Histórias da bola por Paulo Roberto Falcão - depoimento de Nilson Souza L&PM editores S/A INDICE Parceiros Inseparáveis por Nilson Souza Com o Formato do Mundo Um Par de Tênis Brancos Seu Bento, marcador Implacável Sonhos na Peneira Colombo e Cabral Um Intrigante na Área Manguita Fenômeno O Gladiador Medroso Um Rei no Beira-Rio O Herói do Segundo Tempo Experiente em Malandragem Um Dançarino na Zaga As Maçãs do Mascate Duelo de Vaidades Jogada Genial O Dia da Erisipela O Baixinho Inquieto O Vesgo Maroto Um Milhonário no Gol: página.059 A Tremedeira do Jorjão: página.062 Gol Contra: página.64 O Avô Cantor: pá´gina.069 Os Enigmas do Aparício: página.072 Ôlho de Tigre: página.074 O Homem do Cinto: página.077 O Professor e a Santa: página.079 Os Shows do Trianon: página.081 Segundo Barone: página.083 A Revanche do Sarriá: página.085 O Passinho do Faustão: página.089 Duas Noivas: página.091 Cuidado com as Pernas: página.093 Nem Sempre Ganha o Melhor: página.095 Uma Mala de Tristeza: página.097 A Segunda Fronteira: página.101 A Bola sumiu: página.104 As Trapalhadas do Pato: página.106 Mensagem Inesquecível: página.108 Questão de Talento: página.111 Tratamento Alternativo: página.113 Fenômenos Holandeses: página.116 O Imperador do Meio-Campo: página.118 O Gigante de Palha: página.121 Carnaval no Coliseu: página.123 O Mago de Buscate: página.125 Pantufas de Ouro: página.128 Na Terra dos Tremores: página.130 O Tradutor Desanimado: página.132 Missão Impossível: página.137 Tropeçando nas Letras: página.139 Remédio Eficiente: página.141 Perfume Especial: página.144 O Craque Desmemoriado: página.147 Talento Exemplar: página.149 *** PARCEIROS INSEPARÁVEIS Paulo Roberto Falcão colecionou histórias da bola porque foi personagem real de alguns dos mais impolgantes capítulos da antologia do futebol mundial. Nascido a 16 de outubro de 1953 em Abelardo Luz, Santa Catarina, o futuro craque conheceu sua parceira de carreira nos campos de várzeas de Canoas, no Rio Grande do Sul, para onde a família se mudou nos anos 60. Filho do motorista de caminhão Bento Falcão e da costureira Azize, ele vendia garrafas vazias aos 11 anos para poder se deslocar de ônibus até o campo de treinamento do Internacional, onde começou a jogar. Profissionalizado aos 18 anos pelo técnico Dino Sani, depois de integrar a Seleção Olímpica do Brasil nos jogos de Munique em 1972, Falcão conquistou cinco títulos regionais (73, 74, 75, 76 e 78) e três campeonatos brasileiros (75, 76 e 79) pelo clube gaúcho, que defendeu durante 16 anos. Na década de 70, foi várias vezes convocado para a Seleção Brasileira. Em 1982, foi o principal nome do time formado por Telê Santana para disputar o mundial da Espanha. Antes disto, em 1980, transferiu para o Roma da Itália, onde comandou a conquista do scudetto nacional da temmporada 83/84, que o clube romano não ganhava há 42 anos. Idolatrado pelos tiffosi, foi apelidado pela imprensa local de "Oitavo Rei de Roma", numa alusão à sucessão de monarcas dos primeiros tempos da cidade eterna. Retornou para o Brasil em 1985, depois de uma cirurgia de joelho que o afastou do futebol por quase seis meses, e ainda ajudou o São Paulo - seu último clube como jogador - a conquistar o título paulista daquele ano. Participou da Copa do Mundo de 1986, no México, e encerrou uma das mais brilhantes carreiras entre todos os futebolistas brasileiros. Mas não renunciou o romance com a bola, embora tenha aproveitado o tempo para começar uma exitosa carreira de empresário de moda. Em 1991, voltou ao futebol, como treinador da Seleção Brasileira. Posteriormente, dirigiu o América do México, o Internacional de Porto Alegre e a Seleção Japonesa. Em 1995, começou a trabalhar como comentarista esportivo na RBS, repetindo o que já fizera na televisão italiana. Em 1996, foi contratado como principal comentarista de futebol da Rede Globo. Considerado pelo técnico Rubens Mineli, que o dirigiu no bicampeonato brasileiro do Inter, como o mais inteligente e talentoso dos seus comandados, Falcão tem revelado dentro e fora do campo as qualidades de um grande observador, como o leitor poderá avaliar nas histórias selecionadas para este livro. *** COM O FORMATO DO MUNDO Quantos lados tem a bola? Quando eu era garoto, gostava de fazer esta pergunta aos amigos da minha idade, para depois de deixá-los contar os gomos de couro e fazer cálculos, retrucava com aquela resposta marota: - Tem só dois: o de dentro e o de fora. Mas não tardei a descobrir que eu é que estava enganado. Uma bola, na verdade, tem muitos lados. A primeira que ganhei de matal do meu pai, aos seis anos, realmente parecia ter apenas dois. Na noite do dia 24 ostentava por fora um marrom reluzente de pura alegria, que jamais vou esquecer. Na manhã do dia 25, depois de meia dúzia de chutes, foi parar murcha num prego da cerca, e eu descobri que tinha também o seu lado interno, inútil e triste. Aquela bola era um símbolo de vida das pessoas: Num momento, bonita, brilhante, irradiando saúde e felicidade. No outro, inútil, frustrante, pura desilusão. Chorei muito por causa da minha bola furada. Mas logo aprendi que aquilo também tinha conserto. Bastou levá-la ao sapateiro e lá estava ela cheinha novamente, pronta para recebver chutes, cabeceadas e também o meu carinho de menino feliz. Muitas vezes dormi com a bola ao lado do travesseiro. Mais tarde, descobri que a bola também tinha um lado trabalho. Fiz dela minha profissão, atrás dela corri o mundo, conheci novos países, novas pessoas, vitórias e derrotas. Também neste lado tive a ventura de encontrar mais satisfações do que desgostos. Quando parei de jogar, me deu vontade de imitar o espanhol Di Stefano que construiu um monumento à bola no jardim de sua casa e colocou a seguinte inscrição: - Gracias, vieja! - Obrigado, velha amiga! A bola também tem o seu lado de realização profissional. Mas o lado mais fantástico e maravilhoso é aquele que se revela no dia do natal: o lado do sonho. Mais do que um brinquedo, a bola recebida como presente significa para a criança o mistério do futuro. De couro ou de plástico, grande ou pequna, colorida ou desbotada, ela encerra neste seu formato de mundo um enigma de múltimos lados, que só a vida irá revvelar. Porisso, desejando que todos os leitores encontrem o lado mais encantador deste brinquedo mais fascinante, fiz este livro para passar-lhes histórias bonitas e divertidas que a bola me contou. *** UM PAR DE TÊNIS BRANCOS Nos momentos mais importantes da minha carreira, jamais deixei de pensar no meu primeiro treinador, Jofre Funchal, que orientava a escolinha do Internacional. Quando comecei a jogar, sequer imaginava que ainda desfrutaria duas copas do mundo e seria contratado para atuar no exterior. Eu era um garoto tão magrinho que o seu Jofre se preocupava em me dar fortificantes. Fazia muito mais: muitas vezes pagava a passagem de ônibus até Canoas, onde eu morava. Treinávamos no velho estádio do Nacional, onde há hoje um dos supermercados mais movimentados de Porto Alegre. Eu tinha que tomar dois ônibus para chegar lá e vendia garrafas vazias para pagar as passagens. Quando não conseguia dinheiro, o seu Jofre financiava. Um dia ganhei sapatos novos de meus pais e fui todo feliz para o treino. Era dia de teste para novos jogadores e passaram mais de 300 meninos pelo vestiário. Um deles levou os meus sapatos. Fiquei desesperado. Então, o seu Jofre foi numa loja perto do estádio e comprou um par de tênis brancos, para que eu não voltasse descalço para casa. Mesmo assim achei que iria apanhar de meus pais e fui direto para o banheiro chorar. Quando eles viram os tênis, maiores do que os meus pés, começaram a rir e eu acabei rindo junto. Vi seu Jofre pela última vez em 1985, quando me recuperava da cirurgia no joelho e fiquei sabendo que ele sofrera um derrame. Fui à sua casa, juntamente com o fisioterapeuta Nivaldo Baldo que me acompanhava em Porto Alegre. Nivaldo ainda brincou com ele: - Vamos lá, velho. Levanta desta cama, não te entrega. Pois não é que o seu Jofre levantou e ainda fez alguns exercícios leves de fisioterapia que Nivaldo lhe ensinou. Jofre Funchal, que faleceu no ano de 1986, era uma grande figura. Tinha um automóvel velho, um DKW, que enchia de garotos para levar aos locais dos jogos. O carro nem sempre agüentava a viagem, mas a paciência do treinador e o seu amor pelo futebol não tinha limites. *** SEU BENTO, MARCADOR IMPLACÁVEL Difícil de driblar era o seu Bento. Nunca o vi jogar, mas soube que ele era zagueiro no tempo em que jogava na várzea e pelo time do exército onde prestoou serviço militar. Suas pernas tinham marcas de chuteiras, daquelas chuteiras antigas com travas de prego, mas imaginava que as pernas dos adversários devem ter ficado ainda mais lanhadas. Seu Bento era zagueiro, não levava desaforo para casa e amava o futebol. Depois que parou de correr atrás da bola, transformou-se num crítico implacável. Eu é que sei: Seu Bento era meu pai. Quando comecei a jogar futebol, ele passou a me acompanhar desde a várzea, pelo Juventos de Niterói. Botava a garotada toda do time na carroceria do seu caminhão e levava para onde pedissem, só para me ver jogar. Mas me criticava muito. Jamais me elogiava em público. Porisso, acredito, passei toda a minha infância tentando provar a ele que podia vencer na carreira. Ele gostava de me dar instruções, de dizer quando eu devia driblar, quando devia largar a bola, como devia chutar. Para escapar da pressão, eu informava errado o campo onde ia jogar. Mas ele quase sempre me achava. Quando fui para os mirins do Inter, ele fazia o maior sacrifício para me dar o dinheiro da passagem. E, sempre que podia, estava torcendo, gritando e evitando os elogios na minha frente. Para outras pessoas, porém, dizia orgulhoso: - Este meu filho joga muito! Certa vez, fomos enfrentar o São Jorge, de Canoas, e eu levei dois dribles do Manuel, que mais tarde foi centro avante do Inter. Ele passou um tempão me gozando. Na nossa equipe, treinada pelo seu Jofre Funchal, tinha um mulatinho bom de bola, o sarará, que era exímio driblador, mas só sabia jogar descalço. Seu Bento gostava de dizer que aquele sim era craque. O garotinho, infelizmente, jamais aprendeu a jogar de chuteira. Quando fui convocado para a Seleção Brasileira de juniores, ele estava morando em São Paulo, e minha primeira reação foi correr para um telefone, para contar. Acho que as críticas do meu pai acabaram me servindo de estímulo permanente. Seu Bento nos deixou em fevereiro de 1993. Ao iniciar este relato pessoal, eu me sentiria mal se lhes contasse uma outra história de futebol que não tivesse sido protagonizada por este personagem que marcou profundamente minha carreira e minha vida. *** O SONHO NA PENEIRA Uma reportagem apresentada pela RBS TV sobre a "peneira" do Inter me fez voltar à infância. Peneira é a palavra que usamos no futebol para designar a seleção de garotos que pretendem fazer carreira no clube. Trata-se de um teste prático e rápido, no qual os treinadores têm que observar dezenas, às vezes cemntenas de candidatos em poucos minutos. Mal dá tempo para o pretendente a Pelé mostrar o que sabe fazer. Muitas injustiças são cometidas, mas também é ali, naquele momento mágico, que pode nascer um craque. Normalmente os meninos tentam primeiro o clube do coração. Foi o que aconteceu comigo, aos 11 anos. Num belo dia, conduzido pelo meu irmão Pedro e na companhia de outros quatro companheiros - meu primo Júlio, Roni e mais os irmãos Marquinhos e Negrinho, que jogavam comigo na meia-cancha do Juventos, de Canoas, - fui ao antigo campo do Nacional, em Porto Alegre, onde hoje se localiza um supermercado no bairro do Menino Deus. Lá estavam mais de 300 moleques. Jofre Funchal, o seu Jofre, era o selecionador. Ainda me lembro que ele perguntava: - Quem é lateral direito? quem é ponta esquerda? E a meninada levantando a mão. Alguns levantavam em todas, pois queriam mesmo era entrar de qualquer maneira. Nesta idade, todo garoto se considera o melhor do mundo. Tanto que um de meus companheiros, Marquinhos, ficou contrariado por não entrar no primeiro grupo e foi embora. Ali já deu pra ver como é difícil ser treinador. Mas seu Jofre era uma simpatia e não magoava ninguém, ao contrário de alguns técnicos que conheci depois e que traumatizaram muitas crianças com tratamento inadequado. Ainda me lembro como fiquei orgulhoso quando ele se voltou para o meu irmão e disse: - O alemão está plenamente aprovado. Uma coisa dessas marca positivamente, pois garante alta estima para o resto da vida. Da mesma forma como o tratamento brusco, a grosseria ou o deboche podem marcar negativamente. Felizmente hoje os selecionadores são quase professores, com boa formação, habilitados para recusar os menos talentosos sem magoá-los. Entendem que a peneiira não é apenas uma forma de recrutar futuros craques: é também um momento mágico de realização de sonhos. *** COLOMBO E CABRAL Mais do que um procurador, o advogado Cristóvão Colombo foi o amigo que tive a felicidade de encontrar quando jogava futebol e que me serviu de bússola nos momentos de incerteza da carreira profissional. Conheci-o como diretor das categorias amadoras do Inter. Eu era juvenil e, quando fui convocado pela primeira vez para a Seleção Olímpica, em 1972, juntamente com Pedrinho e Manuel, Colombo nos acompanhou a uma loja da cidade para que comprássemos ternos e nos apresentássemos bem vestidos na CBF. Na volta, busquei a sua ajuda para acertar um contrato com o Inter. Ele me chamou no seu escritório, me colocou diante de um quadro negro, desenhou algumas figuras e disse: - Aqui estamos eu e você, que sabemos qual é o teu potencial. Do outro lado estão os dirigentes, que ainda duvidam. Por enquanto eles são mais fortes, temos que aceitar o jogo deles até que haja um consenso sobre o teu futebol. Depois, aprimoramos a tática da renovação. Colombo fingia que concordavam com os dirigentes e eu recusava as propostas, confundindo os negociadores. Até que ele ficava sozinho com eles e sempre conseguia um pouco mais. Na Itália chegou a discutir com o primeiro ministro da época, Giulio Andreotti, para que eu renovasse com o Roma. Tínhamos conquistado o título e o presidente do Roma, Dino Viola, era candidato a senador pelo partido de Andreotti. Embora seja um hábil negociador, Colombo às vezes se mostra temperamental. Durante uma discussão com os dirigentes do São Paulo que apoiavam o técnico Cilinho contra a minha presença no time, chegou a jogar um copo no peito de um deles. Outra vez, em Florianópolis, tive que interromper uma sessão de autógrafos para impedir que ele se engalfinhasse com o funcionário de uma companhia aérea que havia cancelado seu voo sem aviso. Até comigo ele brigou, quando decidi jogar no São Paulo em vez de aceitar uma proposta da Fiorentina. Contrariado com a minha decisão, deixou a sala onde estávamos e disse que eu me virasse sozinho. Na saída, encontroou sua esposa Tânia, conversou com ela e dez minutos depois estava me abraçando emocionado, com uma explicação: - Agora somos todos torcedores do São Paulo. Cristóvão Colombo dos Reis Miller, que ganhou este nome porque nasceu no dia 12 de outubro, é padrinho de meu filho. Logo que se formou advogado, ele foi no cartório Cabral para tratar de uma documentação e pediu para falar com o proprietário. Apareceu um vetusto senhor: - Seu Cabral? - perguntou. Diante da resposta positiva, emendou: - Prazer, eu sou Cristóvão Colombo. O homem nem o deixou explicar: - Fora daqui, seu moleque! *** UM INTRIGANTE NA ÁREA De todos os companheiros que tive no Internacional, um dos mais curiosos foi o zagueiro Bibiano Pontes, que hoje é professor de educação física. Em toda a minha carreira no Brasil e no exterior, jamais encontrei um jogador de defesa com tanta velocidade. Mas Pontes também tinha rapidez de raciocínio e era extremamente criativo, embora passasse por um sujeito de pouca iniciativa. A torcida e a imprensa viam apenas um lado de sua personalidade de atleta; nós, seus colegas de equipe, convivíamos e nos divertíamos muito com o outro Pontes - capaz de encontrar um campo com uma gravata no pescoço ou com um foguete nas mãos, como fez quando ainda atuava pelos juniores. Mas era durante os jogos que ele mais surpreendia. Caladão nos treinos e nas concentrações, nos quais passava a maior parte do tempo lendo, transformava-se em tagarela durante a partida, quase sempre provocando os adversários. Quando um jogador de outro time reclamava do companheiro por um passe mal feito ou um lance errado, Pontes se aproximasse do chingado e dizia: - PÔ, o cara te ofendeu. Vais deixar por isso mesmo? Não foram poucas as vezes em que ele armou verdadeiros rolos com essa estratégia. Outra situação muito comum era vê-lo dialogando com o atacante que marcava, especialmente quando o jogador estava incomodando e mostrando bom futebol. Pontes chegava para o cara e dizia: - Comigo não adianta fazer isso. Quero ver se tu és homem para driblar o Figueroa, que é famoso. Vai lá, faz o teu nome. Normalmente o sujeito se dava mal com o gringo. Mas também não era fácil passar pelo magrão, que era como chamávamos o Pontes. Ele marcava muito bem e corria tanto que não bastava driblá-lo apenas uma vez. Logo ele estava na frente do atacante de novo. Só nos treinos de dois toques em véspera de jogo, é que ele se escondia. Ficava num canto do gramado e se recusava a dar dois passos para apanhar uma bola mal passada. Apesar de ser considerado um tanto excêntrico, Bibiano Pontes sempre foi um companheiro agradável. Tive um bom relacionamento com ele durante o tempo em que atuamos juntos. Ele foi, inclusive, o fiador do primeiro carro que comprei, um karmann-ghia usado. Porisso, ao lembrar algumas de suas histórias pitorescas que o público não teve oportunidade de conhecer, faço também uma homenagem ao grande zagueiro, que teve participação importante na geração mais vitoriosa do Internacional. *** MANGUITA FENÔMENO Desde quando jogou no Botafogo, antes mesmo de participar da malograda Copa de 1966, Manga já protagonizava histórias engraçadas. Quando chegou ao Internacional em 1974, vindo do Nacional de Montevidéu, seu aspecto envelheciedo impressionou. Na primeira vez que foi se fardar, o roupeiro Gentil disse, serimonioso: "O senhor usa que número?" Manga rebateu na hora: - Ô jovem, que história é esta de senhor? Eu sou o Manguita fenômeno. Apesar da desconcentração em certos momentos, ninguém brincava muito com Manga, pois nunca se sabia como ele iria interpretar a brincadeira. Mas Lula, que também era pernambucano, não deixava o velho em paz. De vez em quando agarrava os dois polegares do goleiro, aleijados por sucessivas fraturas, e dizia que iria consertá-los. Nos treinos recreativos, porém, ele e Valdomiro se divertiam chutando forte na cara do Manguita. A defesa falhava de propósito, só para eles terem a chance de chutar. Até que um dia Manga se deu conta da sacanagem e passou a treinar no ataque. Sempre de pés descalços - e virou goleador nas brincadeiras. Manga era sempre o primeiro a tomar banho e se vestir depois dos jogos. Um dia Lula descobriu um rato morto e colocou dentro do seu sapato. Os jogadores ficaram espiando do chuveiro e viram quando ele botou o pé, sentiu que tinha alguma coisa e levou a mão para conferir. No susto, jogou o rato na parede e gritou naquele seu espanhol característico: - Hijos de la madre! Na preleção, antes da partida, Mineli explicava como o meio-campo devia segurar a bola, quando Lula piscou o ôlho e interrompeu: "A gente tem que prender lá na frente mesmo, chefe, pois se a bola vier o Manguinha deixa passar". Sensível, Manga explicou de novo: - Hay traíra a cá, yo sabía. Embora já tivesse 35 anos quando foi para o Inter, Manga era um goleiro excepcional. No campeonato regional de 74, levou só dois gols. Depois, foi o goleiro menos vencido nos brasileiros de 75 e 76. Ele tinha tanta confiança que gostava quando os adversários chutavam a bola, para exibir sua categoria. Hoje, Ailton Correia Arruda já pode ser chamado de senhor, pois está próximo dos 60 anos. Mas, para seus ex-companheiros e para aqueles que o viram jogar, jamais deixará de ser chamado como gostava: Manguita Fenômeno. Era mesmo. *** O GLADIADOR MEDROSO Caçapava era uma fortaleza física no meio-campo do Inter, mas frágil e medroso como uma criança diante de algumas situações extra fuatebol. Quem via aquele negrão musculoso trombando com adversários no campo jamais poderia imaginar seu pavor diante da mínima ameaça, que podia ser um simples inseto ou uma brincadeira mais pesada de um companheiro. Suas reações sempre divertiam o grupo, que com freqüência o escolhia para vítima. Sabíamos que ele tinha verdadeiro horror a cobra. Um dia o lateral Hermes achou uma cobra seca no gramado na hora do treino e combinou a sacanagem: Quando Caçapava tentasse fugir, devíamos atacá-lo de mãos dadas. Tentamos, mas quem disse que o negrão parou de correr? Ao ver que seria impedido, encheu os pulmões e lançou-se contra a barreira como um boi brabo, derrubando quem estivesse pela frente. Em outra ocasião, no Equador, Valdomiro resolveu fazer uma brincadeira na hora do almoço e encostou uma faca no seu pescoço. Caçapava começou a suar e ficou tão assustado que foi parar embaixo da mesa. Para o médico infiltrar o seu tornozelo machucado, na véspera de um Gre-Nal, tivemos que segurá-lo em seis. No jogo, porém, ele não temia nada. Marcava obstinadamente, atroopelava até quando não precisava e cumpria fielmente o que Mineli pedia. Nos treinos, ninguém se empenhava como ele, tanto que nos exercícios físicos como num simples dois toques. Para Caçapava era sempre Copa do Mundo. Adorava uma "rodinha de bobo": aquela troca de passes em um toque só que os jogadores fazem no aquecimento. Depois que ele tinha ido para o Corinthians, em troca de Cláudio Mineiro, ele fez uma visita ao vestiário do Inter, que estava em São Paulo para jogar pelo campeonato nacional. Quando chegou a hora do aquecimento, ele não resistiu: Botou calção, tênis e entrou junto na brincadeira. Na concentração da seleção, dividimos o mesmo quarto. Ele era muito tímido, raramente se queixava de alguma coisa, mas notou que os ídolos paulistas e cariocas tinham tratamento diferenciado, especialmente na hora da preparação física. Um dia desabafou comigo: - Com o Rivellino era Rivinha pra lá, Rivinha pra cá. Já para mim, eles só sabem dizer: Vamos lá, negrão, olha a moleza! Só que o negrão, todos sabem, parou o Rivelino no Maracanã, em dezembro de 1975, e ajudou o Internacional a conquistar o seu primeiro título nacional. *** UM REI NO BEIRA-RIO Todo mundo sabe que o Rei Dadá parava no ar como beija-flor e que tinha a solucionática para qualquer problemática, mas algumas histórias do incrível goleador que o Internacional contratou para ser bicampeão brasileiro em 1976 se perderam pelos vestiários e concentrações dos clubes que ele defendeu. Dou, aqui, a minha pequena contribuição para resgatá-las. Dario contava que começou a jogar futebol muito tarde e que nunca aprendeu direito determinados fundamentos, como chutar e fazer embaixadas. Ele mesmo dizia: - Chuto tão mal que, no dia em que eu fizer um gol de fora da área, o goleiro tem que ser eliminado do futebol. Em campo, ele tinha algumas manias que logo aprendemos a conhecer. Só entrava mesmo no jogo depois de fazer uma jogadinha que se repetia sempre: corria pelo lado esquerdo e dava um passe de calcanhar para um companheiro que viesse atrás. Se não fizesse isso, ficava frustrado. Um dia resolveu treinar cobranças de falta, mas a bola não passava da barreira. Valdomiro, que era um dos melhores chutadores do time, convenceu a tirar a barreira e chutar forte no meio do gol. A bola chegou rasteirinha nas mãos do Manguinha. No vestiário e nas concentrações, Dario era um espetáculo. Costumava desfilar entre os demais jogadores, dizendo que Deus o tinha premiado com um corpo perfeito. Em seguida, acrescentava: - A cara não ajuda muito, mas com um corpo desses nem é preciso. Falava sem parar. Gostava de dizer que só ganhou vaga na seleção porque contratou um primo de voz grossa para gritar atrás do Zagalo, no Maracanã, numa das partidas amistosas que antecederam a copa de 70. Diz que o cara começou a berrar seu nome e logo o Maracanã inteiro estava pressionando Zagalo, que não teve outra alternativa a não ser escalá-lo. Porém, vivia se queixando de que foi injustiçado no México por não ser titulado no time tricampeão. Até que um dia o Pedrinho Cyborg não resistiu: - Tá bem, Dadá. Eu também acho que foi uma baita injustiça botar no teu lugar aquele negrinho que não jogava nada, o tal de Pelé. Logo depois de chegar ao Inter, Dario comprou um Maverick para circular em Porto Alegre. Como morava no meu edifício, algumas vezes eu pegava carona com ele. Sempre que parava na esquina da Borges com a Fernando Machado, um cara que o conhecia gritava: "Aí negrão Dadá". Ele nem olhava. Um dia perguntei porque não respondia o cumprimento, e sua resposta me fez rir: - Negrão é falta de respeito com o Rei Dadá! *** O HERÓI DO SEGUNDO TEMPO Grande cabeceador, ótima cabeça: esta seria a definição justa para Escurinho, um dos jogadores mais importantes do primeiro campeonato brasileiro conquistado pelo Internacional. Os torcedores mais antigos certamente lembram das suas cabeceadas fulminantes e da mística que se criou em torno de sua entrada em campo no segundo tempo para decidir partidas difíceis. Não devem saber, porém, como era alegre, brincalhão e bom companheiro aquele jogador que acompanhei desde os infantis do Inter. Além de descontrair o ambiente das concentrações com seu violão, Escurinho estava sempre inventando uma maneira de fazer rir. Ele gostava de se por na frente da televisão, bem na hora em que o grupo estava interessado em um programa, para propor a escolha do canal por votação. Também adorava jogar água gelada nos outros nas banheiras térmicas. Um dia se deu mal: estava na mesa de massagens quando alguém jogou água nele, por cima de uma parede tipo biombo. Escurinho pegou um balde e saiu sorrasteiramente para dar o troco. Ao espiar, viu a porta de um WC se fechando e não teve dúvida: despejou a água por cima. Quando abriu, deu de cara com o Minelli sentado no trono, completamente encharcado. Em outra ocasião, ele, Lula, Manga e Hermínio se refugiaram no seu quarto para jogar pife, escondidos do Minelli, que não gostava de carteado na concentração. De repente bateram na porta. Quando abri e o Minelli entrou, só havia três das quatro cadeiras ocupadas. Escurinho, discretamente, apontoou para o armário embutido, que tinha porta de correr. Ao examinar o compartimento, Minelli logo identificou o inconfundível traseiro do Manguita, que estava de costas, com a cabeça enfiada para o outro lado, como um avestruz. O técnico passava para a outra porta e Manguita desviava a cabeça, até que ouviu nossas risadas e saiu furioso: - Quem foi o hijo da madre que me dedurou? Escurinho perdeu a posição de titular na véspera da semifinal do campeonato brasileiro de 1975, quando Minelli optou por Caçapava para bloquear o Fluminense, que tinha um meio-campo ofensivo, com Zé Mário, Rivelino, Paulo César Caju e Zé Roberto. A chamada máquina tricolor não conseguiu dar um só chute a gol. Depois do título, Escurinho foi para o Palmeiras e só voltamos a nos encontrar em campo em 1979, quando o Inter buscava o seu terceiro título e se deparou com o Inter de Limeira, onde ele jogava. Fizemos um esquema especial para pará-lo: Mauro Pastor grudado nele dentro da área, eu e Batista em cima quando ele recuava para preparar as jogadas. Assim mesmo, ele deu duas cabeceadas a gol que só não entraram por milagre de Benitz. Grande cabeça, ótimo cabeceador. *** EXPERIENTE EM MALANDRAGEM Hermes chegou no Internacional com a fama de ser um jogador experiente, que já havia passado pelo Santos de Pelé, mas não demorou muito para constatarmos que sua malandragem não se limitava ao campo de jogo. Ele era perito também em gozação. Logo num dos primeiros treinos, ele e Claudiomiro saltaram numa bola cruzada para a área. Quando viu que seria vencido, ele girou o corpo e acertou um tapa no rosto do centroavante, que ficou reclamando. Hermes saiu com a bola, chutou para frente e disse discretamente para o enfurecido companheiro: - Experiência! No primeiro Gre-Nal, falei para ele que não podia deixar o Éder chutar, mas que bastava cercá-lo porque ele não era muito bom de drible com a bola parada. Quando o jogo terminou, o Magrão, que era como o chamávamos, só fez um comentário sobre o grande ponta do Grêmio: - Fraquinho ele, né? Hermes Freitas Júnior começou sua carreira no Cruzeiro de Porto Alegre, passou pelo Coritiba e foi para o Santos. Na Vila Belmiro, encontrou Pelé no auge da carreira e logo revelou seu espírito brincalhão. Aproximava-se do Negrão, tocava na perna dele e dizia: - Deixa eu ver se tu és de verdade. Mas costumava zombar do craque quando ganhava uma jogada dele no treino. - Tu nãojogas tudo isso, é só invenção da imprensa. Sempre pronto para uma sacanagem. Hermes não perdeu a oportunidade numa manhã, quando tomava chimarrão na concentração do estádio e viu passar o tratador de um circo com dois macacos pela coleira. Ele convenceu o homem a emprestar os bichos e levou-os ao quarto de Caçapava, que dormia. Quando acordou, Caçapava deparou-se com um macaquinho em cada mesa de cabeceira e quase subiu pela parede, pois tinha medo até de lagartixa. Eu também não escapei das brincadeiras do Magrão. Um dia depois de ter desfilado na comissão de frente de uma Escola de Samba de Porto Alegre, a Acadêmicos da Orgia, vestido de branco, fui recebido por ele no vestiário, na frente dos demais jogadores. - Olha o nosso sambista! Te engessaram, companheiro? Te vi ontem todo de branco e duro. Na conquista do campeonato gaúcho de 1978, Hermes deixou fixada a imagem de moleque vitorioso, dando cambalhotas no gramado do Estádio Olímpico. *** UM DANÇARINO NA ZAGA John Travolta já freqüentou o Beira-Rio. Não o astro de "O Nome do Jogo", gamnhador do Globo de Ouro, mas sim um imitador de cabelo engomado e colete de setim que dançava muito bem quando não estava combatendo atacantes em campo. O zagueiro Mauro Galvão, fã incondicional do ator, deixou fama na concentração do clube e também na boate Looking Glass, onde promovia os seus embalos de sábado à noite no ritmo do dançarino. Jogador de toque refinado, Galvão sempre atuou com a mesma elegância e a mesma leveza das pistas de dança. Uma vez, num treino, ele perdeu um gol por excesso de requinte e eu gritei para ele dar um bico na bola. Sua resposta me desconcertou: - Onde é o bico, Paulo? Promovido ainda garoto ao time profissional pelo técnico Zé Duarte, Galvão foi campeão brasileiro aos 17 anos, jogando ao lado de Mauro Pastor. Era uma espécie de mascote do grupo, que o tratava por Uvinha, e gostava de receber um tratamento diferenciado. Numa partida contra o Coritiba, depois de receber uma chegada forte de um adversário, ele ficou caído mais tempo do que o necessário, provocando a reação irritada do diretor Frederico Ballvé, que passou a gritar para ele levantar logo, pois o time precisava ganhar. Galvão só levantoou a cabeça e falou pausadamente para o dirigente: - Calma, eu sou um garotinho, me deixa fazer manha... Conta seu pai, Oquelésio, que ele sempre foi um pouco manhoso. Começou sua carreira no Grêmio, mas deixou o clube porque seus treinadores não gostavam de zagueiro pequeno e queriam colocá-lo na lateral. Antes disso, protagonizou uma cena bem infantil. A garotada do Grêmio foi jogar em Santa Catarina e depois da partida todos foram convidados para um churrasco. Como a carne demorava para ficar pronta e Mauro Galvão tinha fome, fez o maior berreiro, até que lhe compraram um cachorro quente para enganar o estômago. Mas sempre foi um craque. Quando enfrentamos o Palmeiras no campeonato de 1979, levantaram uma bola para a nossa área e ele pulou para cabecear. Esperto, Jorge Mendonça fez que avançava e recuou para pegar o rebote, mas Galvão torceu o corpo no ar e atrasou com o peito para Benitz. Um movimento digno de John Travolta nos seus melhores momentos. *** AS MAÇÃS DO MASCATE Outro dia vi uma reportagem na TV sobre o futebol de praia e nela apareceu Tovar, que foi meu companheiro no Inter e estava participando de um campeonato amador no litoral. Logo pensei que, se ele ainda conservasse um pouco da forma física de antigamente e a capacidade de fazer lançamentos precisos, deveria ser um craque na areia. No Inter ele foi um jogador precioso e também um companheiro divertido nas concentrações e nos treinamentos. Fora do campo, Tovar estava sempre pensando em fazer negócios: Vendia roupas para os companheiros de clube, tinha a sua própria loja na Azenha e não perdia oportunidade para poupar ou para obter algum lucro. Levava para casa até as frutas que nos serviam como sobremesa nas concentrações. Certa vez o pessoal descobriu no armário dele várias maçãs e bananas recolhidas da refeição, e alguém sugeriu a sacanagem: Cada jogador dê uma mordida numa fruta, deixando-a no mesmo lugar. Ele ficou furioso com o prejuízo. Mas não perdeu a mania. Quando viajávamos para o interior e parávamos em alguma churrascaria que servia espeto corrido, Tovar aproveitava para pedir uma rodada de carne quando todos já estavam levantando - e enchia a bolsa com picanhas e costelas. É claro que sempre que alguém descobria ele acabava com a bolsa cheia de pedras. Joguei com ele poucas vezes. Numa excursão do Inter à Europa, quando viajamos por 44 dias e enfrentamos algumas equipes fracas, formei o meio-campo com Tovar e Borjão, porque o Carpeggiani estava lesionado. Mas foi uma lesão do próprio Tovar que provocou grande polêmica na véspera de um Gre-Nal. A imprensa queria saber por que ele não estava treinando e o médico informou apenas que tinha um furúnculo. No dia do jogo, instruído por Dino Sani, Tovar entrou com um imenso curativo no braço para fazer os adversários pensarem que ali estava a lesão. Na verdade, porém, o furúnculo era em outro lugar. Ele passou o jogo inteiro sem poder dar um carrinho. Sua especialidade, porém, era vender. Levava roupas para os jogadores e dizia: - Paga com o chequinho do bicho. Quando o Inter passou u período sem ganhar, ele se ferrou. Alguns jogadores atrasaram o pagamento e Tovar não teve dúvida: Mandou para o protesto. Foi uma gritaria geral. Acho que ele estava se vingando do caso das maçãs mordidas. *** DUELO DE VAIDADES Vi outro dia a foto dos jogadores que estiveram na festa do Zico e me chamou a atenção o cabelo de Batista - mais exatamente a falta dele. Como o meu telhado também está um tanto avariado, achei graça da situação, porque me lembrei de uma época em que ambos tínhamos cabelos crespos e compridos, o que deu origem à célebre história da disputa da vaidade no Inter. Costumávamos molhar os cachos antes de entrar em campo e acabávamos sendo os últimos a pisar no gramado. Daí surgiu a fofoca. Na verdade, esta rivalidade existiu mais na imaginação das pessoas e na imprensa do que propriamente nos bastidores do clube. Como aconteceu comigo, Batista saiu da várzea de Canoas para o Inter, atuou no meio-campo, foi convocado para a seleção e também acabou jogando na Itália, mas esta trajetória semelhante mais nos aproximou do que nos confrontoou. Tive, inclusive, uma certa participação na sua ida para o Beira-Rio. Ernesto Guedes, técnico dos infanto-juvenis, me perguntou se sabia de algum garoto bom de bola que jogasse de volante. Lembrei do Batista, que eu conhecia do bairro Niterói, e que jogava peladas de fim de tarde no mesmo campinho que eu (uma das goleiras dava para a casa do Payta Larga, um brigadiano que costumava cortar as bolas. Naquele gol, não podíamos chutar forte, tínhamos que colocar). Como estava viajando com a seleção de novos para Cannes no dia seguinte ao pedido do Ernesto, mandei o recado pelo meu irmão Pedro, que namorava uma vizinha do Batista. Depois fiquei sabendo que ele se apresentoou, agradou e o Inter deu sete ou oito jogadores para o Cruzeiro em troca do seu passe. Sua carreira vitoriosa é conhecida por todos. Aplicado na marcação, com u m fôlego extraordinário e muita determinação, logo chegoou também à seleção. Jogamos juntos algumas vezes, inclusive numa partida contra a Argentina (2 a 2 em Buenos Aires) em que entramos de carrinho na mesma jogada e ele acaboou acertando o meu pé. Levei oito pontos e fiquei fora de vários jogos do hexagonal do Gauchão de 79. Como Batista também se lesionou naquele período e perdemos o campeonato, cresceu a onda sobare a disputa de vaidades. Isso podia ter ocorrido quando o Lazio o contratoou exatamente para fazer frente ao Roma, onde eu estava. Mas foi nesta época que ficamos mais amigos, pois ele passou a freqüentar a minha casa na capital italiana. Na Copa de 82 na Espanha, ele acabou levando o trôco daquele lance em Buenos Aires. No jogo contra a Argentina, dei uma chegada forte em Maradona, que se irritou e entrou de sola em Batista, sendo inclusive expulso. Mais tarde, na Itália, Maradona declarou que aquela entrada era para mim. Mas, no primeiro confronto entre o Roma e o Napoli, o argentino veio me apertar a mão. Enquanto isso, o presidente do Lázio, o ex-jogador Chinaglia, declarava que queria ter mais dez Batistas no time. Quem não queria? *** JOGADA GENIAL Uma de minhas lembranças inesquecíveis no futebol é a do primeiro título brasileiro conquistado pelo Internacional, o que marcou definitivamente a presença do futebol gaúcho no cenário nacional. Foi um domingo glorioso, com o Beira-Rio lotado e um gol iluminado do Figueroa. Antes da festa, porém, tivemos que vencer uma certa descrença sobre a nossa capacidade de chegar, pois o Inter tinha má fama de morrer na praia. Poucas pessoas acreditavam que pudéssemos passar da semifinal, naquela época disputada num único jogo. Tínhamos que jogar no Rio contra o Fluminense, que era conhecido como Máquina Tricolor porque contava com a metade da Seleção Brasileira: Felix; Toninho, Silveira, Edinho e Marco António; Zé Mário, Paulo César Caju e Rivelino; Gil, Manfrini e Zé Roberto. Ainda me lembro de uma entrevista do técnico Didi, na véspera do jogo, dizendo que ele estava preocupado com o Santa Cruz e Cruzeiro, pois de lá sairia o seu adversário final. Minelli pegoou o jornal e leu para os jogadores na preleção. Antes, reuniu os líderes da equipe no Hotel Plaza e comunicou uma alteração no meio-campo: entraria Caçapava no lugar de Escurinho. Aí armou um esquema em que Hermínio ficava na sobra, matando a jogada forte do Flu, que era o lançamento do Rivalino para Gil. Ganhamos de 2 a zero e a máquina não deu um só chute contra Manga. Os gols foram de Lula e de Carpeggiani, que deu uma meia-lua no zagueiro Silveira e tocou por cima de Felix. No vestiário, eu disse para ele: - A mim tu não enganas. Tentaste bater pelo lado do goleiro, a bola pegou na canela e subiu. Ele riu: - Fica quieto que o pessoal tá achando que foi uma jogada genial. Na volta da seleção, centenas de pessoas estavam no Salgado Filho para nos receber. Invadiram a pista, quebraram vidros, fizeram o diabo. Eu e o Chico Fraga tivemos que sair de lá, dentro de um camburão da Brigada. Se a jogada do Carpeggiani na semifinal não foi genial, a cabeceada de Figueroa no jogo final contra o Cruzeiro deu brilho à decisão, assim como as três defesas do Manga para chutes de Nelinho. Quando a final terminou, eu entrei em transe, fiquei meio apalermado e só caí na realidade ao ouvir um grito do então reporter Fausto Silva: - Acorda, rapaz. Você é campeão! O Inter e aquele grupo maravilhoso que formamos há duas décadas é que mereciam o cumprimento. *** O DIA DA ERISIPELA Outro dia li que o volante Dinho, do Grêmio, estava com erisipela. Trata-se de uma dermite aguda, uma infecção sob a pele que normalmente atinge pessoas idosas, de alguma raridade entre atletas. Porisso a maioria dos leitores das páginas esportivas deve ter dado pouca importância à notícia, talvez pensando que fosse uma micose qualquer. É bem mais grave. Sei disso porque fui vítima deste mal, num episódio que causou muita repercussão na época e que acabou prejudicando o Inter na sua tentativa de conquistar o quarto título brasileiro, em 1980. Tínhamos empatado com o Atlético Mineiro em Belo Horizonte, na quarta-feira, no primeiro jogo das semifinais. Precisávamos apenas de um empate, no Beira-Rio. Por causa de um princípio de gripe, resolvi ir direto para a concentração. Outros jogadores fizeram o mesmo, pois não queríamos nos desmobilizar. Ainda me lembro de um detalhe curioso: o falecido Adilson estava com uma lesão no tornozelo e indignado com as notícias de que o Inter contrataria outro centro-avante. Quando perguntaram a ele se iria jogar, desabafou: - Se eu não jogar, joga a mãe de alguém no meu lugar! Comigo ninguém chegoou a se preocupar, pois a gripe logo retrocedeu. No dia do jogo, porém, acordei tarde, já com o técnico ênio Andrade abrindo as cortinas do meu quarto e reclamando com o seu jeito bem-humorado: - Dormir até esta hora é para o Ballvé, que é rico (Frederico Ballvé, diretor do Inter). Quando me queixei de uma coceira na perna, ele emendou: - Tá com medo do Chicão? me diz logo que eu escalo outro. Na hora do almoço, falei com o médico que a perna estava quente e ele mandou botar gelo. Na preleção, já sentia uma queda no meu estado geral. Quando fui botar a caneleira, não podia tocar nos pelinhos da perna. A dor era grande. O doutor Costa e Silva já estava pensando que fosse erisipela (o que foi confirmado mais tarde pelo especialista Ledo Pinto) quando apareceu o Tim, tirou o gelo na marra e me arrastou para o aquecimento. Como eu era capitão do time, puxava a fila, mas fiz isto mancando. Tim dizia: "Vamos lá, o time vai te ajudar". Mas o Ênio encostou em mim, viu que eu não tinha mesmo condições. Em seguida me botaram o termômetro: 40 graus de febre. Como o Inter perdeu por 3 a zero em casa, logo surgiram boatos sobre o meu afastamento na hora do jogo. Um jornal chegou a noticiar que eu tinha levado uma garrafada numa boate, na noite anterior. Mas a verdade é que fui derrubado por uma bactéria, que me deixou 17 dias na cama com a perna para cima e me obrigou a um tratamento tão rigoroso que quando fui para o Roma, três meses depois, ainda tomava injeções. *** O BAIXINHO INQUIETO Quem vem acompanhando estas histórias que escolhi dos bastidores do futebol já deve ter percebido que um ex-jogador do Inter aparece com freqüência nas anedotas e curiosidades aqui relatadas. Pois desta ele é o personagem principal. Trata-se do pernambucano Luís Ribeiro Pinto Ne6tto, mais conhecido por Lula, um irriquieto baixinho que ganhou fama no Beira-Rio por incomodar os dirigentes fora de campo e muito mais os adversários nos jogos. Lula era realmente uma fera, tanto com a bola nos pés como nas molecagens. Hoje é um treinador respeitado, com passagem por mais de 15 clubes e uma experiência de seis anos na Arábia Saudita. Algumas de suas estórias já fazem parte do folclore do futebol gaúcho, sendo a mais famosa aquela do diálogo com o ex-presidente Frederico Ballvé. Havia um rumor de que os jogadores estavam descontentes com o técnico. Ballvé reuniu-os no vestiário e foi logo dizendo: - Quem tiver alguma coisa contra o homem, que fale agora! Silêncio geral. Aí Lula levantou a mão e já se preparava para pulverizar o treinador, quando Ballvé o interrompeu bruscamente: - Você não vale. Você tem queixas até da sua mãe. Mas Lula era mais um gozador do que propriamente um contestador. Estava sempre disposto a aprontar alguma safadeza. Certa vez, na concentração do Beira-Rio, ele quase provocou uma desidratação coletiva. Era calor e os jogadores costumavam dormir com o ar condicionado no frio, de modo que precisavam inclusive usar cobertores. Lula acordou mais cedo do que Manga, Hermínio e Carpeggiani, passou o aparelho para o calor máximo e foi jogar sinuca com Minelli. Meia hora depois apareceram os três, molhados de suor, querendo o fígado do baixinho. Mas Minelli o defendeu, dizendo que já estavam jogando a várias horas e que não podia ter sido ele. Em outra ocasião, em Ribeirão Preto, ele botou areia na cuia de chimarrão, em baixo da erva, e se divertiu com a dificuldade dos mateadores. Em Natal, Minelli estranhou que Lula e Manga dividissem com tanto prazer uma água de coco. Foi conferir e eles tinham colocado uisque dentro do coco. Nesta mesma viagem o baixinho entrou numa fria. Aproveitoou a folga para cair na noite e acabou bebendo além da conta. Saiu da boate acompanhado por uma dama toda produzida, para inveja dos jogadores que o acompanhavam. Só que - e isso ele mesmo me contou - quando acordou no motel viu que se tratava de uma senhora de idade já bem avançada, com rugas e varizes. Olhou para o lado e viu um copo com a dentadura da cuja. Fugiu apavorado. Quando já descansava do susto no hotel, foi chamado por Carpeggiani: - Lula, desce lá na portaria que tem uma onça te procurando. Era a mulher da boate, apaixonada. *** O VESGO MAROTO Tive participação na contratação de Mário Sérgio pelo Internacional, em 1979. Estava de férias no Rio e me encontrei com ele durante uma partida de futebol society. Quando ele me disse que estava a fim de voltar da Argentina, onde jogava no Rosário Central, perguntei-lhe se não toparia ir para o Inter. Diante de sua concordância, falei com o Marcelo Feijó, que era o presidente, e com Gilberto Medeiros, responsável pelo futebol. Eles tiveram a mesma reação: - Queres nos trazer um problema? Porém, como precisávamos de um jogador experiente e habilidoso, acabaram aceitando. E Mário Sérgio acabou se revelando mesmo um problema, mas para os adversários. Seus dribles curtos, seus passes de sinuca (ele recebeu o apelido de Vesgo, porque olhava para um lado e empurrava a bola para o outro) e até sua catimba foram decisiivos para a campanha invicta do nosso terceiro título brasileiro. Decidido a desfazer a imagem de polêmico e complicador, ele chegava a puxar fila nos treinos. Só que jamais abandonou sua vocação para a molecagem e para a irreverência. Sua carreira, aliás, foi marcada por travessuras: No Fluminense ele arrastou o ex-presidente Francisco Horta para a banheira térmica porque o dirigiente havia chamado os jogadores de irresponsáveis; No São Paulo provocou a queda de uma lata cheia de água sobre Telê, preparando uma armadilha na porta do banheiro, e também tirou o lastro de uma cama da concentração do Beira-Rio, dando um tombo no técnico José Poy. No Inter, aprontou muitas, sendo uma das mais famosas o banho que deu no preparador físico Gilberto Tim, que o encheu de bordoadas no vestiário. Meio na brincadeira, mas quem trabalhava com Tim sabe como ele tem a mão pesada. A briga que causou mais estardalhaço, porém, foi aquela com Jair, na final da Libertadores de 80, em Montevidéu. Só que não chegou a sair soco, como algumas pessoas falaram. Podia ter havido antes, na concentração, quando Mário Sérgio roubou de Jair um livrinho de palavras cruzadas e saiu contando para os demais as gafes do companheiro. Segundo ele conta, uma das questões era "vontade de beber", com quatro letras. Em vez de sede Jair escreveu soda. Outra, diz Mário Sérgio, pedia um sinônimo para a palavra "abrigo" com seis letras e no plural. em vez de azilos, o meia grafou adidas. Para terminar, conta Mário, estava lá o clássico "antes de Cristo" com duas letras. Depois de muito quebrar a cabeça, Jair repartiu os dois quadrinhos em quatro e colocou: Deus. E só Ele sabe se estas estórias são verdadeiras ou inventadas pelo inquieto Vesguinho. *** UM MILIONÁRIO NO GOL Nas semanas em que os brasileiros sonham com os milhões da Sena acumulada, eu me lembro do dia em que viajamos com um milionário na delegação do Inter. Foi no campeonato brasileiro de 1978. Jogamos em Goiania e, quando nos preparávamos para embarcar de volta, na manhã seguinte ao jogo, Valdomiro convidou o goleiro Gasperin para tomar café. No vidro do caixa, estavam os resultados da Loteria Federal, anotados à caneta. Quando Gasperin viu, foi correndo na sua bagagem e trouxe um bilhete completo os números coincidiam exatamente com o primeiro prêmio. Ele fez uma festa no aeroporto, chamando a atenção das pessoas que passavam e surpreendendo a todos nós, seus companheiros de viagem, que sequer sabíamos da existência do bilhete. Ainda me lembro da sua euforia: ele dizia que sua mulher não precisaria mais trabalhar, que ia dar um Puma para o Dudu (seu filho) quando o garoto crescesse, e que até a sogra receberia a sua parte, pois tinha emprestado dinheiro para ele comprar um terreno. Só no avião é que um passageiro desconfiou da história, lembrando que o primeiro prêmio tinha saído para São Paulo e não para Goiania. Aí começou a ser revelada a farsa. No dia anterior ao jogo, o massagista Alexandre vira Gasperin comprar o bilhete ao lado do hotel. Depois de decorar os números, procurou Valdomiro e os dois aprontaram a safadeza. Combinaram com o caixa do bar do aeroporto e pregaram um cartaz com os resultados. O cafezinho foi a isca. Gasperin ficou muito decepcionado, mas teve que suportar as brincadeiras com espírito esportivo. Não foi a primeira que Alexandre aprontou. Ele vivia pensando em maneiras de lograr os outros. Uma vez, durante uma excursão à Europa, Lula estava sendo massageado no quarto do hotel e foi até a porta conferir um ruído no corredor. Estava só com uma toalha encobrindo o corpo. Alexandre aproximo-se por trás, puxou a toalha e empurrou-o para fora, trancando a porta. Quando viu que um casal vinha na sua direção, Lula teve que abra‡ar um daqueles cinzeiros do corredor para se esconder. Foi o maior vexame. Alexandre ri até hoje da história. Mas Gasperin nunca achou muita graça. Ele embarcou milionário no aeroporto de Goiania e chegou a Porto Alegre tão pobre como antes - e disposto a passar o resto dos dias fazendo massagens com Bigode, que era o outro profissional da área no clube. *** A TREMEDEIRA DE JORJAO Ele talvez não seja lembrado pela torcida como um grande ídolo, pois não era artilheiro nem se destacou como craque. Seu futebol era discreto, o chamado feijão-com-arroz, e praticamente se limitava à lateral, onde as jogadas raramente são decisivas ou emocionantes. Mas, para a garotada das categorias inferiores do Inter e para seus companheiros de equipe, ele sempre foi um guru. Morava perto do estádio dos Eucaliptos, comparecia aos treinos e dava apoio aos meninos. Ainda lembro que os menores ficavam olhando o coletivo dos profissionais e namorando suas chuteiras Gaieta, as melhores da época. Estou falando de Jorge Andrade, lateral-esquerdo do Inter no final dos anos 60, um líder positivo e grande formador de grupo. Sua seriedade nas partidas, refletida até mesmo na calvície prematura, era deixada de lado nos treinamentos, onde Jorjão se destacava pelo bom humor. Ele adorava dar janelinha: ameaçava dar um chutão para a frente, o adversário abria as pernas e lá vinha o toque sutil, seguido da gozação. Seu arremate, porém, era ridículo. Pelo que contam os que conviveram mais tempo com ele, Jorge Andrade jamais marcou um gol, nem mesmo em coletivo. Quando ele ia para o apoio, os colegas ironizavam: "Vai Jorge, chuta que o bicho tá garantido". Teve um dia, porém, em que Jorge ofereceu o caviar do futebol à torcida. O Inter jogava contra o Santos no estádio Olímpico, porque naquela época o Beira-Rio não estava pronto e os Eucaliptos não ofereciam condições para jogos do campeonato nacional. De repente sobrou uma bola na ponta direita do ataque paulista e Pelé, com aquela velocidade que todos conheciam, embalou para pegá-la. Só que Jorjão chegou antes, deu um toque por cima e aparou no peito do outro lado. A torcida levantou. Porém, quando olhou para trás e viu o número 10, ele teve uma tremedeira nas pernas. Mas recebeu um cumprimento do craque: - Boa, tio! A careca de Jorge Andrade passava a idéia de que ele era mais velho e também gerava situações engraçadas. Um dia o zagueiro Pontes foi afastado do time titular por Dino Sani, que também não tinha cabelos. Cada vez que Jorge Andrade pegava a bola no coletivo, Pontes gritava: - Vai, careca, sem-vergonha, cretino! Dino sabia que era para ele, mas não podia fazer nada. *** GOL CONTRA Não há pior desgraça para um jogador de futebol do que marcar um gol contra seu próprio time. Na Copa do Brasil de 95, o país inteiro se comoveu com a tragédia pessoal do jovem Castor, do Remo, que provocou a desclassificação de sua equipe ao pegar mal na bola nos derradeiros segundos da partida. O Corinthians atacava, ele tentou tirar a bola da sua área e deu um verdadeiro bico no cantinho da própria goleira - acabando com a festa dos torcedores paraenses e mantendo o Corinthians na disputa. Tenho certeza de que aquele menino não dormiu por várias noites. Uma vez, num Gre-Nal que certamente muitos torcedores gaúchos ainda recordam, o zagueiro Bibiano Pontes encobriu o goleiro do Inter sem querer. Mas teve a sorte de, no mesmo clássico, fazer também um gol a favor, redimindo-se do erro que poderia ter sido fatal em sua carreira. Gol contra em Gre-Nal é quase um suicídio. Eu que o diga: certa vez, no Olímpico, dei o maior susto na torcida do Internacional. Ganhávamos por 2 a 0 e tínhamos a partida sob controle quando Tarciso e Zequinha iniciaram uma tabela. Eu voltei correndo para fazer a cobertura e o Vacaria tentou tirar a bola da área de qualquer jeito, mandando diretamente na minha canela. Manga nem viu por onde ela entrou. Foi uma sensação terrível, pois o Grêmio ganhou fôlego e tivemos muita dificuldade para segurar o resultado. Na Itália, no ano em que o Roma ganhou o título, um gol contra quase complicou os nossos planos. Ganhávamos do Fiorentina por 2 a 1 e o nosso adversário na disputa da liderança, o Juventus, vencia o Torino por 3 a 0. De repente, a torcida do Roma começou a vibrar no estádio e ficamos sem entender nada, até que alguém nos disse que o Torino, numa incrível reação, empatara a partida em 3 a 3. Dava tudo certo para nós. Então, o Antonioni, da Fiorentina, enganchou uma bola na direção da nossa área, e o Ancelotti, meu companheiro de meio-campo, tentou cabecear para trás na direção do Tancredi. Só que o goleiro estava saindo do gol e a bola entrou suavemente. Ancelotti, em vez de se desculpar, ficou uma fera com o goleiro: - Parla, cazzo! Na Copa de 94, um gol contra teve conseqüências realmente trágicas. O zagueiro Escobar, que fez o segundo gol da vitória dos Estados Unidos sobre a Colômbia, acabou sendo assassinado quando voltou ao seu país. Foi na saída de um bar, mas até hoje há suspeitas de que o lance desastrado de Los Angeles estava na origem da briga. *** O AVÔ CANTOR Enio Andrade era um grande técnico porque sabia tudo de futebol, mas também porque conhecia a linguagem e o pensamento dos jogadores. Certa vez, depois de conquistar a classificação para a fase semifinal do campeonato brasileiro, alguns titulares do Cruzeiro reivindicaram um descanso. Ele respondeu na hora: - Dou a folga, mas se os reservas entrarem bem, vocês vão descansar bastante. Ninguém mais falou no assunto. Ele sempre foi assim, brincalhão mas objetivo. Ainda me lembro do diálogo que teve comigo no dia de uma partida decisiva contra o Atlético Mineiro, pelo nacional de 80. Ele me acordou às 9 horas, dizendo: - Acorda, Bolinha. Quem dorme até as nove é rico, isso é coisa para o Ballvé (diretor do Inter na época). Em seguida, quando me queixei de dor na perna, provocou: - Tá com medo do Chicão? Então não vai que eu escalo outro. Acabei não jogando mesmo, porque estava com erisipela, uma grave inflamação de pele. Mas Ênio compreendeu logo a extensão do problema e me tirou no aquecimento. Graças a isso, pude me recuperar bem. Profundo conhecedor das características de cada jogador, Ênio não hesita em enfrentar críticas para executar seus planos. Na Supercopa de 1995, foi chamado de burro pela torcida do Cruzeiro porque colocou Ademir Kaeffer contra o Colo Colo. Depois, justificou: - Ele entrou para marcar. Queriam que o Ademir desse de trivela. Se ele tentar fazer isso, o dedo mingo dele vai cair do meu lado, no banco de reservas. Ex-jogador, Ênio gostava de contar vantagens durante os treinos. Falava muito no título sul-americano de 1956, conquistado pela seleção gaúcha para o Brasil. Um dia, Taffarel resolveu testar o Velho e desafiou-o a chutar pênaltis: - Se fizer três gols em 10 chutes, eu pago um churrasco - garantiu. O técnico devolveu: - Eu chuto, mas quero mudar a aposta. Se tu defenderes um, eu pago. Antes de bater, ainda avisava Taffarel em que canto a bola iria. Fez os 10 gols. Por causa da cabeleira branca e das rugas, Ênio passava uma imagem de sisudez que não correspondia à realidade. Outro dia o neto do massagista Alexandre, Guilherme, perguntou ao avô se aquele senhor era o seu pai. Enio respondeu: - Não, eu sou o avô dele. Era mesmo um avô, mas ativo e jovial. Em Salvador, na véspera de um jogo, o músico do hotel pegou o violão e começou a cantar uma canção de Cartola, de quem Ênio gostava muito. De repente, para surpresa geral, o técnico levantou-se, pediu o violão e terminou de cantar. Depois dos aplausos, disse: - Ele estava assassinando a minha música preferida. *** O ENIGMAS DE APARICIO O futebol gaúcho perdeu em fevereiro de 1996 um de seus personagens mais admiráveis, com a morte de Aparício Viana e Silva. Fui seu jogador na seleção gaúcha de 1978 e tive a oportunidade de confirmar pessoalmente algumas das manhas do baixinho, que fazia tudo com humor contagiante. Ele era um treinador bonachão que tornava as preleções divertidas e transmitia bom astral ao grupo. Na véspera do confronto entre a seleção gaúcha e a seleção brasileira de Cláudio Coutinho, ele simplesmente distribuiu as camisas e disse que não ia dar instrução nenhuma, pois todos sabiam o que fazer. Oberdã perguntou qual o zagueiro que deveria sair e qual deveria ficar. A resposta foi desconcertante: - Sai o saído, fica o ficado! Todo mundo riu. E era esse mesmo o seu objetivo, pois depois ele explicou direitinho o que cada um deveria fazer. Aliás, estava sempre disposto a explicar mais um pouquinho, embora sempre com gírias e imagens. E em qualquer lugar: ficou célebre a preleção que ele deu sentado no banheiro do Beira-Rio, com a porta aberta e um grupo de embasbacados jogadores à frente. Apa tinha um jeito de comunicar as coisas que não deixava dúvidas. Na véspera deste jogo, que era o último da seleção brasileira antes da viagem para a Copa da Argentina, alguém da CBF pediu que ele evitasse jogadas mais fortes para que ninguém se lesionasse. O baixinho não teve dúvidas. Reuniu o grupo e repassou o pedido da seguinte forma: - Não vamos machucar ninguém, mas se tiver que dar uma chegadinha junto, um biquinho no tornozelo, vocês não se constranjam. Só não vão dizer que eu mandei depois, pois eu não falei nada. Se era assim com os jogadores, mais curiosa ainda era sua relação com os profissionais de imprensa, que afinal eram seus colegas. Aparício era tão espirituoso quanto seu amigo João Saldanha, só que mais cordial. Por isso também era alvo de brincadeiras. Certa vez ele estava explicando ao repórter Lupi Martins que tinha mandado apertar a marcação, e o entrevistador não resistiu ao trocadilho, parodiando uma música muito famosa na época. - Não aperta, Aparício! O baixinho e os ouvintes caíram na risada. *** OLHO DE TIGRE Cilinho, que foi técnico do São Paulo, era um figuraço. Foi o único treinador de clube que me deixou no banco de reservas, mas reconheço suas qualidades, especialmente como descobridor de talentos. Apenas tinha uma certa resistência em aceitar no seu grupo de trabalho jogadores já consagrados, que pudessem de alguma forma ofuscar a sua autoridade de comandante da equipe. Logo que cheguei ao Morumbi, depois de rescindir contrato com o Roma, ele me chamou e avisou: - Estamos com uma equipe arrumadinha, todos os jogadores estão bem. Se chegasse hoje aqui o Platini, não entraria no time porque a questão não é de talento individual, mas sim de esquema de jogo. Por isso, você vai esperar uma oportunidade. Não era o que eu planejara, pois a direção do São Paulo, quando me contratou, sabia que eu precisava readquirir ritmo de jogo porque estava voltando de uma cirurgia. Mas aceitei ficar entre os suplentes contra o Santos. Quando me dirigia para o banco, fui surpreendido por uma inesperada manifestação de carinho: a torcida das sociais levantou e me aplaudiu demoradamente. Cristóvão Colombo, meu procurador, não se conformou com a situação e fez algumas críticas pela imprensa. Os jornalistas questionaram Cilinho sobre a pressão e ele respondeu: - A única pressão que conheço é a das panelas Clock. Se ele tem a ajuda do Cristóvão Colombo, eu vou contratar o Pedro Álvares Cabral. Mas, para minha surpresa, na véspera das semifinais contra o Guarani encontrei a camisa titular no meu armário. Cilinho se justificou: - Você é um nome internacional e tem 50% da nação tricolor do seu lado. Eu sou um nome nacional e tenho os outros 50%. Vamos unir forças para sermos campeões. Fomos mesmo. Antes disso, na preleção para o jogo em Campinas, ele fez questão de usar uma música do filme RockY, Um Lutador, e lembrou um diálogo entre o herói e o grandalhão Apolo: - Hoje vocês precisam ter olho de tigre... Uma das manias de Cilinho era colocar bilhetes no armário dos jogadores, ou dentro dos sapatos, com mensagens do tipo: "Sidney, vai no fundo e cruza para trás!" Até mesmo durante os treinos suas orientações eram diferenciadas. Um dia estávamos ensaiando uma cobrança de falta e ele flagrou um garoto recém-promovido olhando para cima. Parou o ensaio e gritou: - Esperem que o Marcelo está olhando o avião. Depois que ele cumprimentar os pássaros, continuamos. Outra vez, numa preleção, o lateral Zé Teodoro começou a perguntar muito, a argumentar que com a marcação solicitada sempre sobraria adversário solto. Cilinho se fez de irritado e falou: - Então vamos desistir. Este teu time é imarcável, Zé. Não dá para ganhar dele. Folclórico, com idéias extravagantes, mas um treinador competente. *** O HOMEM DO CINTO De todos os treinadores que conheci nos clubes onde atuei e na Seleção Brasileira, um dos mais apreciados pelos jogadores foi Osvaldo Brandão. Ele agia quase como um pai, brincava muito com os atletas e sofria quando tinha que tomar uma decisão drástica. Nas eliminatórias de 1977, eu dividia o apartamento de um hotel na Colômbia com Caçapava, meu companheiro de Inter, quando fomos surpreendidos por Brandão, que entrou porta adentro falando alto: - Vou ter que tirar o lateral de vocês! Ele não marca, só quer atacar. Antes que tivéssemos qualquer reação, saiu falando sozinho. No dia seguinte Marinho Chagas perdeu o lugar para Vladimir, mas ninguém sequer desconfiou o quanto tinha sido penoso para o homem adotar aquela medida. Os jogadores gostavam de provocar Brandão, chamando-o pelo apelido que ele recebeu quando era jogador do Internacional: Caçamba. Pelo que ouvi de gente do seu tempo, ele e Sílvio Pirilo eram os destaques do time, e os torcedores costumavam designá-los como "Corda" e "Caçamba". Embora sem conhecer a origem do apelido, o grupo cantava uma música dos Originais do Samba, cujo verso dizia "você é a corda, eu sou a caçamba". Também era comum, quando estávamos no ônibus, que algum jogador mais atrevido disfarçasse a voz e gritasse bem alto: "Caçambaaaa". Brandão apenas se colocava na porta e dizia: "Vocês terão que passar por aqui". Mal o ônibus parava, ele ordenava ao motorista que não abrisse a porta de trás e ficava esperando os jogadores, com um cinto na mão. Os autores da brincadeira dificilmente escapavam sem uma lambada. Coisa de pai. A boleirada sabia que ele tinha sido jogador, mas aos 60 anos, quando treinou a seleção pela segunda vez, seu aspecto físico já era de um homem idoso, de pouca agilidade. Um dia, num treino de dois toques em que todo mundo se exibia, Zico dava de calcanhar, outro metia uma trivela, o Rivelino chutou a bola bem alto e ela caiu na direção de Brandão. Alguém, por gozação, gritou: - Domina, Caçamba! Ele estendeu aquele pé que parecia calçar um tênis de número maior e a bola ficou paradinha. Aí, aproveitou a surpresa geral para apitar e acabar com o treino. Foi aplaudido. Osvaldo Brandão, gaúcho de Taquara, morreu em julho de 1989, aos 72 anos. Como tanta gente que o conheceu, tenho saudades do Caçamba. *** O PROFESSOR E A SANTA Gilberto Tim marcou tanto os jogadores do Inter tricampeão brasileiro por sua competência profissional e sua amizade que quase todos os que viraram treinadores trataram de buscar a sua colaboração. Ele foi para Portugal com o Marinho Perez, para o Paraguai com o Carpeggiani e esteve comigo na Seleçao, no México e no Japão. Obcecado pelo trabalho, mas supersticioso a ponto de usar sempre o mesmo par de sapatos nas excursões futebolísticas (manjadíssimos, de verniz preto), Tim foi protagonista de inúmeras situações divertidas no mundo do futebol. Uma das histórias mais curiosas me envolveu. Na véspera do jogo contra o Atlético Mineiro, pelas semifinais do campeonato brasileiro de 1980, Tim inventou de levar um grupo de jogadores para "tomar passe" e "fechar o corpo" com uma senhora muito simpática que o pessoal adorava e que até hoje dá apoio espiritual a alguns. Na mesma noite, Cláudio Mineiro levou ao local uma Mãe-de-Santo amiga dele. As duas mulheres fizeram os seus trabalhos, e a que manejava os búzios previu que eu seria o melhor jogador em campo no dia seguinte. Acordei com erisipela, dores terríveis na perna, febre alta e nem pude ver o Inter ser derrotado em casa por 3 a 0. Quando cobrei de Tim a eficiência da previsão, ele disse: - Deve ter havido interferência negativa da Mãe-de-Santo do Cláudio Mineiro. Tim era amigo dos jogadores, mas não hesitava em pegar pelo pescoço e dar um empurrão naqueles que negligenciam os exercícios. Também não levava desaforo para casa. Telê, com o seu gênio difícil, quase se deu mal com ele no México. Uma tarde em Guadalajara surpreendemos o Tim dando 40 voltas no campo, vermelho, com a cara fechada. Quando perguntamos por que estava se esbaforindo daquele jeito, lascou: - Estou baixando a adrenalina para não meter a mão no homem! Tim foi o introdutor do trabalho físico com peso no futebol brasileiro e até recebeu algumas críticas por isso. Ficávamos tão doloridos que um dia o lateral Vacaria deixou de cumprir um hábito dos jogadores, de se ajoelhar diante da santinha localizada na entrada do vestiário. Em vez de flexionar a perna, ele apenas piscou o olho quando passou pela santa, e se justificou: - Não leva a mal, mas a culpa é do professor. *** OS SHOWS DO TRIANON O Trianon, equipe formada por profissionais que passam as férias no Rio Grande do Sul e por convidados especiais, completou 30 anos de atividade em 1995. Foi criado pelo cabeleireiro Nei Oliveira e pelo centroavante Flávio, quando ele ainda jogava no Corinthians. O propósito, segundo Nei, é possibilitar que o atleta profissional volte, pelo menos por um dia, a atuar como amador, por pura diversão, sem a obrigação de ganhar como nos campeonatos oficiais, muitas vezes até correndo risco físico. Mas há também um outro motivo mais forte para que os jogadores interrompam o descanso: os jogos são sempre beneficentes. É uma oportunidade para confraternizar e, ao mesmo tempo, colaborar com causas meritórias. Diante de tal apelo, não é de admirar que o Trianon consiga reunir craques famosos que atuam até mesmo no exterior. Mauro Galvão, por exemplo, é o quarto-zagueiro titular do time há 15 anos. Em dezembro de 1983, Nei conseguiu levar 25 mil pessoas ao Beira-Rio no dia do Natal, numa partida entre o Trianon e o Sindicato dos Jogadores do Rio Grande do Sul. Eu vim especialmente da Itália para jogar, exatamente no ano em que o Roma tinha conquistado o seu título, e acabei formando uma meia-cancha com Batista, Mário Sérgio e Ruben Paz. No outro time, tinha Dunga, Renê, Luiz Carlos Martins e Kita, que acabou sendo contratado pelo Inter exatamente por sua atuação naquele jogo. Até Zico já vestiu a camisa do Trianon, num jogo em Encantado. Para os jogadores, é sempre um prazer participar desta festa, porque todos se divertem, ninguém dá pontapé e a gente tem a oportunidade de rever amigos. Uma das curiosidades é a orientação de Nei na preleção: - Quando eles atacam, nós defendemos. Quando nós atacamos, azar deles. Naquela partida de 83 a que me referi, também participaram jogadores do Grêmio que recém haviam conquistado o título mundial em Tóquio e o governador Jair Soares, na ponta direita, por alguns minutos. A gozação do jogo foi a primeira entrada de Paulo César Magalhães no governador. Quase que ele deixa o Rio Grande nas mãos do vice. *** IL BARONE Ele é sueco, casado com uma italiana e dono de uma vinícola em Cúcaro, perto de Torino, mas também comenta futebol para a televisão e tem muitas histórias para contar de seu passado como jogador e treinador. Algumas delas eu tive a felicidade de ouvir ou presenciar. Estou me referindo a Nils Liedholm, o homem que me levou para o Roma e o autor do gol que assustou os brasileiros na final da Copa de 1958, o primeiro da Suécia na derrota de 5 a 2 para o Brasil. Seu apelido na Itália é Il Barone, mas nós o chamávamos de Mister. Desde que cheguei ao Roma, indicado por seu filho Carletto, me entrosei de tal maneira com o velho que passei a ser o seu intérprete no campo. Não para o idioma, porque ele fala bem o italiano, mas sim para a linguagem do futebol. Ele estava introduzindo a marcação por zona e sabia que podia contar com o meu conhecimento do futebol brasileiro. Mas o que mais me tocou foi sua franqueza. Na decisão da Copa dos Campeões, contra o Dundee da Escócia, ousei sugerir a escalação do Cherico no intervalo do jogo. Tínhamos perdido a primeira partida por 2 a 0 e estávamos empatando sem gols. Aos cinco do segundo tempo, ele botou o ponta e nós conseguimos os 3 a 0. Ao final, quando os jornalistas foram cumprimentá-lo pela alteração, ele não teve qualquer constrangimento em revelar que a idéia tinha sido minha. Prova de bom caráter. O curioso era a forma como ele tratava os jogadores, especialmente quando ia tirar algum do time. No vestiário, ele olhava para o cara e fazia uma observação do tipo: "Puxa, Pruzzo, como estás pálido!" Este já sabia que estava perdendo o lugar. Até mesmo comigo ele fez uma ironia dessas, depois de três empates seguidos do Roma. Sugeriu que eu apagasse a luz da minha casa mais cedo, porque as pessoas estavam notando que ficava acesa até de madrugada. Mas não cheguei a perder a posição. Liedholm jogou no Milan e de seu tempo de atleta são as histórias mais saborosas. Ele conta que já estava há dois anos no clube e era ídolo, quando recebeu a bola do goleiro e tentou um passe de 65 metros. Errou, mas a torcida levantou e aplaudiu. Quando lhe perguntam por que, responde sem sorrir: - Em dois anos de clube, era a primeira vez que eu errava um passe. Mas a melhor é a do confronto com Di Stefano. No jogo contra o Real Madrid, Liedholm foi escalado só para anular a fera espanhola, e conta isso como uma das glórias de sua carreira. Ao ser lembrado de que a partida terrninou 3 a 0, três gols de Di Stefano, ele retruca fingindo seriedade: - Sim, mas ele não fez mais nada em campo. *** A REVANCHE DO SARRIÁ Telê Santana perdeu duas Copas, mas deu inestimável contribuição ao futebol brasileiro na sua passagem pela Seleção. Em 1982, especialmente, ao reunir um grupo qualificado e dar ao time a formação adequada, ele resgatou a arte, a beleza e o talento. Em 1986, enfrentou problemas e já não mostrou a mesma lucidez para solucioná-los. Pessoalmente, guardo boas e más lembranças de Telê, que ainda hoje continua sendo um profissional polêmico. A primeira recordação positiva é de 1979, quando ele era técnico do Palmeiras e foi a Limeira ver um jogo do Internacional contra a Inter local. Entrevistado no final da partida, fez uma referência sobre o meu desempenho que me deixou lisonjeado: - Hoje vi uma atuação perfeita de um jogador. Falcão ganhou o jogo. No mesmo ano, quando fui a São Paulo para receber o Troféu Gandula, fizeram com que Telê apontasse durante a cerimônia o nome de um jogador para 82. Ele não gostava de falar sobre a Seleção, mas, para surpresa de todos, inclusive minha, disse o meu nome. Na sua primeira convocação, em 1980, confirmou o que havia antecipado, colocando-me não apenas como titular ao lado de Batista e Zico como também de capitão da equipe. Aí fui para a Itália e só voltei a vê-lo em 1982, quando apareceu em Roma para me comunicar que seria chamado para a Copa da Espanha. Na ocasião, ainda lembro, usamos pela primeira vez a sala de jantar da nossa casa, na Via Alfredo Fusco, 104, para oferecer-lhe um jantar. Ele preferiu comer arroz, feijão e carne de panela, preparados por minha mãe, Dona Azize, a ir a um restaurante. Acho que para economizar, pois no dia seguinte, na companhia do médico gaúcho Ledo Pinto, que estava me visitando, saiu pelo comércio da cidade em busca de um carburador especial que consumia pouco combustível, para colocar no seu Passat. Na Copa do México, ele me tirou do time sem dar qualquer explicação, e eu considerei o fato um desrespeito à minha história no futebol. Não foi um momento agradável para nenhum de nós. Voltei a encontrá-lo em 1990, na despedida de Júnior do Pescara, quando reunimos novamente o time de 82 para uma espécie de revanche contra a Itália. Na preleção, Telê chegou a se emocionar, lembrando que aquele foi o time que mais lhe deu satisfação, por ter jogado um futebol alegre, objetivo e voltado para o ataque. Ganhamos de 9 a 0 dos italianos, um pouco para amenizar nossa mágoa de oito anos antes, outro tanto para dar uma nova alegria a Telê. *** O PASSINHO DO FAUSTÃO Uma das brincadeiras preferidas dos jogadores da Seleção Brasileira que se preparava para a Copa de 1982 era implicar com Fausto Silva, na ocasião repórter da Rádio Globo de São Paulo. Quando ele se aproximava, com o seu andar paquidérmico e o gravador debaixo do braço, o grupo começava a assoviar a música Passo do Elefantinho. Faustão nem olhava, para não ver os rostos gozadores, apenas continuava caminhando e resmungando à meia voz: - E a mãe! E a mãe! Caçoávamos porque ele também fazia o mesmo conosco. Sempre foi um repórter diferenciado, que gostava de tratar os jogadores pelos apelidos e de fazer perguntas irreverentes. Eu o conheci quando ainda jogava no Inter e logo ele descobriu uma maneira de tornar as entrevistas comigo mais descontraídas. Anunciava: - O meio-campo do Internacional será formado por Batista, ele e Jair. Agora vamos falar com ele: e aí Falcão, você que é dono da metade daquele Estado, como está o Rio Grande? Nas vezes em que recebi o troféu Gandula, como destaque dos campeonatos brasileiros, Faustão também foi premiado por sua atuação na reportagem esportiva. Mais tarde, junto com Osmar Santos, que era seu companheiro de emissora, me visitou em Roma e fomos jantar na Taberna Flávia. Quando voltei ao Brasil para me recuperar da cirurgia no joelho, em 84, fiquei fã do programa Perdidos na Noite, que ele apresentava na Bandeirantes. Era a minha diversão dos sábados em Campinas, onde permaneci vários dias praticamente concentrado na clínica do fisioterapeuta Nivaldo Baldo. O Faustão repórter não era tão engraçado quanto o atual apresentador da Globo, mas já mostrava raciocínio rápido e muito bom humor. Também era metido a negociante. Toda vez que o Inter ia jogar em São Paulo, ele me esperava depois da partida para me levar nas fábricas de roupas, pertencentes a amigos seus, onde sempre havia uma oferta especial. Sua consultoria, porém, fez o jornalista Edgar Schmidt entrar numa fria em Londres. Edgar hesitava para comprar um relógio que custava 250 dólares, achando o preço elevado. Faustão olhou, falou com o vendedor e garantiu que era barbada, pois os estrangeiros tinham direito à devolução de um imposto no valor 33% da mercadoria, que viria pelo correio. Edgar reclama que está esperando até hoje o dinheiro. Brincalhão, prestativo e inteligente, Faustão tem lugar de honra entre os personagens interessantes que o futebol me apresentou. *** DUAS NOIVAS Assim como os artistas de cinema e de televisão, tamém os jogadores de futebol se vêem algumas vezes em situação embaraçosa devido ao assédio de admiradores que exageram na intimidade. Na Espanha, durante a Copa de 1982, os moradores de Sevilha e Barcelona foram tão carinhosos com a Seleção Brasileira que a gente tinha a impressão de estar jogando e treinando no Brasil. Por conta deste entusiasmo, cheguei mesmo a ser padrinho informal de um casamento no hotel da capital catalã, onde estávamos hospedados. Foi uma cena cinematográfica. Eu estava voltando do campo de treinamento, ainda com o uniforme de trabalho, quando fui chamado pelo casal que realizava a festa de casamento no hotel. Eles queriam tirar uma foto comigo. Mal me coloquei entre os noivos e todos os convidados se aproximaram, para pegar carona no retrato. Aí surgiu o momento mais curioso: o pessoal todo começou a gritar para que eu beijasse a noiva. Como o maridão aprovou com um sorriso, cumpri a tarefa sob aplausos gerais. Na Itália, quando atuei pelo Roma, também tive que posar para muitas fotos com torcedores e casais de namorados. Mas a situação mais estranha ocorreu na véspera do Mundial de 90, quando eu já tinha parado de jogar. Estava em Roma para gravar o programa Itália de Falcão, eu me apresentei na Rede Manchete, quando entrei numa loja de calçados na companhia do diretor da TV, Newton Travesso. Um jovem me reconheceu e praticamente se ajoelhou aos meus pés, suplicando que escrevesse um bilhete para a noiva dele, que o havia abandonado. Foi tão insistente que acabei concordando. O texto ficou assim: "Cláudia, per favore, perdona Antonio perche lui te ama. Un saluto. Falcão." A loja, coincidentemente, fica nas proximidades da Fontana di Trevi - a fonte dos desejos, onde italianos e turistas lançam moedinhas na esperança de ter seus pedidos atendidos. Saí de lá torcendo para que o meu bilhete tivesse o mesmo efeito das águas mágicas. *** CUIDADO COM AS PERNAS Brasil e Argentina repetiram em 1982 o duelo nervoso de sempre. Vencemos os então campeões do mundo, numa partida tão tensa que até eu tive que abandonar minhas características para me defender. Em determinado lance, entrei por cima da bola numa disputa com Passarela, porque conhecia bem sua ficha e também porque estava avisado de suas intenções. Naquele instante, lembrei-me do que ele fizera com Batista, no Mundialito anterior, e também de uma partida do Intemacional em Mar del Plata, na qual o zagueiro argentino tirou Valdomiro de campo e ainda me deu uma cabeçada. Em Barcelona, porém, foi diferente: antes da partida começar, um adversário me alertou sobre o perigo. - Cuidado com as pernas! Este aviso foi dado por Daniel Bertoni, quando já estávamos posicionados para dar a saída. Ele ficou meu amigo na Itália, desde o dia em que fui consolá-lo após uma expulsão no jogo de sua equipe, a Fiorentina, contra o Roma. Por isso Bertoni teve a lealdade de me advertir. No momento da dividida com Passarela, tratei de levantar o pé, mais para me defender do que propriamente para atingi-lo. Zico não teve a mesma sorte e acabou saindo lesionado de campo, depois de uma entrada do capitão argentino. Passarela foi um grande jogador, um dos maiores que o futebol sul-americano já produziu. A garra era o seu ponto forte. Empenhava-se tanto que às vezes se tornava desleal, querendo ganhar de qualquer jeito, nem que fosse pela violência. O curioso é que naquele jogo de Barcelona o juiz apenas me deu uma advertência verbal depois da entrada forte sobre o zagueiro. Mais tarde, quando Maradona atingiu Batista, acabei levando o cartão amarelo por me envolver na confusão. No final do jogo, cumprimentei Bertoni e Ardiles, de quem gostava muito e que já vestia, cavalheirescamente, uma camisa do Brasil - mas sem tirar os olhos de Passarela, que vinha na minha direção. Porém, ele apenas colocou a mão no meu ombro e saiu de campo sem dizer nada, numa demonstração de que o desentendimento e a disputa ríspida pela vitória tinham se limitado ao campo de jogo, como se espera de pessoas civilizadas. *** NEM SEMPRE GANHA O MELHOR Por mais que a gente se prepare, nunca se está pronto para a derrota. Depois da eliminação na Copa de 82, chorei como uma criança. A concentração virou um verdadeiro velório. Terminado o jogo, ninguém conseguia falar. Júnior ainda tentou animar o grupo, afirmando que, apesar da derrota, éramos o melhor time daquele Mundial. Já no hotel, o presidente da CBF, então Giulite Coutinho, fez uma reunião para agradecer o esforço de todos e para elogiar o trabalho de Telê, especialmente por ter convocado um grupo responsável tanto dentro como fora de campo. Aí Sócrates resolveu falar em nome dos jogadores e comoveu a todos. Disse que, pela primeira vez, ia fazer um pedido pessoal: que a viagem de volta fosse antecipada porque o filho dele estava para nascer e ele queria estar perto, assim como todos nós devíamos estar ansiosos para encontrar consolo junto aos nossos familiares. Quando terminou de falar, estávamos todos chorando. Dentro de campo, todos fizemos o máximo para ganhar. Eu, especialmente, queria muito ganhar aquela Copa, pois havia ficado fora do Mundial de 1978 devido a uma decisão muito contestada do treinador Cláudio Coutinho e precisava provar que tinha condições para ser o titular da Seleção Brasileira. Por isso vibrei tanto depois de fazer o gol de empate. Era como se estivesse jogando duas Copas ao mesmo tempo. Mas acabamos sendo surpreendidos pela Itália. Quando o jogo terminou, Bruno Conti foi me abraçar e nem quis confirmar a troca de camisa que havíamos combinado. Estava tão solidário com a minha tristeza que parecia ser ele o derrotado. Então, tirei a camisa, passei para suas mãos e saí do estádio com a camisa italiana, em homenagem ao meu amigo e ao país que tão bem me recebeu. O que também serviu para atenuar um pouco a nossa dor foi o reconhecimento da torcida espanhola, que não apenas nos aplaudiu na saída do Estádio Sarriá, como também se deu ao trabalho de colocar uma faixa na beira da estrada por onde o ônibus da delegação passou para voltar ao hotel. Dizia: "Brasil, nem sempre ganha o melhor!" *** UMA MALA DE TRISTEZA E duro arrumar as malas quando não dá para deixar a tristeza fora. Nossa última noite na concentração do hotel Mas-Bado, em Barcelona, foi terrível. Ninguém conseguiu dormir. Às quatro horas da madrugada eu estava debruçado na janela do quarto, olhando para a rua escura e imaginando a felicidade das pessoas que naquele momento dormiam tranqüilamente, sem qualquer preocupação. O que mais doía era saber que milhões de pessoas no Brasil estavam sofrendo como nós. Na noite do jogo com a Itália, eu recebi um telefonema da minha família, que queria me consolar. Minha mãe, que consegue se controlar nestes momentos, falou primeiro e depois passou o telefone para os demais. Meu irmão Pedro estava com a voz rouca e disse que minha sobrinha havia chorado muito por mim. Por aí, eu pude avaliar a tristeza do povo brasileiro, especialmente das crianças que estavam encantadas com o futebol da Seleção. No dia seguinte ao jogo, todos fomos liberados para passear pela cidade, fazer compras ou visitar algum lugar especial. Quase ninguém quis sair. Almocei na companhia do Pedrinho e do Júnior, mas quase não comi nada. Ainda me lembro que o Sócrates, que se cuidou muito na fase de preparação e durante a Copa, voltou a beber cerveja e a fumar no dia seguinte à derrota, mesmo diante de Telê Santana, que abominava tal comportamento. O técnico aproveitou o dia de folga para fazer a sua despedida dos jogadores (embora voltasse a dirigir a Seleção na Copa seguinte, no México). Naquele dia triste que se seguiu ao desastre do Sarriá, ele teve muita grandeza. Agradeceu a todos e disse uma coisa que nos marcou muito: "Voltem tranqüilos para o Brasil, pois vocês jogaram o melhor futebol da Copa e o mundo inteiro aplaudiu o nosso time". O estímulo de Telê também foi para a mala, para compensar um pouco a desilusÆo. *** A SEGUNDA FRONTEIRA Em agosto de 1980 fui contratado pelo Roma, inaugurando a reabertura da fronteira italiana a jogadores estrangeiros, depois de duas décadas de restrições. Foi uma forma de atrair novamente aos estádios os torcedores desiludidos com o escandalo das loterias, aquele que provocou a suspensão de Paolo Rossi. Por isso, cheguei (juntamente com o Enéas, o Juari e o Luís Sílvio) consciente da responsabilidade de reabrir um mercado importante para o futebol brasileiro. Mas tive que superar duas outras fronteiras inesperadas. A primeira foi a da Alemanha Oriental. Na minha segunda partida pelo Roma enfrentamos o Karl Zeiss Jena pela Recopa. Jogamos em casa e vencemos por 3 a 0. No terceiro gol, subi com o zagueiro, parei a bola no peito e chutei antes de tocar no chão. Demos um show de bola e saímos convencidos de que a classificação estava garantida, embora tivéssemos que jogar 15 dias depois a partida de volta, na Alemanha. Para entrar no lado comunista, foi um sacrifício. Ficamos retidos por mais de duas horas na fronteira porque na lista da delegação fornecida previamente faltava o meio-campo Romeu Benetti, que havia se lesionado no primeiro jogo. Os guardas não entendiam como podia faltar um, vasculharam o ônibus, examinaram nossa bagagem, leram e releram todos os passaportes. Por fim, passamos pelas barreiras de arame farpado, mas encontramos uma cidade deserta e fria. Nem intérprete colocaram à nossa disposição. Já no treino de reconhecimento do gramado, fomos hostilizados por torcedores. O jogo foi uma guerra. Os alemães entraram furiosos e praticamente nos massacraram. Não conseguíamos sair de nossa área. Eu ainda falava mal o italiano e me desesperava tentando fazer o time ir para a frente. Só me lembro do Bruno Conti se aproximar e dizer, assustado: - Son impazzicci questi qua! Enlouquecidos os caras estavam mesmo. O lateral Roca deu uma cotovelada num deles, abriu um talho nos seus lábios, mas o sujeito só passou a mão no sangue e continuou correndo. Ganharam de 4 a 0 e nos tiraram da competição. Nesta viagem, sofri tamanho abatimento por estar tão distante e num lugar em que ninguém falava a minha língua que me deu vontade de desistir de tudo. Mas tinha me proposto a ficar três anos, não podia fraquejar nem mesmo naquele momento amargo. Meti na cabeça que só poderia voltar quando tivesse histórias de sucesso para contar. Foi assim que superei a segunda fronteira. *** A BOLA SUMIU Bruno Conti foi o jogador do Roma com o qual melhor me identifiquei, tanto dentro como fora de campo. Ele tinha a habilidade de um jogador sul-americano, tanto que chegou a receber dos italianos o exagerado apelido de Marazico (metade Maradona, metade Zico). Descobri isso no meu primeiro treino com bola. Em determinado momento, recebi um lançamento alto quando já estava passando da linha da bola, mas consegui girar e acabei fazendo um gol de bicicleta. Não demorou cinco minutos e Conti repetiu a jogada, marcando um gol semelhante. Em seguida, levantou e me olhou com um jeito moleque, como se estivesse dizendo: - Eu também sei fazer isto. E sabia muito mais. Era tão habilidoso com o pé esquerdo que foi difícil convencê-lo de deixar de dar um drible a mais quando chegava à linha de fundo. Depois que se conscientizou disso, porém, cresceu no clube e chegou à seleção. Quando a Itália enfrentou a Argentina pela Copa de 82, os brasileiros torciam para o time de Enzo Bearzot, que vinha fazendo má campanha, na esperança de se livrar dos argentinos. Eu adverti que a Itália complicava nas decisões, mas percebi que nem os italianos acreditavam muito no próprio time. Depois do jogo, liguei para Bruno Conti cumprimentando-o pela vitória, e tentei combinar com ele o nosso retorno ao Roma após a Copa. Ele respondeu que certamente voltaria antes, porque a Itália dificilmente passaria pelo Brasil. Terminada a partida em que a Itália nos eliminou, trocamos de camisa sem nos falarmos. Ele estava constrangido e solidário com a minha tristeza. No ano seguinte, fomos campeões juntos pelo Roma e ele me prestou uma homenagem na partida final, fazendo com que um de seus filhos entrasse em campo comigo, vestido com o fardamento da seleção brasileira. Na véspera dos jogos importantes, Conti ficava tão tenso que chegava a passar mal algumas vezes. Um de seus métodos para aliviar a tensão era pegar a bola antes do aquecimento e chutar forte três ou quatro vezes contra uma parede. Aí, recuperava a calma. Quando o Internacional jogou contra o Roma um dos amistosos incluídos na minha transferência, ele entrou correndo num lance e levou um daqueles dribles mágicos de Jésum. Depois, se queixou que eu não o havia avisado sobre o ponta do Inter: - Paolo, il pallone è sparito. Lance raro, pois normalmente era Conti, com sua extrema habilidade, que fazia a bola sumir diante de marcadores atônitos. *** AS TRAPALHADAS DO PATO O escritor inglês Emerson disse que um amigo pode ser considerado a obra-prima da Natureza. Roberto Moure, que conheci quando ainda era juvenil do Inter e que mais tarde me acompanhou à Itália, onde reside e trabalha até hoje, tem sido para mim esta obra-prima da amizade - por sua fidelidade, por sua camaradagem e também pelas situações divertidas que protagoniza. Pato, como é conhecido na atividade jornalística, sempre foi um sujeito alegre, ousado e competente no desempenho de sua profissão, mas jamais conseguiu mascarar o seu lado trapalhão. Como ele é para mim quase um irmão e sou padrinho de seu filho, aproveito a oportunidade destes relatos para homenageá-lo com estas fraternas inconfidências. Quando era repórter da Rádio Gaúcha, por exemplo, ele aprontou uma confusão digna de filme no Beira-Rio. Com o jogo em andamento, entrou em campo para entrevistar o goleiro. De repente, viu que a bola vinha para a área e tentou sair pelo outro lado, enredando o fio nas traves. Voltou correndo e saltou sobre um painel de publicidade, descrevendo o lance no microfone. Só que caiu e acabou brindando os ouvintes com uma curiosa gritaria: - Ai! Ai! Ai! Quebrei o braço! Em outra ocasião fomos juntos à casa do radialista Machado Filho, que ele não conhecia. Logo depois de apresentado, foi perguntando ao futuro colega se havia alguma coisa para comer. Machadinho disse que tinham sobrado uns bifes acebolados do almoço; que ainda estavam na panela. Pato não teve dúvidas: devorou a carne e ainda limpou as mãos numa cortina branca da casa. Quase morri de vergonha. Na Itália, Pato deu vários shows de confusão. Um deles foi no dia em que arrombaram minha casa em Roma. Eu estava em Nápoles e Pato havia saído juntamente com minha mãe e minha tia. Quando voltaram, encontraram tudo revirado. Foi um choque, mas que não deixou de ter o seu lado engraçado: Pato explicando para o policial italiano, por mímica, o que tinha acontecido. Me contaram que ele, nervoso, fazia aquele gesto clássico de roubo com as mão e exclamava: "Ladrone, ladrone". O policial não conseguia parar de rir. Poucos dias depois, ele acabou se envolvendo em outro episódio policialesco. Fomos jantar fora. No restaurante, uma mulher se aproximou de mim e começou a falar alguma coisa, quando saltaram seis paparazzi (fotógrafos de jornais sensacionalistas) e começaram a flashar. Pato levantou-se rapidamente e empurrou um deles. No outro dia saiu a foto dele no jornal, sob a manchete: - Socos pela mulher de Falcão! Mas os paparazzi nunca mais se meteram com Pato. *** MENSAGEM INESQUECIVEL Jogador de futebol integrante de equipe grande viaja muito, mas dificilmente conhece mais do que três lugares em cada cidade que passa: o aeroporto, o hotel e o estádio. Embora tenha morado sete anos em Roma, só fui conhecer a cidade depois que parei de jogar, quando realizei uma série de reportagens para a TV Manchete, na véspera da Copa de 90. Por pouco não protagonizei aquele conhecido adágio: "ir a Roma e não ver o Papa". Acabei tendo mais sorte: não só vi, como tive a oportunidade de cumprimentá-lo pessoalmente e ouvir dele uma saudação simpática para quem estava chegando na Itália: - Viva lo sport! - me disse. Já tinha visto João Paulo II em Porto Alegre, em julho de 1980, naquela visita emocionante que ele fez ao Brasil. Na ocasião, o então governador Amaral de Souza me convidou para assistir à cerimônia da Praça da Matriz na sacada do Palácio Piratini. Mas só pude vê-lo de longe, em meio à multidão. Nem sequer sonhava que um mês depois estaria beijando sua mão em Castel Gandolfo, sua residência de verão. Juntamente com minha mãe, minha tia e Roberto Pato Moure, fui levado até o local por Sergio Santarini, quarto-zagueiro e capitão do Roma. Ele nos encaixou numa audiência que o Sumo Pontífice concedeu a um grupo de estudantes. Quando o Papa se aproximou de nós, os fotógrafos fizeram fila. Pato se armou todo para a foto histórica, mas bem na hora do flashaço minha tia Ica ocupou a sua frente. Ele ficou desesperado, pois acabou não aparecendo em nenhuma fotografia. Em maio do ano seguinte, fomos todos abalados pela notícia do atentado em que João Paulo II foi alvejado a tiros. Um amigo meu, enfermeiro do Hospital Gemelli, me contou mais tarde ter recebido uma proposta milionária de uma agência de notícias para entrar nos aposentos do Papa com uma camera fotográfica, e registrar seu estado depois da cirurgia. Ele, evidentemente, não aceitou. Outro profissional que conheci depois, o cirurgião Piero, ajudou na operação e guarda até hoje as luvas manchadas de sangue como lembrança do acontecimento. Graças a seu passado de esportista, praticante de esqui e natação, o Papa se recuperou bem dos ferimentos e continuou viajando por todo o mundo, para levar suas mensagens de paz. Aí passei a compreender melhor seu breve recado: viva o esporte é também um viva à vida. *** QUESTÃO DE TALENTO Divirto-me sempre que vou à Itália. País que me recebeu maravilhosamente quando me transferi para o Roma e que continua me tratando com carinho. Os italianos são alegres, comunicativos e têm certos comportamentos que acabam se tomando engraçados mesmo para quem já conviveu com eles. Gostam tanto de falar e de gesticular que até são alvos de anedotas, como na conhecida história dos dois compadres que atravessaram o rio sem saber nadar e depois explicaram como conseguiram tal proeza: - Parlando, parlando... Pois numa das minhas visitas à Itália, em 1996, tive a oportunidade de confirmar mais uma vez esta característica da gente da Bota. Na companhia do jornalista Giancarlo Dotto, do Il Mensagero, fui da capital à Milão para fazer compras e para ver o jogo entre Milan e Lázio. No táxi, o motorista nos reconheceu e não se conteve: - O senhor tem o dote do futebol - me disse. - E o senhor tem o dote de escrever bem - completou, voltando-se para Giancarlo Dotto. Antes que respondêssemos, o homem, já de uns 60 anos, acrescentou: - Mas eu também tenho o meu dote. Sou um cantor. Diante da nossa surpresa, não teve dúvidas. Soltou a voz, desfilando todo um repertório de canções romanticas que há muitos anos estão fora das paradas de sucesso. No aeroporto de Milão, tomamos outro táxi e desta vez o motorista não chegou a nos identificar. Mas, ao perceber que conversávamos sobre casamento e relações familiares, voltou-se para nós e perguntou se podia dar um palpite. Autorizado, tomou conta da conversa. Fez um verdadeiro tratado sobre a vida em sociedade, comparando homens e animais. Parecia um professor fazendo uma conferência. Fizemos compras e fomos almoçar. O homem do táxi se ofereceu para ficar com os pacotes até depois do jogo, quando nos apanharia no estádio. Mas achamos melhor deixar nossos pertences no restaurante. Quando estávamos almoçando, um grupo de garotos se aproximou para pedir autógrafos e um deles, afobado, me disse: - Pode me dar um autógrafo, seu Rincón. Me lembrei de Platini, que certa vez foi chamado de Zico por um caçador de autógrafos e não teve dúvidas. Perguntou o nome do solicitante e fez a dedicatória: - Com um abraço do Zico. *** TRATAMENTO ALTERNATIVO Jogador dodói. Assim os treinadores, preparadores físicos e médicos chamam o atleta que está sempre com dor em alguma parte do corpo, muitas vezes apenas para fugir dos treinamentos físicos ou das viagens longas. Alguns deles sentem realmente aquilo que dizem ter, mesmo que o exame médico nada registre. É a chamada dor psicológica, invariavelmente curada através de artifícios. Quando estava no Inter, o falecido Adílson vivia se queixando. Uma vez, nem queria entrar em campo porque sentia muita dor no tornozelo, que não apresentava qualquer problema aparente. Mário Sérgio resolveu o caso, passando-lhe um pequeno comprimido que dizia ser milagroso, com a recomendação de que não informasse ao médico. Naquele dia, Adílson jogou sem nada sentir - graças ao efeito mágico de um anticoncepcional marotamente ministrado pelo companheiro brincalhão. Pruzzo, no Roma, também tinha tornozelos sensíveis. A "caviglia" era sempre a desculpa para não treinar ou para ir mais devagar do que os outros na ginástica. Nas quintas-feiras, nosso treinamento habitual era um coletivo de apenas 45 minutos. Depois do treino, eu ia para a pista complementar o trabalho por conta própria, correndo mais l.500 metros, e procurava sempre arrastar o centroavante comigo, pois era ele que garantia o bicho no domingo. Resmungava, mas ia. Quando eu brincava, dizendo que ele não tinha tornozelo, sempre ouvia a mesma resposta: - Vai jogar de costas para os zagueiros para ver. Mas foi o técnico Liedholm que descobriu a maneira de acabar com a manha. Ao perceber o pouco empenho de Pruzzo nos exercícios, tirou-o do grupo: - Bomber, vem treinar chutes a gol. Pruzzo foi entusiasmado, mas, depois de uma hora e meia de piques e arremates quase ininterruptos, lamentou a sua sorte. No outro dla, foi o primeiro a puxar a fila da ginástica. Mas curiosidade maior em matéria de tratamento alternativo foi praticada por um enfermeiro que eu trouxe da Itália para fazer estágio com o fisioterapeuta Nivaldo Baldo, em Campinas. Ele aprendeu a fazer tratamento de contraste numa lesão muscular, aplicando alternadamente frio e calor. Quando o paciente terminou a parte quente, ele constatou que não havia mais gelo no freezer. Não teve dúvidas: pegou um peixe congelado e grudou na perna do sujeito, amarrando rapidamente com uma toalha para ele não ver. Segundo conta, fez o mesmo efeito. Mas o cheiro... *** FENÔMENOS HOLANDESES Meu último jogo pelo Roma, em junho de 1985, foi exatamente contra o Ajax, e dele guardo uma lembrança especial. Eu vinha de uma cirurgia no joelho e estava discutindo minha permanência no clube. Como o Roma tinha ficado fora das copas européias, os dirigentes queriam reformar o meu contrato, e havia uma conversa de que eu não estava curado. Aí surgiu este amistoso com o Ajax, que já na época era uma equipe muito forte. O Estádio Olímpico lotou e todos estavam de olho na minha movimentacão por causa da polêmica. De repente, num lance de meio-campo, tive que dividir com o Rijkaard, que era um dos principais jogadores do time holandês. Fui com tudo, pois não podia vacilar. Caímos um para cada lado e a torcida gritou de apreensão, achando que eu não levantaria. Mas continuei jogando normalmente, porque havia feito uma recuperação muito boa com o fisioterapeuta Nivaldo Baldo e minha musculatura estava preparada para qualquer choque. Rijkaard foi depois para o Milan, juntamente com outros dois holandeses que encantaram o futebol italiano: Gullit, um fenômeno de explosão física, e Van Basten, seguramente um dos maiores centroavantes de todos os tempos. Quando trabalhei na TV Itália Uno, em Roma, tive a oportunidade de entrevistar Rijkaard, que me confessou estar um pouco desencantado com o futebol, cansado de concentrar e de jogar sob tensão. Por isso ele voltou para a Holanda e para o Ajax, onde atuou até 1995, conquistando o título europeu exatamente em cima do Milan. Só então ele parou, sendo substituído por Márcio Santos. Mas o Ajax, que enfrentou o Grêmio na decisão do título mundial de 95, ainda tinha muito de Rijkaard e do futebol de velocidade que os holandeses vêm desenvolvendo desde os tempos de Johann Cruyff, um fenômeno da bola. Na Itália, tive a oportunidade de jogar contra outro integrante da chamada Laranja Mecanica, que foi bicampeã mundial, o zagueiro Kroll. Ele atuava pelo Napoli e concentrava todas as saídas de bola, porque tinha habilidade e visão de jogo. Quando percebi isso, pedi para o Pruzzo, nosso centroavante, colar no holandês. O goleiro do Napoli ficou o resto do jogo dando chutões, pois não sabia mais o que fazer. Mesmo os jogadores extraordinários sucumbem diante de uma boa marcação. *** O IMPERADOR DO MEIO-CAMPO Quando cheguei ao Roma, em agosto de 1980, algumas pessoas me advertiram que eu poderia ter problemas com alguns jogadores que estavam no clube há mais tempo e não eram tão valorizados. Um dos mais antigos era exatamente o capitão do time, Agostino Di Bartolomei, jogador que se formou nas categorias inferiores do clube e que tinha uma imagem de sisudez. Ele e Bruno Conti eram os únicos romanos da equipe. Ao me deparar com aquele sujeito casmurro, com o cabelo penteado para a frente tipo aqueles imperadores antigos - daí o apelido dado pelo grupo, que nos momentos de descontra‡ão também o chamava de Calígula -, pensei: "Vai ser um relacionamento difícil!" Mas não foi. Di Bartolomei foi o primeiro a se aproximar de mim, fazia questão de me acompanhar em entrevistas e até me levava em seu carro para compras. Ficamos amigos. Em campo, ele era um volante eficiente, batia bem na bola, chutava as faltas e fazia muitos gols de fora da área. Jogava limpo, não dava pontapés em ninguém. Fora do gramado, era caladão até demais, passando às vezes a falsa impressão de ser antipático. Jogamos juntos até 1984, ano em que eu operei o joelho e ele se transferiu para o Milan, juntamente com o treinador Liedholm. Depois disso, nos encontramos mais umas três ou quatro vezes, a última quando ambos já tínhamos parado de jogar futebol. Foi em 1991, no jogo de despedida de Bruno Conti. Formamos novamente a equipe do Roma campeão da temporada 82/83, Di Bartolomei, eu e o austríaco Prohaska no meio-campo, e ganhamos fácil de um combinado estrangeiro que tinha até o Dunga. Naquela ocasião, soube que Di Bartolomei trabalhava como diretor esportivo do Salernitana, de Salerno, um clube da terceira divisão, mas que ainda pensava em voltar ao Roma como funcionário. Jamais imaginei que aquela partida festiva seria também a nossa despedida. Em 1995, quando estava no Japão, fiquei sabendo que ele se suicidou com um tiro no ouvido. Foi um choque. Até hoje não sei o que levou meu antigo companheiro de Roma a atentar contra a própria vida. O futebol proporciona muitas alegrias, mas tem também os seus dramas e mistérios. Para a torcida do Roma, Di Bartolomei foi um jogador símbolo, que começou no clube e o ajudou a conquistar seu título mais importante. Para mim, foi um bom amigo. *** O GIGANTE DE PALHA Logo depois que o Roma conquistou o título italiano da temporada 82/83, após 42 anos de jejum, recebi homenagens gratificantes mas também passei por algumas situações embaraçosas na Itália. A festa da vitória foi uma loucura tão grande que alguns torcedores chegaram a arriscar suas vidas. Quando retornamos de Gênova, do empate que garantiu o scudetto, tivemos que desembarcar no aeroporto Ciampino, porque em Fiumiccino o ônibus não podia entrar na pista. Mas não adiantou. A torcida estava de tal forma alucinada que bloqueou todas as saídas com veículos. Um grupo de torcedores resolveu nos ajudar e começou simplesmente a virar os carros que estavam no caminho. Teve um mais exaltado que se agarrou no limpador de pára-brisa do ônibus e andou vários quilômetros com o rosto colado no vidro, gritando "Roma, io te amo!" Depois que eu já estava em casa, no condomínio onde morava, fui chamado na madrugada pelo porteiro porque alguns fanáticos torcedores queriam me dar um presente e não aceitavam esperar pelo dia seguinte. Quando cheguei na portaria, levei um susto: era uma estátua de três metros de altura, de palha e gesso, com a minha imagem, fardado com as cores do Roma e uma bola no pé. Os cabelos eram feitos de corda, para o meu gosto um tanto escassos porque na época eu ainda os tinha abundantes. Era tão grande que não passava pelo portão. Os caras empurraram por cima do muro, mas não entrou na casa de jeito nenhum. Ficou durante uma semana no pátio, assustando quem lá chegasse, mas acabei tendo que devolvê-la porque seria preciso fretar um navio para trazê-la ao Brasil. Pior foi a homenagem que me ofereceu uma casa noturna da capital italiana. Convenceram-me a ir lá para receber um troféu instituído para o melhor jogador do campeonato, uma estrela de ouro. Avisei que só iria para a cerimônia, porque já estava desconfiado de que haveria sensacionalismo. Não deu outra: o esquema envolvia várias mulheres nuas, pintadas com as cores do Roma, e um bando de fotógrafos previamente preparados. Todos me esperando na saída para os abraços e para as fotos, que certamente sairiam na capa dos jomais escandalosos. Tive que driblá-los, escapando por uma porta lateral. Entrei no carro ouvindo nas minhas costas uma atropelada de saltos altos e flashes. Mas a alegria da conquista foi maior do que todas essas confusões. *** CARNAVAL NO COLISEU Sempre gostei de carnaval. Quando era adolescente cheguei a pular a janela do Grêmio Niterói, em Canoas, para entrar num baile sem pagar o ingresso, evidentemente porque não tinha o dinheiro. O mais curioso é que caí na cozinha, no meio das cozinheiras, que levaram um susto mas acabaram compactuando com a molecagem. Depois, a carreira me privou de vários carnavais, principalmente na época em que fui jogar no exterior. Neste período do ano, eu matava a saudade colocando sambas no toca-fitas e os jogadores do Roma se juntavam em torno do meu carro para dançar. Mas a vontade era de estar no Brasil para participar da festa. Em 1989, já trabalhando na televisão, saí especialmente da Itália para desfilar em Porto Alegre e para uma das homenagens mais marcantes que recebi na vida: a Imperadores me elegeu como tema-enredo da sua apresentação. Foi uma emoção indescritível. Primeiro porque fui recebido com o maior carinho, até mesmo por alguns integrantes da escola que não acreditavam na minha vinda. Ainda me lembro que um rapazinho se ajoelhou na minha frente, me agradecendo. Eu é que tinha que agradecer. No momento de entrar na avenida, a vibração é intensa, as pessoas se unem de tal maneira que uma grande energia toma conta de todos. Há entusiasmo e também secação contra os principais rivais. Enquanto aguardava a nossa hora de desfilar, ouvia a todo momento alguém festejando: - Eles atravessaram! Eles atravessaram! Pois nós também estivemos a ponto de "atravessar". Como eu era o homenageado, me reservaram um lugar de destaque no último carro, um Coliseu estilizado, que ia guardado por uma ala representando a torcida do Roma. Só que, na hora exata de entrar na passarela, o carro quebrou. Tive que descer e entrar correndo no asfalto, como se estivesse entrando em campo para um jogo de futebol. Acabei desfilando a pé mesmo, mas pouca gente se deu conta da improvisação. Tanto é que a Imperadores ficou com o título de campeã daquele ano. Um título que guardo com tanto orgulho quanto aqueles que conquistei com o Inter e com o Roma. *** O MAGO DE BUSCATE Omundo do futebol também é um mundo de superstições. Já mencionei nestas crônicas as visitas que os jogadores do Internacional faziam a uma mãe-de-santo, e que de certa forma traziam benefícios psicológicos ao time. Até mesmo os menos crédulos acabavam se deixando levar pelo misticismo das previsões, sem se dar conta de que muitas não se confirmavam. Quando fui para a Itália, me surpreendi ao constatar que lá não é muito diferente. Em Roma, uma cidade de cultura milenar, algumas pessoas simplesmente se recusam a entregar o saleiro nas mãos das outras durante as refeições porque acham que dá azar. No clube Roma, por indução do técnico Niels Liedholm, costumávamos consultar um vidente amigo dele. Chamava-se Mário e morava em Buscate, uma cidadezinha localizada no norte do país. Poucos dias depois da minha chegada, fomos jogar em Torino e meus companheiros me levaram a Mário. Para demonstrar sua força mental, ele disse que faria tocar um sino localizado longe de sua casa. Ficamos todos em silêncio enquanto ele se concentrava na semi-escuridão, quando a porta da sala abriu e entrou sua esposa. Ele interrompeu a sessão e passou uma carraspana na mulher, que saiu assustada. Poucos minutos depois, tocava a sirena de uma fábrica próxima e o mago respirava aliviado, olhando para nós com cara de vitorioso. Até hoje desconfio que a bronca na mulher era uma senha para que ela providenciasse no barulho. Mas o treinador e vários jogadores acreditavam no homem. Alguns até diziam que ele influía decisivamente na escalação do time, telefonando para Liedholm na véspera dos jogos e informando quais os atletas que estavam com bom astral e quais os que poderiam comprometer. Um dos mais crentes era o quarto-zagueiro Turone, o jogador que usava a camisa 5 antes da minha chegada e que não gostava de fazer ginástica, com exceção de piques curtos e abdominais. Ele dizia, com certa razão, que zagueiro precisa só de arranque e de força para ficar em pé. Pois Turone protagonizou a história mais curiosa das previsões de Mário. Na véspera de um jogo decisivo contra a Juventus, em que precisávamos ganhar para conquistar o título, o adivinho disse que Turone faria o gol da vitória. No segundo tempo, depois de um cruzamento da esquerda, Pruzzo cabeceou para a área e Turone entrou de peixinho, fazendo mesmo o gol. Só que o árbitro anulou, marcando impedimento. A partida terminou 0 a 0 e a Juventus foi campeã. Mas o bruxo continuou prestigiado e até ganhou destaque na imprensa por seus prognósticos futebolísticos. *** PANTUFAS DE OURO No meu terceiro ano de Roma, o treinador sueco Liedholm me perguntou se eu conhecia algum jogador brasileiro de meio-campo que pudesse se adaptar ao futebol europeu. Eu indiquei o Toninho Cerezzo, que era um cara de bom astral, de boa cabeça e com uma situação familiar estável, pois na Europa isso é muito importante. Só esqueci de dizer que ele, talvez por ser filho de um palhaço de circo, gostava de fazer brincadeiras e praticava até mesmo algumas esquisitices. Dentro de campo, Cerezzo confirmou tudo o que eu disse dele. Fora, deu um verdadeiro show de simpatia e excentricidades. A primeira delas foi uma chuteira de jeans, com travas de borracha. Ele jogava com elas no Brasil, que tem gramados duros e secos, e achou que podia fazer o mesmo na Europa. Não parava em pé. Mas insistiu, até o dia em que fomos jogar contra o Gotemburgo, da Suécia, pela Copa dos Campeões. Em poucos minutos, um grandalhão já tinha pisado duas vezes no pé dele. A unha inflamada funcionou melhor do que todos os argumentos. Mesmo assim, ele resistia em calçar chuteiras de couro, com cravos altos. Aí, me lembrei de um fabricante da cidade de Ascoli, que fez uma chuteira especial, bem leve, e deu para o Cruiff testar numa partida. Quando o jogo terminou, o holandês disse: "Isso não é chuteira, é uma pantufa". A partir daí, o calçado ganhou o nome de "Pantofola D'Oro". Cerezzo ficou sem as chuteiras de jeans e ganhou pantufas de ouro. Mas ele impressionou mesmo foi como contador de histórias. Logo na chegada, fomos fazer a preparação para a temporada em Brunico, uma estação de esqui perto da Áustria. Mesmo sendo novato, Cerezzo começou a contar anedotas para o grupo, em português mesmo, me obrigando a rir duas vezes: quando ouvia e quando traduzia para os demais jogadores. Numa delas, disse que o Atlético tinha um goleiro que comia muita alface, mesmo diante das advertências do treinador de que esse tipo de alimentação dá sono. Um dia, contou, o cara se escorou na trave para formar uma barreira e dormiu em pleno jogo. As manias de Cerezzo também provocavam curiosidade. Ele morava a cerca de 25 quilômetros do campo de treinamento e se deslocava para lá de bicicleta, todos os dias. Só que exigia ser escoltado pelo carro da família, com a mulher e os quatro filhos, para o caso de acontecer alguma coisa com a bicicleta. *** NA TERRA DOS TREMORES Quando o Grêmio foi jogar em Tóquio, onde morei e trabalhei como treinador da seleção nacional, vários torcedores me pediram informações sobre a cidade, sobre as pessoas que lá residem e sobre o futebol. A todos respondi que a capital japonesa é uma cidade maravilhosa, que o povo é extremamente educado e adora futebol, especialmente o brasileiro. Tudo é civilizado naquela cidade, os serviços funcionam com perfeição, quase não existe violência, nem miséria, nem desemprego. Só tem um probleminha: terremoto. Para os japoneses, é rotina. Mas para o estrangeiro é apavorante. No curto período em que lá estive, senti a terra tremer em três oportunidades. Em uma delas, só acompanhei pela televisão, pois tinha viajado com a seleção para Hiroshima, onde disputamos a Copa Asiática. Em outra ocasião, eu estava no Hotel Tóquio Prince, quando tudo começou a balançar. No exato momento do tremor, eu ouvia o jogador Yamaguchi, do Yokohama Fruggels, que me relatava problemas particulares. De repente, passamos a ter um problema comum: procurar um lugar mais seguro. Em seguida, minha mulher ligou desesperada, perguntando se eu tinha sentido. Para tranqüilizá-la, brinquei: - Terremoto? Que pena que não estou aí para ver. Aqui não houve nada. Quem vai ao Japão sempre volta com alguma história de terremoto para contar. O exjogador do Corinthians Sérgio Echico, que tem uma escolinha de futebol lá e trabalhou comigo na seleção, me disse que no seu primeiro terremoto ele estava jantando com uma família de japoneses. Quando o lustre começou a dançar, ele levantou-se apavorado e olhou para o dono da casa. O velho apenas colocou a mão no copo e falou calmamente: - Grau 5! Tão rotineiros são os pequenos tremores que a arquitetura das casas já prevê uma certa flexibilidade a fim de evitar danos. Um dia eu estava no banheiro ajeitando a gravata e senti um empurrão nas costas. Cheguei a me virar, mas só havia a parede. Aí, tive que admitir o susto. *** O TRADUTOR DESANIMADO Quando acertei o contrato para dirigir a seleção japonesa, em março de 1994, exigi um bom intérprete porque sabia que a comunicação com os jogadores seria fundamental. Eu tinha informações sobre o futebol de lá, sabia que os atletas são disciplinadíssimos e se esforçam para cumprir o que o treinador pede. Isso pude constatar logo que comecei a trabalhar. Mas também percebi que eles não tinham noção de tática e que careciam de fundamentos básicos. Por isso, o intérprete ganhou ainda mais importancia. Ao chegar ao aeroporto de Tóquio, deparei com um sujeito baixinho, feinho, mas muito solícito e sempre sorridente. Era o simpático Mukassa, um japonês que tinha morado três anos no Brasil e que falava até bem o português. A partir dali, ele passou a ser a minha sombra, nos treinos, no vestiário e também nas entrevistas coletivas. Era bastante prestativo, mas, como todo japonês, trabalhava demais. Quase não dava conta de tanta atividade, pois além de me ajudar ainda escrevia para uma revista de esportes. Apesar do seu empenho, de vez em quando eu ficava desconfiado a respeito das traduções, pois falava meia hora e ele sintetizava tudo em dois minutos. Além disso, se expressava como aqueles tradutores da cerimônia do Oscar, sem nenhuma emoção. Eu tentava motivar o time, mexer com a moral, transmitir garra, e ele fazia um relato morno. Na véspera do jogo com a França, pela Copa Kirim, me dei conta de que só o fator local e a torcida poderiam compensar a nossa desvantagem técnica. Lembrei que havia 60 mil pessoas no estádio, que o Japão era um país invejado em todo mundo por seu desenvolvimento e pelos altos salários, que vendia tecnologia e que tinha condições de se superar também no futebol. Ele começou a traduzir e até eu desanimei, pois parecia mais um lamento do que um estímulo. Pensei: assim vamos levar oito. Tive que interromper e pedir a ajuda do Kazu, que jogou no Coritiba e no V/~\`` Santos, e que era o principal jogador da seleção. Mais tarde, consegui a ajuda do Marinho, ex-lateral do Cruzeiro de Belo Horizonte que chegou a jogar contra mim no Robertinho de 1972. Ele morava lá, estava casado com uma japonesa e tinha muito mais familiaridade com futebol. Também recebi uma força de Sérgio Echigo, ex-jogador do Corinthians e amigo de Rivelino, que tem uma clínica de futebol no Japão. Mukassa, apesar de toda a sua simpatia, era tão autômato que às vezes eu obtinha melhor resultado dando instruções em português. Pelo menos os jogadores sentiam a minha ansiedade. *** MISSÃO IMPOSSIVEL Um torcedor me pediu que contasse algumas histórias do relacionamento entre jogadores e árbitros, muitas vezes transcorridas fora do alcance do público. Embora tenha presenciado ao longo de minha carreira alguns momentos curiosos, não conheço nenhum episódio tão saboroso quanto aquele protagonizado pelo ponta Volmir Massaroca, do Grêmio. Segundo consta, o árbitro do jogo havia expulsado o técnico Carlos Froner do reservado, porque ele não parava de gritar e xingar. Em vez de sair, Froner ficou escondido numa casamata e continuou gritando instruções para Volmir, daquele seu jeito espalhafatoso. O jogador não teve dúvidas: aproximou-se discretamente do árbitro e avisou: - O senhor não expulsou o homem? Ele tá lá, ó! Livrou-se, assim, da aporrinhação. A maioria dos árbitros aceita observações feitas por jogadores, especialmente pelos que consideram sérios. Eu sempre conversei muito com os juízes. Cometi algumas bobagens no início da carreira, achando que podia reclamar acintosamente, mas depois fui amadurecendo e aprendendo que a diplomacia dá melhor resultado. Em algumas ocasiões, até fui solicitado pelo próprio árbitro a acalmar o ambiente. Aconteceu uma vez em Curitiba, com o Romualdo Arpi Filho, que era conhecido por Coluna do Meio por acomodar resultados. Ganhávamos de 1 a 0 e, quase ao final do jogo, Gasperin fez uma defesa nos pés de um atacante paranaense, que se jogou no chão. Romualdo não teve dúvidas: pênalti. Como Gasperin não parava de reclamar, ele se virou para mim e disse: - Diz aí pra ele, Falcão, que comigo tu nunca perdeste jogo. Eu aproveitei para emendar: - Mas também nunca ganhei. Romualdo gostava de se explicar. Conta o lateral Hermes que quando jogava no Santos deu uma entrada fortíssima num adversário. Romualdo chegou sorrindo, já com o cartão na mão, e advertiu: - Pô, cara, dá com bola. Assim tu me derruba. Vou ter que te amarelar. Apitar é uma verdadeira missão impossível. Sei disso porque mesmo nos treinos coletivos, como treinador, ouvia todo tipo de reclamação. Já o Gilberto Tim, como juiz de treino, tinha uma filosofia bem definida: time titular não podia perder. Se os reservas estavam na frente, ele prolongava o treino até dar um pênalti para os titulares. *** TROPE€ANDO NAS LETRAS Macedo, que jogou no São Paulo e agora atua no Santos, é reconhecido como um excelente atacante, mas também como um jogador um tanto complicado. Sua meteórica passagem pelo Internacional comprovou isto. Jogador com este perfil, sem muitas luzes para as ações fora de campo, tende a protagonizar trapalhadas e situações curiosas, como esta que o repórter Eli Coimbra me relatou. Macedo, logo depois de se transferir do Rio Branco para o São Paulo, foi cercado por garotos que queriam autógrafos e tentou ir além da simples assinatura. Perguntou o nome de um menino loiro que lhe estendia o papel, pensando em fazer uma dedicatória personalizada. - Washington! - respondeu o garoto. Diante da dificuldade para grafar o nome corretamente, o craque apelou para um recurso inteligente. - E apelido? Não tens apelido? O garoto, solícito, respondeu: - Tenho. Schumacher! Acabou levando na folha de papel apenas "Um abraço do Macedo" e nada mais. Quando ainda jogava pelo Rio Branco, conta Eli Coimbra, Macedo foi intimado pelo jornalzinho da cidade de Aparecida a responder um daqueles questionários que as revistas de futilidades costumam fazer com artistas famosos sobre preferências pessoais. Ao perguntar se ele apreciava algum hobby, a repórter quase caiu para trás com a resposta: - Gosto mesmo é do Batman. No Inter dos anos 70, presenciei um caso interessante entre jogadores recém-promovidos e que começavam a se deslumbrar com as possibilidades de consumo. Manuel, centroavante que Marco Eugênio buscou no Lansul de Esteio, entusiasmou-se com as bugigangas da Zona Franca durante uma excursão a Manaus. Como estava sem dinheiro, pediu emprestado a Djair e comprou uma máquina de escrever. Em Porto Alegre, a primeira coisa que fez com a máquina nova foi preencher um cheque para saldar a dívida. Depois de "catar milho" durante quase uma hora, conseguiu entregar para o companheiro um cheque sem rasuras, todo datilografado - inclusive o seu próprio nome no espaço reservado para a assinatura. *** REMÉDIO EFICIENTE Conheci o fisioterapeuta Nivaldo Baldo em 1985, um pouco antes de operar o joelho. Ele me acompanhou na cirurgia e depois passei seis meses em sua clínica, na cidade de Campinas, fazendo um longo e cuidadoso trabalho de recuperação. Durante este período, ouvi dele várias histórias protagonizadas por seus pacientes, a maioria atletas de destaque no esporte brasileiro. Uma das mais curiosas envolveu dois jogadores de futebol e um tenista: o ponta Zé Sérgio, que atuou pelo São Paulo; o centroavante Aloísio, que jogou no Santos; e o tenista João Soares, destaque no ranking brasileiro na década de 80. Os três ficaram amigos enquanto faziam tratamento e resolveram passar um trote no fisioterapeuta. Nivaldo Baldo tinha um fusquinha branco já praticamente negociado porque precisava de dinheiro para pagar o parto de sua esposa. Certa noite, ao sair da clínica, o carro não estava estacionado no lugar de costume. Desesperado, ele comunicou o roubo, foi para casa de táxi e passou a noite sem dormir. Só no outro dia ficou sabendo que o carro tinha sido escondido pelos três brincalhões, que nada acusaram. Sua vingança foi ainda mais cruel. Pediu emprestado o revólver do sogro, carregou-o com balas de festim, trancou a porta da clínica quando os três trabalhavam nas máquinas de peso e ameaçou: - Agora vocês vão pagar pelo que me fizeram. Antes que eles pudessem responder, mandou bala. Como no lugar dos projéteis saía uma espécie de cera qqquente que atingiu o corpo dos atletas, eles se desesperaram. Foi uma gritaria geral. Um deles chegou a pular por uma janela. Nivaldo também usou um método pouco convencional para melhorar a performance do jogador Marco Aurélio, que atuou pela Ponte Preta. O volante tinha sofrido uma lesão muito séria no joelho, com ruptura de ligamentos e meniscos, e mesmo depois de recuperado mancava para correr. O problema era mais psicológico do que físico. Depois de descobrir que seu paciente tinha medo de cães, o fisioterapeuta convidou-o para uma corrida na beira de uma lagoa e soltou sua cadela fila - Frida - atrás dele. Marco Aurélio correu cinco quilômetros sem uma única claudicada. Outra vítima de uma brincadeira na clínica de Nivaldo foi a rainha Hortência, do basquete. Ela se recuperava de uma cirurgia no glúteo e tinha que ficar deitada de bruços. Um dia um dos pacientes achou uma cobra verde perto da clínica e colocou sobre a perna da jogadora. Primeiro ela achou que era gelo, mas, quando o bicho se mexeu, Hortência voou mais do que na hora de fazer uma cesta. E gritou mais do que quando ganhou o título mundial. *** PERFUME ESPECIAL O volante Bernardo, que jogou no Inter e no Corinthians, foi o protagonista de um dos momentos mais curiosos do acidente com o avião do time paulista em Quito, em 1996. Ele estava numa das janelas e viu a turbina pegando fogo. Quando a porta de emergência se abriu, correu desesperado sem se dar conta de que estava em cima da asa. Acabou desabando sobre uma poça de querosene. Apavorado com a possibilidade de uma explosão, só então lembrou-se de ajudar um amigo que estava com ele no vôo. Mas nem teve tempo para isso, pois o sujeito passou embalado e invadiu o pátio de uma casa. Bernardo foi atrás e, quando fez a volta no muro, encontrou o amigo voltando em velocidade ainda maior, com três cães no seu encalço. Sua alternativa foi trepar no primeiro poste que encontrou, para escapar dos furiosos pastores alemães. Foi assim que o pessoal da segurança do aeroporto o encontrou quando começou o resgate. Em campo, Bernardo é bem mais valente. Leva tão a sério o seu trabalho que às vezes exagera, como ocorreu quando era meu jogador no América do México. Durante um treino, desentendeu-se com o ídolo Hugo Sanchez, que se dirigiu a ele de forma ofensiva. Terminado o coletivo, eu permaneci no campo trabalhando com outros jogadores quando ouvi uma gritaria e barulho de vidro quebrado no vestiário. Foram necessários três homens para segurar Bernardo. Mas ele é um líder positivo, ajuda o treinador e conquista facilmente a confiança dos companheiros porque sabe fazer amizades. No início de sua carreira, no Marília, chegou a passar por situações difíceis para favorecer colegas. Numa dessas, emprestou uma calça para um companheiro de concentração viajar e só depois se deu conta que nela estava todo o seu dinheiro. Era Dia das Mães e todos os jogadores ganharam folga, ficando no clube apenas ele e Giba, que mais tarde também jogou no Corinthians, ambos sem um tostão nos bolsos. Como o refeitório estava fechado, quando bateu a fome eles recorreram a um casal de amigos que morava perto. Ninguém em casa. Entraram e encontraram um resto de arroz, mas insuficiente para o tamanho da fome. A dona da casa estava numa festa na vizinhança e, quando soube da situação, providenciou dois pratos cheios. Na afobação de pegar a comida por cima da cerca, eles acabaram deixando cair tudo no chão. Segundo Bernardo, a areia virou um ótimo tempero. Nesta mesma concentração eles aprontaram outra confusão digna de videocassetada. Dormiam no andar superior, sem banheiro, e ficavam com preguiça de descer no meio da noite para urinar. Quando tinham necessidade, usavam uns tubos de desodorante que esvaziavam na manhã seguinte. Um dia o jogador Hélio, recém-chegado, arrumou-se para ver a namorada e resolveu se perfumar com o desodorante de Bernardo. Foi um desastre. Ficou tão furioso que o negrão quase teve de começar mais cedo sua carreira de escalador de postes. *** O CRAQUE DESMEMORIADO O incidente com Romário, que desmaiou num treino do Flamengo, me fez lembrar de alguns casos semelhantes que presenciei quando jogava futebol, quase todos sem maiores conseqüências. A exceção foi um choque de cabeça entre o centroavante Bira, do Inter, e o zagueiro Zé Rios, da Desportiva Ferroviária. O rapaz nunca mais voltou a jogar. Ainda me lembro que Pato Moure, então repórter da Gaúcha, se aproximou para descrever melhor o estado dele e voltou apavorado, quase sem poder falar, quando viu o cara de olhos revirados e com as veias do pescoço repuxadas. Felizmente o jogador foi atendido rapidamente, mas todos perdemos a vontade de jogar naquele dia. Levamos outro susto no dia em que Valdomiro "engoliu a língua". Ele foi salvo pelo massagista Moura, já falecido, que se deu conta imediatamente da sua dificuldade para respirar. Moura, a quem chamávamos de Vô, era uma grande figura. Uma de suas curiosidades era jamais dizer a palavra Grêmio. Sempre que tinha de se referir ao rival do Inter, dizia "eles". Só falava o nome de um jogador: Gessi. "Este jogava muito", costumava afirmar. Acho que não há jogador que não tenha passado por uma situação dessas, de desmaiar em campo após um choque. Uma vez, contra o Cruzeiro, cheguei primeiro na bola e o zagueiro central Dick me cabeceou a nuca. Passei dois dias hospitalizado. É uma sensação horrível e sempre fica o medo de alguma seqüela. Mas o caso mais curioso que conheço ocorreu quando ainda jogava no time infantil do Inter. Fomos disputar uma partida no campo do Tamandaré, em Petrópolis. Eu fazia dupla no meio-campo com Élton, que também era de Canoas e meu colega nas vendas de garrafas vazias, com as quais arranjávamos dinheiro para pagar as passagens até o Estádio dos Eucaliptos. Durante o jogo, Elton chocou-se com um sujeito maior do que ele e saiu semidesmaiado. No vestiário, começou a fazer onda, dizendo que tinha perdido a memória, que não lembrava mais quem era nem onde estava. Aí, o seu Darci, que era o diretor de futebol, fez um teste: - Élton, onde é que eu boto o dinheiro da passagem? Imediatamente ele voltou à realidade: - Aqui no meu bolso, seu Darci! *** TALENTO EXEMPLAR Zico teve uma das carreiras mais brilhantes entre todos os jogadores brasileiros não apenas por seu reconhecido talento, mas também pelo seu comportamento pessoal e profissional. Sempre foi um atleta exemplar e um companheiro cordial, uma liderança natural que se impunha pela seriedade e pelo respeito ao grupo. Jamais usou seu prestígio para obter privilégios. Em algumas ocasiões, surpreendia pela humildade, como quando foi convidado pelo Carpeggiani, que era seu colega de Flamengo, para atuar num jogo beneficente em Encantado. Para surpresa geral, ele aceitou e o Trianon viveu o seu dia de Seleção Brasileira, com um meio-campo formado por este comentarista, Zico e Carpeggiani. O Galinho, obviamente, foi a grande atração. Porém, mesmo um sujeito sensato e pacífico tem os seus momentos de exaltação. Paulo César Carpeggiani me contou que viu Zico furioso em duas situações vividas pelo Flamengo, tão curiosas que faço delas o tema desta historinha. Durante um jogo no Nordeste, ele driblou três jogadores, passou pelo goleiro e quando ia fazer mais um daqueles seus gols antológicos, o centroavante Baltazar - um reconhecido fominha - entrou por trás e deu um biquinho na bola, mandando para as redes. Em vez de abraço, Baltazar recebeu uma bronca do companheiro. Em outra ocasião, o Flamengo perdeu de 1 a 0 para o Botafogo, da Paraíba, no Maracanã, e os jogadores saíram de campo sabendo que a imprensa faria uma cobrança violenta. Porém, quando chegaram no vestiário, as roupas de Zico tinham sumido. Ele ficou possesso, e todas as atenções foram desviadas para o caso do roubo. Ninguém comentou mais a derrota desastrosa. Num canto do vestiário, o supervisor Domingos Bosco ria discretamente. A idéia de esconder as roupas de Zico fora sua, exatamente para mascarar a crise decorrente do mau resultado. Deu certo. Mas o normal em Zico era a cortesia. Ele preza tanto esta imagem de bom moço que ainda outro dia ficou indignado com Leão simplesmente porque, ao comentar um jogo do futebol japonês, o ex-goleiro falou que determinada "malandragem" eles haviam aprendido com Zico. O Galo jamais quis saber de ser malandro. Craque do jeito que era, nem precisava mesmo.