outra ao lado e sutilmente deslizou ao longo do corredor. Olhei-a ainda um instante: rapidamente desapareceu como se uma aragem a levasse. Jaime? — perguntou o Padre lá de dentro. Não respondi, entrei. Estava sentado diante do tabuleiro de xadrez, as pedras já dispostas para o jogo. A janela dava para o quintal, um ruído fresco de água brilhava no ar. Sentei-me, movi um peão. Ele levou tempo a mover o dele. Foi lá o homem? Reparo numa sombra a um lado, ergo os olhos: a irmã do Padre sorri, absorvida no jogo. Laura. Tem só dois dentes na frente. De novo a sombra da criada aparece de trás, traça adiante um semicírculo perfeito, pousa um tabuleiro com alcoóis. Uma voz solitária ressoa ao longe, no vazio da montanha e da vida, desdobra-se dispersamente em vários ecos. Que quer ele? — perguntei. A mão de Laura estende-se bruscamente sobre o tabuleiro com um dedo espetado. É um dedo enegrecido, cortado de gelhas1(rugas). Mas logo recua, vagaroso. 0 álcool canta para o vidro do cálice. Minas — diz o Padre. — Vão abrir minas. Volfrâmio — diz Laura. E máquinas, instalações — diz Marques ainda. Movo o cavalo? A tarde alonga-se, a capela de S. Silvestre brilha ainda, branca, intensa, não há nuvens no azul. Marques firmou a rainha em ataque oblíquo. Mas pede-me licença, acaba por retirá-la — por quê? De súbito Laura dobra-se toda, a cara quase sobre o tabuleiro. Que quereria o homem? Alguma escola noturna, talvez, a bênção do Padre para as máquinas. Não sei. Marques acaba por repor a rainha no ângulo de ataque. Não gosto destas mudanças: uma pedra joga-se uma vez. Diz que precisa de nós, da nossa ajuda. Para a gente cooperar. Mudança de hábitos, o povo pode perder a cabeça. Sim — disse eu. Ganharei o jogo? Perco sempre. Por que tentar ainda? Ganhar uma vez. Uma vez só. Às vezes penso: ganhar uma vez e não jogar mais. Esqueceria as derrotas, a memória do homem é curta. E no entanto... Começo a sentir-me bem, perdendo. Quer dizer: começo a não sentir-me mal. A capela de São Silvestre já não brilha. Mas ainda se vê bem. É triste o entardecer, bóiam coisas mortas na lembrança, como afogados. Uma nuvem clara passa agora não sobre o monte de São Silvestre, mas sobre o outro, o pico d'El-Rei. É um pico menos aguçado, forma um redondo de uma cabeça. Há quanto tempo já lá não vais? Para o lado de trás, vê-se o sinal de uma aldeia (aldeia?), um sinal breve, trêmulo, branco. Quando se olha, o tempo é imenso, e a distância — a vida é frágil e temos medo. Dou xeque duplo, vou-te comer a torre, padre. Laura tem um gesto de quem me não aprova. Está sempre de pé, sempre de pé. Capítulo 3 DORMI mal. Frio terrível — alguma janela mal fechada? Dormi mal. A casa é velha, decerto, mas isso não é razão: foi toda arranjada há pouco tempo. A roupa é bastante. Mas deitei-me enregelado, os pés úmidos da neve. Olho através da janela, a neve cai a todo o horizonte, o uivo de um cão ondeou pelo ar. Havia um que me parava à porta do quintal, esperando, esperando. Eu pensava: a força estúpida da vida. Estúpida? Cai neve, olho-a. E os meus olhos são longos como a esperança do cão. Um dia, por fraqueza, chamei-o, dei-lhe um osso. Foi um ato imprevidente, porque a esperança realizada começa logo outra vez desde o princípio. Por que não parar? O meu horizonte é este. Há outro para lá? Não quero ir ver. Um dia fui com Vanda... Vanda! Teu nome. Como um vento do norte. Fui contigo ao monte mais distante que se via do monte de S. Silvestre: havia outros montes para além. Naturalmente, se continuasse, voltaria ao ponto de partida: é a forma da vida humana — ou não? O círculo. Tomo o serrote, o machado, uma corda. A aldeia fica numa pequena plataforma, no cimo de um tronco de cone. É um cone suficientemente destacado, unido ao corpo da montanha por uma espécie de ponte, digamos, por um "istmo". Um caminho percorre essa espécie de ponte. Depois continua no flanco da montanha, ultrapassa-a ainda e vai dar à terra mais próxima que é a vila e fica a uns dez quilômetros. Quando foi das minas alargaram-no. Mas quase não dava para se cruzarem dois carros. Como só chegava aqui e deixou de servir, cresceram ervas, a água do inverno utilizou-o em vários sítios. Os cães. Já não devia ouvi-los. A neve cai sempre — cessará um dia? cai sempre. À porta da casa hesito. Foi uma boa idéia ter marcado a campa de Águeda com estacas. Assim, olho para lá e lembro-me — para quê? Às vezes penso que, se não forçasse a memória, a esqueceria depressa. — Estás velho. Bem sei. Os anos são altos, envelhecemos subindo e a sabedoria é isso, ver distante mesmo o mais perto: o franzir dos olhos dos velhos, quando nos fitam ao pé, como se estivéssemos longe, como se fôssemos estranhos... A neve range-me sob as botas, neve pura. Subo ao adro, rompo depois à direita por uma quelha1(Viela estreita.) donde parte a ligação para o corpo da montanha: há uma mata logo aí. É uma mata nova, cerrada e virgem. Mas tudo é novo e virgem à minha volta, a minha responsabilidade, é imensa. Dobrado o dorso do monte, o caminho desce até a uma capela longínqua que do alto se não vê e onde há uma romaria em setembro. Quantas vezes lá fomos? Mas só me lembro de uma. Esfrego as mãos enregeladas, serro um tronco de pinheiro. É um pinheiro novo e tenho pena. Dói-se para o grande silêncio em redor na grande invasão da neve a toda a vastidão do horizonte. Ecoa o cântico do meu triunfo? Um homem existe sobre a face da terra. O serrote enterra-se no tronco, pára a meio. Atiro o machado, os golpes repercutem no espaço deserto, o universo responde-me. — Que tens que fazer aqui? Encolho os ombros, esfrego de novo as mãos, atiro de novo o machado. Possivelmente o meu filho virá um dia. Possivelmente um dia saberá que é meu filho. E pensará: "vou ter com ele, vou recomeçar a vida desde o princípio". Mas não sei porque me lembra só essa romaria. Fui eu, minha mãe e Norma, minha irmã. Saí#mos de manhã cedo. Vamos pelo descampado da serra, chão de pedras, de tojo, e em volta o silêncio de horizontes. Algum regato para ali perdido atra#vessa o caminho, passa adiante, entretido com as suas lembranças de verão. Às vezes, imprevista#mente, o outono pende para as bermas, compacto de frutos. E ao alto, e sempre, o céu limpo como um diadema. Despem os casacos, os homens, num tropear leve de poeira, as mulheres de negro arrastam-se, multiplicando os passos invisíveis sob as saias folhadas. Sombras solenes de pinhais, clareiras de sol descendo das ramadas como dos vidros de uma igreja. Norma vai comigo, caminhamos de mãos dadas? minha mãe vem atrás com as suas contas e a sua aflição. Aflição de nada — dos anos, do tempo, ó boa mulher, dos pecados cometidos através das eras, e dos outros, dos que se hão de cometer, mulher ungida pelo destino do mundo. Levo Norma pela mão, atravessamos a terra árida, algum imprevisível campo de abóboras, espalhadas pela terra como cabeças decepadas de gigantes, relembro, vou com ela, mas quando? aconteceu um dia, fora do tempo, dourada legenda. Tão ingênua. Corto mais que dois pinheiros? só posso levar um de cada vez. A certa altura Norma desprendeu-se de mim, correu desajeitadamente por um campo de tojo até duas grandes lajes redondas, e encostou a cabeça como se escutasse. Corro atrás dela e en#costo o ouvido também. Não ouves? — pergunta-me. Cerro os olhos intensamente, com todo o meu corpo à escuta. Havia um rumor breve, vindo do ar, do meu coração excitado, talvez de dentro da rocha. Não ouves? — perguntou-me outra vez. Meninos! — gritou a nossa mãe, parada no caminho. Voltamos a correr, Norma quis saber ainda intimativamente se eu ouvira. E eu disse, já abalado: Não sei, Porque as certezas são também um modo de força de vontade. Ouviste — decidiu ela. — São as bruxas. De noite andam nas matas, de dia metem-se na laje. Não na pequena: na outra, na grande. Doem-me os pés, do frio. Às vezes penso: sentar-me aqui, morrer aqui. Seria um erro. Alguém tem de ficar. E o meu filho pode vir um dia: que iria ele dizer? Ele é daqui também, desta serra, destas pedras, desta terra difícil. Tomei de novo a mão de Norma, olhei atrás ainda a grande pedra escura. Depois desatamos a correr cheios de susto e excitação, ultrapassamos a nossa mãe que parou, intrigada com o nosso alvoroço. E uma hora depois chegamos ao largo da capela. Romeiros dispersam- se em grupos pelo recinto árido — da nossa aldeia? de outras aldeias distantes e desconhecidas? encostam-se a varapaus. Fato1(terno, roupa ) novo, camisa lavada, estalando de brancura, conversam devagar, o olhar parado na eternidade, no raiado dos horizontes. No alpendre da capela, mulheres aninham-se, enoveladas de saias. Têm os olhos inchados do sono, da noitada que velhas promessas as obrigaram a passar ali. No altar da santa ardem os restos de velas acesas pela noite, dependuram-se os ex-votos de cera — mãos suspensas de um cordel1(barbante), pés, narizes, por um golpe de seitoira,2(espécie de foice) impigens, furúnculos, misérias de um corpo com pressa de apodrecer. E cravos, de papel já desbotado, pelos cravos 3(Verrugas) nascidos entre os dedos, na juntura das unhas, por uma noite, imprudentemente, se terem contado as estrelas. Trágica gente, ó povo! humildade recolhida. E eu vejo-vos ainda, pesais-me na lembrança por quê? relembro o pasmo que assoma ao vosso olhar dorido, olhar terno. O pinheiro arrastado grava o sulco da minha passagem, não para a neve, anula-o em esquecimento. Corro os toldos das barracas armadas pelo largo. Eu e Norma. Bonecas, louças, bugigangas, o sol no ar. Amplo, trêmulo, vibrando por toda a serra. Era a hora da missa, minha mãe fez-nos um gesto grande desde o meio do largo. Mas ao dirigirmo-nos para a capela, adiantou-se-nos uma cigana com os braços estendidos, estendia-os para minha irmã: A sina, minha querida. Não paga nada. E ria. Cresciam-lhe os dentes como num re- lincho. Tentava tomar-lhe a mão — a sina. A sina, menina. Não paga nada. No largo, só o silêncio. E através dele, de vez em quando, o cântico da capela subindo alto, dando a volta pelos montes. Minha mãe já virara costas, segura de que não íamos demorar-nos. Norma, pálida, fitava os olhos da cigana, a cigana apoderara-se-lhe já da mão: Há de encontrar um homem que lhe queira bem. Há de casar cedo, mas depois... Suspendeu-se um instante. Mas já não lia a mão: fitava os olhos de Norma — os cânticos ces#saram. O largo estava deserto, havia sol a toda a roda, a aragem ressoava nos pinheiros, silêncio imó#vel pelo céu azul. A cabeça da cigana avançava sobre Norma, os olhos dilatavam-se-lhe — "mas depois..." ... há de fazer uma viagem grande, grande. Até ao cabo do mundo. E ainda mais para lá... Tinha a voz surda, os olhos raiados. Norma deu um grito enorme, arrebatou a mão à cigana e fugiu. Eu corri atrás dela, olhei ainda a cigana lá de longe — ela ficara imóvel, no meio do largo. E sorria, num relincho imenso e sem som. Arrasto o pinheiro pela aldeia, cai neve. Numa casa ao fundo da rampa, uma parede desabou. Vêem-se-lhe dentro uma mesa, algumas cadeiras, uma litografia num muro. E neve sobre a mesa, sobre as cadeiras. O uivo de um cão ao longe, gemido fundo. Embate no céu de cinza, depois desce pela encosta, desfaz-se no horizonte. Ouço-o. Capítulo 4 E a certa altura a aldeia transfigurou-se — já tinha morrido Norma? creio que sim. Ah, por que não grito? Há um pudor que me reprime — um pudor? Estou tão cansado. Uma fadiga. E todavia vou à lenha. Cumpro os gestos animais todos, quase todos. Um aperto na garganta, nos membros, um olhar vago, longo. Quebrou-se o espelho — foi bom? Para que quero eu um espelho? O espelho é o maior palco da vida, representamos nele o que queremos que vejam em nós. Mas a mim ninguém me vê. Hei de ir à vila um dia destes. Dez quilômetros. Eu disse dez quilômetros? Talvez não seja tanto, mas tenho de ir a pé — é longe. Luís Barreto vem à Escola pela tarde, tempos depois. Felizmente é quase a hora do fim da aula. Mando sair os alunos, eles hesitam um instante, saem logo a seguir com alarido. Ouço-os no pátio, depois os gritos ecoam aqui e além como breves explosões luminosas, perdem-se longe, pelo silêncio das matas. Luís Barreto senta-se numa cadeira, no espaço que separa as carteiras da secretária. Por que não grito? Há um urro longo, travado na garganta. Com um pequeno jeito, uma condescendência, uma breve tolerância, não seria tão fácil? Mas não é. Uma vez gritei. Foi terrível, julguei endoidecer. Senta-se numa cadeira, voltado a poente, há luz no ar. Quando fico só na sala, com todas as janelas abertas, às vezes cerro os olhos, respiro fundo, e a paz da terra é tão funda, que encosto a cabeça à secretária e choro. Depois reparo,que não chorei. Tenho uma alegria excessiva como quem vai suicidar-se. Vamos" começar este verão — diz Barreto. Tem as mãos no ar entestadas uma à outra pelos dedos. Depois, lentamente, os lábios planos começam a encrespar-se e uns dentes níveos desnudam- se à luz. Alguém cantou longe, para lá do tempo e da vida. Ouço. A voz morreu. O Padre Marques... — diz a face seca do homem. Sim. Tem medo. Tudo aqui está "virgem". Trazemos a "perdição". Não gosta da perdição? Mas não sorriu — sorriste alguma vez?, agora não me lembro. Está calor, senhor engenheiro. Se abríssemos todas as janelas? São quatro janelas, estavam todas abertas, mas uma delas fechara-se com o vento. Depois vim sentar-me outra vez à secretária. Luís Barreto ergueu- se da cadeira, veio apertar-me a mão em silêncio. Tinha a mão engelhada e fria, as gelhas escorregavam entre os meus dedos. Ainda me fez uma ligeira vênia, ou eu o julguei no baixar dos olhos que é o que dá no homem o sinal de baixar. Depois fez uma rotação sobre si, marchando para a porta da sala sem se voltar. Mas possivelmente se eu gritasse. Se eu chorasse, o ar tornar-se-ia mais respirável? O olhar mais limpo. Vem-me a opressão não sei donde, porque eu estou calmo, absolutamente calmo. Nem sequer me sinto triste — ou sinto? É estranho. Haverá ainda algum sentimento para a última verdade? Digo a última — que última? A neve cessou. Abro a janela da sala que se encheu de fumo — má tiragem da chaminé — mas nem há vento... O ar gélido na face. E um aroma intenso, imóvel de eternidade. Não da vida ou da morte — para lá, para lá onde? Virá sol ainda? Pouco a pouco, na encosta fronteira, na que termina no alto pelos dois picos, vão surgindo montes de areia ao pé de dois orifícios, como nos buracos das formigas. Mas antes, antes — foi antes? — dois grandes barracões, um do lado de lá, outro do lado de cá, erguendo-se pedra a pedra como que por si, eram poucos operários. Numa tarde de domingo, o Antônio Cuco foi buscar a enxada a casa e partiu-lhe o aço nas pedras do ribeiro. Depois embebedou-se com alarido na taberna do Coxo porque a vida de servo acabara. Simultaneamente, foi-se erguendo uma vivenda, mas do outro lado da plataforma em que assenta a aldeia, perto da minha casa, na descida da vertente que entesta ao grande horizonte. Já lá não passo há muito tempo. Mas da última vez, Águeda ia comigo — que íamos fazer? — um dos lados da vidraça da grande marquise1(jardim de inverno) estava estilhaçado. Deviam ter-lhe atirado pedradas, como se atiram sempre ao que está condenado. Estilhaçado. E pedras dentro. O sofá vermelho, corrido ao longo de um muro, perdera a cor. Havia pedras dentro, lixo. Os estores2(persianas) desengonçados suspendiam-se pelos fios, presos só num dos cantos. Eram estores brancos, de plástico, suponho, suspensos do lado de dentro. Nas tardes breves de inverno, Vanda a meu lado, olhávamos o vale imenso, por entre os troncos de pinheiros, apagando em neblina, até ao limite dos sinais das aldeias ao longe. Águeda parara a meu lado, séria, hirta, presa da minha meditação. Subitamente apanho uma — disparo-a contra a vidraça, o estilhaçado tilinta no silêncio. Por que o fiz? o meu filho pode vir um dia. Agora erguia-se luxuosa e breve, no granito trabalhado, nos vidros lúcidos, no colorido fresco do telhado, encostada à montanha. Outras casas novas proliferaram entre as casas negras da aldeia. Poucas. Pequenos remendos à miséria. Da vila vie#ram fios com energia elétrica, suspensos dos postes de cimento que se escalonavam pela montanha. Às portas da aldeia ergueram uma "cabina" que é uma espécie de torre quadrangular, rebocada de um amarelo torrado. Alguns dos postes não são postes, mas fortes torres metálicas com isoladores grossos de porcelana. De longe parecem esbeltos, de estrutura delicada, mas de perto entroncam-se de robustez com largas pranchas de aço cruzadas — Van- da... Quando vestida na sua saia e casaco tinha uma delicadeza frágil, flexível como um caule. Mas nua, oh. Intensa, fortíssima — Vanda! Onde? onde? perdida memória, e é estranho como... E uma noite, toda a aldeia brilhou como unia constelação. Vi-a uma vez do alto de um cerro, brilhava. Imóvel, na sua longa vigília, refletia as estrelas, e a toda a roda alastrava o negrume sem fim. O caminho que desce ao vale foi alargado. Passam carros, camionetas, com o insólito rumor a óleos e a ferragem. Ressoam pelas matas, cheiram a cidade e a indústria. Dos barracões cresce e expande-se o rumor das máquinas. Trabalham noite e dia numa obstinação. A certas horas apitam. São apitos lúgubres como olhos de doidos. Ficam no ar muito tempo até quase se perder a respiração — ouvi-los-ão lá em baixo? Pelas ruas passam fatos de ganga1(roupas de brim). As janelas assomam faces inesperadas, ou às portas. Os homens de ganga param, voltam-se, dizem uma palavra breve, de cigarro ao canto da boca, e riem um riso oblíquo e dominador. Donde vieram? A neve não para. Vieram da vila, da cidade talvez. Triunfam facilmente do tempo e da morte, são eficientíssimos, têm poderes terríveis. São filhos do aço, e das pontas dos dedos saem-lhes arames que vão cruzando pelas ruas, tecnificando em linhas retas a aldeia toda. São extremamente eficazes e plausíveis, tecnificam tudo, sabem tudo, simplificam tudo. São admiráveis, a aldeia gosta doida#mente deles. Vão às tradições, às leis ancestrais, à linguagem, aos sonhos, aos usos e costumes e eletri#ficam-nos. A filha do Vedor está prenhe. Águeda estará prenhe também? Duvido. Mas é possível. E que tenho eu com isso? Vou escrever ao meu filho — ó Deus, e a neve que não para. Vou escrever- lhe: vem! E ele chegará um dia inesperadamente, bater-me-á à porta. E eu dir-lhe-ei: entra, entra em tua casa, tu és daqui. Depois levá-lo-ei a tomar posse da terra, mostrar-lhe-ei as oliveiras, os campos incultos, o horizonte. Ele cerrará os olhos, invadido da imensidade, tocará com as mãos o chão de sua origem. Conhecerá os dias e as noites, as manhãs de sol, as tempestades, a memória — não a memória, para quê? Interrogará a montanha e ficará calmo. Dir-lhe-ei ainda: Começa. Não tragas nada contigo. Começa. Não tens nada para me dar? — perguntará. Dar-lhe-ei tudo o que tenho e que é pouco. Vou escrever ao meu filho — mas tu não sabes onde mora. A filha do Vedor está prenhe. O meu filho virá?- A neve não para. Capítulo 5 SIM às vezes vou à missa. A aldeia fica deserta a essa hora e então por vezes subo até ao adro e chego mesmo a entrar na igreja. Entro e tudo é já calmo, sem "problemas", sem interrogações. Conheço o Padre Marques desde a infância, tivemos discussões tremendas. Depois acalmamos, ou quase. Chegamos ao alto da vida cansados e olhamos quase indiferentes e em silêncio o que abandonamos pelo caminho: ele fechado na sua sabedoria, eu na minha. De certo modo, temos pena e tolerância um pelo outro. Com quem ele às vezes discute é com Vanda, mesmo com Ema que veio aí visitá-la. Quando me encontra no adro ao fim da missa, convida-me para almoçar. Vivo só, Norma já tinha morrido. E antes dela o filho. Antes do filho, o marido. Antes do marido, a nossa mãe, ou não? a nossa mãe não morreu depois do filho? e mais longe ainda, no começo do mundo, o nosso pai. Relembro os mortos, amo-os, mas quedou em mim a agitação. Revejo-os através do meu olhar fatigado e um sorriso ou quê? abre dentro de mim. O meu corpo ressurgiu dentre eles, realizei a minha iniciação através das raízes — que é que pode sobressaltar-me? A paz é minha, eu a vi. Resisti à agonia, estou vivo. Sem dúvida, o resultado era imprevisível, porque muitos caminhos partiam daí e eu podia rir com um riso canino, ou andar aos gritos pela vida, ou chorar à espera de resignar-me, ou olhar apenas de olhos enxutos e esperar as flores novas sobre os túmulos dos mortos, ou. Estou vivo. A terra existe. Eu sei-o. Pela hora da missa, no silêncio quente da aldeia deserta. Como há quarenta anos, eu só, junto ao ribeiro, olhando a água a correr, e um bando de estorninhos vindo de longe. É um bando enorme, milhares de pontos negros, talvez, balançando no espaço, jutando-se em massa, distendendo-se, alongando-se como um enxame. Gritam estridulamente pelo ar, caem em massa, pesadamente, sobre a figueira, com um farfalhar de asas de pano. Corro do ribeiro, ao longo da rua, dou um berro enorme, inesperado no silêncio: o bando dos estorninhos desprende-se lentamente da folhagem, toma balanço no ar em grandes círculos vagarosos, vai dar a volta pelos quintais ao longe, sobrevoando as oliveiras, vem de novo crescendo, milhares de pontos negros crescendo no azul, aglomerando-se de novo, bandeando-se como se se balouçassem ao vento, caem de novo em massa sobre as folhas trêmulas da figueira. E de súbito relembrei-me do terror indizível da infância — estou calmo agora? Fora a memória talvez do meu grito por sobre a aldeia deserta. Os milhares de estorninhos investiam-se de uma força obscura de praga bíblica, como nas estórias das nuvens de gafanhotos, a natureza na sua oculta fatalidade. E como há quarenta anos, dei conta que subia a rampa que leva ao adro da igreja onde os primeiro homens começavam a aparecer, vindos da missa. Encosto-me a um canto a vê-los sair. Enfiam o chapéu com as duas mãos, andam vagarosos em movimentos rudimentares. Dispersam-se em pequenos núcleos à sombra das breves árvores, ficam imóveis olhando o silêncio. O sol vibra nas pedras do chão, estremece no ar. Às vezes cresce no espaço um rumor de máquinas: trabalharão ao domingo? Não é provável: algum motor em afinação. Das portas laterais e pelas do fundo, as mulheres saem em pequenas escorrências1(filas) negras. Deslizam pelo adro, pela calçada, evaporam-se na tarde de sol. Acendo um cigarro e quando reparo todo o adro está deserto. Só as árvores e a sua sombra. E o sol vibrante, trêmulo. Padre Marques sai no fim. Ouço o rangido da chave da última porta que fecha, e que dá para o adro do lado da casa dele. Vê-me, faz-me sinal. Quando entramos em casa, Laura já está à mesa, sozinha, esperando. A criada, quando nos viu, pôs logo um talher para mim. Comemos no quintal, sob um dossel de videiras, armado em varões de ferro com arames. Numa caleira de pedra um ribeiro corre com o brilho fresco do seu murmúrio, ao longo das traseiras da casa. É agradável ouví-lo. Lembra um verão muito antigo e as suas tardes, as suas noites. Tento recordá-lo agora e não consigo. Talvez da neve, desde deserto polar. Terei de reinventar tudo? até .a memória? Mas lembro-me de muita coisa, a memória dura ainda. Avulsa, estranha, como súbitas luzes — escreverei para esquecer? Como, quem confessa uma culpa? Para lembrar ainda, para ser tudo ainda fora do tempo e da morte? Há de haver talvez uma razão, Quando era novo, tinha razões quando queria, porque tinha os músculos no seu lugar e estava cheio de conquista. Mas a vida leva-nos tudo, estraga tudo, apodrece-nos o corpo e quanto tínhamos criado nele. Às vezes lembra-me: vou enterrar depois os papéis no quintal. Pode ser ao pé de Águeda. Mas não: seria ridículo. Ridículo para quem? E se eu os guardasse para o meu filho? Não tens nada para me dar? — perguntará. Tenho de lhe dar tudo. Que é que se passa com Águeda? — pergunta-me Padre Marques. Laura, a irmã, ri, ri. Toma o guardanapo e abafa o riso na boca. Eu fico calado e olho-a muito sério. Mana! — repreende o Padre. E ela cala-se abruptamente, ficamos todos em silêncio, olhando-nos mutuamente. Mas eu não sa#bia nada, a não ser o que estava à vista de todos. Mais tarde, ainda lhe perguntei uma' vez: Águeda! Por que fizeste aquilo? Ela não me respondeu nada, os olhos fitos no lume, e a balançar-se, a balançar-se. Estava horas assim: sentada num banco raso, as mãos no regaço e o busto inteiro para baixo e para cima, para baixo e para cima. E o pai? — quis saber ainda o Padre. Quando vim para aldeia, pensei em casar. Vim tarde, porque a Escola não vagou tão cedo. Fui professor numa aldeia muito distante e de tal modo que nem sempre vinha a férias, mesmo no verão. Tive enfim a Escola e foi bom, porque algum tempo depois — três anos? — Norma ficava viúva. E então eu disse: Águeda é bela. Disse-o como conclusão de um raciocínio obscuro, era pois uma conclusão absoluta, sem nada que a justificasse. Morava para lá do cemitério, o pai tinha estado no Brasil e só casou quando veio. Eram dois irmãos: ela e um rapaz tarado que morreu em África. Quando pensei nela, já não era nova — trinta anos? mas era ainda fresca1(jovem). Branca, fina e ágil como uma romã — que é que quer dizer "ágil como um romã"? No verão usava vestidos claros e eu imaginava-a nua em pé, ao sol, toda exposta no alto de uma rocha. No inverno, a sua face rosada. Brilhava entre agasalhos de peles, e violentamente eu sentia o seu corpo morno e liso, íntimo de umidade... Às vezes passavam- se dias e dias que a não via na aldeia. Dias e dias. Alongava-me então até à sua casa e mais para alem. Ela lá estava à janela, as mãos finas saídas do peitoril, como dois lírios. Eu dizia: — Boa tarde. E ela então reparava em mim. Tinha olhos claros, fechando para o cinzento, e um olhar intenso, urgente, angustiado como o de um cão. Deves ter-te encerrado nessa angústia — que angústia?, quando vieste para minha casa. Porque se contam as palavras que disseste. Angústia, ou terror, ou lima cólera absurda. Agora emudeceste para sempre. A neve sobre a tua campa. Dorme. E o que perdura da tua memória para mim é apenas aquele grito enorme que me atiraste da janela, quando. E a tua última palavra, sufocada de morte e de maldição. Estávamos só os dois, a aldeia fora abandonada. O vento, o vento. Custa-me escrever. Prolongam-se nele os uivos dos cães. E o vento? A terra uiva. — Esse engenheiro Barreto — diz-me o Padre —. Eu, que fosse compreensivo. Não há que ver, a aldeia melhorou. Mas foi tudo muito depressa. A filha do Vedor emprenhou. Águeda estará prenhe? O pai é que teve a culpa: nunca me gramou2 (topou). Eu era um professor primário, cerca de um conto por mês, e Águeda estava condenada a morrer ali na aldeia. Andara em colégios, conhecera o mundo plausível para lá das fragas da montanha. Norma, aprovara o meu projeto, mais ainda do que o Antônio, o meu cunhado. Não foi fácil a vida com os dois. Decerto eu ajudava nas despesas. Mas não era bastante: num convívio assim, tem de legitimar-se até o ar que se respira, o espaço que se preenche, que é sempre muito maior do que o espaço que se preenche. Foi difícil. Às vezes havia desavenças en#tre os dois, eu não tinha o direito de intervir, a ter opinião. E intervindo, tinha de ser a favor do Antônio, porque essa era a forma de uma obscura deferência para com a minha irmã. Era um abuso o simples fato de estar ali. Às vezes parecia-me que Norma me recusava o simples direito de gostar da serra pelos dias de neve ou dos poentes de verão. Como se fosse um roubo a um bem pessoal dela. Norma mudou com o casamento. Sobretudo depois que teve o filho. Hei de contar. Foi tudo muito depressa — murmurou ainda o Padre Marques. — E Deus não teve conhecimento. A tarde cresce no quintal. Uma brisa grande, vinda do espaço, estremece nas folhas da parreira. Laura está imóvel, a cabeça inclinada, os olhos baixos, fitando longamente a sua loucura. O ribeiro paira na caleira de pedra. Foi tudo muito depressa? Devia ter-me casado antes. Mas o pai não se entusiasmava, ia adiando. Águeda olhava — para onde? Havia coisas para além de nós e do pai e da montanha. Não lhe vou dar um desgosto — dizia. — Quando ele se não opuser, então... Porque o pai era viúvo e sofria do coração — morreria em breve? Supõe que o matas com o casamento. O vento. Ou os cães? Passa o uivo por sobre a casa, a neve cessou. Mas nem um raio de sol, uma gota de chuva. Com o frio, a neve vai endurecer, toda a montanha ficará como um cristal. Morrerá em breve? Comecei a acreditá-lo. Então a vida se ordenaria sem atropelos, sobre a paz final dos mortos. Mas não morreu. Apareceu então aquele tipo — engenheiro? agente técnico? —, era um rapaz vigoroso, decerto belo, um ar livre e fértil de dominador da vida. Que é que a isso em Águeda respondeu? Tinha carro, um carro sport de dois lugares, mas podiam sentar-se pessoas atrás. O pai de Águeda sentava-se aí. Uma vez vi-o no adro, um pé firme no estribo do carro, ou no pára-choques, a ler o jornal. Águeda estava na igreja? o rapaz também lá entrava. Entrava e saía como por todas as portas da vida. Às vezes eu pensava que a minha "irreligiosidade" era um inconveniente. Águeda um dia disse-me que sim. E no entanto o pai ia ou não ia à missa. Depois o carro sport, só com dois lugares, começou a levar Águeda para longe. Ver o sítio dos seus sonhos? O pai instalava o pé no pára-choques e lia o jornal. Capítulo 6 ESTOU só. Mas é-me impossível gritar — para quê? Às vezes, raramente, o grito sobe, entala-se-me na garganta e o mundo recua bruscamente para uma estranheza absurda. Mas é raro e tudo reflui de novo como uma pedra que subisse muito alto e desistisse por fim. E ainda bem, porque os sentimentos são um vício — ou não? O povo diz "o comer e o ralhar vai do começar". Mas tudo vai do começar: o amor, o ódio, o choro, a ternura, o medo. E quando caímos nisso, o que nos sustenta não é o objeto do sentimento, mas o próprio sentimento. Porque o objeto é um pretexto, e o sentimento é o prazer de nós próprios, que não somos pretextos — será assim? Oh, que importa. As "idéias" são murros um pouco mais civilizados — e tu estás velho e estás só, já não podes esmurrar ninguém. Abre os olhos totalmente e vê. Agüenta o impacto da vida e vence-a. Recupera-a desde as raízes, obscura, lenta, verdadeira. E se ela é a tua invenção, esquece tudo, inventa-a desde o início, cospe na que te deram — de que é que serve? Ou estarás tu envenenado para sempre? Quando em pequeno, escolhi de uma vez um pintainho de uma ninhada nova de março. Marquei-o, aquele era o meu. E quando já era um frango, atei-lhe um cordel, prendi-o a uma oliveira. Porque o frango fugia do quintal e os donos dos outros quintais atiravam- -lhe pedradas. Quando me pareceu que o frango (era uma franga) já sabia cuidar de si e portar-se com juízo, desatei-lhe o cordel da pata. Mas a franga, habituada a chegar ao extremo do cordel e a esticar a pata quando já não tinha cordel preso corria alvoroçada até o antigo limite do cordel ê estacava aí, bruscamente, de pata retesa para trás como quando ainda havia cordel... Virá sol? A massa das nuvens arrasta-se lenta pelos cumes dos montes, passa vaga e flutuante pelos dois picos erguidos. Vejo-os desaparecerem atrás da névoa alvadia, ressurgirem de novo, direitos e mais altos. Um oco de silêncio escava-se vastamente no vazio do universo. É um silêncio opaco como o de uma cripta saturada de uma compressão de ecos — virá sol? Uma nódoa luminosa repassa como gordura, lá ao alto, a pasta grossa das nuvens. A luz íntima da neve começa a vir à superfície, imperceptivelmente cintila. Neve instantânea, neve intacta, só eu a uso. Filamentos de seda delimitam o desenho das coisas. Fímbria, timbre, limite — que inverossímeis palavras? que finas titilações? tinidos da memória, ouço-os. A neve estende aos meus olhos a esterilidade de tudo, o início limpo. Gravo nela a minha animalidade quente e escura. Mortos que passastes — vejo-vos. Fito-vos o olhar que me fita, longo, piedoso, triste. Como numa galeria, de um a um, lá no alto, eu parado à vossa frente — nada dizeis? Nada dizeis. E de súbito, uma música ignorada cresce-me de longe, como um aceno humilde, os meus olhos tremem. Suave e longínqua e tão ilícita. Sobe em mim, aperta-me o pescoço como uma criança — a ternura é o mais difícil e enternecemo-nos tanto. Que é que me comove? Como uma árvore, às vezes penso, o homem pode subir alto, mas as raízes não sobem. Estão na terra, para sempre, junto da infância e dos mortos. Sobre os telhados a neve arredonda-se fofa, o silêncio brilha. Olhares súbitos e líquidos esprei#tando numa oblíqua adivinhação. Espreitam-me às esquinas em linhas cruzadas, riem. Quando voltar o bom tempo, hei de consertar algumas casas, a do Chico da Cuca, por exemplo, que tem a porta des- conjuntada. Voltarão à aldeia todos, ou os filhos deles, ou os filhos dos filhos, porque o mundo re#nascerá — voltarão? Perguntar-me-ão depois todos: Que fizeste da esperança? Norma adormeceu sobre a cama, não se despiu. Tem a face branca e rígida, os olhos abertos, terríveis, Manhã alta, saía a luz por debaixo do quarto. O corredor era ali escuro e a tira1(raio) de luz brilhava sob a porta como uma vigília imóvel. De um quarto ao lado vinha um aroma quente as maçãs. Tinham sido dias difíceis desde a morte do meu cunhado, morte estúpida. Ele estava vivo, perfeitamente vivo, ou quase, só o médico, escoado de palidez, o vira já morto no seu corpo inteiro e natural. Para lá, há o sono de minha mãe numa tarde ofegante de verão e para sempre. E mais longe, já no fundo do tempo, o de meu pai. Comovo-me? Enterra os teus mortos e a terra será fértil com novas flores. Norma! Sim. Penso casar com Águeda. O sol da tarde batia os dois cerros de frente, ela olhava-os pela janela aberta. Podíamos viver todos depois — acrescentei. ...todos depois. Temos de encarar as coisas como são. Não podes ficar só. Norma baixou a cabeça, enrolou-se toda em si como um feto. Depois olhou-me de baixo, obliquamente, com um olho vítreo e riu. De que é que rias? Fora sempre assim: seca, agressiva. Atravessara a vida roída de uma cólera íntima. Não a desperdiçava em gritos, em discussões, mas economizava-a em frases breves e ocasionais ou em longos silêncios. A mãe temia-a e o marido. Só eu passava através da tua ira até ao calor da nossa infância, ou mais para lá — para lá onde? O sol não veio, a nódoa luminosa reabsorveu-se toda nas nuvens. Terei lenha ainda? Preciso de ir à vila, mas não agora: atra#vessar a serra como? eu amava a minha irmã. Amava-a já desde antes da infância, desde a revelação da vida no espanto do mundo, nos ralhos da casa, na estranheza dos homens. Amei-a em face da galinha morta de febre, aparecida uma manhã, já dura como uma pedra, imóvel, as peles do bico roxas. Empurrei-a com o pé, estava morta. Havia uma aliança entre nós, porque a terra era enorme e o nosso pai atormentava-nos de berros porque mexíamos nas coisas e partíamos tudo e sujávamo-nos no quintal como a nossa mãe lhe explicava. Havia uma verdade revelada para nós ambos. Era nossa. Não a sabíamos. Havia um pacto entre nós, antiquíssimo. Depois, Norma casou e rompeu o pacto. Mas eu sorria, porque o pacto não se rompera. E no entanto era belo que Norma o supusesse, para ela erguer assim a vida toda nas mãos. Uma noite disse-nos: — Vou ter um filho. Terá o teu nome e o do Antônio, se for um rapaz. (— Vou ter um filho — disse-me Vanda. — Mas não terá nunca o teu nome—.) Era um rapaz, chamou-se Antônio Jaime, e ao fim de três anos morreu. Mas três anos foi o bastante — ela transfigurou-se. 0 pequeno era um príncipe, viera do sem-fim da legenda, ungido por Deus. Assim a vida toda se centrara ao seu mando. Certa tarde de verão armei um baloiço na figueira. Está lá a figueira, Águeda dorme ao pé das raízes. A tábua tinha furos para as cordas, era um baloiço a sério — quem o fez? Sim, lembro-me. Havia obras em casa, o carpinteiro meteu-lhe a broca quatro vezes, tivemos um baloiço eu e Norma. Possivelmente eu gostava ainda de me baloiçar — mas quem podia perdoar-me a infância? quem pode perdoar-nos? E então eu disse: Norma! Fiz um baloiço para o menino. Sim? Imagina. O miúdo entregava-se ao embalo e eu. Sacudíamos o mundo, as memórias recentes, era bom. Mas dessa vez o pequeno tinha uma calma estranha. E quando dei conta disso, olhei-o sobressaltado: tinha a face branca, os olhos revirados e espuma aos cantos da boca. Corri com ele para minha irmã. Norma ergueu um grito medonho, insultuoso, de raiva e aflição. O médico na vila disse que nada tinha que ver o baloiço com o ataque epiléptico. Mas Norma não acreditou, porque era preciso haver ordem na vida. Os ataques"repetiram-se durante uns meses, o médico disse: — Alguém mais na família teve ataques? Minha mãe tinha uma idéia: um tio-avô? Estava pois tudo no seu lugar, existia o sangue e a sua lei. — Nada nos garante que outro filho não venha assim. Depois, uma manhã, o pequeno apareceu morto. Estava imóvel na sua caminha de grades, tinha espuma branca nos cantos da boca — terei lenha para amanhã? Ó Norma, Norma. Serena e dura. E tanta coisa ainda por dizer, por explicar. Branca. A tua cólera muda e para sempre. E daí, talvez que a tua palavra não fosse já para mim. Para o teu filho? A vida é tão difícil. Capítulo 7 ATÉ que um dia, e decerto porque já não era nova, Águeda aceitou-me. Aliás, foi a Vieira que me facilitou tudo, a Santa Vieira — velha beata, chamavam-lhe Santa por isso? Uma tarde, saía ela do cemitério, apanhou-me na minha deambulação. Era grande, toda vestida de negro, ali à porta do cemitério, trazia um regador. Veio sobre mim, a passos largos e lentos, parou. Um sorriso imenso abriu-se-lhe em caverna, com dentes escavacados e podres, longo tempo, imenso, direita e enorme como um espectro — era verão? maio talvez. Boa tarde — disse por fim. Boa tarde. Pousou o regador, foi erguendo a mão ao alto com um dedo em pé, a manga do vestido a escorregar-lhe pela cana do braço: Senhor professor... Este é o caminho da sua salvação. Na terra e nos céus. Entendi — eh, eh. Tinha piada a Vieira — e continuei o meu caminho. Mas pouco depois, ouvi atrás passos grossos e refolhados, voltei-me. a Santa Vieira estava de novo à minha frente, pousou de novo o regador: —- Na terra e nos céus! Eu encolhi os ombros desanimado: Sem a ajuda de Deus... "Põe tu a mão que eu porei a devoção." Tinha o carão direito e os olhos bem abertos para eu ler através deles à vontade. E então eu murmurei devagar: Dava cinqüenta escudos... Ela pegou no regador, voltou-me costas e pôs-se a andar. Fiquei a olhá-la, negra e enorme, contra o fundo do espaço e dos dois cerros ao longe. Virou-se ainda, antes de dobrar a curva, disse-me no seu vozeirão : Nem é preciso tanto. E Águeda mandou-me dizer que sim. Quando? quando? Irrompe de novo a vaga do tempo. Mas tu não tens tempo: imóvel, presente. Ou tens apenas o futuro, ou alguém por ti ou para ti. Escuta: a terra vai renascer. Da primeira vez, porém, que nos vimos, não nos falamos, todos cheios já do nosso segredo violentíssimo. Ela atravessava a aldeia, de peito ao vento da tarde. Erguia a fronte, os olhos semicerrados, os cabelos flutuando, o vestido tênue boleando as massas do seu corpo. Vibrei-lhe um olhar trêmulo, ela relanceou-me brevemente, triste e distante. Decerto o seu destino decidia-se para além de mim, ou ela o supunha. Mas eu de que estou falando? Dorme. Pelos séculos dos séculos. A figueira vela sobre ti. Acaso o que procuramos é apenas a imagem de... ? Ema dizia: A Face de todas as faces. O que se procura sempre. Um dia, muito mais tarde, encontrei uma fotografia de Águeda, estávamos ambos na sala a consumir o serão. Era ali jovem ainda, ela. Jovem? Do tempo em que a namorei? Uma fúria, uma ternura, uma força brutal centrada no mais agudo, vinda dos dentes, das unhas dos pés. Quem eras tu? Que tinhas tu com isso? Obscura imagem da minha violência vã. Tomei Águeda nos braços, tu olhaste-me surpresa, ofendida, quase com desprezo, e violentei-a, violentei-a, violentei-a. Ela voltava a face de lado, cho#rando. Magra, envelhecida. Se eu tivesse uma palavra para ti. Para ti, onde? A noite cai, profunda. Precisava de ir à vila. Um sol grande, uma chuvada que viesse, longa, alagada ao horizonte. A neve brilha ainda palidamente, e do meu olhar mudo, entre um vago terror, sobe a trêmula interrogação. Mas a Santa Vieira organizou-nos o primeiro encontro. Tarde de domingo, tarde de maio, aérea de brisas — ou era verão? Mês da Virgem? do Coração de Jesus? Águeda vinha pela tarde arranjar as flores do altar — ou dar Catequese às crianças? Santa Vieira anexava-a ao seu império beato, mas admitia sem escândalo que ela se casasse. Há um escalão de pedra à entrada, passa um rego de água em frente, vem do quintal do Padre Marques, vem das nascen#tes da serra, desce para os quintais da encosta. Pela sombra das matas, pelos pomares floridos, efervescente, o cantar dos pássaros. Trilam como cordas de prata ao sol, explicam a alegria mais simples que é a alegria de ser. A terra vibra — ó Deus, a vida é tão estupidamente bela! Um perfume ondeia-me em pura excitação, profundo, visceral, demoníaco de uma juventude eterna. Cruza-se pelo ar, vem das pinhas novas, cheiro resinoso, vem das giestas da montanha, as abelhas cantam-no numa vibração dormente. Como de um corpo fresco, cheiro da terra virgem, a alegria é clara e trêmula como um olhar. Se eu te entendesse enfim, misterioso indício de uma verdade serena no recomeço absoluto — eu de fora, olhando, que é que me ilude ao encontro dos meus olhos? É uma tarde linda. Quando entro na sala, Águeda está já composta na sua cadeira. Aperto-lhe a mão, ela fita-me de olhos amedrontados. Boa tarde. Tem já, de perto, rugas aos cantos dos olhos. São as rugas da realidade, mas o nosso encontro não é real. Santa Vieira passa diante da porta aberta, para que nos não esqueçamos da perfeição. Tem o teto baixo a sala, oprime. O soalho está lavado e fresco nas tábuas corroídas de caruncho, empena- das de velhice. Paredes lavadas, esborratadas de um ocre recente, um galo canta ao longe. Estampas coloridas em velhas molduras, numa mesa uma redoma com uma Virgem e uma lamparina acesa, pela janela, fora, a alegria abre-se no irisado do ar. Águeda! É difícil dizer-lhe... Ela observava as unhas das mãos, dobrando os dedos, estendendo-os: Não disse nada ainda ao meu pai. A vida passa tão depressa. Não temos tempo a perder. Um dia digo-lhe. Quando? Um dia digo-lhe muito depressa: quero ca#sar com o Jaime. Sim — disse eu. Ouvimos passos arrastados no pequeno corredor. Depois os passos cessaram. Pusemo-nos os dois a olhar a porta: um ancião espreitava, cabelos bran#cos, barba branca, um olhar de suplício e de estranheza, fitando-nos, interrogando-nos. Boa tarde — disse Águeda. O velho respondeu: Hã... E foi passando pela porta a arrastar os pés. — É o pai da Santa Vieira — disse-me Águeda, mas eu sabia, naturalmente. Sente-se aqui — disse-lhe a filha, sentada decerto na soleira, o lenço caído para os ombros, a mão passando pela testa desafrontada. A vida passa depressa — murmurei ainda. Você quer casar comigo? — perguntou-me Águeda com um olhar frontal, lúcido e triste. Sim — disse eu. Firmava um pacto com Águeda, comigo, com a alegria da terra. Olhamos ambos a luz para lá da janela, a radiação invisível de uma indistinta presença, no silêncio suspenso, nos cerros direitos e longínquos, na tremulina do ar. Subitamente, Águeda ao voltar-se leve um riso estrídulo que lhe vergou a cabeça para trás da cadeira: imóvel no vão da porta, o velho fitava-nos com os seu olhos aflitos e inter- rogadores. Venha para aqui! — disse a Santa, da porta da rua. ) Águeda — disse eu —, como vamos encontrar#mos? Ela olhou o chão e começou a balançar o busto para baixo e para cima. Depois parou, voltada pa#ra a porta donde o velho desaparecera. Eu repeti a pergunta, Águeda fitou-me longamente. E de súbito teve um novo ataque de riso até a uma tremura de lágrimas. A sala adormecida na tarde de domingo. Passámos há tempos em frente da casa, diante da janela, Águeda vivia ainda. A caixilharia caíra de podre, pelas portas despregadas entrava um feixe do sol da manhã. Via-se o teto manchado — da chuva?, o telhado deve ter vindo abaixo. Algumas casas é fácil reconstruí-las ou evitar que se arruinem. A do Chico da Cuca, por exemplo, que tem só a porta a cair. Estive lá há dias, percorri as salas desertas. Vou escorar-lhe a porta, quando vier o bom tempo. Um uivo sobe do horizonte de neve. Não vai ser fácil — disse Águeda por fim, olhando para lá da janela o espaço trêmulo de luz. Podemos casar-nos este ano. A Santa disse que... Que havemos de fazer? — disse eu. — Não podemos estar eternamente à espera. Sim, se for preciso, a Santa. Levava-nos bilhetes, a Vieira, organizava-nos encontros. A casa tinha duas portas, uma dava para um quintal, eu entrava por aí. Se Norma. Águeda podia perfeitamente ir lá a casa — mas quem não repararia logo? Eu via a casa dela da Escola, só o telhado vermelho, para lá do cemitério. E depois do telhado não havia mais nada, só o vazio e a distância inverossímil. A chama da lamparina bulia imperceptível junto da redoma da Virgem. Era um copo vermelho, a lamparina, de vidro grosso. Havia um Cristo num dos muros. Uma vez Águeda olhou-o e benzeu-se. Eu acendi um cigarro. De qualquer modo, pelas tardes, eu passava-lhe à porta, via-a à janela por entre as cortinas. O pai às vezes andava no jardim em mangas de camisa, cuidando das roseiras. No alto de um tronco de pinheiro havia um pombal redondo, esburacado a toda a volta. E sempre um rumor de asas pelo ar como a minha imaginação feliz. De uma vez que o pai fora à vila, resolvemos falar ao muro, no fundo do quintal. Marcamos encontro para as onze horas, mas às nove já se me esgotara a paciência. Passei ao cemitério, a porta estava aberta — se eu entrasse? Visitar os mortos — visita teus mortos. Uma voz súbita ergueu-se ao longe, ressoou nos ocos da serra, cantando. Ouço-a. São ternos e dormem. Olho atrás instintivamente, o sol levanta-se esplendoroso por cima dos dois cerros, irrefutável como a vida, Águeda queria ficar ali. Certa noite ela pedira-mo, mas como levá-la até lá? Fica longe. Habituara-se a olhar um certo sitio ao pé do muro e pensava: "Verei de lá a janela do meu quarto". Não passa um sopro de vento, imobilidade tensa: ninguém se irá mover? Olho um instante, desde a porta, todo o pequeno recinto. Em pequenos túmulos, alinhados, disciplinados, definitivos — quem? Ema contou-me que um dia, na capital. Ema é espiritualista" — é assim que se deve dizer? Disciplinados, nulos. Há uma vida, uma explosão violentíssima do mais inimaginável. E antes e depois não há nada. Para quê esta comédia? — mas não é comédia, por certo, o homem é um ser grave. Pequenos túmulos de terra com vasos de flores secas, canteiros, vieram mãos de fora semeá-los de ternura. Nada, nada. É uma ternura por fantasmas, é uma ternura por si. O sol brilha, triunfo do verão. Estão todos a seguir uns aos outros e pela ordem com que se foram instalando, desde o meu pai até Norma. À cabeceira dos túmulos há pequenas tabuletas como fichas de um ficheiro inútil. Têm nomes e números, a que é que se referem? Na alegria matinal, eu só, sobre a terra profunda, silenciosa, larvar, testemunha final de uma história complexíssima, trivial e estúpida. Sê calmo na maravilha da manhã. Assenta os pés no chão, um dia hão de perguntar-te: — Que fizeste da esperança? Algumas fichas são muito antigas, são em pedra gravada. "Manuel Frias, nasceu em 8 de junho de 1830 e morreu em 15 de abril de 1870. Saudade eterna de sua mulher e filhos." Saudade eterna. Sorrio, do lado de cá, eles não sabiam, eu sei — ou não? Águeda já estará à espera? Há um talhão privativo marcado a pilares de pedra com gradeamento de ferro e uma espécie de obelisco de mármore num dos topos. Tem uma extensa inscrição numa das faces. O obelisco abre em parede à cabeceira onde se suspendem três vitrinas enferrujadas, duas delas já sem vidros, a outra com restos de coroas desbotadas. Há um sentido profundo em tudo isto? Não distingo. Sentido misterioso de tragédia, aberração, delicada ternura e verdade. É o sentido do homem. Leio a inscrição extensa: "Aqui jaz Clarinha Mendes. Nasceu em 1877, morreu em 1880. Saudade eterna dos pais, tios e avós pelo anjo que deixou infinitas saudades" — quem era? Serias hoje, ó "anjo", uma velhinha tonta. Ou já estarias morta. Quanto tempo a "saudade eterna"? Idos, desaparecidos, dispersos ao vento que passou — eu aqui, pensando-o, raiado de sol. O talhão terá ainda dono? Uma voz partiu dali, dolorosa, absoluta, alguém a ouve? a continua? A vida humana é verdade como tudo o que a preenche. É a sua perfeição. Mas eu não o sei — onde é que se aprende? Era algumas campas há fotografias que eu ainda reconheço. Um instante revejo esses mortos no giro cruzado da aldeia, ralhos, intrigas, ódios. Conheciam-se uns aos outros, teceram a vida em comum. Dormem. Tudo isto deve ter um sentido. Cai o sol quase a prumo, embate na terra e no silêncio. Em volta as oliveiras brilham, as matas de pinheiros fecham-se de sombra pelas encostas dos montes, a capela de S. Silvestre ao alto na sua cal nova. A terra existe. Certa vez, quando Ema esteve de visita a Vanda, falei-lhe disto — a que propósito? mas não há nunca propósito nenhum, há só o acontecer das coisas. Ema era uma mulher extraordinária. E bela — tão esbelta, ágil, fugidia, de cabelos louros, longos, caídos para os ombros. Na minha "crise erótica" parece-me que a amei. Mas ela desarmava-me tão facilmente. — Tudo isto devia ter um sentido — disse eu. Ema então contou. Que é que disse? Capítulo 8 O Sol veio enfim, treme ao alto no céu metálico. O chão de neve vibra como miríades de insetos, o espaço é limpo como um espelho. Verdade nua e fulgurante, os olhos doem-me, são olhos da terra, feitos a barro, a calor de estrume. Um corpo humano é delicado. Implanto-o, todavia, a vigor e desespero, na virgindade do meu grito. Abro a janela e clamo a todo o pulmão: Eh... Cruzam-se os ecos pelo ar, a terra responde-me, a terra espera-me. Uma chuvada que viesse, me esclarecesse o caminho para a vila... Preciso dela ainda, da experiência dos homens? Abrirei um caminho novo, sobre a neve intacta, com as minhas botas ferradas. Certo dia fui à vila com Vanda, atravessamos a serra. Mas vais chegar toda molhada — disse eu. Enérgica, resoluta, as calças violentamente apertadas contra as pernas firmes — revejo-te a estalar toda na pressão do teu vigor —, botas fechadas e elásticas, ria ao sol, os olhos brilhantes: Vamos. Ele vai de carro pela estrada, voltamos todos depois. Subitamente, fulminantemente — lembro-me. Pela noite quente, bato à tua janela, tínheis os quartos separados. Deitada sobre a cama, nua. Apenas um lençol cobrindo-te até o ventre. Morena, nua. Cerram-se-me os dentes de ira, é a ira do meu sangue, da procura de nada, a minha ira absoluta. O crânio arde-me. "Entra" — disseste-me. Mais fácil do que ir pela porta, há uma pedra ali perto, ponho o pé e salto para dentro. Deitada sobre a cama, noite de lua, ofegante. O lençol desce-te até o ventre, na luz pálida que passa pela cortina transparente, vejo-te, estaco fulminado — "deita-te" —, ergues um joelho sob o lençol, os dois seios nus pousados no peito, a mancha da face entre os cabelos escuros desalinhados. Rápido, destro, a urgência fina e funda, intenso, violentíssimo, o meu corpo erguido na noite, um clarão suave abrindo ao alto no teu quarto. Ágil, curvilíneo, plasmado às vagas do teu calor, massa densa e úmida, a umidade ressuma da íntima fermentação, lúbrico, lubrificável. Duro, reteso. Toda a violência da terra, mastigação vulcânica, laboriosa, do plasma original, apontada a ti, centrada massa endurecida irrompe, ameaça tensa como um dique de pressão crescente ó Deus, ó Deus, e como é belo um punho cerrado a cólera hirta de olhos estoirando no fundo de mim e a procura cega do mais absoluto exigente vigoroso a raiva, a raiva, arre! — tu, máximo inacessível e tão perto — a invasão expande-se na onda de orgulho alta como o poder concreto de todas as forças conglomeradas, tomba, impacto brutal, alastra à babugem escumosa na praia aberta, efervescente vencida no trêmulo cisco ainda esfervilhando ainda faúlha breve aqui e além no estertor do fim escorrida em baba e em choro reabsorvida na areia porosa da terra que recomeça... Vanda está longe, eu estou longe. Saudamo-nos ambos com um sorriso invisível no clarão plácido e quente do luar. E assim ficamos, longo tempo assim, na solidão da nossa nudez. Mas depois o movimento recomeça-me ainda. Recomeça-me num braço abandonado, um dedo ergue-se-me, velada chama na polpa afloro a lisura da tua pele. Sigo a linha do curveado da coxa, a linha da anca. É uma linha de lume. A pele rugosa, a aspereza breve dos poros, depois amacia-se nos flancos acetinada fina. O ondeado do seio, na ponta do dedo, a curva do ombro, uma película de umidade no pescoço, atrás, na nuca, os cabelos sedosos. Orelha delicada, um rubi duro no lóbulo, a testa lisa. Desço pelo nariz, a aresta do lábio. Um corpo. Intocável, misterioso, repousa no centro da noite. Devastado todo a fúria, investido a giros rápidos de cólera, intocável, sagrado. A lassidão escorre-me pelos olhos, pelos membros, o quarto vaporiza-se na irrealidade da lua, uma aragem incha nos cortinados suspensos. Depois houve uma convulsão lenta na massa abandonada do teu corpo, os membros, uma túrbida agitação de cobras, e à superfície, como escape da poderosa força interior, vibração intensa e sutil, frêmito de fibrilhas, os teus dedos frenéticos e habilíssimos. Um urro pela noite, o espaço sideral, o absoluto do silêncio. Consertarei a porta, antes que venha a noite, hoje, hoje. Toda a casa está intacta, só a porta pende, suspensa de uma dobradiça. Um martelo, três pregos. Alguém virá um dia, alguém? subirá os degraus de pedra, procurará nos bolsos uma chave. Ou erguerá apenas o trinco e entrará e olhará em volta. Eu assistirei de fora, seria lá um intruso. Alguém olhará para mim que estou de fora, terá um sorriso fraterno sem nada dizer. E virão outros também, talvez para outras casas, outras portas. E recomeçarão em silêncio, no entendimento mútuo e grave dos homens. Só terão uma palavra a dizer-me e essa palavra é terrível: Que fizeste da esperança? É uma palavra horrorosa como a cólera divina. Consertarei a porta. Vanda segue comigo pelas veredas da montanha. Conheço os caminhos como o impulso do meu sangue. Tens a certeza de que o teu marido... Sim. Voltaremos depois todos. Não o odeies, oh, não o odeies muito. Passam matas à nossa beira, os pinheiros brilham ao sol, gotejam no silêncio. Não o odeio. Não o desprezo. O que me ataca é a sua indiferença, ou... Indiferença? ...a normalidade do mundo em que se instalou. Ele foi muito claro, muito verdadeiro e in#teligente. O meu marido é muito inteligente — disse Vanda. — Seríamos capazes de nos amar aqui sobre a neve? Assim, como desprezá-lo? Ele um dia disse-me, como foi que ele disse? Dizia ele que todos os sentimentos relativos ao amor, como o sentimento do pecado, o ciúme, o sentimento da honra e tudo o mais, só eram vivos enquanto o desejo físico era vivo. Mas que ele era um velho. Disse aliás que era velho, sem azedume. Citou mesmo uns versos latinos, com erudição apropriada. Copiei-os para os citar eu um dia também, quando for a minha vez: Vixi puellis nuper idoneus Et militavi non sine gloria. O que significa mais ou menos: fui dado às moças até há pouco tempo e cumpri bem a minha obrigação. É um homem verdadeiro e inteligente. Seríamos capazes de nos amar? — insistiu ainda. O horizonte branco, os teus olhos riem e a tua boca. Mas no horizonte agora a tua imagem dilui-se — Águeda, Águeda. Vou contigo, é outro dia, foi em agosto? talvez em maio ou junho, há um cheiro quente, inebriante. Da tua janela, para lá do cemitério, estavas só. Estendias-me os braços. Eu olhei-te longamente com piedade, tu desapareceste rapidamente da janela, vieste surgir ao alto da escadaria, vinhas quase nua ou eu te vi assim, por entre os canteiros, correndo, correndo. Eu hesitava, não o meu corpo. Mas tu foste sempre virtuosa comigo, e porque o não tinhas sido com o outro? Dizias: Amo-te muito. É só por isso. Curioso, hem? Por isso... Com o outro tipo foi logo, eu sei. Cheguei a pensar que estivesses grávida, e não estavas? Não foste fazer um desmancho? Oh, Jaime! Não! Quinze dias fora, por quê? Estava aqui. Não saí. Custava-me aparecer. Nunca o amei. nada teve importância. O Luís Barreto dizia-me: "o pecado só existe quando existe o desejo". Foi por isso que fui amante de Vanda. Ele não se imp... Não digas! Gritou. Altíssimo. Os olhos rebentavam-lhe de pavor. Fui amante de Vanda! — gritei eu mais alto ainda. — Era uma mulher violentíssima. Insaciável. Sabia amar com um requinte de... Cale-se! Seguíamos pela montanha, havia a toda a roda horizontes sem fim. Passam à nossa beira as matas silenciosas, descem das ramadas feixes de sol que embatem no chão abrindo clareiras luminosas. Não chegamos à vila. Saímos do caminho, penetramos num pinhal. Avançamos em silêncio, a caruma1(folha do pinheiro) seca range sob os pés. Há uma presença vaga no ar e instintivamente olhamos aos lados, ao alto. Senta-te — disse eu. O espaço mágico vibra como um tímpano, um fluido estranho trespassa-nos, suspende-nos. Quase transidos escutamos uma voz que se não ouve e se levanta ao longe, na aldeia, no universo. Volta comigo — diz-me Águeda. — Para sempre. (— Dorme. Para sempre. Sob a figueira e a neve.) Fito-lhe os olhos esverdeados, quase cinzentos. São olhos mecânicos, agressivos, como de bicho. Olhos de vidro ou de louça, olhos materiais. Foram embutidos ali, tapam a passagem para dentro. Não chegou ainda a nossa hora — disse eu. — Chegará um dia talvez. Ela abafa um riso nas mãos — ou choro? Depois, subitamente, levanta-se e atira-se aos gritos pe#la mata dentro. Vejo-a brilhar nas clareiras de sol, desaparecer entre os troncos, ouço-a chamar-me lá de longe. Não respondo, acendo um cigarro. Longo tempo depois os seus passos leves crescem lentos sobre mim. Não me volto. Há um espírito vagueando pela mata. Adivinho-o de longas vestes brancas, flutuantes. Águeda deve ter entretecido uma coroa de flores para cingir os cabelos. Traz as mãos dadas à frente. Deito-me, cerro os olhos à minha plenitude. Volta comigo — diz-me Águeda. — Para sempre. Ouço a sua voz vinda de cima, perpendicular, como um aviso divino. Não chegou ainda a nossa hora — disse eu. Ela viria um dia, com a terra desabitada. Que seria então o passado? Há muita coisa ainda a mor#rer. Estaremos talvez predestinados para repovoar o mundo. Fabricaremos homens que nasçam crianças e cresçam e avancem para o futuro. Fornicaremos dia e noite, dia e noite, encheremos a terra de homens novos. Voltamos para a aldeia já tarde. Levo Águeda até casa, para lá do cemitério. Ela corre pelo jardim coberto de ervas, entra em casa de portas abertas. Quando já vou longe, ela chama-me aos gritos. Não me volto, regresso à aldeia. Dezenas de casas fechadas, ruas inteiras vazias. Ficaram só os velhos. Nalguma janela solitária uma cabeça espreita. Na rua principal, a cada esquina, um velho. Estão imóveis, conversam com o tempo, estão sós. Passo por eles, de um a um imóveis como estátuas antigas. Não me falam, não me olham. Um deles senta-se na soleira da porta, escarra para o chão. Uma tosse de brônquios, catarro rascante, rasga-me todo como se me arrancasse as vísceras pela boca. O catarro vibra no silêncio. Olho ao lado a rua perpendicular que leva à igreja: há velhos escalonados de longe em longe. Estão imóveis. Têm o olhar vazio. Lá ao fundo há um sentado na soleira de uma porta escarrando para o chão. Ouço-lhe a tosse cavernosa. Tenho de ir compor a porta, antes que chegue a noite. Pego no martelo, escolho alguns pregos. Precisarei talvez de pregos fundos? Procuro a ferramenta, saio à rua. Na claridade da tarde, a neve amacia-se numa alvura pálida. É uma hora triste. As casas afundam-se no seu cismar de horizontes, o uivo de um cão sobe a direito pelo ar. Meto pela quelha1(rua estreita, viela), entro no prédio de sombra. Dão para aí várias portas de casas que já ninguém habita. Têm o ar cerrado e composto, envelhecem gravemente. Espreito pelas fechaduras, mas nada vejo. Para a do Chico da Cuca sobe-se por uma escadaria de pedras desconjuntadas com dois lanços em ângulo reto. A neve intacta endureceu um pouco. Gravo nela pegadas nítidas de arestas agudas, ouço-a ranger. A porta desprendeu-se da fechadura e da dobradiça cimeira, e abandonada tomba um pouco para trás. Ergo-a pesadamente, desloco-a um pouco e entro. Uma luz pálida de gruta avoluma-se à esquerda, na cozinha, vinda do alto de uma clarabóia. Nas prateleiras arrumam-se as louças, um dos cântaros de barro ainda tem água. Olho em roda, maravilhado e medroso, vejo no quarto em frente uma alvura de roupas numa cama. O silêncio treme. Tiro a ferramenta da seira,1(cesto ou sacola de palha) tiro o martelo, dou a primeira pancada: ressoa-me aos ouvidos, titânica. Os pregos da fechadura corroeram-se de ferrugem, mas a madeira ainda agüenta. Meto a lingueta para dentro, cravo pregos novos e com um esforço fundo reergo a porta, suspendo-a da dobradiça. Experimento-a várias vezes, o trinco trabalha. A noite cai precipitadamente, a aragem afia- -se nas vastas extensões de neve. Mas um instante fico ainda a olhar a porta fechada, em pé, no segundo patamar. A terra é grande, o céu é imenso. Céu vazio. Eu só. Capítulo 9 MAS tecnificada a aldeia, Águeda não ficou indiferente. Penso que não ficou. Ela dizia-me depois que era mentira. Acontecera tudo como tudo acontece, isto é, acontecendo. Que eu é que tinha a mania de achar razões para tudo. Ele chamava-se Aristides. É um nome mal feito e sem préstimo. Há nomes que servem, que são funcionais, que se adaptam às pessoas e as vestem e as moldam. E há outros que mesmo sem servirem, mesmo antes de emprego, já têm uma função. São nomes magros ou gordos, delicados e rudes, melífluos e grosseiros, claros e escuros. Mas Aristides não é nada, não diz nada. Ema entendia isto tudo. Tinha uma doutrina bastante simples com ramificações porém para todo o universo. Aristides era um nome estúpido — que vou trazer da vila? Devo organizar uma lista, porque ir á vila não é fácil. Prevenir-me contra o imprevisto. Resistir. Resistir? Sou da terra, daqui, alimentei-me do seu húmus, como uma planta morrerei quando a terra mo negar. O que se passou com Águeda nunca o soube. Decerto, gostava de entender, saber o donde, o para onde e o por quê. E então eu dizia: Não gostaste nunca de mim. Mas ela disparava aos gritos, erguendo as mãos magras ao ar. Ou calava-se. Ou não me ouvia. E ficava-se a balançar o busto rígido para baixo e para cima, para baixo e para cima. Dorme. A Primavera vem longe. E o Verão. A figueira está nua. Voltarão os estorninhos em bandos, desabarão sobre ela num fervor de asas. Dorme sob a placidez da neve. O sol refulge. Decerto, gostava de entender, de ter razões, porque tinha ainda um corpo enérgico. Por isso eu insistia: Passou por ti a febre técnica, o pecado liberto. Que queria eu dizer? Não sei. Uma máquina é pura. Não tem escrúpulos, nem remorsos, nem tempo. É eficiente e cumpre-se. Mas Águeda possivelmente entendeu qualquer ofensa vigorosa, por#que puxou do terço e começou a rezar em voz alta "Padre Nosso que estais no céu". O pai dela, o Sr. Verdial, vi-o uma vez com o engenheiro (ou agente técnico). Aristides vestia um blusão mecânico de couro. Passaram por mim já quase ao cemitério. E durante um certo tempo, no troço de estrada, vi-os. Eram pequenos, contra a montanha adiante, esquemáticos como insetos. Mas distinguiam-se-lhes os gestos. Verdial parava, erguia a mão ao alto e baixava-a várias vezes, bruscamente, na vertical. Depois caminhavam sem gestos. Outras vezes, Verdial parava, estendia o braço e traçava à volta um semicírculo. Conversavam decerto sobre coisas sérias. De uma vez Verdial parou, pôs-se em frente do outro como num ajuste de contas. Teve um gesto para o lado, o sol brilhava nos cerros. Pus-me a andar, passei enfim por ele. Verdial saudou-me com dois dedos gratuitos, sem me fitar — irão falar de mim? Um modo de me destruírem sem trabalho. Queimado em efígie. Apazigua e não custa. Quem é? — perguntará Aristides, que no entanto decerto me conhece. Verdial explica. Gosta de explicar as coisas. É o seu processo de achar os outros estúpidos. Es#teve no Brasil e, quando fala, só há seres inferiores à sua volta, às vezes eu ouvia-o, mas sempre com deferência para ele brilhar tudo. Ele brilhava, mas não via aí deferência alguma. Estivera no Brasil e sabia coisas inverossímeis, das que só têm o direito a saber as pessoas importantes. Dispunha mesmo de um vocabulário esquisito para que o mundo estranho que contava com autoridade tivesse mais razão de ser. Dizia por exemplo "camondongo", que era um rato, e esse rato não era o que nos coubera a nós e podia ter, se ele quisesse, perfeitamente outro feitio. A Ema entendia isto bem. Ema. Agora Verdial devia explicar: É aí o professor primário, um pobre diabo. Mas dizia-lhe eu... E passa adiante. Que se cozam. Na tarde grande a sua memória apaga-se — esvai-se agora no silêncio da neve. Aliás, quando dou a curva da estrada, vejo vir para mim um enterro pobre. É um pequeno grupo de mulheres escuras, quatro homens às argolas do caixão. Encosto-me à beira, deixo passar. Padre Marques, de olhos graves, vai rezando, faz-me um gesto breve com a mão, vai rezando. Quem morreu? não me lembro de ter ouvido o sino. É um pequeno núcleo de velhas. Arrastam-se pela estrada em linhas paralelas, formando um só bloco, erguendo atrás uma pequena nuvem de poeira. Enfolhadas de negro, de cabeças alinhadas simetricamente, afundadas em lenços, pendendo para o chão. Passa com elas o resmonear surdo da reza que se dispersa no ar cálido do outono — quem morreu? Uma mulher desprende-se da última fila: Foi a minha irmã. Está em pé junto de mim, um pouco de lado, quase lhe não vejo a cara. Uma outra velha desprende-se do grupo também, desliza pela estrada até nós, rezando sempre em voz alta, a acompanhar o grupo que já dobrou a curva. Foi a tia Felismina — diz. Toma a outra pelo braço e ambas regressam ao enterro. Fico a vê-las afastar-se pelo meio da estrada, darem a volta com a curva, com os seus vultos escuros contra o céu vermelho e longínquo. O murmúrio da reza chega ainda até mim na ondulação da aragem. Verdial e Aristides devem ter chegado à quinta. Águeda surgirá ao alto da escadaria. Traz ainda um vestido claro de Verão, a blusa transparente, a saia de flores estampadas. Com um pouco de sorte, ver-se-lhe-ão de baixo as pernas até às coxas. E com um pouco de vento ficarão nuas ao sol, até às calcinhas íntimas — coitada da Felismina. Fora melhor assim. A irmã porá uma lápida, talvez. Talvez só uma tabuleta de ferro. E mandará escrever "eterna saudade". Águeda ri, na claridade aérea da tarde. Traz aí uma coisas — dirá o pai, para cima, rodando a chave da adega. Aristides entra. Há na adega uma frescura de cripta. Contra a luz da porta, Águeda aparecerá depois com uma bandeja de bolos. É possível que Verdial aproveite para ir acima e deixá-los sós. Águeda, escute — dirá Aristides. Que hei de eu escutar? Na compressão do tempo, as palavras são breves e intensas. Aristides toma-lhe as mãos, estala-as de desejo. Águeda cora, descobre alarmada a existência do seu corpo, a sua razão categórica, sente-o umedecer. Com um jeito rápido, Aristides aperta-a contra si, plasma-se todo às covas do seu calor. Verdial tosse ao descer a escadaria, Águeda compõe- se brevemente com naturalidade: Ó pai, parece impossível, o senhor engenheiro. O mal que diz da nossa terra. Tem ainda os olhos trêmulos da emoção. Verdial concorda: Que é isto realmente, comparado, digamos, com o Brasil? Enche dois copos. Vai ver acima a Maria, filha. Convida Aristides a provar. Aristides prova, fica em silêncio uns momentos para uma opinião conscienciosa. Verdial perora de copo na mão: lá no Brasil. .. Conta. A tarde morre. Fora alguém, lá no Brasil. Chegara mesmo a presidente da Sociedade de Recreio e Cultura dos Amigos de Portugal. Fizera discurso, tinha o dom. Discursos? — duvida Aristides, polidamente, acendendo um cigarro. Verdial cala-se um instante — quantos anos teria a Felismina? — gozando a estupefação do outro. Setenta? terei de ir à vila dentro em breve. Hão de perguntar-me: Como ficou você sozinho na aldeia? E terão razão em perguntar, porque eu não tenho resposta. Ou terei a resposta estúpida de sempre: Sou de cá. Alguém teria de ficar. Mesmo antes de ser presidente, se havia discurso a fazer, vinham ter comigo. É que não podiam mesmo fazer outra coisa. Depois contará de Gago Coutinho e Sacadura Cabral — foi o grande episódio da sua vida. Receberam-nos na Sociedade. Toda engalanada — e aqui Verdial tem as galas todas na memória e desdobra-as de uma a uma lentamente. Bebe devagar mas com persistência. E desdenha dos bolos, das sandes, tem o seu timbre de bebedor limpo. Há um riso lá fora, pelas janelas da casa, paira um instante no ar, evola-se na tarde. Há quantos anos vi a tia Felismina? Estava à porta com a irmã. Nunca mais. — Gago Coutinho veio para mim, apertou-me primeiro a mão e... Dificultam-se-lhe as palavras. Mas é um homem sério, consciencioso, há de acabar por exprimir-se com verdade e clareza: —... apertou-me primeiro a mão e depois deu- me um abraço. Abre ele os braços como triunfador, o copo na mão direita. É um homem notável. — Fiz então uns versos que ainda me lembram. — Versos? Fica em silêncio longo tempo, baixa-se de novo à torneira. Um bando de pombas passa rápido no clarão da porta, com silvos nas asas. — Mandei-os aos gloriosos aviadores. Viva Gago Coutinho E Sacadura Cabral E viva também A família Verdial. — Belos — disse Aristides. após um silêncio. — Não pense que copiei! Tirei tudo daqui da cumeeira1(cabeça)! — exclamou o outro de olho vidrado. Escorre o copo, baixa-se de novo à torneira. Quantos anos teria a Felismina? Da última vez que a vi, ou que me lembro de a ter visto, quando? passava à Quelha de Cima, era uma tarde de Verão. No limiar de uma porta, duas velhas sentadas, quietas, imobilizadas na imensa solidão. Têm o olhar parado na eternidade. O céu expande-se ao clarão do poente. Conheci logo uma delas, conhecia menos a outra, e fui para elas com a minha sau#dação: Boa tarde. Mas tia Felismina, ao corresponder, não moveu a cabeça, o olhar fito no vazio. Fora minha vizinha, depois mudou de rua e quase nunca mais a vi. Sempre me estimou com uma autoridade e fervor maternal, minha mãe explicou-me que tivera um filho, nascido exatamente no mesmo dia que eu. O pequeno morrera .em criança, eu nunca o conheci, Felismina jamais pudera ter filhos. Quando me via: Jaime E instalava-se logo nos seus direitos maternos, submetendo-me aos seus afagos, mesmo depois de eu crescer. Fui para elas, tia Felismina, de olhar de pedra, não me conheceu — quem é? Quem é? — perguntou. É o Jaime — disse-lhe a outra, que era irmã, vivia agora com ela, tia Felismina ficara viúva, estava só. Felismina estendeu as mãos à procura: dei-lhe a minha, que estava ainda do lado de cá. da vida. Ela então tomou-a, segurou-a, e palpou-a avidamente desde os pulsos, os olhos sempre direitos, presos a uma invisível fascinação. Está cega — explicou a irmã. Estou cega, havia de me cair esta desgraça no fim da vida, que Deus tenha misericórdia de nós... ... Misericordiam Domini, à beira da cova aberta, uma breve aragem passa, dispersa ao silêncio o rumor da reza, "dorme" — disse eu a Águeda, por fim. Fazia um esforço brutal, eu, lutava contra um choro suave que me crescia no sangue, não sabia p que dizer. — Pode ser que melhore. — Já foi à cidade — emendou a irmã. — Disseram que isto já não tinha cura. — Vivo para aqui nesta noite. Que Deus tenha piedade de nós... ... Domine exaudi orationem meam — quem tu "senhor"? voz escrava da minha miséria, pelo excesso estúpido deste meu excesso que tem de ter um dono, quem tu? Segurava-me ainda a mão, guardava-a entre as suas no regaço, como a uma certeza que não deixaria roubar. Consegui enfim libertar-me, ela ficou ainda com as duas mãos no ar, eu disse ainda qualquer coisa e afastei-me. Já longe, antes de dobrar a esquina, olhei ainda atrás: sentadas no limiar, as duas velhas de negro olhavam o vazio. Era uma tarde de verão quente, profunda, o sol embate nos dois cerros longínquos. — Está cega — explicou a irmã. Capítulo 10 PORQUE a vida pesa tanto. É imensa, horrorosa, violentíssima, temos de sangrá-la com qual#quer atividade para ter menos força. Só um homem a agüenta, serei eu um homem? Águeda abandonou-me — Norma... Do quarto ao lado vinha um aroma quente a maçãs. Os teus olhos fitos e frios, de uma cólera domesticada, o olhar1 do Antônio, o pequeno tinha os olhos revirados em branco gelatinoso, um branco azulado, e mais longe, olhos em fila, oblíquos sobre mim, até um trêmulo limite de água — adeus. Fechai-os na escuridão da terra. Que a terra os esprema: são úmidos, fertilizantes. Águeda abandonou-me. a última vez que a vi foi à noite, à meia-noite, no muro do lado de trás do quintal. Depois apareceu aquele tipo. Era um sujeito de uns quarenta anos, magro e pálido, o cabelo ralo e um pequeno bigode que de#certo usava desde a juventude e já portanto fazia parte do seu corpo. É uma noite de inverno? há chuva e vento no horizonte da minha memória. O homem bate-me à porta, tem um riso suave: — Esta chuva endemoninhada. Sacode a gabardina, tira-a, não a sacode, de- pendura-a no bengaleiro. Chegue-se ao lume. Lembrei-me de lhe trazer hoje o livro e que livro? Trá-lo embrulhado, senta-se, tem palavras vagas. Viajo nelas até à vila, até casa de Vanda, ou não de Vanda: de Luís Barreto. Depois percorremos rapidamente as instalações do minério, a separadora, as várias galerias, demoramo-nos um pouco na galeria 2 ...infiltração de água, adoeceu o Carmo, aquele rapaz que... e as suas palavras vão cerrando um cerco em torno da galeria 2 com horas suplementares mal pagas, às vezes nem pagas... Vai buscar pela gola do casaco o Aristides ...não sei se o senhor professor conhece. Com os olhos baixos pergunta-me, para que a pergunta seja só o perguntar distraído, acende um cigarro, ou folheia o livro Os Dez Dias da Recriação — é um sujeito perfeitamente neutro com uma voz impessoal de código administrativo, chove, chove. Conheço — disse eu. Interessava coordenar todas as forças vivas da aldeia. Falou com o Padre Marques? Mas o engenheiro Aristides é o grande responsável. Contra o Aristides, a campanha? tento entender, há um problema de seguros, o Carmo adoeceu, infiltração de água, horas suplementares — não tento entender, nada há que entender a não ser o que em mim se me revela nas palavras do sujeito, como te chamas? e que ele me vai colocando em vários sítios do corpo como um hábil pugilista que conhece previamente a anatomia da imperfeição. E todavia é justamente um homem prefeito que em mim vou descobrindo, uno, denso, convergente a uma direção. Eu próprio falarei com o engenheiro Barreto Até porque se dava o caso de eu ter tido com ele uma conversa impressionante. O meu marido é muito inteligente — disse- me Vanda. Sim, seio-o hoje mais do que nunca — a vida organiza-se como? em função de que verdadeiros valores? O teu marido, que espantoso. Não creio — disse o sujeito Por quê? se eu poderia talvez remediar tudo imediatamente. Não creio. Não se pretende uma solução de emergência, mas um estatuto de base que aliás... Que aliás existia e era preciso antes forjar exatamente o quê? Sei-o hoje, sei-o hoje, porque não interessava sequer o "estatuto de base" — e rapidamente encontrei-me com vida a menos, quero dizer, com uma redução imensa de vida disponível porque um extravasamento enorme dela passara para Luís Barreto, Aristides, o sujeito, o Carmo que adoecera, a galeria 2, o estatuto, as palavras necessárias para dizerem tudo isto, para dizerem tudo isto em face de Luís Barreto que me recebeu na mesma sala em que dias aantes eu estive.