A EVOLUÇÃO DO (PRE)CONCEITO DE DEFICIÊNCIA Vaneza Cauduro Peranzoni Soraia Napoleão Freita O presente artigo procura explicitar a evolução histórica da conceituação da deficiência sob a ótica do estigma e da discriminação que configuram (e, por vezes, ainda configuram!) as páginas de nossa história, mais precisamente quanto às oportunidades educacionais (negadas e proporcionadas) e aos serviços oferecidos à clientela dita especial (hoje chamadas de Portadores de Necessidades Educativas Especiais pela sociedade que, em certa época, pregou integração mas segregou e, hoje, prega inclusão mas ainda exclui. Palavras-Chave - deficiência - história - evolução Como seres humanos, encontramo-nos em constante evolução e sede de saber. Deste modo, no contexto educacional, educador e educandos tornam-se sujeitos históricos de busca, de inquietações, operacionalizando a superação de desafios nos mais diferentes sentidos da construção do conhecimento. Sob essa ótica, a proposta deste artigo objetiva apresentar como transcorreu a evolução histórica da conceituação da deficiência, discutida desde os pioneiros até os dias atuais. Assim, observamos que, por meio da história, as PNEE vêm sendo consideradas de diferentes maneiras, sempre relacionadas aos valores sociais, morais, filosóficos, éticos e religiosos de cada época, isto é, historicamente as PNEE foram e ainda são consideradas conforme as diversas concepções de homem e de sociedade nas diferentes culturas. Para compreendermos a situação atual das PNEE, faz-se necessário um resgate histórico-evolutivo de como essas pessoas foram tratadas. Analisando a literatura existente que versa sobre este tema, fica-nos uma certeza: a quase constante situação de segregação e exclusão que perpassou a criação e a evolução da humanidade e que perpassa até os dias atuais. A literatura aponta que, na Roma antiga, muitas crianças com deficiência ou que nasciam com alguma malformação eram abandonadas em pequenos cestos nas margens do Rio Tibre. Por outro lado, Roma também teve no seio de seu comando muitos imperadores que apresentavam algum tipo de deficiência, como: Caio Júlio César, Ápio Cláudio, Cláudio I e Nero. Só que suas deficiências eram "escondidas" e ignoradas pelo povo, devido ao poder que estes possuíam em suas mãos para governar. Portanto, sendo detentores do poder, tinham a chance de não serem segregados. Além desses imperadores, Roma teve muitos outros imperadores com deficiências, que são: Galba, que apresentava problemas nas mãos e nos pés; Othon, com deformação física nas pernas; e Vitélio, que possuía grave lesão nas pernas (BEZ, (s/d) In: Revista Vivência). De acordo com BEZ (s/d), na antiga Grécia, a deficiência era totalmente ignorada, não possuía nenhum espaço, considerando que a beleza e o culto ao corpo e à perfeição física eram tidos como condição sine qua non para a participação em sociedade, e uma pessoa com deficiência, considerada então feia, malformada, era, por conseqüência, praticamente uma ofensa ao povo. Assim, quando nascia uma criança que apresentava alguma deficiência esta devia passar por um "conselho" que definiria se deveria viver ou morrer. A criança destinada à morte era conduzida ao Apothetai, o que significa depósito. Mas, como em Roma, na Grécia houve muitas personalidades que apresentavam alguma deficiência, entre eles: Homero, que era cego; Alexandre, o Grande, que sofria de epilepsia; e Demóstenes, que sofria de gagueira. BEZ (s/d) coloca ainda que "no tempo de Aristóteles, havia, em Atenas, 20 mil pessoas portadoras de deficiências, que correspondiam a aproximadamente 20% de toda a população, recebendo pensão do Estado", p. 08. Esse índice era considerado alto, por isso, talvez, os romanos e gregos tentavam de todas as formas impedir que crianças consideradas deficientes permanecessem vivas. Ao mesmo tempo, podemos dizer que estes povos serviam de "fábrica" de deficiência, considerando que, com suas guerras constantes, muitos soldados voltavam mutilados, tornando-se, assim, portadores de deficiência física. Então, muito seguramente, podemos colocar que a sociedade não só eliminava as pessoas consideradas diferentes, mas também as fazia ficar nesta condição e perpetuava a questão da eliminação, num movimento cíclico e perene de segregação, em analogia ao "darwinismo social" e à "eugenia", considerando que "os portadores de deficiência foram vistos como vilões, portadores de taras hereditárias, que representavam um perigo para a continuidade da espécie" (MENDES s/d, p. 08). Na Idade Antiga, acreditava-se que o "comportamento diferente" da PNEE era conseqüência de forças sobrenaturais, sugerindo a crença em uma origem demoníaca das doenças e, mais especificamente, da deficiência mental. Com o advento da Idade Média, intensificou-se a crença no sobrenatural. O homem passou a ser submetido a poderes invisíveis, tanto para o bem quanto para o mal; a prática de magia e as relações com o demônio eram parte do cotidiano. Em conseqüência disso, segundo AMIRALIAN (1986), a sociedade agia distintamente com as PNEE, conforme o tipo de excepcionalidade apresentada: os psicóticos e epilépticos eram considerados possuídos pelo demônio; alguns estados de transe eram aceitos como possessão divina, e os cegos eram reverenciados como videntes, profetas e adivinhos. Em torno do século XVIII, começam aparecer explicações naturalistas para o comportamento dos deficientes. Segundo PESSOTTI (1984, p.72), "o desenvolvimento da ciência permite questionar os dogmas religiosos e começam a surgir estudos mais sistemáticos na área médica visando explicar tais comportamentos". Os estudos na área da medicina permitiram verificar que muitas deficiências eram resultantes de lesões e disfunções no organismo. Dessa forma, a medicina começa a ganhar um forte espaço, e as PNEE passam a ser vistas como objeto e clientela de estudo desta área. Isso não significou ainda uma redução na discriminação social de que eram vítimas, mas, sim, um marco no que se refere ao atendimento às suas necessidades básicas de saúde apenas. Assim, podemos dizer que há uma continuidade da segregação aos deficientes. Com o objetivo de oferecer tratamento médico e aliviar a sobrecarga da família e da sociedade, as PNEE eram mandadas para asilos e hospitais, na companhia de prostitutas, loucos e delinqüentes. Com a Revolução Industrial, o panorama da concepção de deficiência muda um pouco seu foco, considerando que esse período retrata um processo de transformações econômicas e sociais, caracterizadas pela aceleração do processo produtivo e pela consolidação da produção capitalista, abrindo caminho para o processo de produção em série, que exige a escolarização em massa de seus trabalhadores. Surge, então, uma nova parcela da população que passou a ser considerada menos eficiente, ou seja, deficiente, aqueles que não conseguiam aprender conforme as normas escolares instituídas. Observa-se que, até o início do século XIX, a deficiência estava associada à incapacidade, à idéia de inutilidade e dependência, e não havia nenhuma preocupação com a mudança desse quadro. O abandono e a eliminação das PNEE eram atitudes comuns e não eram fundamentadas a preceitos morais e éticos que regiam as relações sociais das diferentes épocas. Somente no final do século XIX e no início do século XX é que se criaram instituições para os deficientes mentais moderados e profundos, com a finalidade de servir de asilo para que eles "incomodassem" o menos possível. Se observarmos a evolução histórica da deficiência no que se refere ao atendimento educacional, a área denominada de Educação Especial expandiu-se, no Brasil, com a criação de entidades filantrópicas assistenciais e especializadas destinadas à população das classes menos favorecidas. Ao lado dessas instituições, surgiram clínicas e escolas privadas para o atendimento das PNEE das classes mais altas. Em relação ao atendimento, notamos um número elevado de profissionais ligados ao modelo médico da deficiência, no qual esta é vista como um "problema" do indivíduo e, por isso, o próprio deficiente terá que mudar para se adaptar à sociedade ou terá que ser mudado por profissionais através da reabilitação ou cura. Esse modelo médico da deficiência é um dos grandes responsáveis pela resistência da sociedade em aceitar mudar as suas estruturas e atitudes para a inclusão das PNEE, pois durante anos tratou estas pessoas com fins médicos e clínicos e não pedagógicos. Na verdade, o que se almeja é o fim pedagógico, o da inclusão, em que profissionais trabalhem com as capacidades e habilidades das PNEE. A sociedade deve ser aberta a todos e não deve segregar e apresentar barreiras a ninguém. A escola seria uma das instituições que poderia quebrar com muitos tabus, mas, ao contrário, é permeada de preconceitos e juízos prévios sobre os alunos e suas famílias. De acordo HELLER (1970, p. 17), "a vida cotidiana é a do homem inteiro; ou seja, o homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade". Infelizmente, na maioria das vezes, a individualidade e a personalidade das PNEE não são respeitadas e nem levadas em conta pela sociedade. Este indivíduo se torna vítima de muitos preconceitos. Mas o que vem a ser preconceito? O preconceito é um fenômeno conhecido há muito tempo, mas seu objeto e seu conceito têm variado historicamente, torna-se muito difícil defini-lo. Conforme Jahoda e Ackerman (1969) apud CROCHIK (1997, p.29) o ... preconceito é considerado por (...) como um pré-julgamento que predispõe o indivíduo a ter atitudes frente ao objeto em questão, e este pré-julgamento, por sua vez, é determinado pela relação entre o indivíduo e aquilo que a cultura lhe oferece para se expressar e ser expressada por ele. Mais adiante, os mesmos autores colocam que o preconceito ... ... ... representa uma subcategoria do pré-conceito, apóia-se no pensar estereotipado, sem confundir-se com um ou com outro. Do ponto de vista psicológico, o preconceito é (...) uma atitude de hostilidade nas relações interpessoais, dirigida contra um grupo inteiro ou contra os indivíduos pertencentes a ele, e que preenche uma função irracional definida dentro da personalidade. Em cada época, a PNEE, como foi relatado anteriormente, foi vítima de um tipo de preconceito, conforme os valores e os costumes do próprio período. Os preconceitos, segundo Kant apud CROCHIK (1997), são incutidos nos homens, os quais são impedidos e se impedem de pensar por si próprios. O autor vê a experiência e a razão como fundamentais para o conhecimento e o preconceito como seu maior obstáculo. O preconceito se remete à dominação e, quando necessário, à proposta de eliminação do desconhecido para se manter aquilo que já é conhecido. A vida cotidiana e o cotidiano escolar têm muitos preconceitos, devido a muitos fatores. Sabemos que a vida cotidiana é heterogênea e hierárquica, e o homem já nasce inserido em sua cotidianidade. Com o amadurecimento, ele adquire todas as habilidades para a vida cotidiana da sociedade. Esse amadurecimento começa sempre por grupos. Mas, muitas vezes, a PNEE é privada deste convívio em grupos, sendo segregada, excluída da sociedade por causa das suas diferenças e limitações. Segundo HELLER (1970, p. 20), "a vida cotidiana está no centro do acontecer histórico: é a verdadeira "essência" da substância social". E o indivíduo é sempre um ser particular e genérico, simultaneamente. Não se deve esquecer disso no cotidiano escolar. Mas, infelizmente, o cotidiano escolar é o espaço onde se concretiza a produção do fracasso escolar (e não o contrário), onde não se dá a atenção necessária para aquele ser "diferente". Contudo, devemos romper esta muralha de preconceitos, para construir uma escola comprometida com as PNEE. Ser capaz de se elevar à esfera do humano-genérico, suspendendo a vida cotidiana e suas inúmeras reivindicações, e aí ser capaz de transformar seu próprio cotidiano, é essencial se pretendemos ser sujeitos de nossa própria historia. Apresento, aqui, para reflexão, esta citação de COLLARES & MOYSÉS (1996, p. 260): "Se, porém, pretendemos ser agentes efetivos de transformação social, sujeitos da história, fica o desafio de sermos capazes de nos infiltrar na vida cotidiana, quebrar seu sistema de preconceitos e retomar a cotidianidade em outra direção." Portanto, buscamos uma escola e uma sociedade inclusivas, a que todos tenham acesso e onde sejam respeitados os limites de cada um, sendo dado espaço a todas as pessoas para que elas possam crescer e transformar cada dia mais o seu meio, rompendo com muitas das barreiras que lhes são impostas. BIBLIOGRAFIA AMIRALIAN, Maria Lúcia. Psicologia do Excepcional. v. 3. São Paulo: EPU, 1986. ARIES, Philippe e DUBY, Georges (Dir.) Do ventre materno ao testamento. In:. História da vida privada. Do Império Romano ao ano mil. V. I. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 23-43. ___. A individualização da criança. In: História da vida privada. 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Considera-se que não se pode conceber a questão da Educação Inclusiva sem pensar na formação do professor e em práticas educativas diferenciadas voltadas ao uso das novas tecnologias da informação e comunicação, visto que a inclusão, em escolas regulares, de alunos Portadores de Necessidades Educativas Especiais (PNEE) abrange a realidade do momento. O processo de inclusão visa a uma educação de qualidade não só para os alunos PNEE, mas para todos, com respaldo da Lei de Diretrizes e Bases e da Carta de Salamanca. Portanto, ao se pensar no desafio de incluir alunos PNEE em sala de aula, o professor precisa buscar recursos que os beneficiem e atendam suas reais necessidades, mudando a forma de direcionar as práticas educativas, através da criação de ambientes de aprendizagem que disponham dos recursos da informática - computador, Internet, Logo e softwares educativos. Além disso, a interação, neste ambiente, enriquece a capacidade intelectual do aluno, sua auto-estima e autonomia, onde aprende e se desenvolve cognitivamente, emocionalmente e socialmente. Conforme Esteve (1991), "as atitudes dos professores e da sociedade são fundamentais para realizar as reformas que se projetam", assim, as transformações da escola exigem uma reestruturação da formação do professor, a fim de formar um profissional transformador, que reconheça e aceite a diversidade, preparado para enfrentar desafios e propor soluções 1 Considerações Iniciais Tempos novos, em que a maneira de pensar do indivíduo moderno é influenciada pelo descobrir, criar e refletir, em que as certezas se transformam em interrogações. Tempos novos, em que a relação com o conhecimento experimenta mudanças decorrentes de uma criação constante do diferente, e a singularidade e a pluralidade se tecem de forma articulada. Por isso, para acompanhar estas transformações, precisa-se ter uma visão ampla e crítica das novas formas de aquisição do conhecimento e das novas tecnologias da informação e comunicação, na obtenção de uma qualidade de educação e vida. A educação, cada vez mais, volta-se para a capacidade do indivíduo em fazer escolhas e para a quebra dos mecanismos de alienação social, que o impedem de optar pelo que é melhor para si e para o grupo onde vive. Desta forma, a escola está sendo solicitada a contribuir na formação de um indivíduo com várias competências, ajudando-o a compreender a sua realidade e a refletir sobre ela. E o professor, a promover a integração dos grupos, a partir da conscientização e aceitação das diferenças individuais, valorização de cada pessoa, convivência dentro da diversidade humana e aprendizagem por meio de cooperação. Presencia-se um mundo que evolui a bytes, e a escola há que viabilizar projetos inovadores que redefinam antigos parâmetros educacionais, em particular no que se refere à Educação Especial. Esta, com uma nova vertente, a Educação Inclusiva, revela que todos podem aprender, basta que, para isso, lhes sejam dadas condições apropriadas, num ambiente cada vez menos restritivo e comprometido com a transformação escolar e social. A partir deste contexto, por inclusão social, emprestamos a definição seguinte: A inclusão social é o processo pelo qual a sociedade e o portador de deficiência procuram adaptar-se mutuamente tendo em vista a equiparação de oportunidades e, conseqüentemente, uma sociedade para todos. A inclusão (na sociedade, no trabalho, no lazer, nos serviços de saúde, etc) significa que a sociedade deve adaptar-se às necessidades da pessoa com deficiência para que esta possa desenvolver-se em todos os aspectos de sua vida (Sassaki, 1997, p. 168). Desde que o termo inclusão surgiu no meio social e escolar, o mesmo tem sido associado ao de inovação educacional, de forma que implica a formação de professores e propostas de ensino que atendam às exigências da sociedade contemporânea, em que não há espaço para preconceitos e discriminações entre os indivíduos, mas sim, para a interação de todos com o mundo e a promoção da auto-estima do aluno Portador de Necessidades Educativas Especiais (PNEE). A presença de alunos PNEE na escola regular pressupõe uma escola aberta, que responda às necessidades concretas de todos os alunos que chegam ao ambiente escolar com diferentes interesses, motivações e habilidades. Então, as interações estabelecidas precisam estar cada vez mais próximas e integradas ao conhecimento do aluno e aos desafios que o contexto lhe propõe, a fim de que ambientes de construção de aprendizagens sejam oportunizados, incitando e possibilitando o pensar. Neste sentido, este trabalho desenvolve idéias a respeito da Educação Inclusiva, formação de professores e informática na educação, visto que a inclusão privilegia todos os tipos de alunos, portadores ou não de deficiências ou distúrbios de aprendizagem, na escola regular, e a informática constitui-se num cenário importante ao desenvolvimento integral destes seres. 2 Educação Inclusiva: aprendendo a viver com a diversidade. A Educação Especial faz parte do sistema educacional, sendo entendida, para efeitos da Lei 9394/96, como uma modalidade de educação escolar oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, ao aluno PNEE (deficientes físicos, auditivos, visuais; autistas; altas habilidades...), assim descrita: A política de Educação Especial, calcada no direito de todos à educação, sem discriminações, estabelece um elenco de objetivos e de diretrizes, consentâneos com a avaliação da conjuntura brasileira atual, tendo como finalidade a formação de cidadãos conscientes e participativos (MEC, 1994, p. 132). O movimento inclusivo nas escolas foi reforçado por essa política de Educação Especial proposta pelo MEC, que causou um impacto muito grande entre os professores do ensino regular, remodelando as práticas educativas e revelando o papel estratégico que a educação ocupa no processo de consolidação de uma sociedade mais justa, livre, igualitária e acolhedora para todos. Mesmo que a Política Nacional de Educação Especial estabeleça e assegure uma educação para todos, ainda há uma predominância de fatores históricos de um sistema dominante, em que as pessoas portadoras de deficiências ou necessidades especiais eram segregadas, excluídas socialmente e até consideradas possuídas por maus espíritos. No aspecto educacional, recebiam atendimento em locais isolados, oferecidos por instituições de cunho religioso, de conhecimento formal do governo, mas sem nenhum controle. Por receberem atendimento isolado do restante da sociedade e pela sua deficiência, algumas pessoas passavam a vida toda dentro destas instituições. Muitas mudanças vieram acontecendo nas últimas décadas, nos aspectos político, social e educacional, marcadas por grandes avanços na área da ciência e da tecnologia, que favoreceram e oportunizaram instrumentos para que a sociedade começasse a repensar e olhar os alunos PNEE sob um diferente paradigma. Congressos internacionais patrocinados pela UNESCO estabeleceram os fundamentos de uma política educacional mundial, menos excludente e mais inclusiva, lançando os seguintes documentos mundiais: Convenção de Direitos da Criança (1988), Declaração sobre Educação para Todos (1990) e a Declaração de Salamanca (1994). A partir, principalmente, da Conferência Mundial de Educação para Todos e da Declaração de Salamanca, com os princípios de reformulação do sistema de ensino como um todo, o movimento de educação para todos tornou-se discussão mundial e desencadeou uma verdadeira revolução educacional. Estes documentos mundiais enfatizam a inclusão social como a forma mais efetiva da implantação da Educação Inclusiva. As políticas públicas destinadas aos alunos PNEE articularam um novo significado e uma forma particular de encarar a Educação Especial escolar em nível nacional, com discussões a respeito do entendimento desta proposta inclusiva, no seu verdadeiro sentido (integração escolar, inclusão e escola inclusiva), como nos mostra, por exemplo, a Declaração de Salamanca: A tendência da política social durante as duas últimas décadas foi a de fomentar a integração e a participação e de lutar contra a exclusão. A integração e a participação fazem parte essencial da dignidade humana e do gozo e exercício dos direitos humanos. No campo da educação, essa situação se reflete no desenvolvimento de estratégias que possibilitem uma autêntica igualdade de oportunidades (1994, p. 23). No momento em que a escola comum assume uma educação inclusiva e integradora, precisa, antes de tudo, adequar seu currículo, programas, conteúdos e, em especial, estruturar uma proposta político-pedagógica que venha a atender as reais necessidades de cada indivíduo. Assim, pensar a inclusão exige uma mudança de postura frente ao processo de ensino e de aprendizagem diante das necessidades especiais dos alunos. Se, por um lado, há avanços no tratar a Educação Inclusiva, principalmente em países desenvolvidos, manifestando as preocupações, desenvolvendo debates, estudos e pesquisas em torno desse assunto; por outro, há um entendimento de que os alunos PNEE ainda devem permanecer em escolas especializadas em educá-los e desenvolvê-los, sem a possibilidade de integração à escola comum e sem participação social. Para tanto, compete um trabalho coletivo, apoiado por uma política democrática, que busque uma ação interdisciplinar e viabilize a proposta de uma educação inclusiva, de igual oportunidade, mesmo na diferença. Incluir, então, significa integrar um aluno ou um grupo na educação regular, o que lhe é de direito, num espaço que possibilite exercer a cidadania e ter acesso aos diferentes saberes. A inclusão não se limita a ajudar somente os alunos que apresentam dificuldades na escola, mas apóia toda a comunidade escolar (Mantoan, 1998). Todas as mudanças referentes à reorganização do campo da Educação Especial, em termos legais e políticos, reforçaram a idéia da educação escolar como direito e como condição para a inclusão do aluno PNEE. Porém, tais mudanças não significaram um aumento de oportunidades e qualidade nos serviços educacionais. De acordo com as reflexões até então referidas, não se muda a escola com um passe de mágica, no entanto iniciativas inovadoras, como o uso do computador, mostram a viabilidade da inclusão escolar nas escolas brasileiras, e práticas pedagógicas diferenciadas propiciam ao aluno PNEE uma melhor qualidade de vida, a partir da criação e superação de situações que permitam ao mesmo "aprender a aprender". Para que iniciativas aconteçam, são necessários investimentos nas instituições comuns, tanto de recursos materiais e específicos ao trabalho com alunos PNEE como para a formação de profissionais nesta área. Reforça-se a importância de ações conjuntas, equipes de apoio, pais, alunos, sociedade e governo, irmanados nesta conquista. É através da educação que podemos inserir os alunos PNEE, nos mais variados contextos, promovendo mudanças no processo de ensino e de aprendizagem, e na concepção de Educação Inclusiva, de acordo com alguns estudiosos, entre eles Mantoan (1998), que nos mostra que, sem dúvida, a inclusão concilia-se com uma educação para todos e com um ensino especializado no aluno, mas não se consegue implantar uma opção de inserção tão revolucionária sem enfrentar um desafio ainda maior: o que recai sobre o fator humano. Os recursos físicos e os meios materiais para a efetivação de um processo escolar de qualidade cedem sua prioridade ao desenvolvimento de novas atitudes e formas de interação na escola, exigindo mudanças no relacionamento pessoal e social e na maneira de se efetivar os processos de ensino e aprendizagem. Nesse contexto, a formação do pessoal envolvido com a educação é de fundamental importância, assim como a assistência às famílias; enfim, uma sustentação aos que estarão diretamente implicados com as mudanças é condição necessária para que estas não sejam impostas, mas imponham-se como resultado de uma consciência cada vez mais evoluída de educação e de desenvolvimento humano (p. 51). Faz-se necessário, pois, refletir sobre estratégias que se transformem em ações concretas para a formação profissional, tópico tal que trataremos a seguir. 3. Formação de professores: aprendendo a criar. Os movimentos da sociedade constituem parâmetros cruciais para a reflexão social e educacional. Por isso, ao se abordar a Educação Inclusiva, nada mais relevante do que destacar a preocupação com a formação e qualificação de profissionais no desempenho, com competência, de uma educação de qualidade. Esta formação deve contemplar o contexto do professor, pois é justamente, em sala de aula, que o saber da experiência se manifesta. Na visão de Holly (1992, p. 82): Há muitos factores que influenciam o modo de pensar, de sentir e de actuar dos professores, ao longo do processo de ensino: o que são como pessoas, os seus diferentes contextos biológicos e experienciais, isto é, as suas histórias de vida e os contextos sociais em que crescem, aprendem e ensinam. É a partir do saber-fazer do professor, dos conhecimentos que possui, experiências, crenças e esquemas de trabalho, que a idéia de educação permanente pode ser pensada e ampliada, baseando-se no seu aprimoramento através da reflexão, compartilhamento de idéias, informações, sentimentos, responsabilidades, decisões e ações. Além das necessárias adaptações relacionadas com as alterações da vida profissional, a formação do professor deve ser uma construção contínua da pessoa humana, dos seus saberes e aptidões, da sua capacidade de discernir e agir. O questionamento da própria prática, as comparações, análises, investigações e soluções de problemas, levam o indivíduo a "aprender a aprender", a "aprender a pensar" e a oferecer possibilidades de investigação individual e coletiva, uma vez que sabemos que (...) É verdade que toda a vida pessoal e social oferece oportunidades de progredir no saber e no saber fazer. (...) é desejável que a escola lhe transmita ainda mais o gosto e prazer de aprender, a capacidade de ainda mais aprender a aprender, a curiosidade intelectual. Podemos, até, imaginar uma sociedade em que cada um seja, alternadamente, professor e aluno (Delors, 1998, p. 18). Não obstante, a formação do professor deve contemplar a reflexão sobre os valores da educação, vivência interdisciplinar, trabalho em equipe, pesquisa e construção de competências. Portanto, como já reiterado, o professor tem de ter a capacidade de explicar o que sabia apenas reproduzir, a convicção de que todos os alunos são capazes de aprender, o compromisso com a aprendizagem de todos os seus alunos, as habilidades para apresentar e explicar os conteúdos como interessantes, ou seja, suscitar o prazer de aprender. Para atender ao horizonte pedagógico, fruto da transformação da escola, as universidades são chamadas a reorganizem seus programas curriculares, pesquisando, estudando e redefinindo os paradigmas educacionais, revisando estratégias e conteúdos de formação, a fim de preparar o professor para a diversidade, pois a Educação Inclusiva só terá seus objetivos alcançados se todos os envolvidos neste processo vivenciarem atitudes e valores, tendo um olhar educativo coletivo e criativo. Os professores podem reagir de forma diferenciada frente às práticas nas escolas inclusivas: ignorando o processo de mudança, por insegurança, sem tomar conhecimento do que está acontecendo; ou demonstrando preconceito, devido à falta de informação e do estabelecimento de pré-concepções; ou ainda, aceitando a idéia da mudança do ensino, reagindo de forma positiva e reconhecendo a validade da sua atitude, evidenciando que está aberto tanto para a discussão sobre a inclusão como para aceitação de um aluno PNEE, em sua sala de aula, num esforço para encontrar respostas para essa situação. Na realidade, estes indicadores servem como esquema básico para analisar e compreender as atitudes dos professores, que dependem da formação inicial que receberam e da preparação para enfrentar os desafios reais do ensino (Esteve, 1991). O grupo de professores que se adapta às exigências da escola inclusiva identifica os bons professores dentro das instituições, porque, no cotidiano de sua prática educativa, conseguem sustentar o seu trabalho com qualquer aluno e em qualquer ambiente escolar. A busca do aperfeiçoamento da proposta de formação baseada em princípios educacionais construtivistas, como a cooperação, a autonomia intelectual e social e a aprendizagem ativa, desenvolve globalmente todos os alunos e capacita e aprimora os professores, pois: Numa prática pedagógica pautada pelo construtivismo, é muito importante considerar que o caminho do sujeito rumo à aquisição do conhecimento objetivo passa por reestruturações globais, pela constituição de teorias por parte das crianças. Ao deparar com essas situações, cabe ao professor levar as crianças a perceber as contradições, desequilibrar- se e buscar superar essas contradições, ultrapassando, assim, sua antiga forma de operar (Mori, 1983, p. 24). Notadamente, para tornar possível a inclusão, a formação do professor deve estar alicerçada no estabelecimento de parcerias entre os implicados no processo educativo - dentro e fora da escola - e na criação e compreensão de enfoques curriculares, metodológicos e estratégias pedagógicas que possibilitem a construção coletiva do conhecimento. As inovações educacionais, por um lado, abalam a identidade do profissional/professor e as suas conquistas, atentando contra a experiência, os conhecimentos e o esforço feito para adquiri-los. Mas, por outro lado, favorecem a definição das teorias pedagógicas individuais de cada professor, conscientizando-o do modo como atua na promoção da aprendizagem de todos os alunos, e o subsidiam para encontrar maneiras de fazer acontecer a construção de conceitos próprios na sua prática de sala de aula. Neste caminhar, até mesmo quando na condição de professor, todos são aprendizes, aprendendo a criar e recriar... Nesta perspectiva, o trabalho do professor consiste no acompanhamento dos alunos no desenvolvimento de suas potencialidades plenas, e, para isso, são necessárias novas abordagens educacionais na sua prática pedagógica. Uma destas abordagens compreende a utilização dos recursos da informática, numa perspectiva interacionista, que possibilita uma maior aproximação dos alunos PNEE aos demais e à realidade que os rodeia. 4. Informática na educação: aprendendo a pensar O trabalho com informática na Educação Especial envolve um novo domínio de conceitos que exige um perfeito equilíbrio entre a informática e a educação, articulação esta que oportuniza uma imensidão de saídas e ferramentas que, bem trabalhadas, num processo de interação entre equipes interdisciplinares, viabilizam e concebem suporte para auxiliar no desenvolvimento e na inclusão do aluno PNEE. Os ambientes de aprendizagem baseados nas tecnologias da informação e da comunicação, que compreendem o uso da informática, do computador, da Internet, das ferramentas para a Educação a Distância e de outros recursos e linguagens digitais, proporcionam atividades com propósitos educacionais, interessantes e desafiadoras, favorecendo a construção do conhecimento, no qual o aluno busca, explora, questiona, tem curiosidade, procura e propõe soluções. O computador é um meio de atrair o aluno PNEE à escola, pois, à medida que ele tem contato com este equipamento, consegue abstrair e verificar a aplicabilidade do que está sendo estudado, sem medo de errar, construindo o conhecimento pela tentativa de ensaio e erro. Autores como Valente (1991, 1997), que pesquisam a validade do uso do computador pelos alunos PNEE, acreditam que este recurso auxilia a qualquer que seja o grau de necessidade do aluno, até porque é composto de diversas ferramentas, e estas propiciam um trabalho lúdico-pedagógico, desde que mediado por profissionais qualificados. Aproveitando-se de tais pesquisas, o professor deveria repensar os esquemas tradicionais de ensino e de aprendizagem, experimentar o computador e discutir, em uma ação conjunta, os melhores caminhos a trilhar com ele. Para, assim, trilhar caminhos para uma educação que venha ao encontro dos anseios, necessidades e deficiências do ser humano que está em suas mãos, cuja atuação, no futuro, dependerá de como foi instruído, da sua visão crítica do mundo, do nível de conhecimento adquirido e da capacidade de aplicação e extrapolação deste conhecimento. A informática na Educação Especial necessita ser trabalhada, pelo professor, não considerando incluí-la como o simples ato de colocar o aluno em sala de aula regular para interagir com os colegas normais, mas para acompanhar a contemporaneidade, modificando a maneira de pensar e a forma de aprender. Assim, o aluno PNEE, ao adquirir mais confiança na sua capacidade, melhor cooperação e interesse na interação com outras pessoas e no trabalho com o computador, tem condições de visualizar o resultado rapidamente, explorar inúmeras possibilidades num mesmo exercício e assimilar os conteúdos com maior facilidade. Aprendendo a pensar, como? Como expõe Valente (1991, p. 3): (...) criar ambientes de aprendizagem que disponham de ferramentas apropriadas de modo que as crianças deficientes possam iniciar e controlar as atividades que eles desejam desenvolver. Em vez de salas de aulas tradicionais, ambientes de aprendizagem que estimulam a participação, a manipulação de objetos, a movimentação dos alunos e sua forma de expressar das emoções. A flexibilidade, o respeito e a solidariedade propiciados favorecem um ambiente de liberdade e abertura, que facilita as ações espontâneas e o desenvolvimento de seus potenciais. Uma sala de aula onde se trabalha com o computador, com a Internet, com o Logo ou demais softwares educativos, como sugerem Papert (1994) e Valente (1991, 1997), facilita uma aprendizagem mais duradoura e transferível, à medida que se cria um ambiente motivador e que o próprio aluno PNEE participa ativamente do processo de busca e construção do conhecimento, ao assumir o controle de suas ações, realizando as atividades por que está realmente interessado e envolvido. Ainda Valente (1991, p. 6): (...) O computador é o instrumento que ajuda a minimizar as barreiras entre a criança e o mundo físico movendo os objetos, realizando o desenho ou a escrita. (...) se a criança consegue apertar uma tecla, ela pode comandar o computador para fazer praticamente tudo que ela deseja, sem precisar pedir ajuda para as outras pessoas, e sem ser limitada pela sua dificuldade de se comunicar com o mundo das pessoas e dos objetos. O ambiente Logo, por exemplo, oportuniza ao aluno PNEE o poder de canalizar suas potencialidades e controlar suas deficiências, à medida que, ao interagir neste ambiente, enriquece sua capacidade intelectual e eleva sua auto-estima; aprende e se desenvolve cognitivamente e emocionalmente. No momento em que realiza uma atividade, revela os passos de seu pensamento, o estilo de resolução de problemas e suas capacidades intelectuais; portanto, a ênfase não é colocada no produto que o aluno realiza, mas no processo pelo qual ele atinge seus objetivos. Além da utilização da linguagem Logo, o uso de softwares de atividades ludopedagógias com alunos PNEE, sob uma ótica construtivista, fornece ferramentas que permitem ao aluno relacionar seus conhecimentos aos conteúdos escolares segundo suas concepções, como uma forma diferente e divertida de aprender. Esta perspectiva lúdica, construtivista e interdisciplinar no trabalho com o aluno PNEE inclusive incentivou a construção de um software específico para este fim por uma equipe multidisciplinar da Universidade de Cruz Alta (RS), contemplando diferentes níveis entre os aplicativos, vista a diversificação das habilidades dos alunos. O aluno PNEE trabalha com mais entusiasmo quando estimulado pelo som, formas grandes e cores fortes. Neste contexto, a tecnologia de imagem, animação, som e comunicação apresentados naquele software servem para estimular o aluno PNEE no processo de aprendizagem. A otimização deste processo, através deste software referido, exigiu orientação técnica e pedagógica constante de vários profissionais, dentre eles o grupo de professores que compõem a linha de pesquisa em Informática na Educação da Universidade. O trabalho com o software produzido, além de auxiliar a aprendizagem, facilita a inclusão do aluno PNEE, criando um ambiente em que são introduzidos, fixados e avaliados diferentes conceitos. O computador e os softwares educativos na Educação Especial, segundo Santarosa (1991), funcionam como "prótese física e mental"; como "prótese física", em decorrência dos dispositivos e procedimentos criados, visando ao desempenho de funções que o corpo não pode ou tem dificuldades de executar devido à deficiência, como os simuladores, acionadores, sensores, entre outros dispositivos que possibilitam efetivar o processo de interação/comunicação. Como "prótese mental", por permitir processos de intervenção visando ao desenvolvimento cognitivo, sócio-afetivo e de comunicação do aluno PNEE. Enfim, o computador é uma ferramenta de trabalho com a qual o professor pode utilizar diversos cenários de ensino e aprendizagem, entre eles, tutores, simuladores, demonstrações, jogos educativos, ferramentas de textos, desenhos e imagens, dependendo de seus reais objetivos educacionais (Papert, 1994). Ele significa para o deficiente físico um caderno eletrônico; para o deficiente auditivo, a ponte entre o concreto e o abstrato; para o deficiente visual, o integrador de conhecimento; para o autista, o mediador da interação com a realidade; e, para o deficiente mental, um objeto desafiador de suas capacidades intelectuais (Valente, 1997). Busca-se um ensino colaborativo, que atenda às diferenças individuais, respeite o grau de dificuldade, ritmo de trabalho e interesse; mais cooperativo, interessante, centrado em utilizar a informática - o computador - não apenas através de editores de texto e programas multimídia, mas sim, numa mudança na função do computador como meio educacional, no sentido proposto por Valente: A mudança da função do computador como meio educacional acontece justamente com um questionamento da função da escola e do papel do professor. A função do aparato educacional não deve ser a de ensinar mas a de promover o aprendizado. Isto significa que o professor deixa de ser o repassador de conhecimento - o computador pode fazer isto e o faz muito mais eficientemente do que o professor - para ser criador de ambientes de aprendizado e de facilitador do processo pelo qual o aluno adquire conhecimento. E as novas tendências de uso do computador na educação mostram que este pode ser um importante aliado neste processo que estamos começando a entender (1991, p. 17). Assim, a realidade em constante movimento, redefine a reflexão a respeito da inclusão social e do uso da informática na Educação Especial, que envolve um aprender a pensar diferente, especial. 5. Considerações Finais As exigências da sociedade imprimem diferentes entendimentos à educação; destas concepções, a inclusão merece destaque, tendo em vista ser um pretexto para que a escola se modernize, transforme-se em um ambiente de intercâmbios de formas individuais, no qual alunos e professores, ao interagirem, participem e transformem em aprendizagem, as experiências sociais. O contexto da Educação Especial em que se evidencia a proposta de Educação Inclusiva, baseada em princípios e leis que reconhecem a necessidade de uma educação para todos, deixa bem claro que renovação pedagógica exige, em primeiro lugar, que a sociedade e a escola adaptem-se ao aluno PNEE, e não o contrário. E, em segundo, que o professor, considerado o agente determinante da transformação da escola, seja preparado adequadamente para gerenciar o acesso às informações e conhecimentos. Ocorre que a formação atual não prepara o professor para a Educação Especial, mas para uma área de deficiência mental, auditiva, visual, física ou outros segmentos, ocasionando, geralmente, a resistência de alguns professores às inovações educacionais, como a inclusão, ao considerarem que a proposta de uma educação para todos é válida, porém impossível de ser concretizada, levando em conta o número de alunos e as circunstâncias em que se trabalha nas escolas da rede pública de ensino. O que demonstra, mais do que nunca, que os professores devem capacitar-se, acreditar e, principalmente, aceitar a inclusão, tornando, assim, a sua sala de aula um ambiente propício à construção do conhecimento, tanto do aluno PNEE quanto dos demais. Percebe-se, então, num primeiro lançar de olhos, que a Educação Inclusiva aliada à renovação das concepções pedagógicas, por meio da informática, afeta a formação do professor e a forma de atuação, tanto do professor como do aluno. A primeira consideração a ser levantada é que a formação do professor passa a ser uma construção contínua. Na renovação da realidade de sala de aula, o professor assume característica de mediador, pesquisador e motivador, ao tornar-se um colaborador no processo de aprendizagem. E o aluno participa ativamente do processo de aquisição e construção de conhecimentos, pelo fato de assumir a responsabilidade e elaborar autonomamente seus projetos de vida, derivando significados novos às situações que lhe possam ser apresentadas. Estas constatações evidenciam que a diversidade no meio social, os laços da cooperação, do diálogo, fruto de um exercício diário de compartilhamento de deveres, problemas e sucessos, enriquecem a educação; que a inclusão escolar dos alunos PNEE contribui para a qualidade do ensino regular e a adição de princípios educacionais válidos para todos os alunos; e que a apropriação dos recursos tecnológicos por esses alunos resulta avanços significativos: além de desenvolver suas capacidades cognitivas, aperfeiçoa a interação destes com a sociedade. Os ambientes interativos de aprendizagem oportunizados pelo computador adaptam-se aos diferentes estilos de aprendizagem e níveis de capacidade e interesse intelectual. Em suma, pensar ou refletir sobre a informática e Educação Inclusiva supõe conscientizar-se de que, hoje, é preciso contextualizar o processo de ensino e de aprendizagem, situando o aluno PNEE no cenário contemporâneo, do qual faz parte e onde atua - uma oportunidade de aprender a viver, criar e pensar. E, ao professor, cabe ensinar de outro modo, valorizando as diferenças de cada um e promovendo-as, possibilitando o bem- estar social, uma vez que, (...) as atitudes dos professores e da sociedade são fundamentais para realizar as reformas que se projectam. Na atitude dos professores perante as reformas e no apoio da sociedade está a chave para as levar a bom termo. Sem o seu incondicional apoio não passarão do terreno das disposições legais ao terreno da realidade: o trabalho quotidiano nas salas de aula (Esteve, 1991, p. 96). Frente ao que se vê - pode-se descrever e tenta-se compreender - a sociedade mudou, incorporou novos comandos derivados das descobertas e inovações tecnológicas, exigindo uma educação de qualidade e um professor preparado para enfrentar desafios e propor soluções. 6. Referências Bibliográficas BRASIL. Secretaria de Educação Especial. Tendências e desafios da educação especial. Org. Eunice M. L. Soriano de Alencar. Brasília: SEESP, 1994. COORDENADORIA NACIONAL PARA INTEGRAÇÃO DA PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA. Declaração de Salamanca e linha de ação sobre necessidades educativas especiais. Brasília: CORDE, 1994. DELORS, Jacques (org.). Educação: um tesouro a descobrir – Relatório para a comissão internacional sobre educação para o século XXI. São Paulo: Cortez, 1998. ESTEVE, José M. Mudanças sociais e função docente. In: NÓVOA, Antonio (org.). Profissão professor. Porto: Porto, 1991. cap. 4, p. 94-124. HOLLY, Mary Louise. Investigando a vida profissional dos professors: diários biográficos. In: NÓVOA, Antonio. Vidas de professores. Porto: Porto, 1992. cap. 4, p. 79-110. MANTOAN, Maria Teresa Eglér. Compreendendo a deficiência mental: novos caminhos educacionais. São Paulo: Scipione, 1988. _____. Integração x inclusão – educação para todos. Pátio. Porto Alegre: ARTMED, ano 2, n. 5, p. 48-51, mai/jul 1998. MARTINS, Eduardo. Manual de redação e escrita. Organizações “O Estado de São Paulo” – OESP, São Paulo, 2000. MORI, Nerli Nonato Ribeiro. Uma experiência de alfabetização com repetentes. Porto Alegre: Kuarup, 1983. PAPERT, Seymor. A máquina das crianças: repensando a escola na era da informática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. SANTAROSA, Lucila Maria Costi. Informática como “prótese” na Educação Especial. Colômbia. Informática Educativa (4) 2, 1991. SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão – Construindo uma sociedade para todos. Rio de Janeiro: WVA, 1997. VALENTE, José Armando (org.). Liberando a mente: computadores na educação especial. Campinas: UNICAMP, 1991. _____. O USO DO COMPUTADOR NA INCLUSÃO DA CRIANÇA DEFICIENTE. IN: MANTOAN, MARIA TERESA EGLÉR. A INTEGRAÇÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA. SÃO PAULO: MEMNON, 1997. Cadernos :: edição: 2001 - N° 18 > Editorial > Índice > Resumo > Artigo INCLUSÃO/EXCLUSÃO: DUAS FACES DA MESMA MOEDA Márcia Lise Lunardi Esse artigo pretende relacionar o discurso da surdez com as práticas de inclusão e exclusão que configuram as atuais discussões no campo da educação especial. O texto procura problematizar, através de algumas ferramentas do pensamento de Michael Foucault, a noção de normalidade que atravessa os discursos das políticas de inclusão e das pedagogias especiais. Para isso, discute o conceito de anormalidade, isto é, entender como a anormalidade é construída, como o outro é narrado e representado pelo discurso do colonizador em uma rede de saberes e poderes. Finalmente, problematiza o binômio inclusão/exclusão como uma oposição, como uma situação contraditória que dialeticamente se supera e sugere que esse processo possa ser entendido como fazendo parte de uma mesma matriz de poder. Abordar a questão da inclusão/exclusão não significa vê-la como algo experienciado somente por grupos culturalmente diferentes ou, no caso, por grupos rotulados como deficientes. Atualmente, a problemática da inclusão/exclusão vem atingindo a todos nas suas mais diversas formas, ou seja, todos podem ser excluídos de alguma situação e incluídos em outra. Não existe alguém completamente incluído ou completamente excluído (Pinto, 1999), o que há são jogos de poder em que, dependendo da situação, da localização e da representação alguns são enquadrados e outros não. As políticas de inclusão escolar, que hoje vem configurando o campo da educação, definem e fixam quem é o anormal - categoria cada vez mais inventada pela modernidade: loucos, surdos, homossexuais, paraplégicos, meninos e meninas de rua, enfim, os "estorvos" - e a partir disso decidem se eles participam ou não dos espaços escolares junto com os normais. No entanto, essa lógica vem atravessada pela noção do sujeito pedagógico moderno: um sujeito transcendental e único, um sujeito que na definição kantiana é, simultaneamente, sujeito cognoscente e objeto de seu próprio conhecimento. É esse sujeito que, a partir da Filosofia Iluminista , constituiu-se como centro dos processos sociais: como um sujeito descoberto e derivado das práticas sociais, políticas, culturais e econômicas. Para Veiga-Neto (2000), o sujeito compreendido pelo pensamento moderno representa as concepções de sujeito instauradas pela filosofia platônica e pela tradição hebraica, que mais tarde foram retomadas pelo Cristianismo, Humanismo e Idealismo Alemão. Segundo esse autor, "o sujeito passou a ser visto como uma unidade racional que ocupa o centro dos processos sociais; mas dado que sua racionalidade não estaria completa, faz-se necessário um projeto pedagógico que o tire da menoridade e o transforme num dono de sua própria consciência e um agente de sua própria história" (2000, p.50). Portanto, na perspectiva da modernidade, o sujeito inacabado, incompleto, alcançará através do projeto educativo moderno - e aí está a escola para efetivá-lo - sua plenitude, sua essência, constituindo-se assim no modelo instituído pela filosofia ocidental: um sujeito consciente, centrado, reflexivo, crítico e, por que não dizer, normal, já que o projeto moderno opera no sentido de fabricar o sujeito de seu projeto. Nesse sentido, a escola especial e a escola inclusiva, ambas entendidas no seu conjunto de práticas discursivas, acabam instituindo o próprio sujeito de quem falam, a quem representam. Portanto, esse artigo quer alertar para o quanto esses espaços pedagógicos, muito mais que descobrir e desvelar, inventam e produzem seus sujeitos. Esse texto pretende apresentar essa discussão em duas partes: na primeira, discutirei a construção da deficiência a partir do discurso da normalidade no campo da educação especial. Para isso, utilizarei algumas noções de Michel Foucault quanto à compreensão da anormalidade. Na segunda, farei um deslocamento dessas compreensões para as práticas de inclusão/exclusão a partir das noções de poder/saber, entendo-as como duas faces da mesma moeda. Incluir para normalizar: estratégias de poder Quando falamos da surdez ou, de outras áreas de grupos culturalmente diferentes - cegos, paralisados cerebrais, paraplégicos, crianças com problemas de aprendizagem -, logo nos reportamos para o cenário da educação especial. Esse espaço apresenta a existência de uma linha contínua de sujeitos deficientes, dentro o qual os surdos são forçados a existir (Skliar, 1997). A educação especial é um dos locus privilegiados onde se travam as discussões e representações acerca das políticas educacionais para os sujeitos deficientes. No entanto, é entendida pelos teóricos como uma subárea da educação, um local "menor", que trata de forma caridosa e benevolente aqueles sujeitos que de uma forma ou de outra caíram na desgraça da deficiência. A partir dessa perspectiva, os sujeitos deficientes são descaracterizados de sua condição social de sujeitos, cidadãos, pertencentes a uma nação, possuidores de sexualidade, idade, gênero, etnia. A educação especial, como disciplina formal, em seu discurso e suas práticas hegemônicas, é descontínua em seus paradigmas teóricos; anacrônica em seus princípios e finalidades; relacionada mais com a caridade, a beneficiência e a medicalização que com a pedagogia; determinada por técnicas discriminatórias e segregacionistas; distanciada do debate educacional geral e produtora/reprodutora, também ela, de uma falsa oposição entre inclusão e exclusão (Skliar, 1999, p. 17). Nesse contexto, percebe-se qual é a representação de sujeito esperada pelo discurso pedagógico praticado pela educação especial - um sujeito doente, anormal, que necessita de uma re-educação, ou seja, de uma educação entendida e praticada enquanto terapia. Larossa (1999), coloca que o discurso pedagógico e o discurso terapêutico estão intimamente relacionados, isto é, o dispositivo pedagógico/terapêutico define e constrói o que é ser uma pessoa formada e sã e, nesse mesmo movimento, define e constrói o que é uma pessoa não formada e insana. Portanto, é esse sujeito definido a partir da sua deficiência, da sua falta, do seu desajuste, que está sendo alvo das políticas de educação especial, entre elas e talvez a mais perigosa, a política de inclusão/exclusão. No entanto, antes de discutir essa política, interessa compreender a construção da normalidade a partir da sua relação com a deficiência. Segundo Pinto (1999, p.38), Foucault fala de normalização, e é disso que a inclusão trata, mas através de seu reverso; ou seja, é descrevendo, incessantemente, o anormal que o discurso chega à noção de normalidade sexual. Foucault (1997; 2000), abordou a questão da anormalidade através de um estudo arqueológico sobre o homem anormal do século XIX: o monstro humano, o indivíduo corrigível, e o onanista. O indivíduo anormal do século XIX seguirá marcado - e muito tardiamente, na prática médica, na prática judicial, tanto no saber quanto nas instituições que o rodearão - por essa espécie de monstruosidade cada vez mais difusa e diáfana, por essa incorrigibilidade retificável e cada vez mais cercada por certos aparatos de retificação. E, por último, está marcado por este segredo comum e singular que é a etiologia geral e universal das piores singularidades (Foucault, 2000, p.65). Aproximando-nos desse estudo de Foucault, é possível problematizar a naturalização da anormalidade no interior das pedagogias especiais e das políticas de inclusão. Em outras palavras, questionar a representação de surdez que é constituída pelo olhar clínico da educação especial e das políticas de inclusão, isto é, pelos discursos produzidos pelos sujeitos ouvintes ou, talvez, pelos sujeitos normais. Aqui inscreve-se o caráter binário com que são pensadas e articuladas as propostas educativas e curriculares das escolas de surdos e escolas inclusivas. A educação especial conserva para si um olhar iluminista sobre a identidade de seus sujeitos, isto é, vale-se das oposições de normalidade/anormalidade, de racionalidade/irracionalidade e de completude/incompletude, como elementos inclusão/exclusão a partir das noções de poder/saber de Michel Foucault centrais na produção de discursos e práticas pedagógicas. Os sujeitos são homogeneizados, infantilizados e, ao mesmo tempo, naturalizados, valendo-se de representações sobre aquilo que está faltando em seus corpos, em suas mentes e em suas linguagens (Skliar, 1999, p. 19). Tanto as políticas educativas quanto as práticas pedagógicas dos espaços institucionais abordam a questão da diferença a partir do olhar da normalidade. Segundo Davis (apud Silva, 1997, p. 8), a noção de norma e normalidade é uma invenção relativamente recente. Embora, como diz Davis, a tendência a fazer comparações seja muito antiga, a gênese da idéia de norma e normalidade localiza-se nos séculos XVIII e XIX, em conexão com o processo de industrialização e de transformação capitalista. Desenvolveu-se aí, em conexão com noções sobre nacionalidade, raça, gênero, criminalidade e orientação sexual, um conjunto de práticas e discursos centrados ao redor da noção de norma e de normalidade. O conceito de norma nasce ligado ao conceito de "média". Este, por sua vez, está conectado ao nascimento da Estatística como uma ciência das coisas do "Estado", como uma espécie de aritmética política. O objetivo dessa estatística é descrever as populações através do cálculo da média de algumas características vitais. A partir desse cálculo podia-se chegar ao "homem médio", que se torna então uma espécie de ideal. Nesse sentido, a norma se estabelece a partir do controle, da regulação da população, ou seja, através do biopoder. O interesse em uma população saudável, perfeita, normal, incide em uma questão mercantilista de produção, ou seja, sujeitos governados e adestrados para a produção e o consumo. Portanto, segundo Foucault (1997, p. 86), Para gerir essa população, é preciso, entre outras coisas, uma política de saúde que seja suscetível de diminuir a mortalidade infantil, prevenir as epidemias e fazer baixar as taxas de endemia, intervir nas condições de vida para modificá-las e impor-lhes normas (quer se trate da alimentação, do habitat ou da organização das cidades) e assegurar os equipamentos médicos suficientes. A normalidade é o local onde a possibilidade de governar os corpos se materaliza, pois, considera os sujeitos a partir da normalização, possibilitando o controle, e exercendo o bio- poder, o poder sobre a vida. Nessa perspectiva, "a normalidade não é o grau zero da existência, mas um local de bio-poder" (Silva, 1997). Aqui inscrevem-se o discurso e a prática da medicalização na vida do sujeito surdo. Esta medicalização não refere-se somente ao corpo deficiente, ela é praticada sobretudo, em sua vida e em sua escolarização. Para a maioria dos ouvintes, a surdez está relacionada com a incapacidade de comunicação, representada por um mundo de silêncio e escuridão, e a partir dessa matriz representacional se praticam diferentes formas de controle e governo de suas vidas, ou seja, de seu corpo, de sua linguagem e de sua mente. Observa-se isso em diferentes momentos e práticas da história dos surdos: a busca frenética para fazê-los falar; a centralidade da oralização como marco principal na definição de políticas pedagógicas para a sua educação; a proibição do uso da língua de sinais, língua essa constituidora de identidades e comunidades; isolamento comunitário entre crianças e adultos surdos; práticas de colonização e controle de seus corpos e mentes, como a experiência biônica dos implantes cocleares. Todas essas formas de controle e regulação da surdez constituem-se em estratégias de poder utilizadas pelos especialistas/experts na produção de políticas de inclusão para os sujeitos surdos. No entanto, inclusão/exclusão são faces da mesma moeda, ou seja, elas operam simultaneamente, não se resolvem dialeticamente, fazem parte de um mesmo sistema de representação, ou seja, fazem parte de uma mesma matriz de poder. Inclusão/Exclusão: educar especialmente para quê? A inclusão e a exclusão podem ser entendidas a partir de diferentes campos conceituais; no entanto, não podem ser entendidas fora do exercício de poder. Ao tratar do poder, entendo-o, a partir de Foucault, como uma ação produtiva sobre outras ações - não como uma propriedade, uma sanção negativa, mas como uma estratégia das redes de relações sempre tensas, sempre em atividade. Esse poder, por outro lado, não se aplica pura e simplesmente como uma obrigação ou uma proibição aos que "não têm"; ele os investe, passa por eles através deles; apoia-se neles, do mesmo modo que eles, em sua luta contra esse poder, apoiam-se por sua vez nos pontos em que eles o alcançam. O que significa que essas relações aprofundam-se dentro da sociedade, que não se localizam nas relações do Estado com os cidadãos ou na fronteira das classes e que não se contentam em reproduzir, ao nível dos indivíduos, dos corpos, dos gestos e dos comportamentos, a forma geral da lei ou do governo (Foucault, 1999, p. 26). As discussões atuais sobre igualdade e justiça para todos giram em torno do problema da inclusão/exclusão, que por meio de estratégias de poder definem quais são os grupos que participam dessa relação. Isso envolve um imperativo no qual campanhas, políticas públicas, documentos oficiais, entre outros artefatos, acabem por identificar quais são os grupos não representados, não beneficiados pelo bem público, para em seguida encontrar maneiras de incluí-los. Essa inclusão é atravessada pelas idéias de participação, ou seja, "uma noção que emergiu nos últimos tempos, construída a partir de conceitos burgueses europeus de democracia e capitalismo e, mais recentemente, nos EUA, a partir da administração pelo Estado das questões sociais, tais como as da 'pobreza'" (Popkewitz, 1998, p. 164). Nesse contexto, um outra leitura pode ser feita em relação aos processos de inclusão/exclusão, ou seja, a crise do Estado-providência, as transformações do mundo do trabalho - crise salarial, desemprego, precarização das condições mínimas de sobrevivência - juntamente com a tendência da política neoliberal fragilizam as fronteiras da exclusão. Essas "aparecem, desaparecem e voltam a aparecer, se multiplicam se disfarçam; seus limites se ampliam, mudam de cor, de corpo, de nome e de linguagem" (Skliar, 1999, p. 16). Assim, o binômio inclusão/exclusão, não pode ser mais pensado como forma antagônica, onde a exclusão sustenta-se pelo seu contrário, pela sua oposição; onde ser excluído é o antônimo de ser incluído. Incluídos e excluídos fazem parte de uma mesma rede de poder, isto é, excluídos em alguns discursos e incluídos em outras ordens discursivas. Neste contexto, percebemos que ser surdo e participar de um processo de escolarização juntamente com os sujeitos ouvintes não significa estar incluído e gozar de todos os benefícios que esta suposta inclusão o proporcionaria. Vejamos isso mais de perto. Na educação de surdos, os processos de inclusão referem-se em grande parte, única e exclusivamente, à experiência de alunos surdos dividindo a mesma sala de aula com aqueles chamados de normais. Nesse sentido, as discussões em torno da educação de surdos travam- se em um incansável questionamento: incluir os surdos na escola regular ou deixá-los na escola especial? A resposta a essa questão remete à compreensão que se tem dos processos de inclusão no discurso das políticas oficiais: a inclusão é caracterizada por uma fronteira institucional. A crítica ao discurso dominante de inclusão nada tem que ver com uma cega afinidade ou com uma defesa desnecessária das escolas e das pedagogias especiais. Não é essa a interpretação que se deve fazer. A aparente oposição entre escola especial e escola comum somente remete a um aspecto que é o da institucionalização ou, dito de outro modo, o da localização -melhor ou pior- dos deficientes nos sistemas de ensino oficiais e não oficiais (Skliar, 1999, p. 26). Tanto as escolas especiais quanto as escolas regulares não se questionam à respeito da representação da escola para a comunidade surda. Questões como - o que significa para uma criança surda conviver afastada de seus pares? Qual a compreensão do conhecimento e dos saberes que circulam pela escola sem que esses passem pela experiência visual? Qual o espaço ocupado pela língua de sinais nos discursos curriculares e pedagógicos das instituições que têm em seu corpo docente alunos surdos? - parecem estar implicadas no campo das representações acerca dos surdos e da surdez. Essas representações de dão a partir de diferentes eufemismos: deficiente auditivo, incapacitado, portador de necessidades educativas especiais, anormal, doente. Para tanto, a educação desses sujeitos é analisada como uma prática de normalização e de controle social, em que as diferenças são disfarçadas, mascaradas e obscurecidas por um conjunto de acepções que entendem as políticas de diferenças culturais como pluralidades e diversidades. Esses eufemismos acabam encobrindo e legitimando estratégias conservadoras em que a referência torna-se sempre a norma, o ideal. Sendo assim, os processos de exclusão/inclusão são pensados e executados a partir da idéia da falta, da carência de algum atributo que impossibilitaria ou, no caso da inclusão - através de uma pedagogia terapêutica -, possibilitaria ao indivíduo participar do processo de escolarização. Afinal, incluir para excluir ou excluir para incluir? Se tentasse responder a esse trocadilho, diria dois sim. Um porque a inclusão enquanto processo de normalização é uma forma de dominação, de controle e de governo. Governo que não é só dos outros, mas governo de si. Ou seja, a inclusão não controla somente a população, o próprio excluído/incluído se autogoverna. Para Foucault, a questão do governo está fortemente imbricada com a questão do autogoverno. Para o autor, essas questões estão relacionadas com o poder pastoral , que tem suas origens na "pastoral cristã, característica da sociedade de lei"( Veiga-Neto, 1996). Nesse sentido, o poder pastoral é exercido pelo pastor sobre seu rebanho, assegurando-lhe alimentação, segurança e salvação. "O poder pastoral supõe uma atenção individual a cada membro do rebanho" (Foucault, 1990, p. 100). A metáfora do pastor pode ser utilizada para entender o processo de inclusão/exclusão, pois ambos já se consolidam sem o controle e a vigilância do Estado, isto é, o rebanho não necessita mais do controle, do olhar vigilante do pastor, pois tanto o sujeito quanto a população já estão regulados por esse olhar dentro si. Eles não necessitam mais do olhar cuidadoso do pastor, já o incorporaram tanto na sua forma individualizante (cada um) quanto totalizante (população). Nesse contexto, o próprio excluído é pastor de si, ou seja, ele mesmo se controla, se regula, através dos processos de subjetivação. Seu comportamento como sujeito é resultado da disciplina, que não se estabelece na forma pela qual o Estado programa a conduta total de seus cidadãos; antes, a disciplina "é o meio pelo qual o governo equipa os indivíduos" (Hunter, 2000, p. 57). Assim, através das tecnologias de poder e saber, os anormais, entre eles os surdos, são incluídos para serem tratados e reformados, ou seja, normalizados, criando assim as condições necessárias para supervisioná-los e administrá-los. O segundo sim, em relação a resposta ao trocadilho, faz referência a expansão da normalidade a partir da anormalidade, ou seja, construindo a surdez, os ouvintes constituem a oralidade como norma e esta passa a ser seguida pelas diferentes instâncias sociais, entre elas a escola. A escola, nessa perspectiva, pode ser entendida a partir da noção de panoptismo trabalhado por Foucault: "panopticon não é apenas uma técnica altamente eficaz e astuta de controle dos indivíduos; é também um laboratório para sua eventual transformação" ( Dreyfus e Rabinow, 1995, p. 208). As escolas de surdos, sendo elas especiais ou não, na busca de categorizar, nomear e situar os surdos na rede da deficiência, usam a tecnologia do panoptismo. O controle e a medicalização da surdez instituíram uma ortopedia dos corpos e das mentes dos sujeitos surdos, constituindo uma fronteira de inclusão/exclusão. No entanto, percebe-se que essa fronteira se fragiliza se compreendermos esses processos a partir de uma mesma matriz de poder. Inclusão e exclusão não são produtos de causa e conseqüência o fato de ser surdo e não ouvir não significa estar excluído do mundo auditivo, nem tampouco a protetização ou a oralização dariam o greencard para a inclusão. Em uma rede de poder, os discursos se deslocam, se fragmentam, se constituindo em outras formas de poder e representação. Portanto, aquilo que deve ser posto em discussão não é o caráter binário das políticas de inclusão/exclusão, mas os argumentos, as condições de possibilidade que fundamentam essas políticas, como também quais os significados e representações que se produzem e reproduzem nestas propostas. Enfim, fazemos, como sujeitos, parte do ballet das inclusões e exclusões, que percorrem a história do país, dos grupos a que pertencemos, das classes em que nascemos ou em que somos jogados ao longo da vida. Inclusões e exclusões que estão inscritas na vida e na morte de cada sujeito (Pinto, 1999, p. 55). Bibliografia DREYFUS, Hubert, RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução: Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. HUNTER, Ian. Subjetividade e governo. 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Também insere o paradigma vygotskiano como inspirador para muitas das idéias acalentadas e construídas no bojo desta proposta. Diante de questões formuladas sobre atitudes, experiências e a avaliação sobre a proposta da educação inclusiva, alguns dos resultados são: a) o sentimento de desafio e a busca por apoio pedagógico; b) um projeto com demandas direcionadas à transformação da escola; c) a importância da prática e da formação continuada; d) a importância do apoio da equipe pedagógica, do intercâmbio entre professores e da composição favorável da infra-estrutura escolar; e) a conscientização ainda débil da comunidade escolar sobre o projeto de inclusão escolar. Palavras-chave: educação inclusiva, incompletudes escolares, concepções de professores 1 - Introdução O paradigma e a política da educação inclusiva constituem-se como processos claramente delineados na história da educação especial. Há aproximadamente quatro décadas que as idéias integradoras, consubstanciadas no pensamento da não-segregação das pessoas com deficiência no ambiente escolar, vêm inspirando uma série de propostas e ações em vários países do mundo. A proposta inicial da integração escolar evoluiu para uma concepção de inclusão escolar, embora tal diferenciação ainda não tenha ganho unanimidade na comunidade acadêmica internacional bem como nos sistemas educacionais. Subjaz o conceito diferenciado na proposta de inclusão de uma ação mais efetiva do sistema educacional como um todo no sentido de garantir (obviamente, não a qualquer custo) a inserção e permanência do aluno com necessidades educacionais especiais na escola regular. De qualquer forma, há países que não empregam a expressão inclusão escolar (ou educação inclusiva), utilizando ou mantendo o conceito de integração escolar, porém com acentos teóricos e práticos semelhantes. Um exemplo disso é a Alemanha, cuja “pedagogia da integração” (Integrationspädagogik) existe historicamente desde meados da década de 70 e evoluiu ao longo de reflexões acadêmico-científicas e de várias experiências escolares1. O Brasil adotou com a LDB 9394/96 a proposta da integração escolar preferencial de alunos com necessidades educacionais especiais. De lá para cá houve um processo intenso de análise e transposição do projeto político-pedagógico para as diferentes realidades escolares, tanto nas redes de ensino público como na particular. O que se constata, porém, nesses últimos anos, na repercussão do confronto entre a legislação educacional e estas realidades é o sentimento de incompletude, para não dizer impotência, das redes de ensino em geral, e das escolas e professores em particular, para fazer cumprir esta proposta. Esses últimos julgam-se, na sua grande maioria, despreparados para atender alunos com necessidades especiais: falta-lhes a compreensão da proposta, a formação conceitual correspondente, a maestria do ponto de vista das didáticas e metodologias e as condições apropriadas de trabalho (por exemplo, uma carga horária insuficiente e/ou turmas numerosas de alunos). A maioria das/os professoras/es já em experiência de educação inclusiva mostram níveis preocupantes de stress (veja, a respeito, Naujorks, 2002), principalmente devido à inexistência de uma formação anterior visando a capacitação para o ensino desse alunado. Mas não são apenas as/os professoras/es que se percebem, de certa forma, impotentes. Também a escola como um todo (equipe pedagógica, recursos materiais, funcionários/as de apoio, etc.) vê-se como tal. Um dos questionamentos que se escuta com freqüência é o seguinte: se já é difícil atender a heterogeneidade do alunado “tradicional”, com tantos casos de alunos em condições precárias de aprendizagem, ameaçados, potencialmente, de fracasso e exclusão escolar, como a escola poderá dar conta da demanda extra do atendimento dos alunos com deficiência? Tal interrogação é um sinal evidente do despreparo das escolas para converterem o projeto da educação inclusiva em um ato operacionalizável. Além do mais, as próprias famílias e os próprios alunos, sejam os ditos normais ou com necessidades especiais, muitas vezes, são tomados de surpresa diante desta proposta. Talvez muito mais as famílias dos alunos ditos normais demonstram atitudes que oscilam entre desconhecimento da proposta até rejeição a ela. Intimamente, existem sentimentos nas famílias de medo ou ansiedade diante do que a convivência com alunos com deficiência pode significar para a formação dos seus filhos. Assim, constata-se, em geral, nas realidades escolares, seja no âmbito das escolas públicas como nas particulares, um quadro de apreensão e insegurança diante do projeto político-pedagógico da educação inclusiva. A teorização que se segue e os dados de pesquisa apresentados fundamentam e decorrem das pesquisas conduzidas pelo Grupo de Estudos e Pesquisa em Integração/Inclusão Escolar (GEPEI), grupo cadastrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e localizado institucionalmente na Faculdade de Educação da UFRGS.2 O GEPEI propõe estabelecer uma ponte – acadêmica, científica e educacional – entre a Universidade e a escola. Objetivo primordial é, além do estudo de determinadas realidades escolares, tendo em vista a averiguação das incompletudes diante da proposta da inclusão escolar, estabelecer uma contínua interlocução com as escolas envolvidas na pesquisa, no sentido da construção de estratégias de ação junto aos educadores, alunos e famílias, que possibilitem a implementação gradual do projeto de educação inclusiva. Este objetivo geral subdivide-se nos seguintes objetivos específicos. O GEPEI propõe, assim, com o projeto de pesquisa que se encontra em execução (ao longo do ano de 2003 e com continuidade em 2004): 1- Investigar realidades escolares que se encontram confrontadas com a demanda – fatual e legal – do atendimento de alunos com necessidades educacionais especiais. 2- Dialogar e propor alternativas de ação às escolas. 3- Averiguar nestes contextos os espaços de aplicação dos conceitos da escola sócio- histórica russa (Lev Vygotski). 2 – Alguns referenciais teóricos O aspecto principal, “carro-chefe”, das reflexões que seguem é a temática da educação inclusiva. A abordagem de Vygotski é agregada - certamente não de forma secundária – por a considerarmos profunda e fértil tanto pelos seus conceitos fundamentais, em boa medida gerados e amadurecidos no contexto do trabalho de Vygotski com pessoas com deficiência, como pela precoce atenção que deu à temática da integração. Assim, a seguir são considerados ambos aspectos, primeiramente a questão da educação inclusiva, em seguida, a abordagem vygotskiana. 2.1 – Educação especial e educação inclusiva A educação especial tem passado, nos últimos anos, por fortes mudanças de caráter paradigmático e concernentes às políticas públicas, no contexto nacional e internacional. A mudança mais significativa é aquela que aponta para a necessidade de enfraquecer processos de afastamento da convivência em sociedade das pessoas com deficiência. A história do cuidado ou destrato destas pessoas foi, com freqüência, marcada por situações de isolamento social (confira uma análise pormenorizada em Foucault, 1995, 4ª ed.). Ou, em outras situações, como a da educação de Vitor, o menino-lobo, o desafio enfrentado por Itard (veja Banks-Leite et alii, 2000), aceitando a educabilidade deste menino contra a dominante opinião médica de Pinel. A partir deste fato histórico, há um marco significativo no tratamento diferencial de pessoas consideradas “desviantes” em seu comportamento. Estas não são mais sujeitos da segregação, porém passam a ser consideradas como possuidoras de possibilidades não exploradas para interagir nos espaços sociais considerados “normais”. Então, dos meados do século XIX, atravessando o século XX, presenciamos na história da educação especial um desenvolvimento marcado pelo reconhecimento e aceitação gradativos dos direitos das pessoas com necessidades especiais. Tal movimento, porém, deu- se sob a égide da ciência médica. As construções das outras áreas (psicologia, educação, etc.) na consideração das especificidades dessas pessoas como objetos de suas ações deram-se sempre sob o viés disciplinar médico. Assim, na psicologia convencionou-se avaliar a condição intelectual das pessoas com deficiência e determinar sua condição de (super) ou (sub)dotação intelectual, classificando alguns como intelectualmente superdotados, outros como subdotados, dentre esses últimos alguns com condição de educação formal, outros ditos treináveis, outros apenas passíveis de cuidados básicos (os chamados dependentes). A categorização clínica do sujeito, através dos parâmetros referenciais da normalidade intelectual (QI 100?), passou a determinar suas chances de educação formal ou de escolarização. As crianças com um quadro de deficiência “leve” poderiam ser educadas nas escolas regulares, enquanto que as demais seriam atendidas nas escolas especiais. O disciplinamento médico, com categorias “terapêuticas” de cuidado e isolamento, ditava inclusive as normas pedagógicas. Determinados autores do século XIX apontavam nitidamente para a influência da ciência médica na educação especial (naquela época, denominada como “pedagogia terapêutica”). Por exemplo, Friedrich H.C. Schwarz, no “Manual da Educação e do Ensino” (1805), ao comentar sobre a então nova área denominada “Pedêutica” e “Terapia Pedagógica”, escreveu: “A analogia com a terapia física é muito palpável ... (Esta seria) tarefa principal da educação, de fato não a menos importante”. (apud Bleidick, 1981, p. 255) Outros autores preferiram criar outra interface com a medicina, no caso entre a psiquiatria e a pedagogia, enfraquecendo enormemente as categorias pedagógicas. Por exemplo, Düring, Isserl e Stutte definiram a pedagogia terapêutica como “psiquiatria aplicada”. (apud Bleidick, 1981, p. 256) Houve, entretanto, posições antagônicas a esta situação de esvaziamento das categorias pedagógicas, ou de reducionismo clínico dos referenciais pedagógicos. Moor (apud Bleidick, 1981, p. 256), autor daquela época, afirmava que “nunca as constatações médicas obtêm significado fundamental para a educação. ... Objeto do conceito pedagógico terapêutico é a tarefa pedagógica e não mais o fato médico”. A informação médica poderia apontar para as variáveis intervenientes no quadro de deficiência, porém jamais servir de premissa independente para a decisão pedagógica. A predominância do paradigma médico não foi exclusividade do século XIX, porém atravessou, hegemonicamente, boa parte do século XX, e, não é exagero afirmar, que, até hoje, isto é, nos primórdios do século XXI, mantém-se a dominância da área médica na educação especial. Mesmo se verificando tal dominância, nos últimos 40 anos novos enfoques começaram a se desenvolver em alguns países, cujas bases assentavam-se sobre pressupostos divergentes daqueles emanados dos conceitos clínicos. Assim, ainda na década de 60 ocorreram as primeiras experiências de integração escolar de crianças com deficiência. Os Estados Unidos, também, começaram a enfatizar a possibilidade do atendimento educacional de alunos com deficiência na escola regular. A partir dessa década, outros países no cenário europeu passaram a voltar-se para a possibilidade ou idéia da integração escolar, mais intensamente a Itália. Na década de 70, a comissão de reforma do sistema educacional inglês, presidida por Mary Warnock, definia a necessidade da revisão de conceitos fundamentais da educação especial. Surgia, em 1978, o conceito de special educational needs, ou necessidades educacionais especiais, cuja idéia básica assentava-se sobre a necessidade de reconsiderar as práticas de conceitualização das deficiências, provocando uma profunda mudança nas formas de analisar a problemática das pessoas com deficiência. Assim, do enfoque ontogenético – a deficiência potencializada através de um processo de substantivação, em que o sujeito passava a ser interpretado, avaliado e qualificado por meio da sua deficiência, gerando o conceito de deficiente3 – passou-se a valorizar as diferentes singularidades de cada sujeito, sendo que suas limitações começaram a ser compreendidas como circunscritas no tempo e no espaço e definidas muito especificamente. Em decorrência desta abordagem, os “deficientes” passaram a ser gradualmente considerados como pessoas com necessidades especiais, ou com necessidades educacionais especiais, necessidades estas que de maneira alguma comprometem a dignidade e o valor da vida humana. Em termos paradigmáticos, pode-se apontar para uma mudança de paradigmas, do clínico-médico para o sócio-antropológico4. O foco analítico das variáveis intervenientes nas situações de deficiência, isolamento social e fracasso escolar sofreriam um deslocamento fundamental no sentido de que não mais o indivíduo seria o principal responsável por estas situações, porém a sociedade como um todo. As propostas de integração, inicialmente, e inclusão escolar, posteriormente, dos alunos ditos com necessidades especiais surgiram em decorrência de tais transformações paradigmáticas no cenário internacional da educação especial. Enquanto o paradigma médico fomentou, ao longo de décadas, o isolamento dos indivíduos com deficiência, penetrando no séc. XX e orientando a supremacia do pensamento terapêutico em relação ao pedagógico, fazendo sobressair, assim, a idéia de escolas especiais para os alunos portadores de deficiência, o avanço do paradigma sócio-antropológico fez germinar idéias de desguetização desses alunos. Estas idéias traduziram-se nas propostas de integração e inclusão escolar. Conforme visto acima, alguns países no cenário internacional emitiram os primeiros sinais de sensibilização em relação às novas idéias, amadurecendo-se as mesmas e, como que num efeito dominó, produzindo impactos significativos na forma de enxergar a educação dos alunos com necessidades especiais praticamente em toda Europa. O ápice desse processo deu- se com o encontro internacional em Salamanca, na Espanha, em 1994, resultando na Declaração de Salamanca, documento cujo marco representou avanços globais inequívocos quanto a projetos político-pedagógicos de educação inclusiva. No Brasil, ao longo da década de 90, estas idéias fizeram-se sentir com muita clareza, ganhando espaço gradativo nas ponderações acadêmicas, nas discussões da comunidade escolar, e, finalmente, nas gestões políticas educacionais nos âmbitos municipal, estadual e federal. Como resultado desse processo, a LDB da Educação Nacional de 1996 (Capítulo V) definiu como prioridade o atendimento educacional de alunos com deficiência ou com necessidades especiais no sistema regular de ensino. Tal política de integração escolar, com seu aprofundamento através da proposta de inclusão escolar, começou a gerar acalorados debates em torno das viabilidades operacionais, diante das muitas incompletudes do sistema educacional brasileiro. E este é o momento em que vivemos no país. Parece-me claro um forte anacronismo entre as pretensões legais (isto é, das políticas educacionais), com evidente priorização do paradigma da educação inclusiva dos alunos com necessidades educacionais especiais, e a realidade do sistema escolar brasileiro5. Esta mostra escolas despreparadas para lidar com classes inclusivas, falta de materiais adequados, professores com poucas condições (sem falar no aspecto motivacional) para atuar diferencialmente em sala de aula com alunos ditos normais e alunos com necessidades especiais, etc. 2.2 – A abordagem sócio-histórica como prisma de consideração das realidades escolares Dentre as teorias da aprendizagem e do desenvolvimento cognitivo, o pensamento de Lev Vygotski destaca-se pela ênfase que dá aos fatores psicossociais como determinantes nas condições de aprendizagem e desenvolvimento infantil. Para Vygotski, duas dimensões afetam o desenvolvimento humano, não apenas evolutivamente, como também ontogeneticamente, ou seja, a dimensão biológica ou orgânica e a social (cultural) ou histórica. Assim, ao se considerar a ou as realidades escolares, deve-se ter em mente que os sujeitos que integram a comunidade escolar são marcados por históricas distintas, cujos contornos delineiam-se através de fatores de natureza biológica e social. Embora a maioria das considerações sejam voltadas para o alunado, também os educadores – professores, especialistas, atendentes, etc. – têm suas histórias de vida demarcadas por fatores de natureza orgânica e social ou cultural. Para Vygotski, as duas linhas básicas determinantes do desenvolvimento humano, desta maneira, a biológica e a cultural, precisam ser adequadamente consideradas dentro da psicologia e da educação. A psicologia de sua época ou tendia a explicar o comportamento humano através de uma compreensão subjetiva e idealista, em que nada podia ser objetivado ou explicado do ponto de vista causal, ou buscava explicar o comportamento humano através das associações desencadeadas por relações de estímulo e resposta, porém em uma base extremamente linear e restrita à esfera biológica ou orgânica. Tanto uma como outra abordagem excluíam (no que residia a crítica vygotskiana fundamental) o entorno social e cultural do indivíduo. Para Vygotski, entretanto, o comportamento humano somente poderia ser adequadamente compreendido caso as duas dimensões – biológica e cultural - fossem incluídas. A melhor forma de entender o entrelaçamento entre ambas dimensões se dá quando se considera a situação de pessoas portadoras de deficiência, já que os estados de carência orgânica e as correspondentes implicações no âmbito cultural põem em relevo o papel desempenhado por cada uma delas. Para Vygotski, o contraste das duas dimensões pesa em favor do prejuízo resultante do isolamento social a que essas pessoas são costumeiramente submetidas. Justamente aí reside a necessidade maior de apoio externo, além, evidentemente, do suporte às carências orgânicas específicas (por exemplo, para o surdo, o domínio e uso da língua de sinais, para o cego, a escrita braille, etc.). Por isto, desde cedo, já na década de 20, Vygotski defendia veementemente a idéia do atendimento educacional de crianças com deficiência na escola regular.7 Possivelmente não haja autor da psicologia e da educação que tão precocemente tenha defendido a não exclusão das crianças, adolescentes e adultos com deficiência, do convívio social, na escola, inicialmente, e, depois, nas esferas mais amplas da vida comunitária. Ilustro a importância do pensamento integrador no trabalho de Vygotski, com uma pequena história, vivida recentemente por mim em uma defesa de projeto de mestrado de uma de minhas orientandas de pós-graduação. Compuseram a banca examinadora, além do orientador, duas professoras, uma da casa e outra convidada. No decorrer dos comentários desta última, posicionando-se frente ao trabalho de Vygotski, fez a seguinte afirmação, que deixou a todos que a ouviam (muito mais ao orientador e à orientanda), estupefatos: “Vygotski foi um anti-inclusivista!” Quem sabe numa tentativa de resposta a esta colega, a seguinte citação do “anti- inclusivista” Vygotski (1997, p. 93) ilustra bem a importância por ele dada à integração escolar: Por suposto que certos elementos do ensino e da educação especiais devem conservar- se na escola especial ou introduzir-se na escola comum. Porém, como princípio, deve ser criado o sistema combinado da educação especial e comum (...) A outra medida consiste em derrubar os muros de nossas escolas especiais. (...) O ensino “especial” deve perder seu caráter “especial” e então passará a ser parte do trabalho educativo comum. Deve seguir o rumo dos interesses infantis. A escola auxiliar, criada apenas como ajuda à escola normal, não deve romper nunca nem em nada (cursivo no original) os vínculos com ela. A escola especial deve tomar com freqüência por um período aos atrasados e restituí-los de novo à escola normal. Orientar-se pela norma, desterrar por completo tudo o que agrava o defeito e o atraso – este é o objetivo da escola. Não deve ser vergonhoso estudar ali e sobre suas portas não deve estar escrito: “Perdei toda esperança os que aqui entrais.” Quem sabe a forma mais apropriada de se dimensionar o pensamento de Vygotski, em relação às considerações sobre a educação inclusiva de crianças com necessidades específicas, seja a partir do seu pensamento social. De forma inversa, alguns interpretam que a teoria sócio-histórica foi construída por Vygotski a partir da sua experiência docente com crianças com tais necessidades. Ele entendia que estas pessoas não se diferenciavam qualitativamente das ditas normais, configurando uma forma diversa de se desenvolver, aprender ou referenciar-se culturalmente. Pelo contrário, os significados culturais permaneceriam como referências comuns para todos os sujeitos sociais9, independentemente das condições individuais. Decisivas seriam, entretanto, as formas de acesso e apropriação dos significados culturais, resultando em semânticas individuais ou sentidos particulares dos mesmos. Continuando seu pensamento, conforme explicitado no capítulo 3 (Acerca de la psicología y la pedagogía de la defectividad infantil) do Volume V das Obras Escogidas, não haveria diferença essencial na estrutura psíquica e na forma de aprendizagem entre pessoas cegas ou surdas e as “normais”. O cego teria condição de alfabetização e conseqüente domínio da leitura e da escrita como as pessoas videntes, apenas que através de outro recurso de escrita, representado pelo código braille. Para Vygotski, mais importante do que os signos seria a possibilidade do acesso aos significados, podendo este se dar através dos mais variados signos, ou caminhos de apropriação dos significados. Por que isto seria tão importante para Vygotski? Porque desta maneira o indivíduo estaria estabelecendo uma circularidade constante com os significados e valores sociais, tese de fundamental importância para seu pensamento, já que seria desta forma que toda criança passaria de ser biológico para ser social e, assim, capaz de construir estruturas mentais cada vez mais complexas. Assim, quando ele analisava a situação de pessoas privadas, por contingências as mais variadas, em relação à possibilidade de acesso aos significados culturais, perpetuar tais privações seria o derradeiro handicap, e não os próprios estados orgânicos. A partir desta abordagem, pode-se compreender porque para Vygotski era fundamental que se preservasse ou se promovesse as condições mais plenas de acessibilidade e trânsito social para crianças potencialmente ameaçadas, pelos seus estados individuais, de segregação ou não interação com os significados culturais compartilhados pelo grupo social. E por isso sua ênfase tão clara na importância de espaços escolares e sociais o menos demarcados institucionalmente – e, portanto, potencialmente segregadores – para crianças com necessidades especiais. Por isso, Vygotski afirma de forma tão reiterada e enfática, conforme o texto citado acima, de que o lugar mais legítimo para todas as crianças, também as com necessidades especiais, é na escola regular. A escola especial correria o risco de criar e perpetuar a cultura do déficit, em que os significados das identidades – individuais e sociais – encontrar-se-iam ou em um estado de acentuada difusidade, ou velados – por atitudes de superproteção, comiseração, rejeição, etc. Também seria inadequada a imposição de modelos, valores ou referências culturais, que não viabilizassem ao sujeito sua própria síntese cultural, num espaço o mais amplo ou democrático possível de intercâmbio social e cultural. Uma segunda razão para Vygotski defender a importância da convivência social da criança com necessidades especiais em situações de heterogeneidade e de riqueza de trocas sociais está no próprio fundamento de sua teoria sócio-histórica, ou seja, é precisamente na amplitude das relações interpsicológicas que a criança encontrará solo fértil para o desenvolvimento das estruturas intrapsíquicas do pensamento e da linguagem. Imagine-se o que significaria a convivência predominante da criança em situações grupais de homogeneidade, em escolas ou classes especiais, em termos da idéia acima. Possivelmente os horizontes de aprendizagem e de terminalidade escolar seriam tão restritos para alunos com necessidades especiais devido exatamente ao estabelecimento de círculos homogêneos de convivência escolar. A idéia da integração escolar, defendida por Vygotski, conforme seus textos deixaram antever, viria a prevenir tal situação. 3 – Proposta metodológica e resultados preliminares Conforme foi anunciado brevemente na introdução deste artigo, constituem espaço desta pesquisa três escolas cujos projetos político-pedagógicos delineiam-se favoravelmente à proposta da educação inclusiva. Para tanto, foram convidadas e envolvidas na pesquisa uma escola pública estadual, no município de Santa Maria (RS), uma pública municipal, em Porto Alegre (RS), e uma escola particular, no município de Novo Hamburgo (RS). Sujeitos participantes da mesma são professores, pais e alunos destas escolas. A abordagem metodológica é qualitativa, através da pesquisa-ação. Propõe-se uma postura de diálogo com a comunidade escolar, buscando conjuntamente a elaboração de estratégias de ação que favoreçam a execução da proposta de inclusão escolar. Passo a discutir alguns dos resultados já obtidos – durante o 2º semestre de 2003 - com os professores de duas das escolas (10 professores na escola particular e 10 professores na escola estadual) acima mencionadas, a partir das questões de entrevista propostas10. Inicialmente, as respostas dos professores da escola particular foram analisadas, destacando- se os aspectos que se seguem. Em relação à primeira questão, cito breves trechos de algumas falas, para um “conhecimento in loco” das respostas. a) “... estar diante de um novo desafio.” b) “As questões referentes à inclusão sempre provocam reações de insegurança ... É necessário muito estudo e observação.” c) “... confesso que fiquei muito apreensiva ... constantemente ainda solicito ajuda da equipe pedagógica da escola.” Agrupei as afirmações mais freqüentes dos professores nos seguintes sentimentos ou atitudes: sentimento de desafio; desconhecimento a respeito; sentimento de ansiedade e insegurança; busca de apoio pedagógico. Em relação à segunda questão, constam abaixo algumas afirmações que me pareceram mais sugestivas. a) “Como um caminho onde não será permitido o retorno.” b) “Um caminho a ser trilhado ... mas com muitas ‘pedras’ e desafios impostos pela falta de informação e de uma formação especial.” c) “Acredito muito nesta proposta, uma vez que aprendemos na interação com o outro, respeitando as diferenças de cada um. Penso que a inclusão precisa ser planejada com seriedade, incluindo serviços de apoio.” d) “... abre as portas da escola para todos, pois todos têm direito à educação e socialização.” As respostas apresentadas podem ser resumidas da seguinte forma. Os professores definem o projeto da educação inclusiva como: uma proposta educacional “irreversível”; uma “democratização” do ensino, do acesso à escola; “cultura inclusiva”; um “caminho” (“sem retorno”, “com muitas pedras”); um projeto com demandas direcionadas à transformação da escola. Para a terceira questão, elegi para ilustração as seguintes respostas dos professores: a) “Sei muito pouco sobre o assunto, não tenho experiência, me guio basicamente pela minha observação, sensibilidade e pelo pouco conhecimento que tenho de alguma literatura especializada.” b) “Acredito que tenha uma grande caminhada pela frente. Como já disse, é necessário estudar, buscar, observar para entender cada uma dessas crianças.” c) “Não temos conhecimentos suficientes para recebermos adequadamente os diversos comprometimentos que temos em nossas escolas. Acho que nunca estaremos prontos, mas é com grupos de debates, de estudos entre profissionais da área e também de especialistas que conseguiremos avançar nesse processo.” Destaco as seguintes posturas dos professores a partir de seu espaço de experiência e de formação profissional. Tendo em vista atender a demanda decorrente da proposta da educação inclusiva, os professores acentuam: o valor das experiências acumuladas; sentirem- se despreparados, ou “leigos” em relação à proposta; disporem de pouco formação específica; disporem de pouco conhecimento; a importância da formação continuada; a importância da prática (similar ao primeiro aspecto destacado acima); a necessidade de unir a prática à teoria. Em relação à quarta questão, destaco algumas afirmações: a) “Acho que para ocorrer a inclusão, o professor sempre precisa do suporte da equipe diretiva e de profissionais ligados à área. Reuniões sistemáticas para trocar idéias e apontar novos encaminhamentos.” b) Primeiramente, o que mais pode contribuir é, sem dúvida, um suporte teórico para os professores, focando os diferentes tipos de crianças com necessidades especiais. A infra- estrutura da escola também deve estar de acordo com as necessidades. As informações a respeito dos alunos com necessidades especiais devem ser divulgadas e serem de domínio de todos os profissionais que trabalham com esses alunos. As informações devem ser muito bem trabalhadas com os colegas e familiares das turmas com inclusão.” c) “Trabalho com a comunidade escolar, principalmente pais, que muitas vezes resistem aos colegas incluídos que os filhos têm; até mesmo por ignorância no assunto. Encontros com outros colegas do mesmo ciclo, ou que tenham alunos com comprometimentos similares, para que juntos possam trocar informações, buscar estratégias. Sugestões de literaturas sobre o assunto específico. Ser comunicado com antecedência sobre os alunos de inclusão do próximo ano letivo, para que seja possível a busca de dados anteriores e informações que contribuirão para o trabalho em sala de aula.” As afirmações dos professores dão, como aspectos fundamentais para um processo positivo de inclusão escolar, os seguintes destaques: adaptação das escolas e preparo dos professores; participação da comunidade escolar e conscientização do projeto de inclusão; apoio da equipe pedagógico e composição favorável da infra-estrutura escolar; rede de apoio, que inclui também os especialistas; intercâmbio constante entre os professores. Na última (quinta) questão apresentada, algumas das respostas foram: a) “Penso que colocar alunos, sem estruturas e recursos, somente para dizer que estamos a favor da inclusão ... não resolve. É preciso haver comprometimento de recursos, viabilizar e qualificar sempre os profissionais que atuam ... com esses alunos. Principalmente em escolas públicas, vejo um aglomerado de alunos, ou, melhor dito, ‘depósitos’, sem que a escola esteja preparada. É preciso união da comunidade, respeitando os direitos de todos, é preciso recursos de qualificação e materiais nas escolas para que esses alunos sintam-se realmente incluídos na sociedade em que vivem. É preciso também que os próprios colegas de classe tenham ... entendimento para poder contribuir com esses colegas em sala de aula e na escola, e não deixá-los à margem.” b) “No atual momento, como já afirmei, acredito que seria necessário à escola organizar-se, no sentido de dar suporte aos professores para atender o número cada vez maior de crianças com necessidades específicas.” c) “Vontade política para a proposta realmente se efetivar, verbas e integração da saúde com a educação.” Nas respostas apresentadas, os pontos mais débeis para viabilização do projeto de inclusão escolar foram destacados pelos professores da seguinte maneira: a falta de oportunidades para troca com colegas e especialistas; recursos humanos e materiais insuficientes; conscientização ainda débil da comunidade escolar sobre o projeto de inclusão escolar; a ausência de projetos sustentáveis de formação continuada; vontade política e verbas insuficientes. Os 10 professores da escola pública estadual, distribuídos nas séries do ensino fundamental, pelo currículo por atividades e por área de estudo, apresentaram os seguintes aspectos, que listo abaixo, todos eles como resposta às cinco questões apresentadas: · a importância da formação continuada dos professores; · a necessidade da Educação de Jovens e Adultos (EJA) para alunos mais velhos; · o grande número de alunos em sala de aula como aspecto desfavorável; · a existência de pouco tempo para que os professores preparem suas atividades com qualidade; · o projeto de educação inclusiva definido como um “mal necessário”; · a dependência da “boa vontade” dos professores; · um certo “mal-estar” inicial, porém com apoio externo a situação em sala de aula passou a se tornar positiva; · é importante que as turmas de inclusão sejam menores; · a importância dos intercâmbios entre professores, educadores especiais e os professores das salas de recursos. Conclusão Concluo este texto não podendo deixar de apontar para o que parece ser o óbvio, ou seja, de que estamos diante de uma situação de muitas incompletudes e perplexidades diante da demanda que resulta, a meu ver, da priorização em lei (LDB 9394/96) de um projeto político-pedagógico- o da educação inclusiva - que não nos possibilita vislumbrar, ainda, formas exeqüíveis de implementação bem sucedida. Podemos, como tantos outros, sonhar, defender uma utopia, estabelecer metas que signifiquem a gradual metamorfose de educadores, escolas, famílias e alunos em sujeitos ativos, participantes, criativos no processo de inclusão de alunos com necessidades especiais no sistema regular de ensino. As falas dos docentes ouvidos anunciam e denunciam dificuldades, frustrações, temores, porém também a esperança de que, através dos vários intercâmbios a serem estabelecidos entre professores, pais, alunos, e outros sujeitos do espaço escolar, avanços e transformações possam ser produzidos, gerando-se uma inclusão escolar possívelReferências bibliográficas Banks-Leite, L. Galvão, I. (Orgs). A educação de um selvagem: as experiências pedagógicas de Jean Itard. São Paulo: Cortez, 2000. Beyer, H. O . Educação especial: Uma reflexão sobre paradigmas. In: Reflexão e ação. Santa Cruz do Sul: Unisc, v. 6, nº 2, jul/dez 1998, p. 9-22. Beyer, H. O . Integração e inclusão escolar: reflexões em torno da experiência alemã. Revista Brasileira de Educação Especial, v. 8, nº 2, jul/dez 2002, p. 157-168. Bleidick, U. Lernbehindertenpädagogik. In: Bleidick, U. Hagemeister, U. Kröhnert, O . Pawel, B. Einführung in die Behindertenpädagogik. Stuttgart: Kohlhammer, 1981. Foucault, M. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 1995. Naujorks, M.I. Stress e inclusão: indicadores de stress em professores frente à inclusão de alunos com necessidades educacionais especiais. In: Cadernos de Educação Especial, Santa Maria, p. 117-125, nº 20, 2002. Vygotski, L.S. Obras escogidas V – Fundamentos de defectología. Madrid: Visor, 1997. Notas: 1 Destacam-se as desenvolvidas nas cidades de Berlim e Hamburgo. 2 Compõem o GEPEI e participam da pesquisa as seguintes pesquisadoras: Fabiane Costas (Drª/UFSM); Olga S. Herval Souza (Drª/FADERGS); Ana Vilma Tijiboy (Drª/NAPNES-UFRGS); Ulrika Arns (Doutoranda UFRGS/UERGS); Andréa Tonini (Ms/UFSM); Luisa Hogetop (Ms/NAPNES-UFRGS); Cíntia Teixeira (Ms/URI); Ângela Coronel (Ms/SMED- São Leopoldo, RS); Maristela Ferrari (Mestranda UFRGS/SMED-Novo Hamburgo, RS); Mônica Pagel Eidelwein (Mestranda UFRGS/FEEVALE); Márcia B. Cerutti Müller (Mestranda UFRGS/FEEVALE); Ângela Vigolo (NAPNES-UFRGS). 3 Os países de língua anglo-germânica fixaram-se em um conceito ontogenético da deficiência. Pensamos, aqui, particularmente nas expressões na língua alemã, em que para cada prefixo definidor da deficiência segue-se o substantivo deficiente(s). Assim, por exemplo, surgem as palavras Geistig(=mental)behinderte(=deficiente), Sprach(=fala)behinderte, Lern(aprendizagem)behinderte, dentre outras. Inclusive a educação especial (sem esquecer que há neste país um significativo movimento de integração escolar) ganha diferentes denominações, sendo uma delas a Behindertenpädagogik, isto é, a pedagogia dos deficientes. 4 A respeito da discussão dos paradigmas, veja o artigo Educação especial: uma reflexão sobre paradigmas. In: Reflexão e Ação. UNISC, 1998. 5 A este respeito, veja o artigo Integração e inclusão escolar: reflexões em torno da experiência alemã. In: Revista Brasileira de Educação Especial, 2002. 6 Pensa-se, aqui, nos contextos escolares da escola regular, da escola especial, e das escolas regulares com experiências de educação inclusiva. 7 Veja, a respeito, o vol. V das Obras Escogidas, 1997. 8 Tradução livre do texto original, em espanhol. 9 Não pensamos, absolutamente, em um padrão cultural normativo ou dominante, já que um determinado grupo social pode ser composto por várias culturas, raças, etnias, identidades, etc., sendo que os significados culturais são marcados pelas matizes correspondentes. 10 As cinco questões apresentadas são as seguintes: 1) Qual foi seu primeiro contato com a idéia/proposta da educação inclusiva? E sua primeira reação? 2) Como você a define? 3) Como você avalia sua condição profissional (experiência, formação, etc.) para adaptar sua atuação docente às características de uma educação inclusiva? 4) Que aspectos você aponta como imprescindíveis para viabilizar na dinâmica escolar a proposta da educação inclusiva? 5) Quais os aspectos que você apontaria como mais débeis, no atual momento, no processo de inclusão escolar de alunos com necessidades especiais? Cadernos :: edição: 2003 - N° 22 > Índice > Resumo > Artigo Educação Escolar Inclusiva: demanda por uma sociedade democráticaValdelúcia Alves da CostaO que repele por sua estranheza é, na verdade, demasiado familiar. (Horkheimer & AdornoEste texto analisa a educação escolar de indivíduos com deficiência, na sociedade contemporânea, com destaque para o Brasil, na perspectiva da escola inclusiva, considerando os documentos oficiais brasileiros e estrangeiros, e à luz do pensamento de Adorno e Horkheimer acerca do preconceito. Palavras-chave: educação inclusiva, formação de professores, deficiência, preconceito1. Introdução A sociedade contemporânea brasileira vive um momento cultural contrário à discriminação dos indivíduos ou grupos que apresentam diferenças significativas e, conseqüentemente, cresce a demanda por uma sociedade inclusiva. Apesar do preconceito persistir, evita-se a discriminação quanto à matrícula de alunos com deficiência na escola pública regular no Brasil. As necessidades educacionais especiais dos alunos, advindas de suas deficiências, não deveriam ser, por si mesmas, de acordo com Costa, 2001, p.13,“(...) impeditivo para o ingresso e permanência na escola regular, desde que essa estivesse equipada com os recursos didático-pedagógicos específicos e profissionais capacitados para lidar com a diversidade dos alunos”, atuando na perspectiva da educação democrática, com possibilidades de autonomia para todos os alunos. Assim, o esforço para o alcance da educação para todos, segundo Ainscow (1997, p.13), deve considerar que: (...) em vez de se sublinhar a idéia da integração, acompanhada da concepção de que se devem introduzir medidas adicionais para responder aos alunos especiais, num sistema educativo que se mantém, nas suas linhas gerais, inalterado, assistimos a movimentos que visam a educação inclusiva, cujo objectivo consiste em reestruturar as escolas, de modo a que respondam às necessidades de todas as crianças. Dessa maneira, para Costa, 2001, p. 91 “A urgência de uma educação democrática e emancipadora parece constituir-se como alternativa para a superação da diferença significativa como obstáculo para o acesso e permanência na escola regular dos educandos com deficiência e na possibilidade de se pensar uma sociedade justa e humana”. Portanto, em relação à educação dos alunos com deficiência, observa-se a emergência de uma educação inclusiva e de movimentos de combate ao preconceito voltado àqueles significativamente diferentes em vários municípios e estados brasileiros, considerando-se que a educação é, segundo Adorno (1995, p.141-2), antes de tudo, esclarecimento e o desenvolvimento de uma consciência verdadeira. Para o referido autor, a educação nessa perspectiva: (...) seria inclusive da maior importância política; sua idéia, se é permitido dizer assim, é uma exigência política. Isso é: uma democracia com o dever de não apenas funcionar, mas operar conforme seu conceito, demanda pessoas emancipadas. Uma democracia efetiva só pode ser imaginada como uma sociedade de quem é emancipado. Portanto, as bases legais da educação inclusiva são importantes para considerarmos os possíveis avanços na democratização da escola pública brasileira. 2. As bases legais da Educação Inclusiva Os documentos oficiais brasileiros e internacionais, consonantes com a demanda humana e social pela inclusão de todos os indivíduos nas diversas instâncias da sociedade, preconizam a inclusão escolar dos alunos com deficiência na escola regular, tais como: · Constituição Federal/1988, no Artigo 208, prevê “(...) atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente, na rede regular de ensino”. · Constituição Estadual/1989, no Artigo 305, garante o “(...) atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência e ensino profissionalizante na rede regular de ensino, quando necessário, por professores de educação especial”. · Lei nº 8.069/90, sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente que dispõe no Art. 54, inciso III, sobre a educação, afirmando que “É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente: Atendimento especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino”. · Lei nº 9.394/96, estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, e em seu capítulo V, dispõe quanto à educação especial, entendendo-a como “(...) uma modalidade de educação escolar, oferecida, preferencialmente, na rede regular de ensino, para educandos portadores de necessidades especiais”. A referida Lei delibera, também, sobre os sistemas de ensino, que deverão assegurar aos educandos com necessidades especiais currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específicos, para atender às suas especificidades. Quanto à formação de professores, para atuarem junto aos alunos com necessidades educacionais especiais, prevê uma especialização adequada em nível médio ou superior, para atendimento especializado, bem como professores do ensino regular capacitados para a integração desses educandos nas classes comuns. · Declaração Mundial de Educação para Todos, Jomtien, Tailândia/90, propõe a constituição de um sistema educacional inclusivo, pelo qual o Brasil fez opção. · Declaração de Salamanca e Linha de Ação, Espanha/94 – Conferência Mundial sobre necessidades educativas especiais: acesso e qualidade, na qual o Brasil mostrou consonância com seus postulados. Da Declaração de Salamanca, cujo princípio fundamental “(...) é de que as escolas devem acolher todas as crianças independentemente de suas condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais, lingüísticas ou outras” (p.17), vale ressaltar alguns trechos, dentre outros, que justificam a proposta de uma educação inclusiva para todos os alunos: “As pessoas com necessidades educativas especiais devem ter acesso às escolas comuns que deverão integrá-las numa pedagogia centralizada na criança, capaz de atender a essas necessidades; Adotar com força de lei ou como política, o princípio da educação integrada que permita a matrícula de todas as crianças em escolas comuns, a menos que haja razões convincentes para o contrário”; (p. 10) “Assegurar que, num contexto de mudança sistemática, os programas de formação do professorado, tanto inicial como contínua, estejam voltados para atender às necessidades educativas especiais nas escolas integradoras”; (p. 11) “(...) O desafio que enfrentam as escolas integradoras é o de desenvolver uma pedagogia centralizada na criança, capaz de educar com sucesso todos os meninos e meninas, inclusive os que sofrem de deficiências graves. O mérito dessas escolas não está só na capacidade de dispensar educação de qualidade a todas as crianças; com sua criação, dá-se um passo muito importante para tentar mudar atitudes de discriminação, criar comunidades que acolham a todos e sociedades integradoras”; (...) As escolas que se centralizam na criança são, (...), a base para a construção de uma sociedade centrada nas pessoas, que respeite tanto a dignidade como as diferenças de todos os seres humanos;” (p. 18) “O princípio fundamental que rege as escolas integradoras é de que todas as crianças, sempre que possível, devem aprender juntas, independentemente de suas dificuldades e diferenças. Nas escolas integradoras, as crianças com necessidades educativas especiais devem receber todo apoio adicional necessário para garantir uma educação eficaz”; (p. 23) “Os programas de estudos devem ser adaptados às necessidades das crianças e não o contrário (p.28), sendo que as que apresentarem necessidades educativas especiais devem receber apoio adicional no programa regular de estudos, ao invés de seguir um programa de estudos diferente”; (p.29) “(...) Atenção especial deverá ser dispensada à preparação de todos os professores para que exerçam sua autonomia e apliquem suas competências na adaptação dos programas de estudos e da Pedagogia, a fim de atender às necessidades dos alunos e para que colaborem com os especialistas e com os pais”; (p. 37) “A capacitação de professores especializados deverá ser reexaminada com vistas a lhes permitir o trabalho em diferentes contextos e o desempenho de um papel-chave nos programas relativos às necessidades educativas especiais. Seu núcleo comum deve ser um método geral que abranja todos os tipos de deficiências, antes de se especializar numa ou várias categorias particulares de deficiência”.(p.38) Plano Nacional de Educação/1997 – preconiza quanto à formação dos profissionais da educação, que “A formação continuada de profissionais da educação, tanto docentes como funcionários, deverá ser garantida pela equipe dirigente das Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, cuja atuação deverá incluir a coordenação e financiamento dos programas, a sua manutenção como ação permanente, e a busca de parcerias com universidades e instituições de ensino superior”. (p.69) · Resolução nº 2, do Conselho Nacional de Educação/CNE/CEB/2001, no Art. 1º. “(...) institui as Diretrizes Nacionais para a educação de alunos que apresentem necessidades educacionais especiais, na Educação Básica, em todas as suas etapas e modalidades”, ratificando a obrigatoriedade dos sistemas de ensino quanto à matrícula de todos os alunos, cabendo às escolas organizarem-se para o atendimento da diversidade do alunado, assegurando-lhe as condições educacionais necessárias. A referida Resolução, do Conselho Nacional de Educação, entende a educação especial, modalidade da educação escolar, como um processo educacional definido por uma proposta pedagógica que assegure recursos e serviços educacionais especiais, organizados institucionalmente para apoiar, complementar, suplementar e, em alguns casos, substituir os serviços educacionais comuns, de modo a garantir a educação escolar e promover o desenvolvimento das potencialidades dos educandos que apresentam deficiência. Para tanto, as escolas brasileiras, da rede regular de ensino, devem prever e prover na organização de suas classes comuns, dentre outros aspectos, a formação de professores. Partindo do pressuposto que os professores, atuantes no sistema regular de ensino brasileiro, não tiveram acesso a conhecimentos relativos às necessidades especiais educacionais dos alunos em sua formação inicial, os dispositivos legais brasileiros e estrangeiros, aqui apresentados, permitem pensar na possiblidade de, por intermédio de um programa de formação continuada desses professores, viabilizar a constituição de uma escola acolhedora a todos, na perspectiva da educação inclusiva dos indivíduos com deficiência. É importante, porém, destacar que um projeto educacional democrático inclusivo não se realizará com base apenas em documentos oficiais, mas principalmente como decorrente de uma auto-reflexão crítica por parte dos profissionais da educação, com destaque para os professores e alunos com e sem deficiência. Face à importância da atuação pedagógica, faz-se necessário, portanto pensar em programas de formação de professores que contemplem sua autonomia como uma questão central, pois como pensar em autonomia dos alunos quando o professor, ele mesmo, não é um indivíduo autônomo? 3. Experiências brasileiras de Educação Escolar Inclusiva: o caso do estado do rio de janeiro 3.1. Quanto à formação de professores Considerando que os professores que atuam no sistema regular de ensino no Brasil, com destaque para o Estado do Rio de Janeiro, não tiveram acesso a conhecimentos relativos às necessidades especiais educacionais dos alunos em sua formação inicial, os dispositivos legais aqui apresentados permitem pensar na possiblidade de, por intermédio de um programa de formação continuada desses professores, viabilizar a constituição de uma escola democrática,, na perspectiva da educação inclusiva dos indivíduos com necessidades educacionais especiais. É importante, porém, destacar que um projeto educacional democrático inclusivo não se realizará com base apenas em leis, mas principalmente como decorrente de uma auto-reflexão crítica por parte de toda sociedade, com ênfase neste momento, nos professores da rede pública de ensino brasileiro. A Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, consciente de sua função de produtora de conhecimento e social transformadora, e responsável pela formação teórica e empírica dos profissionais da educação tem realizado com regularidade, em atendimento às solicitações da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro, por intermédio da Coordenação de Educação Especial, Projetos de Curso de Formação Continuada dos professores da rede estadual de ensino, com vistas à inclusão dos alunos com necessidades educacionais especiais na rede regular de ensino, na perspectiva de uma educação inclusiva, isso é, uma educação escolar democrática e política. A Universidade Federal Fluminense, por intermédio da Faculdade de Educação e do Programa de Educação Especial, e sob minha coordenação, tem desenvolvido cursos de formação continuada dos professores da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro, considerando a educação de alunos com necessidades educacionais especiais advindas de suas deficiências, sejam físicas, mentais ou sensórias, na perspectiva da educação inclusiva, desenvolvendo cursos de aperfeiçoamento, de acordo com Art.3º, inciso I da Resolução 126/96 do CEP. Considerando que os professores que atuam no sistema regular de ensino não tiveram acesso a conhecimentos relativos às necessidades especiais educacionais dos alunos em sua formação inicial, os dispositivos legais acima apresentados permitem pensar na possiblidade de, por intermédio de um programa de formação continuada desses professores, viabilizar a constituição de uma escola democráticas, na perspectiva da educação inclusiva dos indivíduos com necessidades educacionais especiais. É importante, porém, destacar que um projeto educacional democrático inclusivo não se realizará com base apenas em leis, mas principalmente como decorrente de uma auto-reflexão crítica por parte de toda sociedade, com ênfase neste momento, nos professores da rede estadual do Rio de Janeiro. Os referidos projetos têm por objetivos capacitar, na perspectiva da formação continuada, professores do ensino regular e da educação especial para a inclusão dos alunos com necessidades educacionais especiais na rede regular de ensino; oportunizar aos professores da rede estadual de ensino conhecimentos teórico-práticos para o atendimento pedagógico demandado pelas necessidades educacionais especiais dos alunos com deficiências, condutas típicas, superdotação e dificuldades acentuadas de aprendizagem na rede regular de ensino; propiciar a ampliação do acesso e permanência na escola, e a apropriação do conhecimento com base em experiências intelectuais aos alunos com necessidades educacionais especiais nas escolas regulares da rede estadual de ensino; e promover o enfrentamento das barreiras atitudinais, impeditivas à inclusão do alunado com necessidades educacionais especiais nas escolas da rede regular de ensino, mediante a conscientização da comunidade escolar sobre a diversidade dos alunos. As metas alcançadas até 2003, referem-se principalmente à capacitação de cerca de 2.000 mil professores da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro, sendo 70% de professores atuantes no ensino regular, e 30% de professores da educação especial; promoção de aperfeiçoamento do atendimento educacional atual prestado aos 7.500 alunos com necessidades educacionais especiais matriculados na rede estadual de ensino; ampliação de matrícula para os anos subseqüentes (com destaque para 2004) de alunos com necessidades educacionais especiais nas escolas da rede regular do ensino do Estado do Rio de Janeiro. Quanto à metodologia de desenvolvimento dos referidos projetos, vale destacar que os cursos de formação continuada, que envolvem toda a Rede Estadual de Ensino do Rio de Janeiro e contemplam também professores das redes municipais de ensino Estado do Rio de Janeiro, têm em média carga total de 136 horas, cada curso, distribuídas em 07 módulos temáticos e que ocorrem nas coordenadorias regionais (na capital) e municípios-pólo, no total de 29 unidades. Os cursos são ministrados em unidades escolares da Rede Estadual de Ensino nos municípios-pólo e coordenadorias regionais que envolvem os municípios circunvizinhos. Os cursos de formação continuada, em geral, apresentam a composição que oferece os seguintes módulos temáticos, com as respectivas ementas, abordando as diferentes áreas de necessidades educacionais especiais do alunado da educação especial. Abaixo os módulos temáticos e suas respectivas ementas: · Módulo temático: Abordagens inclusivas de ensino para alunos com deficiência mental.· Ementa: Diretrizes Nacionais para Educação Especial na Educação Básica e Declaração de Salamanca. Conceito e identificação (AAMR). Deficiência mental e exclusão escolar. A deficiência mental na perspectiva de Piaget e Vygotsky. Cotidiano escolar, adaptações curriculares, processo de leitura e escrita do aluno com deficiência mental. Práticas pedagógicas para a educação inclusiva. · Módulo temático: Abordagens inclusivas de ensino para alunos com deficiência auditiva. · Ementa: Diretrizes Nacionais para Educação Especial na Educação Básica e Declaração de Salamanca. O aluno surdo no processo de elaboração do conhecimento. Diferença e deficiência auditiva. Minoria lingüística. Letramento do aluno surdo. Educação inclusiva. · Módulo temático: Abordagens inclusivas de ensino para alunos com deficiência visual. · Ementa: Deficiência Visual e educação. Recursos Pedagógicos para deficientes visuais. Educação para a inclusão. · Módulo temático: Abordagens inclusivas de ensino para alunos com deficiência física com ênfase em paralisia cerebral. · Ementa: Significados, preconceito, estereótipos e estigma. O estudo da arte da educação dos alunos com paralisia cerebral. Educação para a inclusão. · Módulo temático: Abordagens inclusivas de ensino para alunos com dificuldades acentuadas de aprendizagem na leitura e na escrita. · Ementa: Educação e dificuldades de aprendizagem. Distúrbios de aprendizagem e suas origens. Educação para a inclusão. · Módulo temático: Abordagens inclusivas de ensino para alunos com condutas típicas. · Ementa: Condutas típicas de síndromes/quadros psicológicos, neurológicos e psiquiátricos ou distúrbios de conduta – complexidade dos conceitos TDAHI. Transtornos invasivos do desenvolvimento. Transtornos de conduta e violência. Adaptações curriculares e educação inclusiva. · Módulo temático: Abordagens inclusivas de ensino para alunos com superdotação · Ementa: Histórico da educação dos superdotados. Mitos e preconceitos. Conceitos atuais. Legislação. Identificação em sala de aula. Adaptações curriculares e educação inclusiva. Quanto ao método, os cursos de formação continuada para a educação inclusiva se desenvolvem articulando os diversos módulos temáticos, envolvendo teoria e prática com ênfase em oficinas pedagógicas, consideradas como um campo de exploração em busca de novas práticas. O cotidiano da sala de aula é refletido como laboratório de experiências intelectuais e empíricas entre professores e alunos. Os docentes discutem com os professores da rede de ensino formas para tornar possível a educação democrática e para a escola acolher as diferenças dos alunos. Dessa maneira, os cursos destacam a valorização humana e profissional dos professores, oportunizando espaços para novas possibilidades de atuação pedagógica e à experimentação e reflexão. Em relação à avaliação, os cursos de formação continuada, oferecidos aos professores da rede regular de ensino e da educação especial do Estado do Rio de Janeiro pela Universidade Federal Fluminense, são avaliados levando em conta os seguintes aspectos: a metodologia adotada pelos docentes nos módulos temáticos; conteúdos programáticos; recursos pedagógicos; carga horária; relação com o cotidiano escolar; aproveitamento dos professores; e freqüência por parte dos professores, dentre outros. A avaliação é realizada pelos professores participantes e docentes do Curso, sob a coordenação da professora coordenadora do projeto. Os instrumentos de avaliação dos cursos são “Relatório descritivo do docente” e “Avaliação do módulo temático”. O primeiro instrumento é utilizado pelos docentes, e o segundo pelos professores que participam dos projetos de cursos de formação continuada de professores da rede pública de ensino do Estado do Rio de Janeiro no Brasil. Os professores recebem certificados expedidos pela Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal Fluminense, considerando, pelo menos, 75% de freqüência nos referidos cursos de formação continuada, após o encerramento da avaliação dos projetos. 3.2. Quanto à inclusão de indivíduos com deficiência no mundo do trabalho A Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, sob minha coordenação, vem desenvolvendo desde 2002 o Projeto “Formação do trabalhador com deficiência pelo trabalho e pela educação: uma experiência entre a Universidade Federal Fluminense e o Serviço Federal de Processamento de Dados/Serpro/RJ”. Vale destacar que o Serpro/RJ desenvolve, desde o início dos anos 70, o “Programa de Treinamento e Qualificação Profissional de Pessoas Portadoras de Deficiência”, que visa a inclusão de trabalhadores com deficiência em seus quadros funcionais. A idéia norteadora desse Projeto leva predominantemente em conta a tendência contemporânea das transformações no mundo do trabalho, face ao avanço tecnológico, à globalização econômica e social, associada à afirmação de Horkheimer & Adorno (1985, p.47) de que: ”A impotência dos trabalhadores não é mero pretexto dos dominantes, mas a conseqüência lógica da sociedade industrial, na qual o fardo antigo acabou transformando-se no esforço de a ele escapar”, e aos seguintes questionamentos: Como o trabalhador deficiente poderá se adaptar a esses novos tempos? Quais as alternativas oferecidas pela sociedade contemporâneaa para o desenvolvimento do trabalhador deficiente? O trabalhador deficiente é capaz de demonstrar sua capacidade independente da deficiência? A inserção de trabalhadores deficientes no Serpro/RJ começou na década de 70, com a contratação de deficientes auditivos em 1973, por intermédio do Instituto Nacional de Educação de Surdos e, posteriormente, em 1976, com deficientes visuais egressos dos cursos de programação de computadores, ministrados pelo Instituto Benjamin Constant. No Serpro/RJ, em 1993, foi criado um programa nacional de estágio remunerado denominado ‘Treinamento e Qualificação Profissional de Pessoas Portadoras de Deficiência/TQPD’, com uma coordenação geral em Brasília e um responsável em cada regional. Desde 1994 o Serpro/RJ vem contratando trabalhadores deficientes, universitários ou não, como estagiários em diferentes áreas de atuação. Considerando que o Serviço Federal de Processamento de Dados, Empresa do Ministério da Fazenda, adota a política de integração de indivíduos com deficiência em seus quadros funcionais, inseridos em postos de trabalho de analistas de sistemas, programadores de computadores, por intermédio de concurso público, e estagiários em programação de computadores, administração de recursos humanos, serviço social, educação e direito, por intermédio de parcerias com Universidades e outras instituições de educação para deficientes, como Instituto de Educação de Surdos e Instituto Benjamin Constant, justifica-se a realização de Projetos de Extensão desde 2002, como oportunidade de estágio remunerado para aprendizagem em diferentes áreas dos alunos com deficiência dos 52 cursos de graduação da Universidade Federal Fluminense. Vale destacar que o referido Projeto tem por objetivo geral oportunizar experiências de trabalho aos alunos com deficiência visual, auditiva e física, matriculados nos cursos de graduação da Universidade Federal Fluminense, no Serpro/RJ, considerando o trabalho e a educação como componentes da formação desses alunos, e como objetivos específicos identificar os alunos com deficiência visual, auditiva e física matriculados nos cursos de graduação da Universidade Federal Fluminense; encaminhar os alunos com deficiência para estágio no Programa de Treinamento e Qualificação Profissional de Pessoas Portadoras de Deficiência do Serpro/RJ, e; acompanhar o desenvolvimento do estágio dos alunos com deficiência da UFF no Serpro/RJ. O Serpro-RJ, por intermédio do Programa de Treinamento e Qualificação Profissional de Pessoas Portadoras de Deficiência, representado por seu Coordenador Sr. Bernardo Lemos, disponibilizou uma bolsa de estágio destinada a uma aluna com deficiência física da UFF para atuar no Projeto, desde setembro de 2003, sob minha orientação e em parceria com o Serpro-RJ. Vale destacar que a bolsa em questão terá a duração de seis meses, podendo ser renovada pelo mesmo período de tempo, desde que com outro(a) bolsista aluno(a) da UFF. A partir de abril de 2004, o referido Projeto deverá contar com mais uma bolsista da Pró-Reitoria de Extensão da UFF, com duração de nove meses. 4. Educação inclusiva e o preconceito: uma questão a ser enfrentada Após a narrativa das experiências acima, e considerando a demanda atual por uma sociedade inclusiva, não é possível analisar a questão da deficiência desvinculada das condições sociais e históricas. A elaboração histórico-social da deficiência está associada a uma situação de desvantagem vivida pelos indivíduos deficientes, envolvida pelo medo antigo de serem destruídos, e atualmente configurada pelo medo da expulsão da coletividade, em decorrência da discriminação e do preconceito. Em referência ao preconceito voltado à pessoa com deficiência, apreende-se em Horkheimer & Adorno (1985) que se trata da naturalização de um fenômeno histórico e em Crochík (1997a, p.56) que: “(...) o preconceito é um fator que revela a dificuldade da individuação, por implicar em não reflexão e não experimentação em relação ao(s) objeto(s) de preconceito“. Em relação à deficiência, verifica-se que o preconceito, na maioria das vezes, é baseado em atitude comiserativa, resultante do desconhecimento, esse podendo ser considerado a matéria-prima para a perpetuação das atitudes preconceituosas e das leituras estereotipadas da deficiência – seja esse desconhecimento relativo ao fato em si, às emoções geradas ou às reações subseqüentes. Não se deve esquecer que em alguns períodos da história houve a pretensão de eliminar os deficientes e se essa pretensão não é mais evocada, deve-se a um movimento cultural atual contrário a isso e, apesar do preconceito persistir na sociedade, evita-se a discriminação, embora para Crochík (1997a, p.139): Um clima cultural geral contrário ao preconceito e a proibição de atitudes discriminatórias na Constituição certamente inibem o preconceito quanto ao seu exercício, mas não necessariamente quanto à sua formação. Os registros históricos comprovam que vem de longo tempo a resistência para a aceitação social das pessoas com deficiência, e demonstram como as suas vidas eram ameaçadas. Os dados históricos descritos por Misès (1977) revelam essa evidência. As pessoas deficientes eram vistas como capazes de corromper as partes sãs da sociedade, e a ignorância cultural prevalecente, gerava contra elas condutas atualmente consideradas criminosas. Na Grécia antiga, onde a perfeição do corpo era cultuada, os deficientes eram sacrificados ou escondidos, como relata Platão (2000, p.163) em sua obra “A República”, com as recomendações de Sócrates e Glauco, quanto aos filhos dos indivíduos de elite e dos indivíduos inferiores: “(...) que tenham alguma deformidade, serão levados a paradeiro desconhecido e secreto. (...) como um meio seguro de preservar a pureza da raça dos guerreiros”. Por outro lado, entre os romanos e gregos antigos havia divergências e ambivalências quanto à maneira de considerar os deficientes. Quando em algumas partes esses indivíduos podiam ser mortos, em outras eram submetidos a um processo de purificação, para livrá-los dos maus desígnos. Na Idade Média, os deficientes, os loucos, os criminosos e os considerados ‘possuídos pelo demônio’ faziam parte de uma mesma categoria: a dos excluídos. Deviam ser afastados do convívio social ou, mesmo, sacrificados. Entretanto, a Idade Média se estendeu por um longo período da história da humanidade, marcado por diversos sentimentos em relação aos deficientes: rejeição, piedade, proteção e, até mesmo, supervalorização. Esses sentimentos eram radicais, ambivalentes, marcados pela dúvida, ignorância, religiosidade e se caracterizavam por uma mistura de culpa, piedade e reparação. De modo geral, as atitudes sociais em relação às pessoas com deficiência se faziam acompanhar de providências, de ações e de cuidados. Em razão dos sentimentos e conhecimentos vigentes em cada época da História, essas pessoas eram tratadas de maneira aviltante, ou seja, eram abandonadas em locais de isolamento, prisões, ambientes de proteção, hospitais, sendo todas essas alternativas justificadas pela cultura e pelo momento histórico. A humanidade transmite seu legado às gerações posteriores, as convicções mudam, os conhecimentos se ampliam e passam a explicar de maneira diferente os diversos fenômenos sociais. Misès (1977) ao discutir acerca da concepção de deficiência, destaca que a História demonstra semelhante trajetória. Santo Agostinho atribuía à deficiência a culpa, a punição e a expiação dos pecados cometidos pelos antepassados. Tomás de Aquino, seis séculos mais tarde, propõe outra explicação para a deficiência, ou seja, como sendo uma espécie de demência natural e não absolutamente um pecado. Com o intuito, provavelmente, de se apoderar dos bens das pessoas com deficiência, essas eram protegidas em algumas culturas e épocas chegando mesmo, conforme registros em Brasil (1997, p. 17): (...) a gozar de certos privilégios. Um exemplo dessa natureza durante a Idade Média pôde ser visto na Inglaterra no século XIII, onde os deficientes eram protegidos por lei, tendo direito a um tutor e a um curador para cuidar de seus bens, chegando mesmo a gozar da tutela do próprio rei. A França, também, adotou essa prática por orientação do rei Felipe, o Belo. Todas essas formas de conceber e explicar a deficiência, ao longo do tempo, retratam como as diversas épocas e culturas apresentaram e, sem dúvida, apresentam dificuldades em compreender a diferença, a diversidade entre as pessoas e como lidar com elas. Dessa maneira, considerando-se o fato do desconhecimento acabar por gerar distorções acerca da deficiência e de quem é deficiente e, em conseqüência, o preconceito, urge a importância de seu enfrentamento, destacando Horkheimer & Adorno (1978, p.173-174) ao afirmarem: “A investigação sobre o preconceito tende a reconhecer a participação do momento psicológico nesse processo dinâmico em que operam a sociedade e o indivíduo”. E “(...) os ‘estímulos’ com que os agitadores atuam e, em particular, os decididamente totalitários para seduzir os homens”. E, mais: “(...) entre as suas opiniões políticas gerais e suas posições quanto às minorias étnicas, sociais e religiosas, por uma parte, e sua caracterologia psicológica como pessoas, por outra parte”. Em relação à pessoa com deficiência, os preconceitos podem ser percebidos com segurança, principalmente face às práticas de discriminação tão freqüentes em nossa sociedade, como a restrição de acesso à escola e ao mundo do trabalho, dentre outras, reforçando que: “(...) o Brasil tem em sua Constituição a proibição da discriminação, mas nem por isso ela deixa de existir em freqüentes ocasiões”, como destaca Crochík (1997a, p.139). Segundo Horkheimer & Adorno (1978, p.180) para os preconceituosos “A dicotomia da humanidade se dá em salvadores e condenados”. Posso acrescentar, também, entre deficientes e normais. Os referidos autores destacam que “A formação de juízos estereotipados não é privilégio do caráter preconceituoso, mas, com freqüência, revela-se também nos caracteres livres de preconceitos (...)“. E, mais, “(...) para enfrentar quaisquer exigências que surgem em qualquer setor da vida, é preciso que, em certa medida, os próprios indivíduos se mecanizem e padronizem” (p. 181). Isso parece ocorrer com os indivíduos com deficiência, ou seja, a deficiência é encarada como algo mecanizador e padronizador. É importante enfatizar a distinção entre os processos de mecanização e padronização impostos à pessoa com deficiência e não deficiente, ou seja, o que leva o indivíduo a se mecanizar e padronizar e o que se instala no indivíduo obrigado a isso. Portanto, “(...) só seriam homens verdadeiramente livres aqueles que oferecem uma resistência antecipada aos processos e influências que predispõem ao preconceito. Mas, semelhante resistência exige tanta energia que obriga a explicar a ausência de preconceitos antes da presença destes” (p. 181-182). Essa parece ser a necessidade emergente em relação à deficiência. Por outro lado, é preciso atentar para o fato de “(...) quem conhece as motivações ocultas do preconceito resistirá a ser um joguete nas mãos dos que, para libertarem-se do peso que os oprime, voltam-se contra os que são mais débeis do que eles”. (p. 182) Segundo Horkheimer & Adorno (1978, p.182): A luta eficaz contra os movimentos totalitários não é possível, certamente, sem os conhecimentos das suas causas, sobretudo se quisermos que essa luta atinja as raízes do totalitarismo, as condições que lhe são propícias na sociedade. Uma concepção acertada e capaz de ser, ao mesmo tempo, interpretada de forma racional das estruturas essenciais em jogo, que é missão da ciência formular, não bastará por si só para fazer o necessário, mas constitui, sem dúvida, uma contribuição insubstituível à resolução do problema. Ao fazer referência ao enfrentamento do problema acerca do preconceito em relação à deficiência, o pensamento de Amaral (1995, p.120) quanto a essa questão se destaca: Pode estar lastreado na aversão ao diferente, ao mutilado, ao deficiente – os estereótipos daí advindos serão: o deficiente é mau, é vilão, é asqueroso (...) Ou o preconceito pode ser baseado em atitude de caráter comiserativo, de pena, de piedade: o deficiente é vítima, é sofredor, é prisioneiro (...) e assim por diante. Tomando-se por base a obra “Dialética do Esclarecimento” de Horkheimer & Adorno (1985), apreende-se o significado da categoria de sujeitos ofuscados. Esse significado, sem dúvida, empobrece a condição de indivíduo e, mais, perde-se o compromisso inerente à razão plena e esquecida pela razão esclarecida: o da razão consigo própria, mediante a reflexão no sujeito. Para um sujeito pleno de razão, também plena, não limitado a projetar luzes, não deveria haver um corte entre sua diferença e sua semelhança relativamente ao objeto. Pois, é na conjugação de ambas, sem reduzir uma à outra, que consistiria a sua própria atividade como sujeito. Nesse sentido, a atividade do sujeito estaria voltada mais para o aproximar-se e o assemelhar-se do que para o afastar-se e o distinguir-se: seria, pois, mais da ordem da mimese do que da dominação. Essa plenitude do sujeito e da razão é uma possibilidade inerente à própria configuração humana nas suas relações variáveis com a natureza, ou seja, à sua própria antropologia. Mas, o acontecido em relação ao deficiente não é diferente. Para o sujeito deficiente a sociedade lhe atribui um empobrecimento generalizado, um impedimento ao esclarecimento que tende a reduzi-lo a uma alteridade, ao outro opaco, pois, no limite, na conduta preconceituosa, não há sujeitos verdadeiros, porque não há reflexão a permitir ao sujeito, segundo Horkheimer & Adorno (1985, p.176), “(...) devolver ao objeto aquilo que dele recebeu”. Ao refletir sobre a condição de ser deficiente, os atributos do sujeito como discernimento, escolha e decisão parecem estar fora de foco. Pois, se o sujeito é deficiente, torna-se reduzido a essa deficiência, isso é, impedido, segundo a percepção gélida da sociedade burguesa, de tornar-se e de exercer seu papel de indivíduo, tornando-se um sujeito ofuscado. Porém, essa ofuscação não é a resultante da deficiência e, sim, da gelidez do olhar atento do preconceituoso, fixo em um só ponto, no caso, a deficiência. Não se trata, em relação ao deficiente, de universalizar a semelhança, mas de aproximar-se criticamente do diferente. E isso é, radicalmente, vedado ao comportamento preconceituoso. Essa radical incapacidade sinaliza o limite da razão esclarecida, o ponto no qual ela ou se supera na figura de uma razão mais diferenciada ou então volta, obstinadamente, ao seu princípio fundante - o da autoconservação. Mas, isso implica reiterar, sob outras formas e em escala diferente, aquilo de que o preconceito é a expressão mais pungente. Essa incapacidade pode ser entendida em Adorno (1995, p.224): “Quem imaginar que, [como] produto dessa sociedade, está livre da gelidez burguesa, nutre ilusões sobre o mundo bem como sobre si mesmo; sem essa gelidez, ninguém mais poderia viver. A capacidade de identificação (...) é escassa em todas as pessoas, sem exceção. A temática deficiência apresenta-se configurada na grande categoria da diferença, isso é, da diferença significativa – representando segundo Amaral (1997, p.37) “(...) o afastamento de um tipo ideal de ser humano”. Com base nessa constatação, é possível refletir o quanto de preconceito está embutido na percepção dessa diferença, e isso remete a Horkheimer & Adorno (1985, p.188), quando dizem: Se, no interior da própria lógica, o conceito cai sobre o particular como algo de puramente exterior, com muito mais razão, na sociedade, tudo que representa a diferença tem que tremer. As etiquetas são coladas: ou se é amigo, ou inimigo. Dito de outra maneira: Ou se é normal ou deficiente, levando à discriminação. Porém, é importante destacar: a diferença não deveria ser objeto de preconceito, quando para Crochík (1997b, p.13): (...) é preciso dizer que a diferença não é necessariamente fruto do preconceito, pois, quando ela é reconhecida como essência da humanidade, e não como exceção da regra, permite a própria elaboração do conceito. Para Horkheimer & Adorno (1985, p.188) “A falta de consideração pelo sujeito torna as coisas fáceis para a administração (...)” e na sociedade burguesa a diferença acaba por se transformar em desigualdade, levando o diferente a ser objeto do preconceito resultante, sobretudo, pela ausência “(...) da experiência e da reflexão para que o indivíduo possa prescindir de preconceitos para viver”, como destacado por Crochík (1997a, p.140-141). Nisso encontra-se o segredo do embrutecimento favorecendo o preconceito e, nas reflexões dos referidos autores, é possível apreender como o preconceito pode ser refletido na especificidade como se volta para os seus diversos alvos. Os estereótipos são distintos e elaborados socialmente em relação ao objeto do preconceito. O estereótipo, como parte do preconceito, dirigido aos judeus, não é o mesmo direcionado aos deficientes, mas talvez seja possível pensar, baseando-se nessa diferença, o que é comum nos diversos tipos de preconceito e como ele se relaciona e é gerado pela sociedade burguesa. Dessa maneira, Horkheimer & Adorno (1985, p.157-194) não deixam de dizer no ensaio “Elementos do anti-semitismo: limites do esclarecimento” que: “(...) a violência, presente no preconceito, sempre se volta para aqueles considerados mais frágeis”. Essa afirmação permite refletir como uma sociedade baseada na força, física e/ou espiritual, na competência e na dominação se volta contra aqueles despojados do requerido pela sociedade burguesa, sociedade determinada pela lógica do mercado, configurando-se como uma instância incompatível com a participação dos considerados menos competentes. Pode-se verificar que o mesmo ocorre em relação às pessoas com deficiência, como tuteladas, dependentes das instituições especializadas e do Estado, transformando-se em objeto do preconceito e do escárnio social, confirmando a ausência de reflexão sobre as características do comportamento preconceituoso por parte da sociedade burguesa reproduzido historicamente e configurada como a barbárie, essa produzida pela civilização, definida por Adorno (1995, p.117) como sendo “(...) o preconceito delirante, a opressão, o genocídio e a tortura (...)”. Diante disso, a educação inclusiva brasileira emerge em atendimento a uma demanda humana e social. Torná-la uma realidade é um desafio para nós educadores, e os caminhos para a escola inclusiva, ou seja, a escola democrática, devem ser os caminhos a serem trilhados por nós. Concluindo, penso com esperança racional que as experiências no cotidiano escolar com a diferença, marcada pela deficiência, poderão contribuir com a democratização da sociedade e com a humanização dos indivíduos. Os desafios formadores do fazer pedagógico voltado para a demanda humana dos alunos com deficiência estão postos a todos nós, professores e demais profissionais da educação no Brasil e nos demais países do mundo.Referências bibliográficas Theodor W. 1995. Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra. AINSCOW, Mel. 1997. Educação para todos: Torná-la uma realidade. In: Caminhos para as escolas inclusivas. Lisboa, Instituto de Inovação Educacional, pp.11-28. AMARAL, Lígia A. 1997. Histórias da exclusão – e de inclusão? – na escola pública. Educação especial em debate. 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Sobre a tolerância e a diferença: contribuições epistemológicas para o trabalho com pessoas que necessitam de atenções especiaisValdo Barcelos Débora Ortiz de LeãoEste ensaio tem como principal objetivo colaborar com subsídios teórico- epistemológicos no sentido da construção de práticas pedagógicas para o trabalho em educação de forma geral e, em particular, refletir sobre alternativas de intervenção pedagógica junto a pessoas que necessitam de atenções especiais. Nossos olhares serão orientados na busca de algumas alternativas que nós poderemos dar para, através do fazer pedagógico, contribuir com o aumento da tolerância entre homens e mulheres nos tempos de pós- modernidade em que vivemos. Tentaremos responder à seguinte pergunta: Qual a contribuição que nós, educadores e educadoras, podemos dar, através do fazer pedagógico/educativo, para que o exercício da tolerância passe a ser uma prática cotidiana e permanente nos tempos de pós-modernidade em que vivemos? Palavras-Chave: tolerância, diferença, Educação Especial Introdução As viagens, os viajantes – tantas espécies deles! Tanta nacionalidade sobre o mundo! Tanta (Profissão! tanta gente! Tanto destino diverso que se pode dar à vida, À vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma! Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas E nada traz tanta religiosidade como olhar (muito para gente. A fraternidade afinal não é uma idéia revolucionária. É coisa que a gente aprende pela vida afora, (onde tem que tolerar tudo, E passa a achar graça ao que tem que tolerar, E acaba quase a chorar de ternura sobre o que (tolerou! (Fernando Pessoa. “Ode Marítima”- p. 67) Este ensaio tem como principal objetivo contribuir com subsídios teórico- epistemológicos no sentido da construção de práticas pedagógicas para o trabalho em educação de forma geral e, em particular, refletir sobre alternativas de intervenção pedagógica junto a pessoas que necessitam de atenções especiais1. Nossos olhares serão orientados no sentido de visualizarmos algumas alternativas para que, através do fazer pedagógico, possamos contribuir com o aumento da tolerância2 entre homens e mulheres nos tempos de pós-modernidade em que vivemos. Vivemos em um mundo onde cada vez mais as pessoas podem ser cosmopolitas. É importante observar que estamos dizendo que as pessoas podem ser cosmopolitas. O cosmopolitismo, assim como outras opções da sociedade, é uma conquista humana. As migrações sempre existiram sendo, inclusive, um fenômeno indissociável da história da humanidade. As pessoas sempre se deslocaram de suas aldeias, povos, cidades nações. A grande diferença entre as migrações da antigüidade e as contemporâneas é que, enquanto essas são, na grande maioria das vezes, voluntárias, aquelas aconteciam de forma compulsória. As migrações, antigamente, davam-se majoritariamente por expulsão após as guerras, perseguições religiosas ou como fuga de regimes de escravidão. Essas migrações foram responsáveis, também, pela migração de costumes, hábitos, religiões, crenças, saberes e conhecimentos. Enfim, migram as gentes e migram, também, com elas, as suas culturas. Appian (1999), ao analisar o ritmo crescente do cosmopolitismo no mundo contemporâneo, ensina que, assim como viajaram as pessoas, as práticas culturais com elas sempre viajaram. Segundo esse mesmo autor, não há razões para ter medo das migrações voluntárias que levam ao cosmopolitismo. O que se deve combater são as migrações impostas por razões política, étnicas, religiosas e, até mesmo, econômicas. Assim como no amor aquilo que não for coercitivo deve ser celebrado, as migrações desejadas, feitas por vontade própria podem ser uma possibilidade a mais de construção da felicidade. Portanto, as migrações, quando voluntárias, não só devem ser respeitadas como constituem um importante processo através do qual as culturas se comunicam e se enriquecem na diversidade. O poeta e ensaísta mexicano Octávio Paz (1994), ao falar do devir humano, coloca a leitura e as viagens como componentes indissociáveis da instituição dos seres humanos como construções imaginárias sociais. Para ele, “O desejo de viajar é natural nos seres humanos; não é inteiramente humano aquele que não o sentiu pelo menos alguma vez” (p.15). Isso faz parte do desejo humano de aventura, de desafiar o desconhecido, de construir/realizar fantasias. Está em nós mesmos. Faz morada em nossa imaginação, que é filha do desejo que, por sua vez, nasce e/ou se alimenta da distância. Vemos, aqui, novamente, uma importante aproximação entre o desejo de viajar e o amor. Esse último intermediado por aquilo que chamamos saudade, sentimento híbrido que persegue as pessoas quando estão separadas pela distância física. Falamos até aqui de amor, distância, saudade, diferença, viagem, tolerância...São palavras, sentimentos e ações aparentemente pertencentes a territórios existenciais diversos mas que, com muito freqüência, são responsáveis por des/encontros, con/vivências, des/amores, in/tolerância, des/respeito, in/felicidades. Enfim, vida/morte/morte/vida...No entanto, neste ensaio, escolhemos refletir sobre a importância/necessidade/atualidade da tolerância para a construção de um mundo social e ecologicamente mais justo, em que a diferença seja festejada e a tolerância uma exigência. Como procuramos demonstrar, nesta breve introdução, a exigência da tolerância não é, certamente, algo novo entre nós. Não é alguma coisa que se tenha mostrado necessária apenas a partir do momento da planetarização das relações que atualmente vive a sociedade mundial. A tolerância, ou a falta dela, está na origem mesma da sociedade humana e dos grandes conflitos que a acompanham. A necessidade de tolerância se acentua à medida em que a sociedade se torna mais complexa. Cada vez mais radicais e evidentes se mostram as interdependências entre os componentes deste sistema mundial pós-moderno. Paralelamente a essa situação de interdependência, aumenta a fragilidade do sistema mundial. Assistimos à falência da capacidade reguladora fundada nos ideais de democracia moderna, que tinham sua abrangência delimitada ao local e ao nacional. Estavam restritas aos limites políticos, econômicos e de direito dos Estados-Nações Modernos. Este cenário de fragilidade/instabilidade reguladora e a falta de instâncias democráticas para o estabelecimento de diálogo entre homens e mulheres contemporâneos é atribuído por Pierre Calame (2001) ao acelerado processo de fragmentação da sociedade em diversos territórios independentes, bem como decorre da atribuição do papel regulador para os órgãos burocráticos de gestão e para serviços administrativos que não mais conseguem fazerem-se representantes legítimos das partes e de seus interesses na sociedade contemporânea. Tais organismos já não bastam para representar as diversidades de subjetividades, desejos e interesses em jogo, muito menos conseguem criar mecanismos de convivências que consigam viabilizar a autonomia das pessoas e das comunidades sem descuidar do fato de que vivemos em um mundo de interdependências sociais, políticas, econômicas, culturais e ecológicas. É a partir de um cenário com esta configuração caleidoscópica que nós, educadores e educadoras, teremos que nos posicionar/agir. Um desafio de tamanha magnitude exigirá muito mais que uma postura profissional tecnicamente competente. Exigirá uma postura de cidadãos e cidadãs de um mundo que clama cada vez mais pela aceitação e defesa das diferenças étnicas, religiosas, políticas, ideológicas, ecológicas, ou seja, pela tolerância em relação ao outro/a. Acreditamos que essa aceitação tem muita relação com a idéia aristotélica de que tolerar e ser tolerado caminha lado a lado com o ato de governar e ser governado, sendo portanto, uma tarefa que só poderá ser praticada por cidadãos e cidadãs democráticos(as) e tolerantes. Tentaremos responder, a partir de agora, à seguinte questão: Qual a contribuição que nós, educadores e educadoras, podemos dar, através do fazer pedagógico/educativo, para que o exercício da tolerância passe a ser uma prática cotidiana e permanente nos tempos de pós-modernidade em que vivemos? 1- Diferença/diversidade e des/igualdade: aprendendo a conviver com o/a outro/a “A tolerância torna a diferença possível: a diferença torna a tolerância necessária” (Walzer, 1999, p.XI) Tentar compreender os motivos pelos quais as pessoas ainda sentem dificuldades em conviver com as diferenças, numa época em que tanto se discursa sobre cooperação, globalização, democracia, pode se constituir em um primeiro passo em direção a uma possível mudança no imaginário social que, na maioria das vezes, acaba por limitar ainda mais as condições de vida de quem foge ao padrão da normalidade imposto por uma história de discriminações e de dominação. Quando se trata de pessoas comuns, as diferenças passam, na maioria das vezes, desapercebidas, principalmente, quando as características físicas e/ou psicológicas não são tão evidentes. Porém, em se tratando de pessoas que necessitam de atenções especiais, uma diferença faz toda a (in)diferença. Quando se vive em um mundo onde a maioria é par e onde a grande maioria das pessoas estão acostumadas a se olhar e se reconhecer através de características pares (dois olhos, dois ouvidos, dois braços, duas pernas...) ser ímpar, não raro, é o que nos faz diferentes. Porém, nós também podemos ser pares, ou ímpares, alternadamente, como uma brincadeira de criança, desde que participemos do jogo da vida. As questões da igualdade e da diferença têm sido discutidas por vários autores, entre eles, Boaventura Souza Santos que nos traz muitas contribuições para refletirmos sobre o multiculturalismo tão presente na sociedade em que vivemos. Neste contexto, encontramos uma expressão que complementa nosso pensamento: “temos o direito a ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza”. (Santos apud Oliveira, 2002, p.53) Conviver com o diferente, sem descaracterizá-lo de suas escolhas ou de suas histórias de vida, numa sociedade de orientação capitalística3 como a nossa, ainda está muito longe de ser um processo tranqüilo, algo comum, realizado naturalmente. A diferença pode ser sinônimo de diversidade, mas jamais de desigualdade no sentido em que aqui nos referimos. O problema começa quando nos deparamos com situações em que as diferenças se tornam mais evidentes aos olhos/ouvidos/corações/mentes dos que querem vê-la/ouvi- la/senti-la como tal ou, o que é ainda pior, negando-se a reconhecê-la. Neste momento, entram em cena as diversas formas de isolamento, os silenciamentos e, por fim, a exclusão. Nós, educadores e educadoras de um mundo que se planetarizou, estamos frente a um grande desafio: transformar o processo educativo em um território no qual o conhecimento não seja pensado para dominar o/a outro/a mas, sim, para criar espaços de solidariedade. Entendemos que seria um grande avanço, para o fazer pedagógico, se conseguíssemos fazer algo semelhante ao que sugere Maturana (1995) quando alerta para a necessidade de que, para vivermos em sociedade há que recuperar a confiança das crianças nos adultos. Para ele, essa seria, na verdade, a grande – senão a maior – demonstração de inteligência que poderíamos dar. Contudo, isto só seria possível através de uma inteligência orientada pelo amor e pela solidariedade. Esta seria uma boa pista para nós, educadores e educadoras, começarmos a pensar um conhecimento que reconheça o/a outro/a na sua diferença. Boaventura Santos (2000) denomina este conhecimento, que reconhece, de solidariedade. Para esse autor, estamos tão habituados a conceber o conhecimento como um princípio de ordem sobre as coisas e sobre os outros que é difícil imaginar uma forma de conhecimento que funcione como princípio de solidariedade. No entanto tal dificuldade é um desafio que deve ser enfrentado. Sabemos nós hoje o que aconteceu às alternativas propostas pela teoria crítica moderna não nos podemos contentar com um pensamento de alternativa. Necessitamos de um pensamento alternativo de alternativas.(Santos, 2000,p.30). A prática da solidariedade está vinculada, entre outros fatores, ao reconhecimento, à aceitação e à defesa do direito do outro ao exercício de seus desejos e vontades. Enfim, o direito à diferença. A construção de espaços de solidariedade está diretamente ligada à idéia de diversidade cultural que, por sua vez, é inseparável do exercício da tolerância. Assim, a construção de um conhecimento que reconheça e não discrimine o/a diferente enfrentaria duas outras grandes dificuldades, que, para Boaventura Santos, seriam o silêncio e a diferença. O silêncio a que se refere Boaventura Santos está diretamente relacionado/condicionado ao processo moderno de hegemonia do conhecimento-regulação, que foi exercido como principal forma de dominação e, até mesmo, de aniquilação cultural de diversos povos, etnias e culturas durante o processo de colonialismo ocidental. Essa forma de relação de dominação colonialista levou à produção de silêncios que tornaram impronunciáveis subjetividades e diversidades culturais de vários grupos sociais e, até mesmo, de povos inteiros, aniquilando, com isto, seus saberes e conhecimentos. Segundo Boaventura Santos, “não nos esqueçamos que sob a capa dos valores universais autorizados pela razão foi de fato imposta a razão de uma ‘raça’ de um sexo e de uma classe social.” (Santos,2000, p.30). A questão que se coloca ao processo educativo, neste momento de transição paradigmática em que vivemos, é: como estabelecer espaços de convivência entre os/as diferentes quando muitas destas diferenças já foram anuladas/silenciadas ou, até mesmo, eliminadas? A segunda dificuldade enfrentada pelo conhecimento-emancipação, a diferença, é decisiva para a prática da solidariedade, pois esse sentimento só se torna possível na diferença, no diálogo com o outro e não na dominação e/ou anulação desse ou de suas diferenças. A viabilização deste diálogo, desta relação de solidariedade passa, necessariamente, segundo Santos, pela sua aceitação e institucionalização, pois todo conhecimento é sempre dependente das condições que o tornaram possível, ou seja, o conhecimento é uma produção contextualizada. Ao mesmo tempo em que todo conhecimento é uma produção que tem vínculos com a cultura na qual está imerso e foi elaborado, torna-se necessário aquilo que Boaventura Santos (2000) denomina de uma “teoria da tradução”. Essa teoria da tradução constitui-se em um componente decisivo, fundamental para a construção de teoria crítica que aqui vamos denominar de pós-moderna4, sem a qual o diálogo entre essas formas diferentes de conhecimento ficaria inviabilizado. É essa teoria da tradução que, de acordo com Santos (2000,p.30), tornaria uma “necessidade, uma aspiração, uma prática numa dada cultura compreensível e inteligível para outra cultura”. É a partir dessa constatação que se depreende a necessidade de construção de um processo educativo em que o conhecimento produzido, além de prudente, mantenha-se em permanente reflexão sobre a escala tanto de suas ações quanto de suas conseqüências para os destinos da vida em sociedade. Com uma orientação desse tipo, a educação teria como sua principal tarefa a construção de pessoas que vissem qualquer outra pessoa como alguém que deve ser respeitado em suas diferenças e individualidades. Para tanto, a tolerância para com esse/a outro/a constitui-se condição necessária. Estaríamos também, desta forma, fugindo da armadilha, ou da imprudência, de não reconhecer que existem muitas formas explícitas ou implícitas de preconceito geradores de exclusão. Negros, índios, mulheres, analfabetos, pessoas portadoras de atenções especiais, (na maioria das vezes essas categorias associadas) formam essa sociedade multicultural, na qual não deveria haver uma hierarquia dominante. Deveria, sim, haver um profundo cuidado por tudo o que diz respeito ao outro/a, como legítimo/a outro/a na convivência com os/as demais, como nos ensina Maturana (2002). 2- Tolerância e Educação: uma conversa necessária “Uma criança que cresce no respeito por si mesma pode aprender qualquer coisa e adquirir qualquer habilidade se o desejar” (Maturana, 2002, p.12). Uma das provas – para quem ainda precisa delas – de que a tolerância é algo necessário, está, segundo Walzer (1999), no fato de as pessoas sentirem-se tão fortemente inclinadas a lhe dar valor. É muito difícil justificar a não valorização ou o sentido humanitário da tolerância . Negá-la é como ter de assumir, publicamente, que defendemos a violência, a discriminação, o egoísmo. Enfim, é aceitar a negação do outro/a como algo normal. Tão normal quanto o era a “convivência pacífica” entre escravos e senhores. Como na poesia pessoana - nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente/A fraternidade afinal não é uma idéia revolucionária/ É coisa que a gente aprende pela vida afora, onde tem que tolerar tudo/ E passa a achar graça ao que tem que tolerar, e acaba quase a chorar de ternura/Sobre o que tolerou! – a educação, como uma construção cotidiana e permanente, não é um ato revolucionário. É um processo que se dá no dia a dia da relação entre as pessoas. Exige de nós, educadores e educadoras, uma ação respeitosa e cuidadosa com o/a outro/a. Pensar o processo educativo e suas relações pedagógicas é pensar/agir com tolerância em relação aos educandos e às educandas. Um pensar/agir muito próximo àquilo que Freire (1997, p.39) chama de “pensar certo” em que não pode haver espaço para qualquer forma de discriminação. O exercício da tolerância, de uma forma geral, não é, certamente, algo fácil de praticar. Em algumas situações, torna-se mais difícil ainda fazê-lo. Vamos refletir sobre o espaço da escola e como nele a tolerância enfrenta dificuldades que vão da própria organização político- pedagógica até a ação particular de cada educador/a. Poderíamos começar pelo fato de que as crianças não têm escolha quanto ao fato de freqüentar ou não a escola. A partir da modernidade, a educação escolar passou a ser um dever das famílias e do Estado Moderno5, principalmente desse último. É na modernidade que a criança passa a ser apresentada ao mundo através da escola. Essa instituição passa, desde então, a desempenhar um papel fundamental na construção das identidades e subjetividades das crianças e/ou dos(as) educandos(as). Além dessa tarefa, cabe a ela estimular/promover o desenvolvimento de habilidades e capacidades o que, do ponto de vista da educação, colabora para a construção da singularidade de cada pessoa. É a partir dessa singularidade que se pode dizer que cada ser humano é diferente do outro, bem como cada criança é um viajante que chega sempre pela primeira vez neste mundo. Nas palavras de Arendt (1997, p.139) “Alguém que não é apenas um forasteiro no mundo, mas alguma coisa que jamais esteve aí antes”. No entanto, é importante não esquecer que o processo educativo não tem como – nem deve ser seu objetivo – pensar a escola como uma representação total do mundo a ser enfrentado pela criança e/ou pelos(as) educandos(as) em geral. Sobre essa questão é importante o alerta feito por Arendt (1997, p.238) quando chama atenção de que, por mais importante e bem organizada que seja a escola e por melhor preparados(as) intelectual e profissionalmente que estejam os(as) educadores(as) ela, Não é de modo algum o mundo e não deve fingir sê-lo; ela é, em vez disso, a instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer com que seja possível a transição, de alguma forma, da família para o mundo. Um dos paradoxos a ser enfrentado pelo processo educativo moderno, segundo Walzer (1999), está no fato de constituir-se de um dever dos governos dos Estados ensinar para as crianças, sem discriminá-las quanto ao grupo social ou étnico, os seus valores, regras, padrões morais e filosóficos. Enfim, o valor de seus próprios arranjos constitucionais e as virtudes de seus fundadores/governantes/heróis e líderes. Uma pergunta inevitável que se faz é: Este ensino, que tem a participação/orientação do Estado, não irá interferir autoritariamente nas diferentes identidades culturais dos grupos ao qual pertencem estas crianças? Para Walzer (1999) a resposta para essa pergunta só pode ser uma: Vai, muito provavelmente, interferir. É justamente em função desta possibilidade de interferência que se torna fundamental, no espaço escolar, o exercício intransigente da tolerância com o/a outro/a na sua diversidade religiosa, étnica, política e, principalmente, nas necessidades particulares das pessoas como seres no mundo. Estamos nos referindo nesse último caso, aos cuidados educativos para com as pessoas que necessitam de atenções especiais. 3- (Re)aprendendo a escutar/ouvir/sentir... (...)“a educação se dá na biologia do amor, os valores, a espiritualidade, a justiça, etc., não precisam ser ensinados de maneira especial, pois são vividos a partir dali.” (Maturana, 2002, p.19). Acreditamos que a idéia acima apresentada por Maturana vem referendar nossa crença na pertinência e importância do exercício da tolerância no trabalho em educação em geral e, em particular, com pessoas que necessitam de atenções especiais. Assim como o amor, a justiça, a espiritualidade são valores e, como tal, não precisam ser ensinados, mas sim, vividos6, a tolerância, também, como um valor a ser construído, não carece de uma formulação especial para ser trabalhada em educação e muito menos em se tratando do trabalho educativo com pessoas portadoras de necessidades especiais. Neste ensaio, tratamos da discriminação, da indiferença e da intolerância. Referimo-nos, em sentido amplo, aos silenciamentos produzidos/impostos pelos grupos hegemônicos através de suas respectivas linguagens oficiais e padronizadoras. São padronizadoras na medida em que não deixam espaços para outras vozes que não aquelas da cultura dominante. Temos que entender que, por trás da voz que fala, existe um universo de linguagens possíveis, desde que para tanto não as desconsideremos e que estejamos dispostos a ouvi-las. Vai longe o tempo em que acreditávamos que nossa capacidade de pensar/sentir era algo determinado/controlado apenas pela razão. O pensador espanhol Miguel de Unamuno (1964, p.296) já alertava para os limites desta visão reducionista dizendo que há pessoas, com efeito, que parecem não pensar mais que com o cérebro, ou com qualquer outro órgão que não seja específico para pensar, ainda que outros pensem com todo o corpo e com toda a alma, com a medula dos ossos, com o coração, com os pulmões, com o ventre, com a vida. As palavras de Unamuno, embora proferidas na metade do século passado, parecem- nos manter ainda uma grande pertinência e sabedoria. Desafia-nos a alargar nossos horizontes pedagógicos. Desafia-nos no sentido de ouvir a voz que fala assim como as outras vozes/silêncios que, por trás desta voz/silêncio, também falam. Convida-nos convida a fazer um exercício poético em educação, algo que busque identificar as múltiplas vozes que cada voz contém, reconhecendo, assim, as múltiplas linguagens/vozes de que cada pessoa é portadora. Alguma coisa semelhante ao que sugere Cabrera Infante (2000, p.475) ao dizer que por trás de uma voz sempre existem outros que também falam. Ilustra essa afirmação perguntando: De quem é a voz que fala? Ou A voz por trás da voz? Quem escreve? Quem fala em um poema? Quem narra em uma novela? Quem é este eu das autobiografias? Quem conta um conto? Quem são os que conversam nesta peça imaginada de apenas três paredes? Quem é este ventríloco oculto que fala neste momento pela minha boca? Essas vozes invisíveis, porque silenciadas, poderão deixar de sê-lo desde que nos disponhamos a ouvi-las/senti-las/valorizá-las. Defendemos que a escola é um dos territórios privilegiados para que essa escuta aconteça. Atualmente há consenso entre os(as) educadores(as) quanto a que esforços devem ser empreendidos no sentido de promover/incentivar a inclusão e a convivência, sem esconder nem ressaltar as diferenças, mas sim, acolhê-las como parte instituinte e instituidora de cada uma das pessoas. Este é um pressuposto básico para a promoção da inclusão, tarefa da qual a escola não pode tergiversar. De outra forma, é justamente a existência das diferenças que, como ensina Arendt (1997), permitem-nos dizer que cada ser humano é diferente do outro, é único em sua diversidade. Isto exigirá, também, uma postura/ação por parte da escola, que respeite essa característica. Uma educação que reconheça essa necessidade estaria contemplando a boniteza como uma das exigências propostas por Paulo Freire quanto à prática educativa. Boniteza essa que só poderá acontecer no respeito pleno à diferença, na humildade, na solidariedade e no respeito às diversidades de toda ordem. Enfim, na aceitação do outro como legítimo em seu ser/estar no mundo, desde que esse outro(a) tenha como orientação a paz, a justiça, a cooperação, o cuidado de si e para com todos os(as) outros(as). Referências Bibliográficas APPIAN. K. A. Cultura, comunidade e cidadania. In: SANTOS. T. (Org.) A crise dos paradigmas em ciências sociais e os desafios para o século XXI. Rio de Janeiro. Contraponto, 1999. ARENDT. H. A Condição Humana. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 1997. CABRERA INFANTE, G. Infantería – Obras Completas. México. Fondo de Cultura Económica, 1999. CALAME, P. Missão Possível – Pensar o futuro do planeta. Itajaí. Ed. UNIVALI, 2001. FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1997. GUATTARI, F. As três Ecologias. São Paulo. Papirus, 1991. HOLANDA, H. Pós-modernismo e política. RJ. Rocco, 1991. MATURANA, H; REZEPKA .S. N. Formação Humana e Capacitação. Rio de Janeiro. Vozes, 2002. ___________. A Árvore do conhecimento. Campinas. WORKSHOPSY, 1995. OLIVEIRA, Inês Barbosa de e SGARBI, Paulo (orgs.) Redes Culturais, diversidades e educação. Rio de Janeiro: DP&A,2002. PAZ, O . Obras Completas V. II. México. Fondo de Cultura Econômica, 1994. 13v. REIGOTA, M. Ecologia, elites e intelligentsia na América Latina: um estudo de suas representações sociais. São Paulo. Annablume, 1999. REIGOTA, M.. São Paulo. Perspectiva, 1997. SANTOS, B. S. A crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência, v. 1. São Paulo. Cortez, 2000. UNAMUNO. M. Antologia. México. Fondo de Cultura Económica, 1964. WALZER, Michael. Da Tolerância. trad. Almiro Pisetta. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Notas 1 Neste texto, optamos pela expressão “pessoas que necessitam de atenções especiais” em substituição a “pessoas portadoras de necessidades educativas especiais”, pois, no contexto desse artigo, nos parece mais adequada. 2 Tolerância será tomada no sentido dado por Walzer (1999). Para esse autor, a tolerância é condição necessária, indispensável, para a coexistência pacífica de grupos de pessoas com histórias, culturas, e identidades diferentes, que é o que a tolerância possibilita. 3 A expressão “Capitalística”, por nós aqui usada, é no sentido em que o usa Guattari (1991), quando diz não ter havido diferença significante quanto à forma como o mundo capitalista e/ou comunista relacionaram-se com os diferentes. 4 A idéia de pós-modernidade por nós referida está em acordo com Holanda (1991) quando essa autora afirma ser esta uma contraprática não só da cultura oficial do modernismo, mas também da “falsa normatividade de um pós- modernismo reacionário. Referenciamo-nos, também. em Boaventura Santos (2000) quando esse argumenta que vivemos um momento de pós-modernidade inquietante e de resistência aos valores da modernidade conservadora. Também nos apoiamos em Reigota (1999) quando esse afirma que, via de regra, o termo pós-moderno foi/é rápida e apressadamente associado às elites conservadoras e ao ideário neo-liberal. Contudo, para esse autor, e com o que concordamos, essa resistência é fruto de uma série de equívocos, entre os quais o mais comum é a associação pura e simples da pós-modernidade à passagem do modelo industrial ao pós-industrial.. 5 Vale lembrar que um dos pressupostos em que está assentada a idéia de Modernidade e do Estado Moderno é o direito à educação pública para todas as pessoas. 6 Para Maturana (2002) não devemos ensinar valores para as crianças. É preciso vivê-los a partir da biologia do amor. Não devemos ensinar cooperação, é preciso vivê-la desde o respeito por si mesmo, que surge no conviver no respeito mútuo. Cadernos :: edição: 2003 - N° 22 > Índice > Resumo > Artigo