A CASA DOS BRAGAS RUBEM BRAGA Obras do autor Ai de ti, Copacabana Aventuras As boas coisas da vida A borboleta amarela Um cartão de Paris Carta a el Rey Dom Manuel O conde e o passarinho Crônicas da guerra na Itália Duzentas crónicas escolhidas O homem rouco Livro de versos Pequena antologia do Braga Recado de primavera A traição das elegantes Um pé de milho O verão e as mulheres Braga, Rubem, 1913-1990 B795c CasadosBraga:memória deinfância/ Rubem Braga. 5' ed. - 5' ed. - Rio de Janeiro: Record, 2002. ISBN 85-01-04816-X 1. Braga, Rubem, 1913-1990. 2. Braga (Família). I. Título. 96-1707 Capa: Ricardo Porto Interior da casa: pintura de Arma Graça Braga de Abreu, irmã mais moça de Rubem Direitos desta edição reservados pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina 171 - Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 - Tel.: 2585-2000 CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. CDD - 869.98 CDU - 869.0(81)-94 Copyright © by Rubem Braga Copyright O 1997 by Roberto Seljan Braga Fotografia da 4' capa: carro dos Braga S c ú AB D 12 EDITORA AFILIADA Sumario O porto de minha infância 7 Chamava-se Amarelo 15 Havia um pé de romã 21 Os trovões de antigamente 27 Histórias de Zig 35 Os Teixeiras moravam em frente 45 As Teixeiras e o futebol 51 A vingança de uma Teixeira 57 O cajueiro 63 A minha glória literária 67 O colégio de Tia Gracinha 75 Lembrança de Tenerá 81 As pitangueiras d'antanho 85 Na fazenda do frade 91 Os embrulhos do Rio 95 Memórias de um ajudante de farmácia 101 O compadre pobre 109 Os sons de antigamente 113 Receita de casa 119 o BRAGA 129 A CASA 139 Impresso no Brasil ISBN 85-01-04816-X PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052 Rio de Janeiro, RJ - 20922-970 *** O PORTO DE MINHA INFÂNCIA Minha cidade, Cachoeiro de Itapemirim, tem uma ori- gem fluvial. Os colonizadores que subiam o rio em ca- noas lutando com os índios, encontraram ali, a umas sete léguas do mar, um outro embaraço ao seu avanço: um "encachoeirado" ou "cachoeiro" que impedia a navega- ção. Para continuar, era preciso carregar as embarcações por terra até em cima. E mesmo isso não valia muito a pena, porque, dali para a frente, volta e meia iriam en- contrar outras pedras e corredeiras para atrapalhar. Há outra cidade no Espírito Santo que também se chamou Cachoeiro, pelo mesmo motivo: ali terminava a navegação do rio Santa Maria. Assim nasceu Porto do Cachoeiro, depois Porto do Cachoeiro de Santa Leo- poldina em homenagem a uma das princesas; hoje é ape- nas Santa Leopoldina. Mas voltemos a Itapemirim; junto à barra do rio, do lado direito, ainda se ergue o belo sobradão do porto. Não promete durar muito: se não for logo restaurado e rece ber um destino diferente - escola, centro de artesana- to, turismo, clube, colônia de férias, albergue, qualquer coisa-, não demora a desabar. Foi nesse porto que pen- sei, quando me pediram uma crônica sobre um porto qualquer. Mas não como porto marítimo entre o Rio e Vitória; o que me interessa, como me interessava na in- fância, era a navegação entre a Barra e Cachoeiro de Itapemirim. 9 CASA DOS BRAGA Houve um capitão Deslandes, que hoje é nome de rua importante de Cachoeiro. Nascido em Paranaguá, lutou na guerra do Paraguai e depois se mudou para o Espírito Santo; para Vitória, a princípio, depois para Itapemirim. Ali exerceu suas profissões, que eram duas: fotógrafo e dentista. Esse homem habilidoso requereu e conseguiu, em 1872, concessão para explorar a navega- ção a vapor do rio Itapemirim. A 3 de abril de 1876 inau- gurou-se a linha. O barco levava umas oito horas para descer o rio, e dez a doze para subir. Chegou a haver seis vapores nesse serviço, além de uma barca de passagei- ros. As informações que tenho, de cronistas locais, nem sempre combinam muito bem, a não ser numa coisa: navegar no Itapemirim sempre foi trabalho complicado e inseguro, principalmente na época da seca, quando havia encalhes aborrecidos. Às vezes a navegação ficava impossível durante meses, o que devia destrambelhar as finanças da empresa. Houve algumas transferências de contratos, coisas aborrecidas que não vou historiar. Uma publicação de 1920, do Ministério da Agricultura, Indús- tria e Comércio, ainda dizia: "Durante as águas é grande o número de embarcações a vapor, gasolina, vela e re- mos que auxiliam os transportes entre Cachoeiro e Bar- ra de Itapemirim numa distância de 42km..." Era mais do que contava, em maus versos, em 1885, o padre Antunes Siqueira: ...Nele cruzam em fluvial carreira Dois vapores muito regularmente. Vão do Itapemirim a Caxoeira, 11 CASA DOS BRAGA Quando das águas lhes permite a enchente, Dali voltam em viagem prazenteira Conduzindo carga e muita gente. No princípio deste século o vaporzinho São Luís, de Soares & Irmão, era a principal ligação entre Cachoeiro e a Barra. Vejo-o numa foto de 1922, e me lembra da única vez em que o vi pessoalmente. Eu devia ter oito anos, e o achei fascinante. Um senhor com ares superio- res dizia que a viagem era muito perigosa; o barco podia encalhar ou arrebentar-se. Uma vez ele bateu num ga- lho em que havia uma casa de marimbondos e estes ata- caram os passageiros. De outra vez foi pior: quando o vaporzinho passava sob uma árvore da margem esquer- da, caiu nele uma cobra. - Venenosa? - perguntou alguém. - Claro! - afirmou ele, como se considerasse in- digno de sua pessoa ter feito referência a uma cobra que não fosse venenosa. - E aí, o que houve? - perguntou ainda outra pes- soa. E ele com um ar irritado: - O que houve, o que houve? Ora, cai uma cobra venenosa dentro de um barco, e você quer saber o que houve, o que houve? Nesse momento o vaporzinho apitou para partir, e nunca ficamos sabendo, afinal de contas, o que houve. Lembro-me de que uma vez meu pai viajou no va- porzinho. Eu disse que queria ir, mas alguém disse que quem iria era meu irmão mais velho, e eu teria de espe- 12 RUBEM BRAGA rar a minha vez. Era razoável. Mas o diabo é que ainda havia outros dois irmãos mais velhos para ir antes de mim! Foi a essa altura que inventaram a estrada de ferro, que depois arrancaram para substituir pela estrada de roda- gem - e adeus São Luís, adeus para sempre, vaporzinho São Luís das primeiras de minhas grandes navegações que nunca houve. 13 CASA DOS BRAGA *** CHAMAVA-SE AMARELO Nasci em Cachoeiro de Itapemirim, em uma casa à bei- ra de um córrego, o Amarelo, poucos metros antes de sua entrada no rio Itapemirim. Eu devia ser ainda de colo quando meu pai derrubou essa casa e comprou ou- tra, do outro lado do córrego. Desde muito pequenos, antes da idade de se aventurarem pelas correntezas do rio e depois pela ondas do mar, os meninos da casa brin- cavam no Amarelo. A gente passava as horas de folga ali, pescando de anzol quando o córrego estava cheio, ou de peneira, quan- do ele estava raso. A fauna não era muito variada: piabas (que no Espírito Santo para o Norte é o que no Sul cha- mam de lambari); carás, dourados, um peixe de fundo que a gente chamava moréia, e que não pinicava a isca, dava um puxão longo e inconfundível; outro de boca maior chamado cumbaca; pequenos mandis que ninguém comia e duas ou três espécies de camarão, entre os quais um que a gente chamava de lagosta porque tinha para mais de vinte centímetros. Até hoje me lembro dessas lagostas de água doce aqui no Rio, quando vejo, depois do jantar, nas noites quen- tes de Copacabana, quantas mulheres e moças saem à rua, ficam zanzando na calçada da praia, tomando a fres- ca. Nossos lagostins vivem sistematicamente na oca, de- baixo das pedras, mostrando apenas os bigodes sensíveis e as puãs; mas o calor em Cachoeiro é tão forte, que às 17 CASA Dos BRAGA vezes, de tarde, eles saem passeando lentamente na água rasinha sobre a areia, se mostrando. Conhecíamos o nosso pequeno trecho de córrego palmo a palmo, desde a cachoeirinha em que ele se des- pencava do morro até a beira do rio - cada pedra, cada tufo de capim, cada tronco atravessado, cada pé de inhame ou de taioba. Os peixes maiores - robalos, piaus, traíras, piabinhas - não o subiam, e era raro um bagre pequeno. O peixe maior que peguei numa peneira me deu o maior susto de minha vida; um amigo ou meu irmão cutucava com um pau todo bicho que estivesse debaixo da pedra, para espantar, enquanto eu esperava mais abai- xo, com uma peneira grande. Quando levantei a penei- ra, veio o que me pareceu uma grande cobra preta sal- tando enfurecida em minha cara; era um muçum, que atirei longe com peneira e tudo, enquanto eu caía para trás, dentro d'água, de puro medo. Um pouco para cima o córrego formava um açude fundo, que em alguns lugares não dava pé. De um lado havia árvores grandes, de sombra muito suave, de outro era a aba do morro. A gente escorregava do alto do mor- ro, pelo capim, cada um sentado em uma folha de pita - tchibum n'água! Com troncos de pita ou de bananei- ra, improvisávamos toscas jangadas amarradas a cipó. O córrego e seu açude eram uma festa permanente para nós. O açude não existe mais. O açude não existe mais e o córrego está morrendo. Sempre que vou a Cachoeiro o vejo, porque nossa casa continua a mesma. Há coisa de quatro meses estive lá, e fui até a ponte dar uma espiada no córrego. Embora no 18 RUBEM BRAGA último inverno tenha chovido bem por aquelas bandas, o Amarelo estava tão magrinho, tão sumido, tão feio, que me cortou o coração. Era pouco mais que um fio d'água escorrendo entre as pedras, a foz quase entupida de areia. Havia um sujeito qualquer parado ali, puxei conver- sa com ele, ele disse que é isso mesmo, o córrego parece que está sumindo, nos anos de muita seca até já pára de correr, ficam só umas poças e laminhas. Nas grandes chuvas ele é uma enxurrada grossa, vermelho de barro, açambarcando margens; mas depois definha, definha até quase morrer de sede. Lembro-me, quando menino, eu ouvia falar com es- panto e achando graça de uns rios do Nordeste que su- miam na seca, a gente podia andar pelo seu leito; não acreditava muito. O Amarelo está ficando assim. O Brasil está secando. A gente lê nos jornais artigos sobre desflorestamento, necessidade de proteger os cur- sos d'água, essas coisas que desde criança a gente sabe porque lê nos artigos de jornais. Mas agora eu sei: eu sinto. Nem sequer pretendo chamar a atenção das autoridades etc. etc. sobre a gravi- dade do problema etc., que exige uma série de providên cias impostergáveis etc. etc. Aliás, fulano de tal já dizia que no Brasil o homem é o plantador de desertos etc. etc. etc. etc. etc. etc. etc... Não, esta crônica não pretende salvar o Brasil. Vem apenas dar testemunho, perante a História, a Geografia e a Nação, de uma agonia humilde: um córrego está morrendo. E ele foi o mais querido, o mais alegre, o mais terno amigo de minha infância. 19 CASA DOS BRAGA *** HAVIA UM PÉ DE ROMÃ Se uma criança pudesse fazer o mapa de uma cidade - pensava eu, olhando o pé de romã -, ele teria menos casas e mais árvores e bichos. A romã, por exemplo, está estritamente ligada à carambola, na minha corografia íntima. Eu conhecia essas árvores de um só quintal da cidade; eram como que uma propriedade específica de certa família amiga. Nossa própria casa tinha alguma importância devi- do à fruta-pão e aos cajus, mas, do ponto de vista infan- til, sua grande riqueza estava na saboneteira, árvore que produz a beleba ou bola-de-gude, ou bolinha-preta. Cinco dessas bolinhas-pretas eram trocáveis por uma de vidro, dessas que se compram nas lojas; essa taxa de câmbio é, mais ou menos, de 1923; talvez já não vigore hoje. Para nós, da casa, a saboneteira era uma riqueza natural, uma qualidade intrinsecamente nossa, de nossa família; algo assim confusamente como um baronato. Naturalmente não éramos a mais rica família da cidade; havia, por exem- plo, a chácara do Dr. Mesquita, que tinha mangas sober- bas, defendidas por imensos cachorros. Mesmo sabone- teira havia uma, talvez mais famosa que a nossa, no so- brado do Machadão, onde era o telégrafo, e onde tam- bém morava nossa professora; sobradão cauteloso, pois a calçada da rua, ao chegar a ele, subia uns dois metros de um lado e descia do outro, de maneira a que nem o térreo pudesse ser atingido por uma enchente do rio. 23 CASA Dos BRAGA Uma das árvores que tinha mais prestígio era uma oliveira. Era só um pé, e estava nos altos do Jardim Pú- blico, perto do chamado banco dos Amores. Não dava frutos. Não sei quem teve a fantasia de plantá-la em lu- gar e clima tão impróprios, mas de algum modo era im- portante haver em nossa cidade uma oliveira, árvore que produz azeitonas, azeitonas que produzem azeite; tudo isso era cultura para nossa infância. Fiquei comovido quando soube que a nossa palmei- ra ao lado da varanda era uma tamareira; também era importante possuir uma tamareira, embora as tâmaras fossem insignificantes. Um tio nosso tinha prestígio de- vido ao cajá-manga; outro, morador longe, na Vila, de- vido aos jambos. Havia as frutas sem dono, vulgares: mamão, goiaba, araçá, jenipapo, ingá. Mas que prestígio tinham as romã- zeiras da casa das Martins! A gente gostava mais de carambola, mas a romãzeira, como era linda a flor A fruta se rachava de madura no começo do verão... Penso em muitas coisas aqui, neste chuvoso domin- go, olhando um pé de romã no quintal de uma cidade estranha; em mais coisas do que jamais conviria lembrar na manhã de um domingo chuvoso, depois de tudo o que houve, e o que não houve, no tempo que passou. 24 RuBEM BRAgA 27 *** OS TROVÕES DE ANTIGAMENTE Estou dormindo no antigo quarto de meus pais; as duas janelas dão para o terreiro onde fica o imenso pé de fru- ta-pão, a cuja sombra cresci. O desenho de suas folhas recorta-se contra o céu; essa imagem das folhas da fruta- pão recortadas contra o céu é das mais antigas de minha infância, do tempo em que eu ainda dormia em uma pequena cama cercada de palhinha junto à janela da es- querda. A tarde está quente. Deito-me um pouco para ler, mas deixo o livro, fico a olhar pela janela. Lá fora, uma ga- linha cacareja, como antigamente. E essa trovoada de verão é tão Cachoeiro, é tão minha casa em Cachoeiro! Não, não é verdade que em toda parte do mundo os tro- vões sejam iguais. Aqui os morros lhe dão um eco espe- cial, que prolonga seu rumor. A altura e a posição das nuvens, do vento e dos morros que ladeiam as curvas do rio criam essa ressonância em que me reconheço meni- no, assustado e fascinado pela visão dos relâmpagos, es- perando a chegada dos trovões e depois a chuva baten- tendo grossa lá fora, na terra quente, invadindo a casa com seu cheiro. Diziam que São Pedro estava arrastando móveis, lavando a casa; e eu via o padroeiro de nossa terra, com suas barbas, empurrando móveis imensos, mas iguais aos de nossa casa, no assoalho do céu - certamente também feito assim, as tábuas largas. Parece que eu não acreditava na história, sabia que era apenas uma maneira de dizer, uma brincadeira, mas a imagem de São Pedro de camisolão empurrando um grande armário preto me ficou na memória. Nossa casa era bem bonita, com varanda, carramachão e o jardim grande ladeando a rua. Lembro-me confusamente de alguns canteiros, algumas flores e folhagens deste jardim que não existe mais; especialmente de uma grande touceira de espadas-de-são-jorge que a gente chamava apenas de "talas"; e, lá no fundo, o precioso pé de saboneteira que nos fornecia bolas pretas para o jogo de gudi. Era uma grande riqueza, uma árvore tão sagrada como a fruta-pão e o cajueiro do alto do morro, árvores de nossa família mas conhecidas por muita gente na cidade; nós também não conhecíamos os pés de carambola das Martins ou as mangueiras do Dr. Mesquita? Sim, nossa casa era muito bonita, verde, com uma taramareira junto a varanda, mas eu invejava os que moravam do outro lado da rua onde as casas dão fundo para o rio. Como a casa das Martins, como a casa dos Leões, que depois foi dos Medeiros, depois de nossa tia, casa com varanda fresquinha dando para o rio. Quando começava a chuva a gente ia toda manhã lá no quintal 29 CASA DOS BRAGA deles ver até onde chegara a enchente. As águas barrentas subiam primeiro até a altura da cer- ca dos fundos, depois às bananeiras, vinham subindo o quintal, entravam pelo porão. Mais de uma vez, no meio da noite, o volume do rio cresceu tanto que a família defronte teve medo. Então vinham todos dormir em nossa casa. Isso para nós era uma festa, aquela faina de arrumar camas nas salas, aquela intimidade improvisada e alegre. Parecia que as pessoas ficavam todas contentes, riam muito, como se fazia café e se tomava café tarde da noite! E às vezes o rio atravessava a rua, entrava pelo nosso portão, e me lembro que nós, os meninos, torcíamos para ele subir mais e mais. Sim, éramos a favor da enchente, ficávamos tris- tes de manhãzinha quando, mal saltando da cama, íamos correndo para ver que o rio baixara um palmo - aquilo era uma traição, uma fraqueza do Itapemirim. Às vezes chegava alguém a cavalo, dizia que lá para cima, pelo Castelo, tinha caído chuva muita, anunciava água nas cabeceiras, então dormíamos sonhando que a enchente ia outra vez crescer, queríamos sempre que aquela fosse a maior de todas as enchentes. E naquelas tardes as trovoadas tinham esse mesmo ronco prolongado entre morros, diante das duas janelas do quarto de meus pais; eles trovejavam sobre nosso te lhado e nosso pé de fruta-pão, os grandes, grossos tro - vões familiares de antigamente, os bons trovões do ve- lho São Pedro. 32 RUBEM BRAGA *** Histórias de ZIG Um dia, antes do remate de meus dias, ainda jogarei fora esta máquina de escrever e, pegando uma velha pena de pato, me porei a narrar a crônica dos Braga. Terei então de abrir todo um livro e contar as façanhas de um deles que durou apenas onze anos, e se chamava Zig. Zig - ora direis - não parece nome de gente, mas de cachorro. E direis muito bem, porque Zig era cachor- ro mesmo. Se em todo o Cachoeiro era conhecido por Zig Braga, isso apenas mostra como se identificou com o espírito da Casa em que nasceu, viveu, mordeu, latiu, abanou o rabo e morreu. Teve, no seu canto de varanda, alguns predecessores ilustres, dos quais só recordo Sizino, cujos latidos atra- vessam minha infância, e o ignóbil Valente, que encheu de desgosto meu tio Trajano. Não sei onde Valente ga- nhou esse belo nome; deve ter sido literatura de algum Braga, pois hei de confessar que só o vi valente no comer angu. E só aceitava angu pelas mãos de minha mãe. Um dia, tio Trajano veio do sítio... Minto! Foi tio Maneco. Tio Maneco veio do sítio e, conversando com meu pai na varanda, não tirava o olho do cachorro. Fa- lou-se da safra, das dificuldades da lavoura... - Ó Chico, esse cachorro é veadeiro. Meu pai achava que não; mas, para encurtar conver- sa, quando tio Maneco montou sua besta, levou o Va- lente atrás de si com a coleira presa a uma cordinha. O 37 CASA DOS BRAGA sitio não tinha três léguas lá de casa. Dias depois meu tio levou a cachorrada para o mato, e Valente no meio. Não sei se matou alguma coisa; sei apenas que Valente sumiu. Foi a história que tio Maneco contou indignado à pri- meira vez que voltou no Cachoeiro; o cachorro não apa- recera em parte alguma, devia ter morrido... - Sem-vergonhão! Acabara de ver o Valente que, deitado na varanda, ouvia a conversa e o mirava com um olho só. Nesse ponto, e só nele, era Valente um bom Braga, que de seu natural não é povo caçador; menos eu, que ando por este mundo a caçar ventos e melancolias. Houve, certamente, lá em casa, outros cães. Mas vamos logo ao Zig, o maior deles, não apenas pelo seu tamanho como pelo seu espírito. Sizino é uma lembran ça vaga, do tempo de Quinca Cigano e da negra Iria, que cantava O crime da caixa-d'água e No mar desta vida, em cujo mar afirmava encontrar às vezes "alguns escolhos», e eu tinha a impressão de que "escolhos" eram uns pei- xes ferozes piores que tubarão. Ao meu pai chamavam de coronel, e não o era; a mim muitos me chamam de capitão, e não sou nada. Mas isso 38 RUBEM BRAOA mostra que não somos de todo infensos ao militarismo, de maneira que não há como explicar o profundo ódio que o nosso bom cachorro Zig votava aos soldados em geral. A tese aceita em família é que devia ter havido, na primeira infância de Zig, algum soldado que lhe deu um pontapé. Haveria de ser um mau elemento das forças armadas da Nação, pois é forçoso reconhecer que mes- mo nas forças armadas há maus elementos, e não apenas entre as praças de pré como mesmo entre os mais altos... mas isto aqui, meus caros, é uma crônica de reminiscên- cias canino-familiares è nada tem a ver com a política. Deve ter sido um soldado qualquer, ou mesmo um carteiro. A verdade é que Zig era capaz de abanar o rabo perante qualquer paisano que lhe parecesse simpático (poucos, aliás, lhe pareciam), mas a farda lhe despertava os piores instintos. O carteiro de nossa rua acabou en- tregando as cartas na casa de tia Meca. Volta e meia tí- nhamos uma "questão militar" a resolver, por culpa de Zig. Tão arrebatado na vida pública, Zig era, entretanto, um anjo do lar. Ainda pequeno, tomou-se de amizade por uma gata, e era coisa de elevar o coração humano ver como aqueles dois bichos dormiam juntos, encostados um ao outro. Um dia, entretanto, a gata compareceu com cinco mimosos gatinhos, o que surpreendeu profunda- mente Zig. Ficou muito aborrecido, mas não desprezou a velha amiga e continuou a dormir a seu lado. Os gatinhos en- tão começaram a subir pelo corpo de Zig, a miar intermi navelmente. Um dia pela manhã, não agüentando mais, Zig segurou com a boca um dos gatinhos e sumiu com ele. Voltou pouco depois, e diante da mãe espavorida abocanhou pelo dorso outro bichinho e sumiu novamen- te. Apesar de todos os protestos da gata, fez isso com todas as crias. Voltou ainda, latiu um pouco e depois saiu na direção da cozinha. A gata seguiu-o, a miar desespera- da. Zig subiu o morro, ela foi atrás. Em um buraco, lá no alto, junto ao cajueiro, estavam os cinco bichos, vivos e intactos. A mãe deixou-se ficar com eles, e Zig voltou para dormitar no seu canto. Estava no maior sossego quando a gata apareceu 40 RUBEM BRAGA novamente, com todas as crias atrás. Deitou-se ao lado de Zig, e novamente os bichinhos começaram a passear pelo seu corpo. Um abuso inominável. Zig ficou horrivelmente abor- recido, e suspirava de cortar o coração enquanto os gati- nhos lhe miavam pelas orelhas. Subitamente abocanhou um dos bichos e sumiu com ele, desta vez em disparada. Em menos de cinco minutos havia feito outra vez a mu- dança, correndo como um desesperado morro abaixo e morro acima. Mas as mulheres são teimosas, e quando descobrem o quanto é fraco e mole um coração de Braga começam a abusar. O diabo da gata voltou ainda cinica- mente com toda a sua detestável filharada. Previmos que dessa vez Zig ia perder a paciência. O que fez, simples- mente, foi se conformar, embora desde então esfriasse de modo sensível sua amizade pela gata. Mas não pensem, por favor, que Zig fosse um desses cães exemplares que freqüentam as páginas de Seleções, somente capazes de ações nobres e sentimentos eleva dos, cães aos quais só falta falar para citarem Abraham Lincoln, e talvez Emerson. Se eu afirmasse isso, algumas dezenas de leitores de Cachoeiro de Itapemirim rasgariam o jornal e me escreveriam cartas indignadas, a começar pelo Dr. Lofego, a quem Zig mordeu ignominiosamente, para vergonha e pesar do resto da família Braga. De vez em quando aparecia lá em casa algum sujeito furioso a se queixar de Zig. Assisti a duas dessas cenas: o mordido lá embaixo, no carramanchão, a vociferar, e minha mãe cá em cima, 41 CASA Dos BRAGA na varanda, a abrandá-lo. Minha mãe mandava subir o homem e providenciava o curativo necessário. Mas se a vítima passava além da narrativa concreta dos fatos e começava a insultar Zig, ela ficava triste: - Coitadinho, ele tão bonzinho... é um cachorro muito bonzinho. O homem não concordava e ia-se embora ainda pra- guejando. O comentário de mamãe era invariável: - Ora, também... Alguma coisa ele deve ter feito ao cachorrinho. Ele não morde ninguém... "Cachorrinho" deve ser considerado um excesso de ternura, pois Zig era, sem o mínimo intuito de ofensa, mas apenas por amor à verdade, um cachorrão. E a ver- dade é que mordeu um número maior de pessoas que o necessário para manter a ordem em Cachoeiro de Ita- pemirim. Evitávamos, por isso, que ele saísse muito à rua, e o bom cachorro (sim, no fundo era uma boa alma) gos- tava de ficar em casa; mas se alguém saía ele tratava de ir atrás. Contam que uma de minhas irmãs perdeu o namo- rado por causa da constante e apavorante companhia de Zig. Quanto à minha mãe, ela sempre teve o cuidado de mandar prender o cachorro domingo pela manhã, quan- do ia à missa. Às vezes, entretanto, acontecia que o bi cho escapava; então descia a escada velozmente atrás das pegadas de minha mãe. Sempre de focinho no chão, lá ia ele para cima; depois quebrava à direita e atravessava a Ponte Municipal. Do lado Norte trotava outra vez para baixo e em menos de quinze minutos estava entrando na 42 RUBEM BRAGA igreja apinhada de gente. Atravessava aquele povo todo até chegar diante do altar-mor, onde oito ou dez velhi- nhas recebiam, ajoelhadas, a Santa Comunhão. Zig se atrapalhava um pouco - e ia cheirando, uma por uma, aquelas velhinhas todas, até acertar com sua dona. Mais de uma vez o padre recuou indignado, mais de uma vez uma daquelas boas velhinhas trincou a hós- tia, gritou ou saiu a correr assustada, como se o nosso bom cão que a fuçava, com seu enorme focinho úmido, fosse o próprio Cão de fauces a arder. Mas que alegria de Zig quando encontrava, afinal, sua dona! Latia e abanava o rabo de puro contentamento, e não a deixava mais. Era um quadro comovente, embora irritasse, para dizer a verdade, a muitos fiéis. Que tinham lá suas razões, mas nem por isso ninguém me convence de que não fossem criaturas no fundo egoístas, mais in- teressadas em salvar suas próprias e mesquinhas almas do que em qualquer outra coisa. Hoje minha mãe já não faz a longa e penosa cami- nhada, sob o sol de Cachoeiro, para ir ao lado de lá do rio assistir à missa. Atravessou a ponte todo domingo durante muitas e muitas dezenas de anos, e está velha e cansada. Não me admiraria saber que Deus, não rece- bendo mais sua visita, mande às vezes, por consideração, um santo qualquer, talvez Francisco de Assis, fazer-lhe uma visitinha do lado de cá, em sua velha casa verde; nem que o Santo, antes de voltar, dê uma chegada ao quintal para se demorar um pouco sob o velho pé de fru- ta-pão onde enterramos Zig. 43 CASA Dos BRAGA *** OS TEIXEIRAS MORAVAM EM FRENTE 45 Para não dar o nome certo digamos assim: os Teixeiras moravam quase defronte lá de casa. Não tínhamos nada contra eles: o velho, de bigodes brancos, era sério e cordial e às vezes até nos cumprimen- tava com deferência. O outro homem da casa tinha uma voz grossa e alta, mas nunca interferiu em nossa vida, e passava a maior parte do tempo em uma fazenda fora da cidade; além disso seu jeito de valentão nos agradava, porque ele torcia para o mesmo time que nós. Mas havia as Teixeiras. Quantas eram, oito ou vinte, as irmãs Teixeiras? Sei que era uma casa térrea muito, muito longa, cheia de janelas que davam para a rua, e em cada janela havia sempre uma Teixeira espiando. Havia umas que eram boazinhas, mas em conjunto as irmãs Teixeiras eram nossas inimigas, acho que princi- palmente as mais velhas e mais magras. As Teixeiras tinham um pecado fundamental: elas não compreendiam que em uma cidade estrangulada entre morros, nós, a infância, teríamos de andar muito para arranjar um campo de futebol; e, portanto, o nosso campo natural para chutar uma bola de borracha ou de meia era a rua mesmo. Jogávamos descalços, a rua era calçada de pedras ir- regulares (só muito anos depois vieram os paralelepípe- dos, e eu me lembro que os achei feios, com sua cor de granito, sem a doçura das pedras polidas entre as quais 47 CASA DOS BRAGA medrava o capim; e achei o nome também horroroso, insuportável, paralelepípedos, nome que o prefeito dizia com muita importância, parece que a grande glória de Cachoeiro e o progresso supremo da humanidade resi- dia nessa palavra imensa e antipática-paralelepípedos); mas, como eu ia dizendo, a gente dava tanta topada que todos tínhamos os pés escalavrados: as plantas dos pés eram de couro grosso, e as unhas eram curtas, grossas e tortas, principalmente do dedão e do vizinho dele. Até ainda me lembro de um pedaço do "campo" que era melhor, era do lado da extrema direita de quem jogava de baixo para cima, tinha uma pedra grande, lisa, e de- pois um meio metro só de terra com capim, lugar esplên- dido para chutar em gol ou centrar Tenho horror de contar vantagem, muita gente acha que eu quero desmerecer o Rio de Janeiro contando coi- sas de Cachoeiro, isto é uma injustiça; a prova aqui está: eu reconheço que o Estádio do Maracanã é maior que o nosso campo, até mesmo o Pacaembu é bem maior Só que nenhum dos dois pode ser tão emocionante, nem jamais foi disputado tão palmo a palmo ou pé a pé, topa- da a topada, canelada a canelada, às vezes tapa a tapa. Não consigo me lembrar se a marcação naquele tem- po era em diagonal ou por zona; em todo caso a técnica do futebol era diferente, o jogo era ao mesmo tempo mais cavado e mais livre, por exemplo: não era preciso ter onze jogadores de cada lado, podia ser qualquer número, e mesmo às vezes jogavam cinco contra seis, pois a gente punha dois menores para equilibrar um vaca-brava maior. 48 RUBEM BRAGA Eu disse que as partidas eram emocionantes; até hoje não compreendo como as Teixeiras jamais se entusias- maram pelos nossos prélios. Isso foi um erro, e contarei por quê. 49 CASA Dos BRAGA 51 *** AS TEIXEIRAS E O FUTEBOL Com os Andradas tínhamos feito uma espécie de pac- to; a gente não jogava bola na rua defronte da casa de- les, mas um pouco para cima, onde havia um muro que dava para o quintal da casa; em compensação, eles dei- xavam a gente pular o muro e apanhar a bola quando ela caía lá. Mas o muro não era bastante comprido, e assim o nosso campo abrangia, como eu ia dizendo, al- gumas janelas das Teixeiras. As quais, eu também já dis- se, não apreciavam o futebol. Quando a gritaria na rua era maior, uma das Teixeiras costumava nos passar um pito da janela, mandando a gente embora. O jogo parava um instante, ficávamos quietos, de cara no chão - e logo que ela saía da janela a peleja continuava. Às vezes aquela ou outra Teixeira voltava a gritar conosco - começavam por nos chamar de "meninos desobedientes" e acabavam nos chamando de "moleques", o que nos ofendia muito ("Moleque é a senhora!", gritou Chico uma vez), mas de modo algum nos impedia de finalizar a pugna. Uma das Teixeiras era mais cordial, chamava um de nós pelo nome, dizia que éramos uns meninos in- teligentes, filhos de gente boa, portanto poderíamos compreender que a bola poderia quebrar uma vidra- ça. - Não quebra não, senhora! Não quebra não, se- nhora! - gritávamos com absoluta convicção, e tratá- 53 CASA DOS BRAGA vamos de tocar o jogo para a frente para não ouvir novas observações. Um dia ela nos propôs jogar mais para baixo, então o Juquinha foi genial: - Não, senhora, lá nós não podemos porque tem a Dona Constança doente - desculpa notável e prova de bom coração de nosso time. - Então por que vocês não jogam mais para cima? - propôs ela com certa astúcia, e falando um pouco baixo, como se temesse que os vizinhos de cima ouvis- sem. - Ah, não, lá o campo não presta! - argumento, aliás sincero, de ordem técnica, e portanto irrespondível. - Eu vou falar com papai! Quando ele chegar vocês vão ver - gritou certa vez uma das Teixeiras mais anti- páticas. Pois naquele momento o coronel de bigodes bran- cos ia chegando, o jogo parou, ele perguntou â filha o que era, ela disse "esses meninos fazendo algazarra aí, é um inferno, qualquer hora quebram uma vidraça", mas o velho ouviu calado e entrou calado, sem sequer nos olhar, nem dar qualquer importância ao fato. Sentimos que o velho, sim, era uma pessoa realmente importante e um homem direito, e superior, e continuamos nossa par- tida. As queixas que algumas Teixeiras faziam em nossa casa eram muito bem recebidas por mamãe, que lhes dava toda razão - "esses meninos estão mesmo impossíveis" e uma ou duas vezes nos transmitiu essas queixas sem convicção. De outra feita, como a conversa lá em casa versasse sobre as Teixeiras, ouvimo-la dizer que fulana e 54 RUBEM BRAGA sicrana (duas das irmãs) eram muito boazinhas, muito simpáticas, mas beltrana, coitada, era tão enjoada, tão antipática, "ainda ontem esteve aqui fazendo queixas de meus filhos". Mamãe era a favor de nosso time; mamãe, no fundo, e papai também (hoje, que o time e eles dois morreram, esta súbita certeza, ao meditar no distante passado, tem um poder absurdo, inesperado de me comover, até sentir um ardor de lágrimas nos olhos) - eles sempre foram a favor de nosso time! E nosso caso com as Teixeiras foi se agravando, como se verá. 55 CASA DOS BRAGA 57 *** A VINGANÇA DE UMA TEIXEIRA A troca da bola de meia para a bola de borracha foi uma importante evolução técnica do associatfon em nossa rua. Nossa primeira bola de borracha era branca e pequena; um dia, entretanto, apareceu um menino com uma bola maior, de várias cores, belíssima, uma grande bola que seus pais haviam trazido do Rio de Janeiro. Um deslum- bramento; dava até pena de chutar. Admiramo-la em silêncio; ela passou de mão em mão; jamais nenhum de nós tinha visto coisa tão linda. Era natural que as Teixeiras não gostassem, quando essa bola partiu uma vidraça. Nós todos sentimos que acontecera algo de terrível. Alguns meninos correram; outros ficaram a certa distância da janela, olhando, trê- mulos, mas, apesar de tudo, dispostos a enfrentar a ca- tástrofe. Apareceu logo uma das Teixeiras, e gritou várias descomposturas. Ficamos todos imóveis, calados, ouvin- do, sucumbidos. Ela apanhou a bola e sumiu para dentro de casa. Voltou logo depois e, em nossa frente, executou o castigo terrível: com um grande canivete preto furou a bola, depois a cortou em duas metades e jogou-a à rua. Nunca nenhum de nós teria podido imaginar um ato de maldade tão revoltante. Choramos de raiva; apareceram mais duas Teixeiras que davam gritos e ameaçavam des- cer para nos puxar as orelhas. Fugimos. A reunião foi junto do cajueiro do morro. Nossa pri- meira idéia de vingança foi quebrar outras vidraças a 59 CASA Dos BRAGA pedradas. Alguém teve um plano mais engenhoso: dali mesmo, do alto do morro, podíamos quebrar as vidraças com atiradeiras, e assim ninguém nos veria. - Mas elas vão logo dizer que fomos nós! Alguém informou que as Teixeiras iam todas no dia seguinte para uma festa na fazenda, um casamento ou coisa que o valha. O plano de assalto à casa foi traçado por mim. A casa das Teixeiras dava os fundos para o rio, e uma vez, em que passeava de canoa, pescando aqui e ali, eu entrara em seu quintal para roubar carambolas. Havia um cachorro, mas era nosso conhecido, fácil de enganar. Falou-se muito tempo dos ladrões que tinham arrom- bado a porta da cozinha da casa das Teixeiras. Um cabo de polícia esteve lá, mas não chegou a nenhuma conclu são. Os ladrões tinham roubado um anel sem muito va- lor, mas de grande estimação, com monograma, e tinham feito uma desordem tremenda na casa; havia vestidos espalhados pelo chão, um tinteiro e uma caixa de pó-de- arroz entornados em um quarto, sobre uma cama. Falou- se que tinha desaparecido dinheiro, mas era mentira; lembro-me vagamente de uma faca de cozinha, um mar- telo, uma lata de goiabada: isso foi todo o nosso butim. O anel foi enterrado em algum lugar no alto do mor- ro; mas alguns dias depois caiu um temporal e houve for- te enxurrada; jamais conseguimos encontrar o nosso te souro secretíssimo, e rasgamos o mapa que havíamos desenhado. Durante algum tempo as famílias da rua fecharam com mais cuidado as portas e janelas, alguns pais de fa- 60 RUBEM BRAGA mília saltaram assustados da cama a qualquer ruído, com medo dos ladrões, mas eles não apareceram mais. Nosso terrível segredo nos deu um grande sentimen- to de importância, mas nunca mais jogamos futebol di- ante da casa das Teixeiras. Deixamos de cumprimentar a que abrira a bola com o canivete; mesmo anos depois, já grandes, não lhe dávamos sequer bom-dia. Não sei se foi feliz na existência, e espero que não; se foi, é porque praga de menino não tem força nenhuma. 61 CASA DOS BRAGA *** O CAJUEIRO O cajueiro já devia ser velho quando nasci. Ele vive nas mais antigas recordações de minha infância: belo, imen- so, no alto do morro, atrás de casa. Agora vem uma car- ta dizendo que ele caiu. Eu me lembro do outro cajueiro que era menor, e morreu há muito mais tempo. Eu me lembro dos pés de pinha, do cajá-manga, da grande touceira de espadas-de são-jorge (que nós chamávamos simplesmente "tala") e da alta saboneteira que era nossa alegria e a cobiça de toda a meninada do bairro porque fornecia centenas de bolas pretas para o jogo de gude. Lembro-me da tama- reira, e de tantos arbustos e folhagens coloridas, lembro- me da parreira que cobria o carramanchão, e dos cantei- ros de flores humildes, "beijos", violetas. Tudo sumira; mas o grande pé de fruta-pão ao lado de casa e o imenso cajueiro lá no alto eram como árvores sagradas protegen- do a família. Cada menino que ia crescendo ia aprenden- do o jeito de seu tronco, a cica de seu fruto, o lugar me- lhor para apoiar o pé e subir pelo cajueiro acima, ver de lá o telhado das casas do outro lado e os morros além, sentir o leve balanceio na brisa da tarde. No último verão ainda o vi; estava como sempre car- regado de frutos amarelos, trêmulo de sanhaços. Chove- ra; mas assim mesmo fiz questão de que Carybé subisse o morro para vê-lo de perto, como quem apresenta a um amigo de outras terras um parente muito querido. 65 CASA DOS BRAGA A carta de minha irmã mais moça diz que ele caiu numa tarde de ventania, num fragor tremendo pela ri- banceira; e caiu meio de lado, como se não quisesse que brar o telhado de nossa velha casa. Diz que passou o dia abatida, pensando em nossa mãe, em nosso pai, em nos- sos irmãos que já morreram. Diz que seus filhos peque- nos se assustaram; mas depois foram brincar nos galhos tombados. Foi agora, em fins de setembro. Estava carregado de flores. 66 RUBEM BRAGA 66 RUBEM BRAGA *** A MINHA GLÓRIA LITERÁRIA Quando a alma vibra, atormentada..." Tremi de emoção ao ver essas palavras impressas. E lá estava meu nome, que pela primeira vez eu via em le- tra de forma. O jornal era O Itapemirim, órgão oficial do Grêmio Domingos Martins, dos alunos do Colégio Pedro Palácios, de Cachoeiro de itapemirim, estado do Espíri- to Santo. O professor de português passara uma composição: "A lágrima." Não tive dúvidas: peguei a pena e me pus a dizer coisas sublimes. Ganhei 10, e ainda por cima a com posição foi publicada no jornalzinho do colégio. Não era para menos: "Quando a alma vibra, atormentada, às pulsações de um coração amargurado pelo peso da desgraça, este, numa explosão irremediável, num desabafo sincero de infortúnios, angústias e mágoas indefiníveis, externa-se, oprimido, por uma gota de água ardente como o desejo e consoladora como a esperança; e essa pérola de amargu- ra arrebatada pela dor ao oceano tumultuosa da alma dilacerada é a própria essência do sofrimento: é a lágri- ma." É claro que eu não parava aí. Vêm, depois, outras belezas; eu chamo a lágrima de "traidora inconsciente dos segredos d'alma", descubro que ela "amolece os corações mais duros" e também (o que é mais estranho) "endure- ce os corações mais moles". E acabo com certo exagero 69 CASA DOS BRAGA dizendo que ela foi "sempre, através da História, a reali- zadora dos maiores empreendimentos, a salvadora mira- culosa de cidades e nações, talismã encantado de vingan- ça e crime, de brandura e perdão". Sim, eu era um pouco exagerado; hoje não me arris- caria a afirmar tantas coisas. Mas o importante é que minha composição abafara e tanto, que não faltou um colega despeitado que pusesse em dúvida sua autoria: eu devia ter copiado aquilo de algum almanaque. A suspeita tinha seus motivos: tímido e mal falante, meio emburrado na conversa, eu não parecia capaz de tamanha eloqüência. O fato é que a suspeita não me feriu, antes me orgulhou; e a recebi com desdém, sem sequer desmentir a acusação. Veriam, eu sabia escrever coisas loucas; dispunha secretamente de um imenso estoque de "corações amargu- rados", "pérolas da amargura" e "talismãs encantados" para embasbacar os incréus; veriam... Uma semana depois o professor mandou que nós to- dos escrevêssemos sobre a Bandeira Nacional. Foi então que - dá-lhe, Braga! - meti uma bossa que deixou to dos maravilhados. Minha composição tinha poucas li- nhas, mas era nada menos que uma paráfrase do Padre, Nosso, que começava assim: "Bandeira nossa, que estais no céu..." Não me lembro do resto, mas era divino. Ganhei novamente 10, e o professor fez questão de ler, ele mes- mo, a minha obrinha para a classe estupefata. Essa com posição não foi publicada porque O Itapemirim deixara de sair, mas duas meninas - glória suave! - tiraram cópias, porque acharam uma beleza. 70 RUBEM BRAGA Foi logo depois das férias de junho que o professor passou nova composição: "Amanhecer na fazenda." Ora, eu tinha passado uns quinze dias na Boa Esperança, fa- zenda de meu tio Cristóvão, e estava muito bem infor- mado sobre os amanheceres desta. Peguei da pena e fui contando com a maior facilidade. Passarinhos, galinhas, patos, uma negra jogando milho para as galinhas e os patos, um menino tirando leite da vaca, vaca mugindo... e no fim achei que ficava bonito, para // fazer pendant com essa vaca mugindo (assim como "consoladora como a esperança" combinara com "ardente como o desejo"), um "burro zurrando". Depois fiz parágrafo, e repeti o mesmo zurro com um advérbio de modo, para fecho de ouro: "Um burro zurrando escandalosamente." Foi minha desgraça. O professor disse que daquela vez o senhor Braga o havia. decepcionado, não tinha le- vado a sério seu dever e não merecia uma nota maior do que 5; e para mostrar como era ruim minha composição leu aquele final: "um burro zurrando escandalosamen- te". Foi uma gargalhada geral dos alunos, uma gargalha- da que era uma grande vaia cruel. Sorri amarelo. Minha glória literária fora por água abaixo. 72 RUBEM BRAGA 75 *** O COLÉGIO DE TIA GRACINHA Tia Gracinha, cujo nome ficou no grupo escolar Graça Guardia, de Cachoeiro de Itapemirim, era irmã de mi- nha avó paterna, mas tão mais moça, que a tratava de mãe. Eu era certamente menino, quando ela e o tio Guardia - um simpático espanhol de cavanhaque, que fora piloto em sua terra - saíram de Cachoeiro para o Rio. Assim, tenho do colégio de Tia Gracinha uma re- cordação em que não sei o que é lembrança mesmo e lembrança de conversas que ouvi menino. Lembro-me, sobretudo, do pomar e do jardim do colégio, e imagino ver moças de roupas antigas, cuidan- do das plantas. O colégio era um internato de moças. Elas não aprendiam datilografia nem taquigrafia, pois o tem- po era de pouca máquina e nenhuma pressa. Moças não trabalhavam fora. As famílias de Cachoeiro e de muitas outras cidades do Espírito Santo mandavam suas adoles- centes para ali; muitas eram filhas de fazendeiros. Rece- biam instrução geral, uma espécie de curso primário re- forçado, o mais eram prendas domésticas. Trabalhos ca- seiros e graças especiais: bordados, jardinagem, francês, pino... A carreira de toda moça era casar, e no colégio de Tia Gracinha elas aprendiam boas maneiras. Levavam depois, para as casas de seus pais e seus maridos, uma porção de noções uteis de higiene e de trabalhos domés- ticos, e muitas finuras que lhes davam certa superiorida- 77 CASA Dos BRAGA de sobre os homens de seu tempo. Pequenas etiquetas que elas iam impondo suavemente, e transmitiam às filhas. Muitas centenas de lares ganharam, graças ao colégio de Tia Gracinha, a melhoria burguesa desses costumes mais // finqs Eu avalio a educação de Tia Gra- cinha pela delicadeza de duas de suas alunas - minha saudosa irmã e madrinha Carmozina, e minha prima Noemita. Tudo isto será // risível aos olhos das moças de hoje; mas a verdade é que o colégio de Tia Gracinha dava às mo- ças de então a educação de que elas precisavam para vi- ver sua vida. Não apenas o essencial, mas muito do que, sendo supérfluo e superior ao ambiente, era, por isso mesmo, de certo modo, funcional - pois a função do colégio era uma certa elevação espiritual do meio a que servia. Tia Gracinha era bem o que se podia chamar uma educadora. Lembro-a na casa de Vila Isabel, onde vivia com o marido, a filha, o genro, os netos, a irmã Ana, que ela chamava de mãe, e que para nós era a Vovó Donana, e a sogra de idade imemorial, que, à força de ser Abuelita, acabara sendo, para nós todos, Vovó Bolita. Tinha nostalgia, talvez, de seu tempo de educadora, de seu belo colégio com pomar às margens do Córrego Amarelo, afluente do Itapemirim; lembro-me de que uma vez me pediu algum livro que explicasse os novos sistemas de educação, o método de ensinar a ler sem soletrar - e me fez esta indagação a que eu jamais poderia responder: "E piano, como é que se ensina piano, hoje?" 78 RUBEM BRAGA Gostava de seu piano. O saudoso Mário Azevedo sabia tocar várias de suas composições, feitas lá em Cachoeiro; lembro-me de uma pequena valsa cheia de graça, finura e melancolia - parecida com a alma de Tia Gracinha. 79 CASA DOS BRAGA 81 ***LEMBRANÇA DE TENERÁ O recorte de um jornal de Campos me traz a notícia da morte de um tipo de rua, conhecido na grande cidade fluminense como Rin-Tin-Tin. Teria mais de cem anos e alegava ter tomado parte na Guerra de Canudos. Seu nome verdadeiro ninguém sabe; mas o jornal diz que ele é o mesmo homem conhecido em Cachoeiro de Itapemirim como Tenerá. É possível que tivesse outros nomes em outras cidades, pois um pouco por toda parte ele aparecia sem dizer de onde vinha; e depois sumia sem avisar para onde ia. Tenerá era alto, de uma gordura desajeitada de dis- trofia glandular, e tinha uma cara enorme de índio tapuia, uma cara vincada e terrosa, de jenipapo maduro. Vestia se com extravagância de apalache, andava sério e lento, apregoando o Correio do Sul ou algum avulso de propa- ganda de casa comercial. Afora isso pegava alguns co- bres amestrando cães: ensinava um pobre vira-lata a sen- tar, deitar, carregar coisas, seguir as ordens do dono e até a dançar sobre as patas traseiras. Durante algum tempo Tenerá morou com seus ca- chorros nos baixos do prédio da Farmácia Central, que era de parentes meus. Os fundos davam para o rio, e havia, entre os pilares que sustentavam o prédio, muito espaço para o homem e seus cães. Durante algum tempo trabalhei na farmácia, para ter algum dinheirinho meu. 83 CASA Dos BRAGA Minhas relações com Tenerá ficaram então mais es treitas; deslumbrei-o certa vez com a mágica fácil de derramar algumas gotas de glicerina sobre limalhas de permanganato: aquela combinação de duas coisas frias resultando em fogo e estalidos me deu a seus olhos um prestígio de jovem cientista. Nas horas de folga, eu e o primo Costinha nos divertíamos, às vezes, de uma janela que dava para o rio, a atirar de Flaubert nos camaleões que apareciam lá embaixo, nas pedras do rio. Isso inquie- tava o Tenerá, por si mesmo e pelos seus cães. Viveu muitos anos em Cachoeiro e se atribuía de certo modo todos os melhoramentos que a cidade teve depois de sua chegada: - Quando eu cheguei aqui não havia isso nem aqui- lo.. É verdade que muitos políticos fazem coisa idêntica em relação aos progressos deste pobre Brasil, que vai para a frente, mesmo porque é este o seu jeito e rumo. Só vi Tenerá fazer pouco de Cachoeiro uma vez. Foi quando por algum motivo o prenderam e o puseram a capinar o pátio em frente à cadeia velha. Trabalhando ao sol, ele dizia bem alto, para que o delegado e todos ouvissem: -Eu já estive preso em cadeia muito melhor do que esta. Muito melhor do que esta porcaria! 84 RUBEM BRAGA *** AS PITANGUEIRAS DE ANTANHO Tem seus 23 anos, e eu a conheço desde os oito ou nove, sempre assim, meio gordinha, engraçada, de cabelos rui- vos. Foi criada, a bem dizer, na areia do Arpoador; nas- ceu e viveu em uma daquelas ruas que vão de Copa- cabana a Ipanema, de praia a praia. A família mudou-se quando a casa foi comprada para construção de edifício. Certa vez me contou: - Em meu quarteirão não há uma só casa de meu tempo de menina. Se eu tivesse passado anos fora do Rio e voltasse agora, acho que não acertaria nem com a mi- nha rua. Tudo acabou: as casas, os jardins, as árvores. É como se eu não tivesse tido infância... Falta-lhe uma base física para a saudade. Tudo o que parecia eterno sumiu. Outra senhora disse então que se lembrava muito de que, quando era menina, apanhava pitangas em Copa- cabana; depois, já moça, colhia pitangas na Barra da Tijuca; e hoje não há mais pitangas. Disse isso com uma certa animação, e depois ficou um instante com o ar meio triste - a melancolia de não ter mais pitangas, ou, quem sabe, a saudade daquela manhã em que foi com o namo- rado colher pitangas. Também em minha infância há pitangueiras de praia. Não baixinhas, em moitas, como aquelas de Cabo Frio, que o vento não deixa crescer; mas altas; e suas copas se 87 CASA Dos BRAGA tocavam e faziam uma sombra varada por pequenos pontos de sol. O que foi dito em um soneto lido na ado- lescência (acho que o soneto é de B. Lopes) onde "o sol bordava a pino, sobre a areia, um crivo de ouro num cendal de prata", o que pode ser um tanto precioso mas é lindo, mesmo a gente não sabendo o que é cendal. Nesse soneto havia um bando alegre de gente moça - esqueci as palavras, mas me lembro que as moças co- lhiam pitangas, e os rapazes, namoradas. E lembrei-me de meu espanto de menino quando ouvi dizer que uma família conhecida nossa, de Cachoeiro, estava querendo vender a casa. Vender a casa... Casa, para mim, era alguma coisa que fazia parte da própria família, algo que existia desde sem- pre e para sempre com a mesma família. Fiz uma pergun- ta ingênua, e alguém respondeu: - É, eles vão vender a casa porque vão-se mudar para Minas. Fiquei quieto, mas também não entendi. Como é que uma família que mora em uma casa, em uma rua, em uma cidade, pensava eu confusamente no íntimo, pode mu dar para outra? Aquilo me parecia contra a ordem natu- ral das coisas. Também me lembro de achar estranho que casas pudessem ser alugadas. Mas também me lembro de que a primeira vez que tive notícia da existência de edificios de apartamentos, com umas pessoas morando em cima das outras e sem precisar subir escada porque ha- via elevador, achei a idéia genial, e pensei comigo mes- mo: "Eu vou querer morar no último andar." Mas pen- 88 RUBEM BRAGA sei, confesso, sem nenhuma esperança, como quem pensa em fazer uma coisa que deve ser boa mas, com certeza, a gente mesmo não vai fazer, como, por exem- plo, andar de balão. Como um menino pobre pensa em ser rei. 89 CASA Dos BRAGA 91 *** NA FAZENDA DO FRADE Chegamos. Para quê? A velha casa da fazenda de meu avô está quase em ruínas. A varanda caiu há muito tem- po. O atual fazendeiro vive em uma casa nova, que ele construiu mais abaixo; aqui mora uma família de colo- nos, e a mulher me diz que tem medo da casa: nas noites de vento e chuva a família se esconde no paiol, porque parece que tudo vem abaixo. As grandes tábuas do assoalho gemem sob meus pés. A cozinha me parece diferente. Ou será que a cozinha que eu guardava na memória era de outra fazenda, a da Boa Esperança, onde a gente costumava ir nas férias de junho? E o quarto onde eu dormia? Não sei mais qual é. Mas na sala está a grande mesa de jantar de meu avô, a grande mesa preta onde a família se juntava-me lembro da hora do almoço, os homens chegavam de cabelos suados; me lembro da hora do jantar, estava escurecendo, acendia-se um grande lampião e, ao longo dos longos bancos, corria um murmúrio - "a bênção, a bênção, Deus te abençoa, boa noite, boa noite, a bênção" - era a gente se cumpri- mentando e se abençoando porque chegara a noite. Na verdade não conheci meu avô materno, apenas a avó magra e sempre doente, que, entretanto, não recor- do aqui, mas em nossa casa de Cachoeiro. De tudo ficou apenas a grande mesa escura. Há nomes gravados a canivete, eu sei; vejo aqui o nome de um primo-irmão; se eu afastasse esse saco de 93 CASA DOS BRAGA milho talvez encontrasse também o meu; talvez tenha sumido. Olho o pequeno córrego que vem murmurando no meio do matinho (tinha sanguessugas), depois desce pelas pedras. Não me lembro de muitas árvores, me lem- bro muito bem daquele bambual na curva do morro, no caminho da fazenda chamada Espírito Santo, onde nas- ceram meus irmãos; depois o caminho entrava na mata, era fresquinho, a gente parava o cavalo num córrego para ele beber água, ouço as patas do animal dentro da água, vejo a água escorrendo dos freios - "ruma, cavalo!" - as patas pisavam com mais força - "bloc bloc bloc" - na água e na lama, o cavalo galgava a margem do outro lado, então a gente sentia vontade de dar um galope. De repente me assaltam essas recordações, outras recorda- ções: tio Adrião estava brigado com meu pai... Antes de passar o moinho de fubá ainda olho a velha casa, tão triste agora sem sua varanda; lembro as gran- des tempestades de verão, as nuvens pretas se juntando em cima da pedra do Frade, túmidas de raios e trovões. Qualquer hora o casarão se abaterá para sempre, como velhas árvores já se abateram. Como o velho Coelho e todos os seus filhos homens já morreram - como seu neto, cansado e sem remorso, também pode morrer Encontro o amigo Mário em seu escritório, à volta com papéis e barbantes, fazendo um grande embrulho. São encomendas e presentes que vai mandar para sua gente em Santa Catarina. Inábil e carinhosamente ele compõe o grande embrulho, que sai torto e frágil. Não me propo- nho a ajudá-lo, porque sou seu irmão em falta de jeito. Aparece, a certa altura, um rapazinho, que olha em si- lêncio a faina de Mário. Este compreende a ironia e com- paixão do tímido sorriso do rapaz e, com um gesto, pede sua ajuda. Em meio minuto, o moço desmancha tudo e faz daquele embrulho informe e explosivo um pacote sim- ples, sólido e firme. Mas não estou pensando nessa qualidade que sem- pre me pareceu milagrosa, essa certeza das mãos em or- denar as coisas para nós rebeldes e desconjuntadas, para esses privilegiados, obedientes e fáceis. Penso nas mãos que, em uma praia distante, vão desembrulhar essas coi- sas; na alegria com que no fundo da província a gente recebe os presentes. *** OS EMBRULHOS DO RIO Quando meus pais ou minha irmã voltavam de um ` passeio ao Rio, nós todos, os menores, ficávamos olhan- do com uma impaciência quase agônica as malas e vali- ses que o carregador ia depondo na sala. A alegria maior -não estava no presente que cada um recebia, estava no mistério numeroso das malas, na surpresa do que ia sur- gindo. Uma grande parte, que despertava exclamações 97 CASA DOS BRADA deliciadas das mulheres, não nos interessava: eram saias, blusas, lenços, cortes de trapos e fazendas coloridas, jói- as e bugigangas femininas. A mais distante das primas e a mais obscura das empregadas podia estar certa de ga- nhar um pequeno presente: a alegria era para todos da casa e da família, e se derramava em nossa rua pelos vizi- nhos e amigos. Além dos presentes havia as inumeráveis encomendas, três metros disto ou daquilo, um sapatinho de tal número para combinar com aquele vestidinho grená, fitas, elásticos, não sei o que mais. Se esse mundo de coisas de mulher nos deixava frios e impacientes, os brinquedos e os presentes para homens e coisas para uso caseiro eram visões sensacionais. jo gos de papelões coloridos, coisas de lata com molas im- previstas, fósforos de acender sem caixa, abridores de latas, sopa juliana seca, isqueiros, torradeiras de pão, coisas elétricas, brilhantes e coloridas - todo o mun- do mecânico insuspeitado que chegava ao nosso canto de província. E também programas de cinema, cardá- pios de restaurantes... Seriam, afinal de contas, coisas de pouco valor: os grandes engenhos modernos estrangeiros estavam fora de nossas posses e de nossa imaginação. Mas para nós tudo era sensacional; e depois de esparramado sobre a mesa ou pelo chão o conteúdo da última valise, e distribuídos todos os presentes, ainda ficávamos algum tempo atur- didos por aquela sensação de opulência e de milagre. E o dia inteiro ouvindo a conversa dos grandes, que davam notícias de amigos, comentavam histórias, falavam da última revista de Araci Cortes, no Recreio, da última 99 CASA DOS BRAGA comédia de Procópio ou de Leopoldo Fróis ou da doença dos nossos parentes de Vila Isabel - ainda ficávamos tontos, pensando nesse Rio de Janeiro fabuloso, tão pró- ximo e tão distante. Aos nove anos de idade, vim pela primeira vez ao Rio, trazido por minha irmã. Voltei muitas vezes; estou sem- pre voltando. Aqui já me aconteceram coisas. Mas o gran de encanto e o máximo prestigio do Rio estavam nas malas e nos embrulhos abertos diante dos olhos assom- brados do menino da roça. *** MEMÓRIAS DE UM AJUDANTE DE FARMÁCIA Rapazola, andei trabalhando numa farmácia de paren- tes, para ter um dinheirinho meu. Era a Farmácia Cen- tral, de Cachoeiro de Itapemirim. Eu lavava vidros com grãos de chumbo, entregava uma ou outra encomenda mais urgente, ajudava no balcão - e, se não cheguei a ser uma glória da farmacologia capi xaba, pelo menos aprendi a fazer limonada purgativa e água vienense. Receitas mais complicadas o farmacêutico avia- va; eu via-o com respeito misturar líquidos, pesar pós, ro- lar pílulas, espalhar pomadas com espátula... Às vezes ele me encarregava de copiar a receita do médico em um pequeno rótulo oval com o nome da far- mácia impresso, e colocá-lo no frasco. Além disso, eu era encarregado de "capsular" a ro- lha, isto é, de fazer aquele pequeno capuz de papel plis- sado na hora e amarrado ao gargalo por um barbante. 103 CASA DOS BRAGA Custei a aprender isso, e fazia tão mal, que às vezes o far- macêutico impaciente me tomava o vidro e, num segun- do, com seus dedos ágeis, realizava uma verdadeira obra- prima, com as pequenas dobras do plissê todas iguais e um nó quase invisível. "Sem jeito mandou lembranças", me dizia ele. No balcão eu vendia preparados - como Capivarol, Bromil, Elixir de Inhame, Vinho Reconstituinte, Saúde da Mulher, Emulsão de Scott, Xarope de Salsaparrilha do Dr. Ayer (o mais caro) ou então vidrinhos de elixir paregórico feitos na farmácia mesmo ou latinhas de po- mada mercurial, tostões de sena, maná e rosa, coisas as- sim. A farmácia era do meu cunhado, Dr Paraíso, e do meu irmão Jerônimo; depois entrou de sócio o primo Chico Cristóvão. Eu obedecia às ordens de outro primo, o Costinha (Manuel Emílio da Costa), que depois faria carreira no ramo, além de ser quiper do Estrela do Norte EC., do qual meu irmão Newton haveria de ser "beque de escora" - ou zagueiro direito, como se diz hoje. Mas lá vou eu escorregando na conversa e mudando de as- sunto. Relembrando agora esse tempo com o Costinha, ele me emprestou um exemplar da bíblia dos farma- cêuticos, o famoso Formulário de Chernoviz. Trata-se da 154 edição, de 1892, e "consideravelmente aumen- tada e posta a par da ciência, acompanhada de 455 figuras intercaladas no texto, de seis mapas balneários, de um suplemento de 258 páginas". Nesse suplemen- to está o texto das comunicações feitas à Academia de Medicina de Paris pelo Sr. Pasteur "nas memorá- 104 RUBEM BRAGA veis sessões de 26 de outubro de 1885 e 2 de março de 1886", em que ele conta dramaticamente sua luta vito- riosa contra a raiva e o carbúnculo. O Formulário, que é também um guia médico, descreve as doenças e os re- médios, inclui as plantas medicinais indígenas do Brasil, as águas minerais do Brasil e da Europa, e ensina prati- camente tudo que àquela altura era possível e preciso saber fazer: pílulas, poções, xaropes, linimentos, elixires e pomadas, cremes e emulsões, ungüentos e tinturas, cápsulas, vinhos, bálsamos e pós, fumigações, cataplas- mas e tisanas. Duas fórmulas terríveis de que eu sempre conse- gui escapar e, só por isto, acho que tive infância feliz: óleo de rícino e óleo de fígado de bacalhau. O livro tem nada menos de 1.560 páginas; é, sem dúvida al- guma, o mais representativo da cultura da época, no seu ramo. Chernoviz (Pedro Luís Napoleão) foi um médico polonês (1812-1881) que se formou em medicina em 106 RUBEM BRAGA Paris e viveu no Brasil durante quinze anos - membro da Academia Imperial de Medicina do Rio de janeiro, Cavaleiro da Ordem de Cristo e Oficial da Ordem da Rosa. É possível que muitas receitas que ele nos dá não façam mais efeito hoje em dia. Mas que vontade de vol- tar a essa medicina antiga e comprar, por exemplo, uma bisnaga do Bálsamo Tranqüilo, que com esse nome até à alma deve fazer bem. Talvez seja difícil hoje conseguir um pouco do ver- dadeiro almíscar, "a substância que se acha numa bolsa situada entre o umbigo e as partes genitais de um veado chamado moscho que vive na Ásia Central". O almíscar era usado contra histerismo, tétano, hidrofobia, tifo, de- lírio e convulsões e produzia "uma excitação notável nos órgãos genitais". Por falar nisso, o livro ensina o tratamento das polu- ções noturnas: o paciente (ou impaciente) deve dormir deitado de lado e não de costas, fazer abluções com água fria e regime vegetal, e usar outros recursos, mas há uma afirmação confortadora: "O casamento cura as poluções." Santo remédio! Há receitas de veneno para rato, tinta simpática para espião escrever e tinta indelével para marcar roupa, des- truidores de percevejos, muitas águas-de-colônia com essências de flor de laranjeira, canela, alfazema, alecrim, limão e bergamota. Chernoviz era um sábio. 107 CASA Dos BRAGA ***O COMPADRE POBRE O coronel, que então morava já na cidade, tinha um compadre sitiante que ele estimava muito. Quando um filho do compadre Zeferino ficava doente, ia para a casa do coronel, ficava morando ali até ficar bom, o coronel é que arranjava médico, remédio, tudo. Quase todos os meses o compadre pobre mandava um caixote de ovos para o coronel. Seu sítio era retirado umas duas léguas de uma estaçãozinha da Leopoldina, e com padre Zeferino despachava o caixote de ovos de lá, frete a pagar. Sempre escrevia no caixote: CUIDADO É ovos - e cada ovo era enrolado em sua palha de milho com todo carinho para não se quebrar na viagem. Mas, que o quê: a maior parte quebrava com os solavancos do trem. Os meninos filhos do coronel morriam de rir abrin- do o caixote de presente do compadre Zeferino; a mu- lher dele abanava a cabeça como quem diz: qual... Os meninos, com as mãos lambuzadas de clara e gema, iam separando os ovos bons. O coronel, na cadeira de balan- 111 CASA DOS BRAGA ço, ficava sério; mas, reparando bem, a gente via que ele às vezes sorria das risadas dos meninos e das bobagens que eles diziam; por exemplo, um gritava para o outro: - Cuidado, é ovos! Quando os meninos acabavam o serviço, o coronel perguntava: - Quantos salvaram? Os meninos diziam. Então ele se voltava para a mu- lher: - Mulher, a quanto está a dúzia de ovos aqui no Cachoeiro? A mulher dizia. Então ele fazia um cálculo do frete que pagara, mais do carreto da estação até a casa e coça- va a cabeça com um ar engraçado: - Até que os ovos do compadre Zeferino não estão me saindo muito caros desta vez. Um dia perguntei ao coronel se não era melhor avi- sar ao compadre Zeferino para não mandar mais ovos; afinal, para ele, coitado, era um sacrifício se desfazer da queles ovos, levar o caixote até a estação para despachar; e para nós ficava mais em conta comprar ovos na cida- de. O coronel me olhou nos olhos e falou sério: - Não diga isso. O compadre Zeferino ia ficar mui- to sem graça. Ele é muito pobre. Com pobre a gente tem de ser muito delicado, meu filho. 112 RUBEM BRAGA ***OS SONS DE ANTIGAMENTE Conta-se na família que, quando meu pai comprou nossa casa de Cachoeiro, esse relógio já estava na parede da sala; e que o vendedor o deixou lá, porque naquele tem- po não ficava bem levar. (Hoje, meu Deus, carregam até uma lâmpada de 60 velas, até o bocal da lâmpada, e deixam aquele fio solto no ar.) Há poucos anos trouxe o relógio para minha casa de Ipanema. Mais velho do que eu, não é de admirar que ele tresande um pouco. Há uma corda para fazer andar os ponteiros, outra para fazer bater as horas. A primeira é forte, e faz o relógio se adiantar: de vez em quando alguém me chama a atenção, dizendo que o relógio está adiantado quinze ou vinte minutos, e eu digo que é a hora de Cachoeiro. Em matéria de som, vamos muito mais adiante. É comum o relógio marcar, digamos, duas e meia, e bater solenemente nove horas. "Esse relógio não diz coisa com coisa", comenta um amigo severo. Explico que é uma pequena disfunção audiovisual. Na verdade essa defasagem não me aborrece nada; há muito desanimei de querer as coisas deste mundo to- das certinhas, e prefiro deixar que o velho relógio badale a seu bel-prazer. Sua batida é suave, como costumam ser as desses Ansonias antigos; e esse som me carrega para as noites mais antigas da infância. Às vezes tenho a ilu- CAsA Dos BRAGA são de ouvir, no fundo, o murmúrio distante e querido do Itapemirim. Que outros sons me chegam da infância? Um caca- rejar sonolento de galinhas numa tarde de verão; um canto de cambaxirra, o ranger e o baque de uma portei- ra na fazenda, um tropel de cavalos que vinha vindo e depois ia indo no fundo da noite. E o som distante dos bailes do Centro Operário, com um trombone de vara ou um pistom perdidos na madrugada. Sim, sou um amante da música, ainda que despreza- do e infeliz. Sou desafinado, desentoado, um amigo diz que tenho orelha de pau. Outro dia fiquei perplexo ou vindo uma discussão de jovens sobre um som que eu achava perfeito e eles acusavam de flutter, wow, rumble, hiss e outros males estranhos. Meu amigo Mario Cabral dizia que queria morrer ouvindo Jesus, alegria dos homens; nunca soube se lhe fi- zeram a vontade. A mim, um lento ranger de porteira e seu baque final, como na fazenda do Frade, já me bas- 117 CASA DOS BRAGA tam. Ou então a batida desse velho relógio, que marcou a morte de meu pai e, vinte anos depois, a de minha mãe; e que eu morra às quatro e quarenta da manhã, com ele marcando cinco e batendo onze, não faz mal; até é capaz de me cair bem. 118 RUBEM BRAGA *** RECEITA DE CASA Ciro dos Anjos escreveu, faz pouco tempo, uma de suas páginas mais belas sobre as antigas fazendas mineiras. Ele dá os requisitos essenciais a uma fazenda bastante lírica, incluindo, mesmo, uma certa menina de vestido branco. Nada sei dessas coisas, mas juro que entendo alguma coisa de arquitetura urbana, embora Caloca, Aldari, Jorge Moreira e Ernani, pobres arquitetos profis- sionais, achem que não. Assim vos direi que a primeira coisa a respeito de uma casa é que ela deve ter um porão, um bom porão com entrada pela frente e saída pelos fundos. Esse porão deve ser habitável porém inabitado; e ter alguns quartos sem iluminação alguma, onde se devem amontoar móveis antigos, quebrados, objetos desprezados e baús esqueci- dos. Deve ser o cemitério das coisas. Ali, sob os pés da família, como se fosse no subconsciente dos vivos, jaze- rão os leques, as cadeiras, as fantasias do carnaval do ano de 1920, as gravatas manchadas, os sapatos que outrora andaram em caminhos longe. Quando acaso descerem ao porão, as crianças hão de ficar um pouco intrigadas; e como crianças são animais levianos, é preciso que se intriguem um pouco, tenham uma certa perspectiva histórica, meditem que, por mais incrível e extraordinário que pareça, as pessoas grandes também já foram crianças, a sua avó já foi a bailes, e outras coisas instrutivas que são um pouco tristes mas hão 121 CASA DOS BRAGA 122 RUBEM BRAGA de restaurar, a seus olhos, a dignidade corrompida das pessoas adultas. Convém que as crianças sintam um certo medo do porão; e embora pensem que é medo do escuro, ou de aranhas caranguejeiras, será o grande medo do Tempo, esse bicho que tudo come, esse monstro que irá tragan- do em suas fauces negras os sapatos da criança, sua roupinha, sua atiradeira, seu canivete, as bolas de vidro, e afinal a própria criança. O único perigo é que o porão faça da criança, no fu- turo, um romancista introvertido, o que se pode evitar desmoralizando periodicamente o porão com uma lim- peza parcial para nele armazenar gêneros ou utensílios ou mais facilmente tijolos, por exemplo; ou percorren- do-o com uma lanterna elétrica bem possante que trans- formará hienas em ratos e cadafalsos em guarda-louças. Ao construir o porão, deve o arquiteto obter um cer- 123 CASA Dos BRAGA to grau de umidade, mas providenciar para que a porta de uma das entradas seja bem fácil de arrombar, porque um porão não tem a menor utilidade se não supomos que dentro dele possa estar escondido um ladrão assassino, ou um cachorro raivoso, ou ainda anarquistas búlgaros de passagem por esta cidade. Um porão supõe um alçapão aberto na sala de jan- tar. Sobre a tampa desse alçapão deve estar um móvel pesado, que fique exposto ao sol ao menos duas horas por dia, de tal modo que à noite estale com tanto gosto que do quarto das crianças dê a impressão exata de que o alçapão está sendo aberto, ou o terrível meliante já este- ja no interior da casa. 124 RUBEM BRAGA Não preciso fazer referência à varanda, nem ao carra- manchão, nem à horta e jardim; mas se não houver ao menos um cajueiro, como poderá a família viver com de cência? Que fará a família no verão, e que hão de fazer os sanhaços, e as crianças que matam os sanhaços, e as mu- lheres de casa que precisam ralhar com as crianças devido às nódoas de caju na roupa? Imaginem um menino de nove anos que não tem uma só mancha de caju em sua camisi- nha branca. Que honras poderá esperar essa criança na vida, se a inicia assim sem a menor dignidade? Mas voltemos à casa. Ela deve ter janela para vários lados e se o arquiteto não providenciar para que na rua defronte passem bois para o matadouro municipal ele é um perfeito fracasso. E o piso deve ser de tábuas largas, jamais enceradas, de maneira que lavar a casa seja uma das alegrias domésticas. Depois de lavado o assoalho, são abertas as portas e janelas, para secar. E quando a ma- deira ainda estiver um pouco úmida, nas tardes de ve- rão, ali se devem deitar as crianças, pois eis que isso é doce. O que é essencial em uma casa - e entretanto quantos arquitetos modernos negligenciam isso, influen- ciados por idéias exóticas! - é a sala de visitas. Seu lu gar natural é ao lado da sala de jantar Ela deve ter mó- veis incômodos e bem envernizados, e deve permanecer rigorosamente fechada através das semanas e dos meses. Naturalmente se abre para receber visitas, mas as visitas dessa categoria devem ser rigorosamente selecionadas em conselho de família. As crianças jamais devem entrar nessa sala, a não ser 125 CASA Dos BRAGA quando chamadas expressamente para cumprimentar as visitas. Depois de apertar a mão da visita, e de ouvir uma pequena referência ao fato de que estão crescidas (pois em uma família honrada as crianças estão sempre muito crescidas), devem esperar ainda cerca de dois minutos até que a visita lhes dirija uma pilhéria em forma de per- gunta; por exemplo: se é verdade que já tem namorada. Devem então sorrir com condescendência (podem utili- zar um pequeno ar entre a modéstia e o desprezo) e se retirar da sala. Não desejo me alongar, mas não posso deixar de cor- rigir uma omissão grave. Trata-se de uma gravura, devidamente emoldurada, com o retrato do Marechal Floriano Peixoto. Essa gra- vura deve estar no porão, não pregada na parede, mas em todo caso visível mediante a lanterna elétrica, em cima de um guarda-comida empoeirado, apoiada à pa- rede. Pois é bem inseguro o destino de uma família que não tem no porão, empoeirado, mas vigilante, um retra- to do Marechal de Ferro, impertérrito, frio, a manter na treva e no caos, entre baratas, ratos e aranhas, a dura ordem republicana. 127 CASA DOS BRAGA 129 *** O BRAGA Lygia Marina Moraes Rubem Braga é talvez o único de nossos escritores a entrar para a história da literatura brasileira quase exclusivamente como cro- nista. A ele devemos ter devolvi- do à crônica a condição de per- manência como gênero literário. O que Rubem Braga escreve não é apenas um trabalho jornalístico, mas a criação de um escritor cujo tema é colhido na observação pessoal dos fatos da vida cotidia- na e dos acontecimentos de nos- so tempo. 131 CASA DOS BRAGA Rubem Braga nasceu em Cachoeiro de Itapemirim, Espírito Santo, a 12 de janeiro de 1913, filho de Francis- co de Carvalho Braga e Rachel Cardoso Coelho Braga. Morreu no Rio, em 19 de dezembro de 1990. Seu pai, paulista, foi o primeiro prefeito de Cachoeiro, exerceu diversas profissões, como as de lavrador e comerciante, até chegar à de tabelião. Sua mãe era filha de um peque- no fazendeiro do município. O menino Braga aprendeu a ler em casa e, ao entrar para a escola (Centro Operário e de Proteção Mútua), foi direto para o segundo ano primário. Começou o cur so secundário no Ginásio Pedro Palácios, em sua cidade natal, e foi terminá-lo em Niterói. Era um aluno regular; chegou a ser reprovado numa das séries do ginásio, mas sempre gostou muito de ler. Em 1928, aos quinze anos, começa a escrever no jornal da família, fundado pelos irmãos Jerônimo e Armando, o Correio do Sul, de Ca, choeiro de Itapemirim. Em 1929, matriculou-se na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, onde fez os dois primeiros anos do curso, transferindo-se depois para a Faculdade de Belo Hori zonte e formando-se em 1932. Devido às agitações polí- ticas da época, seu curso teve a duração de apenas qua- tro anos. Por indicação do irmão Newton, poeta e jornalista então radicado em Minas, Rubem consegue o primeiro emprego aos dezenove anos, ainda estudante, no Diário da Tarde, de Belo Horizonte. Publica a primeira reporta- gem no dia 7 de março de 1932. Em seguida, passa a as- sinar crônicas e faz a cobertura para os Diários Associa- dos da revolução constitucionalista de 1932, na frente de batalha, o Túnel da Mantiqueira. Nunca exerceu a advocacia, pois foi desde cedo ab- sorvido pelo jornalismo, firmando-se como cronista, co- mentarista político e repórter. Trabalhou em diversos jornais e revistas de São Paulo, Recife, Belo Horizonte, Porto Alegre e Rio de janeiro, cidades onde residiu. Em 1935, fundou, no Recife, a Folha do Povo. Em 1936, pu- blicou em livro sua primeira seleção de crônicas, O con- de e o passarinho. Várias vezes foi detido ou perseguido pela oposição a governos. Acompanhou a Força Expedicionária Brasileira na campanha de 1944-45, da Segunda Guerra Mundial, como correspondente do Diário Carioca Em 1946, fez a cobertura da primeira eleição de Perón, na Argentina, e, em 1956, da segunda de Eisenhower nos Estados Uni- dos. Sempre gostou muito de viajar, escrevendo para vá- rios jornais brasileiros reportagens sobre os países onde esteve, como Paraguai, Colômbia, Cuba, México, Esta- dos Unidos, Portugal, França, Itália, Inglaterra, Grécia, Angola, Moçambique, África do Sul e India. Viveu em Paris durante o ano de 1950, de onde enviou regularmen- te crônicas para o Correio da Manhã 133 CASA DOS BRAGA Foi um dos fundadores da revista Diretrizes e do se- manário Comício. Em 1955, chefiou o Escritório Comercial do Brasil em Santiago do Chile, exonerando-se a pedido em novem- bro do mesmo ano. Em 1961, foi nomeado embaixador do Brasil em Marrocos, na África, posto que ocupou até 1963, quando pediu demissão. Foi sócio de Fernando Sabino na Editora do Autor e, a partir de 1967, na Editora Sabiá, da qual se desfizeram em 1971. Viveu no Rio de janeiro a maior parte da vida. En- volvido em outras atividades, passou a escrever crônicas para jornais uma vez por semana, crônicas por ele orga nizadas, periodicamente, em livros. Dos seus trabalhos de tradução destaca-se Terra dos homens, de Antoine de Saint-Exupéry. Publicou, ainda, um livro de versos e uma versão da carta de Caminha, além de diversas versões de clássicos da literatura em parceria com seu sobrinho Edson. A partir de 1975 - e nos quinze anos seguintes -, trabalhou no jornalismo da TV Globo. 134 RUBEM BRAGA Quem entra em Cachoeiro pela avenida Newton Braga, margeando o rio Itapemirim, encontra um casa- rão no número 162 da rua 25 de Março. Uma placa no portão informa: CASA DOS BRAGA. Ali funciona desde 1987 a principal biblioteca pública da cidade, mantida pela prefeitura. Toda reformada para abrigar este cen- tro cultural, guarda na antiga sala de visitas lembran- ças da família Braga, principalmente de Newton, o amado poeta de Cachoeiro, e de seu irmão mais novo, Rubem. No porão funciona o serviço de empréstimo de livros. No jardim, protegido por muros, ainda à sombra do pé de fruta-pão, mesas e bancos para quem prefira ler ao ar livre. A casa da família Braga, construída por volta de 1910, é considerada modelo típico do estilo eclético da arqui- tetura brasileira da época. Foi adquirida pelo primeiro prefeito da cidade, Fran- cisco de Carvalho Braga, pai de Rubem, em 1912, e com- prada setenta e três anos depois, em 1985, pela prefeitura. Inaugurada como espaço cultural no dia 29 de abril de 1987, tem cerca de 150 metros quadrados, só na par- te de cima, destinados à guarda do acervo e à leitura. Para obter estas informações foi fundamental a leitura do trabalho de Maria da Penha Sunderhus e Rosemary de Freitas Soares, do curso de arquitetura da Univer- 137 CASA Dos BRAGA sidade Federal do Espírito Santo, realizado em 1987 - ano da inauguração da biblioteca. Eis o endereço do centro cultural: CASA DOS BRAGA Rua 25 de Março, 162 Cachoeiro de Itapemirim - ES 29300-000 138 RUBEM BRAGA Il Impresso no Brasil pelo Sistema Cameron da Divisão Gráfica da DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina 171 - Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 - Tel.: 2585-2000 --=================14624317486117925219719150--