Autor: Roald Dahl Título do Livro: Historinhas em versos perversos Título Original: Revolting Rhymes Editora: Moderna Ano de publicação: 2007 Gênero: Infanto-juvenil Numeração: rodapé - Nº de páginas: 54 As páginas que não constam da seqüência contêm ilustrações. Os contos de fadas nunca mais foram os mesmos depois que o escritor inglês Roald Dahl publicou essas "Historinhas em versos perversos". Não foi à toa que ele as chamou de Revolting Rhymes e escolheu para recontar em "versos detestáveis" seis dos mais tradicionais contos de fadas. O objetivo foi, com certeza, provocar os adultos que acreditam em crianças bem comportadas e fazer rir as crianças de "carne e osso", que gostam (muito) de brincar de virar de ponta-cabeça um mundo que lhes impõe tantas regras. As ilustrações, irreverentes e engraçadas, são do grande parceiro e amigo de Roald Dahl durante boa parte da vida: o também inglês Quentin Blake. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Dahl, Roald Historinhas em versos perversos / Roald Dahl ; ilustrações de Quentin Blake ; tradução de Luciano Vieira Machado. - São Paulo : Moderna, 2007. Título original: Revolting rhymes ISBN 978-85-16-05461-8 1. Contos de fadas - Adaptação 2. Literatura infanto-juvenil 3. Narrativa poética 4. Poesias humorísticas 5. Poesias infantis I. Blake, Quentin. II. Título 07-4640 CDD-028.5 Índice para catálogo sistemático: 1. Poesias : Adaptação de contos de fadas : Literatura infanto-juvenil 028.5 Todos os direitos reservados no Brasil pela Editora Moderna Ltda. Rua Padre Adelino, 758, Belenzinho 03303-904 - São Paulo, SP Vendas e atendimento: tel.: (11) 6090-1500 Fax: (11) 6090-1501 www.moderna.com.br Impresso no Brasil, 2007 Índice: 1- Cinderela, Pág. 8 2- João e o Pé de Feijão, Pág. 16 3- Branca de Neve e os Sete Anões Pág. 24 4- Cachinhos Dourados e os Três Ursinhos, Pág. 34 5- Chapeuzinho Vermelho e o Lobo, Pág. 42 8- Os três Porquinhos, Pág. 48 ** 1- Cinderela Quem contou essa história, contou tudo errado. A coisa é mais feia do que foi contado. A história errada, enganosa e falaz, foi falsificada muito tempo atrás, pra ficar mais leve, cheia de alegria e agradar as crianças - que patifaria! O começo até que dá para engolir: Aquela parte em que, em vez de irem dormir, as Irmãs Feiosas, encarnação do mal, vão empetecadas ao Baile Real, e deixam Cinderela, na maior aflição, trancada a sete chaves num sujo porão, onde ratos feios, que há muito não comem, mordiscam seus pés pra matar a fome. "Tirem-me daqui!", começa a gritar. A Fada Madrinha a ouve, pois estava lá, E aparece à jovem, num grande clarão: "Está tudo bem, me diz, sim ou não?" "Tudo bem?", diz a jovem, bastante ofendida, "Não vê como estou, toda suja e fedida?!" Ela esmurra a parede num gesto brutal E grita: "Leve-me agora ao Palácio Real! Hoje tem Discoteca no grande salão. Todo mundo está lá, só eu é que não! 10 Quero um vestido e carruagem elegante! Brincos bem bonitos, broche de diamante! Chinelos de prata (claro que um par) E uma meia-calça, para completar! Garanto a você: produzida assim, O bonitão do Príncipe vai cair por mim!" Diz a Fada: "Não vejo motivo pra desesperar", E agita com força a varinha no ar, E na mesma hora - que fenomenal - lá está Cinderela no Baile Real! As Irmãs Feiosas ficam aborrecidas vendo Cindy ali, tão feliz da vida, dançando com o Príncipe e apertando-o tanto que ele perde o fôlego, cheio de espanto. Soa a meia-noite. Ela grita "Ih! Mais que depressa, tenho de partir!" Grita o Príncipe "Oh, não! Ah!" E agarra-lhe o vestido, pra que ela não vá. Cinderela então grita: "Agora me larga!" E de cima a baixo o vestido se rasga. Além da calcinha, não lhe sobra nada, E até o sapatinho perde na escada. Ao ver o calçado, o Príncipe pirou. Pulou sobre ele e o agarrou, "A jovem em quem o sapato servir Será minha noiva, escrevam aí. 11 Vou de casa em casa, por toda a cidade, Até encontrar minha cara-metade!" E então, distraído - ora, veja! -, Pôs o sapato sobre um barril de cerveja. Uma das Feiosas, muito espertinha, (A que tinha a cara cheia de espinhas) Pegou o sapato - olha que malvada! - E, mais que depressa, tacou na privada. Então, calmamente, colocou no lugar Seu chinelo esquerdo essa é de amargar! Ah-ha, estão vendo? A história se enrola E daqui por diante é só bola fora. Na manhã seguinte, logo bem cedinho, O Príncipe já está com o pé no caminho. Bate em toda porta, choupana ou castelo, Tentando encontrar em quem sirva o chinelo. O calçado é bem largo e muito comprido (Qualquer pé normal nele fica perdido.) E ainda por cima é fedorento (O pé que o calça deve ser grudento). Vem gente correndo de todo lugar Experimenta a sandália - quem disse que dá? Chega a vez das Feiosas - que animação! Uma experimenta - O Príncipe diz "Não!" 12 Ela grita: "Sim! Cai como uma luva! Vais casar comigo com sol ou com chuva!" Ele empalidece, só falta cair. "Pelo amor de Deus, me tirem daqui!" "Oh, não", diz a Feia, "Você prometeu! Vai ter de casar, agora és só meu!" "Cortem-lhe a cabeça!", grita ele então. E a cabeça rola, na hora, no chão. Ele dá risada e faz pouco caso: "Sem cabeça assim, ficas um arraso!" A segunda Feiosa vem e grita "Ula-lá Chegou minha vez de experimentar!" Ele puxa a espada: "Não quero enguiço, Em vez de chinelo, experimente isso". E a cabeça dela também vai pro chão, rola no soalho, faz um barulhão. Nessa hora Cindy, que está na cozinha, ouve a barulheira e vem depressinha espiar na porta pra ver o que há. "Que barulho é esse, podem me explicar?" "Cuide de sua vida", diz o malvadão. Cindy quase morre, de tanta aflição. "Meu Príncipe!", ela pensa, já quase a chorar. "Ele corta cabeças, que pessoa má!" 13 "Como é que eu iria casar com um sujeito que mata sorrindo? Esse não tem jeito!" Ele ainda berra: "Quem é a megera? Cortem-lhe a cabeça, acabem com ela!" E naquela hora, em meio a um clarão, a Fada Madrinha vem de supetão, sacode a varinha pra lá e pra cá e fala pra Cindy não se preocupar, "Formule um desejo, que eu vou atender. Peça o que pedir, faço pra você!" E Cindy responde: "Oh, querida Fada, desta vez não quero ser tão apressada. Príncipe já não quero, nem quero dinheiro, O que vi bastou, chega de pampeiro. O que quero agora é um homem decente, mas sei como é difícil isso atualmente". No minuto seguinte, sem ter feito nada, com um bom marido estava casada. Era um homem simples e tinha profissão, vendia geléia pra ganhar o pão. Não podia haver casal mais contente. E juntos viveram, felizes, pra sempre. 15 ** 2- João e o Pé de Feijão "Estamos a zero, sem nem um tostão", diz a mãe aflita ao filho João. "Saia por aí, procurando alguém que compre esta vaca - peça ao menos cem - diga que é sadia, só não vá dizer que está muito velha, logo vai morrer." João levou a vaca - velha de doer - e só voltou pra casa ao anoitecer. "Oh, mamãe querida", diz ele a sorrir. "Você não adivinha o que eu tenho aqui. Troquei pela vaca, eu sou mesmo o tal. Um belo negócio - sensacional." "Deixa de conversa, ó menino chato, Deves ter vendido a preço barato." Quando ele mostrou um mísero feijão, a mãe ficou verde feito um limão. Pulando de raiva, se pôs a berrar: "Eu não acredito, ó criança má, tu és doido mesmo, és um paspalhão. Trocaste uma vaca por esse feijão?" E enfurecida - parecendo um bicho - jogou o feijão na lata de lixo. E com toda a força a mulher malvada deu-lhe uma surra - e muito bem dada - 18 usando o cabo (ora, vejam só!) de um velho e sujo aspirador de pó. Às dez da noite, sem ninguém notar, pequeno feijão começou a brotar. De manhã ele tinha crescido e tanto que causou aos dois o maior espanto. "Reconheça agora, mamãe, ó descrente! O feijão é melhor que a vaca da gente!" A mãe diz: "Ora, seu maluco, você quer me dizer onde estão os feijões para a gente colher? Não tem nem unzinho, seu cabeça oca". "Oh, não!", grita João. "Você está louca? Não vê que no alto existe um tesouro? Cada folha lá é de puro ouro!" E não é que o garoto estava com a razão? Só agora a mãe nota, no alto, o clarão, das folhas de ouro que feito um farol brilham e rebrilham à luz do sol! Ela fica agitada e levanta a voz: "Vendo meu fusquinha, compro um Rolls Royce! Menino idiota, não fique aí mudo, suba lá bem depressa e me traga tudo!" Joãozinho era esperto feito um raposão e logo escalava o pé de feijão. Cada vez mais alto o danado subia, mas perto do topo - Oh! Que agonia! 19 Uma coisa horrível, de dar calafrio: um pouquinho acima o menino ouviu uma voz potente, quase um trovão, que agitava tudo feito um furacão. Aos berros falava: "TÁ FRIO, TÁ FRIO, TÁ QUENTE, ESTOU SENTINDO UM CHEIRO DE GENTE!" Joãozinho, assustado, coração na mão, desce bem depressa, logo está no chão. "Ah, mãe", diz ele. "Acredite em mim, lá no alto tem uma coisa ruim! Eu o vi, oh, mãe, senti um medão! Um gigante horrível, com faro de cão!" "Com faro de cão?", diz a mãe irritada. "Você deve andar de cabeça virada!" "Juro, mãe, seu filho não mente! Ele diz que sentiu um cheiro de gente!" "Mas ele não tinha como não sentir. Toda noite te falo, na hora de dormir, pra tomar um banho, ó criança má, pois andas fedendo feito um gambá. Mas tu não me ouves, e eu tapo o nariz por causa do cheiro, ó pobre infeliz!" "Se és tão limpinha - responde-lhe João - sobe então tu mesma no pé de feijão." Grita a mãe: "Duvidas? Pois eu subo sim! Ainda há vida cá dentro de mim!" 20 E levantando a saia até o joelho pôs-se a subir, veloz feito um coelho. Será que o gigante - pensava o João - sentiria o cheiro da mãe - sim ou não? Olhando pro alto, Joãozinho, na escuta, tenta ouvir o gigante, sua fala bruta. De lá das alturas, bem longe do chão, vem um som terrível de mastigação. João ouve o resmungo do homenzarrão "O PETISCO FOI BOM E GOSTOSO, CONTUDO, (isso em tom de raiva) POR DEMAIS OSSUDO." "Oh, meu Deus do céu", o João exclama, "O feio gigante comeu minha mama! Sentiu o seu cheiro e, sem tardança, Pegou a coitada e passou-a pra pança! " João ergue a vista, põe-se a contemplar a árvore de ouro e começa a cismar. Ele fala baixinho "Oh, não! Puxa vida, estou vendo que um banho é a única saída, se quiser que o gigante não sinta o meu cheiro, uma vez na vida encaro um chuveiro." Ele entra correndo feito um furacão e mais que depressa pega o sabão. 22 Esfrega o corpo com muito cuidado e lava o cabelo muito bem lavado. Escova os dentes, assoa o nariz, e sai perfumado, contente e feliz. De novo ele sobe no pé de feijão. Lá em cima o gigante raivoso e babão, entre os dentes podres põe-se a resmungar: (E João, ali perto, nem quer respirar.) "TA FRIO, TA FRIO, TA QUENTE E AGORA NÃO SINTO CHEIRO DE GENTE." João esperou o Gigante dormir, depois foi colhendo aqui e ali tantas folhas de ouro, rápido, sem demora, que ficou milionário na mesma hora. "O que vale um banho!", consigo dizia, "Agora tomo banho todo santo dia." 23 ** 3- Branca de Neve e os Sete Anões Quando a mãe de Branca de Neve morreu, o coração do rei se entristeceu. "Um destino tão triste - quem quer? Vou ter de arranjar uma outra mulher!" (Esse tipo de coisa, bem sei, é uma dura tarefa para qualquer rei.) Ele pôs no jornal anúncio de uma linha: "Estou procurando por uma Rainha." E muitas donzelas - no mínimo dez mil - responderam ao anúncio, ora já se viu?! "Para saber qual de vós eu escolherei, passarão por um teste" - decreta o rei. Por fim escolheu uma tal Maclarose. 26 Uma jovem bonita, mas cheia de pose, que um estranho brinquedo consigo trazia, e com ele brincava todo santo dia: Um espelho engastado em moldura bonita QUE ERA MÁGICO E FALANTE - você acredita? Se fizessem uma pergunta de noite ou de dia, sem errar, prontamente, ele respondia. Se você, por exemplo, quisesse saber: "O que hoje na janta vamos comer?" A resposta correta não tardava a dar: "Ovos fritos e arroz comporão o jantar". E então, todo dia, semana após semana, a estúpida rainha abre a boca e exclama: "Ó Espelho, espelhinho, não me deixe aflita. Responda depressa: quem é a mais bonita?" E a resposta do Espelho não tardava a chegar: "Oh, és tu, oh, Senhora, que não tendes par, sois divina, sois dona de um charme nato. Para dizer tudo: o maior barato!" E durante dez anos a estúpida rainha repetiu, sem descanso, essa ladainha. E então, de repente, num dia fatal, ela ouviu do Espelho a resposta brutal: 27 "De agora em diante, primeira não és mais, pois Branca de Neve te passou pra trás!" A Rainha enlouquece, grita, desatina: "Agora eu esgano essa triste menina! Eu vou acabar com a raça dela, arranco o seu fígado, ponho na panela!" Ela chama o caçador e o leva à sala: "Ouça aqui, caçador", a rainha lhe fala, "leve aquela menina nojenta e mimada para dar um passeio e, no meio da estrada, meta a faca em seu peito sem compaixão e me traga depressa o seu coração!" O homem ouviu tudo, mas não disse nada, E levou a menina pra mata fechada. Temendo o pior, a menina exclamou: "Oh, me dá uma chance, faz esse favor!" A faca já sobe para o golpe mortal. Ela grita de novo: "Não fiz nenhum mal!" A alma do homem é bondosa e meiga E seu coração é pura manteiga. Ele fala: "Tudo bem, você pode ir embora". E ela sai disparada na mesma hora. 28 Depois o caçador, que, com razão, teme a rainha e não quer confusão, saiu da floresta e bem depressa foi comprar no açougue um coração de boi. "Ó Majestade! Ó Rainha" - ele diz. "Acabei com a raça daquela infeliz! E como prova de que falo a verdade, trouxe o coração sangrando, ó Majestade." A rainha exclamou: "Fez o que devia! Oxalá tenha tido uma longa agonia." E (contar essa parte me dá aflição) a rainha se senta e come o coração! (Oxalá não o tenham cozido mal. Coração escaldado é duro feito pau.) 29 Nesse meio tempo, o que se passava, com Branca de Neve, tão bela, tão brava? Bonita que é, com facilidade logo arruma carona para a cidade, e consegue um emprego de cozinheira e ainda faz o serviço de arrumadeira, na casa de sete homens pequeninos, todos ex-jóqueis - coisas do destino - todos bem baixinhos, parecem meninos. Esses Sete Anões eram de amargar, Cabeças de vento, só queriam jogar Gastavam o que tinham, sem pestanejar, apostando em cavalos - onde iriam parar? (Quando faziam apostas no cavalo errado, iam dormir com fome - ah, vício danado!) Certa noite diz Branca: "Escutem aqui, tive uma idéia, me deixem agir. Suspendam as apostas - isso é pra já! e só recomecem quando eu mandar". E no mesmo dia, ao anoitecer, põe o pé na estrada sem nada temer já tarde da noite, na escuridão, entra no palácio, sem hesitação. O rei, que trocava a noite pelo dia, contava dinheiro na tesouraria. 31 Enquanto isso a rainha, de luva e chapéu, comia tranqüila o seu pão com mel. Os criados dormiam, e ninguém notou, a Branca passando pelo corredor. Branca segue em frente e logo adiante tira da parede o ESPELHO FALANTE. Ao chegar em casa, diz ao chefe-anão: "Amigo, é hora de entrar em ação. Faça uma pergunta ao Espelho Falante, Que ele lhe responde neste mesmo instante!" Diz ele: "Espelho, responda, nada de trapaça! Pois estamos duros, devendo na praça! Que cavalo ganha o Grande Torneio? Saber isso agora é meu grande anseio". O Espelho sábio sabiamente fala: "O nome do cavalo é Tigre de Bengala". Os anões, contentes, pulam de alegria, beijam Branca de Neve na maior folia, e levantam a grana para apostar no cavalo Tigre, pois melhor não há. Vendem o carro velho - pois é, meus senhores e levam os relógios à loja de penhores, pedem emprestado dinheiro no banco. O gerente ajuda, risonho e franco. Eles vão ao Jóquei e apostam seu dinheiro no cavalo certo - que tipos matreiros! 32 Doravante então, com a assessoria do espelho esperto, todo santo dia, os anões apostam, ganham um dinheirão e Branca recebe também seu quinhão. Moral da história: Jogar não faz mal - Mas só nas histórias - a sério é fatal. 33 ** 4- Cachinhos Dourados e Três Ursinhos Essa história famosa é balela, ninguém deve dar crédito a ela. Eu por mim nunca vou entender por que uma mãe amorosa não vê que a heroína é perversa e atrevida (Pode haver coisa mais descabida?). Se tivesse a chance, sem dó, eu a mandava para o xilindró. Imagine o que você sentiria se acordasse feliz da vida, preparasse uma boa comida, um mingau delicioso e quentinho pra tomar com um cafezinho. E torradas também, com geléia. (Não seria uma má idéia.) A mesa bem posta: dá gosto ver um lugar pro seu pai, um lugar pra você, um lugar pro amigo - e então o pai grita: "O mingau está quente e isso me irrita! Vamos dar um passeio e deixar esfriar, ele estará bom quando a gente voltar". E diz mais: "De manhã um passeio faz bem para nós e para os outros também, passear dá uma fome de leão e melhora nossa digestão". Uma mulher de juízo aprova e até gosta de ouvir tão sensata proposta, 36 ainda mais de manhã, no café, quando o homem está meio chué. Mal você põe o pé na estrada lá vem Cachinhos - menina mimada, enxerida, ranheta, ladrona, esperta -e invade a casa deserta. Lança em volta seu olhar mau, logo vê o gostoso mingau. E depressa a gulosa, ainda de pé, vai papando o mingau com a colher. Eu repito: o que você sentiria se fizesse uma tal iguaria e uma pirralha sem fé, sem moral, devorasse todo o seu mingau? Mas espere! O pior está por vir. Considere um pouco isto aqui: você, esposa boa e dedicada, em todos os seus anos de casada, foi juntando com muito amor objetos de grande valor, como anjos dourados e bela mobília, comprada num leilão, pra uso da família. Mas de todas as peças, a mais valiosa, que lhe dá prazer por ser mui graciosa, é uma bela cadeira infantil. 37 Coisa linda como nunca se viu, que há muito está na família e vai passando de mãe para filha. Mas a louca Cachinhos - seja dita a verdade pouco liga para a antigüidade. Ela está se lixando - oh, menina arteira! e mete o traseiro na bela cadeira, que se quebra com um barulhão e agora jaz em pedaços no chão. Uma boa menina só podia dizer: "Meu Deus, que vergonha! O que fui fazer?" Mas Cachinhos, não. Ela põe-se a xingar: "Que cadeira nojenta, horrível e má!" Solta um palavrão muito feio e vil, ainda bem que você nunca ouviu. (Escrevê-lo aqui eu nem ouso, já que é por demais horroroso.) Nessa altura essa triste menina vai fugir - é o que se imagina. Pois bem, não. Que horror! A danada mal começou. Ela quer descansar e exclama: "Vou deitar na melhor destas camas". Sobe pro quarto e experimenta as três. (E aí vem problema, é o que digo a vocês.) 38 A gente educada, mal entra no quarto, vai logo tirando meia e sapato. Só então vai na cama subir, mas Cachinhos não está nem aí. Seus sapatos estão cheios de lama, de sujeira, de lodo, de restos de grama. E o pior é que, num deles, imagine vocês, Tem uma sujeira que um cachorro fez. E agora, repito, o que você acharia se toda essa tremenda porcaria lhe sujasse os lençóis, sem dó nem piedade, por causa da menina, de pura maldade? (Na famosa história em nenhum lugar se diz que tirou os sapatos a malvada infeliz.) Repassemos agora, ainda uma vez, essa história de crimes, que pasmar nos fez. Crime um: entrar numa casa sem permissão. Coisa muito grave que não tem perdão. Crime dois: uma vez instalada na casa alheia, rouba um belo prato de mingau de aveia. Crime três: ela quebra a mais bela mobília do membro mais novo daquela família. Crime quatro: emporcalha o lençol limpinho, que a mãe ursa lavou com tanto carinho. 39 Um juiz com certeza nem iria piscar: "Dez anos de cana ela tem de pegar!" Mas no livro, vocês verão, a malvada escapa sem um arranhão, e o coro das crianças em toda parte diz: "Viva! Viva! Viva! Que final feliz! A pobre menina conseguiu se safar e graças ao bom Deus voltou pro seu lar!" De minha parte eu acho que ela devia Ser bem castigada, como merecia. "Ah, papai", o pobre ursinho grita, "Meu mingau sumiu, que coisa esquisita!" "Vai então lá em cima", papai urso exclama, "Teu mingau está em cima da cama, mas dentro da menina, então note bem, comendo a menina, tu o comes também!" 41 ** 5- Chapeuzinho Vermelho e o Lobo O lobo estava com fome e fulo da vida. Há muito não comia uma boa comida. Foi então à casa da Vovó e bateu à porta. Ela abriu, viu o lobo e pensou: "Estou morta!" O lobo arreganhava os dentões afiados num sorriso horroroso, terrível, malvado. "Ele vai me comer", a vovó pensou. E se pôs a tremer, cheia de pavor. E pensando assim não estava enganada, pois o lobo a comeu, de uma só bocada. Mas a avó era pequena, a carne já gasta, E o lobo gemeu: "Isso só não basta! Uma carne dessas até faz mal pra gente, estou precisando de um jantar decente!" 44 E se pôs a gritar, correndo na cozinha, "Tenho de encontrar outra comidinha!" Então resolveu: "Não vou desistir, em vez de ir embora, vou ficar aqui. Chapeuzinho Vermelho está pra chegar, ela mal suspeita que será meu jantar." E vestiu as roupas todas que encontrou. (Que da pobre velha foi o que restou.) Ele pôs o casaco e o chapéu, bem ligeiro, calçou os sapatos, escovou o cabelo. Depois os frisou (esse lobo era esperto) e sentou-se na cadeira ali perto. E lá vem Chapeuzinho, contente e feliz. Ela chega, pára e logo diz: "Pra que orelhas tão grandes, Vovó?" E o lobo: "São para te ouvir melhor." "Por que esses olhos tão grandes, Vovó?" "São para te ver melhor." Ele olhou a menina e consigo pensou: Vou comer Chapeuzinho, ora se não vou! Comparada à Vovó, dura de amargar, sua carne, imagino, é que nem caviar. Chapeuzinho Vermelho acrescenta também: "Mas que belo casaco de peles tu tens!" 45 "Errou!", diz o lobo. "Era hora de perguntar: para que esses DENTES GRANDES de assustar? Mas... não importa o que vai dizer, de toda forma vou comer você." A menina sorri, de um jeito pachola, e da bermuda puxa uma pistola. Ela mira a cabeça do feio lobão E bang-bang-bang - ele cai morto no chão Semanas depois, andando na floresta, cruzo com Chapeuzinho, despachada e lesta, sem capote vermelho, sem chapéu, sem nada do que usava antes - como está mudada! "Por favor", diz ela, "preste atenção neste meu CASACO DE PELE DE LOBÃO." 46 ** Os Três Porquinhos De todos os animais, digo com sinceridade, meu preferido é o porco, esta é a verdade. Os porcos são nobres e espertos também, além de gentis, mas tem um porém: como toda regra tem exceção, às vezes achamos um porco bobão. O que, por exemplo, você acharia se, andando no mato, um belo dia, visse à sua frente um porco a sorrir fazendo uma casa DE PALHA para si? Vendo o porco, o Lobo começa a babar e diz: "Vou comer esse porco e é pra já". "Me deixa entrar, ó meu lindo porquinho!" "Não e não, pelas barbas do meu queixinho!" "Então vou soprar, soprar e soprar E sua casa no céu vai voar!" O porquinho começou a rezar, e o Lobo soprou sua casa no ar. "Costela", diz ele, "presunto, bacon - oh, tudo! Ora se não sou um Lobo sortudo!" E comeu bem depressa o pobre bacorim, deixando apenas o rabo pro fim. Depois foi por aí, um tantinho inchado, andando devagar, mas muito animado. 50 E avistou uma casa de porco bem-feita, só que de GRAVETOS, jeitosa, perfeita! 'Me deixa entrar, ó meu lindo porquinho!" "Não e não, pelas barbas do meu queixinho!" "Então vou soprar, soprar e soprar E a sua casa no céu vai voar!" Diz o Lobo "Tudo bem, então lá vou eu!" E se põe a soprar - ele enlouqueceu? - grita o porco, com todas as forças de que é capaz: "Ó Lobão, já comeste, o que queres mais? Façamos um acordo, não vejo mal algum." Responde o Lobão: "Mas de jeito nenhum!" E logo o porquinho vira refeição. "Porquinhos deliciosos!", exclama o Lobão, "Mas satisfeito inda não estou, não! Minha pança está cheia - quase corro risco de morte, mas não perco um petisco!" De mansinho o lobo então caminha, e se aproxima de outra casinha. Uma casa onde mora, sozinho, ainda um outro porquinho. Mas esse porco, isto é, o Número Três, era muito esperto - digo a vocês. 51 Em vez de palha ou graveto, o porco sabido usou em sua casa TIJOLO COZIDO. "Esta casa aqui", diz ele, "não derrubas não!" "Pra mim basta um sopro", responde o Lobão. "Olha que não tens pulmão para isso. Fiz minha casinha de tijolo maciço." O lobo bufou, soprou e soprou. A casa era firme e não desabou. "Não posso, com um sopro, mandar a casa pro ar", diz Lobão. "E já que é assim, vou dinamitar! Vou voltar à noite", insiste o Lobão, "e resolvo tudo com uma explosão!" Responde o porquinho: "Ah, seu bruto gabola!", e, sem perda de tempo, na mesma hora, pega o telefone, junto do espelho, e liga pra casa de Chapeuzinho Vermelho. "Alô", ela diz. "Quem fala? Pode me dizer? Ah, o porquinho! Como vai você?" "A situação aqui está de amargar, será que você pode me ajudar?" "Vou tentar, é claro", diz a Chapeuzinho. "Qual é o problema?" "Um lobo!", exclama o porquinho. "Sei que já enfrentou um feio lobão e agora tem um aqui, bem no meu portão!" "Vou daqui a pouco, pode ficar certo, pois a minha casa fica bem perto." 52 "Estou começando a lavar o cabelo, tão logo ele seque, vou aí, vou vê-lo." E de fato Chapeuzinho demorou bem pouco, logo ela chegou na casa do porco. E lá estava o Lobo, olhos a brilhar e meio amarelos - coisa de assustar. Dentes afiados, gengivas à mostra, babando e sonhando com a mesa já posta. Nos olhos da jovem se vê um clarão. Ela saca o revólver de seu bermudão. Mais uma vez ela atira sem dó E mata o lobão com um tiro só. O porquinho vê tudo, de sua janela, e dá grandes vivas à bela donzela! Ah, meu porquinho, não vá confiar em jovens grã-finas, prontas a enganar. Pois a Chapeuzinho, prestem atenção, não tem só dois casacos de pele de lobão: quando sai a passeio, no bosque vizinho, leva uma BOLSA DE COURO DE PORQUINHO. 54 Orelha: - Roald Dahl nasceu em 1916, no País de Gales, Inglaterra, filho de pais noruegueses. Antes de se tornar escritor, viveu na África, para onde viajou aos 18 anos a fim de trabalhar para a Shell Oil Company. Durante a Segunda Guerra Mundial, foi piloto de guerra da Real Força Aérea Britânica. Por isso, só aos 25 anos voltou a encontrar sua família. Com essa vida tão aventureira e muito talento, acabou se tornando escritor. Suas histórias são amadas pelas crianças do mundo todo, porque são divertidas e sempre apresentam personagens meio malucos, como, no fundo, todos nós somos um pouco. Roald Dahl faleceu em 1990, aos 74 anos. - Quentin Blake nasceu em Londres, em 1932. Já em 1949 começou a trabalhar como cartunista, profissão que acabou adotando para a vida toda. Com o tempo, passou a ilustrar livros infantis, com um estilo inconfundível e alegre que lhe valeu vários prêmios, incluindo o Hans Christian Andersen de ilustração, em 2002. Hoje é chefe da cadeira de Ilustração na Real Academia de Arte, em Londres. Fez muitos livros com Roald Dahl, com quem desenvolveu parceria e uma grande amizade. ****