Curso de Pedagogia Disciplina : Didática Título do Texto: Obra toda Autor: Paulo Ghiraldelli Jr. Título: Didática e teorias educacionais Cidade: Rio de Janeiro Editora: DP&A Ano: 2000 Este é um livro não só de didática, mas de "didática e teorias educacionais'. É um livro voltado para que o professor possa desempenhar melhor seu trabalho de "organização das atividades de ensino e aprendizagem na escola" e, também, um livro que pretende dar condições, ao seu leitor, de refletir com profundidade os vínculos entre a didática, as teorias sociais, a filosofia da educação e, em outra palavras, as teorias educacionais. Trata-se de um Livro curto, mas nem por isso de leitura rápida. Ele depende do Leitor. Ele visa um leitor que esteja curioso em saber que rumos pode tomar o ensino, na sala de aula, agora, no limiar do século XXI, em uma sociedade que muitos vem admitindo como sendo uma sociedade pós-moderna. Muitos acreditam que os problemas de ensino desapareceriam se todas as escolas tivessem dinheiro para as suas atividades. Este é um livro que acredita nisso, é claro, mas que acredita que sem um estudo das teorias educacionais muito do dinheiro que pudesse ser empregado nas escolas talvez se perdesse. Paulo Ghiraldelli Jr. é professor de filosofia contemporânea e filosofia da educação na Universidade Estadual Paulista (UNESP), em Manha. Trabalhou em várias outras universidades no Brasil e, mais recentemente, como professor convidado na Auckland University, na Nova Zelândia. É autor de vários livros, sendo que os mais recentes são Richard Rorty a filosofia do Novo Mundo em busca de mundos novos (Vozes, 1999) e O que é Filosofia da Educação? (DP&A, 2000). É um dos coordenadores do GT-Pragmatismo da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF) e coordenador do GT-Filosofia da Educação na Associação Nacional de Pós-graduação em Educação (ANPEd), onde esta coleção foi idealizada. [o que você precisa saber sobre...] Didática e teorias educacionais Título: Didática e teorias educacionais Paulo Ghiraldelli Jr. Coleção Paulo Ghiraldelli Jr. e Nadja Herman Esta coleção é urna iniciativa do GT-Filosofia da Educação da Anped na gestão de Paulo Ghiraldelli Jr. e Nadja Herrnan FICHA TÉCNICA Revisão de provas: Paulo Telles Ferreira Projeto gráfico e diagramação: Maria Gabriela Delgado Capa: Rodrigo Murtinho CIP-BRASIL. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ Paulo Ghiraldelli Jr. De Paulo Editora Ltda. Proibida a reprodução, total ou parcial, por qualquer meio ou processo, seja reprográfico, fotográfico, gráfico, microfilmagem, etc. Estas proibições aplicam-se também às características gráficas e/ou editoriais. A violação dos direitos autorais é punível como crime (Código Penal art. 184 e §~ Lei 6.895/80), com busca, apreensão e indenizações diversas (Lei 9.610i98 - Lei dos Direitos Autorais - arts. 122,123, 124e 126). DP&A editora Rua Santo Amaro, 129 parte - Santa Teresa CEP 22.211-230 - RIO DE JANEIRO - RI - BRASIL Tel./Fax: (21)232.1768 e-mail: dpa@dpa.com.br home page: www.dpa.com.br Impresso no Brasil 2000 Para os professores que amam a liberdade. Sumário Introdução 9 Capítulo 1 As teorias educacionais na modernidade e no mundo contemporâneo: humanismo e sociedade do trabalho 15 O discurso educacional humanista O discurso educacional na sociedade do trabalho As crises do mundo moderno e contemporâneo: o mundo pós-moderno Capítulo II As teorias educacionais e as didáticas na modernidade e pós-modernidade 39 Herbart, Dewey, Paulo Freire e a postura pós-narrative turn Uma teoria educacional e uma didática pós-modernas: a educação pós-narrative tum Conclusão Sugestões de leitura 75 Apêndice Teorias da educação na história da filosofia da educação 77 Amélie Oksenberg Rorty Referências bibliográficas 99 Introdução O TERMO "DIDÁTlCA" É DE USO COMUM ENTRE NOS, brasileiros e falantes do português, em geral. Seu equivalente entre franceses é didactique, entre alemães, Didaktik e entre ingleses e norte-americanos didactic. Se conversarmos com alemães e franceses, eles, como nós, farão referência aos seus termos equivalentes usando as idéias de "arte de ensinar" ou "estratégias e técnicas de ensino" ou, ainda, mais sofisticadamente, "organização e otimização de processos de ensino- aprendizagem". Todavia, se falarmos com ingleses e norte-americanos, veremos que eles têm certa dificuldade com o uso do termo didactic. O termo, quando reconhecido, é muitas vezes tomado pejorativamente, como um tipo de ensino que não muda, repetitivo. Para os falantes de língua inglesa, principalmente os norte- americanos, a "organização e otimização de processos de ensino-aprendizagem" é algo ligado ao que eles chamam de educational theory ou philosophy of education ou, em alguns casos, pedagogy. Eles têm ampliado a noção de currículo, de modo que, não raro, aquilo que chamamos de didática também pode, numa determinada universidade norte-americana, estar sendo objeto de exame por um Ph.D. em Education: Curriculum Tkeory - uma área que vem recebendo a contribuição de autores que escrevem com um tom sociológico, nos Estados Unidos. No mundo ocidental moderno, principalmente entre alemães, italianos, espanhóis, portugueses e povos eslavos, o termo generalizou-se a partir da obra do pastor luterano J. A. Comenius, a Diclactica magna, de 1630. Ela foi publicada com o célebre e sugestivo subtítulo de "Arte de ensinar tudo a todos". Comenius, ele próprio, foi um reformador educacional prático, tendo dirigido, na Europa, a convite de governantes, a estruturação pág.10 de sistemas de ensino público, em vários e diferentes lugares. Em geral, os manuais de didática, na maioria dos países do mundo ocidental hoje, e os livros de educação, referem-se a ele como "o pai da didática moderna Na tradição dos estudos em educação, no Brasil, o termo didática corresponde a uma região intermediária entre as tradicionais áreas da Sociologia da Educação, História da Educação, Filosofia da Educação e Psicologia da Educação, e os campos da Prática de Ensino, Administração Escolar, Educação Especial e outros, ainda mais específicos. O senso comum pedagógico de professores e estudantes que se dedicam aos estudos da educação no Brasil toma o termo didática como apontando para o centro de um conjunto que reúne o que, em geral, é denominado de "disciplinas básicas" e "disciplinas aplicadas" em educação. Assim, a didática seria o campo que se informa através das "disciplinas básicas" de modo a estabelecer a "organização e otimização dos processos de ensino-aprendizagem" e, assim, nutrir aqueles que se formam como professores do ensino básico e médio, diretores de escola, supervisores de ensino, animadores culturais, pedagogos e assim por diante, ou seja, aqueles que vão lidar diretamente com o que foi traduzido nas "disciplinas aplicadas". Uma pessoa com didática é alguém que "sabe dar aula" ou que "explica bem um determinado assuntos' ou, mais sofisticadamente, alguém que, em circunstâncias diversas, "sabe organizar e otimizar processos de ensino-aprendizagem". Sendo assim, optando por uma definição ou por outra, é impossível aceitar um professor do ensino básico ou médio "sem didática". O mesmo vale para um diretor de escola, um animador cultural ou mesmo um educador de rua (como são chamados os que atuam em trabalhos como o Projeto Axé, na Bahia, entre outros) etc. Sem didática, nestes casos, significaria "sem qualquer coisa", ou seja, alguém sem a capacidade que seu diploma profissional diz que ele detém. introdução pág.11 Ou sem as condições de efetivação daquilo a que se propõe, que é educar. Assim, o senso comum de estudantes e professores, e isso para além daqueles que estudam educação, admite que os educadores possam até mesmo não entender muito de "filosofia da educação" ou " sociologia da educação'', por exemplo, mas tem dificuldade em aceitar um professor do ensino básico ou médio sem didática. Um educador que desconhece "áreas básicas da educação" é tolerado, na nossa sociedade. Um professor sem didática é bem menos querido. Não discuto, diretamente, se as formulações do senso comum apontadas acima estão certas ou erradas. Elas têm sua razão de existir e evidenciam bastante o que se diz e o que se faz na área de educação. O que pretendo é mostrar como considero "o campo de saberes necessários àqueles que estudam educação tomado como didática". Não qualifico a didática como uma prática, embora não despreze este seu lado. Muito menos, tendo a vê-la como uma "teoria geral da educação", estando ou não travestida com o nome de "pedagogia" - esta megalomania teórica deveria estar afastada de nós desde há muito. Prefiro, neste trabalho, vê-la como um campo de saberes. Então, chamarei de didática um lugar, ao qual cabe estudar as principais teorias educacionais dos nossos tempos. A filosofia da educação também faz o mesmo. Mas ela o faz a partir da linguagem técnica da filosofia. Aqui, usarei uma linguagem eclética - histórica, sociológica e filosófica -' mas não técnica, não específica de cada uma das áreas das humanidades. Porque as questões que a didática coloca exigem a confluência de saberes, num patamar de articulação entre o que se deve fazer e o que se deve saber. Mas o que dizem as teorias educacionais dos nossos tempos - os tempos modernos e pós-modernos? Basicamente, nos tempos pág.12 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS modernos, elas são discursos que se desenvolvem em torno de três elementos: uma noção de infância, uma finalidade da educação (e da escola, portanto) e, por fim, um papel específico para o educador (o professor ou figura semelhante). Nos tempos pós-modernos, conforme a linha de avaliação que adotarmos neste livro, isto sofre uma certa variação. Nos tempos pós-modernos - a nossa época - muitos dos objetivos educacionais considerados modernos permanecem válidos para um bom número de professores e pais, mas já não seria mais possível vê-los como objetivos factíveis, utilizando os mesmos pressupostos e justificativas das teorias modernas. Veremos, no decorrer deste livro, tal variação, e, como a tríade criança-objetivos-professor, sai de cena em favor de um discurso menos fácil de caracterização, de tipificação variadíssima. Dizer que "não há somente uma didática pós-moderna" é uma frase que deve ser vista de modo muito mais complexo do que a frase "não há somente uma didática moderna". Mas não me furtarei de mostrar uma possibilidade de didática pós-moderna Pragmaticamente, acredito que um educador e, mais especificamente, um professor que sabe se posicionar - teórica e praticamente - diante das teorias educacionais e suas implicações atuais é alguém que está equipado para ser chamado de professor que "tem didática". Pois é alguém que deverá saber, segundo as suas próprias convicções, o que os autores modernos pensam sobre a criança, os objetivos do ensino na sociedade moderna e sobre a sua própria posição atual no contexto da tarefa de "organização e otimização das relações de ensino-aprendizagem". Se for um professor pós-moderno, talvez, mas não necessariamente, dispense uma única concepção de infância, de homem etc., mas, ainda assim, terá que fixar objetivos e posicionar-se frente à "organização e otimização das relações de ensino-aprendizagem". Em ambos os casos, lendo este livro, ele deverá - assim espero - melhorar sua capacidade de descrever pág. 13 seu próprio posicionamento. Mas, se ainda assim ele for uma pessoa qualificada como "sem didática", isso estará fora do meu controle e boa vontade como autor. Por que digo isso? No final do livro o leitor ficará sabendo - pois a verdadeira didática, no meu entender, deve muito à capacidade geral de se dispor para o outro, na troca de olhares e "cortejamento" entre educador e educando. Este é o tema que aparece num texto de Richard Rorty, no final deste livro. Por fim, faço, ainda, um breve comentário sobre a dedicatória desse livro - "para os professores que amam a liberdade". É a primeira vez que faço uma dedicatória genérica. Mas ela tem sua razão de ser. Mesmo depois dos movimentos libertários dos anos 1960, do fim do sovietismo e, no Brasil, mesmo após o fim da Ditadura Militar, ainda encontro professores cultuando a "igualdade" - para se esquecerem da liberdade - ou, ainda, admirando ditadores, regimes políticos autoritários e, num campo mais específico, defendendo medidas elitistas e endurecidas - como aquelas que querem ver a formação dos professores e pedagogos fora da universidade, em guetos. Ainda encontro aqueles que se "esquecem" de preparar suas aulas. E aqueles que, mesmo sabendo-se novatos e inexperientes, pagam para publicar seus próprios livros, fazendo uma carreira falsa e burocratizada na universidade, ansiosos para se verem reconhecidos e, em geral, querendo utilizar o aparato público em benefício próprio. Cresce em nosso meio esse tipo de gente. Essas pessoas são reacionárias. Algumas são perversas. Não escrevo este livro de didática para os reacionários, muito menos para os perversos, e, sim, para os amantes de mundos jamais sonhados, para os professores que querem aventuras e que seus alunos tenham mais imaginação e esperança do que dogmas. Este livro é para aqueles professores que gostam de alunos curiosos mais do que os politicamente engajados, e não para os que fazem política pela política. Este livro é para aqueles pág.14 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS que, gostando da liberdade, querem que todos a tenham e que estão dispostos a fazer o tipo de política de que gosto: aquela que busca proteger os fracos da humilhação dos poderosos, sem, no entanto, qualquer paternalismo ou populismo. Este é um livro para professores que ainda preparam suas aulas, que estudam para as ministrar, e não para aqueles que, menosprezando seus ouvintes, dissertam aqui e ali sobre todo e qualquer assunto (mas sempre pela mesma cartilha!). Para esses, de que vale um livro de didática? Aliás, de que vale um livro para essas pessoas? Elas já têm um discurso pronto e não mudariam em nada a partir da leitura deste ou de qualquer outro livro! Muitas dessas pessoas procuram livros apenas para confirmar seus dogmas - chamam a isto coerência. A didática, aqui, no seu percurso histórico, é o campo da incoerência. Aliás, como é a vida. Ter uma vida coerente nem sempre é uma virtude - muitas vezes, é apenas sinônimo de limitação da inteligência e falta de coragem para mudar. Assim, da maneira como a encaro, a didática não se refere ao ensino repetitivo, nem às técnicas chatas que muitos estudantes temem encontrar nas faculdades de educação - e encontram! Para mim, ela é um fim de arco-íris, o qual não se sabe ao certo onde começa e nem se há mesmo, no seu término, um pote de ouro. Pág.15 CAPÍTULO 1 As teorias educacionais na modernidade e no mundo contemporâneo: humanismo e sociedade do trabalho O discurso educacional humanista O DISCURSO DOS INTELECTUAIS A RESPEITO DA EDUCAÇÃO, no Ocidente, nos tempos modernos e contemporâneos, possui três estágios: o primeiro estágio compreende o longo período de construção e vigência do humanismo, em suas vertentes iluminista e romântica, entre os séculos XVI e XVIII, e também no século XIX; o segundo estágio compreende o período de emergência dos diversos discursos a respeito da sociedade do trabalho, ou seja, os séculos XIX e XX; o terceiro estágio compreende a multiplicidade e, talvez, a unidade no interior das formulações que podem ser aglutinadas sob a rubrica de "pós-moderno", que irá caracterizar, principalmente, os últimos trinta anos do século XX e, certamente, ainda caracterizará parte do século XXI. O que diz o discurso dos intelectuais humanistas sobre a educação? No advento dos tempos modernos, nos séculos XVI, XVII e XVIII, geramos a noção de infância. No que consistiu tal noção? Os intelectuais começaram a deixar de ver a criança através da teoria do homúnculo", isto é, começaram a abandonar mais ou menos rapidamente a idéia de que a criança era apenas um pequeno adulto, um ser menor e menos perfeito. Uma parte dos intelectuais começou a dizer que havia duas fases na vida humana e que ambas eram importantes, a fase à qual pertencem pgá.16 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS os adultos e a fase à qual pertencem as crianças - a infância. Durante esse primeiro período da vida humana, o homem, então criança, se apresentaria de modo mais próximo à própria natureza humana. Assim, observando a infância, saberíamos qual deveria ser o nosso destino como humanos. E o que seria a "natureza humana"? Em contraposição à natureza dos animais e das coisas, o natural no homem seria a liberdade, pois, afinal, a característica básica da infância seria a despreocupação e a felicidade encontradas na liberdade. É claro que a liberdade da criança e do adulto eram liberdades tomadas qualificadamente. Na criança, manifestar-se-ia, sempre, uma determinada liberdade, que desapareceria no adulto, se este não pudesse adquirir uma outra forma de liberdade. Enquanto na criança a liberdade aparecia como despreocupação feliz, no adulto a despreocupação e a felicidade e, portanto, a liberdade se perderiam se ele não pudesse, com o tempo, transformar a "liberdade infantil" em "liberdade adulta" - a liberdade de se autodeterminar, de fazer opções ou de, pelo menos, ter capacidade para avaliar suas opções e as dos outros e, mais que isso, ter consciência a respeito dos limites de suas próprias opções individuais frente às opções dos outros indivíduos e frente ao bem comum. O ser humano estaria dotado de uma faculdade fantástica - a razão que, uma vez trabalhada, educada, o levaria da vida infantil para a vida adulta, transformando a liberdade infantil em liberdade adulta, isto é, o levaria a ser um verdadeiro indivíduo - aquele que pensa e age segundo a razão, podendo, então, viver livre como ser inteligente (sujeito epistemológico), como pessoa (sujeito moral) e como cidadão (sujeito político). Assim, o homem, enquanto indivíduo, seria alguém capaz de, conscientemente, reconhecer o verdadeiro e o falso, julgar o certo e o errado e discernir entre seus deveres e direitos enquanto habitante da cidade (membro do Estado), além de comentar o belo e o feio (papel do sujeito estético). AS TEORIAS EDUCACIONAIS NA MODERNIDADE E NO MUNDO CONTEMPORÁNEO... Pág.1 7 Segundo o discurso humanista, o papel da educação seria o de fazer com que o homem se reencontrasse consigo mesmo; isto é, a educação deveria fazer com que o homem pudesse, uma vez adulto, ser efetivamente livre, cumprindo, assim, o seu destino. Para tal, a boa educação seria a educação da razão e pela razão. Uma educação que prezasse a racionalidade como meio e fim não falharia na criação de crianças que se tornariam homens bem pensantes, capazes de agir corretamente e de cumprir suas funções políticas. E sobre o professor, o que dizia o discurso humanista? Montaigne, no Da educação das crianças, escrito no século XVI, respondeu a essa pergunta de um modo bem claro. Falando a respeito da criança que está sendo educada, escreveu: Se seu preceptor for como eu, forma-lhe a vontade para que sirva seu Príncipe com lealdade, afeição e coragem; mas o desviará de se prender a ele senão por dever cívico. (...) Que a consciência e a virtude brilhem em suas palavras e que só a razão tenha por guia. Ensinar-lhe-ão que confessar o erro que descobriu em seu raciocínio, ainda que ninguém o perceba, é prova de discernimento e sinceridade, qualidades principais a que deve aspirar. Para intelectuais do tipo de Montaigne, como tantos outros na vaga humanista, na linha do iluminismo ou do romantismo, até o século XIX, o professor falharia quando tivesse levado alguém a colocar sua vontade a serviço do Príncipe (o Estado) para além do exclusivo "dever cívico". Ou que tivesse levado o seu aluno, uma vez adulto, a ter o hábito de esconder um erro de raciocínio que sabia ter cometido (o aluno teria ficado incapaz de aliar a lógica à sinceridade). Em ambos os casos, o professor não teria cumprido a sua tarefa. Não teria conseguido fazer da criança um autêntico indivíduo, aquele que não deixa a sua própria razão - sua liberdade e sua natureza - ser nublada. pág.18 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS O discurso educacional na sociedade do trabalho A partir do século XIX, o panorama em que o discurso sobre a educação passou a se mover alterou-se profundamente. Em tudo, passou-se a seguir as diretrizes da então nascente "sociedade do trabalho". Mas o que é ela? A noção de sociedade do trabalho refere-se à sociedade ocidental erigida sobre três elementos. O primeiro é a empresa industrial privada ou estatal (cujo modelo é a fábrica), que, como instituição separada da antiga unidade produtiva familiar, organiza a produção de acordo com critérios de eficiência (racionalidade econômica). O segundo elemento é o trabalhador assalariado, alguém duplamente liberado: ele é livre de quaisquer laços como os que observamos no feudalismo, ou seja, aquelas obrigações para com a terra e o senhor feudal; e também é alienado dos meios de subsistência. O terceiro elemento é a ética do trabalho, isto é, um conjunto de preceitos que vão se tornando legitimados e que não só querem justificar a necessidade e o dever de trabalhar mas que, também, criam uma série de valorizações que permeiam o tecido social na busca de lhe dar coesão, funcionalidade e sentido. A sociedade do trabalho é aquela em que os homens que nela vivem conferem sentido ao mundo a partir do trabalho e dos acontecimentos e valores ao redor deste. E uma sociedade na qual os indivíduos se enxergam como "autênticos indivíduos" na medida em que são trabalhadores. E numa sociedade deste tipo, que são justamente as sociedades ocidentais que tiveram seu apogeu durante o século XX, que o discurso humanista sobre educação será remodelado. A infância, a educação (escola) e o papel do professor serão requatificados. Na sociedade do trabalho, a infância continuou a ser vista cada vez mais como uma fase especial da vida humana e, também, como um indicador do que seria a verdadeira natureza humana. Todavia, na sociedade do trabalho, a natureza humana foi AS TEORIAS EDUCACIONAIS NA MODERNIDADE E NO MUNDO CONTEMPORÂNEO... 19 redefinida pelos intelectuais. O que seria natural nos homens? Sem dúvida, não mais a liberdade tomada genericamente, mas uma liberdade específica: a capacidade humana de se automodificar, na medida em que o homem pode transformar o mundo, transformando o meio em que vive ou, em outras palavras, trabalhando sobre o meio em que vive. A infância continuou a ser o indicativo da natureza humana. Só que, agora, olharíamos para as crianças e veríamos não só despreocupação feliz - liberdade -, como viram os antigos humanistas, mas veríamos, principalmente, algo essencial por eles mencionado mas sobre o qual não teriam atribuído a devida importância: a criança é ativa, é um ser do movimento, que pega e muda as coisas ao seu redor - a criança é um ser prático e, como tal, evidencia sua inteligência humana. No adulto, tal capacidade prática e disposição para a atividade se transformariam em trabalho. O discurso sobre a educação na sociedade do trabalho, tal como o discurso humanista, achava que o seu papel era fazer o homem "reencontrar-se consigo mesmo". Todavia, diferentemente do discurso humanista, no novo discurso o homem deveria reencontrar não a Liberdade enquanto capacidade de autodeterminação racional, mas sim enquanto capacidade de se manter ativo, prático, construtor, empreendedor - trabalhador. A própria noção de "ser racional" foi alterada: menos que a capacidade de autodeterminação, a razão seria a capacidade de nos colocarmos calculadamente diante do meio circundante, moldando-o segundo o que seriam nossas necessidades. A educação da razão e pela razão seria, assim, a educação de um tipo de racionalidade em favor deste mesmo tipo de racionalidade: a racionalidade da atividade e, num certo sentido, do trabalho. E sobre o professor? O que dizia o discurso sobre a educação vindo das diretrizes da sociedade do trabalho no que diz respeito ao mestre? Pág.20 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS Bergson, em O pensamento e o movente, publicado em 1934, responde a essa pergunta de modo muito claro: Homo faber, homo sapiens, diante de um e diante do outro, que aliás, tendem a se confundir, inclinamo-nos. O único que nos é antipático é o homo Loquax cujo pensamento, quando ele pensa, não é mais que uma reflexão sobre o que fala. A formá-lo e aperfeiçoá-lo tendiam, outrora, os métodos de ensino. E não tendem um pouco, ainda hoje? Certamente, o defeito é menos grave entre nós do que em outros países. Em nenhum lugar, mais do que na França, o professor provoca tanto a iniciativa do aluno. Entretanto, resta-nos muito a fazer. Não vou falar aqui do trabalho manual, da função que ele poderia desempenhar na escola. Somos levados facilmente a ver nele apenas um passatempo. Esquecemos que a inteligência é essencialmente a faculdade de manipular a matéria, que ele ao menos começou assim, que tal era a intenção da natureza. Como, então, não se beneficiaria a inteligência da educação das mãos? Vamos mais longe. A mão da criança tenta naturalmente construir. Ajudando-a nisto, fornecendo-lhe, ao menos, ocasiões, obter-se-ia, mais tarde, do adulto, um rendimento superior; faríamos singularmente crescer o que há de inventividade no mundo. Um saber imediatamente livresco comprime e suprime atividades que querem apenas desenvolver-se. Exercitemos a criança no trabalho manual e não abandonemos este ensino a pessoas não especializadas. Apelemos para um verdadeiro mestre, para que aperfeiçoe o tocar aponto de tomá-lo tato: a inteligência elevar-se-á das mãos à cabeça. Para uma boa parte dos intelectuais dos séculos XIX e XX, que, de alguma forma, estiveram inseridos no grande movimento de culto ao industrialismo, iniciado com Saint Simon, e que teve eco no "Manifesto Comunista" de Marx e Engels, o mau professor seria aquele que falhou na tarefa de proporcionar às crianças, uma vez adultas, as condições de inserção social. "Inserir-se socialmente" significava, então, integrar-se ao mundo, transformando-se em trabalhador, ou, dito eufemisticamente, em um profissional. O "indivíduo autêntico", no século XX, tornou-se sinônimo de "bom profissional". Õ termo variou Pág. 21 As TEORIAS EDUCACIONAIS NA MODERNIDADE E NO MUNDO CONTEMPORÂNEO... segundo as divisões classistas, é claro: um operário podia ser um profissional; um advogado podia ser um profissional - um profissional liberal; um dono de empresa podia ser um profissional, por exemplo, um administrador de empresas. Os próprios professores passaram por isto: almejaram deixar de serem vistos como missionários, filósofos, preceptores, divulgadores, educadores, intelectuais e, cada vez mais, reivindicaram, junto com outros setores, o posto de "trabalhadores da educação". É no contexto da transição entre o modo de falar sobre a educação a partir do humanismo e o modo de falar sobre a educação a partir das diretrizes e símbolos da sociedade do trabalho que podemos pensar o surgimento do movimento de renovação educacional, que começou, na prática, com o advento das chamadas "escolas novas" (partindo de Tolstói, no século XIX até as escolas experimentais de vários países, no século XX) e, no plano teórico, com as inúmeras teorias educacionais que incentivaram o chamado "ensino ativo" (Dewey, Kilpatrick e Piaget à frente). Entretanto, é preciso cuidado, pois vários teóricos - a exemplo de John Dewey - foram criadores e incentivadores dos métodos ativos em educação e, ao mesmo tempo, críticos da sociedade do trabalho e da escola submetida à racionalidade desenfreada do mundo industrial. Voltaremos especificamente a este ponto mais adiante. As teorias educacionais do século XX, como as teorias educacionais humanistas, falaram em criar o homem para ser indivíduo, sujeito, mas entenderam esse termo como algo um pouco diferente da concepção humanista. O ser pensante e inteligente, o sujeito epistemológico, aquele que reconhece o verdadeiro e o falso, passou a ser o sujeito ativo. A verdade passou a pertencer à ordem prática e, assim sendo, seu reconhecimento dar-se-ia ativamente, por experiência e experimentação. A pessoa, o sujeito moral, aquele que julga o certo e o errado, passou a ser aquele que faz julgamentos a partir dos valores postos pelo pág.22 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS trabalho - uma ética do trabalho, que passou a punir duramente uma figura inexistente até então: o "vagabundo" - aquele que não trabalha (na transição do século XIX para o XX, sociólogos como Veblen criaram a teoria do desprezo às antigas elites, os nobres, a quem se chamou de "classe ociosa", que não teria a mesma virtude das classes industriais). E, por fim, o cidadão, o sujeito político, passou a ser aquele que reconhecia direitos e deveres a partir de um discurso dos partidos trabalhistas (de esquerda e de direita). Aliás, no século XX, se observarmos atentamente, veremos que, de certo modo, todos os partidos se tornaram trabalhistas; fossem eles comunistas, social-democratas ou fascistas, seus objetivos explicitados nas suas cartas de intenções eram a melhoria do mundo do trabalho, a melhoria do cidadão-trabalhador, a alteração das condições de trabalho, a obtenção da sociedade do pleno emprego etc. As crises do mundo moderno e contemporâneo: O mundo pós-moderno Vivíamos, até há bem pouco tempo, na sociedade do trabalho. Todavia, desde o pós-Segunda Guerra, particularmente, após os anos 1970, sentimos o nosso mundo mudar de maneira nunca vista. Nos últimos trinta anos, aconteceram duas crises que, inclusive, se auto-alimentaram. Sociologicamente falando, tivemos a crise da sociedade do trabalho. Em termos de filosofia social, tivemos a crise da individualidade moderna. Muitos dos pensadores que identificaram e analisaram essas crises preferiram chamar o mundo que vem emergindo a partir delas de "mundo pós-moderno". O que seria este "mundo pós-moderno"? A modernidade teria dois pilares característicos: do ponto de vista sociológico, a vigência da sociedade do trabalho e, do ponto de vista filosófico, a justificativa da idéia da existência da "individualidade", nome dado ao homem enquanto "sujeito", isto é, o ser consciente de pág.23 AS TEORIAS EDUCACIONAIS NA MODERNIDADE E NO MUNDO CONTEMPORÂNEO... seus pensamentos e responsável por seus atos (ser inteligente: sujeito epistemológico pessoa: sujeito moral; cidadão: sujeito político). Tudo o que emergisse de diferente, após a crise desses dois pilares característicos - esta crise está em curso -, seria o "mundo pós-moderno". Falaremos sobre cada uma dessas questões abaixo e, em seguida, veremos como isso afetou a nossa conversação sobre a educação. O ponto de vista sociológico: a crise da sociedade do trabalho Segundo a inspiração que vem de um tipo de discurso sociológico - em geral, como o que é desenvolvido a partir das idéias de Clauss Offe, teórico ligado à Nova Escola de Frankfurt1 -'a crise da sociedade do trabalho teria começado desde a sua própria instituição. A desconfiança de certos libertários dos séculos XIX e XX a respeito da idéia de que o trabalho traria para todos realização pessoal, e a desconfiança de que, mesmo que trouxesse, não seria para todos, pois nem todos conseguiriam trabalho, teriam se tornado uma realidade no final do século XX. Segundo essa sociologia, a inserção social passou a se desvincular do trabalho. Não seria mais possível falar em inserção social como sinônimo de integração à sociedade do trabalho. rodapé Em boa parte dos meus textos recentes venho chamando de "Velha Escola de Frankfurt" aquela ligada aos impasses gerados com Horkheimer, Adorno, Benjamin, Marcuse etc., e de "Nova Escola de Frankfurt" os teóricos ligados a Habermas, principalmente o Habermas que abandonou o marxismo, passando a endossar as idéias da "virada lingüística" e da "virada lingüístico- pragmática". A Velha Escola de Frankfurt era uma escola de indignação moral - como a indignação moral de Marx -, mas se envolveu em dilemas filosóficos de que não conseguiu dar conta. Já, a Nova Escola de Frankfurt tentou resolver aqueles dilemas filosóficos, principalmente escapando tanto do paradigma humanista quanto do paradigma da sociedade do trabalho para, enfim, deixar de lado noções como "natureza humana" e caminhar para a análise do nosso mundo, que, antes de ser do "homem" (sujeito metafísico), é um mundo de falantes - que não receberam nenhum dom natural -, mas que usam ruídos e sinais e que, com o tempo, passaram a dar significado a esses usos. Pág.24 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS No final do século XX, e agora, no limiar do século XXI, as pessoas teriam diminuído suas esperanças de alcançar alguma realização pessoal no trabalho ou através dele, como também teriam diminuído ainda mais sensivelmente suas esperanças nas utopias do século XIX e do início do XX, todas elas criadas a partir de propostas de reorganização da vida através da reorganização do trabalho (as propostas de comunistas, fascistas e social-democratas, cada uma a seu modo). No trabalho, raramente encontraríamos alegria - nunca felicidade - e não mais encontraríamos a nós mesmos. E poucos estariam acreditando, como acreditaram as pessoas do século XIX e em algumas fases do XX, que, se reorganizássemos o mundo do trabalho, seríamos felizes e nos encontraríamos com nós mesmos. E, mesmo que acreditássemos, ainda, nas utopias da total reorganização do trabalho, teríamos de enfrentar O fato de o trabalho, ele próprio, estar deixando de poder marcar presença em boa parte do tempo de nossas vidas, pois se tornou escasso e transitório em uma sociedade que abrigou, mundialmente, nos anos 1990 do século XX, oitocentos milhões de desempregados - o "desemprego estrutural", como chamaram os economistas ao fenômeno crescente do desemprego causado pelo surgimento das novas tecnologias. Assim, segundo a sociologia que tomo como referência, uma das características básicas da crise da sociedade do trabalho é a crise da noção de "indivíduo" tal como foi gerada nesta mesma sociedade. A consciência de ser trabalhador 11ã0 é mais a consciência par excellence. Ser indivíduo não é mais ser "profissional". O que teríamos, então? Uma volta à individualidade tal qual foi definida pelos humanistas? Não. Na verdade, Clauss Offe menos, e Habermas mais, tendem a dizer que a crise atingiu também o próprio conceito de individualidade num sentido amplo, abarcando não só a noção de indivíduo, na sociedade do pág.25 As TEORIAS EDUCACIONAIS NA MODERNIDADE E NO MUNDO CONTEMPORÂNEO... trabalho, mas também a noção geral de indivíduo moderno - a própria noção de sujeito moderno. Esta é, então, a segunda crise: a crise da individualidade moderna ou, em termos mais filosóficos, a crise da subjetividade moderna. O ponto de vista da Filosofia: a crise da individualidade moderna A filosofia social frankfurtiana e a crise da individualidade: a consciência enquanto "corpo" e suas conseqüências para o discurso educacional A crise da individualidade moderna, em termos da filosofia social inspirada na Velha Escola de Frankfurt, é um fenômeno que pode ser visto desde o final do século XIX, quando as elites generalizaram a prática de colocar espelhos em suas casas e, com as primeiras caracterizações das pessoas estritamente pelo aspecto físico; mais ainda, durante o pós-Segunda Guerra, com a crescente associação da identidade, não mais com o que chamávamos de consciência, mas com o que chamávamos, e ainda chamamos, "corpo". Tratou-se de deslocar a subjetividade-identidade da consciência para o corpo. Uma completa naturalização da visão a respeito das relações entre os homens e o meio ambiente. Segundo esse tipo de análise, hoje, muitos teriam se acostumado a se autoqualificar como sujeitos na medida em que se achem capazes de satisfazer alguma carência ligada ao corpo. Nossa identidade pouco se referiria a ideários organizados racionalmente como no passado recente, quando nos qualificávamo5 como "católicos", "comunistas" etc. Ou, mais amplamente quando nos qualificávamos como "burgueses", "trabalhadores", "comerciantes", playboys etc. No Ocidente, desde o começo das décadas finais do século XX, cada vez mais nossa identidade teria passado a fazer referência ao corpo. Estaríamos nos descrevendo, cada vez mais, como "brancos", Pág.26 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS negros", "doentes", "sadios", "gordos", "magros"," belos", "feios", "altos", "baixos", "gays" (os que usam o corpo homossexualmente), e assim por diante. Sinonimizaríamos o eu ao 'corpo" e, assim, consideraríamos como condição de realização pessoal e felicidade íntima as situações onde o corpo estivesse envolvido prazerosamente. Por isso, as várias e mais presentes situações onde a felicidade é associada ao prazer do consumo e este, por sua vez, associado ao consumo de objetos, apetrechos e programas vinculados ao corpo - tudo o que se refere à beleza, à saúde, e assim por diante estaria ganhando fantástica importância. Há quem diga, inclusive - como o sociólogo francês, Lucien Sfez - que, se temos ainda uma grande utopia, ela poderia ser chamada de "A Grande Saúde". Em uma entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, em 1996, Sfez declarou: Na classe média alta e nas elites [americanas], as pessoas desprezam os fumantes, conversam sobre colesterol, dicas de comidas Livres de gordura, not fat. Fala-se disso como, na Europa, se conversa sobre política. Um dia encontrei uma amiga, que faz parte desse meio chique, o novo meio radical chique, universitário e elegante da Costa Leste americana. A conversa, a mesma de sempre, a comida certa. Perguntei como ia. Não muito bem, um problema de saúde. Era grave? "Poderia ser, virtualmente". Ela tinha pedido para o médico tirar-lhe os ovários preventivamente! Porque a mãe e a tia tiveram problemas com os ovários, mas ela não tinha nada. Fiquei estupefato e perguntei como o médico tinha concordado com uma coisa dessas, pois na França isso jamais seria feito. Ela me disse que negociou com os médicos: se tirassem os ovários ela não tiraria os seios! Foi então que descobri que uma prática comum nos meios "in" americanos é tirar os seios preventivamente. (...).O termo A Grande Saúde se aplica a este homem novo, que estaria além da nossa infeliz existência humana, que atingiria a imortalidade, que não precisa em nada de Deus, da moral e da metafísica. O mal estaria no corpo, seria tratado pela ciência, sem mediações políticas. O que vale a pena ser observado no comentário de Sfez é menos o seu pessimismo e saudosismo e, inclusive, suas conclusões, pág.27 As TEORIAS EDUCACIONAIS NA MODERNIDADE E NO MUNDO CONTEMPORÂNEO... que lembram um certo ascetismo presente em boa parte das análises das sociologias marxistas, e mais sua arguta capacidade em contar como um encontro cotidiano estampou mais do que uma idiossincrasia de uma amiga rica; um comportamento que, em geral, muitos de nós assumimos, e que seria impossível se achássemos que nosso verdadeiro eu está na "razão", na "consciência" ou, ainda, ligado a um ideário previamente racionalizado com fins sócio-políticos. Nosso verdadeiro eu teria passado a ser o corpo. Mas é claro que, numa análise de inspiração frankfurtiana, diferentemente do que falou Sfez, esse "corpo" continuaria sendo uma determinada descrição, uma determinada representação de corpo. E essa representação não estaria desligada da religião, moral, metafísica e política, como disse Sfez. O "corpo" seria, muito mais: uma representação que pode, em nossos tempos, estar associada à metafísica e à política, pois o que chamamos "corpo" é uma nova entidade que não suprime o que chamamos "consciência", mas se mostra como um novo elemento básico da vida, portanto, uma nova entidade metafísica (a Física pode muito bem ser uma metafísica, a Biologia também!). De igual maneira, não há supressão da política, mas esta passou a ter o corpo como referência, como nos ensinou Foucault em sua análise da modernidade - e que, a meu ver, é muito mais um retrato da própria pós-modernidade. Quais as conseqüências disso tudo para o discurso educacional? Isso tudo vem reformulando nossa noção de infância, de educação (ensino, escola) e de professor. Mas aqui é preciso ver os dois lados das mudanças do que vem sendo entendido como "mundo pós-moderno" Por um lado, temos uma justificativa para discursos educacionais que se transformaram em apoio a meros treinamentos Todos sabemos quantos Ph.Ds em "qualidade total" e similares apareceram nos últimos anos. Por outro lado, temos também justificativas para discursos educacionais que pág.28 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS caminham para a reconstrução do agir pedagógico num sentido compatível com anseios liberais, democráticos e de maior reflexão. Vou me ater ao primeiro tópico do mundo pós-moderno. Segundo uma análise herdeira da Velha Escola de Frankfurt, nas novas condições, tanto as noções humanistas de infância quanto as noções ligadas à sociedade do trabalho, que descrevem a criança, respectivamente, como ser naturalmente livre e como ser ativo e prático, estariam desqualificadas. A infância ter-se-ia volatilizado. Na medida em que cada indivíduo é o que é o seu corpo, ou mais exatamente, cada indivíduo é um corpo que consome, também a criança é vista de outra maneira: ela é o "pequeno corpo" que ganha identidade no ato do consumo. Quais são as coisas que esse corpo consome? O que ele faz? Este "corpo" é o "corpo que consome o danoninho" ou o "corpo que se mexe como a Xuxa e similares" ou, ainda, o corpo que realiza os movimentos estereotipados e violentos de heróis da TV e de outros meios de comunicação. Muitos heróis da TV são apenas um conjunto de movimentos, sem idéias ou ideais - o que chamamos de asiatização dos heróis da TV: sai de cena o novo Capitão América, de Stan Lee, que nos anos 1960/1970 foi ao Vietnã e teve a coragem de não lutar contra os vietnamitas, pois não viu a Guerra como uma guerra justa, e entram em cena os vários elementos saltitantes asiáticos, que apenas Lutam, por nada e para nada, contra monstros tão imbecilizados quanto eles próprios (às vezes, lutam para "salvar a Terra"!). Ainda segundo essa análise, herdeira dos velhos frankfurtianos, como atua o discurso educacional que endossa, direta ou indiretamente, tal situação? Se cada um de nós é um "corpo", então, a educação mais adequada a nossa condição é o treinamento, o adestramento. E se a criança só é criança dentro daquilo que os meios de comunicação autorizam, definindo sua condição a partir da pág.29 As TEORIAS EDUCACIONAIS NA MODERNIDADE E NO MUNDO CONTEMPORÂNEO... imposição do que deve ser consumido pelo seu corpo, então, devemos, para fazer existir crianças na escola, reproduzir ali todo o esquema de adestramento, acoplado à forma-padrão de comunicação determinada pela TV. A escola passaria a ter como modelo a academia de ginástica. Mas não a academia de fato, e sim, aquela montada pela TM a que cristaliza a própria vida em uma academia: por exemplo, na novela "Malhação", da Rede Globo, toda a vida transcorre, e só pode transcorrer, na medida em que associada à Academia, onde está o único elemento subsistente: o corpo. E sobre o professor? O que diz, direta ou indiretamente, esse novo discurso educacional, sobre o professor? O professor não seria mais alguém que visa tornar o jovem conscientemente livre, como o ideal do professor humanista. Também não mais seria aquele que deveria colaborar, de forma substancial, para que o jovem, tornando-se um "profissional", pudesse conseguir inserção social, como deveria ser o professor articulado às diretrizes da sociedade do trabalho. O professor estaria se posicionando, sim, como alguém que lida com "corpos". Por isso seu trabalho consistiria em adestrar os jovens para atividades circunscritas - já que os empregos fixos tendem a desaparecer - que devem ser realizadas segundo um padrão de performance previamente estabelecido pelo mercado ou por autoridades externas aos indivíduos. Cada professor, então, estaria sendo apenas um detentor de técnicas agendadas segundo o adestramento que deve promover: as técnicas ditas necessárias para determinado tipo de domínio de um idioma; as técnicas para manipulação, num determinado e específico nível, de uma máquina qualquer (computador, fumadora etc.); e até mesmo as técnicas para a leitura de um texto de... Filosofia! Assim, estariam aparecendo diversos estudantes e professores de Filosofia que saberiam minúcias a respeito de um texto filosófico, mas que nunca leram um manual de História da pág.30 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS Filosofia que lhes desse uma visão geral sobre o que fizeram e fazem os filósofos. A nova tarefa dos professores consistiria, então, em avaliar as performances alcançadas por seus alunos, destinados a viverem naquilo que o Ministro do Trabalho da primeira gestão do Presidente norte-americano Bill Clinton, Robert Reich, definiu como "sociedade do futuro". Em 1996, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, Robert Reich explicou que todos viveríamos numa sociedade sem empregos fixos, uma "sociedade de freelancers", e deu alguns conselhos para evitar a exploração do trabalhador: A melhor proteção é possuir habilidades e conhecimentos para os quais há demanda. Nada substitui você ser alguém de quem o mercado precisa. O papel do governo mudou. Nas décadas de 30 e 40,o governo estabeleceu padrões mínimos para que as pessoas pudessem receber um salário mínimo. (...) Hoje, o papel do governo é construir pontes entre a economia velha e a economia nova. Ainda há pessoas demais que não possuem as habilidades necessárias, educação suficiente [para a nova economia]. (...) Estágios e aprendizados feitos enquanto os jovens estão ainda na escola, para que os jovens que não vão fazer faculdade tenham qualificações úteis, aprendidas no próprio trabalho [são as tais pontes]. Robert Reich foi bastante preciso: falou em "habilidades". E isto mesmo: o professor desenvolveria habilidades, e essa linguagem que Reich usou é a que melhor se adapta à idéia do sujeito enquanto "corpo". Reich ainda fala em mercado de trabalho, mas não mais como algo que possibilitaria aos indivíduos integrarem-se socialmente, e muito menos como o lugar de realização pessoal, mas como algo onde, se adquirirmos "habilidades", poderemos de vez em quando entrar e, talvez, viver de uma maneira menos sofrida do que os outros, por algum tempo, nos padrões da nova economia. Assim, o professor não seria mais alguém capaz de "preparar para a vida", como no discurso humanista, ou "ensinar a viver", como no discurso mais pág.31 As TEORIAS EDUCACIONAIS NA MODERNIDADE E NO MUNDO CONTEMPORÂNEO... ligado à sociedade do trabalho; estaria sendo apenas um socorro à sobrevivência. A filosofia neopragmatista e a crise da subjetividade moderna: a naturalização das relações entre o eu e o "mundo" e a emergência de uma noção forte de educação A filosofia social herdeira da análise da Velha Escola de Frankfurt e o neopragmatismo concordam em um ponto: a crise da individualidade moderna ou a crise da subjetividade moderna são, no plano estritamente filosófico, o desenvolvimento do naturalismo enquanto uma postura filosófica que vem penetrando cada vez mais nos meios acadêmicos. Porém, se a Velha Escola de Frankfurt via isso segundo óculos marxistas, como reificação, fruto das condições industriais e do capitalismo tardio, mais recentemente, o neopragmatismo viu em tudo isso uma solução intelectual também válida para um problema que aquela Escola nunca resolveu: se não confiamos mais no "sujeito", se não nos consideramos mais como indivíduos, o que devemos colocar no lugar? Qual é a nova descrição das relações entre o nos e o "mundo" que vem sendo assumida, sem deixar de respeitar essa naturalização inevitável de toda e qualquer descrição filosófica? Se olharmos não só para as análises vindas do marxismo, mas também para as novas correntes filosóficas que vieram para respeitar Darwin - de Daniel Dennett a Rorty, passando por Donald Davidson -, a fisicalização de nosso entendimento da subjetividade pode ser tomada de forma muito mais ampla. Por um lado, talvez não possamos negar que ela tenha a ver com transformações negativas que robotizam nossa vida. Há razão de ser para o pessimismo frankfurtiano. Por outro lado, ela é uma conquista do processo de melhoria de nossa capacidade de descrever a nós mesmos - um processo de desencantamento (no sentido weberiano do termo) de certas noções, o que nos 32 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS colocou, do ponto de vista da filosofia, num caminho saudável de poder descrever a subjetividade e a individualidade de uma nova, melhor e mais coerente maneira - o naturalismo historicista e uma forma renovada de nominalismo. Tal enfoque vem sendo explicitado através de um modelo fisicalista, porém não redutivista da noção das relações entre "indivíduo", "subjetividade" e realidade. Essa redescrição tem conseguido ganhos filosóficos, pois coloca a filosofia num plano coerente, no qual, até então, ela não conseguia mais se situar (a perda de credibilidade da metafísica diante da ciência, do darwinismo etc.) e, além disso, oferece também justificativas para as novas teorias educacionais, mais condizentes e, talvez, mais capazes de desafiar os problemas postos na pós-modernidade. Para exemplificar o fisicalismo não redutivista, irei expor, brevemente, como o neopragmatismo de Richard Rorty descreve as relações entre o eu e o mundo. Rorty faz um contraponto entre a sua posição e as noções metafisicas que, de certo modo, estão presentes tanto no ideal humanista quanto nas diretrizes da sociedade do trabalho, na medida em que em ambos advogava-se algum tipo de "natureza humana" para, então, tirar conclusões a respeito da infância, da educação e do professor. Segundo o neopragmatismo, poderíamos dizer que as noções adotadas pelo humatiismo e pela sociedade do trabalho são derivadas dos modos de pensar de Platão e de Kant. Platão, na visão neopragmática, teria apresentado os seres humanos como possuidores de dois eus: um eu animal, que estaria em contato, por meio dos sentidos e das paixões, com o mundo material e um eu nobre, distintivamente humano, imaterial. Na tradição que se seguiu a Platão, teria ocorrido uma associação entre a universalidade e a razão, próprias do segundo eu, o do altruísmo e da justiça, e a associação entre a particularidade e a emoção, pág.33 As TEORIAS EDUCACIONAIS NA MODERNIDADE E NO MUNDO CONTEMPORÂNEO... próprias do primeiro eu, o do egoísmo e da injustiça. O modelo neokantiano, que ter-se-ia acoplado ao modelo platônico, por sua vez, complexificou um pouco mais a subjetividade, mas não teria alterado essa noção a ponto de tirá-la da visão própria e dual da metafísica. O homem, a subjetividade individual ou, ainda, o "eu" teria sido visto pelos neokantianos segundo um modelo que contém três esferas concêntricas, cada camada de cada uma dessas esferas desempenhando um papel especial. A primeira camada, a exterior, consistiria nas crenças e desejos empíricos e contingentes; a segunda camada, a do meio, consistiria nas crenças e desejos a priori, exatamente as crenças e desejos que "estruturariam" ou "constituiriam a camada exterior; por terceiro, o núcleo, onde estaria o inefável - a residência do Imutável, do Verdadeiro, o lugar do órgão noumênico, de Fichte, da Vontade, de Schopenhauer, da Vivência, de Dilthey, da Intuição, de Bergson, mais popularmente, a Voz da Consciência, ou, ainda mais vulgarmente, o lugar que permitiria insinuações sobre a Imortalidade. Do modo como o neopragmatismo vê as coisas, concepções deste tipo, se tomadas sob as conquistas do olhar filosófico, trazem problemas para a educação. Seguindo-as, a educação teria, necessariamente, que se entender como um processo limitado de transformação da subjetividade, do homem. Um processo que, se pretende construir o homem, já de início deveria se saber parcialmente incapaz. Pois se seguimos essas concepções, o homem tem, em seu íntimo, enquanto "eu", um núcleo que não se pode alterar, seja por si mesmo seja por qualquer outro agente - tanto o "eu" nobre de Platão quanto a "esfera central" da consciência neokantiana estão para além do mundo natural, histórico e lingüístico e, portanto, para além de alterações. Por isso, a educação, do grego Platão ao frankfurtiano Adorno, ainda que com um sem-número de variações, sempre teria sido entendida, segundo o neopragmatismo, como um trabalho cuja 34 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS esperança é a de que, em algum momento da vida do educando, surjam elementos internos que poderão ser chamados de corretos, válidos, não-bárbaros etc.; e tais elementos seriam assim reconhecidos, na medida em que sempre foram inerentes ao núcleo distintivamente humano. Daí a idéia, presente no discurso educacional humanista e no da sociedade do trabalho, de que a educação é o trabalho de fazer o homem "reencontrar-se consigo mesmo", ou seja, encontrar aquele núcleo interno "humano" que haveria em cada um de nós. Assim, a educação em Platão dependeu fundamentalmente de rememoração - rememoração do "mundo das Idéias" como está no célebre A República. Em Adorno, por exemplo, ela era auto-reflexão crítica, isto é, um movimento de autodespertar da consciência que, até então, estava sob o império de processos de reificação, robotização e similares, como foi visto no famoso texto Educação após Auschwitz, dos anos 1960. Aliás, para corroborar essa análise neopragmática, lembramos que a própria palavra educação guardou essa marca metafisica. Em uma dada interpretação etimológica, educação vem do latim e- ducere, que significa conduzir (ducere) para fora (e). De Platão a Adorno, o papel da educação, segundo uma interpretação inspirada no neopragmatismo, que sempre teria estado articulado à idéia de que há um Locus central, de consistência bastante distinta do resto do campo subjetivo; e este locus deveria dar as cartas do caminho correto do processo educacional. Assim, efetivamente, esse processo poderia levar as pessoas a serem capazes de ficar com o autêntico e descartar o falso, a ficar com o bem em detrimento do mal e com o belo secundarizando o feio. A educação, de Platão a Adorno, não poderia ser nunca um processo completamente radical de autoconstrução, mas somente um processo que se limitaria a poder dar manifestação a esse núcleo imutável residente no íntimo de cada um que é o íntimo de cada um. 35 AS TEORIAS EDUCACIONAIS NA MODERNIDADE E NO MUNDO CONTEMPORÂNEO... O neopragmatismo se acredita como traçando um perfil mais plástico do "bípede sem penas", adequado a uma noção menos limitada do processo educacional. O novo modelo das relações entre o eu e o mundo proposto pelo neopragmatismo é construído teoricamente em três passos: O primeiro passo é o de aplicação do holismo. Qualquer organismo - inclusive o "bípede sem penas" - é trazido para um campo único e homogêneo. Assim, na interpretação neopragmatista, não há dois mundos, como na descrição metafísica: há um único mundo, natural, histórico e lingüístico, submetido a somente um tipo de relação: as relações causais do mundo natural. Assim, o "bípede sem penas" apresenta-se como um organismo, um corpo, que vive em todos os seus aspectos e situações, no âmbito das regularidades e contingências do mundo, completamente desencantado e naturalizado. O segundo passo é o da adoção do ponto de vista da terceira pessoa e, consequentemente, o abandono de qualquer método filosófico introspectivo ou semi- introspectivo, como o de Platão, Descartes e mesmo Kant e Rousseau. Assim, os organismos e, portanto, também o "bípede sem penas são observados pelo seu comportamento. Como o "bípede sem penas tem o comportamento particular de lançar barulhos e ruídos no ar, causando outros barulhos e ruídos, além de situações, o que deve ser observado é exata e particularmente esse comportamento - o seu comportamento lingüístico. Fazendo isso, os eventos que ocorrem no que se pressupõe ser o interior do "bípede sem penas" (para um terceiro observador da atividade comunicacional deste ser) devem seguir as leis de causação do mesmo modo que os eventos que ocorrem no seu exterior, ou seja, "no mundo". Podem-se, então, observar e/ou postular elementos internos ao "bípede sem penas" que podem ser chamados de causas internas da sua conduta. Tais causas, diz o neopragmatismo, incluem elementos que descrevemos através de tipos diferentes 36 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS de vocabulário - um vocabulário da ordem dos chamados eventos mentais e um vocabulário da ordem do que chamamos físico. Assim, podemos falar em hormônios, sinapses, múltiplas personalidades, pósitrons, crenças, desejos, estados de ânimo, enfermidades. O terceiro passo é o seguinte: o que se observa, insiste o neopragmatismo, é que temos de manter uma neutralidade ontológica: as crenças e os desejos são estados fisiológicos mas expressos num vocabulário da ordem do mental, da mesma maneira que certos relatos neurais são estados psicológicos descritos num vocabulário da ordem do físico. Isso não autoriza trocarmos os vocabulários, pois cada um é melhor para uma função prática de descrição e não para a outra. Feito tudo isso, ou seja, assumindo o "bípede sem penas" como imerso em um quadro completamente natural e histórico, e tendo assumido a perspectiva do observador (a perspectiva da terceira pessoa), podemos, então, usar a palavra "sujeito" sem medo (não precisamos mais pensar no sujeito como um ponto de conexão entre o mundo natural, que conhecemos, e o mundo transcendente e/ou transcendental, que só alguns filósofos conhecem). Se quisermos manter a palavra "sujeito", poderemos fazê-lo, mas a definiremos, agora, como "a rede de crenças e desejos que devemos postular como causas internas da conduta lingüística de um determinado organismo". Uma definição completamente naturalizada, pertencente ao movimento pós-virada lingüística, e que dispensa qualquer metafísica. Afinal, do ponto de vista da terceira pessoa, todo o comportamento lingüístico do "bípede sem penas" é visto como a causação de ruídos e barulhos no mundo, e tais ruídos provocam outros ruídos e outras situações no mesmo e único mundo (mundo ao qual o "interior" deste ser pertence integralmente); não se poderiam portanto, estabelecer hierarquias metafísicas ou epistemológicas sobre esses ruídos, podendo-se apenas chamá-los de jogos de 37 AS TEORIAS EDUCACIONAIS NA MODERNIDADE E NO MUNDO CONTEMPORÂNEO... linguagem que têm utilidades diferentes. Por exemplo, o jogo de linguagem da Física pode ser muito bom para falar de uma maçã que está na nossa frente, sob o ponto de vista do microcosmo da matéria; chamaríamos, então, essa maçã de "um conjunto de átomos". Mas para comê-la, nós a solicitaríamos ao vendedor através de um jogo de linguagem que nada tem a ver com "conjunto de átomos", mas apenas com "maçã". Mas se a comunicação é assistida por um terceiro observador, o ruído "maçã" não pode ser hierarquizado metafísica e epistemologicamente em relação ao ruído "conjunto de átomos". Em razão disto não se pode afirmar que um jogo de linguagem "diz mais sobre a realidade que o outro". Um conjunto de átomos chamado "maçã", como os físicos a descrevem, não é nem mais nem menos real do que "maçã", o nome de uma fruta para o vendedor de maçãs (e também para os físicos, quando eles saem do laboratório e comem uma maçã" - aliás, duvido que eles consigam ter a fome saciada com um "conjunto de átomos"). O sujeito assim considerado, ou seja, tomado como uma rede de crenças e desejos, os quais postulamos como causas internas de sua conduta, é, certamente, homogêneo. Suas crenças e desejos diferem entre si única e exclusivamente por graus e não por espécie. Nenhum sujeito individual, portanto, deteria crenças e desejos tão especiais, capazes de formar outras crenças e desejos, sem terem sido, por sua vez, também formados por crenças e desejos, ou sem terem sido tocados de alguma maneira. O lugar dessas crenças especiais, o "eu nobre" platônico, ou o locus central do sujeito neokantiano, desaparece completamente. Então, nesta concepção, a educação ganha uma incrível força. Uma força jamais vista. Ela é tomada como um processo sem limites - o processo pelo qual podemos, infinitamente, nos redescrever e, assim, construirmo-nos e reconstruirmo-nos indefinidamente. No neopragmatismo cai por terra a idéia de fazer da educação o processo de nos reencontrarmos com nós 38 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS mesmos, a idéia platônica de nos vermos novamente diante daquilo que vimos no "mundo das Idéias", ou a idéia tanto rousseauniana quanto adorniana de fazer emergir um "elemento íntimo", bondoso e correto, que estava abafado por mecanismos sociais ou psicossociais - a educação como desideologização, desalienação etc. Assim, no neopragmatismo, a educação deixaria de ser tomada como um processo de eficácia duvidosa, que deveria, sempre, vir de chapéu na mão pedir à filosofia, ou às ciências da educação, "fundamentos" (metafísicos, epistemológicos, científicos etc.). A educação poderia, então, assumir o sentido que Dewey lhe conferiu: unicamente, um processo de crescimento contínuo. Podemos empurrar esse crescimento para um lado ou para o outro - isso dependerá de nossas redescrições, de nós mesmos e do mundo (da sorte, em grande medida). Nossas redescrições são, portanto, construtoras de vocabulários de deliberação moral e política de transformação social. A educação, no neopragmatismo, ganha uma conotação que depende menos da filosofia, tradicionalmente falando, passando a ser uma intervenção discursiva nitidamente política. Neste caso, a didática enquanto um campo que deve preparar pessoas para "organizar e otimizar processos de ensino-aprendizagem", pode olhar para a filosofia e para as ciências da educação sem solicitar fundamentos - mas como atividade colaboradora em atos lingüístico- políticos de redescrição de nós, por nós mesmos, e do mundo, por nós mesmos. 39 CAPÍTULO II As teorias educacionais e as didáticas na modernidade e pós-modernidade Herbart, Dewey, Paulo Freire e a postura pós-narrative turn TENDO EM MENTE O PANORAMA GERAL exposto no item anterior, passo aos principais modelos de teorias educacionais dos tempos modernos e contemporâneos, e às possibilidades das teorias educacionais e didáticas no mundo pós-moderno. A maioria dos livros que dissertam sobre didática é feita a partir do que eu chamaria de pensamento classificatório. Coloca várias tendências e correntes em didática e, obviamente, finaliza com a tendência que o autor classificaria como "correta". Vários textos sobre o assunto, produzidos na década de 1980, no Brasil, na onda do que chamei de "marxismo pedagógico ou pedagogicista"2 seguiram esta fórmula e, não raro, criaram um público que, ao ouvir falar de didática (ou mesmo de filosofia da educação!), espera exatamente esse tipo de comportamento: um rol de tendências seguido por uma proposta "superadora". A meu ver, esse tipo de trabalho, que veio na esteira de uma vasta produção de teses geradas nos programas de pós- graduação em Educação durante os anos 1980, atrapalhou mais a discussão em teoria educacional e didática do que ajudou. Tratava-se de trabalhos rodapé 2 Em minha tese de livre docência, nomeei Dermeval Saviani, em virtudes e defeitos, como o mentor maior desse tipo de marxismo, nos anos 1980: Educação e razão histórica. São Paulo: Cortez, 1994. 40 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS produzidos por um pensamento classificatório envolto em marxismo. O roteiro aqui é outro. Serão apresentados somente três grandes paradigmas (no sentido de Kuhn) de teorias da educação e, adicionada a eles, a descrição de um procedimento pedagógico que poderia ser visto como típico de uma das possibilidades da consciência pós-moderna, mas que devido à sua pouca consistência interna, talvez não possa ser chamado de teoria educacional. Aliás, dado as próprias características do discurso pós-moderno, talvez essa postura nunca venha a poder se configurar como uma verdadeira teoria educacional. Todavia, para efeito comparativo, eu a tomarei sob a forma de cinco passos e lhe atribuirei, forçadamente, um estatuto de teoria educacional. Inclusive irei denominá-la "teoria educacional pós-moderna" ou "teoria educacional pós-narrative turn" (afinal, há vários professores, no Ocidente, hoje em dia, trabalhando dentro dessa Linha) .~ As teorias educacionais aqui desenvolvidas são a dos seguintes autores: o alemão J. E Herbart, o norte-americano John Dewey, e, o brasileiro Paulo Freire. Por sua vez, o procedimento pedagógico pós-moderno está configurado no que chamo de narrative turn ("virada" em favor das narrativas), e se pudesse estar ligado a algum pensamento seja em filosofia seja em filosofia da educação, estaria, a meu ver, articulado às contribuições de Richard Rorty e Donald Davidson. Abaixo, segue um quadro, que visa estabelecer um elo, ainda que nem sempre possível de ser tomado ao pé da letra, entre os complexos discursivos analisados no item anterior e as teorias da educação e didáticas aqui apresentadas. rodapé Entre outros artigos que exemplificam essa postura, o leitor poderá localizar tanto o meu texto quanto o texto de Nick Burbules, no livro O que é filosofia da educação? Rio de Janeiro: DPA, 2000. Poderá, também, consultar: BLAKE, NIGEL e outros. Thinking again - education afterpostmodernism. Londres: Bergin & Garvey, 1998. Pág. 41 As teorias educacionais humanistas são muitas. Escolhi a de Herbart porque é a forma pela qual o humanismo se cristalizou, em termos pedagógicos, no século XIX, já num período avançado da sua trajetória. Parece que Herbart apresenta a teoria educacional humanista em sua forma mais acabada. Escolhi J ohn Dewey não exclusivamente porque foi o maior e mais influente filósofo e teórico da educação do século XX, mas também porque transitou entre valores humanistas, princípios da sociedade do trabalho e, ao mesmo tempo, aderiu às críticas ao industrialismo e às injustiças dessa mesma sociedade, no ambiente onde o industrialismo mais se desenvolveu: os Estados Unidos. Escolhi Paulo Freire porque substituiu John Dewey, no final do século XX, tanto no pertencimento às diretrizes da sociedade do trabalho quanto nas críticas a esta, mas levando em conta os povos pobres, os desenraizados, e a partir dos fenômenos de urbanização e fim do neocolonialismo, no espaço emergente do que recebeu o nome de Terceiro Mundo. Além disso, sincreticamente, muito do vocabulário de Paulo Freire ainda se mantinha no tom humanista, dando características bastante amplas ao seu discurso - não por acaso, mesmo falando a partir do Terceiro Mundo, ele foi ouvido em todo o Ocidente. Por fim, tento estabelecer o que seria uma postura pedagógica de professores 42 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS mais envolvidos com o clima pós-moderno. Não se trata de dizer que esta postura é melhor do que as anteriores, mas apenas de constatar sua existência num discurso pedagógico que passa, acentuadamente, pela importância de considerarmos os saberes como sendo saberes narrativos; estes, para vários professores, não podem mais ser hierarquizados epistemologicamente e, portanto, se apresentar no ambiente da escola sob a forma hierárquica moderna, isto é, com as ciências que consideram que "apreendem o real" tendo importância a priori sobre as narrativas ficcionais e históricas. Além do mais, da maneira que Rorty e eu lemos Davidson, penso que estamos vivendo, na filosofia da educação, na teoria educacional e na didática, um momento especial para a metáfora, segundo um entendimento não tradicional desta palavra. Assim, não cabe, em "teoria educacional pós-moderna", no veio da postura "pós- narrative tum", uma reformulação explícita sobre o que são a criança (infância), o homem, o professor, os objetivos educacionais, etc. Todos esses elementos próprios da didática, muitas vezes, são os mesmos que vigoraram em diversas fases da modernidade. O que realmente muda na adoção da teoria educacional pós-narrative turn, é que ela constrói um discurso educacional que não depende de epistemologia e cuja filosofia da semântica possui um entendimento davidsoniano da metáfora - este é seu grande trunfo e sua novidade (e sua despedida da ontologia). Teorias educacionais modernas: Herbart, Dewey e Freire O quadro abaixo explicita uma comparação entre o modelo de teoria educacional humanista, em seus procedimentos didáticos, e o modelo de teoria educacional sob a influência dos valores da sociedade do trabalho, levando em conta também os seus procedimentos didáticos. 43 AS TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS MODERNIDADE Para Herbart, o processo de ensino deveria cuidar da moralidade. Esse seria o objetivo do ensino. A moralidade era, para ele, "liberdade, perfeição, boa vontade, direito e retribuição". Ela poderia vingar se o ensino fizesse do homem um ser autodeterminado. Em suas palavras, "um homem bom comanda a si próprio". Em termos da psicologia, sua doutrina do interesse foi o ponto mais significativo, a contribuição mais sofisticada e marcante e, depois, seu calcanhar de Aquiles. O interesse seria uma tendência íntima, que ocasionaria a retenção de um objeto de pensamento na consciência ou o seu retorno a ela. Essa retenção e retorno ficariam sempre em débito para com as idéias (conceitos). As idéias, pela sua própria natureza, gostariam sempre de voltar à consciência, se nela já tivessem estado alguma vez. Poder-se- ia facilitar o interesse fazendo presentes as idéias e estas, por sua vez, estariam presentes através da maior freqüência e associação. Herbart não admitia qualquer distinção entre instrução e educação. Sua doutrina era a da "instrução educativa": quanto mais idéias claras e verdadeiras na consciência, mais teríamos uma criança e, posteriormente, um homem, com boa conduta. 44 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS Ou, nas palavras do próprio Herbart: "a disposição do coração (...) tem sua fonte na mente (...), sentir e desejar são condições e, na maior parte, condições mutáveis de conceitos". Assim, fazendo da ética humanista (a autodeterminação para ser bom) a finalidade da educação, e da psicologia, o meio (massas de pensamento - idéias e conceitos - dirigem o interesse), Herbart fixou seus procedimentos didáticos em cinco passos: preparação, apresentação, associação, generalização e aplicação. Os cinco passos de Herbart podem ser vistos no quadro abaixo: Preparação Momento em que as idéias passadas, relacionadas com a presente lição, são trazidas para o centro das atenções. Assim, surge o interesse vital pelo novo material e o aluno pode estar preparado para dar atenção ao conteúdo da nova lição. Apresentação Momento da "clareza", ou seja, da apresentação nítida da idéia em termos os mais concretos possíveis. Associação Momento de assimilação da idéia nova, o que ocorre na percepção da idéia nova pela antiga. Momento de comparação - diferenças e semelhanças entre o velho e o novo conteúdo, preparando a indução. Generalização Momento em que o raciocínio é posto para trabalhar no sentido de sair do campo do individual, e formular Aplicação Exercício do novo conhecimento, o que significa que toda idéia nova deve constituir uma parte da mente funcional. Como disse, o ponto central da teoria educacional de Herbart era a doutrina do interesse. Ela se tornou seu calcanhar de Aquiles, quando a nova psicologia veio negar qualquer teoria na qual o sentir e o querer fossem funções secundárias do processo ideativo. Entre outros, John Dewey formulou isso de modo exaustivo, podendo, então, ser comparado a Herbart, em termos de passos psicológicos, psicopedagógicos e didáticos. 45 As TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE O raciocínio não funcionaria como Herbart apontou, mas, através de uma outra seqüência, o que determinaria uma outra estrutura didática, como no quadro abaixo: 1. Atividade e Os estudantes são colocados em atividade, pois é dela pesquisa que emerge o primeiro passo da aprendizagem: a consciência de uma dificuldade, de um problema, de uma necessidade. 2. Escolha e/ou Os estudantes são instigados a examinar a situação, como formulação de é próprio da mente humana, que, ao defrontar-se com problemas um problema, analisa seus vários elementos, e localiza o cerne das dificuldades e o fator de importância mais 3. Arrolamento O estudante é solicitado a fornecer elementos para a de dados formulação de hipóteses. 4. Construção Professor e estudante formulam hipóteses. de hipóteses 5. Avaliação de As hipóteses são postas à prova, por experimentação direta hipóteses e/ou ou indireta. experimentação Portanto, a seqüência do raciocínio e, ao mesmo tempo, do procedimento de ensino-aprendizagem - valendo também para o procedimento de pesquisa - estaria, para Dewey, em oposição ao método de Herbart, na medida em que os interesses não apareceriam senão quando temos uma dificuldade, um problema, uma necessidade. E isto, um tanto independentemente do quanto temos de idéias claras e nítidas sobre a dificuldade experimentada. Aqui, abro parêntese. Vários autores criticaram Dewey, dizendo que substituíra o processo de ensino pelo processo de pesquisa, e Herbart, não. Então, Dewey estaria errado. Porém, errado estava quem pensou assim. E simples constatar que tanto Herbart quanto Dewey derivaram suas didáticas a partir de suas 46 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS teorias a respeito do funcionamento psicológico. Ambos viram os homens, e a criança em especial, como seres que pesquisam, e por isso, aprendem. O problema é que Dewey queria mostrar que a pesquisa, era a mesma que o moderno cientista de laboratório fazia, ou qualquer outro intelectual que seguisse uma heurística, e que isso estava mais condizente com a modernidade do que a maneira como Herbart via a mente atuando. Mas não foi só nessas coisas que Dewey divergiu de Herbart e do seu projeto humanista. Valorizou e, ao mesmo tempo, criticou a modernidade e, no seu interior, o industrialismo ou, dito em termos específicos, o capitalismo. Vou ao ponto em que Dewey valorizou o industrialismo. Ele valorizou o mundo da sociedade do trabalho na medida em que colocou a atividade e o esforço ativo diante de problemas como o ponto de partida da educação. Valorizou o mundo da sociedade do trabalho no que este tinha de mudancista: sua teoria educacional, ao contrário da de Herbart, não colocava um tipo fixo de homem a ser alcançado. A sociedade do trabalho, como uma sociedade dinâmica, deveria estar se transformando continuamente e, nesse sentido, Dewey viu a educação como "o processo de reconstrução da experiência, dando-lhe um valor mais socializado por meio do aumento das capacidades individuais". Assim, pode-se dizer, os cinco passos didáticos de Dewey são, em verdade, seis passos: há um passo que é o próprio processo: o aprender a aprender. Mais do que a conclusão de cada lição do processo de ensino-aprendizagem, o que valeria a pena, é que ele estaria treinando os indivíduos para a pesquisa, para o que seria o trabalho natural da mente - resolver problemas novos. Ser um bom ser humano, para Dewey, não era ser alguém com erudição, mas alguém capaz de resolver problemas. Daí que, neste aspecto, Dewey não podia divergir daqueles que viam o seu método de ensino - o ensino ativo - como estando em comunhão com a idéia de que o homem é naturalmente ativo, 47 As TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE em uma palavra, transformador. Em termos socioescolares: alguém que deveria se tornar integrado socialmente na medida em que continuasse a ser ativo. O adulto continuaria a ser ativo na medida em que, enquanto adulto, fosse industrioso, trabalhador - um profissional. Agora, a sua crítica à sociedade do trabalho. Dewey, como já adiantei, não foi o filósofo da sociedade do trabalho, e, sim, "o filósofo da democracia". Sabia muito bem que o industrialismo e o capitalismo poderiam corroer o espírito de aventura que a sociedade do trabalho colocava, em contraposição aos tempos estagnados da mentalidade pré-moderna, feudal e medieval. O problema da teoria educacional de Dewey foi, então, o de poder conciliar o dinamismo da sociedade do trabalho com a sua própria e eterna capacidade de interferir neste dinamismo sufocando a democracia. Sem democracia não haveria educação, dado que a democracia é a diversidade, e, a educação, para Dewey, é o processo de crescimento para a obtenção de possibilidades de novas experiências. Por isso mesmo, o filósofo norte-americano, contemporâneo de Dewey, Sidney Hook, escreveu, em 1939, no livro John Dewey - an Intellectual Portrait: A situação histórica, hoje, na América, é que os educadores têm um número de tarefas importantes para realizar. Uma vez que as condições efetivas do ensino dependem, em larga medida, do que acontece fora da sala de aula, os educadores devem se opor vigorosamente diante de qualquer medida que tenda a restringir ou proibir seus direitos civis como membros da comunidade. A crença de que os professores são ou deveriam ser eunucos políticos é de morte difícil, numa sociedade onde eles são selecionados, entre outras razões, pelo fato de serem considerados como estando "a salvo". Ao mesmo tempo, devem combater a introdução de qualquer dogma que determine o conteúdo da instrução. Alguns desses dogmas são, obviamente, políticos, especialmente onde aparecem vestidos com as assim chamadas verdades "nacionais", raciais ou classistas 48 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS Alguns são filosóficos, começam a partir de aparentes truísmos e terminam como absurdos perigosos. Os truísmos consistem sempre em declarações sobre a desejabilidade da ordem e da razão nas coisas humanas. As declarações são inegáveis porque seus principais termos não estão definidos ou, quando estão, revelam-se como tautologias. Os absurdos perigosos são encontrados em deduções cuja pretensão é a identificação da ordem como um conjunto particular de crenças - a ordem particular e as crenças particulares de uma era longínqua e passada cuja aceitação seria bem útil para algum partido ou igreja, no presente. A evidência dessas crenças não é tirada de investigações empíricas, pois estas podem, resultar somente em opinião sem valor, mas da introdução de truísmos sobre a necessidade de ordem e razão, no abstrato. (...) O comportamento imediato da teoria educacional de Dewey é o mesmo de sua teoria moral e social. Elas clamam por uma dedicação à luta, em termos práticos, pela ampliação da democracia, por meio de métodos da inteligência, ou seja, métodos de investigação científica que vençam o princípio da autoridade para resolver problemas humanos, até agora exercido pelo dogma, sagrado ou não, pelo poder econômico e pela força física. Hook estava certo na avaliação da teoria educacional de Dewey. E seu acerto significa o momento propício para apontar o erro de muitos críticos, em particular, no Brasil, que procuraram ver em Dewey alguém que teria levado o culto à técnica e à prática cega - certamente frutos da sociedade do trabalho - para o âmbito educacional, esquecendo-se da educação como elemento político. No Brasil dos anos 1980 -já declarei isto em outros textos:4 tanto os educadores considerados de direita (José Mário Pires Azanha, à frente) O leitor poderá encontrar essas minhas críticas de um modo mais detalhado, inclusive do ponto de vista da filosofia, entre outros, na coletânea: MONARCHA, CARLOS. História da educação brasileira -formação do campo. Ijuí: Editora da UNIJUI, 1999. 49 As TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE quanto os que se auto-reivindicavam como pertencentes àesquerda marxista (José Carlos Libâneo e Dermeval Saviani àfrente) ,~ fizeram a leitura de Dewey - justamente o filósofo da democracia - como um "tecnicista" ou alguém que teria dado margem para o "tecnicismo" em educação. Mas a fala de Hook é adequada: a teoria educacional de Dewey era política, em favor da ampliação da democracia. Rorty, por sua vez, chega a dar um passo a mais que Hook, levando em conta essa passagem final do trecho citado: para Rorty, Dewey acreditava menos na ciência do que Hook pensou; a ciência seria só um instrumento negativo nas mãos de Dewey para fustigar os dogmas. Se Levarmos em conta o que Hook e Rorty escreveram deveremos, então, considerar com olhos atentos a postura de Paulo Freire: sendo aquele que enfatizou a educação como ato político, teria sido mais herdeiro de Dewey do que ele mesmo quis admitir em alguns momentos de sua vida, principalmente naqueles em que o liberalismo e a postura democrática de Dewey estavam em baixa, no Brasil. Mas Paulo Freire, no final da vida, declarando-se seguidor de Anísio Teixeira, redimiu-se e mostrou uma face mais justa de sua rodapé Avalio que Saviani e Azanha interpretaram Dewey, e todo o movimento de renovação educacional, como dando margem ao que eles chamaram de tecnicismo em educação, por causa de uma compreensão aligeirada do pragmatismo (talvez um preconceito contra a filosofia norte-americana - conhecemos o xenofobismo de "direita" e de "esquerda" no mundo todo, e, no Brasil, não foi diferente). Já no caso de José Carlos Libâneo, avalio que se deixou levar pelas palavras - e não pelo espírito - do livro de Vanilda Paiva, Educação popular e educação de adultos, que chamava os pioneiros da educação nova de "técnicos". Ora, Vanilda Paiva assim o fez para mostrar que eram especializados em estudos educacionais, e não para dizer, como interpretou Libâneo, a meu ver erradamente, que tinham um pensamento estreito ou despolitizado. O "pioneiro da educação nova", Anísio Teixeira, foi, no Brasil, o filósofo da democracia, a exemplo do seu mestre, Dewey, em todo o Ocidente. 50 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS teoria educacional: sua herança em relação ao pragmatismo norte - americano. 6 Paulo Freire: educação libertadora versus educação bancária Paulo Freire, como Dewey, via a educação imbricada na política. Ao mesmo tempo, em termos de didática, aceitou de Dewey os pressupostos do ensino ativo. Todavia, diferentemente de Dewey, Paulo Freire construiu uma teoria educacional não a partir de um lugar que caminhava em direção ao Welfare State keynesiano, mas a partir de um descaminho de um possível Welfare State que se insinuou em vários países do Terceiro Mundo, mas que, até hoje, não se tornou realidade. Por essa razão, a teoria educacional de Paulo Freire tornou-se uma outra face, também com momentos bastante críticos, do industrialismo e das diretrizes mais perversas da sociedade do trabalho. Os passos didáticos de uma teoria educacional inspirada na prática de Paulo Freire só podem ser entendidos na sua concorrência com o que ele qualificou de "educação bancária" - talvez uma primeira tentativa, depois de Dewey, de identificar o que estaria ocorrendo com a pedagogia e a didática na derrocada do humanismo e na emergência da sociedade do rodapé Paulo Freire, em determinado momento, gostava mais de ser identificado como marxista do que como alguém que tinha a ver com os métodos pedagógicos de Dewey. Como homem político (que, inclusive, chegou a ocupar cargos na política brasileira, a exemplo de secretário da educação do Partido dos Trabalhadores, na prefeitura de São Paulo durante a gestão Erundina), Paulo Freire caminhou ao sabor dos ventos ideológicos do seu país e dos países onde esteve. A aproximação com o marxismo de tipo jacobinista foi uma fase de sua vida que acabou nublando seu maior comprometimento com a herança pragmatista. Numa de suas últimas entrevistas, em Nova York, Paulo Freire elogiou abertamente Anísio Teixeira. No livro Paulo Freire -urna biobibliografia, publicado pela Cortez, em 1996, há uma clara admissão das ligações entre Paulo Freire e Dewey. Os autores do livro, todos discípulos de Freire, àquela altura, já não precisavam se desculpar por serem "escolanovistas", e, portanto, não mais precisaram ocultar a ligação saudável entre Paulo Freire e o americanismo. 51 AS TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE trabalho. Algo que, no item anterior, levamos ao limite, expondo as críticas da Velha Escola de Frankfurt à educação transformada em mero adestramento. Nos termos do que afirmei anteriormente, diria que, para Paulo Freire, a educação bancária era o adestramento do corpo, a idéia de que, sendo o homem "corpo", é objeto manipulável, uma caixa onde se depositam saberes. Como saberes nunca devem ser depositados, o que se deposita, na verdade, são coisas, dogmas. Em seus primeiros escritos, Paulo Freire via o homem como possuindo uma vocação para sujeito da história e não para objeto, mas, nas condições do Terceiro Mundo, esta vocação não estaria se explicitando, dado que as populações mais pobres teriam sido vítimas de uma mentalidade paternalista e autoritária, herança do colonialismo, neocolonialismo e escravismo. Fazia-se necessário, segundo Freire, romper com isso, "libertar o homem popular" de seu tradicional mutismo. A educação deveria, então, folar uma nova mentalidade, trabalhando para a "conscientização do homem" de cada país do Terceiro Mundo, frente aos seus problemas nacionais, e engajar este homem na luta política. Tal concepção denunciou a educação vigente como colaboradora do mutismo do povo. A escola oficial, além de autoritária, estaria a serviço de uma estrutura excessivamente burocratizada e anacrônica incapaz de colocar-se "ao lado dos oprimidos". Procurando identificar-se com os oprimidos - aqueles que "não têm voz na sociedade, mas que, obviamente, ao contrário do que diziam as elites, "também produzem cultura" -'Freire buscava uma educação comprometida com a solução dos problemas da comunidade. A idéia de comunidade permaneceu então, como um ponto de partida e um ponto de chegada da teoria educacional freireana (como em Dewey e Anisio Teixetra). Daí as teses do ensino articulado aos regionalismos ao comunitarismo, aos costumes e à cultura do local de vida da população a ser educada. Diga-se de passagem, que em alguns 52 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS momentos, isso seguiu por vias radicais, causando problemas de interpretação, no Brasil. Neste país, ao contrário dos Estados Unidos, a história da escola fez-se através da ligação das elites com o Estado, seguindo os modelos francês e alemão. Nos Estados Unidos, a escola sempre foi paroquial, comunitária. Paulo Freire, como Anísio, no passado, adotando o comunitarismo, nem sempre forneceu ao Brasil uma pedagogia capaz de ter êxito em alguns lugares com total falta de tradição comunitária (embora em alguns locais, com certa tradição no comunitarismo, colônia de imigrantes, por exemplo, ela tenha caminhado de modo mais fácil, como foi o caso do Rio Grande do Sul). Na visão de Paulo Freire, a industrialização e a urbanização, enfim, o progresso, trouxeram a preocupação com as populações migrantes - as levas de pessoas que deixavam a vida rural e migravam para as cidades, ficando, então, à mercê da "demagogia dos políticos" e da "manipulação através dos meios de comunicação de massa". Contra tal manipulação, Freire propôs a "desalienação do povo" através da instauração de uma "pedagogia do diálogo", que deveria ter por regra a horizontalidade entre educador e educando. Tal diálogo, em suas próprias palavras, deveria ser o "diálogo amoroso - o encontro de "homens que se amam e que desejam transformar o mundo". Este diálogo deveria partir de situações vividas pelo educador e pelo educando, na comunidade deste último. Depois, deveria ser aprofundado através do esforço intelectual da "problematização", colocando, assim, os educandos em condições de alcançarem uma "visão critica" de suas realidades. Esse processo, na sua completude, recebeu a denominação de "conscientização". A conscientização seria a arma contra a "educação bancaria" - a educação defensora do status quo vigente, calcada numa "ideologia de opressão" que, segundo Freire, considerava o aluno como alguém despossuído de qualquer saber e, por isso mesmo, As TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE 53 destinado a se tornar depósito dos dogmas do professor. Assim, como Dewey, Paulo Freire visou à educação contra o dogmatismo. Também como Dewey, recusou a idéia de uma educação onde os alunos fossem passivos diante da ação pedagógica. Contra o que seria a educação bancária, Paulo Freire elaborou um procedimento que, para efeito de comparação com Herbart e Dewev, ilustro sob a forma de cinco passos didáticos: Vivência e pesquisa: Momento em que o educador vive, realmente, na comunidade do educando, participando de sua linguagem e de seus problemas. Neste passo, Paulo Freire quer que a dicotomia educador- educando desapareça, dando lugar ao educando- educador-educador-educando. E neste momento em que o educador começa a recolher o que serão os "temas geradores" ou "palavras geradoras". Eleição dos temas geradores: A partir da vivência, o educador recolhe temas e palavras e passa a organizar junto com os educandos os "círculos de cultura", o grupo onde aconteceria o "diálogo amoroso , humilde, horizontal entre educando-educador e educador- educando. O "método dialógico" aqui empregado, consistiria na explicitação do relato dos participantes a respeito de suas experiências de vida, suas dificuldades e problemas. O "animador" do "centro de cultura", uma vez tendo vivido na comunidade, estaria apto a resgatar, nesse momento, os "temas geradores" e as "palavras geradoras", já previamente "sentidos" por ele próprio na comunidade, como que espelhando dificuldades. "Problematização através do diálogo ": A "problematização" implicaria a idéia de que "ninguém educa ninguém", e também de que ninguém se educa a si mesmo", mas "os homens se educam em comunhão", "mediatizados pelo mundo". Como escreveu Paulo Freire: a problematização se faria, assim, através do esforço pelo qual educadores e educandos iriam percebendo, criticamente, como "estão sendo no mundo com que e em que se acham". "Conscientização" : Através da "problematização", educador-educando e educando- educador poderiam fixar o ponto de partida para a "conscientização". Caberia ao educador-educando problematizar a visão de mundo dos educandos-educadores que, por uma série de razões, poderiam não estar aptos a entender a realidade criticamente. A "conscientização" exigiria o "pensar crítico", capaz de procurar a "causalidade profunda" dos acontecimentos, fazendo o "desvelamento da realidade". Ação social e política: A "conscientização" se completaria na ação social e política - na "práxis social" de busca de "libertação de todos os homens da opressão". Uma teoria educacional e uma didática pós-modernas: a educação pós-narrative turn A seguir, apresentarei as quatro teorias educacionais: a de Herbart, Dewey, Freire e a "teoria educacional pós-moderna" ou, melhor, "pós-narrative turn". Feito isso, irei explicar os passos desta última. Hebart: Preparação ,Apresentação e Associação Dewey: Atividade, problemas e dados Freire: Vivência, Temas geradores e ProbLematização Pós-Narrative tum: Apresentação de problemas , Articulação entre os Problemas Apresentados e os problemas da vida cotidiana, Discussão dos problemas através de narrativas tomadas sem hierarquização epistemológica As TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE 55 Generalização: Aplicação Hipóteses: Experimentação Conscientização: Ação política Formulação de novas narrativas: Ação cultural, social e política Os passos que seguem dizem respeito à postura pós-moderna ou à teoria educacional pós-narrative turn. Seu ponto central, em termos de filosofia da educação é a valorização da narrativa e, no seu interior, o uso da metáfora - segundo o novo entendimento dado por Davidson, como Rorty e eu o lemos. Passo 1. O início do processo ensino-aprendizagem, segundo a postura pós- moderna, se dá pela apresentação direta de problemas e situações problemáticas, ou mesmo situações curiosas e difíceis. Mas que tipo de problemas e/ou situações problemáticas? Problemas culturais, éticos, étnicos, de convivência entre gêneros, mentalidades e modelos políticos diferentes, desafios ecológicos, problemas de pauperização de determinados setores sociais, de violência contra os mais fracos, etc. Esses problemas são apresentados pelo cinema e pelo romance passando pelo conto, comic books, música, poesia e teatro, reportagem jornalística, novos meios de comunicação como a Internet e apêndices etc. Todavia, há de se lembrar, esses meios serão tomados como mais do que simples veículos: serão levados a sério como nunca, pois os problemas não existiriam sem eles. Passo 2. Na seqüência, o processo ensino-aprendizagem visa relacionar as situações problemáticas e os problemas propriamente ditos com os problemas da vida cotidiana dos estudantes, dos seus avós e pais, enfim, do seu grupo social ou familiar ou de amigos, e até mesmo do seu país - presente, passado e futuro. Aqui, o estudante é convidado a ser um personagem da narrativa contada no passo anterior e, ao mesmo tempo, um filósofo, isto é, segundo Nietzsche, um juiz dos desdobramentos 56 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS internos da narrativa. Segundo Richard Rorty, em discussão com Carol Nicholson:7 há um momento na educação, ainda em sua fase puramente socializadora, no qual já podem ir ocorrendo a individualização e a educação para a liberdade - isto se dá quando as crianças e jovens são convidados a ver suas vidas individuais e cotidianas inseridas numa espécie de "romance nacional". Se o estudante aprende a ver sua vida inserida em um romance nacional pode, ele próprio, desejar ser um dos heróis nacionais que darão continuidade à luta pela liberdade, como fizeram os heróis do passado (toda cultura possui seus heróis libertários). O problema, diante das crianças, é saber distinguir quem é o herói: seria saudável, diz Rorty, que as crianças aprendessem que ser americano é ser menos parecido com John Wayne do que com Martin Luther King. Eu diria, para o caso brasileiro: seria melhor que as crianças brasileiras gostassem mesmo de Tiradentes, e que não levassem ao extremo a idéia do Duque de Caxias como necessariamente o único e grande herói nacional. Seria melhor que as crianças brasileiras gostassem mesmo de gente como Florestan Fernandes enquanto deputado, mas que fossem céticas quanto à utilidade de um Jânio Quadros, de um Castelo Branco, de um Maluf ou de um "Ratinho" (que foi deputado e passou a ser animador de TV). Passo 3. O terceiro momento é o de redescrição das narrativas nas quais os problemas estavam inseridos; dá-se através de outros tipos de narrativa - de ordem ficcionaL, histórica, científica e filosófica. O importante é que o estudante perceba que essas narrativas que redescrevem as primeiras não estão hierarquizadas epistemologicamente. Não há uma narrativa que apreende a realidade como ela é. Mas há, em cada uma, jogos de rodapé 7Traduzi os textos do debate educacional de Rorty e Nicholson, e outros, nos volumes 1 e 2 de Filosofia, sociedade educação - publicação do Grupo de Estudos e Pesquisas em Pragmatismo e Filosofia Americana - (wwwfilosofia.pro.br). As TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE 57 linguagem distintos que estão aptos, pragmaticamente, para uma coisa e não para outra. Se quero saber como uma nave espacial funciona, então, um bom vocabulário é o dos físicos, mas se quero dizer para minha namorada como a nave atravessa os céus, numa noite estrelada, creio que seria melhor um vocabulário ficcional - acho que seria pedante e inútil para o namoro a explicação da Física! Penso que, neste caso, deveríamos ir de Júlio Verne! Mas o erro seria achar que, no segundo caso, estou no campo metafórico, e no primeiro, no campo literal, e que ambos os campos estão nitidamente delimitados. Trata-se de vocabulários incomensuráveis cuja distinção se dá pela utilização lingüística que o "bípede sem penas" faz deles. A redescrição de um filme ou de uma história em quadrinhos não necessariamente precisa ser outro filme ou outra história em quadrinhos, pode ser um texto filosófico ou científico - até é bom que seja assim, contanto que não façamos a sociologização de Machado de Assis, como fez uma geração de marxistas, denegrindo a obra. O importante é o entendimento de que essa redescrição não está ali para desvendar o que havia de essencial e de verdadeiro na primeira narrativa. Não há uma chave para se chegar mais próximo da realidade, como não há uma chave para desvendar a interpretação correta. Aliás, neste passo, há uma maior distinção entre a didática pós-moderna e a didática herdeira das tendências críticas como a de Paulo Freire. Trata-se da desvinculação entre o pensamento educacional pós- moderno e o movimento crítico em educação. A idéia de crítica, no seu sentido forte, pressupõe a idéia metafísica de que existiria uma realidade última capaz de ser desvelada, justamente, pela crítica. Em razão disso, educação, nessa perspectiva, seria "iluminação", "desideologização", "desalienação" etc. (a catequização invertida!). Na tradição "crítica", a educação sempre foi derivada do platonismo: sempre esteve ligada à idéia da fuga do prisioneiro da caverna que, ao ver a luz do sol, encontra a "verdadeira 58 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS realidade" e se livra do "mundo das sombras" - como na Alegoria da Caverna, que está na República, de Platão. No movimento pós-moderno, esse chão metafísico é considerado inútil, pois todas as narrativas são distinguíveis não por estarem umas mais, outras menos enganchadas no "mundo", mas sim, por serem umas mais úteis, e outras menos úteis segundo nosso expediente. Dispensa-se a ontologia, portanto. Não há uma narrativa que tocaria o chão ontológico mais que outra. Assim, a educação, na didática pós-moderna, fornece passos através dos quais professores e alunos podem realmente caminhar juntos, aplicando as narrativas a uma agenda de expedientes construída em comum, sem que o professor tenha a missão de "desalienar" o aluno. Passo 4. Neste estágio, o estudante é convidado, ele próprio, a propor suas narrativas de redescrição das narrativas em que estavam inseridos os problemas, e a discutir a sua pertinência com os colegas, com o professor, com os livros e outros meios. Este é o momento da criação, da imaginação e, portanto, pode se tornar o auge do processo de surgimento de metáforas. A metáfora - isto é importante - é o momento da quebra da comunicação. Ela interrompe o fluxo comunicacional e, mesmo não tendo mensagem alguma (pois, é isto mesmo que ela é: algo sem mensagem), deve fazer tremer a linguagem estabelecida. Agora, se ela vai provocar situações boas ou ruins, vai depender única e exclusivamente de como será adotada em um jogo de linguagem, ou como forjará um novo jogo de linguagem. O professor pós-moderno é alguém atento ao momento metafórico. Se for esperto, pode conseguir levar as metáforas para caminhos interessantes, bons - em favor da democracia. Mas que fique claro: nem sempre a metáfora acontece; por isso, nem sempre estamos no passo 4 quando queremos estar. A metáfora pega-nos de surpresa. As TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE 59 Passo 5. Por fim, o que se tem, é a coleta das idéias e sugestões vindas das narrativas e suas redescrições, para a condução intelectual, moral e estética, no campo cultural, social e político de cada um. Cabe aqui, a ação moral e pessoal, mas, também, a ação política organizada, inclusive a ação político- partidária. No entanto, é necessário lembrar que a própria formulação de uma narrativa e sua divulgação, a criação de uma nova metáfora que, não só garanta direitos democráticos, mas invente outros direitos, já é uma ação política. Redescrever é um ato que afeta a polis. Talvez o único ato que sempre fez o mundo mudar, quando ele mudou! Se os professores pós-modernos e os teóricos da educação quiserem uma justificativa para esses procedimentos, vão facilmente encontrá-la, no passado, em germe, nas formulações da filosofia da linguagem e do pragmatismo de Nietzsche e de William James. Afinal, foram eles os pioneiros na argumentaçao que borrou a nítida linha que separava o que é metafórico do que é literal. Foi Nietzsche quem, no final do século XIX, colocou a linguagem num plano articulado ao plano social, e definiu a própria verdade como metáfora. Mas se os professores pós-modernos e os teóricos da educação quiserem elaborar melhor uma filosofia da educação adequada aos procedimentos dos cinco passos acima, e para tal, quiserem utilizar a linguagem atual da filosofia, penso que a leitura dos textos de Donald Davidson é o suficiente. Principalmente, na formulação dada por Richard Rorty. O segredo aqui, para entendermos a postura pós-moderna, a teoria educacional pós-narrative tu'rn, é perguntarmos: o que e metáfora, para Davidson? Se tomamos a metáfora na sua definição tradicional, veremos que é apenas a cobertura de um bolo. Seria a maneira de descrever as coisas de uma forma tal que, uma vez clarificada, analisada, traria a verdade, o essencial. A metáfora teria uma 60 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS mensagem a ser decodificada, que poderia ser apreendida pela investigação da semântica, o que deixaria evidente o núcleo literal que toda metáfora esconderia. Assim, a metáfora teria um conteúdo cognitivo e poderia ser explicada. A objeção de Davidson a essa formulação aparentemente tranqüila da metáfora é que a metáfora não pode ser parafraseada. E que se quisermos explicá-la, certamente estaremos sujeitos a fazer alguma construção teórica sofrível, de gosto duvidoso. Sendo assim, Davidson se vê na obrigação de entender a metáfora para além dos cânones tradicionais. Para ele, como Rorty e eu o lemos, a metáfora não é uma mensagem, não tem um conteúdo cognitivo a ser decodificado. Ela não é um outro modo de dizer as coisas". Ela é, sim, um ato inusitado no meio do processo comunicacional que, embora tenha efeitos de grande impacto sobre o ouvinte, não pretende dizer-lhe coisa alguma. E claro que uma metáfora, depois de algum tempo, se for saboreada e não cuspida e esquecida, pode adaptar-se a um jogo de linguagem existente ou forjar um novo jogo de linguagem e, então, se literalizar, ou seja, ganhar valor de verdade. Aliás, diga-se de passagem, como Rorty lembra, nossa linguagem é, na maioria das vezes, um monte de metáforas mortas. Mas, num primeiro momento, a metáfora não é uma explicação nem tem valor de verdade, na medida em que não está nos quadros do jogo semântico tradicional. Por isso mesmo, sua utilização numa conversa é muitas vezes espontânea, e quem a utilizou pouco sabia o que significava (pois ela não significava!). Duvido que Galileu soubesse o que estava dizendo - da mesma forma que nós o sabemos hoje - quando falou diante dos padres da Igreja, "a Terra se move". Assim, duvido que o Movimento Negro pudesse, no seu auge, explicar o que era Black is beautiful. Do mesmo modo que agora seria uma péssima idéia tentar explicar o que é Gay is good. Não há paráfrase nem explicações; qualquer tentativa neste sentido destruiria As TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE 61 rapidamente a metáfora e todo o movimento de impacto que causa na mentalidade conservadora. Todavia, apesar de não veicular nenhuma mensagem, ela é forte o suficiente para estar envolvida com a busca de criação de novos direitos democráticos, como, por exemplo, a discussão, em vários países, sobre a legitimidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo... pois, afinal, "gay is good"! Mas, num futuro próximo, essa expressão talvez possa ser explicada da mesma forma que explicamos hoje "a Terra se move". Ou como contamos hoje, para os mais jovens, como era a reação dos conservadores diante de "Black is beautiful", explicando, assim, o que é "Black is beautiful". Neste futuro próximo, a expressão Gay is good seria uma metáfora morta, estaria inserida num jogo de linguagem bastante utilizado, normal, e já teria, então, desempenhado seu papel em favor de mudanças necessárias à ampliação da democracia. Teria gerado novos direitos. Quem recebe a metáfora, segundo Rorty, recebe algo que é como uma foto repentinamente tirada do bolso no meio de uma conversa, ou um beijo no fluxo de uma discussão, ou, ainda, um tapa na cara. Em outras palavras, a metáfora, no entendimento de Davidson, é um lance que se joga para além do processo de comunicação, no qual há uma semântica prévia, que estaria implícita. Porém, não existe semântica, e a metáfora vai se definir como elemento da linguagem através de seu uso - por nos. Essa nova filosofia da educação em nada solapa os ideais democráticos das filosofias da educação modernas, pelo contrário, ela os potencializa. Podemos contar várias histórias para garantir direitos mais ou menos consensuais. As histórias que garantem direitos consensuais não precisam de metáforas, precisam apenas ser histórias empolgantes, narrativas que sensibilizem os ouvintes. Mas para criar novos direitos, precisamos de impacto - precisamos da metáfora. Quem faz metáforas em prol da criação de novos direitos está, certamente, colaborando 62 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS com a idéia humanista de que a educação é aquisição de autodeterminação, como em Herbart. Também está favorecendo a diversidade e a liberdade e, portanto, está se alinhando com Dewey (ou, hoje, com Habermas), na valorização da democracia. E pode fornecer "autoridade semântica" para os grupos oprimidos se redescreverem e, assim, ganhar vez e voz na sociedade, na medida em que possam colocar seus vocabulários alternativos, seus jogos de linguagem - até então, secundarizados ou mesmo considerados loucos -, como elementos também contáveis, na sociedade. Com isso, colabora-se com Paulo Freire, na luta por uma educação em favor do oprimido e pelo fim da opressão. A "teoria educacional pós-moderna", nessa filosofia da educação, é a busca da realização dos melhores ideais modernos. A didática pós-moderna, por sua vez, é a garantia de uma melhor concretização desses ideais. O que é 11aula", na teoria educacional pós-moderna ou pós-narrative turn? A praxe dos textos que falam sobre didática, diria que eu deveria dissertar sobre temas como métodos de ensino, tipos de visões da psicologia educacional, pedagogias tradicionais e pedagogias novas etc. Entretanto, este livro não segue a praxe. Este livro está cansado da praxe. Escrevi este livro porque eu mesmo já não suportava mais a velha cantilena dos autores de livros sobre didática. Por isso, "detalhes", neste livro, irão remeter o leitor para um campo exterior à fraseologia dos manuais das vanguardas, seja de direita ou de esquerda. O que chamo de "detalhes" é o que o senso comum chama de "aula". Assim, "métodos", "psicologias" etc., estarão servindo ao discurso sobre teoria educacional - no caso, sobre teoria educacional em um mundo pós-moderno. Didática, na minha acepção, tem a ver com a nossa capacidade de organizar e otimizar os processos de ensino- AS TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE 63 aprendizagem. Esses processos, em termos da educação escolar, são resumidamente entendidos pelo senso comum, tanto de educadores como de não-educadores, como "aula". Isto é certo? Sim e não. Há toda uma literatura em estudos educacionais que buscou mostrar que a noção de "aula", por mais ampliada que seja, é sempre uma redução, e que a didática prática não ocorre dentro do que o senso comum chama de "aula", mas dentro do que os norte - americanos, generalizadamente, chamam de "currículo". No entanto, a força da palavra "aula" permanece entre nos. Quando se fala em nova teoria educacional e em nova didática, não há quem não pergunte: "mas, e a aula, como fica?" Muitas vezes, essa pergunta é ridicularizada, pois vem de um sentimento muito prático dos professores. Mas mesmo quem a critica, muitas vezes, no íntimo, já perguntou: "e a aula, nesta pedagogia, como fica?" Assim, não se pode fugir do assunto. Temos que admitir, num determinado nível discursivo, que utilizamos algo parecido com "aula" - e que, no limite, é ela que deve ser alterada quando falamos em novo tipo de educação. Segundo as convenções, a aula possui cinco componentes. Esses componentes são divididos em quatro elementos e um processo. Os elementos são: o estudante (aluno, educando), o professor (educador), o assunto (matéria, conteúdo, lição) e os meios (estratégias, técnicas, procedimentos didáticos). O processo é o que se resume na seguinte frase: o desdobramento no tempo e no espaço da relação ensino-aprendizagem. Ora, cada uma das teorias-modelo citadas nas páginas anteriores pensou e organizou a aula diferentemente, como foi mostrado nos vários quadros. No entanto, por que isso ocorreu? Por razões filosóficas? Bem menos. Na minha leitura, ocorreu devido ao aparecimento de elementos socialmente emergentes distintos para cada uma das teorias. Mudamos nossa didática porque mudamos nossa vida, inteiramente. Assim, as teorias educacionais e as didáticas 64 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS dependeram, a meu ver, de nossa comunicação alterada, que localizou alguns termos e não outros, nos discursos que se importavam com a educação, em determinados tempos e espaços. Na verdade, o que assistimos, nos tempos modernos e pós-modernos - do século XVII aos nossos dias, em termos educacionais -' é o desdobramento de quatro revoluções no discurso educacional. E elas modificaram substancialmente a aula. As pessoas dos séculos XIX e XX, no Ocidente, assistiram a três grandes revoluções em teoria educacional. Nós, da transição do século XX para o XXI, estamos assistindo a uma quarta revolução. As três primeiras, na minha perspectiva e na de outros historiadores da filosofia da educação, encontraram seus melhores representantes em Herbart, Dewey e Paulo Freire. A quarta revolução pode encontrar justificativas em Richard Rorty e Donald Davidson. As três primeiras foram revoluções modernas, em teoria educacional. A quarta é uma revolução pós-moderna. Cada uma dessas revoluções girou em torno da emergencia de uma palavra-chave na discussão entre os filósofos da educação. Em Herbart, a emergência da mente. Em Dewey, a emergência da democracia. Em Paulo Freire, a emergência do oprimido. A quarta revolução, por sua vez, segue em torno da emergência da palavra metáfora - entendida segundo as novas visões de Davidson lido por Rorty. As revoluções do passado não perderam em importância diante da revolução que está ocorrendo agora. Pertencem ao passado, num sentido cronológico e não valorativo, em vista do qual teriam assistido à perda da real relevância de suas palavras-chave. Afinal, hoje em dia, avançamos muito em filosofia da mente e não poderíamos fazer teoria educacional sem considera-la. Assim, a herança de Herbart está viva. No caso de Dewey, temos ainda mais a sensação de algo vivo: não passaria pela maioria das cabeças dos filósofos da educação, no Ocidente, preferirem a educação autoritária em lugar- da educação As TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE 65 democrática, e talvez, poucos ainda acreditem que poderia haver verdadeira educação numa situação social não dinâmica e não livre. Fora alguns ressentidos da direita e da velha guarda marxista, aqui e ali, a maioria dos filósofos da educação considera a democracia um chão necessário para toda e qualquer educação. Paulo Freire, por sua vez, está presente, na medida em que os países ricos se tornaram mais ricos, e os países pobres, mais pobres, e que o fenômeno do aparecimento do "desenraizado", seja ele o pobre ou o pertencente a grupos minoritários é, agora, também visível mesmo onde estava prometido que desapareceria ou não surgiria: nas democracias ricas da América do Norte e Europa. As três primeiras revoluções, portanto, não se distinguem da revolução pós-moderna, em termos da teoria da educação, pelo pretenso fato de que esta última revolução teria superado tudo o que foi pensado em educação anteriormente. O que ocorre é que a revolução pós-moderna em teoria educacional, está acoplada a uma maneira de conversar, em termos técnicos de filosofia e filosofia da educação, que desloca as filosofias da educação que justificavam as teorias educacionais modernas, representadas aqui por Herbart, Dewey e Freire. O que quero dizer é que as teorias educacionais modernas estiveram articuladas à filosofia da educação pré -linguistic turn. Por sua vez, a teoria da educação que melhor se insere no campo pós-moderno e, com sorte, talvez possa vir a manter o nosso apreço pela democracia, está articulada às formas de conversação que adquirimos, em filosofia, após a virada lingüística e após a virada neopragmática. Mas as teorias educacionais não diferem apenas em suas justificativas filosóficas. Diferem também em seus aconselhamentos e procedimentos didáticos. Como bom rortyano, não acredito que a filosofia da educação seja o fundamento da teoria educacional. Creio que ela é apenas uma forma de discurso ad hoc, que permite melhorar nossa coerência 66 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS prática e, talvez, com sorte, potencializar o que estamos fazendo. Assim, as diferenças propriamente ditas, como o senso comum exige, devem aparecer, de fato, na "aula". Se o leitor prestou atenção aos quadros expostos até aqui, viu claramente que cada teoria educacional permite, e mesmo obriga, que suas respectivas "aulas" sejam bem diferentes. E isso passa pela própria arquitetura que envolve a organização e potencialização dos processos de ensino-aprendizagem. Volto aos meus modelos de teoria da educação e, portanto, de didática - Herbart, Dewey, Freire e o pós-narrative tuvn. Ao falarmos em Herbart, podemos pensar que a "aula" tenderia a ocorrer em uma sala, com a arquitetura tradicional, como as muitas escolas que vimos no Ocidente no decorrer dos séculos XIX e XX, forjadas na expansão das redes públicas de ensino. São salas em forma de paralelepípedo, com carteiras e cadeiras dispostas em fileiras e Linhas, de modo que o estudante fique sistematicamente olhando para o lugar destinado ao professor. As carteiras podem estar pregadas ao chão ou soltas. Podem ser grandes, ou simples cadeiras universitárias. O que há de comum, é a disposição: devem estar dispostas de modo a que o professor se transforme no centro dos olhares. Este, por sua vez, pode estar atrás de uma mesa, na frente ou um pouco ao lado das fileiras e linhas. Ou apenas estar de pé, em frente ao quadro~negro. Ou, ainda, estar de posse de um projetor de slides ou de uma tela de computador (ele próprio pode estar "dentro" do computador). Essa disposição arquitetônica está de acordo com a psicologia de Herbart: todos os olhares devem estar voltados para o local onde irá aparecer, expor a idéia, o conceito, pois ele é o carro-chefe da aula. Essa disposição arquitetônica não combina com a teoria deweyana. É difícil que alguém possa desenvolver um processo de ensino-aprendizagem segundo a teoria da educação de Dewey, em um lugar assim, como a sala convencional. Nesse Lugar, para a teoria De Dewey, a aula não As TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE 67 poderia acontecer, não poderia se realizar. Por quê? Pela simples razão de que, na psicologia de Dewey, o conceito não pode, ao contrário de um ator no palco, pular dos bastidores e se apresentar, dando início ao processo de ensino- aprendizagem. Na psicologia de Dewey (como na de Piaget, e outros da mesma escola), entre as noções a serem aprendidas e o aprendizado propriamente dito, há o "interesse". E este é extremamente sofisticado, de modo que, não surge em qualquer lugar. Em Dewey, perde importância a sala e ganha importância o "ambiente escolar" ou o "ambiente de ensino-aprendizagem" (em parte, trata-se da idéia ampliada de "currículo" suplantando a noção de "aula"), que deve favorecer o surgimento do "interesse". A aula não ocorreria numa determinada sala - mas em todo o ambiente (mesmo fora da escola) previamente organizado para o início e o desdobramento do processo de ensino-aprendizagem. A escola deweyana pode e deve ter salas convencionais, é claro, mas seria incompreensível que ela tivesse "a" sala na qual ocorreria a" aula. A teoria de Dewey é, antes de tudo, uma teoria educacional que transformou a didática em um campo vasto de criação, na medida em que insistiu no fator motivacional no ensino, e na idéia de que o estudante não deve só aprender, mas aprender a aprender. O "aprender a aprender" deveria contar com uma arquitetura ampliada, não só no sentido físico do termo, mas no sentido metafórico da palavra arquitetura: a aula deweyana é, antes de tudo, uma aquisição da capacidade de redescrição de experiências. A experiência, como Dewey a pensou, não enclausuraria a aula num paralelepípedo. Paulo Freire ampliou as idéias deweyanas. Sabe-se que os "círculos de cultura", onde ocorreria a aula, estão completamente livres da organização arquitetônica das escolas, mas articulados à organização arquitetônica da alma do educador, que deve se transformar em educador-educando - na medida em que vive na comunidade onde atua -, e do educando, que deve se 68 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS transformar em educando-educador - na medida em que é ele quem fornece os "temas geradores". Na verdade, a aula, na didática freireana, é dependente de um acerto otimizado do funcionamento do círculo de cultura. Essa idéia recebeu inúmeras modificações, dependendo do lugar e do uso da pedagogia freireana, tanto no exterior quanto no Brasil - mais recentemente, houve o surgimento do "educador de rua", como é conhecido o educador que tem como "sala de aula" a arquitetura da cidade; o "Projeto Axé", em Salvador, é um exemplo disto. Mas e a aula, nas diretrizes da teoria educacional pósnarrative turn? Aqui, a sala, o ambiente ou a comunidade são componentes secundários. Richard Rorty, em momento bastante feliz de um texto de 1989, refeito mais recentemente, numa publicação de 1999 - Educação como socialização e individualização8 -' explicita esse encontro, que chamaríamos "aula". O texto refere-se mais à atividade na Universidade, mas eu o considero pertinente a qualquer grau de ensino: A única importância de se ter professores reais vivos, em vez de terminais de computadores, videoteipes e notas de lições mimeografadas, é que os estudantes necessitam ter seus olhos comprometidos livremente, antes de qualquer coisa, por meio de seres humanos. Esta é a razão pela qual liberdade de cátedra e liberdade acadêmica são mais importantes do que apenas o que os sindicatos reivindicam. Professores fixando suas próprias agendas - colocando suas especialidades individuais, longamente preparadas, à disposição, na cafeteria curricular, sem considerar qualquer fim grandioso, muito menos qualquer plano institucional - é tudo o que é a educação superior não profissionalizante. Tais compromissos de liberdade são as ocasiões de relacionamentos eróticos entre professor e aluno, que Sócrates e Allam Bloom rodapé 8Traduzi esse texto e o inseri no volume Filosofia da Educação, da Coleção "O que você precisa saber sobre...", a qual pertence o presente livro. AS TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE 69 celebraram, e que Platão, infelizmente, tentou capturar na teoria da natureza humana e no currículo das artes liberais. Mas, o amor é, notoriamente, não teorizável. Tais relacionamentos eróticos são ocasiões de crescimento, e sua ocorrência e seu desenvolvimento são tão imprevisíveis quanto o próprio crescimento em si, ainda que nada de importante aconteça na educação superior não profissionalizante sem eles. A maioria desses relacionamentos são com os professores já mortos que escreveram os livros que os estudantes estão lendo, mas alguns serão com os professores vivos, que estão ministrando as lições. Em ambos os casos, o cortejamento que vai e volta entre professor e aluno, conectando-os num relacionamento que tem pouco a ver com a socialização, e muito com a autocriação, é o meio principal pelo qual as instituições de uma sociedade Liberal conseguem ser transformadas. A menos que tais relacionamentos sejam criados, os estudantes nunca perceberão que as instituições democráticas são boas para, nomeadamente, tornar possível a invenção de novas formas de liberdade humana, conversando sobre liberdades nunca antes conversadas. O ponto de destaque é a percepção de Rorty de que o processo de Ensino-aprendizagem, ou, como o senso comum quer, a aula, só se realiza, efetivamente, se acontece um jogo erótico entre dois elementos imprescindíveis: o professor (ou o conteúdo, ou o meio - caso se trate do professor, do autor, já mortos) e o estudante. O erotismo envolve tudo o que já sabemos dele, de bom e de ruim: o momento da sedução, o momento da paixão, o momento da extenuação, o momento do ciúme, o momento do rompimento, o momento da amizade, o momento do respeito, a volta da paixão. Sem esse "cortejamento" entre professor e estudante, não há "aula". Portanto, nem sempre a aula acontece quando ela parece acontecer, no espaço e no tempo determinados pela instituição escolar, ou por qualquer outro tipo de instituição que acolhe a educação. Muitas vezes, ela só acontece quando o professor e o aluno já, há muito, estão distantes. Eis então que, mais uma vez, se manifesta um dos elementos do jogo erótico: 70 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS a saudade. Quantas vezes, percebemos que é na saudade de uma sedução que não volta mais que está ocorrendo a educação, que o ensino está se efetivando? E não é verdade que são exatamente os grandes rompimentos entre mestre e discípulo, na saudade que se manifesta na crítica do discípulo ao mestre, que fazem os momentos da aula, ocorrendo, muitas vezes, anos após aquela "aula" institucional? Tudo isso pode ser ilustrado, em parte, por um conselho de Durkheim: só aprendemos o pensamento de um filósofo ou de um autor se emprestarmos nossa cabeça para que ele pense através dela. Ou seja, temos que nos deixar dominar, por um momento, pelo pensamento do outro. Por um momento, ainda que breve, temos de ser seduzidos. Aqui, vale uma observação de Nietzsche: temos de fazer experiências com o nosso pensamento. Ora, emprestar a cabeça (e o coração vai junto, e vice-versa!) ou fazer experiências com o pensamento, está, sim, articulado ao que Rorty chama de "cortejamento que vai e volta" entre professor e aluno, aluno e livro, estudante e "lição" -"cortejamento" que inaugura e desenvolve o jogo erótico, que é a aula. Para tal, como Rorty aponta, o chão é a liberdade - a mesma liberdade que Sócrates necessitava para que o agon dialético se desenvolvesse e o ensino, enfim, a aula, ocorresse. Assim, a arquitetura de que precisa a didática pós-moderna não é a da sala, a do ambiente escolar ou a da comunidade do "círculo de cultura", mas sim a arquitetura que se forma na geometria da troca de olhares humanos livres. Assim, a liberdade está nos dois pólos da aula pós-moderna, porque ela é um jogo erótico, que sem liberdade não pode ocorrer (Rorty), e porque ela é o locus da metáfora (Davidson), que não pode ser saboreada sem liberdade, nem pode produzir um jogo de linguagem capaz de ser usado por nós a fim de gerar novos direitos democráticos. O procedimento didático aconselhado pela teoria educacional pós-moderna ou pós- narra tive turn depende, As TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓs-MODERNIDADE 71 portanto não só de seus cinco passos expostos no último quadro, mas depende, sobremaneira, da troca de olhares. A aula, agora, no momento em que parece ocorrer, ou no futuro, quando se manifesta como saudade, compreensão e crítica do mestre, está sempre amarrada à troca de olhares humanos. Sendo assim, na concepção pós-moderna, a aula é um momento perigosíssimo, no qual muitos jamais suportariam viver. Ela ocorre quando a sedução recíproca entre mestre e discípulo está se desenvolvendo. Não ocorre quando mestre e discípulo não se abrem para uma tal possibilidade. Sendo assim, são raros os momentos em que a aula efetivamente ocorre, pois o cortejamento recíproco entre estudantes e professores, aparentemente uma coisa fácil, raramente ocorre no meio burocratizado. Ela ocorre quando menos esperamos e em lugares inusitados, como... o amor! Amor? Essa palavra, nas mãos dos hipócritas e dos medíocres, é distorcida rapidamente, por isso vou adiante: de maneira alguma essa concepção de "aula" pós-moderna pode ser tomada como uma proposta piegas. Para compreendê-la, é preciso uma certa, digamos, sensibilidade filosófica. Outros diriam, talvez mais ao gosto pós-moderno, sensibilidade artística, ou melhor ainda, sensibilidade estética. E preciso estar apto, como Nietzsche, a perceber o que é fazer experiências com o pensamento de um modo profundo e amplo. Ninguém pode fazer experiências com o pensamento se o pensamento é já o pensamento pensado e a linguagem aquilo que já foi dito. A experiência, aqui, é menos o experimento e mais a vivência: é o trabalho corajoso de se deixar levar por um discurso perigoso, pelo espanto, pela aventura, pelo caminho que ainda não está de todo aberto e que necessita do estudante, junto como mestre ou com o livro, para poder ser aberto. Há pessoas que dizem: "não caio nesta armadilha, não sou vítima deste ou daquele pensamento ou discurso, eu nunca me deixo enganar - eu sou crítico". Os pós-modernos têm razão em dizer que pessoas assim 72 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS jamais saberão o que é "a aula". Nunca saberão o que é "saber uma coisa, aprender". A sensibilidade filosófica e/ou artística não depende de ser ou não ser crítico; ao contrário, depende de ingenuidade. Depende de ser radicalmente não-crítico. Os grandes filósofos, como Platão, Descartes, Hegel, o "primeiro" Wittgenstein e o "segundo" Wittgenstein foram, antes de tudo, ingênuos. Eles acreditaram em coisas inacreditáveis. Quando lemos seus escritos, muitas vezes temos a sensação de que eles eram tão ingênuos quanto os personagens femininos de Henry J ames (penso aqui, entre outros, em Daisy Miller). Como um nietzschiano bem notaria, todos eles esperavam dar cabo de problemas milenares e viver em um mundo sem a contingência. Nietzsche, por ser tão ingênuo quanto eles, nos faz espantar com a ingenuidade deles, denunciando-a. Essa ingenuidade é que permite o encontro para o ensino e para a aprendizagem. Penso que os grandes filósofos, como os grandes romancistas e os grandes artistas, sempre souberam o que era aula, nessa acepção pós-moderna, que pode ser resumida no seguinte: é o momento em que a força de uma idéia ou de uma imagem arrasta o peito e os neurônios para profundezas de sentimentos, idéias e ideais com as quais não concordamos. A aula é uma guerra onde só os ingênuos e, portanto, os corajosos, podem entrar. E só eles conseguem sair e emergir dela. Mas a aula, na acepção pós-moderna, como Rorty descreve o jogo erótico entre estudante e professor, é também a paz. É a paz cansada mas satisfeita dos amantes que tentaram de tudo para um ajuste, para uma acomodação de sentimentos e corpos, para o... casamento. "A aula" é a sensação que temos de um casamento dando certo! Nele, a sedução brinda os parceiros com paixão de fogo e serenidade intelectual ao mesmo tempo. Assim, para a didática pós-moderna, não há aula onde as palavras e os corpos foram reificados. As palavras e os corpos devem estar vivos - só assim é possível falarmos em "organizar e otimizar as relações de ensino-aprendizagem". 73 Conclusão O LEITOR PODE ESTAR INQUIETO COM ESTE LIVRO, achando que muita coisa não foi dita. Afinal, onde estão Piaget, Emília Ferreiro, Vygotsky? E o marxismo - Gramsci & Cia.? E alguns filósofos da educação, que propuseram teorias educacionais célebres, como Rousseau? Ou mesmo educadores práticos consagrados, como Pestalozzi? E não caberia um capítulo especial sobre o feminismo? E um capítulo especial sobre o multiculturalismo? E sobre "formação de professores"? E o tradicional capítulo falando de Comenius? E as velhas e muitas vezes preconceituosas divisões entre "teorias progressistas" e "teorias tradicionais", ou coisa similar? A opção que fiz foi a de trabalhar com modelos paradigmáticos - no sentido em que Thomas Kuhn usou esta palavra - de teorias educacionais que, atravessando os tempos modernos e contemporâneos, e adentrando a pós- modernidade, pudessem ser suficientemente representativos do que ocorreu com a didática efetiva nos últimos duzentos anos. Mas não se deixe enganar, leitor: a palavra que acabei de utilizar - ocorreu - não implica que este seja um livro de História da Educação. Trata-se de um trabalho que acredita que fizemos revoluções nos nossos vocabulários a respeito do assunto educação, e que essas revoluções, na transição dos séculos XIX para o XX e, agora, do XX para o XXI, podem ser entendidas, se prestarmos atenção mais a determinados discursos do que a outros. Assim, para falar da teoria humanista, preferi Herbart e não Kant, pois achei que num trabalho sobre didática, um passo maior seria dado se ficássemos com as teorias educacionais propriamente ditas, e não com as filosofias da educação. Para a teoria da educação democrática, no apogeu e crise da sociedade do 74 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS trabalho, preferi Dewey e não Habermas. Este Último é tão defensor da democracia quanto Dewey, e em termos semelhantes, mas Jamais teve disponibilidade para formular um teoria da educação propriamente dita. Para falar sobre educação libertadora, optei por Paulo Freire e não por qualquer outro teórico de esquerda, porque Paulo Freire encarnou, de modo mais universal a emergência do Terceiro Mundo em termos educacionais do que qualquer outro pensador da educação, no Ocidente, durante o século XX. Finalmente, para falar da teoria educacional pós-moderna - ou uma de suas possibilidades -, preferi não evocar Lyotard, Foucault, Deleuze e Derrida, ou seja, os pós-estruturalistas, e fiquei com os norte-americanos, porque o neopragmatismo tem muito mais a ver com a teoria educacional propriamente dita do que o pós-estruturalismo Este, como diria Rorty, multas vezes, é excessivamente filosofante e pessimista, com uma dívida ainda grande para com o marxismo. Não vejo porque meu livro teria de ser pessimista. Desde o início, eu queria que fosse um livro que propusesse uma postura. E nele há sugestões para uma nova postura pedagógica. Muitos jovens professores do mundo todo têm aderido a esta postura e colaborado na sua construção - alguns teorizando mais, outros teorizando menos sobre as mudanças que estão em curso. Mas, certamente, os professores pós-modernos, no limiar do século XXI, já não podem ser vistos pela velha guarda marxista, como não- alinhados com a luta por um mundo melhor. Ao contrario, segundo a perspectiva pós-narrative turn, estão empenhados na construção de um mundo muito melhor do que aquele que os marxistas desejaram, pois almejam, além da justiça social, também a liberdade para todos - como os bons filósofos gregos, querem que a teoria educacional e a didática ajudem os estudantes a ser.., simplesmente felizes. 75 Sugestões de leitura FAÇO ALGUMAS INDICAÇÕES DOS MEUS LIVROS QUE, acredito, podem Levar o leitor para outras paragens, outros autores e outros temas. Por ordem de prioridade de leitura: GHIRALDELLI JR., Paulo. Richard Rorty - A filosofia do novo mundo em busca de mundos novos. Petrópolis: Vozes, 1999. _________ Filosofia da Educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2000, Coleção "O que você precisa saber sobre..." _________ O que é filosofia da educação? 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. _________ Educação e razão histórica. São Paulo: Cortez, 1994. Sugiro, ainda, que o leitor esteja atento aos sites (www.filosofia.pro.br) e (www.educacao.pro.br). O primeiro é o site Filosofia e Filosofia da Educação, editado por mim e Pedro Angelo Pagni (UNESP), e o segundo é o site da Encyclopedia of Philosophy of Education, editado por mim e MichaeL Peters (Auckland University), em colaboração com sociedades de filosofia da educação de todo o mundo. 76 vazia 77 APÊNDICE Teorias da educação na história da filosofia da educação9 Amélie Oksenberg Rorty - Brandeis University Tradução: Amélia Siller Os FILÓSOFOS TÊM PRETENDIDO TRANSFORMAR o modo pelo qual vemos e pensamos, agimos e interagimos; sempre tomam a si próprios como os educadores últimos da humanidade. Mesmo quando acreditam que a filosofia deixa tudo como está, mesmo quando não apresentam a filosofia como uma atividade exemplarmente humana, pensam que interpretando o mundo corretamente - compreendendo-o e compreendendo nosso lugar dentro dele - nos livrariam da ilusão, nos direcionariam para aquelas atividades (vida cívica, contemplação da ôrdem divina, progresso científico ou criatividade artística) que melhor nos convêm. Mesmo a filosofia "pura - metafísica e lógica é implicitamente pedagógica. Pretende-se corrigir a miopia do passado e a imediata. A reflexão filos5fica sobre a educação, de Platão a Dewey, tem sido direcionada, naturalmente, para a educação dos governantes, daqueles que supostamente deveriam preservar e transmitir - ou redirecionar e transformar - a cultura da Este texto foi cedido pela professora Amélie Rorty. Foi publicado com diferentes títulos, em inglês. Optei pela tradução de Amélia Siller, a partir de The Ruling History of Education, publicado no journal of the encyclopedia of philosophy ofeducation (www.educacao.pro.br). 78 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS sociedade, seu conhecimento e seus valores.10 Cada época histórica é marcada por uma luta pelo poder, que pode ser a autoridade da tradição ou o poder manifesto do conhecimento filosófico, espiritual ou científico, da criatividade artística, da produtividade tecnológica ou mercantil. Apenas tardiamente, na história das democracias liberais, a política educacional foi formulada para, e dirigida a indivíduos presumidamente autônomos, que determinam seus próprios fins, que estruturam suas próprias vidas. Em lugar nenhum, a filosofia da educação é mais importante, a educação em si mesma é mais crucial - e em lugar nenhum é mais negligenciada - do que numa democracia participativa liberal cujos compromissos igualitários tornam cada indivíduo legislador e sujeito. Eis as disputas que estão no centro da discussão contemporânea da política educacional: quais são as direções e limites da educação pública, numa sociedade pluralista liberal? Como podemos assegurar melhor uma distribuição eqüitativa da oportunidade educacional? A qualidade da educação deveria ser supervisionada por padrões e avaliações nacionais? As escolas públicas deveriam oferecer educação moral e religiosa? Tais questões restabelecem as controvérsias que marcaram a História da Filosofia desde Platão até o positivismo lógico. Discussões responsáveis e proveitosas de política educacional, inevitavelmente, rodapé A etimologia mostra que "educação" deriva de e-ducare: extrair, fazer sair por instigação, e de e-ducere: extrair, conduzir para fora. Sua dupla etimologia sugere extrair algo do aprendiz e conduzi-lo a um novo lugar. Erudire, tipicamente, sugere tirar alguém ou algo de uma condição rude ou crua. Nossos termos "doutrina" e "doutrinar" vêm de docere, ensinar; é claro, disciplina abriga ambos os sentidos da palavra inglesa "discipline". "Instrução" vem de in- struere: "construir dentro de". Daí deriva a palavra alemã Bildung: desenvolver, formar, cultivar. A palavra alemã erziehen remete a: educar ou treinar. O verbo "to school" [ensinar] deriva das palavras gregas schole: discutir livremente, e scholion: comentário, interpretação. O francês usa tanto "formation" quanto "education". O grego tem os termos gerais, trophe, edificar, e paideia, que se refere à educação de crianças jovens, ambos surpreendentemente limitados. TEORIAS DA EDUCAÇÃO NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO 79 direcionam-5e para questões filosóficas mais amplas que as estimulam e informam. Essas questões são muito mais agudamente articuladas e examinadas na teoria política e moral, na epistemologia e na filosofia da mente. Quais são os objetivos próprios da educação? Preservar a harmonia da vida cívica? Salvação individual? Criatividade artística? Progresso científico? Capacitar os indivíduos a escolher com sabedoria? Preparar os cidadãos para ingressarem na força de trabalho produtiva? Quem deveria arcar com a responsabilidade básica de formular a política educacional? Filósofos, autoridades religiosas, governantes, elite científica, psicólogos, pais ou conselhos locais? Quem deveria ser educado? Todos, igualmente? Cada um de acordo com seu potencial? Cada um de acordo com sua necessidade? Como a estrutura do conhecimento afeta a estrutura e a seqüência da aprendizagem? A experiência prática, a matemática ou a história deveriam fornecer o modelo para a aprendizagem? Quais interesses deveriam guiar a escolha de um currículo? A realização de uma vantagem competitiva, no mercado econômico internacional? A representação étnica, política e religiosa? A formação de uma sensibilidade cosmopolita? Como as dimensões intelectuais, espirituais, cívicas, morais, artísticas, físicas e técnicas da educação deveriam ser relacionadas umas às outras? É porque somos os herdeiros da história das concepções de objetivos e direções próprios da educação que a História permanece ativamente introjetada e expressa em nossas crenças e práticas. Ela fornece a compreensão mais clara das questões que atualmente nos preocupam e dividem. A maioria das teorias do conhecimento - particularmente de Descartes e Locke -pretenderam, entre outras coisas, reformar as práticas pedagógicas. A maioria das teorias éticas - nomeadamente as de Hume, Rousseau e Kant - tencionaram redirecionar a educação moral. O significado prático das teorias políticas - de 80 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS Hobbes, Miii e Marx - é não apenas direcionar para a estrutura das instituições, mas também para a educação dos cidadãos. Os sistemas metaftsicos compreensivos - os de Leibniz, Spinoza e Hegel - fornecem modelos para investigação; e assim, implicitamente, estabelecem rumos e padrões para a educação dos privilegiados. Alguns filósofos - Locke, Rousseau, Bentham e Miii, por exemplo - fizeram dos programas educacionais uma caracterls.tica central dos seus sistemas filosóficos. Outros -Descartes, Spinoza e Hume - tiveram boas razões para não tornar explícito o significado educacional dos seus sistemas. Se a política educacional fica cega sem a orientação da filosofia, a filosofia soa falsa sem dar atenção crítica para seu significado educacional. Uma filosofia da educação vital e densa inevitavelmente incorpora, na prática, o conjunto da filosofia; e o estudo da história da filosofia organiza a reflexão sobre suas implicações para a educação. A força plena da revolução leibniziana e cartesiana tem como conseqüência o papel da matemática na educação dos cientistas; o ponto de vista de Locke e dos enciclopedistas sobre epistemologia é expresso na insistência em que a aprendizagem bem-sucedida começa na experiência e na prática; o impacto pleno da visão de Hume e de Rousseau sobre a imaginação é revelado no papel que eles atribuem à imaginação na formação de hábitos do pensamento e da ação. A transformação da filosofia empreendida por Hegel marca o estudo da História, amplamente concebida como uma parte essencial da educação. Uma vez que a política educacional é formulada por aqueles que aconselham os governantes, que a aplicam e implementam, a filosofia da educação é tipicamente dirigida aos governantes e seus conselheiros. Podemos reconstruir de forma proveitosa as características da dramatis Personae desta história: a batalha contínua entre as declarações dos legisladores cívicos, de um lado (Platão e Aristóteles) e dos diretores espirituais, do outro (Santo Agostinho TEORIAS DA EDUCAÇÃO NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO 81 e Loyola); as artes do estadismo da Renascença (Maquiavei e Castiglione); a afirmação de autodeterminação espiritual (Lutero e Erasmo); o primeiro Esclarecimento, que enfoca conhecimento tecnológico e científico (Descartes, Locke e Diderot); as reflexões posteriores do Esclarecimento sobre a prioridade de desenvolver sentimentos sociais ou fortalecer uma vontade racional autônoma (Hume e Kant); as reflexões sobre os benefícios humanos e cívicos da educação universal (Adam Smith, Condorcet, Bentham, Miii); a ênfase do Romantismo na sensibilidade estética do poeta como legislador último do mundo (Goethe e Schiller); a educação dos indivíduos como cidadãos livres (Rousseau e Dewey). Em outras tradições filosóficas, o Shi'ite prioriza a educação de um Muilah como intérprete do Alcorão, e a tradicional educação de um Yeshiva como intérprete da Torah e do Taimud. Embora raramente mencionem figuras históricas, as teorias contemporâneas da educação continuam a tradição: Goldman considera os efeitos da epistemologia social sobre a política educacional, e Gaiston direciona as questões de princípios que surgem num estado liberal pluralista. Platão (427-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.) tomam a educação dos cidadãos-governantes como um objetivo básico da polis. Ela permeia todos os aspectos da atividade cívica e éinfinita. Garante a segurança, continuidade e harmonia da cidade e expressa o caráter distintivo da sua forma de vida. Platão argumenta que os governantes (tanto homens quanto mulheres) deveriam ser selecionados por suas capacidades para engajar-se, devendo ser orientados pela investigação filosófica - como o auge de um regime prolongado -, no qual a educação intelectual e moral são fundidas. A verdade ligada ao mito, à música, à ginástica e à formação militar avaliada com seriedade, prepara os cidadãos para a philia política; a matemática e a 82 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS harmonia - as ciências das proporções próprias - fornecem o fundamento teórico e as habilidades práticas para a justiça; a astronomia revela os princípios ordenadores do cosmos que servem como um modelo para a Polis. Além das qualificações óbvias de uma boa memória, de um amor pela investigação, apaixonado, não-combativo e persistente, os filósofos-governantes deveriam ser capazes de pensar critica e dialettcamente, ordenando suas crenças em um sistema unificado. Criticamente, porque devem avaliar as hipóteses que orientam suas questões; dialeticamente, porque devem ser capazes de julgar e conciliar o que, aparentemente, evoca Oposição; sistematicamente porque devem se ocupar com "todas as coisas consideradas" como raciocínio, levando em conta as conexões entre as conseqüências de longo alcance de suas políticas. Devem aprender a pensar a cidade como uma espécie de cosmos precário cujas partes são mantidas em harmonia estável umas com as outras, e o todo unido pelo reconhecimento da força ordenadora da Forma do Bem. Como Platão, Aristóteles considera que as instituições da polis - suas leis e estruturas políticas, seus costumes e cumprimento da lei - são seus instrumentos educacionais centrais, formando a mentalidade, os motivos e hábitos típicos dos cidadãos (Pol. 3.15 1286 a 23.ff; NE 10.9 1180 a 33ff). Platão e Aristóteies concordam que "aqueles que comandam.., teriam primeiro que aprender a obedecer" (Pol. l333a2); e que "três coisas fazem os homens bons e virtuosos: o caráter, o hábito e a razão" (Pol. 133 lal 1). Mas, enquanto Platão considera que os governantes deveriam ser distinguidos por suas habilidades filosóficas, Aristóteles descobre um equilíbrio diferente entre as respectivas contribuições da razão e do hábito para uma vida de virtude pratica. Não há garantia de que uma vida melhor e mais elevada - a vida da theoria direcionada para verdades eternas - possa fornecer uma direção para a virtude orientada para a prática. TEORIAS DA EDUCAÇÃO NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO 83 O raciocínio prático que auxilia a virtude e a deliberação política não está modelado na investigação científica, mas esta introjetado em hábitos bem consolidados e disciplinados de percepção, emoção, pensamento e ação. Adquirido por experiência auditiva e imitação, ele envolve a habilidade para discernir e alcançar o que é melhor e mais razoável em circunstâncias radicalmente diferentes. Ainda que as virtudes sejam exercidas em seu próprio benefício, elas são essencialmente direcionadas para o bem da eudaimonia. A despeito do papel central da razão na boa vida, theoria e praxis têm objetivos distintos, e requerem o desenvolvimento de tipos diferentes de habilidades. Embora os primeiros estudos educacionais de Santo Agostinho (354-430) estivessem centrados em trabalhos retóricos e literários romanos e gregos, ele passou do estudo da retórica para a filosofia, para os neoplatonistas e estóicos; e, às Sagradas Escrituras, eventualmente, com sua conversão ao Cristianismo, em 386. Essas mudanças marcam uma revisão radical em suas concepções sobre as direções próprias de uma vida humana; elas também redirecionam suas concepções sobre os objetivos da educação. E porque todo indivíduo é essencialmente um cidadão da Cidade de Deus, e, apenas acidentalmente, um cidadão da sua polis, que sua educação deveria ser direcionada para devolver a alma à harmonia com a ordem divina. O neo-platonismo e o estoicismo dos primeiros trabalhos de Santo Agostinho, inicialmente, projetaram a convergência da filosofia com a educação espiritual: ambas envolvem um movimento progressivo relativamente direto decifrando as intenções da divindade, como elas são significadas e introjetadas na ordem cósmica. Como as Sagradas Escrituras, o mundo é um texto codificado divinamente, que expressa e revela a Palavra de Deus. A análise semântica -Lendo o mundo e a Sagrada Escritura corretamente, interpretando suas analogias significantes - é um modo de iluminação espiritual. 84 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS Mas depois de sua passagem pelo maniqueísmo, a explicação da educação moral e espiritual em Santo Agostinho tornou-se mais complexa e sombria. O pecado original bloqueia o acesso direto da alma a Deus: não apenas os nossos desejos, mas também nossas percepções e interpretações do mundo são oblíquas, centradas de modo idólatra na pessoa. A educação adequada requer não apenas a redireção, mas a reconstituição da alma: a Graça divina deve interceder para fornecer uma nova Vontade. A Sagrada Escritura e os dirigentes espirituais, a filosofia e a interpretação astuta podem, quando muito, fornecer as ocasiões, os momentos à iluminação da Graça. Mas Santo Agostinho não entregou sua confiança a uma educação clássica sólida: embora a capacidade para pensar e falar clara e criticamente não possa trazer a salvação, continua a ser uma aliada essencial da Boa Vontade. Parece não ter enfrentado a tensão implícita entre as diretrizes educacionais e seu cosmopolitismo helenista e a ênfase pós-maniqueísta na preparação espiritual do indivíduo para a Graça. A Citta da Renascença recupera a estrutura clássica e as diretrizes da educação. Maquiavel (1469-1527) representa o político, Castiglione (1478-1529), o social. Em The Prince11 (1513), Maquiavel descreve a disciplina do governante bem- sucedido; em The Discourses (1517), ele se volta para as instituições políticas que formam as virtudes cívicas dos cidadãos e a glória do Estado. É porque seu primeiro dever é assegurar a segurança e continuidade da Citta, que o Príncipe deve ter a virtú do conhecimento para alcançar e deter o poder. O estadismo requer um sentimento perspicaz de timing, uma habilidade destemida e cruel para agarrar as oportunidades, habilidade para inspirar obediência temerosa, assim como controlar aparências, comandar sua milícia, manipular tanto aliados quanto inimigos, rodapé "Os títulos foram mantidos conforme o texto em inglês (N. da T). TEORIAS DA EDUCAÇÃO NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO 85 até mesmo para desenvolver um estilo retórico lacônico. Mas como seu poder é exercitado para a glória e para a segurança da cidade, o Príncipe deve também saber como conquistar a admiração e a obediência dos cidadãos. Uma vez que éimprudente para ele delegar responsabilidade, deve ser capaz de controlar a administração ordinária do Estado, planejar sua economia e agricultura. Tornar- se um homem exemplar da Renascença é uma necessidade prática do Príncipe maquiavelianO: identificando-se a si próprio com sua Citta, sua disciplina e sua virtü são direcionadas para alcançar a glória, assim como para garantir a segurança do poder cívico. The Courtier (1528), de Castighone, serviu como modelo -para gerações - de manuais de educação do cavalheiro bem-formado. Deixando os assuntos de governo para o Príncipe, o cortesão serve para ilustrar um sentido transformado da Graça: as excelências humanas exercitadas por causa da beleza de sua perfeição. Ele é, de certo modo, a jóia preciosa da corte; e a corte é, na verdade, a representação da ordem cósmica. As artes de guerra tornam-se ornamentos: equitação, arco e flecha, esgrima. O cortesão deve colocar seus dotes mentais e corporais no trabalho de arte: deve vestir-se elegantemente, dançar bem, compor versos brilhantes e dedicar-se à conversação graciosa, refinada. Longe de ser uma máscara superficial e pomposa, todo o charme do cortesão manifesta sua honra, abastece o mundo com um modelo de integridade. De um modo radicalmente diferente, Loyola (1491-1556), Lutero (1483-1546) e Erasmo (1469-1536) trazem novos parâmetros de integridade, novos critérios à unidade interior e exterior do homem. Mais que produzir um livro-guia para adquirir virtuosidade na expressão da virtú, eles projetam um regime que pretende retificar e redirecionar a alma/mente. Mas diferem dramaticamente em suas concepções de salvação e de educação disciplinar, que ela requer. Do mesmo modo, psicologicamente 86 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS sutil e politicamente astuto, o documento educacional da Ordem Jesuíta divide-se em duas categorias. Spiritual Exercises (15 26-1556), de Loyola, é um manual para dirigentes espirituais acusados de corromper as mentes - os sentidos, a imaginação, o desejo e a vontade - dos fiéis. Os exercícios tomam a forma das tradicionais meditações encenadas, cada uma precedida de oração: o contemplador sofre um período de privação sensorial rigorosa, durante a qual ele imagina, em detalhes específicos tanto quanto possíveis, cada um dos estágios da Paixão de Cristo. Ele sofre com o Cristo carregando a cruz, compartilha seu momento de desespero. A concepção de educação espiritual de Loyola inverte a de Santo Agostinho: ao invés da Graça de uma nova vontade permeando e reformando os sentidos, a imaginação e o desejo, Loyola trabalha dos sentidos para a mente e a vontade. Ironicamente, preparou o caminho para o romanticismo posterior, introduzindo a educação da imaginação, para realizar o tipo de identificação empática essencial à moralidade. The Constitution, da Ordem da Sociedade de Jesus (1556), prescreve a seleção e o caráter dos alunos e professores da Ordem, assim como o currículo e os métodos pedagógicos das escolas. A Ordem é em princípio aberta para todos, sua educação adequou-se às suas capacidades espirituais e intelectuais. Mas como os futuros soldados e diplomatas da Igreja Militante são bem-sucedidos em influenciar Príncipes, a hierarquia da Sociedade deve ser talentosa: bem-nascida, eloqüente, inteligente e, preferentemente, de uma presença altiva e graciosa. A educação em filosofia, idiomas, retórica, Sagrada Escritura, teologia e teoria moral deve ser cuidadosamente controlada por sua ortodoxia: São Tomás de Aquino e Aristóteles, em filosofia, o Conselho de Trento e a Bíblia, na teologia, Cícero em retórica, versões expurgadas de Tucídides, Homero e Hesíodo e "outros desta natureza", na aprendizagem geral. Autores hostis à Cristanc4~açle são lidos TEORIAS DA EDUCAÇÃO NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO 87 frugalmente, e somente sob cuidadosa supervisão: os servos de Cristo devem ser completamente obedientes às regras da Ordem. Lutero, ele mesmo educado na Ordem Agostiniana, lança, ainda, outra revolução, em seu Letter to Mayors... On Behalf of Christian Schools/Carta aos poderosos... em defesa das Escolas Cristãs (1524), e On the Duty of Sending Children to School/Sobre a obrigação de mandar as crianças à escola (1530). Uma vez que a Sagrada Escritura é a autoridade única em moralidade e religião, as crianças devem aprender a ler. Considerando a extensão que suas habilidades e situações permitem, a elas deveria ser ensinado Hebraico, Grego e Latim. Apesar da primazia que ele concede à preparação espiritual em favor da Graça da fé, Lutero atribui a responsabilidade pela educação às autoridades civis, antes que às religiosas. Elas estão sob o compromisso de obrigar os cidadãos a enviar as crianças para a escola, e de fornecer um currículo que abarque ciências e artes, jurisprudência e medicina, crônicas e História. A expressão própria da Graça espiritual estende-se, basicamente, para a vida cívica: o homem de boa vontade é um cidadão bom e construtivo. A intervenção luterana produziu o desdobramento dramático da educação: embora seus objetivos permanecessem espirituais, ela foi obrigatória, universal e regulada pela autoridade cívica. De uma forma mais cética, Education of the Prince (1516), de Erasmo, fornece um contraponto a seus predecessores. As virtudes do Príncipe não são vícios exercitados para nobres fins: são as virtudes simples da Cristandade original, devendo ser exercitadas por todos da mesma forma. Harmonia cívica e paz, em vez de glória ou força sagaz fornecem a melhor segurança do Estado. As fraquezas e debilidades da natureza humana - ignorância, medo recíproco, diversidade e luta de paixões - atribuem limites severos às esperanças de reformas revolucionárias dramáticas. A controvérsia entre Erasmo e Lutero sobre a liberdade e o poder da vontade foi a mais inflamada porque eles estiveram de acordo 88 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS sobre a corrupção da Igreja Romana, seu abuso de autoridade. Aquele debate - De Libero Arbitrio (1524), de Erasmo, a resposta de Lutero, em Qn the Bondage of the Will (1525), contraditada por Erasmo, em Hyperaspistes (1526) - teve implicações de longo alcance para a educação. Enquanto ambos atribuíram àconsciência individual a tarefa de preparar para a salvação, discordaram sobre os recursos aos quais o indivíduo pode recorrer. Embora Erasmo acredite que a consciência é o guardião último da alma do indivíduo, aconselha os cristãos a permanecerem sob a tutela de uma Igreja Romana reformada convenientemente. Cosmopolita, à vontade em Lowlands, Paris, Inglaterra, Louvam, Roma, Basel, Freiburg e Breisgau, Erasmo estabeleceu um modelo de precisão em suas traduções e comentários sobre o Novo Testamento e os escritos patrísticos originais. Como são difíceis de aplicar, as regras da sabedoria foram simples e diretas: analisar e testar variantes manuscritas, presentes em ambos os lados de inúmeras controvérsias, admitir ignorância e não reivindicar mais do que se pode provar. Em suas mãos, clareza e amplidão da mente, retidão da conduta e simplicidade da fé foram instrumentos morais encorajadores. Ironicamente, Erasmo forneceu as diretrizes e o apoio textual às mudanças dramáticas da Reforma, que ele próprio considerou tão excessivas quanto perigosas. Embora Descartes (1596-1650) não discutisse expiicitamente a educação, Regulae (1628) e Principia Philosophiae (1644) têm conseqüências pedagógicas poderosas: o método analítico fornece a base e o modelo para a investigação; o cientista matemático é a nova autoridade. Como a vontade não pode por si mesma corrigir paixões maíformadas - isto é, confusas, desinformadas -a educação moral requer o desenvolvimento de hábitos de pensamentos sólidos (Passions de EÂme, 1.45, III. 15 2-3, 1649). Estime de soi même e générosité - as paixões disposicionais, TEORIAS DA EDUCAÇÃO NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO 89 que são as virtudes da mente - trazem à memória a vontade para sustar o julgamento face a idéias obscuras e indistintas. A descoberta científica - interpretada como a descoberta da ordem divina - é a atividade essencial da mente; felizmente, isto também fornece a maior parte da procedência fidedigna de idéias que podem, em princípio, extrair paixões corretivas compensatórias. Embora tome a verdade científica para fornecer a nova autoridade moral, Descartes, entretanto, adere a uma moralidade provisória: obedecerá às leis do seu país e seguirá a orientação da Igreja, provavelmente, na esperança, não manifesta, de que os avanços científicos poderiam, eventualmente, melhorar aquelas instituições e suas leis. Some Thoughts Concerning Education (1693), de Locke (1632-1704) é uma mistura de liberalismo antiautoritário com conservadorismo econômico. Um manual para a educação dos filhos de cavalheiros, isto é, um contraste notável em relação a suas Proposals for the Bringing up of ChiLdren of Paupers. Os filhos dos cavalheiros eram educados por tutores que podiam moldar os hábitos e direcionar a mente de seus pupilos para ocupações práticas. Aprender fazendo é a grande inovação pedagógica: os idiomas eram adquiridos pela conversação e pelas viagens mais que pelo estudo dos clássicos; a educação científica era, tanto quanto possível, fundamentada em observação e experiência direta em vez de exposta como sistema dedutivo. Embora Locke pensasse que a Divindade tivesse dotado o homem com idéias morais e matemáticas, acreditava que o conhecimento moral poderia ser melhor conduzido pelo estudo da História, de biografias e pela Sagrada Escritura, em vez de pela teologia ou pela casuística. Uma vez colocado no caminho certo do senso comum e da responsabilidade social, o cavalheiro era destinado a trazer a ordem ao resto da sociedade: as crianças pobres aprendiam o ofício de modo a que pudessem tornar-se independentes e reembolsar seus benfeitores. 90 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS Defensores eloqüentes em favor da instrução pública universal, Adam Smith (1723- 90) e Condorcet (1743-94) argumentaram que ela é um bem intrínseco; e que ela conduz a uma sociedade amável, moderada, reflexiva, e "discursiva", capaz de deliberação cívica prudente. Moderando os extremos de -e a separação entre - uma educação clássica de elite e uma educação focada no treinamento ocupacional, os autores justificaram a educação pública como uma atividade liberal e humanizada, por não significar meramente um instrumento econômico para aumentar o "capital humano Hume (1711-1776) reintroduz a imaginação como um protagonista central na educação moral. As paixões do amor-próprio e do egoísmo são nossas razões primárias; felizmente, o mecanismo da simpatia - um dom natural da mente humana -torna as necessidades, paixões e, até certo ponto, o pensamento dos outros imaginativarnen~~ vívidos para nós, como se fossem os nossos próprios. Embora tenhamos alguns sentimentos morais naturais - benevolência, caridade, generosidade para com as crianças - eles são, em si mesmos, insuficientemente fortes para promover os sentimentos de confiança de uma vida moral saudável. Como as outras virtudes artificiais, a justiça surge quando tomamos "um ponto de vista geral", ampliando-o pela imaginação e informando..0 pela compreensão, a fim de considerar se uma ação ou um traço de caráter é tipicamente útil ou agradável para nossos iguais. As convenções de justiça sao, inicialmente, formadas por considerações egoístas, "mas uma simpatia pelo interesse público é a fonte da aprovação moral que atende àquela virtude" (Treatise of Human Nature, 111.2.2, 1739-40). Ela é, argumenta Hume, facilmente movida por uma compreensão simpática dos interesses dos iguais, numa sociedade homogênea. Mas até mesmo numa sociedade diversa a educação moral pode alargar o escopo da imaginação para assumir o "ponto de vista geral"; aquela simpatia pode ser bem-sucedida ao TEORIAS DA EDUCAÇÃO NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO 91 estimular idéias de bem comum, com a força e a vivacidade das paixões motivadas. Preliminary Discourse, de Diderot (1713-1784), para a Encyclopédie ou Dictionaire raisonné des sciences, des arts et des métiers (1751-1772) anuncia velhos temas em combinações radicalmente novas. O conhecimento é duplamente progressivo: é cumulativo e serve, simultaneamente, à virtude e à felicidade; a compreensão vincula as faculdades interdependentes do sentido, da imaginação, da razão e da memória; todo conhecimento, incluindo conhecimento moral e espiritual, surge da reflexão sobre a experiência dos sentidos, que é, aproximadamente, a mesma em todos os homens; isto é, deve ser igualmente disponível para todos, e todos são igualmente obrigados a contribuir para seu avanço; o conhecimento forma um sistema logicamente coerente, que abarca a atividade produtiva e a investigação científica; as artes e ofícios fornecem contribuições essenciais tanto à moral quanto às ciências teóricas. Resistindo ao que considera as pretensões vazias das deduções metafísicas da ciência e da moralidade, Diderot elogia a confiante e resignada abordagem do conhecimento de Bacon (1560/1-1626). Em contraste com o espírito metafísico abstrato do sistema, que procede formal e dedutivamente, o espírito sistemático de Bacon começa estabelecendo fatos e procede prática e construtivamente rumo à organização substantiva do conhecimento. Kant (1724-1804) volta ao espírito do sistema, agora, formulado em termos igualitários. Enquanto seu racionalismo não nega a propriedade e utilidade moral do sentimento - na verdade, ele considera que o respeito à lei moral é o pivô central da vida moral -, a moralidade estrita requer que se seja capaz de querer fazer o que é correto, somente porque é correto. Em princípio, qualquer um que compreende a lei da não contradição pode determinar o que é correto: a máxima que 92 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS direciona um dever moral pode, sem contradição, ser legada como uma lei universal. A tarefa da educação moral é a de induzir as crianças a compreender e seguir o que a razão, adequadamente compreendida, demanda. A criança não deve ser atraída à moralidade pelo desejo de agradar, ou pelo medo de punição, ou até mesmo porque a virtude é o melhor caminho para a felicidade. Enquanto o exercício de racionalidade crítica autônoma não pode, como tal, ser implementado, o educador moral pode fornecer as condições para o seu despertar: a criança desenvolve hábitos de autoconfiança, enquanto também reconhece que "ela só pode atingir seus próprios fins permitindo aos outros atingir os seus" (KANT, Education, trans. Annette Churton. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1960, p. 28). As crianças estão sendo tomadas como modelos de respeito e auto-respeito; as máximas que são incorporadas àqueles exemplos devem ser articuladas e aplicadas honesta e igualmente para todos, sem exceção. Embora as visões de Kant sobre a moralidade fossem, como ele próprio admitiu, profundamente influenciadas por Rousseau (1712-1778), é este último que parece ser, ao menos, superficialmente, nosso congênere contemporâneo: reconhecendo completamente a inevitabilidade da ambivalência moral, descreve tanto o regime político quanto o regime educacional como promotores da moralidade entre os homens livres. O dois concordam que a moralidade requer autonomia racional; também concordam que a liberdade consiste em tratar a si próprio como sujeito à lei moral e como seu legislador universal. Mas Rousseau projeta nossa condição natural como muito mais benigna e nossa condição social como muito mais problemática do que Kant. Em razão de seus escritos estarem focados na política e na psicologia, em vez de na lógica da moralidade, imaginamos que ele provê o educador moral com uma orientação clara. TEORIAS DA EDUCAÇÃO NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO 93 Os escritos de Rousseau sobre educação moral desdobram-se em três categorias: 1) The Two Discourses (1750, 1755) e a Letter to D'Alembert (1758) são contos preventivos, atacam as causas que debilitam e corrompem a sociedade e suas artes. Não deveriam, então, atacar as causas? Rever como elas inflamam a imaginação e desenvolvem paixões irregulares, perturbadoras. 2) Emite (1762) delineia os estágios da formação psicológica de um homem livre e uma mãe amorosa. A educação vem "ou da natureza ou dos homens ou das coisas" (Emite, 1); a educação básica consiste, em grande parte, em permitir à criança pequena a liberdade de sua atividade natural. Ao invés de se tornar passiva sendo ensinada, ou ressentida, sendo punida, a criança deve aprender por experiência, vendo as conseqüências naturais das suas ações. Para ter certeza, o tutor freqüentemente manipula o mundo da criança: Emílio adquire a compreensão da propriedade e da injustiça vendo os resultados do seu trabalho arbitrariamente despojados; ele aprende sobre promessas sendo colocado em situações onde ele próprio propõe um acordo mutuamente satisfatório (Emite, II). Em vez de responder às perguntas de Emílio sobre os fenômenos naturais, o tutor está empenhado em sua atividade de descobrir os modelos que eles exemplificam. Emílio se mantém afastado da sociedade tanto quanto possível: introduzindo hábitos de dependência, transforma o amour de soi ativo e não autoconsciente em amour propre servil. Quando a adolescência desperta o poder das emoções sexuais, Emílio -que é, neste período, um jovem saudável e sensato - pode ser enviado para aprender como o mundo funciona. Sofia, que será sua esposa e mãe de seus filhos, tem um tipo completamente diferente de educação, focada no trabalho e no sentimento familiar, em vez de na autonomia racional. Embora sua educação pretenda ser moralmente igual e beneficamente complementar, a educação sentimental de Sofia bloqueia sua racionalidade 94 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS imparcial. Como não está qualificada para ser uma cidadã ativa, apenas por cortesia ambígua para com a pureza dos seus sentimentos é que ela pode ser considerada um ser moral. 3) The Social Contract (1762) fornece uma descrição das condições políticas em que os homens podem ter, um em relação ao outro, a expectativa da moralidade. Bruscamente distinta da dependência social, a vida política ativa tanto forma quanto expressa as capacidades morais dos homens. Tornando-se sujeito soberano do corpo político, legislando os princípios gerais das leis às quais submete-se por vontade própria, é que o indivíduo obtém a promessa de sua natureza. Um novo conjunto de sentimentos cívicos habilita os cidadãos a identificar seus interesses com a Vontade Geral: a formação desses sentimentos é alimentada pelos rituais da religião cívica. Letters on the Education of Manking (1794-95), de Schiller (1759-1805) endossa a visão de Kant de que a experiência estética fornece uma sugestão de liberdade tanto da receptividade da sensação quanto das categorias preconcebidas da compreensão; ele também concorda com Kant que a liberdade é uma precondição para a moralidade. Colocando essas duas visões juntas, ele surge com uma conclusão completamente não kantiana. A moralidade é a manifestação do jogo espontâneo da expressão estética; transcende as necessidades governadas pela razão. O construtivismo progressivo dos enciclopedistas é preservado, mas radicalmente reinterpretado: o legislador moral último é o poeta divertido e inventivo ou o compositor, em lugar do artesão e do cientista. A moralidade não é provida pela habilidade técnica ou pelo conhecimento objetivo; nem é adquirida pela imitação de exemplos. Schiller foi tão crítico das tentativas de Goethe em assimilar "gênios" científicos, artísticos e morais, como foi do racionalismo de Kant. Um sentido vigoroso e robusto de agenciar o dom natural de improvisação espontânea, que é a marca da verdadeira moralidade - não pode ser adquirido TEORIAS DA EDUCAÇÃO NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO 95 pelo estudo da natureza ou pela imitação de exemplos. Ele só pode ser desenvolvido permitindo-se a tentativa criativa e espontânea da mente em adquirir a forma e a estrutura da expressão objetiva. Bentham (1748-1832) e J.S. Miii (1806-1873) concordaram que o objetivo último da educação era a promoção da felicidade, de um modo geral, interpretada como a satisfação de um desejo crítica e amplamente informado. Foi precisamente porque a doutrina do seu utilitarismo era complexa e qualificada que tomaram seriamente tanto a educação dos desejos quanto o cálculo das conseqüências. A lógica, a matemática e as ciências foram estudadas por sua atenção intransigente ao detalhe empírico, seu acolhimento liberal à contra-evidência: todos três serviram como modelos de raciocínio autocrítico rigoroso. Bentham declarou abertamente o push-pin tão bom quanto a poesia; Miii ampliou a educação para além dos fatos e da lógica - para a educação do sentimento social e cívico -, tanto como um bem humano quanto como um instrumento para formação da política pública sábia. A educação incluí a história, os clássicos e a literatura. A história é o registro da experiência política; os clássicos fornecem modelos de argumento retórico e de raciocínio dialético; a literatura desenvolve sentimentos sociais e fortalece a capacidade da imaginação simpática. Todas essas vias da educação, tomadas em conjunto e adequadamente ordenadas, são intrínseca e instrumentalmente valiosas. Fortemente influenciado pelos estudos de Hegel (1770-1831) e Rousseau, Dewey (1859-1952) acreditou que a educação moral coincide com a educação cívica democrática, e que ambas envolvem a capacidade para mediar as infinitas tensões entre a expressão espontânea da subjetividade individual e o trabalho objetivo e cooperativo da cidadania. O trabalho da moralidade começa com os problemas práticos que emergem do conflito social; envolve o exercício de um conjunto de habilidades para 96 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS a solução de problemas de segunda ordem que são adquiridos atraves da experiência; e flui no desenvolvimento de hábitos inteligentes e continuamente adaptáveis. O cidadão democrático é o novo governante; a atividade inteligente torna-se o alvo e a expressão da moralidade. As recomendações de Dewey para a educação moral seguem o modelo de suas propostas educacionais gerais. Direcionam a sociedade para fornecer as condições materiais - físicas, psicológicas, sociais e políticas -que permitem ao indivíduo educar-se a si mesmo: ele próprio, espontaneamente, tentará ampliar o escopo, refinar as habilidades e enriquecer o repertório da sua atividade cooperativa. A análise de Goldman sobre os modos pelos quais os processos sociais estruturam o conhecimento desenvolve um lado do legado de Dewey. O outro lado é desenvolvido pela discussão de Galston sobre a educação cívica numa sociedade multicultural. Mesmo se desejamos, não podemos colocar esta História aquém de nós; ela forma e informa as concepções de nossos objetivos e necessidades. Mas enquanto países europeus e anglo-americanos compartilham alguns objetivos educacionais muito gerais, suas histórias políticas e religiosas distintas, suas condições socioeconômicas diferentes atribuem a eles problemas educacionais e morais completamente distintos. Pelo fato de as questões que são a substância das controvérsias educacionais contemporâneas estarem moralmente oneradas, tendemos a supor que sua solução é filosófica e geral. Essas controvérsias - a disputa sobre o lugar da educação religiosa em escolas públicas, sobre a representação das diferenças étnicas, raciais, de gênero e culturais no currículo, sobre se a música e as artes deveriam representar um papel significante na educação pública, sobre se a política educacional deveria ser federal ou local, sobre a separaçao entre um treinamento profissional e técnico e uma educação liberal e humanística compartilhada - levantam TEORIAS DA EDUCAÇÃO NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO 97 questões políticas e morais fundamentais. Assim como os detalhes dos problemas da educação moral naturalmente varian com as circunstâncias nacionais, também o fundamento filosófico para suas soluções deve variar. A visão de Aristóteles sobre a educação moral tem um significado radicalmente diferente a Grã-Bretanha e na Alemanha unificada do pós-guerra; as diferenças entre Loyola, Lutero e Erasmo têm conseqüências distintas sobre os sistemas educacionais da Irlanda, Suécia e Holanda. Os princípios cartesianos da educação, da maneira como são introduzidos na França ou em Portugal, mantêm uma pequena semelhança com sua introdução nos Estados Unidos; úma educação moral focada na primazia do sentimento sociil toma, numa nação cujos cidadãos compartilham uma cultura comum, uma forma diferente da que toma onde uma cultura dominante se depara com uma população multicultural em crescimento. A educação kantiana apresenta uma configuração na Áustria e outra completamente diferente na Austrália. E todas essas configurações, ainda sem que se comece por refletir sobre como a história da educação moral emerge no Segundo e no Terceiro Mundo, ou como ideais educacionais islâmicos, judaicos ou chineses se apóiam - e conflitam com - o momento da economia global que os aguardam. Como é freqüente, a teoria filosófica caminha para a História e termina com a geopolítica. Referências bibliográficas ARISTÓTELES. Ética a Nicomaco. São Paulo: Nova Cultural, 1987. _______ O político. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1965. AGOSTINHO. De magistro. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Coleção Os pensadores. BACON, Francis. New Atlantis. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Coleção Os pensadores. _______ Novum Organum. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Coleção Os pensadores. _______ The advancement of learning. 21. print. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1977. CASTIGLIONE, Baldassare. Le livre du Courtisan. Paris: G. Lebovici, 1987. DURKHEIM, Emile. La educacion moral. Buenos Aires: Editorial Losada, 1947. 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