TÍTULO: Salomé AUTOR: WILDE, Oscar (N. Dublim, 1854 F. 1900 ) TÍTULO ORIGINAL: Salomé LOCAL DA PUBLICAÇÃO: Lisboa. EDITORA: Editorial Estampa Data da publicação: Julho de 2000 2.a Edição GÉNERO: Dramático CLASSIFICAÇÃO: Inglaterra - Século XIX - Ficção COLECÇÃO: Ficções n.º 22 DIGITALIZADO E CORRIGIDO EM Novembro de 2007 POR: Ângelo Miguel Abrantes *** Esta obra foi digitalizada para uso exclusivo de deficientes visuais. A sua distribuição fora desta condição, que viola a lei de direitos de autor, responsabilizará directamente quem desrespeitar a referida disposição legal. *** oscar wilde Salomé DRAMA EM UM ACTO ILUSTRAÇÕES DE AUBREY BEARDSLEY Prefácio e Tradução sobre a versão francesa de ISABEL BARBUDO 2.a Edição Editorial Estampa Ficções 22 PREFÁCIO FICHA TÉCNICA: Título do original: Salomé Autor: Oscar Wilde Capa: Carlos António de Oliveira e Sousa Colecção: Ficções N.º 22 1.a edição: Editorial Estampa, 1992 2.a edição: Editorial Estampa, Julho de 2000 Fotocomposição: Byblos-Fotocomposição, Lda. Impressão e Acab.: Rolo & Filhos - Artes Gráficas, Lda. Depósito legal n.º 154 452/00 ISBN 972-33-0864-9 Todos os direitos para esta edição estão reservados por Editorial Estampa, Lda., para a língua portuguesa Tendo nascido em Dublin em 1854, e após terminar os estudos na Universidade de Oxford, onde foi discípulo de John Ruskin e Walter Pater, Oscar Wilde inicia a sua carreira literária em Londres no ano de 1879. Nessa data são publicados os seus primeiros poemas que, aliados às palestras feitas na qualidade de "professor de Estética", constituem a base do lançamento do seu nome no difícil meio intelectual londrino. É como "dandy" e símbolo vivo de um esteticismo de inspiração francesa que ele consegue, efectivamente, sair do anonimato. As suas poses e vestuário são caricaturados por George du Maurier na revista Punch, e Gilbert e Sullivan tomam-no como principal fonte de inspiração para criarem a figura de Bunthorne, o Esteta, na ópera satírica Patience (1881). A ideia de experimentar o drama seduzira entretanto Oscar Wilde. Assim, em 1880, pouco antes de iniciar uma digressão pelos Estados Unidos como conferencista e divulgador daquilo a que chamava a "Ciência do Belo", publica Vera; or, The Nihilists, seguida, três anos mais tarde, de The Duchess ofPadua. A crítica literária constitui um dos passos seguintes: iniciando, em 1885, uma curta carreira como crítico nas páginas de várias revistas e jornais, Wilde inaugura também a sua obra ensaística com um texto que, numa versão posterior, viria a receber o título The Truth ofMasks. Este ensaio, juntamente com The Decay ofLying, Pen, Pencil and Poison e The Critic as Artist, integrou uma colectânea saída a lume em 1891 e a que o autor conferiu um título significativo: Intentions. Entre 1887 e 1891 publicara ainda duas colectâneas de contos (The Happy Prince and Other Tales e A House of Pomegranates) e, em 1890, o seu único romance: The Picture of Dorian Gray. Apesar de, ao notável sucesso alcançado pelos seus contos e romance, se contrapor o evidente fracasso teatral das duas peças que escrevera, Wilde insiste, daí em diante, em fazer carreira como dramaturgo. O projecto seguinte é uma comédia que lhe fora sugerida por George Alexander, actor do St. Jamess Theatre, e que havia de tomar forma sob o título Lady Windermere's Fan - a primeira das quatro comédias que viria a escrever. Entre o início da sua elaboração e a entrega do texto já concluído, Wilde escreve entretanto uma outra peça que, não sendo comédia nem tendo, ao contrário daquela, qualquer objectivo imediato de encenação, parece brotar de uma espontânea necessidade interior. Encontrando-se em Paris, cidade que visitava amiúde e cujo ambiente artístico desde sempre o seduzira, Wilde completa numa só noite o texto dramático a que dá o título Salomé. Posteriormente descreve a génese desta sua peça ao poeta e romancista Vincent O'Sullivan, que a relataria do seguinte modo: "Ele almoçara com um grupo de jovens escritores franceses que incluía André Gide, e contou-lhe a história da peça em que andava a pensar há algumas semanas, inventando-a e desenvolvendo-a à medida que ia falando. Depois regressou aos seus aposentos no Boulevard des Capucines. Estava sozinho, e a noite começava a cair. Sobre a mesa estava um bloco de papel em branco. Ocorreu-lhe então escrever o que acabara de 'narrar'... 'Se o bloco de papel não estivesse ali em cima da mesa, eu nunca pensaria em fazê-lo'." Ainda de acordo com este relato, a única interrupção feita ao longo da noite ocorreu entre as dez e as onze, quando o autor se deslocou ao Grand Café para jantar. Aí uma orquestra tocava, e Wilde disse ao chefe da mesma: "Estou a escrever uma peça acerca de uma mulher que dança descalça sobre o sangue de um homem que ela desejara e mandara matar. Quero que toque algo de acordo com os meus pensamentos." O chefe da orquestra, obedecendo ao pedido, executou uma música de tal modo terrível, que todas as pessoas presentes emudeceram. Quanto ao autor, subiu aos seus aposentos e acabou de escrever Salomé. O resultado deste breve mas intenso momento de inspiração foi um texto escrito não para agradar a um encenador ou a um auditório, mas unicamente a si próprio. Se durante algum tempo houve dúvidas quanto à língua em que a versão original teria sido escrita - inglês ou francês - está hoje definitivamente assente que Wilde a escreveu nesta última língua, tendo a tradução para inglês sido feita por Lord Alfred Douglas. Foram três, aliás, as versões manuscritas pelo autor em francês, todas elas sujeitas a correcções de carácter meramente linguístico. A terceira dessas versões, corrigida por Pierre Louys, viria a ser utilizada para publicação. Para além da atracção que a língua francesa sempre exercera em Wilde (segundo testemunhos da época ele dominava-a perfeitamente), o facto de a ter escolhido para este texto resultou sobretudo de uma estratégia discursiva deliberadamente copiada de Maurice Maeterlinck, o dramaturgo belga que lançara as bases do drama simbolista europeu. O próprio Wilde o afirmou numa entrevista, explicitando: "Ele, que é de origem flamenga, escreve numa língua estrangeira." Publicada em francês em Paris e em Londres, em 1893, a peça agrada de tal modo à actriz Sarah bemhardt, que esta decide pô-la em cena com um elenco francês e desempenhando ela própria o papel da protagonista. Os ensaios iniciam-se no Palace Theatre em Londres com a presença do autor, para quem a adesão da que ele considera a maior actriz da época constitui um indescritível prazer. O perigo da censura começara, no entanto, a pairar, colocando-se a hipótese da sua proibição, por incluir personagens bíblicas, de acordo com uma lei que remontava à Reforma Protestante. A indignação de Wilde assume a forma de uma ameaça: "Se Salomé for proibida, deixarei a Inglaterra e naturalizar-me-ei francês. Não aceitarei considerar-me cidadão de um país que mostra uma tal tacanhez no seu juízo artístico. Eu não sou inglês. Sou irlandês - o que é muito diferente." Quando a proibição se torna uma realidade, Wilde permanece no entanto em Londres, assistindo desolado ao cancelamento dos ensaios e ao termo do seu auspicioso projecto. Para além de tudo, é o silêncio mantido por actores e críticos que aumenta a sua íntima revolta. Um silêncio que denuncia, afinal, a consciência de que não se trata apenas do desrespeito por uma cláusula obsoleta, 10 mas de algo muito mais profundo, conforme se tornara aliás já patente na crítica feita num jornal da época, aquando da publicação da peça: "É uma combinação de sangue e ferocidade, mórbida, bizarra, repulsiva e profundamente ofensiva, na sua adaptação de uma linguagem bíblica a situações que são o inverso do sagrado." Significativamente, a peça viria a ser representada pela primeira vez em Paris, no Théâtre de LVeuvre, em Fevereiro de 1896. O autor encontrava-se então numa prisão inglesa a cumprir uma pena de dois anos por práticas homossexuais implicando a corrupção de menores. A Alemanha seria o segundo país europeu a pô-la em cena, em 1901, ou seja, um ano após a morte do autor. Em 1905, Richard Strauss, director da Ópera Real de Berlim, concebia uma ópera com o texto de Wilde, indo assim ao encontro da concepção que este por diversas vezes manifestara, referindo-se a Salomé em termos musicais. Quanto à Inglaterra, só em 1905 teria lugar a primeira representação, semi-privada, sendo posta finalmente em cena num espectáculo público no Lyceum em 1931, ou seja, trinta e nove anos depois da sua publicação. Tal foi a fortuna da única peça escrita por Oscar Wilde à revelia dos padrões estéticos e ético-morais da Inglaterra vitoriana; a única peça escrita ao sabor das tendências estéticas com que mais profundamente se identificava: o Simbolismo e o Decadentismo franceses. Maeterlinck, o dramaturgo por quem Oscar Wilde por diversas vezes manifestou profunda admiração, constitui a influência mais claramente determinante, sendo notórias as semelhanças de Salomé com La Princesse Maleine 11 (1889) e Pelléas et Mélisande (1892). Ao nível temático, o fatalismo vago mas insistente das peças daquele dramaturgo, subjacente às misteriosas relações entre o amor, o pecado e o sofrimento, manifesta-se, com a mesma intensidade e num contexto semelhante, nesta peça de Wilde. A heroína é também uma jovem princesa vítima de intensa e irresistível paixão, que a conduzirá a uma morte violenta. A escolha da personagem do Evangelho segundo S. Marcos para heroína remete-nos, por sua vez, para o facto de esse episódio bíblico constituir um dos temas preferidos dos artistas franceses do "fin-de-siècle". Flaubert escrevera Sallambô (1862) e Hérodias (1877) e Mallarmé publicaria, em 1898, o poema dramático Herodiade. O pintor simbolista Gustave Moreau tornara-se entretanto famoso pelo cunho simultaneamente místico e erótico conferido a Salomé, que pintara dançando ou admirando a cabeça decepada de S. João Baptista. Um dos seus quadros, Salomé dansant, exibido em 1876, inspirara nomeadamente Huysmans, autor do romance decadentista À Rebours. Des Esseintes, herói deste romance, ao descrever Salomé como uma deusa de perversa luxúria, afasta-se, tanto como Moreau, da imagem traçada no Novo Testamento. A conotação exoticamente sensual que atribui à dança de Salomé mantém-se no texto de Wilde. Neste, a dança dos sete véus constitui, aliás, o mais central e, simultaneamente, o mais hermético dos símbolos. Não dando qualquer indicação quanto ao modo como deverá ser dançada (escreve apenas: "Salomé executa a dança dos sete véus"), Wilde atribuía-lhe, no entanto, um sentido esotérico, como se depreende da dedicatória inscrita no 12 volume que ofereceu a Aubrey Beardsley, ilustrador da primeira edição em inglês: "Para Aubrey: para o único artista que, além de mim próprio, sabe o que é a dança dos sete véus, e consegue ver essa dança invisível." Aubrey Beardsley, um artista que se tornara notado graças aos desenhos e ilustrações a preto e branco evocadores de um erotismo perverso, nutria por Wilde uma aversão que era sobejamente conhecida. A tal se deve, segundo se crê, o facto de Oscar Wilde ter sido excluído do número dos colaboradores da revista Yellow Book, a revista inglesa que melhor espelhou as tendências vivenciais e estéticas do período finissecular, e de que Beardsley foi editor artístico. Apesar disso, e certamente graças ao reconhecimento de uma sensibilidade estética compatível com a atmosfera da sua peça, Wilde aceita as ilustrações de Beardsley, que não perde a oportunidade para, nalgumas delas, caricaturar o rosto do autor. Ao fazê-lo, ele parece querer insinuar a existência, na peça, de uma dimensão autobiográfica que os críticos viriam posteriormente a reconhecer. O confronto entre Iokanaan e Salomé viria, assim, a ser encarado na perspectiva de uma dramatização do mais profundo conflito do autor: de um lado, o moralismo ruskiniano, reflexo de uma época obcecada pela ética, e conduzido aqui aos extremos de um fanatismo rígido; no pólo oposto, o sensualismo livre e sem limites sugerido pelo esteticismo pateriano. O aniquilamento de ambos mostra que a conclusão subjacente a The Picture ofDorian Gray (nas palavras do próprio Wilde: "Todo o excesso, tal como toda a renúncia, comporta o seu próprio castigo"), é retomada em Salomé. 13 Aqui assiste-se, porém, à sobrevivência de Herodes, a personagem que, à semelhança do protagonista do romance, é portadora do dilema wildeano, como homem e como artista. Quando a cedência aos seus impulsos libidinosos demonstra ter consequências que não previra (a destruição simbólica dos princípios morais e religiosos personificados no profeta), Herodes amaldiçoa a projecção da sua própria luxúria e, instintivamente, decide aniquilá-la. Sobrevivendo, embora, a este doloroso processo, Herodes continuará a ser um homem marcado pelo peso de um tremendo combate interior. A seu lado, e significativamente, resta-lhe apenas a presença de Herodias, a imagem do filistinismo na peça. A primeira edição em inglês, que deste modo abria caminho para fecundas interpretações da peça, aparecia cerca de um ano depois da versão original, e na sequência de um processo algo conturbado respeitante à sua tradução. A dedicatória apontava o nome do tradutor: "Ao meu amigo Lord Alfred Bruce Douglas, tradutor da minha peça." Wilde viria, no entanto, a manifestar o profundo descontentamento que a tradução lhe provocara, tendo inclusivamente sido causa de desentendimentos com Alfred Douglas. Em De Profundis, a longa carta escrita na prisão e dirigida a este, Wilde lembraria a esse propósito: "Três meses mais tarde, em Setembro, ocorreram novas cenas, relacionadas com o facto de eu te ter apontado os erros primários da tradução que tinhas tentado fazer de Salomé. Os conhecimentos de francês que entretanto certamente adquiriste, mostrar-te-ão agora que a tradução era tão indigna de ti, enquanto estudante de Oxford, como da obra que tentava reproduzir." 14 Embora seja lícito concluir destas palavras que Wilde terá imposto as correcções que se lhe afiguraram necessárias, a versão inglesa surge, de qualquer modo, como um texto recriado por alguém que não o autor, e em relação ao qual este terá, porventura, mantido algumas reservas. Um confronto entre a versão inicial escrita por Wilde em francês e a sua réplica inglesa põe, com efeito, em relevo não apenas as limitações decorrentes da tradução feita para uma língua com características dissemelhantes, mas também, e em muitos casos, as opções do tradutor. Um dos aspectos mais salientes é o que se relaciona com a repetição de certos termos e expressões: embora já notória e insistente no texto em francês, ela acentua-se, de modo flagrante, na versão inglesa. Tratando-se de uma faceta pautada por um projecto estético de inspiração simbolista e favorecida, segundo Wilde, pelo uso de uma língua estrangeira, a sua intensificação no texto inglês parece decorrer sobretudo da escolha - ou, quem sabe, da inépcia - do autor da tradução. Assim sendo, e porque quisemos aproximar-nos o mais possível da obra tal como foi concebida por Wilde na versão original, foi principalmente nesta que nos baseámos para traduzir Salomé para a língua portuguesa - uma língua cuja semelhança com o francês viabiliza a aproximação pretendida. MARIA ISABEL BARBUDO 15 I PERSONAGENS HERODES ANTIPAS, tetrarca da Judeia IOKANAAN, o profeta O JOVEM SÍRIO, capitão da guarda TIGELINO, um jovem romano UM CAPADÓCIO UM NÚBIO PRIMEIRO SOLDADO SEGUNDO SOLDADO O PAJEM DE HERODIAS JUDEUS NAZARENOS SOLDADOS, etc. UM ESCRAVO NAAMAN, o carrasco HERODIAS, mulher do tetrarca SALOMÉ, filha de Herodias AS ESCRAVAS DE SALOMÉ 19 CENÁRIO Um grande terraço no palácio de Herodes, dando para o salão de banquetes. Alguns soldados estão encostados à varanda. A direita há uma enorme escadaria; à esquerda, atrás, uma velha cisterna rodeada por um muro de bronze verde. Luar. O JOVEM SÍRIO Que linda que está a Princesa Salomé esta noite! O PAJEM DE HERODIAS Olhai para a Lua! Que estranho aspecto ela tem! Dir-se-ia uma mulher erguendo-se de um túmulo. Parece uma mulher morta. Dir-se-ia que anda à procura de mortos. O JOVEM SÍRIO Tem um aspecto muito estranho. Parece uma princesinha com um véu amarelo e pés de prata. Parece uma prin- 21 cesa cujos pés são como duas pombas brancas. Dir-se-ia que está a dançar. O PAJEM DE HERODIAS É como uma mulher morta. Caminha muito lentamente. Ruído no salão de banquetes PRIMEIRO SOLDADO Que algazarra! Quem são aquelas bestas uivantes? - SEGUNDO SOLDADO São os Judeus. Estão sempre assim. Estão a discutir a sua religião. PRIMEIRO SOLDADO Porque discutem eles a religião? SEGUNDO SOLDADO Não sei. Fazem-no continuamente. Os Fariseus, por exemplo, dizem que existem anjos, e os Saduceus declaram que não. PRIMEIRO SOLDADO Acho ridículo discutir tais coisas. O JOVEM SÍRIO Que linda que está a Princesa Salomé esta noite! 22 O PAJEM DE HERODIAS Estais sempre a olhar para ela. Olhais demasiado para ela. Não se deve olhar para as pessoas desse modo. Pode acontecer uma desgraça. O JOVEM SÍRIO Ela está muito bonita esta noite. PRIMEIRO SOLDADO O Tetrarca tem um ar sombrio. SEGUNDO SOLDADO Sim, tem um ar sombrio. PRIMEIRO SOLDADO Está a olhar para alguma coisa. SEGUNDO SOLDADO Está a olhar para alguém. PRIMEIRO SOLDADO Para quem olha ele? SEGUNDO SOLDADO Não sei. O JOVEM SÍRIO Que pálida que está a Princesa! Nunca a vi tão pálida. Parece o reflexo de uma rosa branca num espelho de prata. 25 O PAJEM DE HERODIAS Não deveis olhar para ela. Olhais demasiado para ela. PRIMEIRO SOLDADO Herodias encheu o cálice do Tetrarca. O CAPADÓCIO Aquela é Herodias? A que usa uma mitra negra cravejada de pérolas e tem os cabelos empoados de azul? PRIMEIRO SOLDADO Sim, é Herodias, a mulher do Tetrarca. SEGUNDO SOLDADO O Tetrarca gosta muito de vinho. Tem-no de três qualidades. Um que vem da ilha de Samotrácia e é cor de púrpura, como o manto de César. O CAPADÓCIO Eu nunca vi César. SEGUNDO SOLDADO Um outro que vem da cidade de Chipre e é amarelo como o ouro. 26 O CAPADÓCIO Gosto muito de ouro. SEGUNDO SOLDADO E o terceiro é da Sicília. Esse vinho é vermelho como sangue. O NÚBIO Os deuses da minha terra gostam muito de sangue. Duas vezes por ano sacrificamos-lhes mancebos e virgens: cinquenta mancebos e cem virgens. Mas parece que nunca lhes damos o suficiente, pois são muito severos para connosco. O CAPADÓCIO Na minha terra já não há deuses, os Romanos expulsaram-nos. Há quem diga que se esconderam nas montanhas, mas não acredito. Passei três noites nas montanhas procurando-os por toda a parte. Não os encontrei. Por fim chamei-os pelos nomes, e não vieram. Acho que estão mortos. PRIMEIRO SOLDADO Os Judeus veneram um Deus que é invisível. O CAPADÓCIO Não consigo perceber isso. PRIMEIRO SOLDADO Na verdade, eles só acreditam em coisas invisíveis. 27 O CAPADÓCIO Acho isso absolutamente ridículo. ,, , A VOZ DE IOKANAAN Depois de mim virá um outro ainda mais poderoso do que eu. Eu nem sou digno de lhe desatar as correias das sandálias. Quando ele vier, a terra deserta alegrar-se-á e florescerá como o lírio. Os olhos dos cegos verão a luz e os ouvidos dos surdos abrir-se-ão. O recém-nascido tocará no ninho do dragão e levará os leões pela juba. SEGUNDO SOLDADO Mandai-o calar. Está sempre a dizer coisas absurdas. PRIMEIRO SOLDADO Não, não. Ele é um homem santo. E além disso é muito amável. Levo-lhe comida todos os dias e ele agradece-me sempre. O CAPADÓCIO Quem é ele? PRIMEIRO SOLDADO É um profeta. O CAPADÓCIO Como se chama? 28 PRIMEIRO SOLDADO IOKANAAN; O CAPADÓCIO De onde vem? PRIMEIRO SOLDADO Do deserto, onde se alimentava de gafanhotos e mel silvestre. A roupa era feita de pêlo de camelo e à volta da cintura trazia um cinto de couro. Tinha um ar selvagem. Costumava ser seguido por uma multidão e até tinha discípulos. O CAPADÓCIO De que fala ele? PRIMEIRO SOLDADO Não sabemos. Às vezes diz coisas terríveis, mas é impossível compreendê-lo. O CAPADÓCIO Pode-se vê-lo? PRIMEIRO SOLDADO Não. o Tetrarca não o permite. O JOVEM SÍRIO A Princesa escondeu o rosto atrás do leque! As suas mãozinhas brancas estremecem como pombas a voar para 29 os seus pombais. Parecem borboletas brancas. São tal e qual borboletas brancas. O PAJEM DE HERODIAS Que vos importa? Porque olhais para ela? Não deveis olhar para ela... Pode acontecer uma desgraça. O CAPADÓCIO Apontando para a cisterna Que estranha prisão! SEGUNDO SOLDADO É uma velha cisterna. O CAPADÓCIO Uma velha cisterna! Deve ser muito insalubre. SEGUNDO SOLDADO Não é. Vede o exemplo do irmão do Tetrarca, o irmão mais velho, primeiro marido da Rainha Herodias, que esteve lá preso durante doze anos. E não morreu. No fim teve de ser estrangulado. O CAPADÓCIO Estrangulado? Quem se atreveu a fazê-lo? SEGUNDO SOLDADO Apontando para o Carrasco, um enorme negro Aquele homem ali, Naaman. ; 30 O CAPADÓCIO Ele não teve medo? SEGUNDO SOLDADO Não! O Tetrarca mandou-lhe o anel. O CAPADÓCIO Que anel? SEGUNDO SOLDADO O anel da morte. Por isso não teve medo. O CAPADÓCIO De qualquer modo é uma coisa terrível estrangular um rei. PRIMEIRO SOLDADO Porquê? Os reis só têm um pescoço, como as outras pessoas. O CAPADÓCIO Acho terrível. O JOVEM SÍRIO A Princesa levanta-se! Está a abandonar a mesa! Tem um ar muito perturbado. Ah, vem para cá. Sim, vem na nossa direcção. Que pálida que ela está! Nunca a vi tão pálida... 31 O PAJEM DE HERODIAS Não olheis para ela. Peço-vos que não olheis para ela. O JOVEM SÍRIO É como uma pomba que se extraviou... É como um narciso agitado pelo vento... Parece uma flor de prata. Entra SALOMÉ Eu não ficarei. Não posso ficar. Porque me olha o Tetrarca constantemente com os seus olhos de toupeira sob pálpebras que tremem? É estranho que o marido da minha mãe me olhe desse modo. Não sei o que isso significa. Na verdade, sei sim. O JOVEM SÍRIO Acabais de deixar o festim, Princesa? SALOMÉ O ar aqui está tão fresco! Aqui consegue-se respirar! Lá dentro estão Judeus de Jerusalém injuriando-se uns aos outros por causa das suas tolas cerimónias, e Bárbaros que bebem sem parar, espalhando o vinho pelo chão, e Gregos de Esmirna com os olhos e as faces pintadas e os cabelos frisados em espiral, e Egípcios silenciosos e subtis com longas unhas de jade e túnicas escuras, e Romanos com a sua brutalidade, a sua grosseria e os seus palavrões. Ah! Como detesto os Romanos! São gente vulgar, mas dão-se ares de grandes senhores. 32 O JOVEM SÍRIO Não quereis sentar-vos, Princesa? O PAJEM DE HERODIAS Porque lhe falais? Porque olhais para ela? Oh! Vai acontecer uma desgraça. SALOMÉ Que bom ver a Lua! Parece uma pequena moeda. Dir-se-ia uma florzinha de prata. É fria e casta, a Lua... Tenho a certeza de que é virgem. Tem uma beleza virginal. Sim, é virgem. Nunca se corrompeu. Nunca se entregou aos homens, como as outras Deusas. A VOZ DE IOKANAAN Chegou o Senhor! Chegou o filho do Homem. Os centauros esconderam-se nos rios e as sereias deixaram os rios, deitando-se sob as folhas das florestas. SALOMÉ Quem foi que gritou? SEGUNDO SOLDADO O profeta, Princesa. SALOMÉ Ah, o profeta! Aquele de quem o Tetrarca tem medo? 35 SEGUNDO SOLDADO Disso não sabemos nada, Princesa. Foi o profeta Iokanaan que gritou. O JOVEM SÍRIO Quereis que mande vir a vossa liteira, Princesa? Está uma bela noite no jardim. SALOMÉ Ele diz coisas monstruosas acerca da minha mãe, não é verdade? SEGUNDO SOLDADO Nós não sabemos o que ele diz, Princesa. SALOMÉ Sim, diz coisas monstruosas acerca dela; Entra um ESCRAVO Princesa, o Tetrarca pede-vos que regresseis ao festim. SALOMÉ Não irei. O JOVEM SÍRIO Perdoai-me, Princesa, mas se não voltardes poderá acontecer alguma desgraça. 36 SALOMÉ É velho, o profeta? O JOVEM SÍRIO Princesa, seria melhor voltardes. Permiti-me que vos acompanhe. SALOMÉ O profeta... é velho? PRIMEIRO SOLDADO Não, Princesa, é ainda bastante novo. SEGUNDO SOLDADO Não se sabe. Há quem diga que ele é Elias. SALOMÉ Quem é Elias? SEGUNDO SOLDADO Um profeta muito antigo desta terra, Princesa. O ESCRAVO Que resposta devo dar ao Tetrarca da parte da Princesa? A VOZ DE IOKANAAN Não te regoziges, terra da Palestina, por se ter quebrado a vergasta daquele que te batia. Pois da raça da serpente brotará um basilisco, e o que deste nascer devorará as aves. 37 SALOMÉ Que estranha voz! Gostaria de falar com ele. PRIMEIRO SOLDADO Receio que seja impossível, Princesa. O Tetrarca não quer que ninguém lhe fale. Até proibiu o Sumo Sacerdote de lhe falar. SALOMÉ Eu quero falar com ele. PRIMEIRO SOLDADO É impossível, Princesa. SALOMÉ Eu quero. O JOVEM SÍRIO Princesa, seria melhor voltardes para o banquete. SALOMÉ Trazei-me o profeta. Sai o ESCRAVO PRIMEIRO SOLDADO Não nos atrevemos, Princesa. SALOMÉ ..; . '. ;;, Aproximando-se da cisterna e olhando lá para dentro Tão escuro que está lá em baixo! Deve ser terrível estar num buraco tão negro! Parece um túmulo... (Para os SOLDADOS): Não me ouvistes? Trazei-me o profeta. Quero vê-lo. SEGUNDO SOLDADO Princesa, imploro-vos que não nos exijais isso. SALOMÉ Fazeis-me esperar? PRIMEIRO SOLDADO Princesa, as nossas vidas pertencem-vos, mas não podemos fazer o que nos pedis... Na verdade, não é a nós que o deveis pedir. SALOMÉ Olhando para o JOVEM SÍRIO Ato! O PAJEM DE HERODIAS Oh! O que irá acontecer? Tenho a certeza de que acontecerá uma desgraça. 38 SALOMÉ Aproximando-se do JOVEM SÍRIO • Fareis isso por mim, não é verdade, Narraboth? Fareis isso por mim. Eu sempre fui simpática para vós. Fá-lo-eis por mim, não é verdade? Eu só quero olhar para esse estranho profeta. Falam tanto dele... ouvi várias vezes o Tetrarca falar acerca dele. Eu acho que o Tetrarca o teme. Tenho a certeza de que o teme. Será que vós, também vós, o temeis, Narraboth? O JOVEM SÍRIO Eu não o temo, Princesa. Não temo ninguém. Mas o Tetrarca proibiu expressamente que se levantasse a tampa deste poço. SALOMÉ '.,., > Fareis isso por mim, Narraboth, e amanhã, quando eu passar na minha liteira pelo portão dos vendedores de ídolos, deixarei cair para vós uma pequena flor, uma pequena flor verde. O JOVEM SÍRIO Princesa, não posso, não posso. ? ! > SALOMÉ Sorrindo Fareis isso por mim, Narraboth. Sabeis que o fareis por mim. E amanhã, quando eu passar na minha liteira pela ponte dos compradores de ídolos, olharei para vós através 40 dos véus de musselina, olharei para vós, Narraboth, talvez até vos sorria. Olhai para mim, Narraboth, olhai para mim. Ah! Sabeis que ireis fazer o que vos peço. Sabei-lo bem... não é verdade?... Eu sei que o fareis. O JOVEM SÍRIO Fazendo sinal ao TERCEIRO SOLDADO Trazei o profeta... A Princesa Salomé deseja vê-lo. SALOMÉ Ah! O PAJEM DE HERODIAS Oh! Que estranho aspecto tem a Lua. Dir-se-ia a mão de uma mulher morta tentando cobrir-se com uma mortalha. O JOVEM SÍRIO Tem um aspecto muito estranho! Dir-se-ia uma princesinha com olhos de âmbar. Através de nuvens de musselina ela sorri como uma princesinha. O profeta sai da cisterna. SALOMÉ olha para ele e recua IOKANAAN Onde está aquele cujo cálice de abominações já está repleto? Onde está aquele que, envolto em vestes de prata, morrerá um dia diante de todo o povo? Dizei-lhe que venha, 43 para que possa ouvir a voz daquele que já clamou nos desertos e nas casas dos reis. SALOMé De quem fala ele? o jovem sírio Nunca soube, Princesa. IOKANAAN Onde está aquela que, tendo visto imagens de homens pintadas na muralha, imagens a cores dos Caldeus, se entregou à luxúria do olhar e enviou embaixadores à Caldeia? SALOMÉ ' É da minha mãe que ele fala. O JOVEM SÍRIO Não, Princesa; SALOMé ; Sim, é da minha mãe. IOKANAAN Onde está aquela que se entregou aos Capitães dos Assírios, que usam cinturões sobre os rins e tiaras de diversas cores na cabeça? Onde está aquela que se entregou aos 44 jovens do Egipto, que se vestem de linho e jacinto, usam escudos de ouro, capacetes de prata, e têm corpos volumosos? Dizei-lhe que se levante do leito da sua lascívia, do seu leito incestuoso, para que possa ouvir as palavras daquele que prepara o caminho do Senhor, para que se possa arrepender dos seus pecados. Mesmo que ela nunca se arrependa e persista nas suas abominações, dizei-lhe que venha, pois o Senhor tem o azorrague na mão. SALOMÉ Ele é terrível, ele é terrível! O JOVEM SÍRIO Não fiqueis aqui, Princesa, imploro-vos. SALOMÉ Os olhos, sobretudo, é que são terríveis. Dir-se-iam buracos negros feitos por archotes numa tapeçaria de Tiro. Dir-se-iam cavernas negras onde habitam dragões, as cavernas negras do Egipto que são covil dos dragões. Dir-se-iam lagos negros perturbados por luas fantásticas... Achais que ele falará de novo? O JOVEM SÍRIO Não fiqueis aqui, Princesa! Peço-vos que não fiqueis aqui. SALOMÉ Que magro que ele está! Parece uma delgada estatueta de marfim. Dir-se-ia uma imagem de prata. Tenho a cer- 45 teza de que é casto como a Lua. Parece um raio de prata. A sua carne deve ser fria como o marfim... Quero vê-lo de perto. O JOVEM SÍRIO Não, não, Princesa. SALOMÉ Tenho de o ver de perto. O JOVEM SÍRIO Princesa! Princesa! IOKANAAN Quem é esta mulher que está a olhar para mim? Não quero que ela me olhe. Porque me olha com os seus olhos de ouro sob pálpebras douradas? Não sei quem é. Nem quero saber. Dizei-lhe que se vá. Não é com ela que quero falar. SALOMÉ Sou Salomé, filha de Herodias, Princesa da Judeia. IOKANAAN Para trás! Filha da Babilónia! Não vos aproximeis do eleito do Senhor. A tua mãe encheu a terra com o vinho das suas iniquidades, e o clamor dos seus pecados chegou aos ouvidos de Deus. 46 SALOMÉ Fala de novo, Iokanaan. A tua voz inebria-me. O JOVEM SÍRIO Princesa! Princesa! Princesa! SALOMÉ Fala de novo! Fala de novo, Iokanaan, e diz-me o que devo fazer. IOKANAAN Não vos aproximeis, filha de Sodoma. Cobri antes o rosto com um véu, espalhai cinzas sobre a cabeça, e ide para o deserto procurar o filho do Homem. SALOMÉ ; Quem é ele, o filho do Homem? É tão belo como tu, Iokanaan? IOKANAAN Para trás! Para trás! Eu ouço no palácio o bater das asas do anjo da morte. O JOVEM SÍRIO Princesa, peço-vos que volteis para dentro. 47 IOKANNAN Anjo do Senhor, que fazes aqui com a tua espada? Quem procuras neste palácio imundo? O dia daquele que morrerá vestido de prata ainda não chegou. SALOMÉ Iokanaan! Iokanaan Quem fala? SALOMÉ Iokanaan! Estou enamorada do teu corpo. O teu corpo é branco como os lírios de um campo que nunca foi ceifado por um ceifeiro. O teu corpo é branco como as neves que cobrem as montanhas da Judeia e descem para os vales. As rosas do jardim da Rainha da Arábia não são tão brancas como o teu corpo. Nem as rosas do jardim da Rainha da Arábia, nem os pés da aurora que pisam as folhas, nem o seio da lua quando se reclina sobre o seio do mar... Não há nada no mundo tão branco como o teu corpo. Deixa-me tocar o teu corpo! IOKANAAN Para trás, filha da Babilónia! Foi através da mulher que o mal entrou no mundo. Não faleis comigo. Não te quero ouvir. Eu só ouço as palavras do Senhor. 48 SALOMÉ O teu corpo é hediondo. É como o corpo de um leproso. É como um muro de argamassa por onde se arrastaram víboras, um muro de argamassa onde os escorpiões fizeram ninho. É como um sepulcro caiado e cheio de coisas repelentes. É horrível, o teu corpo é horrível! É dos teus cabelos que estou enamorada, Iokanaan. Os teus cabelos parecem cachos de uvas, cachos de uvas negras que pendem das vinhas de Edom na terra dos Edomitas. Os teus cabelos são como os cedros do Líbano, os grandes cedros do Líbano que dão sombra aos leões e aos ladrões que se querem esconder durante o dia. As longas noites negras, as noites em que a lua não se mostra, em que as estrelas têm medo, não são tão negras. O silêncio que paira na floresta não é tão negro. Não há nada no mundo tão negro como os teus cabelos... Deixa-me tocar os teus cabelos. IOKANAAN Para trás, filha de Sodoma! Não me toqueis. Não se deve profanar o templo do Senhor. SALOMÉ Os teus cabelos são horríveis. Estão cobertos de lama e de pó. Dir-se-iam uma coroa de espinhos que te colocaram na fronte. Dir-se-iam um nó de serpentes negras enroscadas em redor do teu pescoço. Não gosto dos teus cabelos... É da tua boca que estou enamorada, Iokanaan. A tua boca é como uma faixa escarlate numa torre de marfim. As flores de romanzeira que florescem no jardim de Tiro e são mais vermelhas do que as rosas, não são tão vermelhas. Os 49 clangores vermelhos das trombetas que anunciam a chegada dos reis e causam medo ao inimigo, não são tão vermelhos. A tua boca é mais vermelha do que os pés daqueles que pisam o vinho nos lagares. É mais vermelha do que os pés das pombas que habitam os templos e são alimentadas pelos sacerdotes. É mais vermelha do que os pés daquele que vem da floresta onde matou um leão e viu tigres dourados. A tua boca é como um ramo de coral que os pescadores encontraram no crepúsculo do mar, e que guardam para os reis...! É como o vermelhão que os Moabitas encontram nas minas de Moab e de que os reis se apoderam. É como o arco do Rei dos Persas, pintado de vermelhão e com pontas de coral. Não há nada no mundo tão vermelho como a tua boca... Deixa-me beijar a tua boca. IOKANAAN Nunca, filha da Babilónia! Filha de Sodoma! Nunca. SALOMÉ Hei-de beijar a tua boca, Iokanaan. Hei-de beijar a tua boca. O JOVEM SÍRIO ' Princesa, princesa, tu que és como um ramo de mirra, tu que és a pomba de todas as pombas, não olhes para este homem, não olhes para ele! Não lhe digas essas coisas. Não consigo suportá-las... Princesa, Princesa, não digas essas coisas. 50 SALOMÉ Hei-de beijar a tua boca, Iokanaan. O JOVEM SÍRIO Ah! Mata-se e cai entre SALOME e IOKANAAN O PAJEM DE HERODIAS O jovem Sírio matou-se! O jovem Capitão matou-se! Matou-se aquele que era meu amigo! Eu tinha-lhe dado uma caixinha de perfumes e brincos de prata, e agora ele matou-se! Ah, não previu ele que alguma desgraça ia acontecer?... Eu também o previ, e aconteceu. Eu bem sabia que a Lua andava à procura de um morto, mas não sabia que era a ele que procurava. Ah! Porque não o escondi eu da Lua? Se o tivesse escondido numa caverna, ela não o teria visto. PRIMEIRO SOLDADO Princesa, o jovem capitão acabou de se matar. SALOMÉ Deixa-me beijar a tua boca, Iokanaan. IOKANAAN Não tendes medo, filha de Herodias? Não vos disse que ouvira no palácio o bater das asas do anjo da morte, e o anjo não veio? 53 SALOMÉ Deixa-me beijar a tua boca. ? IOKANAAN Filha do adultério, só há um homem que te pode salvar. É aquele de que te falei. Vai procurá-Lo. Ele está num barco no mar da Galileia falando com os discípulos. Ajoelhai-vos na margem, e chamai-O pelo nome. Quando Ele vier até vós, e Ele vem sempre que O chamam, rojai-vos a Seus pés e pedi-Lhe a remissão dos vossos pecados. ;, SALOMÉ Deixa-me beijar a tua boca. IOKANAAN Maldita sejas! Filha de uma mãe incestuosa, maldita sejas! SALOMÉ Hei-de beijar a tua boca, Iokanaan. IOKANAAN Não quero olhar para ti. Não olharei para ti. Tu estás amaldiçoada, Salomé, tu estás amaldiçoada! Desce para dentro da cisterna SALOMÉ Hei-de beijar a tua boca, Iokanaan. Hei-de beijar a tua boca. 54 PRIMEIRO SOLDADO Temos de levar o cadáver para outro sítio. O Tetrarca não gosta de ver cadáveres, a não ser os daqueles que ele próprio matou. O PAJEM DE HERODIAS Ele era meu irmão, mais até do que um irmão. Dei-lhe uma caixinha de perfumes e um anel de ágata que ele trazia sempre no dedo. À noite costumávamos passear junto do rio, por entre as amendoeiras, e ele contava-me coisas da sua terra. Falava sempre muito baixo. O som da sua voz fazia lembrar o som da flauta de um tocador de flauta. Ele gostava também de se contemplar nas águas do rio. Eu costumava repreendê-lo por isso. SEGUNDO SOLDADO Tendes razão, temos de esconder o cadáver. O Tetrarca não pode vê-lo. PRIMEIRO SOLDADO O Tetrarca não virá até aqui. Ele nunca vem ao terraço. Tem demasiado medo do profeta. Entram HERODES, HERODIAS e toda a CORTE HERODES Onde está Salomé? Onde está a Princesa? Porque é que não voltou para o banquete, como lhe ordenei? Ah! Ali está ela! 57 HERODIAS Não deveis olhar para ela! Estais sempre a olhar para ela! - HERODES A Lua tem um ar muito estranho esta noite. Não tem um ar estranho? Dir-se-ia uma mulher louca, uma mulher louca à procura de amantes por todo o lado. E está nua. Está completamente nua. As nuvens estão a tentar cobri-la, mas ela não quer. Cambaleia através das nuvens como uma mulher embriagada... Tenho a certeza de que anda à procura de amantes. Não cambaleia como uma mulher embriagada? Parece uma mulher louca, não é? , HERODIAS Não. A Lua parece-se com a Lua, mais nada. Voltemos para dentro. Não tendes nada para fazer aqui, HERODES Vou ficar aqui! Manasses, estendei carpetes aqui. Acendei os archotes. Trazei as mesas de marfim e as mesas de jaspe. O ar aqui está delicioso. Vou beber vinho com os meus convidados. Devemos fazer todas as honras aos embaixadores de César. HERODIAS Não é por causa deles que ficais. 58 HERODES Sim, o ar está delicioso. Vinde, Herodias, os nossos convidados aguardam-nos. Ah! Escorreguei! Escorreguei em sangue! É um mau presságio. É um péssimo presságio. Por que razão há aqui sangue? E este cadáver, o que faz ele aqui? Pensais que sou como o Rei do Egipto, que sempre que dá uma festa mostra um cadáver aos seus convidados? De quem é, afinal? Não quero olhar para ele. PRIMEIRO SOLDADO É o nosso Capitão, Senhor. É o jovem Sírio que vós nomeastes Capitão há apenas três dias. HERODES Não dei ordens para o matarem. SEGUNDO SOLDADO Ele suicidou-se, Senhor. HERODES Porquê? Eu tinha-o feito Capitão. SEGUNDO SOLDADO Não sabemos, Senhor. Mas ele matou-se. HERODES Acho estranho. Pensava que só os filósofos romanos se matavam. Não é verdade, Tigelino, que em Roma os filósofos se matam? 59 TIGELINO Alguns matam-se, Senhor. São os Estóicos. São gente muito grosseira. Enfim, são gente ridícula. Eu considero-os perfeitamente ridículos. HERODES Eu também. É ridículo uma pessoa matar-se. TIGELINO Riem-se muito deles, em Roma. O Imperador escreveu um poema satírico contra eles. É recitado em todo o lado. HERODES Ah! Escreveu um poema satírico contra eles? César é maravilhoso. Consegue fazer tudo... É estranho o jovem Sírio ter-se suicidado. Tenho pena. Tenho muita pena, porque ele era belo. Era mesmo muito belo. Tinha uns olhos muito lânguidos. Lembro-me de o ver olhar languidamente para Salomé. Com efeito, até me pareceu que olhava demasiado para ela. HERODIAS Há outros que também olham demasiado para ela. HERODES O pai dele era Rei. Eu expulsei-o do seu reino. E vós, Herodias, fizestes da mãe dele, que era Rainha, uma escrava. Por isso ele estava aqui como um hóspede. Foi esse o 60 motivo por que o nomeei Capitão. Tenho pena de que tenha morrido. Mas porque deixastes o corpo aqui? Tendes de o levar para outro lado. Não quero vê-lo... Levem-no. (Levam o cadáver.) Está frio aqui. Há vento aqui. Não é verdade que há vento? HERODIAS Não, não há vento. HERODES Há vento, sim... E ouço no ar algo que parece um bater de asas, um bater de asas gigantescas. Não ouvis? HERODIAS Não ouço nada. HERODES Também já não ouço. Mas ouvi. Sem dúvida que era o vento. Já passou. Não, não, ouço de novo. Não ouvis? É tal e qual um bater de asas. HERODIAS Digo-vos que não há nada. Estais doente. Voltemos para dentro. HERODES Não estou doente. A vossa filha é que está. Tem um ar muito doentio, a vossa filha. Nunca a vi tão pálida. 63 HERODIAS Já vos disse que não olheis para ela. HERODES Deitai-me vinho. (Trazem vinho.) Salomé, vinde beber um pouco de vinho comigo. Tenho aqui um vinho raro. Foi o próprio César que mo mandou. Molhai nele os vossos lábios vermelhos, e eu depois esvaziá-lo-ei. SALOMÉ Não tenho sede, Tetrarca. HERODES Ouvis como ela me responde, a vossa filha? HERODIAS ,. Acho que ela tem razão. Porque estais sempre a olhar para ela? ? ,/ ^ HERODES Trazei-me fruta. (Trazem fruta.) Salomé, vinde comer fruta comigo. Adoro ver a marca dos vossos dentinhos num fruto. Mordei um pequeno pedaço deste fruto e eu depois comerei o resto. SALOMÉ . Não tenho fome, Tetrarca. HERODES para HERODIAS Vede como educastes a vossa filha. HERODIAS A minha filha e eu descendemos de uma família real. Quanto a ti, o teu avô era um guardador de camelos! E era também um salteador! HERODES Mentes! HERODIAS Sabes bem que é verdade. .'..(. HERODES Salomé, vem sentar-te ao pé de mim. Dar-te-ei o trono da tua mãe. SALOMÉ Não estou cansada, Tetrarca. HERODIAS Vedes o que ela pensa de vós. 64 HERODES Trazei-me - o que quero eu? Não sei. Ah! Ah! Já me lembro... A VOZ DE IOKANAAN Eis que chegou o tempo! Aquilo que eu previ já aconteceu, diz o Senhor. Eis o dia de que eu falava. HERODIAS Mandai-o calar. Não quero ouvir a sua voz. Este homem está sempre a vomitar insultos contra mim. HERODES Ele não disse nada contra vós. Além disso, é um grande profeta. HERODIAS Não acredito em profetas. Alguém pode dizer o que se vai passar? Ninguém sabe. Além do mais, está sempre a insultar-me. Mas eu acho que tendes medo dele... Sei muito bem que tendes medo dele. HERODES Não tenho medo dele. Não tenho medo de ninguém. HERODIAS Digo-vos que tendes medo dele. Se não tivésseis medo, porque não o entregaríeis aos Judeus, que há seis meses o reclamam? 66 UM judeu Na verdade, Senhor, seria melhor entregá-lo a nós. HERODES Nem mais uma palavra sobre esse assunto. Já vos dei a minha resposta. Não o entregarei a vós. É um homem que viu Deus. UM JUDEU Isso é impossível. Ninguém viu Deus depois do profeta Elias. Ele foi o último a ver Deus. Nos nossos dias Deus não se mostra. Ele esconde-se. É por isso que grandes males caíram sobre esta terra. OUTRO JUDEU Na verdade, ninguém sabe se o profeta Elias realmente viu Deus. Ele pode ter visto apenas a sombra de Deus. UM TERCEIRO JUDEU Deus nunca se esconde. Ele mostra-se em todos os momentos e em todas as coisas. Ele está presente no mal, tal como no bem. UM QUARTO JUDEU Isso não se diz. É uma ideia muito perigosa. É uma ideia que vem das escolas de Alexandria, onde se ensina a filosofia grega. E os gregos são pagãos. Nem sequer são circuncidados. 67 UM QUINTO JUDEU Ninguém sabe como Deus opera, os seus caminhos são misteriosos. Talvez aquilo a que chamamos mal seja o bem, e aquilo a que chamamos bem seja o mal. Nada se sabe. Temos é que nos submeter a tudo. Deus é muito forte. Ele esmaga os fracos e os fortes. Não poupa ninguém. O PRIMEIRO JUDEU Isso é verdade. Deus é terrível. Esmaga os fracos e os fortes como quem esmaga trigo num almofariz. Mas este homem nunca viu Deus. Ninguém viu Deus desde o profeta Elias. HERODIAS Mandai-os Calar. Eles aborrecem-me. HERODES Mas já ouvi dizer que Iokanaan é o vosso profeta Elias, UM JUDEU Não pode ser. Já passaram mais de trezentos anos desde o tempo do profeta Elias. HERODES Há quem diga que ele é o profeta Elias. UM NAZARENO Eu tenho a certeza de que ele é o profeta Elias. 68 UM JUDEU Não, não é o profeta Elias. A VOZ DE IOKANAAN Chegou o dia, o dia do Senhor, e ouço sobre as montanhas os pés d'Aquele que será o Salvador do mundo. HERODES O que significa isso, o Salvador do mundo? TIGELINO É um título de César. HERODES Mas César não vem à Judeia. Ainda ontem recebi cartas de Roma. Não traziam nada a esse respeito. E vós, Tigelino, que estivestes em Roma durante o Inverno, não ouvistes nada a esse respeito, pois não? TIGELINO De facto, não ouvi falar disso, Senhor. Eu estava só a explicar o título. É um dos títulos de César. HERODES Mas César não pode vir. Ele sofre de gota. Dizem que tem pés de elefante. E há também razões de Estado. Aquele que deixa Roma, perde Roma. Ele não virá. No entanto, ele é soberano, virá se quiser. Mas penso que não virá. 69 PRIMEIRO NAZARENO Não era de César que o profeta falava, Senhor HERODES Não era de César? PRIMEIRO NAZARENO Não, Senhor. HERODES De quem é que ele falava, então? PRIMEIRO NAZARENO Do Messias que já veio. UM JUDEU O Messias não veio. PRIMEIRO NAZARENO Ele já veio, e faz milagres por todo o lado. HERODIAS Oh! Oh! Milagres! Não acredito em milagres. Já vi demasiados. (Para o PAJEM): O meu leque! PRIMEIRO NAZARENO Este homem faz verdadeiros milagres. Assim, numas bodas que tiveram lugar numa pequena cidade da Galileia, 70 uma cidade bastante importante, Ele transformou a água em vinho. Umas pessoas que estavam lá contaram-me. E também curou dois leprosos que estavam sentados em frente da porta de Cafernaum, pelo simples facto de lhes tocar. SEGUNDO NAZARENO Não, eram cegos os que ele curou. PRIMEIRO NAZARENO Não, eram leprosos. Mas também curou cegos, e foi visto no alto de uma montanha a falar com anjos. UM SADUCEU Não existem anjos. UM FARISEU Os anjos existem, mas não acredito que este Homem tenha falado com eles. PRIMEIRO NAZARENO Foi visto por uma multidão a falar com anjos. UM SADUCEU Com anjos não. HERODIAS Como estes homens me cansam! São ridículos! São completamente ridículos. (Para o PAJEM): Então, o meu leque! (O PAJEM dá-lhe o leque.) Tendes ar de sonhador. 71 Não deveis sonhar. Os sonhadores são doentes. {Bate no PAJEM com o leque.) SEGUNDO NAZARENO Há também o milagre da filha de Jairo. PRIMEIRO NAZARENO Sim, esse é verdadeiro. Ninguém o pode negar. HERODIAS Estes homens estão loucos. Olharam demasiado para a Lua. Ordenai-lhes que se calem. HERODES Que milagre é esse, da filha de Jairo? PRIMEIRO NAZARENO A filha de Jairo estava morta. Ele ressuscitou-a. HERODES Ele ressuscita os mortos? PRIMEIRO NAZARENO Sim, Senhor, ele ressuscita os mortos. HERODES Eu não quero que Ele faça isso. Proíbo-O de o fazer. Não permito que ressuscitem os mortos. Têm de encontrar 72 esse Homem e dizer-lhe que O proíbo de ressuscitar os mortos. Onde está esse Homem agora? SEGUNDO NAZARENO Ele está em todo o lado, Senhor, mas é difícil encontrá-Lo. PRIMEIRO NAZARENO ; Dizem que agora está em Samaria. UM JUDEU Vê-se bem que não é o Messias, se está em Samaria. Não é aos Samaritanos que o Messias há-de aparecer. Os Samaritanos estão amaldiçoados. Eles nunca trazem oferendas ao Templo. SEGUNDO NAZARENO Ele saiu de Samaria há alguns dias. Penso que neste momento está nos arredores de Jerusalém. PRIMEIRO NAZARENO Não, não está lá. Acabo de chegar de Jerusalém. Há dois meses que não têm notícias d'Ele. HERODES Não interessa! Têm de O encontrar e dizer-Lhe da minha parte que não permito que ressuscite os mortos. Transformar a água em vinho, curar os leprosos e os cegos... pode fazer tudo isso, se quiser. Não me oponho. Na verdade até 73 acho uma boa acção curar os leprosos. Mas não permito que ressuscite os mortos... Seria terrível, se os mortos voltassem. A VOZ DE IOKANAAN Ah, a lasciva! A prostituta! Ah! A filha da Babilónia com olhos de ouro e pálpebras douradas! Eis o que diz o Senhor. Que o povo agarre em pedras e lhas atire... HERODIAS Mandai-o calar. A VOZ DE IOKANAAN Que os capitães de guerra a trespassem com as espadas e a esmaguem sob os escudos. HERODIAS Mas é infame! A VOZ DE IOKANAAN É assim que abolirei os crimes da face da terra, e as* mulheres aprenderão a não imitar as suas abominações. HERODIAS Estais a ouvir o que ele diz contra mim? Deixais que ele injurie a vossa esposa? 74 HERODES Mas ele não pronunciou o vosso nome. HERODIAS Que importa? Sabeis que é a mim que procura injuriar. E eu sou vossa esposa, não sou? HERODES Sim, cara e nobre Herodias, sois minha esposa, e começastes por ser a esposa de meu irmão. HERODIAS Fostes vós que me arrancastes dos seus braços. HERODES Na verdade, eu era o mais forte... mas não falemos disso. Não desejo falar disso. É essa a causa das terríveis palavras que o profeta proferiu. Se calhar por essa razão vai acontecer uma desgraça. Não falemos disso. Nobre Herodias, não nos estamos a lembrar dos nossos convidados. Dá-me de beber, minha bem-amada. Enchei de vinho as grandes taças de prata e as grandes taças de cristal. Vou beber à saúde de César. Há aqui Romanos, temos de beber à saúde de César. TODOS César! César! 75 HERODES Não vedes a vossa filha, como está pálida? HERODIAS Que vos interessa se ela está pálida ou não? HERODES Nunca a vi tão pálida! HERODIAS Não deveis olhar para ela. A VOZ DE IOKANAAN Nesse dia o Sol ficará negro como um saco feito de pêlo, a Lua ficará da cor do sangue, as estrelas do céu cairão sobre a Terra como figos maduros caindo da figueira, e os reis da Terra terão medo. HERODIAS Ah! Ah! Eu gostava de ver o dia de que ele fala, em que a Lua ficará da cor do sangue e as estrelas cairão sobre a Terra como figos maduros. Este profeta fala como um bêbedo... Mas não consigo suportar o som da sua voz. Mandai-o calar. HERODES Não. Não compreendo o que ele diz, mas pode ser um presságio. 76 HERODIAS Não acredito em presságios. Ele fala como um bêbedo, HERODES Talvez esteja embriagado com o vinho de Deus. HERODIAS Que vinho é esse, o vinho de Deus? Em que vinhas é colhido? Em que lagar pode ser encontrado? ERODES Daqui em diante olhando sempre para SALOMÉ Tigelino, da última vez que estivestes em Roma, o Imperador falou-vos a respeito de... TIGELINO A respeito de quê, Senhor? HERODES A respeito de quê? Ah! Fiz-vos uma pergunta, não fiz? Esqueci-me do que ia perguntar. HERODIAS Estais de novo a olhar para a minha filha. Não deveis olhar para ela. Eu já disse isso. HERODES Não dizeis outra coisa. 77 HERODIAS Digo-o de novo. HERODES E a restauração do Templo, de que tanto têm falado? Irão fazer alguma coisa? Dizem que o véu do Santuário desapareceu, não dizem? HERODIAS Foste tu que o tiraste. Estás a falar ao acaso. Eu não quero ficar aqui. Vamos para dentro. HERODES Salomé, dançai para mim. HERODIAS Não quero que ela dance. SALOMÉ Não tenho vontade de dançar, Tetrarca. HERODES Salomé, filha de Herodias, dançai para mim. HERODIAS Deixai-a em paz. 78 HERODES Ordeno-vos que danceis, Salomé. SALOMÉ Não danço, Tetrarca. HERODIAS Rindo Eis como ela vos obedece. HERODES Que me importa que ela dance ou não? É-me indiferente. Esta noite estou feliz, muito feliz. Nunca estive tão feliz. PRIMEIRO SOLDADO O Tetrarca tem um ar sombrio. Não tem um ar sombrio? SEGUNDO SOLDADO Sim, tem um ar sombrio. HERODES Porque não havia eu de estar feliz? César, que é o senhor do mundo, que é o senhor de todas as coisas, gosta de mim. Ainda agora me mandou presentes de grande valor. Além disso, prometeu-me chamar a Roma o Rei da Capadócia, que é meu inimigo. Até pode ser que o crucifique em Roma. César pode fazer tudo o que quiser. Na verdade, ele 79 é o Senhor. Por isso, como vêem, tenho o direito de estar feliz. De facto, estou feliz. Nunca estive tão feliz. Nada no mundo pode estragar a minha felicidade. A VOZ DE IOKANAAN Ele estará sentado no trono. Estará vestido de púrpura e escarlate. Na mão terá uma taça de ouro cheia com as suas blasfémias. E o anjo do Senhor feri-lo-á. Será devorado pelos vermes. HERODIAS Ouvis o que ele diz de vós? Diz que sereis comido pelos vermes. .; HERODES Não é de mim que ele fala. Ele nunca fala contra mim. É do Rei da Capadócia que ele fala, do Rei da Capadócia, que é meu inimigo. Ele é que será comido pelos vermes. Eu não. Nunca dirigiu uma palavra contra mim, o profeta, excepto que fiz mal em tomar para esposa a esposa de meu irmão. Talvez ele tenha razão. Afinal, sois estéril. HERODIAS Sou estéril, eu? Dizeis isso, vós que estais sempre a olhar para a minha filha, vós que queríeis que ela dançasse para vosso prazer? É ridículo dizer isso. Eu tive uma filha. Vós nunca tivestes filhos, nem sequer das vossas escravas. Vós é que sois estéril, e não eu. 80 HERODES Calai-vos! Eu digo que sois estéril. Não me destes filhos, e o profeta diz que o nosso casamento não é um verdadeiro casamento. Ele diz que é um casamento incestuoso, que trará desgraças... E eu receio que ele tenha razão. Tenho a certeza de que tem razão. Mas não é altura para se falar de tais coisas. Eu quero estar feliz neste momento. Na verdade, estou feliz. Não me falta nada. HERODIAS Ainda bem que estais tão bem-disposto esta noite. Não é costume. Mas já é tarde. Vamos para dentro. Não esqueçais que iremos caçar ao nascer do Sol. Devemos prestar todas as honras aos embaixadores de César, não é verdade? SEGUNDO SOLDADO Que ar tão sombrio que tem o Tetrarca! PRIMEIRO SOLDADO Sim, tem um ar sombrio. HERODES Salomé, Salomé, dançai para mim. Imploro-vos que danceis para mim. Estou triste esta noite. Sim, estou triste esta noite. Quando entrei aqui escorreguei em sangue, o que é um mau presságio; e ouvi, tenho a certeza de que ouvi no ar um bater de asas, um bater de asas gigantescas. Não sei o que isso quer dizer... Estou triste esta noite. Por isso, 81 dançai para mim. Dançai para mim, Salomé, suplico-vos. Se dançardes para mim podeis pedir-me tudo o que quiserdes, e eu dá-lo-ei. Sim, dançai para mim e dar-vos-ei tudo o que me pedirdes, até metade do meu reino. SALOMÉ Erguendo-se Dar-me-eis tudo o que vos pedir, Tetrarca? HERODIAS Não danceis, minha filha. HERODES Tudo, até metade do meu reino. SALOMÉ Jurais, Tetrarca? HERODES Juro, Salomé. HERODIAS Minha filha, não danceis. SALOMÉ Jurais por quê, Tetrarca? HERODES Pela minha vida, pela minha coroa, pelos meus deuses. Seja o que for que desejardes, dar-vos-ei, até metade do meu reino, desde que danceis para mim. Oh Salomé, Salomé, dançai para mim! SALOMÉ Vós jurastes, Tetrarca. HERODES Jurei, Salomé. SALOMÉ Tudo o que eu pedir, até metade do vosso reino? HERODIAS Não danceis, minha filha. HERODES Até metade do meu reino. Como Rainha serias muito bela, Salomé, se quisesses pedir metade do meu reino. Não seria bela como Rainha? Ah! Está frio aqui! Está um vento gelado, e ouço... Porque ouvirei eu no ar este bater de asas? Ah! Dir-se-ia um pássaro, um enorme pássaro preto pairando sobre o terraço. Porque não consigo eu ver esse pássaro? O bater das suas asas é terrível. O vento que vem das suas asas é terrível. É um vento frio. Não, mas não está 82 frio. Pelo contrário, está calor. Está muito calor. Estou a sufocar. Deitai-me água nas mãos. Dai-me neve para comer. Desapertai-me o manto. Rápido, rápido, desapertai-me o manto. Não, deixai ficar. É a minha coroa que me magoa, a minha coroa de rosas. Estas flores parecem feitas de fogo. Queimaram-me a fronte. (Arranca a coroa da cabeça e atira-a para cima da mesa.) Ah! Agora consigo respirar. Que vermelhas que são estas pétalas! Dir-se-iam manchas de sangue na toalha. Não interessa. Não se deve procurar símbolos em tudo o que se vê. Isso torna a vida impossível. Seria melhor dizer que as manchas de sangue são tão belas como pétalas de rosa. Seria muito melhor dizer isso... Mas não falemos disso. Agora estou feliz, estou muito feliz. Tenho o direito de estar feliz, não é verdade? A vossa filha vai dançar para mim. Não ides dançar para mim, Salomé? Prometestes dançar para mim. HERODIAS Não quero que ela dance. SALOMÉ Dançarei para vós, Tetrarca. HERODES Ouvis o que diz a vossa filha. Vai dançar para mim. Fazeis bem em dançar para mim, Salomé. E quando tiverdes dançado, não esqueçais de me pedir o que quiserdes. Seja o que for, dar-vos-ei, até metade do meu reino. Eu jurei, não foi? 84 SALOMÉ Vós jurastes, Tetrarca. HERODES E nunca faltei à minha palavra. Não sou daqueles que faltam à sua palavra. Eu não sei mentir. Sou escravo da minha palavra, e a minha palavra é de rei. O Rei da Capadócia está sempre a mentir, mas ele não é um verdadeiro rei. É um cobarde. Além de que me deve dinheiro que não quer pagar. Chegou a insultar os meus embaixadores. Pronunciou palavras ofensivas. Mas César crucificá-lo-á quando ele for a Roma. Tenho a certeza de que César o crucificará. Se não, morrerá comido pelos vermes. O profeta previu-o. Então, Salomé, porque esperais? SALOMÉ Estou à espera de que as escravas me tragam perfumes e os sete véus, e me tirem as sandálias. (As escravas trazem perfumes e os sete véus e tiram as sandálias a SALOMÉ.) HERODES Ah, ides dançar descalça. Muito bem! Muito bem! Os vossos pezinhos serão como pombas brancas. Parecerão florinhas brancas a dançar sobre as árvores... Não, não, ela vai dançar sobre sangue. Há sangue espalhado no chão. Não quero que ela dance sobre sangue. Seria um péssimo presságio. 87 HERODIAS Que vos importa que ela dance sobre sangue? Estais farto de mergulhar nele... HERODES Que me importa? Ah! Olhai para a Lua! Ficou vermelha. Ficou vermelha como sangue."Ah! O profeta acertou na profecia. Ele previu que a Lua ficaria vermelha como sangue. Não previu? Todos vós o ouvistes. E agora a Lua ficou vermelha como sangue. Não vedes? HERODIAS Vejo muito bem, e as estrelas estão a cair como figos maduros, não estão? E o Sol está a ficar negro como um saco feito de pêlo, e os reis da terra têm medo. Isso pelo menos pode-se ver. O profeta, uma vez na vida, teve razão: os reis da terra estão com medo... Enfim, vamos para dentro. Estais doente. Em Roma dirão que estais louco. Vamos para dentro, já disse. ! A VOZ DE IOKANAAN Quem é este que vem de Edom, que vem de Bosra, com as vestes pintadas de púrpura; que brilha na beleza dos seus trajos e caminha com uma força poderosa? Porque estão as vossas vestes pintadas de escarlate? HERODIAS Vamos para dentro. A voz deste homem exaspera-me. Não quero que a minha filha dance enquanto ele grita desse 88 modo. Não quero que ela dance enquanto olhais para èla desse modo. Em suma, não quero que ela dance. HERODES Não te levantes, minha esposa, minha rainha, é inútil. Não irei para dentro enquanto ela não dançar. Dançai, Salomé, dançai para mim. HERODIAS Não danceis, minha filha. SALOMÉ Estou pronta, Tetrarca. (SALOMÉ executa a dança dos sete véus) HERODES Ah! Que maravilha! Que maravilha! Vistes como ela dançou para mim, a vossa filha. Aproximai-vos, Salomé, aproximai-vos, para que vos possa dar a recompensa. Ah! Eu pago bem às bailarinas. A ti, pagar-te-ei muito bem. Dar-te-ei tudo o que tu quiseres. O que queres? Dize. SALOMÉ Ajoelhando Quero que me tragam agora numa bandeja de prata... 91 HERODES Rindo Numa bandeja de prata? Claro, numa bandeja de prata. É encantadora, não é? Que quereis que vos tragam numa bandeja de prata, doce e bela Salomé, vós que sois a mais bela de todas as filhas da Judeia? Que quereis que vos tragam numa bandeja de prata? Dizei. Seja o que for, ser-vos-á dado. Os meus tesouros pertencem-vos. O que é, Salomé? SALOMÉ Erguendo-se A cabeça de Iokanaan. HERODIAS Ah! Muito bem dito, minha filha! HERODES Não,",não! HERODIAS Muito bem dito, minha filha! HERODES Não, não, Salomé. Isso não. Não deis ouvidos à vossa mãe. Ela está sempre a dar-vos maus conselhos. Não a escuteis. 92 SALOMÉ Eu não escuto a minha mãe. É para meu próprio prazer que peço a cabeça de Iokanaan numa bandeja de prata. Vós jurastes, Herodes. Não esqueçais que fizestes um juramento. HERODES Eu sei. Jurei pelos meus deuses. Sei muito bem. Mas suplico-vos, Salomé, pedi-me qualquer outra coisa. Pedi-me metade do meu reino, e dar-vos-ei. Mas não aquilo que me pedistes. SALOMÉ Peço-vos a cabeça de Iokanaan. HERODES Não, não, não quero. SALOMÉ Jurastes, Herodes. HERODIAS Sim, jurastes. Toda a gente vos ouviu. Jurastes perante toda a gente. HERODES Calai-vos! Não é convosco que estou a falar. 93 HERODIAS A minha filha fez bem em pedir a cabeça deste homem. Ele cobriu-me de insultos. Disse coisas monstruosas contra mim. Pode-se ver como ela ama a sua mãe. Não cedais, minha filha. Ele jurou, ele jurou. HERODES Calai-vos, não me digais nada...! Vamos, Salomé, é preciso ser razoável, não é verdade? Não é verdade que é preciso ser razoável? Eu nunca vos tratei mal. Sempre vos amei... Talvez vos tenha amado demais. Por isso, não me exijais tal coisa. É horrível, é pavoroso esse pedido. No fundo, não acredito que estejais a falar a sério. A cabeça de um homem decapitado é algo muito feio, não é? Não é uma coisa que deva ser vista por uma virgem. Que prazer é que isso vos poderia dar? Nenhum. Não, não, não é isso que quereis. Ouvi-me por um instante. Eu tenho uma esmeralda, uma enorme esmeralda redonda que o favorito de César me mandou. Olhando através desta esmeralda poderíeis ver coisas que acontecem a uma grande distância. O próprio César leva uma parecida quando vai ao circo. Mas a minha é maior. Sei muito bem que é maior. É a maior esmeralda do mundo. Gostaríeis de a ter, não é verdade? Pedi-ma e dar-vo-la-ei. SALOMÉ Exijo a cabeça de Iokanaan. HERODES Não me estais a ouvir, não me estais a ouvir. Então, deixai-me falar, Salomé. 94 SALOMÉ A cabeça de Iokanaan. HERODES Não, não, não é isso que quereis. Dizeis isso só para me perturbar, porque estive a olhar para vós durante toda a noite. Sim, de facto estive a olhar para vós durante toda a noite. A vossa beleza perturbou-me. A vossa beleza perturbou-me terrivelmente, e olhei demasiado para vós. Mas não voltarei a fazê-lo. Não se deve olhar nem para as coisas nem para as pessoas. Só se deve olhar para os espelhos, porque os espelhos só nos mostram máscaras. Oh! Oh! Trazei vinho! Tenho sede... Salomé, Salomé, sejamos amigos. Enfim, vede... Ah! O que ia eu a dizer? O que era? Ah! Já me lembro...! Salomé! Não, aproximai-vos; tenho medo de que não me ouçais... Salomé, conheceis os meus pavões brancos, os meus lindos pavões brancos que passeiam no jardim entre os mirtos e os altos ciprestes. Têm bicos dourados e os grãos que comem também são dourados, e as patas são cor de púrpura... Quando eles gritam a chuva cai, e a lua mostra-se nos céus quando eles abrem as caudas. Passeiam aos pares por entre os ciprestes e os mirtos negros, e cada um tem um escravo para o tratar. Por vezes voam por entre as árvores e outras vezes deitam-se na relva e à volta do lago. Não há no mundo aves mais belas. Nenhum rei no mundo inteiro possui aves tão belas. Tenho a certeza de que o próprio César não tem aves tão bonitas. Pois bem, dar-vos-ei cinquenta dos meus pavões. Seguir-vos-ão por todo o lado, e no meio deles sereis com a Lua numa grande nuvem branca... Dar-vos-ei todos. Só tenho uma centena, e no mundo inteiro 95 não há nenhum rei que possua pavões como os meus, mas dar-vos-ei todos. Basta que me liberteis do meu juramento e não me exijais o que me pedistes. Esvazia a taça de vinho SALOMÉ Dai-me a cabeça de Iokanaan. HERODIAS Muito bem dito, minha filha! Quanto a vós, sois ridículo com os vossos pavões. HERODES Calai-vos! Estais sempre a gritar. Gritais como uma ave de rapina. Não o deveis fazer. A vossa voz aborrece-me. Calai-vos, já disse... Salomé, pensai no que fazeis. Este homem se calhar vem de Deus. Tenho a certeza de que vem de Deus. É um homem santo. O dedo de Deus tocou-o. Deus pôs na sua boca palavras terríveis. No palácio, como no deserto, Deus está sempre com ele... Pelo menos é possível. Não se sabe, mas é possível que Deus esteja por ele e com ele. Além disso, se ele morresse podia acontecer-me uma desgraça. De qualquer modo, ele disse que no dia em que morresse aconteceria uma desgraça a alguém. Só pode ser a mim. Lembrai-vos, escorreguei em sangue quando entrei. E também ouvi um bater de asas no ar, um bater de asas gigantescas. São péssimos presságios. E houve outros. Tenho a certeza de que houve outros, embora eu não os tenha visto. Então, Salomé, não quereis com certeza que 96 me aconteça uma desgraça. Não quereis tal coisa* Por isso escutai-me. SALOMÉ Dai-me a cabeça de Iokanaan. HERODES Estais a ver como não me ouvis? Mas acalmai-vos. Eu - eu estou calmo. Estou completamente calmo. Ouvi. Tenho jóias escondidas neste local, jóias que nem a vossa mãe ainda viu, jóias maravilhosas. Tenho um colar de pérolas, com quatro fileiras. Dir-se-iam luas enfiadas em raios de prata. Dir-se-iam cinquenta luas apanhadas numa rede de ouro. Uma Rainha usou-o sobre o marfim do seu seio. Tu, quando o puseres, ficarás bela como uma rainha. Tenho ametistas de duas espécies. Uma que é negra como o vinho e outra que é vermelha como vinho misturado com água. Tenho topázios amarelos como os olhos dos tigres, topázios cor-de-rosa como os olhos dos pombos e topázios verdes como os olhos dos gatos. Tenho opalas que ardem sempre com uma chama que parece gelo, opalas que entristecem os espíritos e temem as sombras. Tenho onixes parecidos com as pupilas de uma defunta. Tenho selenites que mudam quando a Lua muda, e se tornam pálidas quando vêem o Sol. Tenho safiras grandes como ovos, e azuis como flores azuis. O mar vagueia dentro delas e a Lua nunca vem perturbar o azul das suas ondas. Tenho crisólitos e berilos, crisoprásios e rubis. Tenho sardónicas, pedras de jacinto, calcedónias, e dar-vos-ei todas, todas, e juntarei ainda outras coisas. O Rei das índias acabou de me mandar quatro leques feitos com penas de papagaio, e o Rei da Numíbia 97 um trajo de penas de avestruz. Tenho um cristal que as mulheres não estão autorizadas a ver e que os mancebos só podem contemplar depois de serem flagelados. Num cofre de madrepérola tenho três turquezas maravilhosas. Aquele que as usar na fronte consegue imaginar coisas que não existem, e aquele que as trouxer na mão pode tornar as mulheres estéreis. São tesouros inestimáveis. São tesouros sem preço. Mas ainda há mais. Num cofre de ébano tenho duas taças de âmbar que parecem maçãs de ouro. Se um inimigo deitar veneno nelas, ficam como maçãs de prata. Num cofre incrustado de âmbar tenho sandálias incrustadas de cristal. Tenho mantos que foram trazidos da terra dos Seros e pulseiras decoradas com carbúnculos e jade que vieram da cidade de Eufrates... Enfim, o que queres, Salomé? Diz-me o que desejas e dar-te-ei. Tudo o que pedires te darei, excepto uma coisa. Dar-te-ei tudo o que possuo, excepto uma vida. Dar-te-ei o manto do Sumo Sacerdote. Dar-te-ei o véu do Santuário. OS JUDEUS Oh! Oh! SALOMÉ Dá-me a cabeça de Iokanaan. HERODES Afundando-se na poltrona Dêem-lhe o que ela pede! É tal qual a mãe! (O PRIMEIRO SOLDADO aproxima-se. HERODIAS tira da mão do Tetrarca o anel da morte e dá-o ao SOLDADO, que o entrega imediatamente ao CARRASCO. O CARRASCO 98 tem um ar amedrontado.) Quem me tirou o anel? Eu tinha um anel na mão direita. Quem bebeu o meu vinho? A minha taça tinha vinho. Estava cheia de vinho. Alguém o bebeu? Oh! Vai com certeza acontecer uma desgraça a alguém. (O CARRASCO entra na cisterna.) Ah! Porque dei eu a minha palavra? Os reis nunca devem dar a sua palavra. Se a não mantêm, é terrível, e se a mantêm também é terrível. HERODIAS Eu acho que a minha filha fez bem. HERODES Eu tenho a certeza de que vai acontecer uma desgraça. SALOME Inclina-se para dentro da cisterna e põe-se à escuta Não há nenhum som. Não ouço nada. Porque é que não grita, esse homem? Ah! Se alguém tentasse matar-me, eu gritaria, eu lutaria, eu não quereria sofrer... Fere, fere, Naaman, fere, ordeno eu... Não, não ouço nada. Há um terrível silêncio. Ah! Caiu alguma coisa para o chão. Ouvi algo a cair. Era a espada do carrasco. Ele tem medo, esse escravo. Deixou cair a espada. Não se atreve a matá-lo. É um cobarde, esse escravo! Mandem soldados. (Vê o PAJEM DE HERODIAS e dirige-se a ele.) Vem cá, eras amigo do que morreu, não é verdade? Bom, ainda não houve mortes suficientes. Ordena aos soldados que desçam e me tragam 101 o que pedi, aquilo que o Tetrarca me prometeu, aquilo que é meu. (O PAJEM recua. Ela vira-se para os SOLDADOS.) Vinde cá, soldados. Descei à cisterna e trazei-me a cabeça desse homem. (OS SOLDADOS recuam.) Tetrarca, Tetrarca, ordenai aos vossos soldados que me tragam a cabeça de Iokanaan. Um enorme braço negro, o braço do CARRASCO, irrompe da cisterna, trazendo sobre um escudo de prata a cabeça de IOKANAAN. SALOMÉ agarra-a. HERODES esconde o rosto com o manto. HERODIAS sorri e abana-se. OS NAZARENOS ajoelham-se e começam a rezar. SALOMÉ Ah! Não me deixaste beijar a tua boca, Iokanaan. Pois bem, beijá-la-ei agora. Mordê-la-ei com os meus dentes como se morde um fruto maduro. Sim, hei-de beijar a tua boca, Iokanaan. Eu disse que o faria, não foi? Eu disse. Pois bem, beijá-la-ei agora... Mas porque não olhas para mim, Iokanaan? Os teus olhos que eram tão terríveis, tão cheios de raiva e desprezo, estão agora fechados. Porque é que estão fechados? Abre os olhos! Ergue as pálpebras, Iokanaan! Porque não me olhas? Tens medo de mim, Iokannan, e por isso não me olhas? E a tua língua, que era como uma serpente vermelha lançando veneno, já não se mexe, agora não diz nada, Iokanaan, essa víbora escarlate que cuspiu o seu veneno sobre mim. É estranho, não é? Como é possível a víbora vermelha já não se mexer...? Tu não me quiseste, Iokanaan. Tu rejeitaste-me. Disseste-me coisas infames. Trataste-me como a uma cortesã, como a uma prostituta, a mim, Salomé, filha de Herodias, Princesa 102 da Judeia! Pois bem, Iokanaan, eu ainda estou viva, mas tu, tu estás morto, e a tua cabeça pertence-me. Posso fazer com ela o que eu quiser. Posso lançá-la aos cães e aos pássaros do ar. Aquilo que os cães deixarem há-de ser devorado pelos pássaros do ar... Ah, Iokanaan, Iokanaan, foste o único homem que eu amei. Os outros homens para mim são odiosos. Mas tu, tu eras belo! O teu corpo era uma coluna de marfim sobre um pedestal de prata. Era um jardim cheio de pombas e lírios de prata. Era uma torre de prata coberta com escudos de marfim. Não havia nada no mundo tão branco como o teu corpo. Não havia nada no mundo tão negro como os teus cabelos. No mundo inteiro não havia nada tão vermelho como a tua boca. A tua voz era um incensório que espalhava estranhos perfumes, e quando eu olhava para ti ouvia uma estranha música. Ah! Porque é que não olhaste para mim, Iokanaan? Escondeste o rosto atrás das tuas mãos e das tuas blasfémias. Sobre os teus olhos puseste a venda daquele que quer ver o seu Deus. E viste de facto o teu Deus, Iokanaan, mas a mim, a mim, tu nunca viste. Se me tivesses visto, ter-me-ias amado. Eu vi-te, Iokanaan, e amei-te. Oh, como te amei! E ainda te amo, Iokanaan. Só te amo a ti... Tenho sede da tua beleza. Tenho fome do teu corpo. E nem o vinho nem a fruta podem apaziguar o meu desejo. Que hei-de fazer agora, Iokanaan? Não há cheias nem chuvas que possam apagar a minha paixão. Eu era uma princesa, e tu desprezaste-me. Eu era virgem, e tu desfloraste-me. Eu era casta, e tu encheste-me as veias de fogo... Ah! Ah! Porque é que não olhaste para mim, Iokanaan? Se tivesses olhado para mim, ter-me-ias amado. Sei muito bem que me terias amado, e o mistério do amor é maior do que o mistério da morte. Só devíamos pensar no amor. 103 HERODES É monstruosa, a tua filha, é completamente monstruosa. Na verdade, aquilo que ela fez é um grande crime. Tenho a certeza de que é um crime contra um Deus desconhecido. HERODIAS Eu aprovo o que a minha filha fez, e agora quero ficar aqui. HERODES Erguendo-se Ah! Fala a esposa incestuosa! Vamos! Eu não quero ficar aqui. Vamos, já disse. Tenho a certeza de que vai acontecer uma desgraça. Manasses, Issacar, Ozias, apagai os archotes. Não quero olhar para as coisas, não quero que as coisas olhem para mim. Apagai os archotes. Escondei a Lua! Escondei as estrelas! Escondamo-nos no nosso palácio, Herodias. Começo a ter medo. Os escravos apagam os archotes. As estrelas desaparecem. Uma grande nuvem negra cobre a Lua e esconde-a completamente. O palco fica muito escuro. O TETRARCA começa a subir a escada. A VOZ DE SALOMÉ Ah! Beijei a tua boca, Iokanaan, beijei a tua boca. Havia um sabor amargo nos teus lábios. Seria o sabor do sangue?... Mas talvez seja o sabor do amor... Dizem que o 104 amor tem um sabor amargo... Mas que importa? Eu beijei a tua boca, Iokanaan, eu beijei a tua boca. Um raio de luar cai sobre SALOMÉ, cobrindo-a de luz. HERODES Virando-se e vendo SALOMÉ Matai essa mulher! Os soldados correm e esmagam sob os escudos SALOMÉ, filha de Herodias, Princesa da Judeia. 107 ILUSTRAÇÕES Esboço para um frontispício 17 A mulher na Lua 23 A saia com penas de pavão 33 Iokanaan e Salomé 41 Um lamento platónico 51 Entra Herodias 55 Os olhos de Herodes 61 Os preparativos de Salomé 85 A dança do ventre 89 A recompensa da bailarina 99 O clímax 105 109 FICÇÕES Publicados: • ''':' : 1 - O Amor Louco, de André Breton 2 - A Mulher Sentada, de Guillaume Apollinaire 3 - Nadja, de André Breton 4 - Todos os Fogos o Fogo, de Júlio Cortázar 5 - O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde 6 - O Coração das Trevas, de Joseph Conrad 7 - O Aleph, de Jorge Luis Borges 8 - Declínio e Queda, de Evelyn Waugh 9 - Os Prazeres e os Dias, de Mareei Proust 10 - A Década Perdida, de F. Scott Fitzgerald 11 - O Homem que Era Quinta-Feira, de G. K. Chesterton 12 - Os Fogos do Paraíso, de Enrique Estrázulas 13 - Novos Contos do Gin, de Mário-Henrique Leiria 14- Contos do Gin-Tonic. de Mário-Henrique Leiria 15 - Dias Felizes, de Samuel Beckett 16- Vida e Obras do Engenheiro, de Álvaro de Campos 17 - A Herdeira, de Henry James 18 - Aden-Arábia, de Paul Nizan 19 - O Barco de Outubro para Gabriola, de Malcolm Lowry 20 - Morte no Verão, de Yukio Mishima 21 - As Afinidades Electivas, de Goethe 22 - Salomé, de Oscar Wilde 23 - A Tia Tuia, de Unamuno 24 - Almas Mortas, de Gogol 25 - Esta Noite Improvisa-se, de Pirandello 26 - Depoimentos Escritos, de Mário-Henrique Leiria 27 - E o Burro Viu o Anjo..., de Nick Cave 28 - Notas para a Recordação do Meu Mestre Caeiro, de Álvaro de Campos 29 - O Olho Cosmológico, de Henry Miller 30 - Exercícios de Estilo, de Luiz Pacheco 31- Histórias de Cronópios e de Famas, de Júlio Cortázar