SARGENTO BASÍLIO E OS ÍNDIOS INVISÍVEIS PITTER MENDES SARGENTO BASÍLIO E OS ÍNDIOS INVISÍVEIS PONTO DA CULTURA EDITORA "Uma guerra não se ganha nem se perde; a única coisa que se perde são vidas, e o que se ganha é experiência para outras atrocidades". Capítulo I - O Brasil A história se passa por volta da primeira metade da década de 1990, quando não seria possível entender essa grande aventura repleta de emoções, conflitos e paixões sem entender os motivos que levaram aos acontecimentos. Há alguns anos, os governos brasileiro e colombiano vinham vivenciando um clima de hostilidades. Ambos estavam insatisfeitos e passaram a se atacar. Durante esse período, a Colômbia vinha acusando o Brasil de ter se apropriado de terras pertencentes a ela. Fato esse divulgado em todo o País, em um show de propagandas com recursos do governo altamente persuasivas. A população passou a acreditar naquelas informações veiculadas por um governo insano tomado pelas ideias ditatoriais de uma época que não era a que vivia, porém, o povo colombiano começou a acreditar que tudo aquilo que era divulgado pelo Governo era a verdade absoluta, e a Colômbia precisava retomar suas terras que faziam parte do território brasileiro. Essas acusações fizeram com que começassem a acontecer no Brasil uma onda de manifestos por parte de intelectuais, políticos, estudiosos e sociólogos com suas opiniões, hipóteses e confirmações de que aquelas afirmações colombianas não passavam de equívocos. Carlos Monteiro, grande historiador Brasileiro, defendeu, em sua tese de doutoramento, que as terras situadas no território amazônico faziam parte do Brasil desde a época da colônia portuguesa. Já o sociólogo Atyla Brum, que escrevia uma coluna em um jornal de grande circulação entre as elites, afirmava que as terras apontadas pelo presidente da Colômbia como suas faziam parte do território nacional mesmo antes de o estado do Acre ser incluído como última fronteira do Brasil. Um grupo de geógrafos publicou em uma revista a existência de riquezas minerais, como gás e petróleo, localizadas na área que a Colômbia dizia pertencer ao seu território. O tempo foi passando, e a disputa foi ficando cada vez mais acirrada. As exportações do Brasil para a Colômbia foram canceladas. A Colômbia, por sua vez, começou a investir em alianças com outros países da América do Sul, a fim de fortalecer-se contra o Brasil. Porém, essas alianças não se concretizaram. Começaram a acontecer pequenos atentados contra índios, foram instaladas tropas militares colombianas bem próximas às fronteiras em meio à floresta Amazônica. A situação foi ficando cada vez mais insustentável, até que num determinado dia, as duas forças resolveram se enfrentar. De um lado, estava o exército colombiano junto com guerrilheiros que, até então, lutavam contra o governo. Agora, aliados às forças patriotas de seu país, promoveram dois ataques a instalações militares brasileiras dentro da floresta amazônica, destruindo-as e matando 45 militares. A guerra havia começado. Do outro lado, o povo brasileiro, até então passivo e observador dos fatos, foi tomado de um sentimento de indignação. Manifestações vinham de todas as partes do Brasil. Brasília virou palco de grandes passeatas, a televisão intensificou suas transmissões repudiando as atitudes colombianas como insanas, criminosas e repugnantes. Alguns artistas, políticos e pessoas influentes na mídia reuniram esforços fazendo campanhas para que a paz fosse mantida, como a que se destacou com o slogan: "Somos brasileiros, diga não à guerra!". Porém, já não era mais possível conter o clima de euforia que, a essa altura, havia se instalado nas fronteiras dos dois países. O pelotão de operações especiais do exército, o corpo de fuzileiros navais e a brigada para-quedista instalaram-se na região Norte do Brasil, em especial mais próximo das fronteiras. A aeronáutica bombardeava incessantemente a Colômbia. Tropas do exército brasileiro e fuzileiros travaram conflitos com guerrilheiros e militares colombianos no meio da floresta. A guerra em seus primeiros quatro meses desestabilizou os dois países. Porém, a Colômbia teve muito mais perdas. Nesse momento, já não se conseguia diferenciar quem era militar ou civil entre os colombianos, pois todos os envolvidos usavam a mesma farda. A guerra prosseguiu. Após seis meses, os bombardeios aéreos foram interrompidos pela força aérea brasileira, porém o efetivo de militares quase dobrou com as novas convocações e a mobilização dos que já se encontravam instalados na região Norte do país. A guerra, nesse momento se resumia a pequenas batalhas travadas no meio da floresta. Os colombianos continuavam a cumprir as ordens do governo e mantinham-se instalados, articulando planos para ataques contra militares brasileiros. Nenhum país da América do Sul tomou partido apoiando qualquer dos países envolvidos na guerra. Todos tinham receio, pois uma aliança com o Brasil causaria consequências esmagadoras à Colômbia e correria riscos de sofrer sanções da ONU. Por outro lado, apoiar a Colômbia, significaria trazer para a guerra os Estados Unidos que, devido a interesses estritamente econômicos, não deixariam de apoiar o Brasil, pois uma vez ameaçada as fontes de riquezas brasileiras, estariam ameaçados também os tentáculos imperialistas ocultos dos americanos no país. Capítulo II - Sargento Basílio — Fala aí, Araújo! – exclamou em voz alta Basílio, entrando no alojamento. — E aí, meu brother! – respondeu o amigo com um forte aperto de mão espalmado. Os dois foram caminhando lado a lado em direção aos armários que ficavam no fundo do alojamento: — E seu timinho ontem, hein? Tomou de dois do Fluzão! – disse Basílio, com um sorriso sarcástico. — Vocês estão pensando que estão com a corda toda, o Flamengo não está morto não! – respondeu Araújo. Chegando aos armários, outros militares por ali se vestiam para a formatura, batendo papo e falando alto. Os armários dos dois amigos eram justamente posicionados um ao lado do outro como eles mesmo haviam escolhido. Pararam em frente, abriram os armários, começaram a se trocar e continuaram a conversar: — Basílio – disse Araújo se despindo – você está sabendo sobre alguma notícia de que a Venezuela e a Bolívia vão se aliar à Colômbia? — Olha, cara, eu já não sei de mais nada. Cada hora eles vêm com novas especulações. Estou com a cabeça cheia de problemas para pensar nisso. – respondeu Basílio, sem fazer grande espanto. — Mas Basílio, se isso for verdade, com certeza iremos para o Amazonas. — Araújo, meu camarada, se for para ir, iremos. Não é nossa profissão? – disse Basílio em tom rápido. Araújo fez uma expressão de dúvida e perguntou: — E quais são esses problemas mais graves do que ir para guerra? Abotoando sua gandola, Basílio respondeu: — Você sabe mais que ninguém que meu casamento é um fracasso, não sei como durou até agora. Basílio tinha 28 anos, havia entrado para o corpo de fuzileiros navais do Brasil aos 18, junto com o amigo Alessandro Araújo Fortunato, a quem chamava pelo nome de guerra Araújo. Os dois se conheceram no recrutamento e nunca mais deixaram de ser amigos. Passaram a trabalhar juntos e sempre deram a sorte de serem escalados para atuarem nos mesmos dias. No exercício militar, tanto um como o outro foram promovidos a cabo, e logo a 3º sargento ao mesmo tempo. Basílio casou-se aos 25 anos de idade com uma moça chamada Cíntia, a quem namorou um ano e meio antes de se casar. Os dois faziam um bonito casal. Ele era forte e chegava quase aos 1.80 m, era bem branco de cabelos castanhos claros, tinha curvas e traços bem feitos em seu rosto, do tipo que qualquer mulher se apaixona com um simples olhar. Aqueles olhos escuros como duas jabuticabas, quando queriam, fitavam os olhos de outra garota a ponto de deixá-la hipnotizada com tamanho encanto. Porém esses olhares e as armas de sedução haviam cessado em Basílio desde que se casara havia três anos com Cíntia. Ela era loirinha e bem branca também, de olhos verdes como a água da praia no verão. Os dois se conheceram em uma festa para a qual Basílio e mais um grupo de 14 fuzileiros foram convidados para dançarem valsa com as damas da debutante. Basílio e Araújo ainda eram cabos, e, junto com outros cabos e soldados, viviam em farras e grandes amores. Isso tudo teve fim quando Basílio conheceu Cíntia, ficou encantado com o sorriso que transmitia um ar de pureza misturado ao pecado. Cíntia também se apaixonou por Basílio, namoraram e se casaram. Contudo, ao longo dos três anos morando juntos, Basílio começou a perceber que o casamento para Cíntia não era mais prioridade. Ela tinha 21 anos, se casara cedo com ele, não gostava muito da vida de casada, queria sair, curtir amigas, participar de tudo que a faculdade de Letras lhe proporcionava fora de casa como passeios, viagens e visitas a outros estados. Ela justificava suas vontades nos dias de serviço do marido no quartel, fingindo acreditar que a profissão dele lhe dava direito de ficar ausente. Basílio queria ter filhos, porém Cíntia não queria. Esse era um dos motivos de brigas frequentes, já que ambos sabiam que a vinda de um filho iria vetar a liberdade de Cíntia enquanto o marido trabalhasse. Os dois amigos saíram fardados juntamente com outros militares – Pinheiro, Vargas e o cômico Crhismon, que ficava o tempo todo fazendo graça e contando piadas: — Sargento, por acaso você sabe o que a barata disse para outra barata? – perguntou Crhismon no meio de todos direcionando-se a Basílio. — Não, mas já sei que é putaria! – disse Basílio olhando de cima para baixo para o soldado. — Ela disse: seu marido é um barato! E sozinho soltou uma gargalhada, como quem não quisesse ficar sem graça assim como a piada. — Que cara babaca... – resmungou baixo Araújo para Basílio. O sargento Araújo era enorme, meio desengonçado, era um dos mais altos e fortse da companhia em que serviam, parecia um aborígene africano gigantesco, que, por atrás daquela pele escura e rosto negro bonito, escondia um coração de criança responsável. Ao chegarem ao pátio, enquanto aguardavam o momento da formatura, aproximou-se um soldado e exclamou em voz alta: — Soldado Ramos, permissão para falar com o senhor! Prestando a continência, Basílio disse: — Pois não, diga, soldado. — O comandante da companhia, senhor Capitão Saraiva, pediu que compareça à sua sala. — Tudo bem, pode ir, soldado. Basílio e Araújo olharam-se fixamente, com olhares de que era um prenúncio de alguma coisa não muito agradável. Capítulo III - Duas notícias avassaladoras — O que poderá ser Araújo? – perguntou Basílio: — Não sei, cara, só indo ver, mas acredito que seja algo relacionado à guerra. Até hoje, tivemos a sorte de não termos sido convocados. Até porque precisavam da gente aqui no quartel, mas se necessário for, todos terão que ir. — É, eu sei! Basílio deu uma pausa e continuou: — Não fico com receio de ir para a frente de batalha. O problema é minha esposa. Ao falar, baixou a cabeça. – Ora, Basílio! Como você mesmo disse, é a nossa profissão, e você sabe: ordens são ordens. – disse Araújo. — Sim, vou lá, até mais. Basílio se dirigiu à sala do comandante e Araújo ficou a observar seu amigo, que mais parecia aflito com a vida conjugal do que com o fato de ser convocado para a guerra. — Será que a guerra é mais importante que as coisas do coração? Será que tudo resolvido entre quem se ama vale mais do que o país entrar em uma crise generalizada por longo tempo? Ou será que vale mais a pena resolver a situação do país e depois resolver com quem a gente ama? – Perguntas que não deveriam deixar de passar pela cabeça de Basílio, durante aqueles poucos minutos em que se dirigia a sala do comandante. Ele subiu as escadas, correu o corredor do longo prédio da companhia. Andava e olhava quadros de militares condecorados pela marinha brasileira, entre eles o quadro do capitão Novaes, um capitão que ficou famoso por ter dedicado parte de sua vida aos índios. Ainda no corredor, já sentia o cheiro forte do cachimbo que o Comandante Saraiva usava. Ele já era um senhor, passara toda sua vida nos mares, nunca havia participado de verdade de uma frente de batalha e faltava pouco para ir para reserva. Já estava velho e lhe cabia apenas cumprir ordens superiores para que fosse curtir sua aposentadoria com mais conforto. Basílio chegou à porta, abriu e se apresentou: — Terceiro sargento Basílio, permissão, senhor! O Comandante Saraiva disse em voz baixa e sem muita empolgação: — Entre, Basílio. A sala estava tomada por fumaça, um cheiro forte de fumaça de charuto, tinha ali poltronas antigas, em um lado da parede quadros da história do corpo de fuzileiros navais brasileiros, e, no lado oposto, na outra parede, havia quadros kardecistas. O comandante Saraiva era espírita e gostava de dizer isso a todos. — Sente-se, Basílio, quero falar com você. Basílio retirou seu gorro da cabeça e sentou-se em frente daquela figura, que mais parecia um Buda que um comandante. Tinha uma careca brilhante, um bigode preto e uma cara larga, despojado na poltrona grande e com um encosto acima de sua cabeça. O comandante Saraiva falou: — Basílio, serei breve, pois o que tenho pra falar com você é muito sério! – disse o comandante com uma voz forte e robusta. — Pois não, senhor, assim que soube vim direto ao seu gabinete. — Bom Basílio..., o comandante apagou o cachimbo e continuou: — Sabemos que a situação na fronteira com a Colômbia está estável, porém não está concluída. Daqui a dois dias, estarão chegando aqui, no Rio de Janeiro, militares que já estão na guerra há seis meses, desde que começou, e por isso precisamos enviar novos militares. Basílio percebeu que iria para guerra, porém o que lhe deixava inquieto não era o fato de ir à guerra, e sim o seu casamento com Cíntia. Sua preocupação passava longe de enfrentar algum conflito nas florestas do Amazonas, sua valentia e coragem que sempre teve não eram o suficiente para não deixá-lo preocupado com a vida de Cíntia sozinha no Rio. O comandante continuou: — Não pense que é somente você. Os sargentos e os oficiais estão sendo comunicados pelo comando, mas cabos e soldados serão avisados em formatura. O aviso só está sendo dado dois dias antes porque na guerra não temos tempo de muita coisa, o único objetivo e prioridade é manter a segurança nacional. O comandante deu uma pausa e continuou: — Hoje você pode ir embora para casa e tomar as medidas cabíveis para sua ausência, que durará seis meses na frente de batalha. Avise aos familiares. Resolva tudo, e depois de amanhã vocês embarcam. Basílio abaixou a cabeça, suspirou e disse: – Senhor comandante, sei que é minha profissão e nunca me recusei nada dentro da Marinha brasileira. — E nem pode, sabe que militar não recusa nada, apenas cumpre ordens. — disse o comandante. — Sim, sei disso, porém devo confessar ao senhor que estou muito preocupado. Não em ir para a guerra, mas sim com meu casamento. Minha vida com minha esposa não anda nada bem, e ir para lá ficar seis meses fora seria sacramentar de vez o fim do meu casamento. O comandante retirou as costas do encosto da poltrona, debruçou-se na mesa e disse em voz baixa e objetiva: — Sargento, todos nós temos problemas, ninguém vai à guerra sem ter problemas em casa. Um capitão tenente tentou justificar não poder ir pela enfermidade da mãe, porém em vão, o país precisa da gente, resolva seu problema com sua esposa na volta — Pois é, senhor, meu medo é na volta ser tarde demais, só precisava de algumas semanas e depois eu estaria à disposição... — Sargento, não sou eu que estou lhe enviando para o Amazonas, sabe que na Marinha cumprimos ordens. Basílio, ordens são ordens! Boa viagem! Boa sorte! Basílio levantou-se, prestou sua continência e em voz baixa disse: — Permissão para sair, senhor. O comandante fez um gesto com a cabeça, permanecendo sério. Basílio foi se retirando e, ao chegar à porta, o Comandante Saraiva disse: — Basílio! Fique tranquilo, você é um excelente militar, bem treinado. Tenho certeza que lhe verei quando voltar com sua esposa ao seu lado. Ele não respondeu, deu as costas, fechou a porta e saiu andando pelo corredor comprido, pensando como iria falar em casa sobre sua nova missão. Saiu do corredor, chegou à varanda da frente do prédio e olhou para o pátio. Não havia mais nenhum militar ali formado. Pensou em procurar Araújo ou qualquer outro amigo para contar a péssima novidade, mas parou, pensou e decidiu ir para o alojamento trocar suas roupas e ir embora. Quanto mais cedo chegasse em casa, mais tempo teria para resolver sua situação de crise conjugal, sem saber da segunda notícia que lhe esperava em casa. Basílio foi até o alojamento, trocou-se, saiu e pegou seu carro sem se despedir de nenhum militar, pois sabia que, no seu embarque, todos que iriam ali se encontrariam. Basílio acabava de estacionar o carro no condomínio onde morava, não parava de pensar no que iria falar para Cíntia — talvez esquecer tudo e jurar amor eterno? Será que a saudade de seis meses longe seria o remédio para a crise? Ou será que aquilo seria somente um aviso do Divino de que não deveria estar casado? Essa última opção seria a menos possível do sargento imaginar: não era muito de religião, sempre foi muito honesto consigo mesmo e com os outros, sempre fez questão de fazer tudo certo, nunca parou ou pensou em ser religioso. Contudo, sempre respeitou seus amigos de farda que eram religiosos. Ele subiu o elevador, saiu, chegou em frente à porta da sua casa; ao colocar a chave na porta, percebeu que esta estava apenas encostada, qualquer um que empurrasse a porta a abriria. Achou estranho, mas empurrou a porta e deu um súbito grito: — Cíntia!!! — Uma voz veio de dentro da casa: — Oi! Era ela, um alívio para o sargento que já se preparava para imaginar alguma coisa de ruim. Porém o ruim estava na cena que viu ao chegar na porta do quarto. Cíntia estava sentada na beira da cama, e em cima dela havia três bolsas grandes e a sua bolsa pessoal, todas cheias. Ele parou e, com sobrancelhas franzidas, olhos arregalados e uma frieza por dentro que jamais sentiu antes, perguntou: — O que é isso, Cíntia? Ela estava com um rosto pálido, uma expressão nervosa, o verde dos olhos misturado ao vermelho de alguém que está prestes a cair em lágrimas. Com uma voz delicada e baixa, ela foi clara: — Eu estou indo embora, Basílio. — E baixou a cabeça. Basílio sentou-se ao seu lado, com sua mão grande, pegou na pequena mão fina e branca de Cíntia e falou: — Mas por quê, Cíntia? Isso não pode ser assim... Ela puxou sua mão e respondeu: — Basílio, eu sempre te amei, você não tenha dúvidas disso, mas na situação em que chegamos, não tem como continuar. Ao terminar, ela deixou as lágrimas escorrerem mas sem alguma agitação. Basílio, sem saber o que fazer, disse: — Não acho que deva ser assim, eu gosto tanto de você, não quero e nunca pensei em te perder, somos casados há apenas três anos, acho que temos muita coisa pela frente para viver, e você precisa pensar diferente... Um silêncio permaneceu durante alguns segundos e ela falou: — Basílio, por tudo que vivemos até hoje, não quero vê-lo sofre. Quanto mais tarde for, quanto mais tempo passar, pior vai ser na hora de nos separarmos. — Você não gosta mais de mim? Está com alguém ou gostando de alguém? Ela levantou a cabeça, enxugou as lágrimas e disse: — Não, Basílio. Pode ter certeza que não estou gostando e nem com alguém, mas é justamente isso que quero evitar. A resposta de Cíntia acertou o peito de Basílio pior que um tiro de fuzil. E ele disse: — Isso quer dizer que não gosta mais de ficar comigo? — Sim, Basílio, é isso mesmo... — Então por que se casou comigo? Por quê? Basílio disse aumentando o tom de voz e já dando sinal de fúria. — Eu não sei. Quando nos casamos eu era muito nova, só fui conseguir ter o mínimo de liberdade depois que saí da casa de meus pais. Hoje percebo que só não quero te fazer sofrer! Basílio, por favor, entenda... Basílio levantou-se, ficou de costas e disse: — Se tem tanta convicção disso, é porque nunca me amou, Cíntia! Até hoje, desde o dia daquela festa, eu fardado e você de rosa, juramos amor um ao outro... — Ele deu uma pausa e concluiu: — Agora percebo que apenas eu amei..., como fui tolo. Cíntia voltou a derramar algumas lágrimas e disse: — Olha Basílio, eu queria evitar tudo isso. Estava começando a escrever uma carta e iria deixar em cima da cama para você, mas não esperava que chegasse cedo, não queria encontrá-lo, não queria que essa situação fosse assim, dessa maneira. Ela parou, pegou sua bolsa, colocou no ombro e continuou: — Estou indo para a casa de uma amiga da faculdade que está me esperando lá em baixo com o carro dela. Vou ficar lá por alguns dias, até ver se volto para a casa de meus pais. Não quero falar nada com eles agora... Basílio virou-se, sem expressar alguma vontade de soltar o choro, ou mesmo de raiva, apenas triste e resolvido, e disse: — É isso que quer mesmo, sair da sua casa para ir para casa de amiguinha, não é?... — Ficaram em silêncio, e ele continuou em tom firme: — Muito bem, dona Cíntia. Cheguei mais cedo porque acabei de receber a notícia de que estou indo para a guerra! Ela arregalou os olhos verdes, a expressão da face mudou rapidamente. — Como assim? Você vai para o Amazonas? Para a guerra? — Sim, Cíntia. Vou, e vim pensando no carro, a caminho de casa, em chegar aqui e dizer que te amo! Que não quero deixá-la aqui, quanto mais na situação em que nos encontramos. Ele pausou e continuou: — Se é para me deixar, vou para a guerra disposto a encarar tudo que vier pela frente. Minha única e absoluta razão de não ir era você. Só que a partir de agora eu não a tenho mais, e por isso não tenho motivos em ficar preocupado em ir. Ela já havia parado de chorar e, na condição de esposa, disse: — Mas você pode morrer, Basílio! — E por que preocupar-se comigo Cíntia? Você está me trocando por festinhas de faculdade, morar sozinha como uma solteirinha... Que importância terá pra você o que vier a acontecer comigo? Por um momento, passou pela cabeça de Cíntia desistir daquilo tudo, mas ao mesmo tempo sabia que se fizesse isso, ela não ficaria casada seis meses esperando o seu retorno. Porém esses pensamentos foram desfeitos com a postura de Basílio que, decidido, falou com firmeza: — Faz o seguinte: já que não queria me encontrar, poupe seu bilhete, já sei do que devia saber, não é? Então não precisa escrever nada. Estou saindo antes de você. Fica tranquila. Pode ir, não deixe sua amiga esperando! Se era a liberdade que você queria, sinta-se livre! Basílio pegou as chaves do carro em cima da cama, deu um último olhar para o rosto inchado de Cíntia e disse: — Boa sorte! Ele virou-se e saiu do quarto. Ao chegar na porta, abrindo-a com força, ouviu um último grito de Cíntia chorando e dizendo: — Eu vou rezar por você, Basílio! Desceu o prédio pelas escadas, saiu, pegou o carro e partiu arrancando a toda velocidade. Basílio estava triste, aflito, com ódio... já não sabia o que sentia, só não conseguia parar de pensar que iria para longe de casa e sem esposa. De certa forma, estava até conformado, porque pensava que, se fosse para guerra na situação anterior, seria mais difícil, pois não saberia se iria conseguir deixar Cíntia ali sozinha durante seis meses. Porém, no calor da hora é muito difícil para alguém se convencer de que seria o melhor ou pior para a sua vida. Não queria voltar para casa, passava-lhe pela cabeça a ideia de voltar e ela ter desistido de ir embora e estar em casa, como também a de que poderia voltar e não encontrá-la mais. Rodou a cidade, parou em um bar, bebeu uma cerveja, coisa que não era do seu costume. Não parava de pensar na sua situação com Cíntia. Qualquer militar às vésperas de viajar para uma frente de batalha estaria sem dormir enquanto não chegasse o dia de retornar para casa. Ele se levantou, saiu do bar e voltou para casa. A porta do apartamento estava trancada. Ele abriu, entrou e se dirigiu ao quarto. A cama estava vazia, sem bolsas, sem Cíntia, apenas um pedaço de papel próximo ao travesseiro. Ele pegou e leu: — "Por favor, cuide-se, tenha certeza que estarei rezando por você! Estou certa de que te encontrarei no seu retorno! Fique com Deus". Cíntia.” Ele amassou a carta, abriu a janela e, quando levantou os braços para arremessar aquele pedaço de papel, parou. Foi até a cozinha, pegou uma caixa de fósforos e voltou à janela, riscou um palito e pôs fogo no papel. Ali ficou olhando as cinzas irem embora ao vento. Capítulo IV - O embarque Basílio já estava fardado e equipado saindo do paiol do quartel. Havia encontrado vários militares conhecidos preparando-se para embarcar para o Amazonas. Estranhou não ter encontrado Araújo, pois, mesmo que não fosse convocado, deveria estar no quartel, e, com certeza, não deixaria de se despedir do amigo. O sargento foi caminhando lentamente pelo pátio do quartel em direção ao rancho, na intenção de tomar seu café da manhã. Estava pensando em tudo que havia acontecido no dia anterior. Contudo, com sua personalidade forte e íntegra, mesmo estando conformado ou não, seu único objetivo era ir para a guerra. Durante a noite, pensou muito e quase não dormiu. Chegando à conclusão de que, "já que tudo está acabado, farei da guerra o veículo de esquecimento". Porém, enquanto pensava, colocou a mão no bolso esquerdo da gandola e puxou uma foto. Era Cíntia mais linda do que nunca, uma foto que ele tirou dela em uma praia onde passaram a lua de mel. Na foto, ela estava vestida com uma roupa de banho, com um sorriso encantador, com o rosto brilhante, e as curvas do corpo perfeitas. Olhou por alguns segundos, quando seus pensamentos foram interrompidos por alguém a chamá-lo: — Basílio! — era Araújo, com um sorriso no rosto, andando depressa ao encontro do amigo. Alguma coisa o havia deixado empolgado daquele jeito. — Fala aí, cara, estava te procurando. — Araújo aproximou-se e disse: — Ontem, quando foi chamado pelo comandante, era para ser avisado do seu embarque para o Amazonas, não foi? — Sim, foi. — Pois é, camarada, depois que você foi embora, eu também recebi a notícia. Ele pausou e disse: — Eu vou também! Basílio deu um sorriso que já não dava há alguns dias e disse: — Que máximo, cara! — Os dois apertaram as mãos espalmadas como de costume e Araújo disse: — Para dizer a verdade, estou meio receoso. Mas, por outro lado, não tenho esposa nem filhos. Fico meio assim por causa de meus pais e meus irmãos, que estão malucos com tudo isso. Porém, o bom é saber que iremos ganhar uma grana forte quando voltarmos! Os dois sentaram-se à mesa com o café da manhã na bandeja, e Basílio disse: — Para dizer a verdade, nem parei para pensar nisso. A Cíntia foi embora de casa, voltei a ser solteiro. Araújo arregalou os olhos, e, deixando escorrer café com um pedaço de pão pelo canto da boca, disse, assustado: — É mesmo, Basílio? Ele limpou o canto da boca e continuou: — Mas, cara, como isso aconteceu? Como foi? — Como você sabe, a gente já não vinha bem há um bom tempo... Araújo perguntou: — Mas foi depois que ela soube que você ia para o Amazonas? — Não, não. Quando cheguei em casa para dar a notícia ontem cedo, ela já estava se preparando para ir embora. E a desgraçada nem ia falar comigo. Iria deixar um bilhete, é mole? —Araújo não parava de comer um só instante, e de olhar para o amigo ao mesmo tempo. Ele pegou uma banana e disse: — Não tenho nada a ver com sua vida, e a de Cíntia. Acompanhei a história de vocês desde o início, fui padrinho de casamento e tenho certeza que gosta dela. Ele parou, comeu a banana e continuou a expor sua opinião: — Mas, cara, meu pai sempre disse: "Quando um não quer, dois não brigam". Sei que gosta dela, mas se tentar forçar a barra, é pior. Deixa ir embora. Sua vida não acaba aqui, pelo contrário, ela agora vai começar de outra maneira. Concorda comigo? Basílio parou, olhou para Araújo, pensando no que ele havia dito e disse: — Sim, você tem razão. Acho que essa viagem pro Amazonas vai me ajudar bastante, é o que espero... Araújo abriu um sorriso e disse: — Mas é claro, pense: estamos solteiros novamente, largadinhos da silva. O Amazonas vai ficar pequeno para a gente, vamos comer até arara se quer saber... Os dois riram juntos em gargalhadas boas e altas. Levantaram-se e saíram em direção ao quartel para receber as últimas orientações para a viagem. Capítulo V - O ataque inesperado As tropas viajaram dias em navios de transportes de tropas pelo litoral brasileiro, até chegarem ao porto de Belém, capital do estado do Pará. Por lá ficaram mais alguns dias. Em seguida, foram por via aérea para uma grande instalação militar construída às margens do Rio Negro, um pouco depois da cidade de Manaus. Esse grande Q.G. militar construído ali servia como uma central dos militares, possuía um heli-porto, o que tornava prático o transporte de munições, armas, mantimentos e medicamentos por via aérea. Dali, todos esses carregamentos eram levados até pequenos acampamentos no meio da floresta, feitos mais próximos da fronteira com a Colômbia. O transporte para os acampamentos era feito por balsas pelos rios e igarapés, já que transporte terrestre seria impossível, o que tornava alvos fáceis e vulneráveis os militares que neles navegavam transportando alimentos, munições e remédios. Os militares que participavam desses transportes procuravam sempre navegar em rios ou afluentes grandes e largos, poi,s quanto mais longe das margens, mais difícil era a possibilidade de sofrerem ataques, o que não adiantaria de nada para o Sargento Basílio e seu grupo mais tarde. Esses acampamentos eram articulados de tal forma que batalhas eram travadas no meio da mata. Às vezes, às margens de afluentes. As tropas ficavam nesses acampamentos básicos de campanha, e dali movimentavam-se pela mata até alcançarem as linhas de combate. Além do governo colombiano não recuar, outro motivo que fazia com que a guerra não terminasse, era que pelo tamanho e densidade da floresta, era fácil soldados tanto colombianos como brasileiros movimentarem-se pela mata sem que fossem notados. Nem mesmo uma varredura de helicóptero ou avião era capaz de identificar tropas mobilizadas em meio à mata. Certas partes da floresta possuíam árvores de até 50 m de altura por longas extensões. O que acontecia em relação às batalhas era que, às vezes, ou até raramente, a aeronáutica brasileira conseguia identificar focos ou alguma informação de tropas de soldados colombianos pelo meio da floresta. Porém, sempre que essas informações eram obtidas, tropas brasileiras dirigiam-se para o local para travar a batalha. Muitas vezes, por parte de ambas as forças, aconteciam ataques imprevistos que causavam verdadeiros extermínios. Os fuzileiros recém-chegados sentiram bastante diferença da vida cotidiana na caserna. Ali, todos viviam tentando disfarçar a aflição de estar longe de casa e no meio da floresta amazônica, sem contar o risco de perder a vida. A Colômbia já estava enfraquecida naqueles seis meses de guerra, a aeronáutica colombiana praticamente não existia mais. Porém, travar uma guerra no meio de uma floresta como aquela, era o que tornava distante algum tratado de paz, até porque encontrar militares colombianos no meio daquela mata era como encontrar formigas na mesma floresta. Os fuzileiros que chegaram ficaram alguns dias organizando mantimentos, cuidando da limpeza das instalações e armas. A todo o momento chegavam notícias de baixas no efetivo de alguma companhia ou algum pelotão no meio da floresta. Assim estava resumida a guerra naquele momento, brasileiros caçando colombianos e colombianos caçando brasileiros. Aquele que tivesse mais sagacidade de surpreender o inimigo, sobreviveria mais tempo. Como se aquele processo fosse chegar a algum lugar ou fosse necessário para o bem das nações. A Colômbia já não tinha mais como tomar terras que diziam ser suas. E o Brasil, defendendo o seu território, o que apenas aumentava o já elevado número de mortes. Mesmo que o Brasil estivesse perdendo a guerra, a Colômbia não tinha nenhuma condição social ou política de assumir o território, porque o seu já estava destruído e desestruturado, tudo desnecessário. — Sargento Basílio e sargento Araújo, avancem! — gritou o Capitão Toledo. Os dois estavam juntos com alguns soldados, orientando a separação de barracas de campanha. Viraram-se e dirigiram-se rapidamente em direção ao Capitão. Era um mulato de meia estatura com a cabeça raspada e olhos ferozes. Basílio já o conhecia desde a época em que fizera um curso dentro da Marinha brasileira de guerra na selva. Eles aproximaram-se e, quase que ao mesmo tempo, disseram: — Pois não senhor! — em voz alta e prestando suas continências. O Capitão começou a falar como se fosse um discurso: — Vocês já estão há aqui alguns dias, e serão vocês que irão em uma missão em vinte minutos, ok? Os dois responderam: — Sim, senhor! — Não temos tempo a perder! Continuou o Capitão: — o 1º e o 2º pelotões, da 1ª Companhia do Batalhão de Infantaria estão há dois dias em um ponto estratégico no meio da floresta. Estão camuflados e escondidos para interceptar soldados colombianos que, de acordo com informações do comando, irão passar por algum rio naquela região. Vocês irão levar munição, ração militar e repelentes. O piloto da balsa já está sabendo qual o local do encontro. Conforme as coordenadas que eles passaram por rádio, a carta de orientação já está com ele. Combinado? Os dois repetiram: — Sim, senhor! — Agora, ouçam bem: aqui na floresta, nosso inimigo principal são os colombianos. Porém, devemos ter cuidado e atenção com tudo ao nosso redor. Certas partes do rio são repletas de cardumes de piranhas, e cobras também estão perto de nós sem que nós possamos vê-las, até formigas carnívoras capazes de devorar um homem em minutos, portanto, senhores, muito cuidado. — Sim, senhor! O capitão Toledo virou-se para Basílio e disse: — Lembro-me de você, rapaz. Acho que já devia estar acostumado com mata, não? Basílio respondeu: — Sim, senhor. É verdade que nunca estive na frente de batalha, mas já fiz vários treinamentos de semanas em florestas, inclusive o “Guerra na Selva”, no qual o senhor também participou na turma em que eu estava. — Sim, eu me lembro. Outra coisa: além de vocês dois irão na balsa mais cinco soldados, dois cabos e o piloto da balsa que também é cabo. Quem dos dois é o mais antigo? Basílio respondeu: — Eu senhor. — Pois bem Basílio, ao seu comando, e entre os militares da tripulação, alguns são novos aqui como vocês, mas outros já estão aqui há alguns meses, e não se preocupem com o caminho. O piloto já está aqui há um tempo, e quis ficar mais alguns meses. Não é a primeira vez que navega para aquele lado. Boa sorte! Os dois disseram: — Sim, senhor! Viraram-se e saíram andando, quando Araújo comentou: — Será que é muito perigoso em relação aos colombianos? Basílio respondeu: — Acredito que não. Estamos longe da fronteira onde estão espalhadas a maior parte das tropas em batalha, e não iremos até o local onde estão acampados. Você não ouviu o capitão dizendo que eles vão estar em algum ponto já combinado com o piloto da balsa? Deve estar por lá nos esperando algum grupo de fuzileiros, que devem ter andado pela mata até a margem de algum rio para pegar os mantimentos. Acho que não vamos nos aproximar de nenhum perigo. — É, você tem razão. — disse Araújo: — De qualquer forma, todo cuidado é pouco. Vamos armados até os dentes. — Isso aí! Agora, Araújo, vai na balsa ordenar que os soldados e cabos fiquem a bordos. Vou pegar minhas armas e já estou indo. — Ok. Os dois se separaram, Basílio se dirigiu ao paiol, e além da pistola que carregava, apanhou um fuzil 7.62, e vários carregadores municiados, verificou seu armamento, carregou suas armas, virou-se para o paioleiro e perguntou: — O senhor poderia ver se arruma para mim um saco plástico? — É claro! Abriu uma gaveta, apanhou o saco plástico e disse: — Pode levar, tenho mais aqui. — Obrigado, e um grande abraço. Ele retirou-se do paiol, colocou seu fuzil nas costas, cruzando a bandoleira no peito, abriu um bolso da gandola e retirou uma foto, era Cíntia. A mesma foto que colocou no bolso no dia da partida do Rio de Janeiro. Guardava a foto com ele, às vezes ficava no meio das suas coisas no alojamento mas, por coincidência, aquele dia ela já estava em seu bolso. Ele olhou a foto, colocou dentro do saco plástico e colocou no bolso novamente. Fuzileiros tinham o hábito de colocar suas coisas do bolso ou de dentro da mochila dentro de plásticos, a fim de evitar possíveis chuvas, ou mergulhos inesperados, assim suas coisas estariam seguras da água. Dirigiu-se para a balsa. Ainda no caminho, de longe já estava analisando o barco. Ele era grande e de cor cinza com várias pinturas camufladas como as fardas dos fuzileiros brasileiros. No meio da balsa tinha uma cabine blindada com algumas janelas de ferro nas laterais, na frente da cabine, próximo à proa ficava o leme do piloto. Da metade da balsa para trás era toda aberta, apenas com um parapeito de ferro blindado nas laterais. Parte do que iriam transportar estava por ali, outra parte estava dentro da cabine que ficava no meio da balsa. Basílio subiu e disse: — Quero todos aqui comigo. Sargento Araújo já orientou vocês para estarem armados e equipados ao máximo? Todos responderam: — Sim, senhor! O sargento Basílio olhou todos os nomes das fardas daqueles que não conhecia. Entre os cinco soldados que ali estavam, Basílio já conhecia três que vieram com ele. Um era o Pinheiro sempre sério e calado, o outro era o lutador de judô Sampaio, e, por último, o cômico do Crhismon. Os outros dois soldados eram Ruiz e Dias, que já conheciam a rota, e já estavam no Amazonas há algum tempo. Os dois cabos eram cabo Franco e cabo Marcos Paulo, que também eram principiantes na viagem. O cabo mais antigo era o Valter, o piloto da balsa. — Quero que todos ouçam com atenção! – disse Basílio para a tripulação: — Quero todos com as armas carregadas, em punho, nada de fuzil ou metralhadora em bandoleira. Iremos e voltaremos sem descansar. A situação é real e precisamos dar tudo de nós para o bom cumprimento da missão. Soldados Pinheiro e Crhismon, vocês irão ficar do lado esquerdo da balsa aqui atrás da cabine. Soldados Sampaio e Ruiz ficarão do lado direito; cabo Marcos Paulo ficará com o soldado Dias na proa do barco cada um de um lado, e cabo Franco ficará na metralhadora .30. Eu e o Sargento Araújo estaremos o tempo todo com vocês durante toda a viagem. Teremos que ter muita atenção no decorrer da viagem. Qualquer suspeita de presença de alguém no meio da mata, ou mesmo no rio, gritar no exato momento para toda a tripulação. Todos disseram: — Sim, senhor! — E tomaram suas posições. Acima da cabine do meio da balsa, havia uma metralhadora.30, que ficava dentro de uma outra pequena cabine, onde só tinham fendas para poder enxergar o alvo. A escada para subir para cabine da metralhadora era por dentro da cabine, para a qual o cabo Franco estava subindo para começar seu serviço. A balsa partiu. Sargento Araújo se localizava na proa do barco conversando com o cabo Marcos Paulo e apreciando a flora e a fauna ao redor do rio. A mata era extremamente fechada. Em algumas partes do rio, a balsa era banhada pelos raios do sol; em outras, apenas pelas sombras das grandes árvores. A água do rio era barrenta e meio escurecida, mas mesmo assim dava para perceber os peixes que vinham à superfície. Nas árvores, ararajubas, pássaros de todas as cores possíveis voavam acima das árvores. Às vezes, passavam voando bandos de pássaros para lá e para cá, cruzando o céu azul e ensolarado. Não era difícil avistar a todo momento macacos pretos, marrons e brancos, que aproximavam-se das margens do rio a fim de descobrir o que era aquilo que vinha pelo rio, com aquele ronco de motor dentro d'água. Era a balsa dos fuzileiros com seus militares olhando para todo aquele show da natureza, e os animais querendo saber quem eram aqueles visitantes. Basílio aproximou-se do piloto, cabo Valter, atento a frente do barco e com as mãos no leme. Era um "cabo velho", como eram chamados os cabos que, na Marinha, não conseguiam ir ao posto de sargento, e ficavam no serviço como cabo até a época de ir para a reserva. Ele era baixo, moreno e de bigode, aparentava seus quarenta e alguns anos. — E aí, cabo Valter, tudo jóia? — disse Sargento Basílio bastante simpático e, ao mesmo tempo, com ar de líder. — Opa, sargento, tudo em ordens. — respondeu ele. — São tantos rios, de diferentes larguras, saem de um lado, saem de outro, largos e estreitos, eu não sei como você não se perde. — O cabo sem deixar de olhar para a frente da balsa disse com um ar de sorriso: — Ah, meu filho! Eu navego com a carta náutica que você conhece, até porque eu já fiz muito transporte por esses rios, já estou aqui desde o segundo mês de guerra. No primeiro mês, os fuzileiros, junto com a aeronáutica, arrasaram com a Colômbia. Logo depois construíram o centro de abastecimento, e aí foi quando eu vim para cá. Basílio olhou com atenção para o meio da mata e viu algo se mexendo nos galhos de uma árvore e disse: — O que é aquilo? O cabo Valter olhou, prestou atenção e disse. — Ora veja, de vez em quando ela aparece... é uma onça pintada. Basílio olhou com mais atenção, percebeu a beleza do animal, e disse: — Nossa! Como é bonito o bicho! Quando fiz curso de guerra na selva; não tive contatos com onças, tive com cobras, mas onças não. — Ah, sim... cobras – disse Valter. – Elas também às vezes aparecem às margens do rio; dentro d'água, elas escutam o barulho do motor da balsa e vão embora, mas não é difícil daqui até o local combinado, você ver alguma enrolada na areia na beira do rio. Basílio virou a cabeça na direção do cabo e perguntou: — O senhor sabe qual a distância até lá onde vamos? — Rapaz... pelo que já percorremos, ainda faltam de dezoito a vinte quilômetros. Dá tempo de irmos e voltarmos e chegar ainda claro, no fim da tarde. — Ah, sim. – disse Basílio. — Ok, cabo velho, qualquer coisa estamos aí, deixa eu ir lá atrás do barco. Basílio se retirou e foi até a popa da balsa onde se encontrava sentado o sargento Araújo. Ele sentou-se ao seu lado e disse: — E aí, parceiro, deslumbrado com a natureza aqui? — É impressionante a quantidade de pássaros diferentes aqui. É difícil até de contar quantos já vi diferentes. – disse Araújo. Basílio colocou seu fuzil em cima das pernas e disse: — Creio eu que ainda levaremos até o final da tarde para estarmos de volta. A distância não é tão longa e a balsa não vai tão devagar. — Será que ficaremos por aqui apenas fazendo esses transportes? – perguntou Araújo. — Não sei... Vai depender muito da necessidade de enfrentar os colombianos. Nesse momento, mais à frente um pouco, onde a balsa ainda iria passar, algo se movimentava no meio da mata, como se as folhas e árvores se mexessem, mas ninguém percebeu. — Se continuarmos assim, daqui a seis meses eu volto pra resolver minha vida. – disse Basílio. — Você tem que colocar na sua cabeça que sua vida já está resolvida, só basta recomeçá-la de outra forma. – retrucou Araújo. Os movimentos da mata aumentavam de acordo à medida que a balsa se aproximava. Algo esperava que os fuzileiros chegassem em algum ponto. — Você tem razão, cara! – disse Basílio. — E, além disso, seis meses passam rápido. — É por aí que você deve pensar mesmo... A voz de Araújo foi interrompida com uma grande explosão na frente do barco, levantando uma grande quantidade de água e balançando tanto que todos os fuzileiros foram ao chão. Como que instantaneamente, muitos tiros vinham de dentro da mata, acertando a balsa em toda a extensão. Basílio ao chão, empunhando seu fuzil, gritou desesperadamente: — Abram fogo! Protejam-se! Os tiros começaram do lado direito da balsa, mas em poucos instantes passaram a vir do lado oposto. O barulho era tão grande como o número de tiros em todos os lados da balsa. Todos abriram fogo em direção à mata. Mas estava sendo em vão, não tinham como, naquela situação, parar para tentar achar algum alvo. Os tiros não paravam, quando outra explosão do lado de fora do barco jogou Basílio para o fundo da balsa. Junto com ele, dois soldados baleados e mortos: eram Crhismon e Ruiz. Basílio, ainda agachado, apoiou seu fuzil e abriu fogo contra a mata, gritando: — Desgraçados, colombianos desgraçados! O soldado Pinheiro, abaixado por de trás do parapeito de ferro, gritava para o sargento Basílio: — Sargento, é muito tiro, muito tiro! Nesse momento, a cabine onde se encontrava o cabo Franco com a metralhadora havia sido cortada de um lado ao outro por alguma arma de grande porte que os colombianos usavam no meio da mata. O cabo caiu dentro da cabine. Menos um na balsa com vida. Araújo atirava incessantemente com seu fuzil para a floresta; às vezes dava para avistar algum soldado colombiano deitado no meio do mato, mas tentar fazer algum alvo naquela situação desesperadora era impossível. Ele gritou para Basílio: —Basílio, estou indo para a frente da balsa, abra fogo daí! – Araújo foi rastejando rapidamente pela balsa, passou pelo cabo Valter atirando com um fuzil apenas com a cabeça acima do parapeito de ferro. Araújo disse: — Cabo Valter tenta com cuidado ligar a balsa, e tirar a gente daqui, rápido! O cabo fez o que o sargento Araújo ordenou, mas ao passar rastejando, Araújo percebeu que algo caiu ao seus pés. Ele olhou, era o Cabo Valter, com um tiro de fuzil na testa. O desespero tomou conta das últimas vidas restantes na balsa. O cabo Marcos Paulo e o soldado Dias ainda estavam atirando na frente do barco, e Basílio estava atirando sem parar na popa da balsa. Ele olhou para a frente e viu Araújo atirando próximo ao leme. Em questão de segundos, ele pensou que seria impossível ligar a balsa e sair dali, pois os colombianos já deviam ter algum militar de prontidão para acertar quem chegasse ao leme. Ao pensar nisso, viu seu amigo Araújo correndo para junto do leme. Basílio gritou como nunca havia gritado na vida: — Não! Araújo, não, não! Ao se levantar, Araújo foi jogado para fora da balsa por vários tiros de fuzis. O coração de Basílio gelou, não acreditava no que estava vendo, abaixado no assoalho da balsa, seu corpo todo estava gelado. Araújo acabava de ser morto. Como se fosse num susto, olhou à sua frente e viu duas granadas arremessadas dentro da balsa. Naquele momento, ele só tinha alguns segundos para tentar salvar sua vida. Se ficasse ali, morreria com a explosão. A imagem de seu amigo que acabara de ser alvejado não saía de sua cabeça. Basílio ainda ouvia algum barulho de estampidos de tiros de dentro da balsa para fora. Devia ser o cabo Marcos Paulo, Dias ou alguém ainda com vida dentro da embarcação. Ele levantou-se, e correu gritando: — Pulem no rio! A explosão se fez atrás de Basílio, porém por já ter se afastado, tinha tomado certa distância das granadas. O impulso da explosão ajudou para lançá-lo para fora da balsa, mas ainda assim, alguns estilhaços penetraram em seu corpo. Ele caiu dentro d'água, e rapidamente se distanciou do local onde a balsa estava parada. Era um excelente nadador e, junto com a correnteza do rio, logo se distanciou. Ficou debaixo d'água durante alguns minutos. Seu corpo sangrava, mas ele conseguiu chegar à superfície e com a cabeça do lado de fora, olhou para trás e viu a balsa pegando fogo. Não estava mais tão perto do local do extermínio, mas preferiu submergir a cabeça no rio e aproveitar que a direção do rio estava ao seu favor. Ficava debaixo d'água, com as costas doendo e sangrando na altura do ombro, porém não parava de pensar em seu amigo Araújo, em sua tripulação, e também no possível ataque de alguma criatura dos rios amazônicos. Mas sabia que, quanto mais distância tomasse naquele momento, valeria sua vida. Como um bom fuzileiro, sua pistola ainda estava na sua cintura, e seu fuzil nas costas. Contudo, começava a sentir mais pesado tudo que carregava em seu corpo, que já estava sangrando em várias partes devido aos estilhaços das granadas. Ele nadou, nadou, nadou, já não aguentava mais, se sentia exausto e tonto, quase desacordado. Aproximou-se da margem do rio. Na altura que estava, já havia se distanciado dos colombianos depois de horas dentro do rio. Até porque, depois do ataque, os colombianos deviam ter entrado no barco e por não saber a quantidade de militares ali existentes, achariam que todos os corpos encontrados seriam o efetivo da tripulação. Basílio saiu de dentro d'água, tonto e cambaleando, retirou seu fuzil das costas. Com alguma dificuldade, levantou a cabeça e olhou. Tudo estava turvo, sua mente não conseguia perceber o que estava na sua frente, tudo verde, muitos sons de aves. Ele cambaleou, caiu de joelhos, e caiu com todo seu corpo na areia molhada das margens do rio. Basílio havia desmaiado. Capítulo VI - Os índios invisíveis. O sol já não estava mais tão alto, as aves já começavam a emitir sons de que estariam prestes a se recolher e até, aquele momento, Basílio permanecia deitado e desacordado. Ele estava deitado na areia molhada à beira do rio, seu corpo estava todo fora d'água a alguns metros de distância onde pequenas marolas formavam-se. O sangue escorria pela areia até a água, e seu fuzil estava jogado ao seu lado. Não havia nenhum sinal de vida humana por ali, somente os sons de pássaros, macacos e galhos das árvores. De repente, surgem, de dentro das águas do rio, dois olhos, apenas dois olhos grandes e amarelados. Olharam para a margem do rio, à procura de algo. Acabava de encontrar a sua presa. Os dois olhos vinham na direção de Basílio, que ainda estava desacordado na areia. Ao se aproximarem da margem, seu corpo apareceu, era um enorme jacaré preto com faixas amarelas pelo corpo. Com certeza, tinha vindo por dentro d'água atrás do rastro de sangue que Basílio havia deixado com seus ferimentos. Era um caiamão-preto, um jacaré típico da bacia amazônica que chegava até seis metros de comprimento, um dos maiores de sua espécie, também conhecido como jacaré gigante. A sorte de Basílio esteve com ele durante todo o tempo dentro d'água enquanto nadava na mesma direção da correnteza. Depois de não ter encontrado com cardumes de piranhas, sucuris gigantes ou até mesmo jacarés, parecia que agora a sorte o havia abandonado. A criatura gigante se aproximava cada vez mais seguindo o rastro de sangue. Ele colocou a cabeça negra para fora d'água, e devagar foi colocando todo seu corpo preto com faixas amarelas. Basílio não demonstrava nenhum sinal de voltar a si, era naquele momento o forte e disciplinado sargento uma presa fácil para ser devorado pelo caiamão. Mas alguma coisa se movia dentro do mato em meio às árvores, novamente parecia que a mata se mexia, mas dessa vez não eram os colombianos. Olhos vivos e atentos ao grande jacaré vinham do meio do mato, de trás das árvores e de cima delas, os corpos se mexiam como se as folhas estivessem andando. O jacaré ia na direção de Basílio e iria chegar aos pés do sargento. Faltava menos de três metros para que alcançasse o sargento, quando uma grande lança de madeira foi lançada do meio do mato por alguns daqueles olhos que se mexiam. A lança comprida e de madeira forte fincou na areia em frente às narinas enormes do réptil. Ele ainda tentou recuar para continuar na direção que vinha seguindo pelo rio a quilômetros, mas, como se fosse automaticamente, várias lanças vinham de dentro da mata, lançadas com força, e, com grande talento para tal ação, as lanças foram cercando o jacaré. Uma na frente, outra de um lado, outra do outro lado, e, assim várias lanças, foram criando um verdadeiro cercado ao redor do caiamão-preto. Um corpo pintado com vários tons de verdes, preto e cinza passou ao lado de Basílio deitado na areia, e lançou um tipo de arma feita com cipós secos e entrelaçados, tendo nas duas extremidades amarrados dois pedaços de madeira afiados. A arma imobilizou em parte o jacaré, fincando suas duas pontas na areia com o cipó por cima de sua cabeça preta. Logo após outros seres pintados chegaram à areia e lançaram a mesma arma, prendendo cada vez mais o jacaré na areia. Quando o réptil já não causava nenhum perigo de abocanhar alguém, e, antes que se desprendesse das cordas que o seguravam por alguns minutos, uma flecha foi acertada em cheio em sua cabeça. O jacaré gigante ainda hesitou em se bater mas logo quietou-se, demonstrando que morrera. Apenas uma ou duas flechas daquelas já tinham salvo a vida do sargento ainda no chão, mas aqueles seres, por estarem ainda longe do jacaré, usaram seus meios para que, de longe e de dentro do mato, salvassem o sargento da criatura. Após imobilizado o jacaré, e sem que esse causasse algum risco à vida do sargento ou de algum deles, duas flechas lançadas de mais perto foram o bastante para acabar com o inimigo. Basílio continuava desacordado na areia molhada sem ter a mínima noção de que acabara de ter sido salvo por pessoas que nunca havia visto antes, e muito menos do perigo que passou enquanto estava ali deitado. Aqueles salvadores aproximaram-se do corpo deitado no chão. Primeiro chegaram dois, depois mais dois, e, por último três, eram sete ao total. Dois que estavam em pé ao lado de Basílio conversavam em uma língua estranha, uma típica língua indígena, e, ao mesmo tempo, fazendo sinais um para o outro. Um deles apanhou o fuzil e colocou nas costas, enquanto três deles estavam à margem do rio rindo do outro que encenava como de brincadeira cenas de sexo com o jacaré morto. O que estava com o fuzil nas costas, junto com outro, tinha nas mãos, um tipo de cabaça contendo um líquido dentro. Levantaram a cabeça de Basílio e jogaram-lhe um pouco de líquido em sua boca. Basílio engoliu e tossiu sem deixar voltar o líquido; contudo, ainda continuava desacordado ou sofrendo de algum tipo de delírio causado pela febre que tomava conta de seu corpo. Um dos dois, que estava em pé ao lado de Basílio, como se fosse uma espécie de líder, acenou para os gozadores do jacaré que estavam na beira do rio, e, rapidamente, eles retiraram de dentro de uma espécie de bolsa a tiracolo feita de couro uma rede toda entrelaçada de cipó, todos muito bem amarrados, pegaram duas lanças e enfiaram no meio dos cipós uma em cada extremidade da rede fazendo um tipo de maca hospitalar. Apanharam Basílio no chão e colocaram-no em cima da rede. O líder continuou falando e gesticulando. Três deles apanharam o jacaré, enquanto outros dois pegavam nas lanças que serviam de suporte para levantar o sargento do chão e saírem carregando pela floresta adentro. Capítulo VII - A aldeia dos índios invisíveis. Atauãs. Ao abrir os olhos lentamente, Basílio percebeu algo se mexendo na sua frente à uma certa distância. Preferiu não se mexer e esperar que seus sentidos voltassem ao normal, sua visão estava meio turva, seu corpo exausto e sua boca seca. Ele percebeu que estava deitado em uma espécie de rede, olhou para o alto e percebeu um imenso teto feito de palhas, cipós e galhos amarrados, uma verdadeira obra de arte. Sentia algum cheiro de fumaça vindo de longe, mas percebia que estava dentro daquele mesmo lugar, ouvia por perto, como se fosse fora do lugar onde estava, sons de crianças, homens falando línguas estranhas e barulhos de animais. Tentou se mexer, mas logo desistiu, seu ombro doía muito e seu corpo estava quente de febre. Preferiu ficar quieto e tentar ver o que era que se mexia a uma certa distância dentro daquele lugar. Por alguns momentos, imaginou que fossem colombianos, mas logo esqueceu a hipótese, pois se fossem eles, não estaria deitado em uma rede, e muito menos com um curativo feito de folhas e couro de algum animal enrolado a seu tórax. Ele olhou fixamente na direção do ser, que se movia sem movimentar seu corpo e viu que era uma mulher, estava sentada e remexendo vários pedaços de cipós secos e pedaços de madeira. Ele continuou olhando e percebeu que a mulher tinha cabelos lisos e pretos, uma pele morena e não era tão nova. Fixou mais a atenção na mulher e, aí, seu cérebro conseguiu desvendar. Aquela figura à sua frente era uma índia e ele estava dentro de uma oca, só podia ser... — "Mas não é possível!" – pensou ele. Estava com muita sede, seu corpo esgotado e. por isso. não conseguia pensar normalmente, não sabia onde estava, mas sabia que não estava em apuros. Com muita dificuldade, tentou desencostar suas costas da rede, mas sem sucesso, e soltando um pequeno gemido de dor. A índia de meia idade virou-se com um sorriso. Pararam os dois com os olhares fixados um ao outro. Ele sério e com expressão de não entender muito o que seria aquele lugar, e a índia com um sorriso banguela e com expressões de felicidade em ver seu hóspede acordar. Ela se levantou de onde estava sentada, aproximou-se de Basílio e murmurou algumas palavras que o sargento não entendeu. Após dizer aquelas palavras, ela virou-se e foi na direção de uma abertura na parede de palha, cipós e galhos; ali seria a porta da oca que ele estava. Ele ouviu a índia gritar do lado de fora. Logo, em alguns minutos, entraram na oca quatro índios, eram homens morenos, com cabelos lisos e pretos como Basílio. Nunca havia visto algo assim antes: estavam com seus corpos pintados, seminus, possuíam todos eles um dente de algum tipo de animal, um dente canino transpassado no lábio inferior. Todos eles traziam na mão uma lança, e dois deles com um arco amarrado nas costas. Já não havia mais dúvida para Basílio que, deitado na rede, observava aqueles homens, que tinham salvo sua vida. Porém, tudo era muito novo para o sargento, muita coisa ele gostaria de saber naquele momento. Onde estaria o resto da tripulação? Como ele foi achado? Por que aqueles índios não o mataram? Um deles parou em frente a Basílio, falou palavras na sua língua indígena e, ao mesmo tempo, fez sinais apontando para fora da oca. Os sinais deram a perceber para Basílio que alguém lá fora queria falar com ele. Basílio tentou se levantar da rede para acompanhar os homens, mas foi interrompido pelo mesmo que estava em sua frente colocando a mão cuidadosamente no ombro que não estava ferido, fazendo um gesto para ele não se mexer. Dois que estavam atrás aproximaram-se e com suas lanças fizeram uma espécie de maca com a rede que o sargento se encontrava, a mesma com a qual o haviam carregado quando foi salvo na beira do rio. Seguraram Basílio no alto, enquanto um terceiro índio soltava a rede que estava amarrada a dois troncos de madeira entre tantos outros que sustentavam aquela oca. Cuidadosamente, foram carregando Basílio e, ao chegar do lado de fora, a luz do sol quase o cegara, mas logo foi voltando a nitidez das imagens. Ele estava sendo carregado pelo meio da aldeia. Vários índios ainda crianças acompanhavam o transporte de Basílio rindo e brincando com o novo hóspede que acabara de acordar. O restante da tribo parou o que estava fazendo, para olhar o sargento que estava sendo carregado como uma espécie de amigo da tribo, ou algum rei, ou qualquer ser idolatrado... Era muito cedo para saber. Nada estava encaixando na sua cabeça quanto à sua situação naquele momento. Ele foi levado pelo meio da aldeia. Era um grande clarão feito no meio da mata, com várias ocas grandes em volta, e, por trás, a grande mata amazônica. Todos o olhavam com expressões de satisfação em ver o sargento vivo. Pararam com Basílio e desceram a rede no chão. Nesse momento, Basílio já conseguia sentar, pois não tinha mais o encosto da rede que se encontrava por debaixo dele no chão. Olhou para frente, e viu sentado em um grande tronco de árvore um velho índio. Tinha cabelos compridos como todos, grandes penas de várias cores amarradas na cabeça. Nas costas havia uma espécie de roupão jogado, uma grande pele de onça pintada. O canino no lábio inferior do velho índio era maior que o dos outros índios. O velho índio levantou-se e disse: — Ig! Ig guarini! Ig! Logo destacou-se entre os índios uma das figuras mais lindas que Basílio havia visto depois de Cíntia. Era uma índia morena, mas de uma cor que ele nunca havia visto antes, uma mulher corada, os cabelos eram pretos como a noite, e seus olhos pouco rasgados emitiam uma cor amendoada. Basílio estava perplexo com tamanha beleza, nunca havia visto uma mulher, ou uma garota como aquela entre todas que já conhecera. Ela estava com um sorriso meio envergonhado, mas, ao mesmo tempo, querendo aproximar-se de Basílio, e, como o velho chefe tinha ordenado, ela trouxe nas mãos uma cuia com água. Ela abaixou-se em frente ao sargento, estendendo-lhe a cuia d'água, sem que seus olhos perdessem os olhos de Basílio, como se uma força invisível, magnetizada como ímã, fizesse aqueles dois pares de olhos se fixarem. Quando o velho índio aproximou-se, a índia levantou-se, deu as costas e saiu. Basílio ainda ficou a olhar aquele corpo torneado como uma obra de Miguel Ângelo com todas as curvas perfeitas, apenas escondidas por um tipo de saia feita de couro. A hipnotização do sargento terminou quando o velho sentou-se no chão à sua frente e disse: — Beba! Beba! Basílio olhou para dentro dos olhos do velho e gelou franzindo a testa, sua voz sumiu ao tentar falar alguma coisa, e, meio que gaguejando pelo estado de fraqueza em que se encontrava, disse em voz baixa: — Você fala minha língua? O índio deu um meio sorriso e respondeu com aquele carregado sotaque indígena: — Sim! Eu falar língua de Cari! Ao falar, o velho apontou para o braço branco de Basílio repetindo: — Eu falar língua de Cari! Depois apontou para o seu próprio braço moreno e disse: — Eu falar língua de Atauã, Aruakue! Basílio levantou a cuia com uma só mão e levou à boca bebendo aquela água com tamanha sede que escorria pelos cantos dos lábios. Ao terminar toda a cuia, o velho índio disse, apontando para o próprio peito: — Eu, abaquar dos Atauã. Apontou para Basílio e continuou: — Você, Cari guarini, amigo. O velho deu uma pausa e continuou: — Tu, cari guarini, foi salvo por nós, Atauã, povo atauã, índios da família Aruakue. Eu, Abaquar, falar para você tudo que querer saber. O velho deu uma pausa e continuou em tom mais baixo e calmo apontando para Basílio: — Cari guarini chegô aqui machucado, quase morto, foi salvo pelo Cacauá, que chamô Acamã, e cari guarini voltou. Basílio começou a perceber, que cari talvez fosse homem branco pelo índio ter apontado para sua cor, Atauã talvez fosse o nome de sua tribo pertencente a uma família do tronco linguístico Tupi Guarani chamada Aruakue, e seu nome ou o nome dado ao chefe da tribo era Abaquar. Mas quem seriam Cacauá e Acamã, que ele disse que o tinham salvo? Como aquele velho índio, mesmo com dificuldade, sabia pronunciar palavras de sua língua que ele entendia perfeitamente? Muita coisa ele ainda haveria de descobrir naquele lugar. De repente, o velho levantou-se e disse alguma coisa fazendo gestos. Alguns índios saíram e voltaram. O primeiro índio a chegar à frente de Basílio trazia na mão uma vara de madeira e a fincou no chão. A vara tinha outra vara amarrada perpendicularmente à outra fazendo uma espécie de cruz, onde estava uma farda do exército colombiano, com várias flechas fincadas e uma lança deles mesmos fincada na altura do peito. Logo veio um segundo índio com outra armação e fincou no chão, essa já tinha pendurada e estendida nela uma farda do corpo de fuzileiros navais do Brasil, porém essa farda não tinha suas armas atravessadas. Ela, ao contrário, tinha várias penas de muitas cores. Basílio observou a farda por um instante e, em seguida, olhou para algumas pinturas no corpo de certos índios em pé por ali, a camuflagem da farda era idêntica à pintura dos índios, ou seja, a pintura que alguns índios tinham em seus corpos era idêntica as fardas dos fuzileiros. O velho chefe indígena apontou para farda dos fuzileiros e disse: — Esse ser amigo dos atauãs, e atauãs ser amigo deles. O velho olhou para Basílio e apontou para a farda do exército colombiano e continuou: — Esses ser maus, muito maus, mata índio Atauã, pega mulheres Atauãs. O velho apanhou uma lança da mão de um índio e, como se fosse um político em discurso, disse em voz alta: — Mal, mal, cari tapuia mal, Atauã mata! Ao gritar, ele enfiou a lança na farda colombiana, no mesmo momento. Todos os índios homens emitiram um som ao mesmo tempo, como se fosse algum grito de guerra apoiando seu chefe na ideia de eliminar qualquer um com a farda colombiana. Naquele instante, Basílio olhou para todos aqueles índios, as índias por trás, as crianças, e percebeu que tinha sido salvo por um povo que sabia perfeitamente o que acontecia com o Brasil naquele momento. Em algum momento da guerra, colombianos invadiram a sua aldeia e cometeram atrocidades aos índios, suas mulheres e crianças. A partir daí, aquele povo gentil e simpático percebeu que aqueles eram seus inimigos. Já os fuzileiros brasileiros, com certeza, deviam ter tido algum contato com eles, até porque não parecia ser um povo que nunca havia tido contato com o homem branco, e o que dava certeza disso era o fato do chefe falar palavras da língua portuguesa. Olhou fixamente para a farda dos fuzileiros fincada na sua frente e reparou que, no lado esquerdo, à altura o peito, estava escrito: Araújo. Ele animou suas expressões e gritou para o Abaquar: — Hei! Hei! Onde ele está? Onde ele está? – apontando para a farda. Todos fizeram silêncio e Abaquar disse apontando para a floresta: — Acamã levou, Acamã levou. Os olhos de Basílio encheram-se de lágrimas. Agora entendia quem era Acamã: era o nome dado ao espírito, ou Deus deles que vivia na mata. O mesmo que o salvou havia levado Araújo. Eles deviam ter encontrado o corpo de Araújo assim como o dele, porém, ele lembrou do momento da balsa quando o amigo tinha sido alvejado... Araújo estava morto assim como a tripulação. Basílio abaixou a cabeça e deixou cair algumas lágrimas lembrando do amigo. De longe, a linda índia que tinha levado água para ele o observava. Mesmo estando a alguns metros de distância, fixava com um olhar de quem gostaria de estar ali do seu lado naquele momento. Ainda faltavam algumas horas para o sol se por quando o velho índio Abaquar gritou para toda a tribo várias palavras da sua língua; contudo, uma dessas palavras Basílio entendeu: "Invisível". Vários índios correram, alguns foram para o lado esquerdo do grande terreiro da aldeia, outros foram para o lado direito. Ao chegarem onde termina o terreiro e começa a mata, todos eles pegaram grandes cipós e começaram a puxá-los ao lado oposto de onde estavam. Esses cipós estavam amarrados a grandes árvores, espécies de ceibas gigantes e outras árvores e palmeiras. Os índios que tinham ido para o lado esquerdo correram para o lado direito com os cipós na mão, e os que estavam do lado direito correram para o esquerdo. Os grandes galhos entrelaçados eram curvados por cima da aldeia e os cipós eram amarrados em troncos de árvores. O céu da grande ocara, ou seja, praça da aldeia, assim como toda aldeia, havia sido coberta pelos grandes galhos das árvores gigantes que ficavam com seus grandes galhos envergados e amarrados por cima da mesma, cruzando os cipós em toda aldeia. Logo em seguida, ouviram-se barulhos de aviões pelo céu. Aquele era um método de ficarem invisíveis aos olhos de pilotos de helicópteros e aviões. Dessa maneira, quem passasse sobrevoando aquela região e olhasse para baixo, iria ver apenas a grande e densa floresta, não conseguiriam perceber a aldeia que estava situada debaixo dos grandes galhos que a cobria. Basílio ficou impressionado com os métodos e recursos que aqueles índios haviam desenvolvido e percebeu também o porquê de certos índios terem em seus corpos pinturas idênticas às fardas de fuzileiros. Se, por algum motivo, aqueles índios tivessem que ir até a floresta, caçar, colher plantas, ou até mesmo frutos, assim ficavam invisíveis no meio da mata. Seria quase impossível perceber a presença de um índio pintado daquele jeito e imóvel no meio da mata; caso alguém percebesse, seria como se a natureza tivesse tomado forma humana. Aquilo seria apenas o início de tudo que o sargento Basílio iria descobrir vivendo com os índios invisíveis. Capítulo VIII - A índia Iaé. Na manhã seguinte, Basílio acordou dentro da oca, todos os índios já estavam de pé com seus afazeres do lado de fora de suas ocas. Ele ainda estavam com febre e sentia fortes dores no corpo, quando algumas índias mais velhas aproximaram-se dele com pratos e cuias de madeira na mão. Dentro desses recipientes, havia uma espécie de mingau, com forte cheiro de ervas. As índias colocavam a mão em seu curativo e diziam: — Cacauá, Cacauá! Ainda sentado na rede, elas retiraram o curativo que envolvia o seu tórax. Foi aí que percebeu o ferimento em seu ombro causado pelos estilhaços da granada, e vários pequenos ferimentos pelas costas. Com cuidado, as velhas índias passavam aquela pasta com cheiro forte de ervas em suas costas e seu ombro. Logo após, colocaram um novo couro em volta de seu tórax. Parecia uma pele de algum tipo de macaco ainda com cheiro do animal, mas longe de estar apodrecida. As índias retiraram-se, e ele olhou para o lado da rede onde estava sentado, viu sua faca de combate dentro da bainha. Ele a pegou, sacou-a, e ficou olhando o esplêndido brilho da lâmina de sua faca. Colocou no lugar e amarrou na sua perna, ainda com a calça camuflada e calçando seu but, estava sem camisa e apenas com o curativo no tórax. Basílio levantou-se da rede e foi até a porta da oca. Parou e ficou olhando. Deviam ser em torno de oitenta a cem indígenas entre homens, mulheres e crianças. Alguns construíam armas, outros preparavam as pinturas em seus corpos, mulheres faziam comida junto a um tipo de fogão enorme, feito de pedras com a brasa no meio delas como uma grande churrasqueira improvisada. Percebeu também que alguns índios estavam trepados em árvores em volta da ocara. Ele caminhou até mais próximo e olhou de mais perto, os índios estavam fazendo um tipo de manutenção nos galhos que usavam para fazer a aldeia ficar invisível. Não era simplesmente amarrar galhos em cipós e puxá-los para baixo até amarrá-los a troncos. Havia toda uma técnica de recomposição das folhas. Muitas delas eram colocadas por eles, e por isso essas mesmas deviam secar com o tempo, e aí vinha a necessidade de realizar manutenções nos galhos colocando novas folhas e novos galhos juntos aos galhos pertencentes às árvores situadas às margens da ocara. Basílio percebeu que alguém o chamava, olhou ao longe e viu que era Abaquar. Prontamente, ele direcionou-se até o chefe dos Atauãs. Abaquar fez sinal para que Basílio se sentasse à sua frente, e, logo em seguida, fez sinal para algumas mulheres que faziam a comida junto ao grande fogareiro de pedra. Uma velha índia apanhou uma tábua de madeira parecida com uma tábua de bater bife e colocou comida ali. O que Basílio nem Abaquar perceberam de longe foi que essa índia fora interrompida no início de seu trajeto até os homens para levar a comida, pela mesma índia que levou água para o sargento no dia anterior. Ela falou alguma coisa com a outra índia, apanhou a tábua de suas mãos, e seguiu na direção de Basílio. Enquanto isso, Abaquar dizia: — Abaquar querer falar, falar muito, para cari guarini. Basílio disse: — Eu também preciso muito que o senhor me diga algumas coisas. Ao dizer, foi interrompido com a chegada da grande travessa de comida, mas não foi à comida que deixou Basílio espantado, e sim quem a trazia. Ela estava com os olhos fixados nos dele como se nada estivesse acontecendo. Ao lado dos dois, colocou a comida no chão entre eles sem nem olhar onde estava colocando. Estava com os seios despidos e somente com os cabelos pretos e lisos jogados por cima, usava uma saia feita de couro e com o corpo perfeito nas suas curvas. A índia se foi com a ordem do Abaquar, e Basílio perguntou ao índio: — Qual o seu nome? Qual o nome dela? Abaquar olhou a índia indo por cima dos ombros de Basílio e disse: — Iaé, ela ser Iaé. Deu uma pausa e continuou: — Abaquar já viu cari guarini e Iaé se olhar...Abaquar viu... — Ee! Deu uma pausa e continuou: — Como diz na língua de cari Guarini, pai e mãe, opar e majú, morreu, cari tapuias matou, cari tapuias veio, e matou atauãs guarini que lutar, fugimos, atauãs correr pela mata, e Acamã ajudou, Acamã salvou atauãs. Basílio olhou a tábua de comida, havia ali frutas, uma certa carne de algum peixe. A única coisa que conseguiu perceber o que era realmente era a mandioca misturada como pasta junto à carne de peixe. Ele começou a comer e perguntou: — E Iaé tem marido, homem, tem algum atauã? Abaquar respondeu: — Não! Ela não ter. Quem escolhe homem para atauã mulher é seu opar, opar de Iaé morreu pelos tapuias, Iaé não ter atauã. Ele parou, olhou para o lado e tinha um índio a uma certa distância enrolando alguns cipós. Abaquar apontou e disse: — Ele ser Kapú, gostar de Iaé, ele guerreiro, ele ser guarini atauã, ele gostar de Iaé. Basílio olhou para o índio moreno e pintado com as cores verdes de todos os tons possíveis, preto e cinza. Os dois trocaram olhares sérios sem muita simpatia da parte de Kapú. Naquele momento, Basílio começou a perceber que alguma coisa começava a ter sentido. Iaé tinha aproximadamente entre seus dezenove à vinte e um anos de idade. Como Abaquar havia dito, o costume dos atauãs era que o opar, ou seja, o pai da índia escolhesse quem iria ficar com a filha. No caso de Iaé, estava sem ter quem escolhesse o seu destino, e acreditava Basílio que nem Abaquar tinha a solução. Basílio também havia descoberto que “guarini” como era chamado significava guerreiro. Eles entendiam que o sargento lutava em defesa de terras, de povos, de alguma coisa, e que não era inimigos dos atauãs; por isso o termo “guarini” era usado tanto para Basílio, como para os guerreiros atauãs. Já os tapuias, como chamavam os colombianos, significa inimigo. Em algum momento durante a guerra, os colombianos os encontraram em meio à mata, e, com armas de fogo, não deram nenhuma chance de defesa, mas, pelo que Abaquar disse, aqueles que ali estavam não enfrentaram os colombianos e fugiram pela mata, conseguindo se salvar. Acreditaram que seu Deus os protegeu na fuga e deviam ter se instalado naquela região. Daí o grande motivo daquele povo procurar A todo momento ficarem invisíveis, escondendo tanto seus corpos quanto sua aldeia com suas famílias. Foi aí que surgiram as maiores dúvidas de Basílio: como alguns deles aprenderam a falar outra língua? Ele não perdeu tempo: ainda comendo olhou para Abaquar e perguntou: — Abaquar, como você entende o que eu falo, e como fala palavras da minha língua? Abaquar suspirou e começou a contar, falando na língua do sargento: — Abaquar ser mais velho da tribo, Abaquar sabe tudo de Atauãs. – Ele pausou e continuou, enquanto Basílio comia e ouvia atentamente. — Atauãs sempre sofreram com os caris de fora, mas chegou na aldeia Atauã, um cari com nome Akaribó. Ele usava roupa de cari guarini. Abaquar apontou para a calça camuflada de Basílio, e continuou: — Akaribó queria saber de tudo de Atauãs, ficô muitas luas e muitos sol no meio dos Atauãs. Ensinou sua língua para Atauãs, e Abaquar ensinou língua Atauã para Akaribó, Akaribó ensinou Atauãs a ficar invisível, pintar corpo como ele, ensinou a aldeia ficar invisível, e atauãs nunca mais precisou aparecer para caris de fora. Basílio perguntou subitamente: — E ele? E Akaribó onde está? Abaquar levou o olhar longe, para a aldeia e para a mata e disse: — Não sabe. Abaquar não saber, foi embora em grande pássaro da ventania. Pássaro da ventania, que também faz mal para atauãs, levou Akaribó. Estava esclarecido o mistério de por que eles falavam outra língua. Basílio lembrou-se do Capitão Tenente Novaes, sobre quem Araújo havia comentado ainda no Rio de Janeiro, e dos quadros que vira no corredor que dava acesso à sala do comandante Saraiva. Ele lembrou do nome dado ao Capitão pelos índios, "Akaribó"... O Capitão Novaes ficou famoso quando, durante um curso de sobrevivência na selva, abandonou o curso para viver no meio de uma tribo indígena que havia encontrado no meio da floresta. Todos sabiam que o Capitão estava vivo, mas ele preferiu não ter contato com o mundo de fora, e viveu anos estudando os costumes, a crença, a vida dos índios. Ao voltar para sua vida normal, depois de bastante tempo vivendo com os índios, ele foi condecorado e homenageado pelos seus estudos. Nesse caso, Basílio acabava de descobrir que os índios aos quais o Capitão tanto se dedicou eram os Atauãs. Basílio baixou a cabeça e, com certa dificuldade, lembrou-se de quadros com o rosto do Capitão pintado, usando a farda do corpo de fuzileiros navais. Foi devido à imagem dos quadros espalhados nas casernas, por onde ele havia passado em sua vida militar, que ele lembrou e disse a Abaquar: — Eu sei quem é, eu conheci Akaribó. Abaquar olhou para dentro dos olhos de Basílio e perguntou: — E onde está Akaribó? Onde está? Basílio abaixou a cabeça, levantou-a e disse: — Ele não está mais no mundo, ele morreu. Basílio lembrou que nos quadros estavam gravados os anos de nascimento e morte do Capitão, vítima de um infarto nos seus quase sessenta anos de idade. Abaquar expressou um rosto de tristeza e disse: — Acamã levou Acaribó, Atauãs gostar muito de Akaribó. – Um silêncio predominou durante alguns minutos e Basílio perguntou: — Pássaro da ventania que levou Akaribó é o mesmo que quando passa Atauãs ficam invisíveis, não é? Abaquar respondeu: — Sim, pássaro da ventania, amigo! Veio buscar Akaribó. — Pássaros da ventania Atauãs se esconde. O pássaro da ventania eram os helicópteros, os índios tinham medo de alguns deles fazerem algum mal para aldeia, porém, no caso do que veio buscar o Capitão Novaes, eles só permitiram porque confiavam no Capitão para que esse fosse resgatado. Mas como ele conseguiu sair daquele lugar? Basílio pensou que se sabiam que ele estava vivo, estudando os índios, em algum momento ele haveria de ser resgatado, e, de alguma forma, ele conseguiu fazer contato. “Grande homem aquele!”, pensou o sargento. Viveu com aquele povo, e ensinou maneiras para que pudessem se defender do próprio povo do Capitão. Realmente, Abaquar e os Atauãs mais antigos deviam considerar muito a existência daquele homem no meio deles. Basílio virou para a aldeia e pensou, como ele iria sair dali? Não sabia para onde ir, nem direção e nem rota, e como iria fazer algum contato com outros fuzileiros? Realmente, não sabia o que pensar no momento; contudo, se sentia muito seguro e tranquilo no meio dos Atauãs. Era só uma questão de tempo para resolver o que faria, sem contar que, naquele momento, todos já deviam ter dado toda tripulação como morta, sem imaginar que Basílio estivesse vivo no coração da floresta, e prestes a viver a maior aventura de sua vida. Ele virou-se para Abaquar e disse: —Abaquar, onde bebo água? Preciso de água. Abaquar levantou-se e gritou para as índias: — Ig! Ig! Ig era água na língua dos Atauãs. Logo veio a índia Iaé. De longe seus olhos amendoados já brilhavam ao encontro dos olhos do sargento. Ele, em pé em frente a Abaquar, olhava Iaé se aproximar. Ela chegou perto com a cuia d'água na mão, colocou nas mãos de Basílio, ele pegou a cuia e disse: — Eu nunca vi algo tão lindo na minha vida... Seu rosto, seu sorriso são lindos! Ela soltou um leve sorriso sem entender muito bem o que Basílio tinha dito; contudo seus olhos não pararam de explorar todo o rosto do sargento. Os dois permaneceram um tempo se olhando, quando, de longe, o índio kapú gritou alguma coisa, ela olhou para o lado e logo retirou-se, correndo para junto das outras índias. Kapú virou-se e foi em direção à mata. Basílio voltou-se para Abaquar que estava atrás dele observando tudo e disse: — O senhor acha que existe algum mal em chamar Iaé de bonita? De olhá-la? Abaquar respondeu em tom calmo: — Abaquar não saber o que fazer, nem o que falar... Só saber que cari guarini e Iaé tão assim... Ele fez um gesto com as duas mãos levando uma em direção à outra, como se as suas duas mãos estivessem se atraindo. Porém, aquilo era só o começo do que o coração de Basílio iria passar junto dos Atauãs. Capítulo IX - Cacauá, icurumim e o dia a dia na aldeia. As semanas se passavam e Basílio estava cada vez mais envolvido pelos Atauãs. Já havia se acostumado com a rotina, com a comida e, principalmente, com a índia Iaé. Não passava sequer um dia sem pensar como iria embora. Porém, a hospitalidade e o convívio com aquele povo não o deixavam preocupado com a hora da partida. Ficava imaginando como seria esse momento. Basílio já havia aprendido, depois de bastante tempo, a falar muitas palavras da língua atauã, assim como os próprios índios aprendiam várias palavras da língua portuguesa. Dessa forma, a comunicação ficava muito mais fácil com o passar do tempo. Aprendeu a caçar com outros índios que saíam todos os dias tanto para caça como para a colheita. Ele aprendeu a fazer armas como lanças, arcos e flechas, pequenos machados de madeira e até mesmo a fazer o veneno dos afiados dardos das zarabatanas feitas por eles. A camuflagem de seus corpos ficou perfeita depois dos conhecimentos militares de Basílio, e, além da pintura, agora os índios prendiam em seu corpo e cabelos pedaços de pequenos galhos com folhas ensinados por Basílio. Dessa maneira, várias vezes, em cima de árvores, avistavam de longe tropas colombianas no meio da floresta, sem que fossem percebidos. Isso aconteceu poucas vezes quando se afastavam bastante da aldeia, à procura de certas frutas e plantas para alimentação. Por algumas vezes, Basílio ficava receoso de que colombianos encontrassem a aldeia. No entanto, na volta para casa com o grupo de guerreiros atauãs, percebia que seria difícil alguém encontrá-los. O caminho, além de distante, era cheio de pântanos e brejos que os índios evitavam, marcando o caminho em árvores ou guiando-se pela posição do sol. Basílio aprendeu com os índios a pescar, a caçar e a conhecer plantas, além de todos os recursos encontrados na natureza como, por exemplo, a acender uma fogueira, e a usar a língua do pirarucu para afiar pontas de flechas. Os ferimentos de seu ombro e das suas costas sararam, sentia-se mais saudável do que nunca, assim como sua paixão por Iaé aumentava cada vez mais. Eles já conversavam, saíam juntos com as crianças para a beira de algum igarapé mais próximo para banharem-se e lavarem alimentos. Iaé ficava horas ouvindo Basílio contar as coisas como eram na cidade. Ela prestava atenção como alguém que ouve uma história de ficção científica. Tudo que ouvia dele só servia para aumentar cada vez mais sua curiosidade no mundo. Não entendia muito bem, pois nunca havia visto as coisas que Basílio contava; contudo, além do interesse em ouvir, havia o imenso prazer em observar o sargento falar, gesticular, levantar os braços fortes e brancos e seu rosto com as formas que nunca havia visto antes, diferente dos rostos arredondados dos homens de sua tribo. Nessas conversas dos dois, algumas vezes eram surpreendidos por Kapú que, de longe, ficava observando. Ele não falava frequentemente com Basílio, evitava sair para caçar com o sargento e, quando isso acontecia, não dirigia a palavra ao mesmo. Algumas vezes, Basílio tentava conversar com ele, tentava aproximar-se, mas Kapú sempre se afastava com ciúmes de Iaé. Por algumas vezes, Basílio pensou em afastar-se de Iaé; contudo, com o grau de intimidade que havia criado entre eles, ela sempre o procurava. Certo dia, estavam sentados em um tronco de madeira junto a uma oca, ela com alguns pequenos pedaços de madeira na mão e cipós secos e ele com sua faca de combate na mão. — Cari guarini saber o icurumim? – perguntou Iaé a Basílio. — Não, o que é icurumim? Ela apanhou alguns gravetos, e, com certa prática, montou um pequeno boneco que cabia na palma da mão. Tinha seus membros e troncos de gravetos fortes, e amarrados por cipós. Basílio pegou em suas mãos e perguntou: — Isso é um icurumim? Ela sorriu e disse: — É icurumim. Ela apontou para umas crianças brincando e continuou: -Eles, curumins, e esse icurumim. Meninos eram chamados de "curumim", aquele boneco que ela fizera chamava-se icurumim. A letra antes do termo significava o fato de ser um boneco. — Onde aprendeu? Quem te ensinou? Perguntou Basílio: — Manju, manju de Iaé, ensinou Iaé a fazer icurumim – ela deu um suspiro de quem lembra de alguém querido e continuou: — Manju de Iaé ensinou a fazer pirarucu, mandioca, palmito... Basílio estava com sua faca cortando alguns pedaços de gravetos e disse: — Iaé faz comida muito bem, sabia? Ela entendeu o elogio, e sorriu para ele, dizendo: — Iaé fazer tudo que manju ensinou, manju de Iaé agora na mata com Acamã. Ela deu uma pausa e perguntou: — E manju e opar de cari? Onde tá? Basílio, com as mãos ocupadas no que estava fazendo, disse: — Estão longe daqui, muito longe, manju e opar de Basílio pensam que cari morreu, pensam que fui para junto de Acamã. — Mas cari tem que falar com manju e opar, tem que falar. – disse ela com a testa franzida. — Sim, Iaé... um dia eles vão saber, um dia vão... Agora não tenho como fazer nada, apenas ficar aqui do teu lado. Ela sorriu mais uma vez, demonstrando gostar do que ele falava abrindo bonitos dentes, em seus lábios pequenos e finos. Basílio fincou sua faca no chão e levantou um boneco de madeira feito por ele parecido com o icurumim de Iaé, porém, bem melhor confeccionado, com suas articulações furadas na madeira para dar passagem a pequenos pedaços de cipó, que prendiam e davam forma ao pequeno boneco. — Esse icurumim, gostou? – indagou ele. Ela apanhou o boneco nas mãos e ficou a observar com expressão de satisfação. Logo em seguida, enquanto olhava, Basílio levantou outro boneco. Sendo que esse tinha em sua cabeça de madeira alguns fios finos de cipó representando o cabelo do boneco. Ele colocou os dois nas mãos de Iaé e disse: — Esse aqui é icurumim Iaé – e, colocando um pedaço de graveto amarrado na mão do primeiro boneco, como se fosse uma lança e continuou: — E esse aqui ser icurumim cari guarini. Ele quis dizer que um boneco era ele, e outro era ela. Por alguns instantes ela olhou para os dois bonecos, e, subitamente, encostou um ao outro, como se estivessem se abraçando. Nesse momento, os dois olharam-se, como se uma força maior do que Basílio o atraísse para os lábios de Iaé, porém, antes que se aproximasse dela, que permanecia hipnotizada com o olhar do sargento, foram interrompidos por um chamado: — Guarini! cari guarini! Era Abaquar de longe chamando por ele. Ele levantou-se e se dirigiu para junto do velho índio, enquanto ela corria para dentro de sua oca com os bonecos nas mãos. Chegando junto a Abaquar, ele disse: — Pois não, Abaquar. — Cari vim junto de Abaquar, Cacauá precisa falar. Ao dizer, o índio saiu andando e Basílio ao seu lado perguntou, enquanto os dois caminhavam cruzando toda a ocara e aproximando-se da mata. — Cacauá? Mas o que é Cacauá? Abaquar dizia: — Cacauá ser velho atauã, Cacauá chamar Acamã, chamar Tupã e saber quando Amanaci vai mandar chuva. Quando Yara vai deixar pescar acari, para mulheres atauãs fazer piracuí, Cacauá saber tudo. Basílio já desconfiava do que Abaquar estava dizendo, mas, por via das dúvidas, perguntou: — Tupã, Amanaci, e Yara estão onde? Abaquar parou de caminhar, apontou para o céu e disse: — Tupã tá lá, Yara tá em igarapés, e Amanaci mandar chuva, para boa pesca e boa comida da mata. Era o que Basílio desconfiava: os três nomes citados eram deuses de sua cultura. Tupã estava nos céus, diferente de Acamã que estava na mata; Amanaci devia ser algum deus relacionado à chuva, já que Abaquar dissera que ela que mandava boa caça e boa comida da mata, e Yara, uma deusa dos rios, ou seja, dos igarapés, que mandava boa pesca. Mas quem seria Cacauá? Os dois chegaram aos limites da aldeia, e entraram por dentro da mata. Não andaram muito e Basílio avistou uma cabana feita de palha, galhos amarrados com cipós e troncos na suas paredes. Apesar de estar perto do grande terreiro da aldeia, estava muito bem escondida no meio das árvores. Muitos micos, e muitas araras e pássaros quebravam o silêncio da floresta. Basílio já avistava uma fumaça vindo de dentro da cabana, um forte cheiro de ervas e chás aumentava à medida que eles aproximavam-se da cabana. Os dois entraram, e havia um velho índio, ainda mais velho que Abaquar, sentado no chão, em cima de uma esteira. Os dois sentaram-se no chão na frente do velho, que fumava uma espécie de cachimbo, que mais parecia uma flauta de onde saísse fumaça. O ambiente tinha peles e couros de animais pendurados por toda parte, penas de várias cores e tamanhos que montavam adereços por toda a cabana. Algumas ervas queimavam nos cantos e, no fundo, atrás do velho sentado, uma pequena fogueira de onde ele acabava de tirar uma cuia com uma espécie de chá. O velho virou-se para os dois com o chá na mão, deu um gole e passou para Abaquar, dizendo: — Cacauá salvou cari... Eu ser Cacauá. Basílio espantou-se com as palavras do velho com sua cara enrugada. Seu português era o melhor que já tinha ouvido em toda a tribo durante aquele tempo que estava ali. — O senhor me salvou? – perguntou Basílio. Cacauá agora passava o chá para ele e disse: — Sim, Cacauá sabe que está aqui desde quando foi achado na beira do rio. Enquanto dormia machucado, cari foi trazido aqui em oca de Cacauá. Ele bebeu mais um gole do chá que Basílio lhe entregou e continuou: — Como falar na língua de cari, Cacauá invocou Acamã, pegou na floresta os remédios que Acamã mandou, cuidou de machucados de cari, e cari tomou tudo que Cacauá deu. – Agora, estava claro quem era Cacauá: era o curandeiro dos Atauãs, o homem que conhecia os remédios retirados da floresta e para que serviam; contudo, os atauãs acreditavam intensamente que tudo que faziam era regido pelo deus Acamã, que vivia no meio da mata. — O senhor também conheceu Akaribó? – perguntou Basílio, referindo-se ao Capitão Novaes, na intenção de saber o porquê de Cacauá falar melhor sua língua. — Sim! Respondeu Cacauá: — Acaribó muito amigo de Cacauá e Abaquar. Foi Akaribó que, junto de Cacauá, conheceu muitos remédios que Atauãs nunca conhecia. Akaribó foi muito amigo de Cacauá, Akaribó ensinou a Cacauá tudo que na floresta deixa atauã forte, sem doença e pronto para guerra. — Eu não sei se o senhor sabe, não sei se Abaquar disse, mas Akaribó morreu. – disse Basílio. — Sim, Abaquar falar com Cacauá, Cacauá querer muito que Akaribó ficasse, mas Akaribó queria voltar para sua terra, sua gente, levar tudo que aprendeu com Atauãs, mas Akaribó também foi muito bom para Atauãs. Ele passou o chá para Abaquar e continuou falando e fumando seu cachimbo. — Quando Akaribó tava aqui, não tinha tapuias, tapuias não tinha no meio da mata. Quando Akaribó queria ir embora, foi longe daqui, e fez fogueira à beira de rio, pássaro da ventania veio e pegou ele. Atauãs ficar no meio da mata, invisíveis para pássaro da ventania, e Akaribó foi embora. O Capitão Novaes, quando quis ir embora, para segurança dos Atauãs e para evitar um possível contato do mundo com eles, preferiu acampar às margens de algum rio e acender uma grande fogueira até alguém avistá-lo. Porém, não ficou só, índios atauãs ficavam com ele, e, quando chegou o helicóptero para resgatá-lo, os índios foram se esconder com suas camuflagens no meio da mata. Tudo aquilo foi muito bem planejado entre a tribo e o capitão que tanto amava aquele povo. Ele tinha algum conhecimento de botânica, pois, junto com a sabedoria do curandeiro Cacauá, conseguiram descobrir, além de remédios, muitos alimentos que, até então, os Atauãs não conheciam. Todo conhecimento que Cacauá e seu povo tinham adquirido de geração em geração foi aperfeiçoado depois do contato com quem chamavam de Akaribó. Cacauá, com voz firme, disse: — Atauãs fazer daqui a dois sol e duas lua, o chamado de Amanaci. Ela irá trazer chuva para boa comida da mata. Cari guarini, guerreiro, vai caçar e colher junto com atauãs para o manaí. — Mas o que é ou quem é manaí? – perguntou Basílio. — Manaí, como dizer Akaribó ser ritual de Atauã. — Para chamar Amanaci, Atauãs dançam o manaí em volta de fogueira, faz grande comida, Amanaci vem, e, depois, atauã come comida toda, e espera comida aparecer na mata. Basílio percebeu que iria acontecer um ritual na aldeia, quando, de acordo com as mudanças de estações, a natureza modificava-se na floresta. Junto com os ensinamentos do Capitão Novaes, ele sabia certamente prever a época de chuva. Por isso, era de extrema necessidade para a cultura deles realizar o manaí, para que, após as chuvas, bons frutos e boas plantas surgissem no meio da mata. Os dois retiraram-se da cabana despedindo-se de Cacauá, que colocou no pescoço de Basílio um colar colorido, com alguns dentes de animais, e disse: — Cari merecer por ajudar Atauãs, isso proteger cari. – Dizendo isso, Cacauá colocou uma mão em cima do peito de Basílio e a outra mão em sua cabeça, e finalizou sussurrando e batendo em cima do coração de Basílio: — Iaé tá aqui... Basílio e Abaquar voltaram à aldeia, e o sargento não parava de pensar no que Cacauá sussurrou em seu ouvido. Será que realmente estava apaixonado por Iaé? Nem em sua ex-mulher pensava mais, e a todo momento sentia-se bem em estar ao lado de Iaé. Ele estava apaixonado. Capítulo X - Um beijo inesperado Como Cacauá havia dito, "dois sol e duas luas", ou seja, em dois dias iriam realizar o manaí. No dia seguinte, Basílio, junto com vários guerreiros atauãs, saiu para caçar e pescar. Após um dia inteiro fora da aldeia, voltaram com tudo o que conseguiram. Tudo aquilo seria preparado pelas índias, tanto as mais antigas como as mais novas como Iaé. Entre os preparativos dos alimentos havia frutas como abil, cubiu, açaí, patuá, pupunha, bacaba, e outras. Na pesca, haviam apanhado um enorme pirarucu, duas tartarugas da Amazônia, e vários peixes como acari, tucunaré e tambaquis. No retorno para casa, no meio da floresta, ainda tiveram a sorte de encontrar uma capivara, que, graças ao talento e habilidade dos Atauãs em lidar com lanças e flechas, juntou-se ao restante da caça. As índias também colhiam mandiocas que existiam ao redor da aldeia, não muito longe dali, pois as índias não tinham o direito de sair da aldeia para o meio da mata sem a companhia de seu marido ou pai, por isso colhiam a mandioca dali de perto para a preparação do piracuí, uma farinha preparada com a mandioca e a carne do acari. Eles haviam saído cedo, antes do sol nascer, levaram comida para alimentarem-se durante o dia, e chegaram ao final da tarde ao pôr do sol. Todos estavam exaustos. Abaquar aproximou-se de Basílio e, com um sorriso de satisfação, disse: — Muito bom, cari guarini, caçar para comida, e manaí dos atauãs, muito bom! Basílio, deixando algumas frutas amarradas umas às outras em cima de uma grande mesa, feita de tronco de árvore, respondeu: — Pois é, Abaquar. Foi cansativo, mas muito bom mesmo! Até que o dia passou rápido. Achei que iríamos demorar mais tempo para chegar. — Não, não, Acamã deixar a floresta com tudo que Atauã precisar. Basílio parou com o que estava fazendo, virou-se seriamente para Abaquar e disse: — Mas Abaquar, preciso lhe dizer algo que vi no meio da mata. — Poder dizer, cari poder dizer. — Eu, junto com todos os guerreiros atauãs que foram caçar, atravessei rios, andamos muito e nos distanciamos bastante daqui da aldeia. Só que, em num determinado local em que estávamos, ficamos em cima de árvores e avistamos um pelotão de tapuias no meio da floresta. Abaquar parou e disse: — Atauãs saber que eles ficam na floresta, tapuias ser fácil de ver no meio da floresta. Ele parou e perguntou: — Mas por que cari ficar preocupado? — Sim, Abaquar, estou preocupado. – disse Basílio — Estou porque pela noção que tenho de distância na vida militar, e com a convivência com Atauãs, os tapuias não estão a uma distância que deixe a aldeia fora de perigo. Abaquar franziu a testa, pensou e disse: — E cari achar quantos sol e quantas luas para tapuia chegar aqui? — Eu não sei, Abaquar. Não sei nem se eles estão vindo nessa direção, apenas fiquei preocupado caso venham. Abaquar pensou por alguns minutos, levantou a cabeça e chamou dois índios que haviam ficado na aldeia sem ir para a caça. Eles se aproximaram e, na língua atauã, Abaquar deu as ordens. Ao terminar, Basílio perguntou: — Abaquar mandou eles irem vigiar os tapuias? — Sim! – respondeu Abaquar: — Eles ser amanajé, na língua de cari ser mensageiros. Amanajés vigiar tapuias, se tapuias vier em aldeia de atauã, amanajé vem na frente e avisa. Aqueles dois jovens índios iriam ficar por algum tempo de longe vigiando os colombianos, caso eles se movimentassem em direção à aldeia. A noite caía, e Basílio estava sentado em um tronco longe da ocara, não estava no meio da aldeia. Estava um pouco destacado, afiando as pontas de algumas lanças, quando alguma coisa tirou sua atenção ao seu lado. — Cari tem que comer, cari caçar, está com fome. Era Iaé com uma cuia cheia de comida e uma cabaça com água. Basílio, num sorriso, disse: — Nossa! Que privilégio meu, trazer comida aqui, não precisava, eu já estava indo lá pegar. Ele apanhou a comida e a água, colocou do seu lado, e disse: — Sente-se aqui do meu lado! A lua está tão linda... Ela sentou-se bem junto dele. Basílio, olhando para a cintura de Iaé, perguntou-lhe: — O que é isso? — Icurumim. Com um sorriso, ela apanhou o boneco que estava pendurado em sua saia. – Nossa! – exclamou Basílio. — Você guardou? Ela disse em meio a um sorriso olhando o rosto dele clareado pela luz da lua. — Iaé guardar, guardar icurumim Iaé, e cari. Ela parou, olhou para o boneco em suas mãos, levantou a cabeça olhando para Basílio e sem conseguir conter-se, levou sua mão ao rosto dele dizendo: — Mas cari não ser icurumim, cari ser verdade. Ele estava praticamente sem ter o que dizer, a não ser olhá-la sem que nada tirasse sua atenção do rosto de Iaé enquanto a mão dela passeava no seu rosto. Ela puxou sua mão fina e pequena daquele rosto robusto e bem feito, baixou a cabeça e em seguida olhou para a lua que brilhava em cima deles. — Aquela ser Iaé, nome dela Iaé. Basílio também olhou para a lua e perguntou encabulado. — Iaé? Como assim, Iaé? Você é Iaé. — Manju de Iaé falar para Iaé, que Iaé quando nasceu, ela tava assim. Ao dizer isso, ela apontou para a lua cheia e brilhante. — Iaé nascer debaixo dela, e manju coloca mesmo nome. — Ah sim! – sussurrou ele. – Iaé significa lua, ou então lua cheia. Você deve ter nascido no dia de uma, e aí manju de Iaé colocar o mesmo nome da lua. Esclarecido o mistério do nome da linda índia, Basílio não se conteve em levar a mão em seu rosto, não tinha mais como segurar sua vontade. Os dois rostos prateados pela lua olhavam-se como na primeira vez, os corações estavam palpitando como se fossem tambores rufando, nenhum dos dois naquele momento ouvia sons de animais da floresta. Basílio olhou para aquele rosto meigo, com olhos cor de mel, olhando para ele e disse: — Você ser tão linda quanto a Lua... Ele a puxou. E, como por instinto, as duas bocas mergulharam uma por dentro da outra. Sua mão passava por de trás da cabeça dela, alisando aqueles cabelos lisos e pretos prateados pela luz da lua, assim como a mão dela passava pelo seu rosto enquanto beijavam-se. Permaneceram naquele êxtase durante algum tempo, sem mesmo lembrar que tinham olhos para serem abertos. As bocas, como se tivessem sido feitas uma para encaixar na outra, dançavam sem parar entre si. De repente, ela se levanta, e com os olhos arregalados, ficou a olhar para Basílio. Nenhuma palavra foi pronunciada. Ele ainda hesitou em puxá-la para junto de seu corpo pegando sua mão, mas ela virou-se e correu para o meio da aldeia. Basílio ficou a olhá-la ir embora sem saber o que pensar, apenas com um leve sorriso no rosto, um sorriso de quem percebe que seu coração está em festa. Lembrou do que Cacauá disse, e tirou suas últimas conclusões... Realmente, Iaé era o ser que mais amava naquele momento. Capítulo XI - O irmão de Kapú é salvo. O dia raiou com um sol quente e escaldante sobre a floresta. Basílio conseguiu dormir pouco na sua rede, ficou a maior parte da noite ouvindo pássaros dormirem emitindo seus sons e pensando no beijo de Iaé. Às vezes soltava algum sorriso de satisfação por estar pensando nela. Mesmo assim, conseguiu dormir em um sono profundo e agradável. Ele acordou, lavou o rosto com uma cuia d'água que estava ao lado de sua rede e dirigiu-se à porta da oca em que estava junto com outros índios, que também acordavam naquele momento. Ele parou, olhou para a aldeia. Todos já começavam a realizar suas tarefas. Era o dia do manaí, todos já começavam a fazer seus preparativos para a cerimônia, que seria no final da tarde ao cair da noite. De repente, ele percebe que alguém de longe andava junto a três crianças, e olhava para ele sem parar, era Iaé. Subitamente Basílio dirigiu-se para junto dela, e, ao chegar, perguntou: — Posso saber onde vai? — Iaé ter que buscar água em igarapé. Iaé levar curumins para banhar na beira de igarapé. – respondeu ela, olhando para Basílio com expressão de felicidade. — Espera um pouco que vou com vocês, espera somente eu apanhar algumas lanças. Ele se retirou e logo voltou com algumas lanças penduradas dentro de uma espécie de cesto amarrado em suas costas. Ali tinha algumas lanças, flechas e seu arco na mão. — Vamos! – disse ele, sorridente. Caminharam um ao lado do outro, ela carregava várias cabaças e cuias para apanhar água, todas dentro de cesto confeccionado de palhas, raízes e cipós. O pequeno rio ao qual se dirigiam não era tão longe dali. Enquanto o casal apaixonado conversava, as três crianças, dois meninos e uma menina, caminhavam pouco mais a frente, brincando e sorrindo a caminho do rio. — Eu queria pedir desculpas a Iaé por ontem. – disse Basílio andando ao seu lado. — Não ter desculpa, não ter. – ela respondeu. Basílio perguntou: — Por que você saiu correndo? Pensei que tivesse ficado com medo ou algo parecido. Ela olhou para a frente e disse: — Iaé está com medo, muito medo. — Medo de quê? Do que Iaé tem medo? — Iaé não ser cari, nem cari ser Atauã. – Ela pausou e logo continuou: — Iaé gostar de cari, mas Kapú gostar de Iaé, e Kapú ser Atauã. Basílio já previa que esse seria o medo da bela índia, porém, disse em tom de convicção: — Olha, Iaé, eu posso conversar com Abaquar, falo com Cacauá, se for preciso, converso até com Kapú. A gente se gosta, eu estou gostando demais de você. Ele pensou um pouco enquanto Iaé caminhava olhando para ele. — Presta atenção, Iaé, deixa eu tentar explicar uma coisa: Eu quando vim parar aqui, eu tinha alguém que me abandonou, entende? Cari tinha alguém que foi embora. Agora cari quer ficar com você, cari, eu, cari, quero ficar com você, Iaé entendeu? Ela deu um pequeno sorriso e baixou a cabeça em silêncio. Os dois chegaram ao rio, as crianças pegaram as cabaças cheias d'água, afastaram-se da margem para brincar e banharem-se fora das pequenas marolas do rio na areia. Basílio e Iaé estavam em pé um de frente para o outro com os tornozelos dentro d'água quando ele disse: — Olha, Iaé, eu quero ficar com você. Você tem que ser de cari. – Ele deu uma pausa pensativo e continuou: — Se depender de mim, converso com Abaquar, com Cacauá, até mesmo com Kapú. Enquanto os dois se olhavam sem atentar para nada ao lado, um par de olhos observava o casal atentamente no meio da mata sem ser notado. Basílio continuou: — Eu sei que tenho que ir, mas eu não sei o que vou fazer, não sei se vou, não sei se fico... Ele deu uma pausa, suspirou e continuou: — Você tem razão... uma hora terei que ir, mas tenho que dar um jeito nisso! Iaé tem que ser minha. Os olhos no meio da mata olhavam fixamente para os dois, sem notar nem mesmo a presença das crianças a alguns metros de distância. Iaé olhou para Basílio e disse: — Iaé querer ser de cari, mas Iaé não saber se pode. Iaé não saber viver em terra de cari... Basílio pegou a mão de Iaé e colocou em cima do seu peito na direção de seu coração, logo fez o mesmo movimento com sua mão no coração dela, e disse, sussurrando bem próximo um do rosto do outro: — Eu estou aqui em Iaé, e Iaé está aqui em cari, isso é o mais importante! Só isso basta. O resto dá-se um jeito. Os olhos na mata só focavam o casal, como se estivessem ali esperando algo acontecer, algo que já previa. Como no dia anterior, os dois estavam impulsionados pelos corações palpitantes, era uma vontade descontrolada de se beijarem, de sentirem a boca do outro, de ficarem horas e horas sentindo-se sem querer saber se o mundo continuava girando. Subitamente, os dois beijaram-se. Estavam em pé com os corpos encostados um ao outro. Iaé segurava em sua nuca, ele em sua cintura num beijo ardente e molhado à beira de um igarapé da floresta. Nesse momento, os olhos da mata arregalaram-se, como se estivessem espantados com o que estavam vendo, porém, de repente, surge do meio da mata, em direção às crianças, algo que nem Basílio, Iaé, nem os olhos da mata perceberam que estava por ali. Era uma onça pintada faminta, que corria e pulava ferozmente na direção das crianças. Duas delas correram mais que a terceira, que era um menino. Essa era a preza da onça faminta. O menino ficou para trás e o pânico tomou conta de todos. Basílio correu na direção das crianças. Estava na desvantagem da velocidade da onça, porém puxou das suas costas uma lança. Pensou, analisou e calculou friamente como faz um bom militar, e antes que a onça alcançasse o pequeno índio que gritava e chorava, Basílio lançou sua lança afiada. O lançamento feito pelo forte braço de Basílio foi certeiro. A lança acertou a onça atravessando seu abdômen, ela caiu no chão remexendo-se e batendo-se, mas foi abatida com mais uma lança no pescoço. As crianças correram ao encontro de Iaé, que, por sua vez, já corria ao encontro delas. Enquanto abraçavam-se, Basílio estava recuperando-se do susto, parado em frente à onça morta esticada no chão. Nem ele estava acreditando no que fez: salvou a vida de uma criança atauã que seria comida por uma onça, caso não fosse a habilidade aprendida com o povo atauã em manusear lanças e flechas. Ele aproximou-se de Iaé e perguntou: — Eles estão bem? — Sim, sim! – respondeu Iaé, chorando e recuperando-se do susto. De repente, Basílio ouve uma voz chamando alguém por de trás dele, torna a assustar-se, vira-se e se depara com a imagem de Kapú saindo do meio da floresta. Eram deles os olhos que a tudo observava. O garoto indígena que quase havia sido devorado pela onça, ainda chorava, mas era esse menino que Kapú chamava. Ele saiu dos braços de Iaé, e correu para junto de Kapú. Basílio ficou a observar sem entender muito bem, mas o menino foi para os braços de Kapú, que o pegou e colocou nos ombros. A expressão dele não era das melhores, olhou fixamente para Basílio, que, por sua vez, também o olhou percebendo que a criança o conhecia. Kapú virou-se e caminhou em direção à mata para a aldeia. — O que o curumim é dele? – perguntou Basílio, abaixando junto a Iaé e às outras crianças. — Ele ser o jarumim de Kapú, cari salvar jarumim de Kapú. — Mas o que é jarumim? O que é isso? – Perguntou Basílio com um profundo ar de dúvida. — Jarumim ter opar igual de Kapú, Kapú e jarumim ter opar igual. – disse Iaé, abraçada às outras crianças. Basílio levantou-se e virou para olhar a mata, Kapú já havia desaparecido em direção à aldeia. Ele suspirou e falou baixo para si mesmo: — Eu acabei de salvar o irmão de Kapú! Capítulo XII - O manaí e a revolta de Kapú. Basílio e Iaé chegaram na aldeia e todos já estavam sabendo o acontecido, o pequeno irmão de Kapú já havia contado tudo para todos. Basílio levava em suas costas a onça que abateu. Todos os esperavam como se quisessem saudá-los. Basílio aproximou-se de Abaquar, que estava à frente do restante da tribo. A expressão dele era de alegria, e, sorrindo, disse: — Cari guarini salvar curumim, cari ser mandado por Acamã! Basílio largou o animal morto no chão e disse: — Não precisa tanto Abaquar, para dizer a verdade nem sei como foi. Foi tudo muito rápido, tive a sorte de acertar a onça. — Não, não! – disse Abaquar: — Cari ser um homem forte, parecer com Atauãs, cari ser guerreiro, cari ser guarini! Kapú encontrava-se por trás de todos, sentado em uma pedra apenas observando. Seu rosto não demonstrava muita satisfação no feito de Basílio. O sol estava se pondo, o céu estava vermelho, a fogueira estava acesa, porém, a aldeia se encontrav,a como eles diziam, "invisível", isso quer dizer, com a sua técnica em prática, os galhos por cima dela. A fumaça espalhava-se pela grande ocara e não deixava os índios sufocados, até porque além de ser um grande espaço territorial, os índios mantinham-se a uma certa distância do fogo que ajudava a espantar os insetos. A cerimônia começou, Abaquar permanecia sentado em seu grande tronco como se estivesse em seu trono, com seu grande cocar na cabeça, a pele de onça nas costas, e a cabeça do bicho empalhado tapando metade de sua cabeça. Os grandes guerreiros atauãs dançavam em círculo, em volta da grande fogueira. Não estavam pintados com as cores que os deixavam invisíveis na mata, dessa vez estavam com cores vermelhas, pretas, e traços de amarelo no rosto. Eles dançavam, curvavam seus corpos e emitiam sons com a boca como se estivessem chamando ou louvando seus deuses. As mulheres ficavam por trás, dançando no mesmo lugar, rodavam e faziam seus sons mais agudos ao redor dos guerreiros em volta da fogueira. Em certo momento, as mulheres começaram a trazer a comida, era um grande banquete, carne de peixe, tartaruga, frutas, farinhas e raízes, tudo em cima de seus grandes tabuleiros de madeira bruta. A comida era colocada em volta da fogueira. Todos pararam de dançar e permaneceram calados. Abaquar desceu de seu tronco com um grande cachimbo esfumaçante, puxava fumaça e soprava em cima dos alimentos, levando suas mãos em direção ao céu e à mata, pronunciava palavras sagradas em sua língua e repetia os movimentos com as mãos. Os índios pareciam estar em transe manifestando sua fé, não notaram que, no meio da mata, havia dois militares colombianos deitados, escondidos, observando toda a cerimônia. Eles deviam estar passando pelo meio da mata, indo para algum lugar, e devem ter ouvido os tambores, os índios cantando, ou até mesmo o sinal do fogo. A noite já havia caído, a escuridão no meio da mata era intensa, nenhum dos índios percebeu os colombianos de longe observando. Depois do ritual de Abaquar, os índios ainda cantaram mais um pouco, e, logo depois, as índias começaram a distribuir a comida. Aquele momento representava para Tupã, Amanaci e Yara o término da cerimônia. A comida já havia sido servida por eles para alimentar o povo atauã, e tudo que ali eles fizeram de comida, era justamente o que ofereceram aos deuses como se estivessem pedindo a boa colheita daquilo tudo. Basílio comia em uma tábua de madeira um suculento piracuí com alguns pedaços de tambaqui, quando ouviu, por trás dele, alguma coisa como se fosse uma discussão. Ele virou-se e percebeu Abaquar e Kapú conversando na língua deles. Estavam exaltados mas não haviam percebido que Basílio estava a uma curta distância, talvez por estar de costas comendo. Basílio já desconfiava do que se tratava a discussão e logo deixou sua tábua perto da pedra onde estava sentado e foi até os dois. — Desculpe, Abaquar, mas posso saber o que está acontecendo? – perguntou Basílio, dirigindo a palavra ao velho índio, porém, com os olhos aferrados aos de Kapú, esperando qualquer atitude do índio contra ele. — Cari guarini ser muito bom para Atauã, cari não ter culpa de gostar de Iaé. – disse Abaquar em voz alta para os dois ouvirem. Kapú ,dirigindo um olhar acirrado para Basílio, disse em tom alto, interrompendo Abaquar: — Cari não poder ficar com Atauãs! Cari querer Iaé, e fazer mal a Iaé, Iaé ser de Kapú! — Mas eu não fiz mal nenhum a ela! – disse Basílio em tom educado, porém ríspido. — Cari não poder levar Iaé dos atauãs! – disse ele, apontando para Basílio, e, em seguida, continuou batendo no próprio peito: — Iaé ser de Kapú! — Kapú! – disse Basílio. — Eu respeito ordens, aprendi assim. E, aqui na aldeia, eu obedeço Abaquar, o que ele disser, eu faço. Kapú retirou uma lança que estava ao seu lado fincada no chão, levantou-a e disse: — Cari não poder ficar mais com Atauãs! Basílio estava desarmado, mas, ao mesmo tempo, preparava-se para lutar na intenção de se defender. Foi quando Abaquar interviu, entrando na frente de Kapú, ficando de costas para Basílio, e disse: — Kapú parar! Kapú parar agora! – Abaquar falou alto em tom de ordem. — Kapú saber que cari salvar jarumim de Kapú, cari está aqui e ajudar muito atauãs, cari ser bom, Kapú parar! Abaquar dizer, Kapú parar! O índio, inconformado, abaixou a lança e disse, em voz baixa, como quem obedece ao seu superior: — Cari salvar jarumim, mas cari não poder ter Iaé, Kapú querer Iaé, e Kapú ser atauã. Abaquar disse à frente de Kapú: — Kapú entender que cari vive com Atauã, cari ser de povo de mesma terra de Atauãs, cari ser bom para Atauãs e Iaé não ter opar, cari e Iaé poder se gostar. — Quem escolher para Iaé? – perguntou Kapú, referindo-se à ausência do pai da índia. — Quem escolher ser Iaé! – disse Abaquar. Kapú se afastou, suspirou e disse: — Kapú ir embora de Atauãs. Um silêncio permaneceu enquanto Kapú andou para trás olhando para Basílio, até virar-se e sumir correndo pela aldeia. Basílio, a sós com Abaquar naquele momento, disse: — Se Abaquar quiser, eu dou um jeito de ir embora da aldeia, não quero causar problemas, talvez Kapú esteja certo... Suas palavras foram interrompidas por uma voz atrás dele, no meio da escuridão, falando calmamente: — Iaé querer cari, ela ter que escolher com quem ficar. Basílio virou-se em um susto e viu aquela cara enrugada no meio da escuridão da mata. Era Cacauá que observava a tudo, sentado dentro do mato ao lado de um imenso tronco de árvore. Ele não pronunciou mais nenhuma palavra, levantou-se e com poucos passos sumiu na escuridão. Basílio virou para Abaquar e disse: — Abaquar, eu vou para a oca deitar, amanhã eu converso com o senhor e digo o que resolvi, não acho justo Kapú ir embora, quem deve ir embora tem que ser eu. — E se Iaé querer que cari fique? – perguntou o velho índio. O sargento não respondeu, olhou para Abaquar e saiu andando para sua oca. Estava apenas de tanga de couro e sem camisa, seguiu andando pela aldeia aos olhos de Abaquar que, pensativo, o observava. Nesse mesmo instante, os dois soldados colombianos voltavam por dentro da mata até encontrarem um pequeno barco à beira de um igarapé que os aguardava. Ali havia mais dois militares colombianos, que logo souberam das notícias trazidas pelos outros, que observaram toda cerimônia do Manaí. Entraram no barco e partiram rumo ao acampamento deles, situado a quilômetros dali, justamente o acampamento onde os amanajés estavam de prontidão. Capítulo XIII - O retorno dos amanajés e a preparação para o conflito Alguns dias passaram-se após o manaí e a rotina na aldeia continuava a mesma, alguns caçavam, outros fabricavam armas, as mulheres cozinhavam e cuidavam de seus filhos. Basílio e Iaé continuavam a se encontrar à beira do rio. Abaquar e toda a aldeia não tinham mais dúvidas de que os dois estavam apaixonados. Os pensamentos de Basílio eram cada vez mais frequentes em relação à sua partida. Pensava em fazer uma fogueira à beira de rio e ali esperar até o socorro, pensava em pegar algum barco de madeira feito pelos Atauãs e descer pelos rios até encontrar socorro. Estava certo de que não poderia permanecer ali o resto de sua vida, mas inquietava-se, pois não aceitava a possibilidade de ter que separar-se de Iaé, sem contar os perigos que poderia encontrar descendo os rios sozinho. Ficava imaginando qual seria a situação dele no quartel, no Rio de Janeiro, será que fui dado como morto? Será que ainda buscam por mim na mata? Afinal não encontraram meu corpo... E será que mais alguém sobreviveu aquele ataque, onde quase perdeu sua vida junto com outros companheiros, inclusive seu amigo Araújo? Muitas dúvidas que só seriam esclarecidas se fosse embora da aldeia. Mas e Iaé? como ficaria? Pois apesar de toda hospitalidade dos Atauãs e da gratidão que tinha por eles, o que mais o segurava ali era a índia. O sargento estava junto de outros índios, acertando e fazendo a manutenção rotineira dos galhos que tornavam a ocara invisível sempre que precisavam, quando, de longe, avistou chegar na aldeia os dois jovens índios que tinham ido vigiar os colombianos alguns dias antes, os amanajés. Os dois chegaram na grande praça da ocara e logo foram recebidos por algumas velhas índias que traziam comida e água nas mãos. Devem ter sido muito difíceis aqueles dias no meio do mato, longe da aldeia, mas eles souberam realizar a missão, apesar das dificuldades. Basílio aproximou-se, mantendo certa distância, e ficou observando os jovens que foram ao encontro de Abaquar. Ao chegar mais perto, o sargento pôde perceber que as expressões dos amanajés não eram das melhores, estavam espantados e com ares de preocupados. Chegaram junto a Abaquar e, num estado de muita euforia, falavam alto, e gesticulavam nervosamente. Basílio não entendia, pois os jovens falavam na língua deles e Abaquar olhava atentamente para um e para o outro, como se estivesse assistindo uma partida de ping pong. Abaquar falou alguma coisa para os dois que se afastaram rapidamente. Ele deu as costas e seguiu andando pela aldeia. Basílio foi atrás e o chamou: — Abaquar! Ele parou, olhou para trás e fez sinal com a cabeça para que Basílio o acompanhasse. Passaram a caminhar um ao lado do outro. Abaquar disse: — Tapuias vem para ocara de Atauãs. Basílio arregalou os olhos e disse: — Como? Você está dizendo que os colombianos, os inimigos estão vindo para a aldeia? Abaquar, com expressão de preocupado, apenas fez sinal com a cabeça. Os dois seguiram andando, enquanto Abaquar contava para Basílio o que havia ouvido dos amanajés. Os dois jovens viram toda a movimentação dos colombianos planejando a invasão a aldeia, eles haviam dito que viram quando chegaram ao acampamento os quatro colombiano,s ou seja, os dois que observaram a aldeia durante o manaí, e os outros dois que ficaram distante dentro do barco à beira do rio. Os jovens perceberam que viriam na direção da aldeia, pois, de longe e de cima das árvores, puderam avistar militares colombianos apontando para a direção onde a aldeia está localizada. Abaquar parecia ainda ter dúvidas em relação ao ataque dos colombianos, mas os índios são ariscos e sorrateiros, porém as dúvidas de Basílio foram esclarecidas quando Abaquar disse que os amanajés viram nas mãos dos militares alguns instrumentos de uso dos Atauãs, como lanças e flechas. — E o que pretende fazer Abaquar? – perguntou Basílio. Ele respondeu: — Abaquar falar com Cacauá, e levar tribo embora. Basílio parou por uns instantes e disse: — Mas, como? Existe toda uma vida construída aqui! E, além disso, como faríamos com as crianças e as mulheres? E mesmo se formos embora, eles nos alcançarão no caminho. Abaquar estava pensativo, não dizia nada. Pela primeira vez, o sargento percebeu que o grande líder dos Atauãs estava em dúvida sobre o que fazer em relação ao seu povo. Basílio disse, olhando para dentro dos olhos de Abaquar: — Abaquar, eu posso dar uma ideia? – Ele pausou e continuou: — Eu posso comandar todos os guerreiros Atauãs que estão aqui. Vamos preparar uma armadilha, uma emboscada para que, no momento em que eles chegarem aqui,estejamos a ostos para acabar com todos eles. Abaquar, seriamente preocupado, perguntou: – E como fazer? Tapuias têm lanças de fogo, lanças de fogo que mata Atauãs de longe. Basílio, mais sério ainda, disse: — Eles só conseguem fazer isso com seus fuzis se puderem ver o alvo. Mas se o alvo estiver invisível? Abaquar baixou a cabeça, como se quisesse dizer que aquilo era arriscado, mas logo em seguida, disse: — Abaquar vai falar Cacauá, Atauãs se preparar para guerra. – Basílio permaneceu de pé, olhando atentamente para a ocara, durante vários minutos, como se estivesse passando um filme na sua cabeça. Fez uma verdadeira retrospectiva de tudo que havia vivido com aqueles índios até aquele momento. Achava não ser justo ter que retirar toda aquela gente do lugar de onde viviam por conta de colombianos covardes. Apesar de seu espírito de luta, militarismo e vingança, pesava muito o fato de sua vida ter sido salva por aquele povo, e seu coração estava dominado pelos encantos de Iaé. Não fazia parte de sua formação militar e ideologia ter que fugir do inimigo em uma guerra, e sim lutar. Esses pensamentos não saíam de sua cabeça. Depois de todas essas reflexões, passou a observar e articular como iriam guerrilhar com inimigos possuidores de armas de fogo e munições, enquanto a sua equipe agora só dispunha de lanças, flechas, redes e, principalmente, a criatividade. Baseando-se nas habilidades daquele povo, Basílio passou a acreditar que essa seria uma grande batalha. Seria preciso usar a cabeça, e isso os índios sabiam fazer muito bem. Suas camuflagens, a maneira como eles tornavam-se invisíveis e toda sua coragem seriam o dínamo de impulsão para travar a batalha. O coração de Basílio enchia-se de uma ansiedade e uma aflição de quem precisa batalhar. Era mais que uma obrigação proteger aquele povo, e quem sabe se aquela tropa colombiana que se preparava para invadir a aldeia, não era a mesma que dizimou o seu grupo na balsa? Não havia mais dúvida: Basílio iria começar a coordenar os preparativos para o confronto com os inimigos. O momento havia chegado, sua tropa e suas armas eram outras, porém por uma mesma ideologia: defender seu povo. Basílio colocou os mesmos dois amanajés que ficaram de vigia no acampamento dos colombianos, camuflados às margens do igarapé aproximadamente no local onde eles desembarcariam quando viessem atacar. Porém, mesmo sem saber o local exato de onde as tropas colombianas começariam sua caminhada pela mata até a aldeia, a estratégia do sargento era justamente atraí-los para lá. Sob as ordens e orientações de Basílio, toda a aldeia se movimentava. Abaquar observava a tudo, permanecendo sentado em seu grande tronco com um olhar apreensivo e bastante preocupado. Porém, todos pareciam estar contagiados com o ânimo e coragem que Basílio passava. Durante aquele dia, ele não parou um só momento de gesticular, escrevia no chão com um pedaço de pau, apontava e, com pouca dificuldade, comunicava-se utilizando a linguagem indígena que havia aprendido com o tempo que estava convivendo com os Atauãs. Muitos deles já entendiam a língua de Basílio e vice-versa. As mulheres trançavam grandes redes feitas de cipós e grandes raízes. Conforme iam ficando prontas, outros índios incumbiam-se de criar a tão importante camuflagem que faziam muito bem. Outras índias junto com Iaé armazenavam comida e água para transportar para fora. A preocupação de Basílio era não deixar o lugar onde viviam, porém, era de extrema importância retirar crianças e mulheres dali, pois fazia parte de seus planos deixar que os colombianos chegassem até a aldeia. Os guerreiros atauãs preparavam e confeccionavam suas armas: eram flechas, arcos, lanças, zarabatanas (pontas de madeira afiadas e amarradas em pontas de cordas), capazes de penetrar no corpo de um ser humano somente com a impulsão do lançamento. Cacauá havia preparado algumas cuias de venenos, as quais eram usadas na maioria das armas. O velho curandeiro disse a Basílio: — Cacauá nunca fazer curare forte assim... Curare era o nome de um veneno desenvolvido e usado por índios sul-americanos, era encontrado em plantas e cipós existentes na mata. Nos conhecimentos que Basílio adquiriu em sua formação militar, já havia ouvido falar em curare, porém sabia também que era usado por índios a fim de alvejar sua caça, para que a presa ficasse paralisada com o efeito do veneno, interrompendo a transmissão neuro-muscular e causando a morte por asfixia. — Cacauá, esse veneno paralisa animais. Será que irá dá certo em homens? – perguntou Basílio. — Cacauá pegar mais antigos venenos de curare, se não matar, guerreiros atauãs fazer... Era o que o sargento queria ouvir: o velho curandeiro devia ter feito um veneno a base de curare mais forte possível; eliminando ou não o inimigo, o efeito de paralisação iria acontecer. O momento da batalha estava ficando cada vez mais próximo. Alguns índios foram escalados por Basílio para levar as mulheres e as crianças para longe dali e defendê-las, antes mesmo que Basílio e os guerreiros começassem a tomar seus lugares. De acordo com o plano, as índias, crianças e seus defensores já teriam que ter se retirado da aldeia. Iriam ficar longe dali, em um lugar de difícil acesso pelo meio da mata que só eles conheciam; contudo, sem deixar de lado a camuflagem tanto nos homens quanto nas mulheres e crianças. De acordo com os planos do sargento, arrancaram algumas paredes e palhas das ocas, apagaram o fogo das fogueiras, deixaram largados no meio da aldeia utensílios usados para comer, caçar e vestir, isso na intenção de dar a ideia de que todos ali haviam fugido, o que estava longe de acontecer. O velho Abaquar aproximou-se de Basílio e disse: — Abaquar vai chamar por Acamã, Acamã vai junto de cari e guerreiros atauãs... Nesse momento, todos os índios que ficaram para lutar, rodearam o velho Abaquar e baixaram suas cabeças balançando o corpo. Abaquar falava em sua língua suas palavras sagradas, apontando para o céu e a mata ao mesmo tempo, era uma pequena cerimônia de pedido de proteção a Deus para os índios. Como se fosse impulsivamente e tomado pelo amor que adquiriu por aquele povo, Basílio repetia os movimentos feitos pelos índios, concentrando-se tanto quanto eles. Terminada a cerimônia, Abaquar virou-se para Basílio e disse: — Abaquar vai..... Olhou fixamente para dentro dos olhos de Basílio com um olhar angustiado e continuou: — Cari irá lutar pelos Atauãs, Cari ser Atauã... Basílio respondeu: — Não se preocupe, Abaquar, lutaremos e seremos vitoriosos, daremos toda a nossa força e inteligência, está tudo pronto. — Mas... tapuias têm lança de fogo... Abaquar ter medo... — Por favor, Abaquar, confie em mim, não estou fazendo loucura, conheço as armas deles e garanto que, para serem usadas, precisam ter alvo... – Basílio pausou e finalizou: — Só que eles não sabem que Atauãs são os índios invisíveis! Abaquar colocou uma mão em cima do peito de Basílio e a outra em cima de seu peito, virou-se e se foi junto com os outros para o esconderijo. Basílio, observando o velho índio caminhando, pensou consigo mesmo: — "Que venham os colombianos... ". Seus pensamentos foram interrompidos por uma mão em suas costas, virou-se e se deparou com aqueles olhos cor de mel por natureza e avermelhados devido às lágrimas que escorriam em seu rosto: era Iaé. — Iaé, você não pode ficar aqui, vai para junto dos outros e logo você estará de volta! – exclamou Basílio. Com a voz trêmula, ela respondeu: — Iaé ir, Iaé ir, mas Cari vai ficar bem, vai ficar com Iaé... – dizendo isso, ela deixou caírem as lágrimas e abraçou o corpo bronzeado de Basílio. — Sei que está preocupada, todos estão, mas isso precisa ser feito, se não lutarmos, ninguém aqui sairá vivo... – Abraçando-a, ele continuou: — Vá com os outros e tenha certeza... Eu te amo, Iaé! E ficaremos juntos... tenha certeza. Ela se afastou e correu para junto dos outros que estavam em retirada. Ainda parou à beira da mata, virou-se para Basílio que a olhava, suspirou como se estivesse tomando coragem, virou-se novamente e se foi. Capítulo XIV - O conflito. Já era noite e Basílio criou um sistema de revezamento para os índios descansarem, enquanto outros tomavam conta a uma certa distância da aldeia. Os amanajés que ficaram tomando conta das margens do igarapé, por onde supostamente viriam os colombianos, já haviam se recolhido e sido substituídos por outros. Apesar de Basílio acreditar que eles não viriam pela noite, devido às dificuldades e perigos ao deslocarem-se pela mata, era imprescindível realizar a vigia. A grande ocara que, dias antes, havia sido palco do grande manaí, agora permanecia fria, escura e quieta. Basílio estava inquieto, não só pela apreensão da batalha iminente, mas também pelas lágrimas de Iaé. Andava para cima e para baixo, olhava para a mata escura e sombria, ouvia os sons da noite mas não parava de pensar na índia. Pela primeira vez na vida, Basílio percebia como era bom ter alguém para amar e ser correspondido. Era assim que ele se sentia naquele momento. Entendia que, além de sua dignidade, espírito de luta e gratidão àquele povo, precisava sair daquela batalha a salvo, pois o grande amor da sua vida estava ansiosa pelo seu retorno. Era assim que ele se sentia naquela noite, amando e sendo amado, e, mesmo à distância, o perigo futuro, o risco de morte e tudo que lhe esperava pela frente não deixavam que seus pensamentos se desprendessem do de Iaé. Naquele momento, Basílio encostou-se a uma árvore e contemplou a lua. Não era a mesma lua que ele e Iaé ficavam horas olhando em meio a beijos e carícias, mas era a lua, a mesma lua que a cujo nome sua mãe lhe dera. E, como que se fosse combinado, nesse mesmo momento, enquanto todos dormiam escondidos na mata, Iaé estava sentada em uma pedra, olhando a lua, a mesma que seu grande amor também olhava. Parecia algo transcendental, cósmico ou sobrenatural, os dois olhavam para o mesmo ponto, no mesmo instante e com os mesmos pensamentos. Nesse momento, a índia Iaé sente em seu ombro uma mão fria e pequena, ela salta da pedra com os olhos arregalados naquela escuridão e vira-se... era Cacauá. Em sua língua nativa, ele disse: — Iaé pensando em Cari... Ela sentou-se novamente na pedra já calma após o susto e disse: — Iaé gostar muito de cari, gostar muito, Iaé querer ficar com ele... – Ela pausou, baixou a cabeça e disse: — Mas Iaé ter medo. — Iaé não ter medo – disse Cacauá: — Cari ser forte, já armou tudo, inteligente e conta com a coragem dos guerreiros atauãs. Iaé vai ter Cari. – Ele olhou para a lua e continuou: — Cari, nesse momento, também está olhando para céu, igual Iaé. Ela abriu um pequeno sorriso e perguntou: — Cacauá viu? Ele está olhando? Assim como Iaé e cari fazia? Ele não falou mas nada, apenas fez sinal com a cabeça. Ela tornou a sentar na pedra e disse: — Acamã ajudar cari e todos atauãs. Dizendo isso ela virou-se para onde estava Cacauá e nada mais viu, olhou ao seu redor, mas nem vestígio, o velho curandeiro havia sumido dali, e, com certeza, ele havia visto Basílio contemplando a lua como ela. Era um velho índio possuidor de muita sabedoria e experiência, conhecia toda a floresta, seus animais, seus rios e suas plantas. Já devia ter passado por várias batalhas como essa, e talvez soubesse o que estava dizendo, quando afirmava que Basílio venceria. Contudo, nem mesmo toda sua sabedoria acalmava o coração de Iaé, só iria ter certeza que tudo daria certo, caso Basílio voltasse para seus braços, e era justamente o que ela temia. Na taba, ninguém dormia em ocas, essas se encontravam vazias como se estivessem abandonadas, coisas espalhadas e jogadas pelo chão propositalmente, de acordo com as orientações de Basílio. Todos os índios, tanto os que tomavam conta da chegada dos colombianos, quanto os que dormiam, estavam sempre por perto de seus postos ordenados por Basílio. Na verdade, o sargento supunha onde os colombianos atacariam primeiro: seria na direção de onde ficava o igarapé por onde desembarcariam. Contudo, Basílio procurou acertar ao máximo em sua emboscada, até porque, em toda a sua experiência militar, sabia que o mais importante era poupar vidas de sua equipe. Não existia sequer um índio no chão, ou seja, todos eles estavam espalhados por cima de árvores, camuflados até a alma e protegidos o máximo possível atrás de grandes troncos. Todos eles estavam estrategicamente no lugar que Basílio ordenara e esperando apenas a chegada do inimigo para colocar em prática todas as orientações do sargento usando suas armas. A taba estava invisível com os grandes galhos arreados por cima, sendo que, dessa vez, com uma novidade: as grandes redes que Basílio mandou confeccionar e camuflar com folhas e tinturas estavam logo abaixo dos grandes galhos. Qualquer pessoa que chegasse ali na intenção de travar uma batalha não iria hesitar em olhar para cima, porém só iria ver folhas e galhos. A madrugada estava fria e com muitos insetos devido à falta de fogo na grande ocara. Basílio fez sinal para alguns índios, dizendo que ia permanecer deitado atrás de um grande tronco de jequitibá. Aliás, todos os índios já estavam condicionados a comunicarem-se através de assobios ou pequenos e discretos sinais. Dessa forma, os sons emitidos por eles poderiam ser misturados aos sons da mata sem que fossem notados, tudo de acordo com as orientações de Basílio. O dia já estava amanhecendo e uma leve neblina, que logo iria desaparecer com o nascer do sol, cobria a mata; alguns índios comiam, outros permaneciam em cima das árvores e Basílio estava de pé bebendo água com uma cuia. De repente, surgem da mata os dois índios que haviam vigiado as margens do igarapé. Estavam aflitos e ofegantes por terem vindo correndo no meio da mata, na intenção de chegarem o mais rápido possível para dar a notícia. Os colombianos haviam chegado e estavam se preparando para deslocarem-se até a aldeia, era chegado o momento. Basílio perguntou o número de homens que vieram, mas os índios estavam muito nervosos e, ofegantes, não tiveram como dar informações precisas, mas Basílio percebeu que deviam ser mais ou menos uns 50 a 60 homens, até porque eles não tinham uma grande força aérea, e a guerra com o Brasil se arrastava por terra. Eles não colocariam um grande número de homens para atacarem inofensivos e fracos índios. Todos tomaram seus postos, pois já sabiam o que cada um iria fazer, bastava aguardar um sinal de Basílio. Este se colocou em um lugar estratégico, em cima de uma grande árvore, onde todos os outros índios pudessem vê-lo e aguardarem suas ordens. O silêncio permanecia. Apenas os animais da floresta emitiam seus sons, nenhum sinal de alguém no meio da mata. Basílio tinha certeza que eles não iriam chegar na aldeia de uma só vez, até porque eles não imaginavam que a aldeia estaria vazia, chegariam devagar e sorrateiros, e, ao perceberem a ausência da tribo, entrariam como se ninguém estivesse a vigiá-los. Após quase uma hora de espera, o previsto aconteceu. Alguns índios, assim como Basílio, perceberam de longe a chegada dos colombianos. Eles vinham devagar, rastejando e se escondendo por de trás das árvores. Eles faziam sinais entre eles para que um avançasse na frente do outro, até que foram chegando bem perto de onde terminava a mata e começava a grande taba. Ficaram parados analisando toda a aldeia, até que um superior deles se levantou e, junto com mais uns três, adentraram. Basílio permanecia no lugar onde estava imóvel assim como todos os outros índios. A comunicação até aí era apenas com olhares, pois os corpos permaneciam imobilizados, quanto mais paralisados melhor a fim de não causar desconfianças. Alguns colombianos ainda permaneciam na mata, mas muitos deles agora já estavam circulando pela taba, olhavam examinando tudo com armas em punho, mas era preciso deixá-los à vontade. Falavam entre eles como se estivessem convictos de que os índios tinham fugido, porém Basílio percebeu que um dos militares não estava tão certo daquilo, ele falava e fazia movimentos com as mãos como quem perguntava: "Como eles sabiam que nós viríamos?" Com a intenção de atrair a maior quantidade de colombianos para um determinado ponto na ocara, Basílio teve a idéia de colocar jogadas no chão algumas fardas velhas que havia na aldeia. Assim foram chegando alguns soldados ali e chamaram outros. Naquele ponto, reuniu-se um grupo satisfatório, tendo em vista que todos já estavam andando pela aldeia. Nesse momento, Basílio pensou como se fosse um deles: "Como não conhecem o território inimigo abandonado, já estão assegurados de que dominaram o local, não resta mais perigo." Aquele era o momento! Basílio fez um pequeno sinal para os índios que estavam nas cordas que sustentavam as redes. As redes tinham em suas extremidades pedras grandes e pesadas que fizeram com que as redes caíssem do alto para baixo com extrema velocidade. Nesse momento, os colombianos se perderam sem saberem o que fazer, alguns correram para tentar retirar os outros das redes, alguns olhavam para o alto e para os lados sem conseguirem ver nada, outros, com suas armas em punho, não sabiam para onde atirar. Porém, foi tudo em questão de segundos, como Basílio já havia orientado. Todos os índios já haviam escolhido um alvo e começaram a alvejá-lo incessantemente. Uma chuva de dardos envenenados vinha de toda parte, naqueles que estavam sob as redes, naqueles que tentavam retirá-los e nos que tentavam se esconder. Os colombianos, sem saber o que fazer, atiravam para todos os lados sem verem o que estavam alvejando. Alguns conseguiam retirar os dardos que entravam em seus corpos e outros não, mas de nada adiantava: quando um dardo era retirado, logo em seguida recebiam outros em seus abdomens, pescoços, braços e pernas, fazendo com que a alta dose de curare infiltrasse em suas correntes sanguíneas. Alguns colombianos apavorados percebiam que estavam sendo atacados pelo alto. Porém, tentar encontrar algum alvo era quase impossível no meio daquele ataque. Um colombiano correu para de trás de uma árvore à procura de abrigo e tentando encontrar o seu alvo. Ao se agachar e olhar para cima, ele se deparou com aquela figura que parecia mais a mata se mexendo. Era um Atauã já com sua lança em posição de ser lançada. O colombiano ainda tentou levantar seu fuzil, porém, antes que atirasse, a lança atravessou seu peito, saindo nas costas. Basílio fez sinal e assobiou para que as flechas fossem lançadas e, assim como os índios, ele também tinha seu arco e sua cesta de palha com flechas afiadas e envenenadas. Os colombianos continuavam atirando para todos os lados, porém, agora estavam sendo alvejados em todas as partes do corpo pelas flechas. Já havia, caídos pelo chão da taba, vários militares agonizando com o efeito do veneno ou por alguma flecha atravessada. Alguns colombianos perceberam a presença de índios em cima das árvores, começaram a atirar na direção deles sem fazer pontaria, alguns índios atauãs eram alvejados e caíam das árvores. Porém, os militares já estavam em menor número e a chuva de flechas e lanças não cessava. Basílio percebeu que uns quatro colombianos, entre eles o sargento que havia desconfiado de tudo, batiam em retirada em direção do igarapé onde estava sua embarcação. Ele fez sinal para alguns índios, desceu da árvore e foi atrás dos colombianos. Aquela atitude já tinha sido planejada por ele; caso isso acontecesse, os índios que iriam com ele já estavam escolhidos. Os colombianos correram pela mata desesperados, e Basílio, junto com um grande grupo de índios, correu atrás gritando seus sons de guerra. No trajeto, os colombianos paravam e atiravam para trás, mas Basílio, com seu grupo, mantinha uma certa distância e, com seus corpos camuflados, caíam pelo meio da mata dificultando a pontaria dos inimigos. O que eles não imaginavam era que Basílio tivesse o cuidado de colocar índios em cima das árvores que ficavam no percurso da aldeia até o igarapé onde tinham atracado. O grupo de colombianos que estavam fugindo foi caindo um a um, com flechas e lanças envenenadas. Conforme iam caindo alvejados, outros índios que vinham atrás cuidavam de terminar de eliminá-los. Chegando à margem do rio onde estava atracado o barco que havia trazido os colombianos, o pequeno grupo de índios sob as ordens de Basílio ficou no meio da mata escondido. No barco ainda haviam três colombianos com os seus fuzis em pontaria para dentro da mata, pois já haviam ouvido os disparos e a percebido presença deles na mata. Começaram a atirar, e os índios se protegendo, com suas zarabatanas e flechas, foram alvejando os colombianos. Alguns caíam na água e outros escondiam-se atrás de paredes blindadas do barco. Mas Basílio, no caminho, pegou um fuzil e a munição de um colombiano morto e abriu fogo para dentro do barco. Eles estavam em desvantagem, assim como a tripulação do sargento quando foi atacada. Basílio via seu alvo, porém, eles não, e assim foram caindo um a um até acabar toda sua munição. Com muito cuidado, Basílio aproximou-se do barco com o fuzil em punho, porém sem munição. Olhou para dentro e percebeu que os colombianos estavam caídos. Ele subiu no barco e, rapidamente, procurou os galões de combustíveis, pegou um e derramou de qualquer jeito em todo o espaço do barco; precisava ser rápido, não sabia se existia mais algum colombiano por ali. Após ter derramado dois galões de combustíveis, desceu do barco, dirigindo-se para a entrada da mata e, encontrando-se com dois índios, disse: — Façam fogo, façam fogo e joguem lá! Os índios rapidamente quebraram flechas e lanças e, com muita experiência, começaram a esfregá-los até fazerem brasa e, depois, pequenas chamas. Basílio ficou de pé à beira da mata, olhando os índios atearem fogo no barco, quando ouviu um barulho atrás dele. Virou-se e era um colombiano ensanguentado levantando seu fuzil e apontando para ele. Lembrou que sua munição havia acabado, precisava pensar rápido. O colombiano murmurava algumas palavras deixando claro que sabia que Basílio não era índio. Precisava lançar uma flecha, mas o inimigo estava prestes a atirar a uma distância de menos de seis metros. Ele ia se jogar no chão quando, de repente, uma lança com toda perfeição foi arremessada, atravessando o pescoço do colombiano. Ele ainda soltou um gemido agonizante e se jogou com Basílio no chão quase que simultaneamente. Estava ofegante e gelado, olhou pelo seu corpo e, sem sentir dor, percebeu que não tinha sido ferido, mas quem o salvou? Olhou para todos os lados e, de repente, viu sair do meio da mata aquela figura pintada como se fosse a própria floresta... Era Kapú! Isso mesmo, ele acabava de ter sido salvo por aquele que o havia ameaçado e fugido da tribo. Kapú aproximou-se e disse: — Cari salvar jarumim e Atauãs, Atauãs poder viver... Basílio não falou nada, observou-o e em seguida disse: — Kapú! – O índio parou e Basílio aproximou-se, colocou uma mão em seu peito, e a outra no peito do índio assim como Abaquar fazia com ele. Kapú fez o mesmo, virou-se e foi. Chegaram outros índios por ali e viram o que havia acontecido, porém ninguém comentou nada, Basílio apenas ordenou e voltaram para a aldeia. Capítulo XV - A chegada das tropas brasileiras e a partida de Basílio Ao voltarem à aldeia, alguns índios já festejavam a vitória. Conforme as orientações, já tinham acabado de eliminar todos os colombianos caídos no chão e retirado deles todas as armas. Basílio ordenou que alguns índios dessem uma varredura em volta da aldeia pela mata, a fim de encontrarem algum colombiano escondido, o que seria quase impossível, pois todos que ali ficaram acabaram de ser mortos pelos índios que ficaram na taba, e os que fugiram foram eliminados por ele e seu grupo. Os índios que foram mortos tiveram seus corpos separados para uma cerimônia fúnebre própria de guerreiros. Avistava-se, de longe, a fumaça do barco dos colombianos e logo chegou à aldeia Abaquar com alguns índios. Sorrindo, ele aproximou-se de Basílio e disse: — Cari! Cari! Atauã vencer! Atauã vencer! Fizeram o sinal de saudação com as mãos nos peitos e o sargento disse: — Missão cumprida, Abaquar. Lamento os índios que se foram. Tentei ao máximo não ter nenhuma perda. — Atauãs morrer pelo povo, salvar Atauãs, perder vida para salvar povo, está junto de Acamã no meio da floresta. Os índios que estavam com as mulheres e crianças, já sabendo que não havia perigo, iam chegando aos poucos na aldeia. No meio de todos, vinha Iaé correndo e sorrindo, e, sem esperar, Basílio foi recebido com um abraço e um grande beijo. Os índios gritavam e faziam seus sons como se estivessem festejando a vitória e, ao mesmo tempo, o beijo que ninguém esperava que fosse acontecer. De repente, ouviu-se sobre a aldeia helicópteros sobrevoando, indo e voltando, todos ficaram em silêncio. O sargento, apreensivo, pensou consigo mesmo: — Serão os colombianos tentando uma retaliação? Ele correu e subiu em uma das árvores a fim de identificar o que era. Pelo meio dos galhos e folhas conseguiu avistar, era um helicóptero Apache do corpo de fuzileiros do Brasil. Basílio desceu rapidamente e gritou: — Abram! Abram a aldeia! Rápido! Os índios obedeceram sem saber, mas sempre confiantes no articulador de toda a batalha vitoriosa; correram e cortaram os cipós que seguravam os grandes galhos. A taba surgiu como um grande clarão no meio da mata, como se abrisse uma concha do mar, assim se fez a aldeia, e Basílio acenava com gestos de paz, querendo dizer que era amigo. O helicóptero não pousou, parou no ar, permaneceu algum tempo, e, logo em seguida, desceram fuzileiros navais por um "rapel". A descida da aeronave seria um desastre ali na aldeia, tanto pela forte ventania, como pelo fato da mata ser fechada. Os militares desceram, e Basílio correu para recebê-los. Eles desceram e o helicóptero se foi. Basílio estava rodeado por índios, Abaquar e Iaé ao seu lado com a mão em seu ombro. Os militares aproximaram-se com alguma desconfiança e logo Basílio reconheceu: — Capitão Toledo! Era o mesmo capitão que havia ordenado o transporte da equipe de Basílio quando foram atacados. Ele se aproximou, olhou bem para Basílio... Olhou novamente, e disse: — Sargento Basílio? — Sim, sou eu mesmo, senhor — Mas... Mas... Mas como pode? – Gaguejou. — Ora, senhor, podendo, sou eu mesmo, e acabei de travar uma batalha junto com esse povo. – disse Basílio sorrindo. Ainda de olhos arregalados e sem tirar os olhos de Basílio, o capitão Toledo disse: — Mas você estava morto! Ou pelo menos foi dado como. — Pois é, capitão, eu não morri graças a esses índios, e é aqui que vivo desde o ataque. – Ele pausou e continuou: — E por falar, alguém sobreviveu? — Que eu saiba até hoje ninguém, mas como estou vendo você na minha frente, já nem posso mais dizer quem está vivo ou quem está morto. – Ele continuou: — Na verdade, todos os corpos foram encontrados assim como a balsa, o único que não foi encontrado foi o seu, vasculharam uma área imensa à sua procura, mas a Marinha Brasileira acabou dando-o como morto em combate. — Entendo, capitão, mas foram esses índios que me encontraram e salvaram minha vida, e desde então é aqui que vivo. O capitão agora olhava para Abaquar, Iaé e todo aquele povo, quando Basílio voltou a tomar a sua atenção: — Como vocês vieram para cá, capitão? Ele, desviando o olhar para toda aquela gente, disse: — Um avião da Força Aérea Brasileira viu o fogo num barco em um rio aqui a Oeste, e logo foi acionado o helicóptero Apache para ver o que era. Nenhuma tropa nossa está instalada por aqui, por isso achamos estranho ter fogo. – Ele viu os colombianos no chão e perguntou: — E como fizeram isso? Como derrotaram esses caras? — Isso é uma longa história, não usamos armas de fogo, apenas ficamos invisíveis. – disse Basílio com um leve sorriso. — Invisíveis? O capitão franziu a testa. — Sim, sim, invisíveis, como esse sistema que o senhor viu do helicóptero. Ele olhou para cima e perguntou: — Foi você, sargento, que desenvolveu isso? — Não, capitão, não fui eu. Quando cheguei aqui, também fiquei impressionado com o que esse povo faz para se esconder de homens brancos, aviões e aeronaves. — Impressionante... — Murmurou o capitão. Basílio apresentou Abaquar aos militares e seguiu caminhando pela aldeia com eles. Ao mesmo tempo em que apresentava toda a taba, contava tudo que havia passado durante todo aquele tempo ali. Iaé não saía do lado de Basílio e foi então que o capitão disse: — É, sargento, vejo que até aqui você se deu bem... — Pois é, capitão. Na época que vim para a Amazônia meu casamento havia terminado, e a Iaé foi a melhor coisa que me aconteceu até hoje. — Mas você não está pensando em ficar por aqui? Ou está? Basílio ficou calado, olhou para Iaé, suspirou e disse: — Bom, capitão, eu devo muito a esse povo, e com todo esse tempo que estou aqui eu aprendi a viver no meio deles. – Ele parou e continuou: — Na verdade, preciso ver meus pais, sei que nasci para viver lá e não aqui, mas toda minha preocupação é a Iaé. — Te entendo, sargento, porém, desculpe lhe dizer, não posso deixá-lo aqui, estaria indo contra o regulamento militar e acho que você terá muita coisa de bom para levar para o meio da sociedade. Eu terei que levá-lo e, quando chegar, lá resolverão sua vida na Marinha. – Basílio novamente olhou para Iaé, virou-se e disse: — Então eu a levo comigo! — Você tá maluco? – disse o capitão hesitando: — Outra coisa que não posso fazer é isso. Eu nem sei como funcionam as leis que protegem os índios em nosso país. Você sabe como é a Marinha. Não podemos fazer nada sem antes consultar. Levar essa índia pode me trazer vários transtornos. O sargento sabia muito bem que o capitão Toledo estava com a razão, porém o que fazer? Ele se retirou dali junto com Iaé e disse a ela em voz baixa e angustiada: — Iaé. por favor não chore, mas terei que ir... — Cari não poder ir, ter que ficar com Iaé... Ter que ficar. Dizendo isso seus olhos castanhos encheram-se de lágrimas e Basílio continuou: — Eu não posso, Iaé. Sabemos que eu vim parar aqui por acaso, eu preciso voltar, se ninguém aparecesse por aqui eu não voltaria... Abaquar aproximou-se junto com Cacauá e disse: — Cari ter que voltar, amigos de Cari precisam de Cari. Logo em seguida, Cacauá tomou a palavra: — Cari foi muito bom para Atauãs, assim como é bom para seu povo também. Iaé ser de Cari e Cari ser de Iaé, mas Iaé ser Atauã, e Cari não ser, precisa ir com outros. Cacauá era de todos ali quem melhor pronunciava palavras na língua dos homens brancos, e Basílio entendeu muito bem o que ele havia dito. Se ele quisesse ficar ou partir, seria sua a decisão, porém, no meio dos homens brancos, ele teria a obrigação de retornar por não estar morto. Ele virou-se e disse para o capitão: — Capitão, eu vou! Mas, vamos rápido, se é para ir, eu vou, mas saiba que minha vontade é de ficar. O capitão ordenou que um militar dos que estavam ali chamasse o helicóptero pelo rádio e assim foi feito. A aeronave retornou lançando para o meio da aldeia uma espécie de cesta para resgate de pessoas e assim iria levar ambos até o interior da aeronave. Enquanto os militares subiam, Iaé correu, deu um beijo demorado em Basílio e colocou em suas mãos um dos bonecos feitos de palha que ela chamava de icurumim. Basílio se despediu de Abaquar, Cacauá e os outros índios, não só com as mãos nos peitos de ambos, mas também com um abraço. Ele olhou mais uma vez para Iaé, ela chorava, ele sentia o coração gelado do mesmo jeito quando viu o amigo Araújo ser morto. O capitão gritou: — Vamos, Basílio! Ele virou-se, entrou na cesta de transporte sem tirar os olhos de Iaé, subiu até o helicóptero e se foi. Capítulo XVI - Em busca de Iaé. Passaram-se semanas e Basílio retomou sua vida normal que já não tinha havia meses, vivendo com os índios Atauãs. Após sua chegada, teve dias atribulados por conta de entrevistas a rádios e emissoras de televisão. Apareceu no noticiário nacional durante dias falando sobre sua aventura, foi capa de revista e ainda recebeu condecorações do presidente da República. Porém, todo esse sucesso não lhe causava satisfação alguma; sua cabeça estava sempre voltada para Iaé. Por mais que estivesse conformado com a volta de sua rotina na sociedade, inquietava-se, pois tinha certeza de que a mulher que amava esperava por ele, e ele alimentava esperanças em seu coração de encontrar a índia. Ele voltou a morar sozinho, não teve mais notícias de sua ex- mulher. Com certeza, ela já sabia de seu retorno, mas não o procurou, talvez já estivesse com outro marido, ou vivendo do jeito que queria, mas isso não o interessava, o que lhe interessava era saber como chegar até à índia que era em quem ele pensava vinte quatro horas em todas aquelas semanas longe da tribo dos Atauãs. A febre da mídia em divulgar a sensacional aventura do sargento havia esfriado, e ele havia retomado sua vida cotidiana na caserna. Até mesmo dentro do quartel, era a todo momento abordado e quase que entrevistado por outros militares, que, curiosos, queriam saber como foi sua vida, como sobreviveu e como foi o combate com os colombianos. A guerra havia acabado, a Colômbia recuou e um tratado de paz foi assinado por todos os países da América do Sul, começando uma reconstrução da Colômbia devastada pela guerra. Basílio andava pelo quartel, tinha acabado de dar aula de instrução de tiros para alguns soldados recém chegados. Ele já não era mais de tanta conversa, andava calado e observador, cumpria seus serviços com total seriedade, e já havia cessado bastante a chuva de perguntas. Ele havia terminado a aula, dispensou os soldados e dirigiu-se para o alojamento para trocar de roupas e ir embora para casa. No caminho, encontrou o Capitão Toledo que, acompanhando-o, disse: — E aí, sargento? Ainda bem que deu uma acalmada a televisão, hein? Basílio respondeu: — Sim, sim capitão. Pelo menos tive meu momento de fama, não? — Sim, rapaz! Você tornou-se um ídolo para a Marinha Brasileira e para o corpo de fuzileiros. – disse o capitão sorrindo. Basílio instantaneamente mudou o assunto: — Pois é, capitão, mas não era essa a minha vontade; dispensaria toda essa palhaçada de televisão e tudo mais para ter o que eu mais quero. O capitão franziu a testa escura e perguntou: — O sargento não vai me dizer que... – Ele pausou e continuou: — Que está se referindo àquela índia? — Sim, capitão, é a ela mesmo que me refiro. — Mas, sargento, você está sonhando demais, isso que viveu com essa índia foi uma aventura, assim como se vive com qualquer namorada por aqui, elas vem e vão, e a índia foi mais uma, meu caro! – disse o capitão em tom mais alto. Basílio parou, virou-se e disse olhando para o capitão: — Olha, capitão, eu sei que elas vêm e vão, porém chega um dia que aparece uma que vem para ficar, e, quando isso acontece, nunca é bom deixá-la escapar, para mais tarde não se arrepender. Conheci várias mulheres, que vieram e se foram, mas aquela índia é a que eu quero para ficar. Ouve um silêncio e continuaram a caminhar em direção ao alojamento e o capitão Toledo disse: — Bom, meu caro, até entendo que essa seja sua vontade, porém não sei se irá conseguir. Sabe que existem em nosso país leis e instituições que defendem os índios, por isso não sei se sua vontade será possível de ser realizada. — Mas capitão – disse Basílio – se eu pudesse trazê-la, ninguém precisaria saber, eu cuidaria de tudo. Tenho certeza de que ela está a minha espera, está sentindo a minha falta e que aceitaria vir comigo. Dizendo isso, Basílio baixou o tom de voz e olhou para o céu à procura da lua, mas ela ainda iria surgir. — Será mesmo, capitão? – perguntou Basílio com um ar de quem pede algo. — Será que não existe nenhuma possibilidade de trazê-la? Seja em operação oficial militar, ou não... — Você está louco, Basílio! – exclamou ele. – Como iria realizar uma operação extra-militar em plena floresta amazônica? Iríamos direto para a cadeia. Basílio chegou à porta de seu alojamento e o capitão disse: — Vá para casa, rapaz, esfria essa cabeça, daqui a pouco você encontra uma namorada nova por aqui mesmo. Basílio entrou para o alojamento, trocou-se e foi para a sua casa. Era manhã do dia seguinte, e Basílio havia dormido muito mal devido à conversa desesperançosa que havia tido com o capitão Toledo. Estava atrasado em sua chegada ao quartel, mas não estava ligando muito para isso, entrou no alojamento vazio, todos os militares já estavam em seus afazeres. Seu armário era o último no fundo de um grande corredor largo e alto. Abriu seu armário e ficou de frente e, como num ritualn olhou para a prateleira de cima onde se encontrava a sua única lembrança material de Iaé, dois icurumins, ou seja, os dois bonequinhos feitos de madeira e amarrados com cipó que a índia havia lhe dado em sua partida. O silêncio do alojamento foi quebrado com uma voz alta e forte vindo da porta: — Sargento Basílio! Era o capitão Toledo, fardado e com ar de seriedade. Ele foi se aproximando e disse, firmemente: — Escuta, sargento, acho que posso dar um jeito a respeito do que conversamos ontem. Basílio mudou de expressão e prestou atenção, enquanto ele continuava: — Amanhã pela manhã, sairá um helicóptero daqui do Rio de Janeiro com destino a Manaus. Serei bem claro com você. – Ele aumentou o tom de voz e resumiu: — Você irá junto com esse helicóptero. É uma missão de transporte de armas e documentos que estão no Amazonas, já avisei ao piloto o que vocês irão fazer. Chegando lá, você poderá ir até a floresta pegar sua índia. Agora preste bem atenção, sargento. – Gesticulando, ele disse: — O que vier a acontecer, eu não terei nada a ver com isso! Só estou fazendo isso, porque acho que você merece ter aquela índia já que é a sua vontade, porém, não terei nada a ver com as Forças Armadas ou com a FUNAI e seja lá o diabo que for. Basílio perguntou: — Mas como vou fazer para encontrar aquela aldeia? Eles devem estar invisíveis, e não tenho referências geográficas... — Bom, sargento, aí eu não posso ajudá-lo. O helicóptero partirá amanhã pela manhã. Você tem o dia inteiro para pensar, dê seu jeito. O capitão se retirou e, ao chegar na porta, Basílio gritou sorrindo: — Obrigado, capitão! Ele se foi e o sargento ficou a pensar: — Como irei encontrar a aldeia? Estarei eu e um piloto, como vou fazer para que eles abram a camuflagem? Eles não vão saber que sou eu, e agora? Basílio estava eufórico, precisava encontrar um meio dos Atauãs abrirem as camuflagens, e, para isso, tinha que achar uma maneira para que os índios soubessem que era ele que estaria sobrevoando. Teria que pensar de que forma iria encontrar o local da aldeia invisível. Ele parou por alguns instantes e lembrou-se do igarapé onde colocaram fogo no barco dos colombianos que atacavam os Atauãs. Talvez pudesse encontrar, o capitão Toledo deveria saber as coordenadas geográficas, e, mesmo que não tivesse, era só procurar nos relatórios de missões da época. Porém, como fazer para os Atauãs descobrirem que seria ele no helicóptero? Parou, baixou a cabeça, pensou e pensou. De repente, levantou a cabeça e olhou para dentro do armário, seus olhos arregalaram-se e automaticamente, junto com um pulo seguido de um soco no ar, ele gritou: — Ieeaaaa! É isso! Basílio colocou sua farda rapidamente e saiu do alojamento correndo, entrou como um furacão na sala do capitão Toledo e disse, euforicamente: — Capitão! — O que é Basílio? – perguntou o capitão em tom irônico. — Só preciso de um último favor do senhor. — E o que é? — Só preciso que o senhor encontre para mim as coordenadas geográficas do ponto onde encontrou aquele barco colombiano pegando fogo no dia que me encontrou no meio da mata. — Mas como? – repetiu o capitão: — Mas como? — Não sei, capitão, foi o senhor quem foi lá, procure, só preciso disso, por favor. Ao dizer isso, Basílio deu as costas e saiu quase que voando pela porta. O capitão ainda gritou: — Basílio, Basílio! E resmungou – Tô ferrado com o romance desse sargento. O sargento dirigiu-se para um campo onde alguns soldados estavam praticando educação física, havia por ali uns oito a dez militares e ele disse: — Todos aqui comigo, agora! – Os soldados aproximaram-se e ele continuou: — Não quero que ninguém coloque as fardas, quero que dois de vocês vão até o setor de obras e construções, apanhe o máximo de madeira que conseguirem, cabos de vassouras, ripas e tudo mais que encontrarem, e ainda peguem toda corda que tiver lá, digam que fui eu que mandei. O restante vai até o paiol e cada um pegue sua faca de combate, e espero que estejam amoladas, pois hoje ninguém tem hora para ir embora! Todos gritaram simultaneamente: — Sim, senhor! Alguns soldados e cabos que passavam por ali eram também ordenados pelo sargento a pegarem suas facas e cumprirem a tarefa. Dois soldados chegaram com madeiras e muitas vassouras velhas em cima de um carrinho, e Basílio disse a todos: — Estão vendo isso aqui? São bonecos fáceis de fazer, são pedaços de madeiras afinados na faca e amarrados com fios de corda. Quero que um grupo afie apenas os palitos de madeira, outro grupo fure as madeiras em ambos os lados, e por fim outro grupo irá amarrar, montando o boneco. Um soldado gaiato perguntou: — E para que isso senhor? — Não interessa! Vamos logo, que preciso de todo o tempo do mundo, e como disse, ninguém sai do quartel hoje enquanto eu não ordenar. Os soldados começaram a confeccionar os bonecos sob as orientações de Basílio. No início, estavam meio sem jeito e prática, mas logo pegaram a técnica e os pequenos bonecos começaram a se amontoar dentro de um carrinho. Às vezes, um soldado soltava um gracejo que logo era repreendido pelo superior: — Senhor sargento, isso aqui é para algum show para crianças? — Cala sua boca! Na próxima gracinha, te coloco para rastejar daqui até o Canadá. A truculência do sargento fazia com que outros soldados evitassem promover mais algumas gracinhas. A noite chegou e continuavam a fazer os bonecos. Basílio ainda conseguiu mais madeiras e cordas dentro do quartel, vários carrinhos e grandes sacos estavam cheios de icurumins. Até que Basílio percebeu que já era o bastante para colocar seu plano em prática. Já eram quase onze da noite quando Basílio dispensou os militares, guardando todo aquele estoque de icurumins. Ele não foi para casa, ficou pelo quartel mesmo, adormecendo e sonhando em dar certo o que planejava. O dia amanheceu no quartel, Basílio já estava pronto, armado e equipado no heliporto. Estavam ele, um oficial piloto e mais um soldado. O piloto chama-se tenente Faial, que disse: — Sargento, pode ficar tranquilo que o capitão Toledo já me disse o que iremos fazer. Pelo que ele me contou, eu mesmo admiti que você merece o que deseja. Para mim, não será difícil, sobrevoei aquelas matas durante quase toda a guerra. Só preciso que você me consiga pelo menos alguma coordenada de referência. Basílio colocou a mão no bolso, pegou um pedaço de papel e mostrou ao piloto, dizendo: — Está aqui. Foi o capitão Toledo quem esteve nesse ponto quando me encontrou. Ele também não tem certeza, seguiu as informações dadas pelo piloto que estava com ele no dia. — Bom. – disse o piloto olhando para o papel. — Sem problemas, estou ao seu dispor sargento, só quero ajudar. Basílio, que já não se continha de tanta ansiedade, disse: — Nesse caso, tenente, podemos ir agora direto para a floresta! Creio eu que já que estamos indo sem ordens que vamos logo. — Sim, sim, vamos sim, qualquer coisa invento uma história no rádio para o heliporto de Manaus até voltarmos. Basílio, junto com o outro soldado que iria, colocaram toda aquela produção de icurumins feita no dia anterior e o tenente Faial perguntou: — O que é isso? — Isso aqui tenente, é o que vamos usar para encontrar os índios invisíveis. O tenente não entendeu muito mas subiram no helicóptero e partiram. Chegaram depois de horas em Manaus e tiveram que aterrissar para abastecer. Alguma coisa o tenente disse para seus superiores no heliporto que Basílio não sabia, só sabia que tinha dado certo, pois o tenente retornou, subiu no helicóptero novamente e disse: — Vamos nós direto para a floresta! A aeronave decolou e foram sobrevoando toda aquela imensa floresta, verde e fechada. O tenente se dirigia para o ponto das coordenadas do Capitão Toledo. Sobrevoando a mata, encontrava vários igarapés próximos um ao outro; paravam no ar, olhavam e continuavam a sobrevoar. Enquanto isso, na aldeia dos Atauãs, nada era novidade nas rotinas dos índios. Estavam todos em seus afazeres quando ouviram o helicóptero sobrevoando para lá e para cá. Iaé estava sentada em um tronco de madeira raspando mandioca e descascando alimentos, quando ouviu o barulho, parou e olhou para o alto. A aeronave ia e vinha, às vezes o barulho ficava longe, e às vezes mais perto, porém nenhum índio se impressionava, continuavam em suas tarefas. Enquanto isso, no helicóptero, Basílio, junto com o soldado, começaram a jogar aos poucos os bonecos por cima da mata por onde sobrevoavam. Eles iam e voltavam pela mata fechada, o sargento de um lado do helicóptero, o soldado do outro, despejando de maneira quase igual as porções de icurumins por cima da mata. Alguns índios, assim como Iaé, já estavam encabulados e olhando para o alto a fim de entender o que aquele pássaro da ventania fazia tanto por ali. De repente, na frente de Iaé, cai ao chão um boneco, ela arregala os olhos claros e amarelados, pega o boneco na mão e diz em voz baixa: — Icurumim... Cari... Logo olha para o lado e vê outro icurumim. Estava gelada, não sabia se olhava para o alto ou para os bonecos. Ela suspirou e procurou pela mata alguma coisa com os olhos, e ao avistar correu gritando: — Cari! Cari! Ela correu ao encontro de Abaquar, que logo olhou nas mãos de Iaé e viu os icurumins. Nesse momento, ela já sorria e olhava para o alto. Abaquar, no mesmo momento, correu gritando e ordenando para os índios abrirem os galhos. Vários deles correram e cortaram as cordas que seguravam os grandes galhos. E, como uma grande concha, surge a aldeia dos Atauãs. De cima do helicóptero, era esplêndida a vista de todos aqueles galhos abrindo um para cada lado, como se fosse uma obra de arte ou uma atividade sincronizada. O tenente Faial estava perplexo com a vista que teve, enquanto Basílio gritava bem alto devido ao barulho dentro do helicóptero: — É lá! É lá! Encontramos! Encontramos! O helicóptero parou no mesmo lugar no ar. Basílio desceu pelas escadas de corda, chegando ao solo como foi o combinado devido ao grande vento e barulho. O tenente saiu para sobrevoar, enquanto o sargento informava o que vinha fazer. Abaquar, Cacauá, índios e índias correram para perto de Basílio rindo, batendo palmas e festejando. Iaé permaneceu parada olhando por de trás dos outros índios. Abaquar deu um abraço em Basílio como aprendera com o sargento em sua despedida e disse sorrindo: — Cari! Cari! Amigo de Atauã voltar! — Sim, Abaquar, eu voltei! Além de fazer uma visita eu vim levar alguém comigo. Cacauá, colocando a mão nos ombros de Basílio, disse: — Cacauá ter certeza que Cari voltar, não para ficar, mas sim para buscar o que é dele. Nesse momento, abriu-se um clarão no meio dos índios para deixar a índia chegar, linda e com um sorriso no rosto que Basílio nunca havia visto antes. Aproximaram-se um do outro com toda tribo como platéia e Basílio disse: — Eu vim buscar você! Quer ir? Iaé balançou a cabeça e disse: — Iaé querer, querer muito, Iaé pedir a Acamã e Acamã trazer Cari. Agora Iaé ir com cari. Ela passou a mão pelo rosto de Basílio e os dois beijaram-se em um abraço apaixonado e envolvente. Toda tribo gritava e aplaudia como nos grandes momentos de comemorações da aldeia. O beijo foi interrompido pelo barulho do helicóptero que parou no ar novamente, em meio ao barulho e vento Basílio disse: — Iaé será para sempre de Cari. E ela disse: — Cari ser de Iaé para sempre. F I M. Colaboradores: Ilustrações: Marcos Vinícius Rodrigues de Azevedo (Tsukino). Designer de Arte: Leandro Leite dos Santos. Revisão: Ana Lúcia dos Santos Fernandes e Edson Amaro. Diagramação: Welbert Leite dos Santos.