MIL FACES DA DIFERENÇA Abas do livro impresso: Este livro contém uma coletânea de textos de dezenove pessoas com deficiência visual, que perderam a visão em decorrência de várias causas e em diferentes circunstâncias. Leia-o e acenda a luz da sua própria consciência, a fim de superar os seus próprios problemas. Participantes da coletânea: Ademar Mateus Santiago; Benedito Oliveira ; Carol Soares ; Danilo Santana ; Édson Queiro ; Francisco das Chagas de Araújo ; Indiara Carvalho ; Iraci Matos Parreão ; Jair Coser ; Jerusa Maria Ferreira de Souza ; João Daniel do Vale Junior ; Maria da Conceição de Jesus ; Marilza Matos ; Marina Yonashiro ; Odelita Figueiredo ; Rebeca Serra ; Rita de Cássia Mendes ; Rubens Fiúza ; MIL FACES Odelita Figueiredo MIL FACES DA DIFERENÇA Odelita Figueiredo MIL FACES Mil Faces DA DIFERENÇA Copyrigth Odelita Figueiredo Silva 4784/1 - 250 -72 - 2009 O conteúdo desta obra é de responsabilidade do(a) autor(a), proprietário(a) do Direito Autoral. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Figueiredo, Odelita Mil faces da diferença / Odelita Figueiredo -- São Paulo : Scortecci, 2009. ISBN 978-85-366-1135-8 1. Crônicas brasileiras I. Título. 09-01014 CDD-869.93 Índices para catálogo sistemático: 1. Crônicas : Literatura brasileira 869.93 Grupo Editorial Scortecci Scortecci Editora Caixa Postal 11481 - São Paulo - SP - CEP 05422-970 Telefax: (11) 3032-1179 e (11) 3032-6501 www.scortecci.com.br editora@scortecci.com.br Livraria e Loja Virtual Asabeça www.asabeca.com.br Sumário Ademar Matheus Santiago .............................................................. 9 Benedito Oliveira ........................................................................... 11 Carol Soares ..................................................................................... 21 Danilo Santana ................................................................................ 23 Édson Queiro .................................................................................. 25 Francisco das Chagas de Araújo .................................................. 29 Indiara Carvalho ............................................................................. 31 Iraci Matos Parreão ........................................................................ 34 Jair Coser .......................................................................................... 41 Jerusa Maria Ferreira de Souza ..................................................... 42 João Daniel do Vale Junior ............................................................ 44 Luísa Monteiro ................................................................................ 46 Maria da Conceição de Jesus ........................................................ 47 Marilza Matos .................................................................................. 49 Marina Yonashiro ........................................................................... 50 Odelita Figueiredo ......................................................................... 53 Rebeca Serra .................................................................................... 62 Rita de Cássia Mendes ................................................................... 65 Rubens Fiuza ................................................................................... 67 A organizadora ................................................................................ 71 7 Apresentação O foco deste livro é apresentar e esclarecer ao público em geral, a diversidade de comportamentos do ser humano perante uma única diferença. Como idealizadora e organizadora do livro, além de tam- bém fazer parte desta parcela diferenciada, sinto-me extremamen- te gratificada por mais uma oportunidade de abordar o assunto da complexidade da mente humana através da mídia escrita. É urgente e de fundamental importância que a sociedade se torne cada vez mais consciente do direito à cidadania plena da pessoa com deficiência; mas, também, da individualidade do ser, enquanto humano. É preciso que se considere os aspectos psico- lógicos e as circunstâncias experienciadas, para que se possa cons- truir uma opinião. O enfrentamento da questão da diferença ocorre a partir de fatores externos e internos. Antes de ser uma pessoa com deficiência, qualquer indivíduo é essencialmente um ser hu- mano, com suas peculiaridades e limitações, que deve e merece ser respeitado do mesmo modo que os demais. Espero sinceramente, com a publicação deste livro, contri- buir para a divulgação das reais e distintas capacidades emocio- nais do ser humano que possui uma condição diferenciada, ou se preferirem, especial. Convido o leitor a ler, conhecer, e aprender com a pessoa com deficiência visual a refletir, aceitar e ultrapassar qualquer (muro) que porventura surja em sua vida. Não importa a comple- xidade da barreira. Quando se perde a capacidade física de enxer- gar, se aprende a encontrar a solução utilizando os outros sentidos e, principalmente, a visão interior. Gostaria que as experiências relatadas contribuíssem para uma reflexão do leitor, no sentido de colaborar para sua autoajuda no que diz respeito ao enfrentamento dos seus próprios problemas. 8 Odelita Figueiredo (Uma mulher cega, autodidata em literatura, paixão incontrolável, que a fez desistir da música, somente por se tratar de mais um desafio a ser vencido em sua vida). 9 ADEMAR MATHEUS SANTIAGO Catanduva - SP Uma luz encantadora (Trecho extraído da contracapa do livro "Uma luz encantadora", publicado pelo autor) Uma luz encantadora: talvez a sua tenha passado e você não teve a oportunidade de vê-la. Observe melhor tudo o que o seus sentidos conectarem. Nesta história, muitos trechos podem ser verídicos e ali- mentar outras histórias que serão escritas por outro ser humano. Tudo que aqui você vai ler é singelo, porém terá um signifi- cado valiosíssimo dentro de uma pespectiva de se fazer o que precisa ser feito, com muito amor. Caso você queira visualizar sua luz, dê asas à sua imagina- ção, dê tempo ao tempo, sonhe uma vida de sonhos reais, traba- lhe o bem de forma contínua para com todos os seres vivos: ve- getais, animais e humanos. Se dissermos que a vida é bela, vamos ter muitas diver- gências. Fica para você, leitor, o conceito que passará a ser ver- dade, porém terá surpresas caso sua atenção, a partir de então, esteja voltada para seu interior. Julgar, condenar, criticar ou queixar-se bloqueia nossa criatividade e denigre a inteligência.Use esse tempo precioso para meditar e conversar com sua "luz encantadora". Os resultados? Bem... Os resultados terão, em primeiro lugar, você como alvo. As habilidades trabalhadas precisam ser incorporadas nas experiências somadas.É importante visualizar o Bem, buscando Uma luz encantadora 10 na vida a essência do bem-viver com humildade e tranquilidade para fortalecer sua luz. Construa sua felicidade um pouco de cada vez, todos os dias alimentando seu espírito com palavras, ações e gestos posi- tivos. Saiba que somos espelho e refletimos o que somos. E mais: somos exemplo, e estamos constantemente vigiados e copiados em nossas atitudes. Mergulhe nesta história deliciosa, viaje neste mundo mara- vilhoso de luz, que é valorizar nossa existência, de forma maiús- cula, através do trabalho. Aproxime os raios luminosos do Universo de você e espalhe-os para o seus semelhantes. Vida é muito mais que respirar e deixar o tempo passar. Viva em plenitude... Ademar Matheus Santiago 11 BENEDITO OLIVEIRA Salvador - BA I Minha primeira queda No início dos anos 80, quando a informatização ainda não havia chegado aos órgãos públicos de Salvador, para se conseguir tirar a carteira de identidade era uma tremenda difi- culdade. Precisávamos ir até uma delegacia para efetivar o pro- cesso, e retornar após 15 dias para buscar o documento. Caso fosse a segunda via, a coisa se tornava ainda mais complicada, pois esse procedimento somente era possível num único local - o Instituto Pedro Melo. O bairro onde eu morava, não possuía uma linha direta de transporte coletivo até o local, e era necessário tomarmos um ônibus até o terminal de coletivos da Estação da Lapa, e depois um outro ônibus para a Avenida Centenário, onde fica localizado o órgão. Eu havia perdido o meu RG. Como estava no período de matrícula escolar, precisava exatamente desse documento para efetuar minha matrícula. Assim, fui o mais breve que pude solici- tar a segunda via da minha carteira. Minha primeira ida ao Instituto Pedro Melo foi tranquila. Rea- lizei o trajeto mais recomendado. Tomei um ônibus até a Estação da Lapa, e depois um outro, que me deixou num ponto de coletivos próximo ao instituto. Porém, na segunda vez, quando fui buscar o documento, resolvi inovar. Desci do ônibus numa parada no Vale dos Barris, local de difícil acesso, principalmente para uma pessoa com deficiência visual, pois existem várias pistas para atravessar. Mil faces da diferença 12 Neste ponto, até que tive sorte em minha aventura. Apare- ceu um cidadão que ajudou-me a atravessar as pistas. Ele, então, colocou-me na direção correta de meu caminho, e seguiu o seu. Mas como eu não conhecia o local, comecei a andar desconfiado e com mais cautela. Porém, não foi o bastante para evitar que eu pisasse numa boca-de-lobo. Na queda, bati com a lateral da coxa esquerda na borda do imenso buraco, e fui descendo até cair como uma pesada cruz. Após o susto, quando recuperei o ânimo, sentei- me na borda do buraco. Um rapaz aproximou-se e me perguntou: - Aconteceu alguma coisa, amigo? Com a voz embargada, respondi: - Não. Ele insistiu: - Quer que chame uma viatura? Consegui levantar, coloquei os pés no chão, comecei len- tamente a caminhar e, percebendo que estava bem, disse que era dispensável chamar uma viatura para prestar-me socorro. Agra- deci e continuei o meu caminho. Completamente sujo de lama, mas de cabeça erguida, fui buscar meu documento. Devido a pancada que levei na coxa esquerda, fiquei man- cando por um bom período. Foi então, que uma vizinha quando me encontrou e, alarmada, disparou: - Oh! Meu Deus! Eu sabia que ele era cego, mas capenga, não! Diante da situação, precisei explicar para a senhora que morava ao meu lado, já há dois anos, que fora apenas um aciden- te e que eu já estava me recuperando. II O quarto medonho Os amigos José e Irineu, Quando viajavam numa banda musical para realizar eventos em outras cidades da Bahia, costumavam dividir o mesmo quarto. Benedito Oliveira 13 O grupo era formado por oito pessoas, mas a escolha do Zé era sempre o amigo Irí, como ele gostava de chamá-lo. Isso não causava ciúme nos demais, pois eles entendiam que aquela amizade era antiga. Irineu era muito alegre, gostava de brincar com todos, e isso o tornava uma pessoa muito agradável. Por isso que a maioria do grupo desejava dividir o dormitório com aquela figura... José gostava de estar sempre com Irineu também pelo fato de ser medroso, principalmente quando ouvia dizer que a cidade onde iriam se apresentar tinha casos de assombração. Zé ficava assustadíssimo. Bem, por acaso ou não, quando eles estavam numa turnê na cidade de Gongujir, encontraram uma pessoa, e quando lhe per- guntaram se naquela localidade já havia acontecido caso de as- sombração, o cidadão confirmou categoricamente que sim, e que já havia até visto lobisomem. Isto deixou o companheiro Zé mui- to amedrontado. O morador da cidade então perguntou: - Afinal, onde vocês irão ficar? - No Hotel Capim Verde. - Lá é mal-assombrado? - perguntou Irineu. - Rapaz, não sei não. Mas dizem que no século passado ali já foi um cemitério. - Ói, viu aí, Zé? José murmurou: - Arrumaria, padinho arrumaria! Finalmente chegaram na cidade, e logo foram procurar o hotel. Assim que encontraram o local, José logo escolheu o quar- to, e afirmou que somente ficaria com o amigo Irí. Cada quarto possuía uma suíte, o que facilitava a vida dos rapazes com deficiência visual. Quando chegou a noite, e Zé estava utilizando o vaso sa- Mil faces da diferença 14 nitário, um grande barulho que vinha do alto, chamou a atenção do jovem, que gritou: - Irí, Irí, Irí! - O que é rapaz? - Você ouviu? - O quê! - Um barulho enorme! E ainda por cima passou um vento gelado embaixo de mim! Você está vendo! Bem que aquele cara falou que aqui era mal-assombrado! Arrumaria, padinho arrumaria! O comentário era geral. José chegou até a dizer que se sur- gisse outro contrato naquela cidade, ele não ficaria. Bem, o barulho talvez tenha sido de algum morcego em bus- ca de comida. Mas a ausência da visão não permitiu aos rapazes confirmarem tal fato. O quarto que Irí e Zé se hospedaram, tinha um beliche, e Zé não gostava de dormir na cama de cima. Então, como Irí aceitou dormir na tal cama, tateou a parede e percebeu que ela separava o quarto do banheiro. Além disso, constatou que era baixa, e que seu braço alcançava a cordinha da descarga do sanitário. Percebendo que o amigo estava distraído, puxou a corda e quando a descarga funcio- nou e a descida da água fez aquele barulho, Zé ficou apavorado, deu um grito e disse que aquele lugar era, de verdade, mal-assombrado... III Ganhou, mas não levou O sonho de todo brasileiro, seja rico ou pobre, é ganhar em um desses jogos oficiais promovidos pela Caixa Econômica Fe- deral, como a Loteria Esportiva, a Loto, a Mega-Sena etc. José Inácio, desde adolescente, também sonhava com esse Benedito Oliveira 15 objetivo, e quando lhe sobrava um trocadinho, pedia a um amigo que enxergasse, e que fosse de confiança, para fazer uma fezinha. Depois que o amigo Zé aprendeu a andar sozinho nas ruas, todas as vezes que ele saía, procurava uma casa lotérica para jogar na Loto. Zé sempre escolhia os mesmos números, pois acredita- va que assim seria mais fácil um dia ser contemplado. Os números preferidos pelo Zé eram: 17, 22, 38, 62 e 86. Certo dia, escutando a jornada esportiva, após o término de um jogo de futebol, o locutor falou: "Atenção! Saiu o resultado da Loto. Confiram as suas apos- tas e boa sorte! Os números sorteados foram os seguintes: 7, 31, 48, 72 e 96." Convencido que tinha acertado a quina da loto, o rapaz saiu correndo e gritando: - Aí! Acertei a quina. Acertei a quina! De repente sua alegria foi interrompida por uma cabeçada que na parede. E passando a mão na testa ele gemeu: - Uiii! Adelmo, que era muito gaiato e estava perto do local, ao ouvir o estrondo, falou: - É isso aí Zé! Desta vez você chegou muito perto, pois acertou a parede. Quem sabe da próxima vez! IV Após dois mil anos Clécio e Bernardo resolveram sair sem destino certo, na tarde de um sábado, para tomarem umas cervejas. Chegando num determinado bar, localizado no centro da cidade, entraram e beberam até o final da tarde. Mil faces da diferença 16 Como neste tal bar não tinha tira-gosto, famintos, pediram a conta, pagaram, juntaram suas ferramentas de proteção física e seguiram com destino à Estação Clériston Andrade. Eles se divertiam e riam muito durante o percurso, quando de repente Bernardo falou: - Então, parceiro, que tal a gente comer um churrasco? - Ah, fio. É bom mesmo. Até porque, naquela porcaria de bar não tinha nem um tira-gosto. Assim, a gente aproveita e ainda toma a saideira! Decidiram, e seguiram o caminho. De repente, sentindo um cheiro de churrasco, Clécio disse: - Aí, amigo, aqui deve ter cerveja! Vamos pedir duas latinhas, enquanto o rapaz prepara uma carninha para nós. Porém, o que eles não sabiam, é que estavam próximos a uma Igreja Evangélica. Nesse instante, o churrasqueiro falou: - Oh! amigos! Aqui não tem cerveja. Isto é um churrasco de Jesus! Sem perda de tenpo, Bernardo murmurou: - Coitado de Jesus! Após ter sido julgado, condenado, crucifi- cado e morto, e depois de dois mil anos, ainda o fazem de churrasco!" V Jogatina no dormitório Após às 22 horas, quando percebiam que os colaborado- res do internato tinham ido descansar, os alunos aproveitavam para jogar bola no dormitório. Na verdade, não era bola que eles jogavam, pois não havia condições de carregar este objeto para o quarto sem que fossem flagrados pela vigilância do internato. Benedito Oliveira 17 Então, eles improvisavam sacos plásticos com papel den- tro para fazerem a bola e tentavam deixá-la o mais pesada possí- vel. Utilizavam também como enchimento, travesseiros, e até mesmo a almofada, que servia como peso de porta. A almofada continha areia; por isso era a mais pesada den- tre as bolas improvisadas. O jogo era através de chutes de bola parada, à distância de três metros, aproximadamente, da porta do dormitório que nos servia de trave. Duro era alguém se dispor a ser o goleiro quando o jogo era com aquela bola com o enchimento da almofada. Quando não havia voluntário, o goleiro era escolhido através de sorteio. E quem fos- se sorteado tinha que aceitar, apesar de não desejar aquele papel. Porém, se o primeiro cobrador, que também era sorteado, errasse o alvo, automaticamente iria defender a meta, ou seja, só escapava de ser goleiro aquele que não perdia o chute. E o goleiro para vol- tar a chutar, teria que defender a bola, ou torcer para que o adver- sário chutasse fora do alvo. Certa noite, foi organizada uma partida com a tal almofada, e o goleiro sorteado foi Leonardo, que dificilmente errava o gol. Portanto, somente ficava de goleiro quando era através de sorteio. A pontaria dos colegas estava perfeita! Por isso, Leo não tinha vez de tentar fazer um gol. Com isso, ele foi ficando cada vez mais irritado com a situação. De repente, João falou: - Vai? - Vai!- respondeu Leo. - Então lá vai... Ele deu um chute tão torto e tão fraco que sequer chegou próximo ao gol, arrancando risos de todos, até mesmo de quem não estava participando do jogo. Após o momento de descontração, Leo falou: Mil faces da diferença 18 - Agora é minha vez! Enquanto um chutava e o outro ficava no gol, os demais participantes ficaram sentados nas camas localizadas nas laterais da porta, que eram chamadas de arquibancadas. Leo ajeitou a bola e perguntou: -Vai? - Vai - disse João. - Então lá vai! O rapaz deu um chute tão forte, que foi areia pra todos os lados! O goleiro e os espectadores não sabiam se cuspiam ou sor- riam. Mas o certo era que alguns diziam: - Que zorra é essa, véio. Parece que está com um prego no pé! No dia seguinte, um colaborador da instituição tentou in- vestigar o fato. Porém, ele nunca descobriu que foi Leonardo o autor daquela sujeira. Antes de chutar a bola, Leo pegara uma tesoura que estava escondida embaixo do seu travesseiro, fizera um pequeno furo na almofada e, ao chutar, espalhara areia por todo lado! VI O Cão-guia No final da década de 90, veio à Salvador um empresário cego, dono de uma empresa que vendia equipamentos para pes- soas com deficiência visual. Ele trouxe bengalas, regletes, reló- gios adaptados e outros aparelhos que facilitam a vida diária de uma pessoa cega. Caio Pinho era seu nome. O empresário procurou um lo- cal onde se reunisse o maior número de pessoas com deficiên- cia visual. Descobriu, então, que numa determinada entidade, Benedito Oliveira 19 no período da tarde, existia uma grande aglomeração de cegos, aos quais ele poderia oferecer seus produtos. A maior atração, no entanto, não eram os produtos que Caio vendia, pois a maioria das pessoas não tinha, no momen- to, dinheiro para efetuar compras, devido à condição financeira dos integrantes do grupo. O que chamava mais a atenção era o cão-guia do empresá- rio cego. Platão, era o nome do cachorro. Na verdade, todos já tinham ouvido falar sobre a raça labrador que, adestrada, serve para guiar cegos. Por essa razão, o cego acompanhado por esse cão se torna livre da bengala e mais independente, já que o cão-guia é mais eficiente do que um ins- trumento de metal ou outro material qualquer. A turma estava empolgada. Todos pegavam no animal sem parar e faziam diversas perguntas ao mesmo tempo para o senhor Pinho, que não se cansava de responder, e muito menos de mos- trar seus produtos, na intenção de encontrar interessados na aqui- sição dos mesmos. - Ele é bem peludo! - falava um. Logo outro dizia: - Como é mansinho! Não morde não? - Não, ele é adestrado - respondeu, com toda paciência, o senhor Pinho. Ao final da tarde, Pinho e seu companheiro Platão, juntos com os demais curiosos, foram para outro local onde encontrariam pessoas que vinham de seus trabalhos para observar os produtos que estavam à venda, e quem sabe comprá-los, pois era esse o objetivo da visita do senhor Pinho a Salvador. Quando chegamos na segunda entidade, onde iria aconte- cer a exposição dos produtos da empresa de Caio Pinho, algumas pessoas se sentaram num canteiro do jardim. Ao perceber a pre- sença do cão-guia a seu lado, Maria das Graças, falou: - Olhem ele aqui, gente... Oh, meu Deus! Ele veio para junto de nós! Mil faces da diferença 20 Logo se formou uma fila imensa de pessoas sem a visão, que nunca tinham tocado num cão-guia. Porém, foi quando - destruindo a admiração de todos - Rita, falou: - Vocês estão pensando que este é o cachorro de Caio? Pois estão enganados. Esse é um vira-lata, e ainda está com o corpo todo ferido!... Vai prá lá, cachorro! Rita bateu os pés no chão, e o animal saiu dos afagos dos curiosos, ganhando de volta o seu lugar: a rua. Benedito Oliveira 21 CAROL SOARES Ilhéus - BA O Mundo sem visão Sou Carolina, tenho 16 anos e nunca enxerguei o mundo. Nasci com deficiência visual devido a um contato que minha mãe teve, quando eu era apenas um feto, com um aluno que estava com rubéola. Até hoje ela não sabe se também foi contaminada, ou somente a filha que trazia consigo. Bem, eu também não sei se, quando bebê, eu consegui enxergar alguma coisa ou se nunca vi nada. Na verdade, não trago nenhuma memória visual. Lembro-me de que, certo dia, quando solicitei a infor- mação de como eram as cores, uma educadora me falou que as cores podem ser quentes ou fortes; ou ainda frias ou fracas (tons pastéis). Então, pensei: "a cor da água que ferve numa panela, deve ser vermelha, enquanto a cor do gelo deve ser rosa ou azul bebê...". Não sei se estou certa, ou melhor, já explicaram-me que não é bem assim. Mas eu penso e acredito que seja. E isso me basta. Pois é, gente. O meu mundo sempre foi composto por liso e áspero; frio ou quente; fraco ou forte; baixo ou alto. Às vezes, sinto-me muito deprimida. Gostaria de enxer- gar o mundo como as minhas amigas enxergam. Nesses mo- mentos, entro em meu quarto e fico deitada em minha cama até a melancolia passar. Já me disseram que sou branca e tenho cabelos louros. Mas Mil faces da diferença 22 quando estou triste, penso que estou com o "banzo" dos ne- gros. Quem sabe, eu não tenha tido um bisavô ou tataravô ne- gro e escravo. Minha família não gosta que eu faça muitas per- guntas. Muitas vezes, sonho com vozes graves e melancólicas chamando por mim. Sei que não sou a única adolescente a ter esse problema. Conheci a Ângela, uma menina de quinze anos que reside no meio rural. Com o auxílio de suas irmãs, que enxergam, ela apren- deu o braille numa escola da cidade mais próxima do local onde mora. Ângela sonha em aprender informática, e afirma, determi- nada, que vai ser uma escritora conhecida no mundo todo. Fico analisando em que mundo Ângela pensa. Não sei se ela acha que ele se resume apenas ao local onde reside e na cida- de onde estuda. Porém, certamente ela não sabe as dificuldades que a esperam no mundo. Penso que se a Ângela conseguisse chegar pelo menos até a capital do Estado onde nasceu e vive, com certeza teria outra opinião. Bem, na verdade isso eu não sei. Talvez ela tenha tanta determinação, que a consciência dos fatos externos não faça muita diferença para ela. Eu, infelizmente, não penso como a Ângela. Gostaria de abrigar o mesmo pensamento dela, mas não consigo. Não sei bem se é a razão ou a emoção que domina os meus pensamentos. Porém, eu sou assim. Carol Soares 23 DANILO SANTANA Cruz das Almas - BA Face esquecida Esses dias, perguntei-me: - Como é meu rosto? É interessante... Perdi a visão há mais ou menos uns sete anos e quase não lembro como sou facialmente. Lembro-me dos rostos de conhecidos próximos, amigos e familiares mas, e a lembrança da minha face, onde foi parar? Sempre me via pela manhã, na hora de escovar os dentes, no espelho de um carro ou de uma moto; também nas fotos tiradas no período próximo à chegada da cegueira. Ou seja, a visão de mim mesmo era uma constante. Mas, hoje, eu me lembro mais do rosto que tinha quando era criança. Quando fiquei cego, tive medo de esquecer os rostos das pessoas queridas, mas acho que com esta preocupação, acabei por esquecer de memorizar o meu. Será que isto é normal entre cegos, ou será que só eu sofro de "amnésia facial própria"? Será que essa doença existe? Caso contrá- rio, acabo de inventá-la, com nome e tudo! Aproveitando o assunto, ainda que não tenha nada a ver, pen- so que é quase a mesma coisa porque... Bem, a gente cria a imagem das pessoas através da audição de suas vozes. Por exemplo: se co- nheci fulano quando enxergava e, depois de cego, conheço sicrano, que tem a voz parecida com a do fulano, automaticamente, crio uma imagem parecida dos dois; mas, na verdade, eles não têm nada a ver um com o outro. Fulano é baixo, gordo, loiro; e Sicrano é alto, negro e bem magro... São os mistérios do "sistema cegal"! Analisan- do bem, não é só no mundo cegal, não. Muitos locutores decepcio- nam suas fãs, muitas locutoras também. Quando enxergava, ouvia uma locutora que, na imagem que eu tinha construído, era bonitona, Mil faces da diferença 24 mas na verdade nada tinha a ver com a minha imaginação; foi uma decepção! Acho que se um dia eu voltar a enxergar, me sur- preenderei comigo e com o mundo ao meu redor. Fico pensando se é possível alguém acertar... Alguém já pas- sou por esta experiência? Sabem de alguém que já voltou a enxer- gar para nos contar sua vivência? Será que alguém conseguiu esta proeza? É interessante mesmo... Mas, enfim, o que vocês pensam sobre isto? Será que o que eu falo faz sentido ou é besteira? Não sei. Mas, às vezes, fico pensando se seria bom voltar a enxergar e perder aquele dom exclusivo, individual, quanto às construções de imagens e da aparência das pessoas ao nosso redor... Isto se aplica a nós mesmos, pois - é engraçado - mas tenho a certeza de que eu sou bem diferente do que imagino, do que realmente sou, do que realmente todos são, meus parentes, meus ídolos, meus amigos etc. Acho que isto vale para tudo e todos. Afinal, perdi a visão há, aproximadamente, sete anos e nada para no tempo. Cérebro é uma coisa maravilhosa, todos deveriam ter um e saber usá-lo! Danilo Santana 25 ÉDSON QUEIRO São Paulo - SP A Magia musical Nessa nossa vida, onde nos defrontamos com várias si- tuações, percalços, alegrias, tristezas, enfim, várias situações, precisamos de algo que nos identificamos, algo que nos proje- tamos, algo que alimente nossa alma. Esse algo, para mim, é a música. O que ela é para mim? A música é o ser mais divino que Deus criou na face da Terra. É o ser mulher, que nos encanta com seu sorriso, seu charme, seu temperamento, sua docilidade, suas facetas, seu brilho e seu desfilar em um palco da vida. Como dizia meu professor: "a mulher que sabe ver a beleza em uma flor, se destaca em relação ao homem que não tem tal sensibilidade". Muito bem: fiz essa introdução para mostrar o significa- do de uma música para mim. A música é esse ser superior, como uma mulher, que dá prazer à minha alma, faz flutuar meus pen- samentos e sentimentos e alivia minhas tensões do dia-a-dia. Tenho quatro gostos preferidos, com os quais tenho mais afini- dade: a new age, o rock progressivo, o jazz contemporâneo (da década de 70 para cá) e o erudito instrumental (concertos e música de câmara). Com cada um desses estilos tive uma moti- vação, ou uma situação mais forte que me fez ir atrás de deter- minado artista e - dentro de tal estilo - correr atrás de outros do mesmo gênero. Começou com um, que me motivou para os outros. Darei somente um exemplo aqui, o do meu ídolo maior, como músico. O norueguês, Jan Garbarek, que toca jazz com alma e profundidade, esticando as notas, e tem dois trabalhos Mil faces da diferença 26 eruditos. Fui apresentado a ele em uma festa de aniversário, em 1980. Meu amigo havia ganho de presente um vinil deste músi- co. A partir daí, corri atrás dos discos dele e entrei no mundo do jazz; não somente ouvindo Garbarek. Aprofundei-me! Nos outros estilos aconteceu a mesma coisa. Parti de um ídolo para me aprofundar no gênero musical mencionado acima. Em geral, prefiro a música instrumental, porque através de seu instrumento, muitas vezes, o músico retrata seus sentimentos e mensagens, sem ter que se utilizar da palavra ou da voz. Também gosto de vocal em música, mas, dou preferência ao instrumental. Em rock progressivo, há muitos grupos em que o vocal se faz presente, mas nunca é abandonado o lado do solista. Em minha concepção, o solo, ou o florear de um músi- co, é o desfilar sublime de uma mulher na passarela ou nos pal- cos da vida, como mencionei anteriormente. Esse virtuose de- leita minha alma num prazer infinito. Minha mãe diz, e outras pessoas já me disseram, que: "você gosta de música porque você é cego". Com certeza, digo que não. Para mim, isso é alma, meu gosto, minha identificação. Se isso fosse uma verdade, lojas já teriam fechado. Conheço pessoas que possuem mais de dez mil exemplares de CDs e DVDs em sua coleção. E estes enxergam. Falei muito de instrumentos e diria que uma voz bem emprega- da também toca muito meu coração. Se eu fosse montar minha orquestra imaginária com os solistas de minha preferência, es- colheria os seguintes: no teclado Rick Wakeman - músico de rock progressivo em geral, embora, também atue em outros gê- neros; na guitarra acústica, Armik, guitarrista flamenco que co- meçou sua carreira por volta de 1994. Englobando as duas gui- tarras, a elétrica e a acústica, posso citar Steve Hackett, ex- guitarrista do grupo Gênesis, que, atualmente, faz carreira solo. Na flauta, o irlandês James Galway (executa, em geral, música Édson Queiro 27 erudita). Em trompete, o grande Wyntom Marsalis, mais no mun- do do jazz, porém, dá suas esticadas ao erudito. No saxofone, temos o grande e, já citado, Jan Garbarek. Para mim, o mais perfeito músico que já ouvi, independente do gênero musical. Citaria então, mais dois saxofonistas que merecem destaque, em minha opinião: John Coltrane e Michael Brecker. São, tam- bém, atuantes no jazz. Na gaita, o belga Toots Thielemans. Na harpa, temos a delicadeza de Georgia Kelly, tocando new age. No oboé, temos dois a destacar e, aqui, minha segunda artista favorita. Estou falando de Nancy Rumbel, que na new age mos- tra todo seu talento na execução desse tão difícil instrumento. Também destaco Paul McCandless, que mescla em sua carreira o jazz e o new age. No acordeon, temos dois músicos que me encantam no mundo do jazz: o francês Richard Galliano e o argentino, radicado lá fora, Dino Saluzzi. No vibrafone, temos a presença de Gary Burton. No vocal são várias as opções que tenho. Destacarei três no masculino e algumas cantoras. Den- tre os homens: o cantor do grupo Yes e também tendo carreira solo, Jon Anderson que nos encanta com sua voz diferente, porém, marcante; Peter Gabriel, que, num cantar profundo e melancólico, nos transporta para outras profundidades. Ele in- tegrou o grupo progressivo "Gênesis" de 1969 a 1975. Desde então, tem carreira solo; e Lake, cantor do trio "Emersom Lake e Palmer". Ele possui uma voz forte e marcante... Entre as mulheres, minha musa auditiva é Annie Haslan, ex-cantora do grupo progressivo "Renaissance". Ela entrou no grupo em 1973. Não sei precisar quando saiu para fazer carreira solo, digo líder. Outra, é também cantora de um grupo progressivo, o "La Tulipe Noire". Ima é o nome dela, e se destaca com muita profundida- de. Na new age, algumas se destacam com muita profundidade ao cantar. Posso citar aqui Cecília, Lisbeth Scott, entre outras, Mil faces da diferença 28 que com a magia de suas vozes fazem minha alma delirar. No violoncelo, ou cello, há dois músicos que se destacam, porém são artistas do new age e do jazz. No jazz e no new age, temos: David Darling, que toca esse instrumento de forma diferencial. Na new age, temos Howard Green, cujos CDs me fazem delirar. Green, também toca violão. No violino, temos o marcante Itzhak Perlman, músico de grande qualidade, cujo dedilhar faz o violi- no soar com melancolia e profundidade. Ele dá seus tapas no mundo do jazz, porém, seu forte é como solista erudito. Aqui, dei minha opinião e expus meus sentimentos sobre meus artistas favoritos, por ter uma certa experiência como amante da música desde os anos 70. Tenho 49 anos. Para finalizar, deixarei aqui meus sentimentos pessoais so- bre o que sinto quando ouço cada instrumento e uma voz infini- ta. Comparo estes sentimentos, ou sensações, como disse no iní- cio, a quando estou perto de uma verdadeira mulher. Em suma, o ser mulher é minha música. Quando ouço um violoncelo, ouço a tristeza de um toque. Quando ouço um instrumento de sopro, sinto a doçura de um toque como se fosse de uma mulher. Quando ouço um teclado, um piano ou instrumentos de corda, ouço o dedilhar macio do ser mulher. Quando ouço a voz marcante de um vocal mágico, sinto a voz penetrar em meu ser, transportando-me para as profundezas de um espaço maravilhoso. Essa junção de instru- mentos e vozes, fazem meu espírito se transportar para a maior regência que um maestro pode atingir. É a regência dos evoluí- dos, onde fico paralisado no palco da vida, deleitando-me ao ouvir tão profundas notas ecoarem dentro de meu ser. Meus ouvidos são privilegiados ao ouvir a profundidade com que uma música pode nos enriquecer e nos dar prazer. Édson Queiro 29 FRANCISCO DAS CHAGAS DE ARAÚJO Natal - RN O Sentido da visão interior (Texto extraído de sua monografia apresentada à Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como pré-requisito para obtenção do título de bacharel em Filosofia.) No desenvolvimento que buscamos dar a este trabalho, vi- sando contribuir com os estudos que envolvem o "sentido da vi- são interior", procuramos ver os aspectos que podem oferecer-nos alternativas para vivenciarmos esse sentido, muito embora tenha- mos que lamentar a fragilidade incutida na "racionalidade", da qual se assenhorou o homem, para submeter ao seu imediatismo todos os outros seres que têm conhecimento da existência. Creditamos ao sentido da visão interior, por sua natureza, significativa proxi- midade da realidade, entendendo que ele se desenvolve pelo sincronismo entre os órgãos dos sentidos que funcionam em cada um de nós, associando-se ao aprendizado que vamos adquirindo na "escola da vida", estando esse sentido sempre na eminência de ascensão, presente em todos nós, desde o nosso nascimento. Inte- grante do nosso ser, sem as especificidades individuais que carac- terizam os órgãos dos sentidos, o sentido da visão interior tem a percepção numa dimensão diferente, através da qual conseguimos discernir ao ato, movimento ou expressão mais coerente na supe- ração dos questionamentos da vida. De nossa interioridade bro- tam as essências indispensáveis para que se tenha prazer de viver. René Descartes, nas meditações II e III, oferece-nos pontos de reflexão, utilizando-se de uma lógica subjetiva, que na riqueza do amor pela sabedoria (filosofia), mostra-nos um rumo transcenden- te, perceptível sim, quando nos desprendemos do materialismo, Mil faces da diferença 30 introdutor dos obstáculos que nos impede de sentir essa não sei que parte de mim mesmo que não se apresenta à imaginação - questionamento do próprio pensador - pelo que entendemos, remetendo-nos ao sentido da visão interior, mesmo sendo essa parte muito esquisita para ele. Superar adversidades pelo senti- do da visão interior em essencial plenitude, ocorre-nos ao êxta- ses da noiésis que é a contemplação da verdade na ordem vista como real por meio da razão ou do conhecimento. É o que her- damos da filosofia de Platão. Por ela vieram os entendimentos diversificados de como conceber a percepção das coisas mais profundas e sofisticadas. Assim, seguidores e opositores do fi- lósofo, no decurso de sucessivas épocas, têm desenvolvido teo- rias filosóficas visando chegar o mais próximo da verdade, às vezes mesmo seguindo por vias opostas, entretanto querendo alcançar a razão da existência. Por tudo quanto argumentamos e pelos exemplos comentados é que acreditamos no sentido da visão interior como a percepção condutora dessa proximidade. Francisco das Chagas de Araújo 31 INDIARA CARVALHO Salvador - BA Contos dos meus dias Dificuldades mil, mas enfim, a liberdade! Quando perdi a visão, foi uma fase muito difícil. Para que eu conseguisse me adaptar ao novo mundo, vivenciei um perío- do duro de reabilitação. Vozes, gritos ou qualquer situação pare- cida, deixavam-me extremamente assustada. Mas eu desejava novamente realizar, de fato, o que fazia antes, ou seja, ser dona da minha vontade. Então, tratei de pro- curar auxílio. Parti em busca de uma bengala, uma reglete, de movimento, de inserção na sociedade; e um dia me encontrei! Após ter feito o treinamento de mobilidade e aprendido o método braille, chegou a hora de enfrentar os desafios e superar barreiras. Na primeira vez que subi sozinha a ladeira do restaurante Grão de Arroz, localizado no bairro dos Barris, em Salvador, senti-me um pássaro fora da gaiola. Com certeza, foi a melhor sensação que já vivenciei. I Certo dia, eu estava com um grupo de deficientes visuais des- cendo a ladeira do já referido restaurante, todos juntinhos para que houvesse uma maior proteção do grupo, pois estávamos inauguran- do a pista tátil. De repente, uma sombra surgiu subitamente em minha frente, e eu parei bem próximo dela. Então, pensei: "Deve ser uma pes- soa", e imediatamente pedi desculpas. Mil faces da diferença 32 Todos gargalharam. Eu, havia pedido desculpas para um poste da Companhia Elétrica. Foi uma situação divertida para todos nós. II No início da minha convivência com a deficiência visual, perdi-me em minha própria casa. Não quis gritar, nem incomodar ninguém. Abaixei-me e comecei a tatear o chão. De repente, meu cachorro me encon- trou e começou a querer subir em mim. Lambia-me desesperada- mente... Até que, completamente perdida, encontrei a parte infe- rior da estante que ficava na sala e me localizei. Foi uma loucura. III Até mesmo a situação que descreverei a seguir, foi um tan- to perigosa e engraçada. Certo dia, eu e mais alguns amigos que gostavam de farra, ficamos durante algum tempo bebendo e perdemos a hora. Quan- do verifiquei o relógio, eram 23h30, e o último ônibus para meu bairro já havia partido. Então, procurei lembrar-me de um outro caminho através de um bairro vizinho, que dava acesso à minha residência. Eu e uma outra amiga, também deficiente visual, tomamos um ônibus e ficamos rodando neste coletivo durante um bom tempo, até que chegamos ao destino desejado. Como já havia residido naquela localidade na época em que enxergava, e conhecia suficientemente a região, solicitei ao mo- torista que nos deixasse na esquina de uma rua que poderíamos utilizar como atalho seguro até chegarmos ao nosso destino. Ledo engano. Passamos por momentos de muito medo. Estávamos sozinhas, e a única coisa que escutávamos era alguns assovios (sinal de comunicação entre xinxeiros(bandidos)). Indiara Carvalho 33 De repente, dois jovens que eu conhecia desde criança, vie- ram até perto de mim, e também com muito medo, nos conduzi- ram até um certo ponto do trajeto que eu pretendia percorrer. O medo dos rapazes era causado pela varredura da polícia, devido a presença de um marginal que estava praticando horro- res naquela localidade. Por esse motivo, a polícia perseguia todos os jovens que moravam e transitavam naquela região. Quando eu achava que o perigo havia passado e estava segura, pois tinha confiança naqueles jovens, uma viatura da polícia se aproximou. Minha amiga, reconhecendo o barulho de uma D20, fez sinal esticando o braço. Os policiais engatilharam as escopetas e mandaram que os meninos levantassem os braços. Somente após eu explicar o que estava acontecendo, mandaram que os dois corressem, e deram uma carona para nós duas, par- tindo em busca da minha casa. Quando o cano de uma arma encostava em mim, eu solici- tava que fosse afastada, e os policiais riam e faziam perguntas, ao mesmo tempo que comentavam o perigo que corríamos ao tran- sitarmos na rua sozinhas, naquela hora da madrugada. Ao passarmos em frente a uma residência, onde pessoas conversavam e se divertiam, elas me reconheceram e indicaram meu endereço. Foi hilário chegar em casa numa viatura da polícia, e per- ceber a surpresa que causei a meus pais. Porém, logo que passou o susto, todos rimos muito. Mil faces da diferença 34 IRACI MATOS PARREÃO Teresina - PI Leitura através do Sistema Braille (Texto extraído do trabalho "O Desafio da palavra escrita: um estudo sobre as formas e condições de acesso à leitura de pessoas cegas", realizado por Iraci, para obtenção do título de bacharel em Serviço Social da Universidade Federal do Piauí.) O braille é um sistema de leitura e escrita tátil para pessoas cegas que contém seis pontos em relevo, dispostos em duas colu- nas de três no sentido vertical na mesma janela, formando ses- senta e quatro combinações. Surgiu há, aproximadamente, 178 anos - para trazer o brilho que veio dar um sentido à vida das pessoas cegas - após tanto tempo do advento da escrita e escrita que, segundo Souza (2004), foi inventada no período entre três a cinco mil anos antes da era cristã. Sua criação foi o advento de uma possibilidade real que permitiu aos cegos ingressar na cha- mada "cultura letrada". Portanto, somente há menos de dois sé- culos os cegos tiveram acesso a um código autônomo de repre- sentação da escrita. A partir de então, a comunidade de pessoas cegas iniciou a corrida pelo experimento da sensação dessa luz (SOUZA, 2006, p. 3.). Para falar da origem do Sistema Braille, utilizo o conceito de Gregori, que explica a interligação dos diversos ciclos sistêmicos, onde afirma que "cada novo ciclo de um sistema nas- ce ou se apóia na extremidade do anterior, coexistindo superpostamente em algum espaço e por algum tempo". Segundo Souza, se olharmos para a "epigênese" do sistema Braille, veremos que o novo alfabeto não surgiu do nada, mas apro- veitou o essencial da estratégia proposta por Charles Barbier, ou Iraci Matos Parreão 35 seja, a substituição do traço pelo ponto. Braille foi muito mais além. Deu-nos uma lição de economia lógica, eficiência matemática, eli- minação do ruído e otimização na decodificação da informação, enquanto que na estratégia sonográfica de Barbier, havia doze pon- tos para as combinações, e carecia de um quadro para simbolizar a fonética da língua francesa. Luís Braille instituiu uma estratégia cuja célula básica se compõe de seis pontos, gerando ordinaria- mente 64 combinações, criando um alfabeto autônomo, apto a re- presentar a escrita convencional, a musicografia, a matemática, entre tantas outras possibilidades. (SOUZA, 2004, p.86.). Em 1823, Barbier fez os primeiros experimentos públicos do seu método (sonografia de Barbier) com alunos da escola de Haüy, tendo como testemunhos dois membros da intelectualidade francesa da época que, após assistirem ao experimento, fizeram o seguinte comentário, conforme relata Henri: "La escritura ordinária, dicen, es el arte de hablar a los ojs, la qui há ideado el señor Barvier es el arte de hablar al tacto" (HENRI apud SOUZA, 2004, p. 40.). Antes do Sistema Braille, em 1809, o capitão Charles Barbier, deu início a pesquisas voltadas à criação de um código para a transmissão de mensagens secretas entre bases aliadas, instituindo o ponto como estratégia básica para a leitura e a escrita. O invento de Barbier tinha por base doze pontos, seis linhas e trinta e seis símbolos representativos dos principais fonemas da língua francesa. Tendo Luís Braille experimentado os dois recursos na alfa- betização, tanto a manuscrita quanto a sonografia de Barbier, pou- cos anos depois ele estava pronto a apresentar ao mundo seu pró- prio método de leitura e escrita, no qual a simplicidade aparente de uma célula básica de seis pontos justapostos exibia a complexida- de de um genial arranjo lógico matemático, um alfabeto completo, permitindo aos cegos do mundo inteiro independência, autonomia, liberdade. A primeira versão do seu sistema, divulgada em 1829, Mil faces da diferença 36 sofria ainda influência do método criado por Charles Barbier, sen- do que sua versão definitiva foi divulgada 1837, de acordo com o relato de Henri. Durante muito tempo a reglete e o punção foram os únicos meios para a produção de livros ou qualquer outro texto em Braille. Lentamente, foi surgindo a mecanização da produção do livro Braille pela via de uma máquina de impressão, tendo como marco inicial os países e os grandes centros economicamente mais fortes. É possível avaliar o quão difícil tem sido para esse ensi- no/aprendizagem chegar às camadas mais carentes. No Brasil, um país continental e em desenvolvimento, as dificuldades têm sido inúmeras, principalmente para os que nas- ceram e vivem em situação de pobreza e longe da urbanização, pois, semelhante aos países desenvolvidos, esse ensino/apren- dizagem teve início nos maiores centros - Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte - onde sempre estiveram concentradas as maiores riquezas do País e, consequentemente, maior circu- lação de informações. Sendo o Rio de Janeiro o marco inicial desse ensino/apren- dizagem, talvez por haver maior influência política na época, despertou o interesse de Dom Pedro II. Mais tarde, São Paulo avançou, principalmente através da Fundação para o Livro do Cego, que teve como fundadora da instituição e à frente dos interesses, uma pessoa cega, Dorina de Gouvêia Nowill, que buscou qualificação fora do País e continuou a difundir o tra- balho dando suporte para os outros Estados e, hoje seu nome é uma grande referência nacional. Conforme Masini (1994), a divulgação do Sistema Braille no Brasil pode ser considerada a primeira preocupação com a educação de deficientes visuais, que ocorreu em 12 de dezembro de 1854, dezessete anos após a divulgação definitiva deste sistema no mun- do. O imperador Pedro II, através do decreto nº 428, instalou o Im- Iraci Matos Parreão 37 perial Instituto de Meninos Cegos - marco inicial da educação de deficientes visuais no Brasil e na América Latina. Após o advento da República, tal instituição passou a se chamar Instituto Benjamin Constant, única referência de educação de deficientes visuais no país até 1909, quando foi inaugurado o Instituto dos Cegos do Reci- fe, pelo senhor Antônio Pessoa, cego e de uma família muito impor- tante daquela capital. Em 1926, foi inaugurado, em Belo Horizonte, o Instituto São Rafael. Mais tarde, em 1934, o Instituto Benjamin Constant foi autorizado a ministrar o curso ginasial. Em 1927, foi fundado em São Paulo o Instituto para o cego Padre Chico, em homenagem ao Monsenhor Francisco de Paula Rodrigues, o qual adquiriu personalidade jurídica em 1928, sendo reconhecido de utilidade pública estadual e federal em 1960 e 1968, respectivamente. No ano de 1935, um projeto de lei foi apresentado por Comélio Ferreira França à Assembléia, objetivando a criação do lugar de professor de primeiras letras para cegos e surdos-mudos, ou seja, propõe a legitimação do profissional especializado que pretende trabalhar com pessoas com deficiência. Com a finalidade de capacitar professores para o trabalho com deficientes visuais, em 1945, foi implantado no Instituto de Educação Caetano de Campos, em São Paulo, o primeiro curso de especialização de professores, oficializado através do decreto lei número 16.392, de 02/12/1946 (MASINI, 1994). No ano seguinte, 1946, surge o livro em braille, com a criação da Fundação para o Livro do Cego no Brasil, institui- ção voltada a imprimir livros acessíveis ao deficiente visual - passo importante para a descentralização da educação especializada. A preocupação com a formação de professores especializados permanece, pois, em 1947, o Instituto Benjamin Constant e a Fun- dação Getúlio Vargas, em regime de cooperação, realizaram o cur- so de caráter intensivo destinado à especialização de professores Mil faces da diferença 38 para deficiente visuais. A partir de 1951, foram realizados cursos de especialização de professores e inspetores para deficientes vi- suais com alunos de diferentes unidades federativas. Em 1950, em caráter experimental, foi instalada nas esco- las comuns a primeira classe Braille do Estado de São Paulo, com acompanhamento especializado. Com isso, a frequência de alunos cegos e de baixa visão em escolas comuns ampliou-se bas- tante e não deixou dúvidas quanto à possibilidade de ajustamen- to social desses alunos, nem quanto ao nível satisfatório de seu desenvolvimento de aprendizagem (MASINI, 1994). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSOCIAÇÃO Brasileira de Educadores de Deficientes Visuais (ABEDEV), 1998. 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Andamos apressados, feito loucos, querendo sempre ser os primeiros, achando sermos superiores, e no entanto, somos tão pequenos. Na maior parte das vezes, menos que nada. A água e o fogo cumprem seu destino. O dia e a noite fazem o mesmo. E nós? Mil faces da diferença 42 JERUSA MARIA FERREIRA DE SOUZA Feira de Santana - BA São coisas da vida! (Texto extraído do livro "Pedaços de Mim", publicado pela autora.) Confesso, com toda a humildade, que não possuo o me- nor senso de humor para aceitar naturalmente as batidas de mau jeito nas ruas, acidentar-me, principalmente em buracos pelas calçadas, obstáculos colocados nas mesmas e tantas coisas mais surgidas ao longo de nossas andanças. Meu marido e eu nos encontrávamos jantando e, com a maior naturalidade, ele falou: - Hoje eu meti meu pé num buraco, feri a perna e uma senhora ajudou-me a tirar meu sapato que ficou dentro do bura- co, pois ele era fundo. - Ai, meu Deus! Coloque mertiolate. Aqui em casa tem. Coloque álcool iodado, coloque mais remédio que é melhor", falei. Mesmo assim, não me conformei e peguei em sua perna para sentir a extensão do estrago. Isso é insuportável e inad- missível. Acho que nunca vou aprender a conviver com essas situações. Ah! Se é comigo que acontece esse tipo de coisa...! Falo, xingo e fico de mau humor grande parte do dia. Tudo tem uma razão de ser em nossas vidas: eu era bem pequena ainda e sempre ouvia minha mãe dizer para todos de nossa casa: "Não deixem nada na frente de onde ela passa". Mas sempre davam um vacilo, principalmente quando tínha- mos uma empregada nova. Numa manhã muito chuvosa, eu andava pela casa à procura do que fazer. De repente, bati mi- nha perna esquerda num balde cheio de água que se encontrava Jerusa Maria Ferreira de Souza 43 bem à porta do banheiro. A pele, muito fina, ficou ferida apesar dos cuidados da minha mãe e, é claro, acompanhados de recla- mações com quem tinha esquecido o balde bem na minha pas- sagem. Dias depois, tornei a machucar a mesma perna no lugar- zinho do ferimento mal-sarado. Sangrou bastante, chorei muito e minha mãe explodiu mesmo com a moça que era nossa babá. O ferimento transformou-se numa ferida, levando sete meses para a cicatrização. Precisei de médico para o tratamento. Re- sultado: até hoje tenho uma grande cicatriz e a pele ficou por demais sensível, o que me faz ter muito cuidado com o local afetado. Tenho certeza que as cicatrizes, no caso do meu mari- do, não ficarão em sua pele mas, sim, na sua alma, pois o co- nheço há trinta anos e sei o quanto é sensível e voltado para dentro de si mesmo, o que o faz sofrer bastante. Comparo-o a um carneiro que nada reclama, até mesmo diante da sua sofrida morte. Eu não. Reajo muito diante dos acontecimentos sofri- dos da minha vida. Desabafo, e quando tenho que engolir, tudo já está suavizado. Prefiro ser como sou. Sofro, garanto, bem menos; ao passo que as pessoas que aceitam passivamente o sofrimento, o fazem com a morte na alma, o que acarreta inú- meros danos para seus corpos, principalmente para suas almas, deixando cicatrizes para sempre em suas existências. Mil faces da diferença 44 JOÃO DANIEL DO VALE JUNIOR Belém - PA Superando a primeira barreira Eu sou João Daniel, tenho 12 anos e perdi a visão há dois anos, devido a um acidente de automóvel. Neste mesmo acidente, perdi meu pai que estava ao volante, e minha mãe que estava ao seu lado. Eu e minha prima Rosana estávamos no banco traseiro, e con- seguimos sobreviver. Eu levei uma pancada muito forte na cabeça, o que provocou a perda da visão. A Rosana sofreu apenas alguns arranhões, e hoje é o anjo bom que empresta-me os olhos. Após a morte de meus pais, passei a morar com meus tios, pais da Rosana. Eu gosto muito da minha prima, e acho mesmo que a amo. Gostaria que ela fosse minha namorada, mas não sei como falar isso para ela. Já aprendi a utilizar o dosvox, e estou cursando o quinto ano. Ah, estou também aprendendo mobilidade, que é um trei- namento para me locomover sozinho, com o uso da bengala. Neste ponto, contarei para vocês, uma experiência que muito me marcou. Talvez tenha sido, mesmo, o momento onde desco- bri que realmente tinha ficado cego. Eu estava participando de uma das primeiras aulas de mobilidade, quando minha instru- tora mandou que eu percorresse uma certa distância, contor- nasse uma praça e voltasse ao local de partida. Posicionei-me corretamente com minha bengala, e saí caminhando passo a passo, tateando o caminho. Foi uma experiência muito estra- nha. Eu conhecia aquele lugar com os olhos, mas tudo havia se tornado novo para mim. De repente encontrei uma parede, e fiquei sem saber o que fazer. Eu pesquisei várias vezes o obstá- culo com a bengala, atividade que não me ajudou a me locali- zar. Resolvi usar as mãos, e tateando a parede, percebi algo pegajoso e com um cheiro muito forte. Ao cheirar a mão, senti o mesmo chei- João Daniel do Vale Júnior 45 ro da substância que meus colegas de escola, utilizavam para pinchar muros. Naquele instante, refleti: "Talvez este seja o muro da sorve- teria que fica ao lado da praça". Mas, como eu havia chegado nele, já que ficava do lado oposto ao que eu estava? Pensei um pouco mais, e me lembrei que o muro tinha uma cor acentuadamente amarela... Mas qual a utilidade daquela informação para mim no momento? Continuei a pesquisar com as mãos, percebi que a tinta cobria gran- de parte da superfície, e utilizando o bico do meu tênis, percebi uma fenda que havia na parte inferior do muro, onde costumávamos guar- dar carretéis de linha que serviam para empinar pipas. Fui arrastan- do a mão pelo muro, até que este terminou e eu encontrei um degrau que nos levava à calçada de uma igreja. Parei, voltei a pensar: "E agora! Como prosseguir? Onde estava minha bengala?" Eu me loca- lizara, mas não sabia o que fazer. Havia esquecido a tal bengala quando começara a utilizar as mãos. Pensei rapidamente, e decidi: teria que continuar, e não iria decepcionar minha professora. De qualquer modo, eu encontraria o local de onde havia saído. Apurei o ouvido. Não percebendo barulho de automóvel, atravessei a rua e, com o bico do tênis, fui me orientando através da borda da praça. É claro que passei a andar muito mais devagar, mas de acordo com a minha memória visual, eu deveria seguir a esquerda até completar meia volta na praça. Foi o que fiz. Quando consegui chegar no local certo, minha professora co- locou a mão em meu ombro, me parabenizou pela atitude de conti- nuar a jornada, mas me advertiu para que nunca mais eu abandonas- se minha bengala como havia feito, pois ela seria um objeto de apoio e proteção para mim. Perguntei, então, se nunca mais eu poderia caminhar sem a bengala. Ela respondeu que até poderia, se conhe- cesse bem o local, mas não deveria, pois caso surgisse um obstáculo novo no meio do caminho, eu poderia me machucar. Naquele mo- mento a ficha caiu: agora eu estava cego, e teria que me apoiar para sempre numa bengala! Mil faces da diferença 46 LUÍSA MONTEIRO Vitória - ES Minha simples felicidade Sou Luísa, nasci com retinose e tenho baixa visão. Tenho 39 anos e sou licenciada em História. Tenho três filhos: uma ga- rota com 14 anos e dois meninos, com 10 e 8 anos. Meus filhos são frutos de três relacionamentos, e moram comigo e meus pais. Atualmente, estou desempregada e vivo com as pensões dos meus filhos e com o auxílio de meus pais. Bem, sempre cui- dei dos garotos e dizem que sou uma excelente dona de casa. Gosto de cozinhar, e adoro limpar e arrumar a casa. Acho que se tivesse a visão perfeita seria uma decoradora. Ah, gosto também de jardinagem e cuido de um pequeno jardim que temos na fren- te da nossa casa. Somos uma família de seis pessoas que, de acordo com padrões simples, vivenciamos nossa felicidade. Luisa Monteiro 47 MARIA DA CONCEIÇÃO DE JESUS Porto Seguro - BA A Eremita social Meu relato é somente de natureza leiga, pois não tenho nenhum conhecimento acadêmico. Tenho 50 anos, sou soltei- ra, e moro com uma irmã casada. Perdi a visão ainda na infân- cia, e talvez pela condição social e pela falta de conhecimento da minha família, até hoje não sei exatamente a causa da minha cegueira. A história que meus parentes me contaram não me convenceu nem um pouco. Dizem que perdi a visão numa certa manhã, quando tinha três anos e, em pleno inverno, levantei-me abruptamente da cama. Ao sair debaixo do cobertor, pisei no chão frio com os pés descalços, abri a porta e corri para fora da casa. Neste instante, recebi uma forte corrente de ar muito frio que entortou minha face e, desde então, deixei de enxergar. O fato é que, talvez, desde aquele momento, perdi inteiramente o contato com a sociedade. Primeiro por escolha da minha famí- lia, que escondia-me e mantinha-me em cárcere privado, com a justificativa da proteção. Porém, após a morte de meus pais e da minha irmã caçula - minha companheira em todos os mo- mentos - passei a morar com minha irmã Mercedes, seu marido e meus sobrinhos, Vitória e José. A partir deste momento, por escolha própria, optei pela reclusão. Passei a sentir vergonha de mim mesma, medo de tudo e de todos, de quem somente ouço as vozes. Minhas únicas atividades, atualmente, são as idas à igreja - quando a Mercedes me leva à missa - e escutar o meu rádio de pilhas, sentada na varanda, ouvindo também os passos e as conversas, e sentindo o cheiro das flores quando chega a noite. Mil faces da diferença 48 Sinto medo de caminhar até mesmo no próprio local onde moro. Ao trocar a passada, penso que vou esbarrar em algo que me leve a uma queda, o que poderia quebrar algum osso do meu corpo, apesar da grossa camada de gordura que tenho. Não me casei, nunca tive um namorado, e dediquei minha vida a Jesus, embora a igreja não tenha me aceito como freira. Gos- taria de ser como outras pessoas cegas que já conheci, me comunicar, e até aprender a usar o computador, o que sei que, hoje, é possível para uma pessoa cega. Como não tenho essa capacidade, limito-me a frequentes conversas que tenho com o meu sobrinho José, que faz uma faculdade de psicologia. Ele é muito esclarecido e dedicado a mim. Pedi-lhe que es- crevesse este relato somente para revelar minha experiência, a qual, aconselho que ninguém copie. Maria da Conceição de Jesus 49 MARILZA MATOS Salvador - BA Identificação (Texto extraído do livro "Pêndulo da Alma", publicado pela autora.) Nós cegos e você... Estado geral: igual! Comemos, dormimos, andamos, Trabalhamos, enxergamos... Você não sabia? Nós também enxergamos! Para você, que usa os sentidos da visão, É difícil acreditar que se possa enxergar Com o tato, o olfato, a audição E até mesmo com o corpo inteiro! Imagens? Não as fotografamos com a retina, Mas as formamos com o cérebro! Então, qual a diferença? Você usa um sentido para enxergar, Nós, os demais para ver! No mais, amor, saudade e vida verdadeira, Iguais a você! Mil faces da diferença 50 MARINA YONASHIRO São Paulo - SP Amor platônico Afinal, o que é o amor platônico? Busquei essa resposta por muito tempo. Nos meus catorze anos, descobri que o amor platô- nico foi nomeado "platônico" por causa do grande pensador Platão. Segundo ele, existem dois tipos de amor: o amor ideal e o amor carnal. O ideal resume-se em sentimento, o carnal em sexo. Platão afirmava que havia dois mundos: o das trevas (nosso mundo, ou se preferir, mundo material), onde o amor carnal prevalecia, e o das idéias (mundo imaterial), onde o amor ideal (batizado de amor platônico) predominava. Hoje em dia, o amor platônico quase não existe. As pessoas esquecem que uma boa companhia não é aquela que te dá pra- zer, mas também aquela que te faz se sentir bem com apenas uma conversa. Muitas pessoas não sabem amar. Nós, deficien- tes, conseguimos amar com nossas almas, com nossos corações, não apenas com nossos lados afrodisíacos. Como qualquer adolescente, já me apaixonei várias vezes. Algumas paixonites rápidas, outras desenfreadas. Não vou dizer que antes de perder a visão não amava; digamos que quando a perdi, "refinei" esse amor. Comecei a me importar muito mais com as pessoas amadas do que comigo mesma. Sempre amei minha irmã, mas depois que perdi a visão, meu amor se tornou tamanho, que não posso descrevê-lo com palavras. Entre esses amores, amei também um amigo. Eu me mata- ria, se isso o fizesse feliz. Qual minha surpresa quando ele disse que também me amava. Marina Yonashiro 51 Claro, admiti também; mas, infelizmente, apenas nos co- nhecíamos virtualmente (por MSN). Começamos a nos tratar com mais carinho e tudo parecia transcorrer bem. Não namoramos, pois para ele "namoro virtual" era coisa de nerds. Bom, não acho isso, mas há quem ache. Porém, com o tempo, percebi que nossos amores eram dife- rentes: Meu amor era puro sentimento, e o amor dele era puro prazer. Namorar para mim significava (e significa) ter alguém em quem confiar, para conversar, para não deixar que você se sinta só. Para ele, era ter alguém que lhe oferecesse prazer sempre que ele quisesse. No final, me senti tão incomodada com o amor dele, que dei um ponto final no relacionamento. Ele ficou tão impres- sionado por eu ter posto um fim no que, para ele, estava perfeito, que ele preferiu me dizer adeus, alegando que não conseguiria falar comigo sabendo que eu não o amava. Claro que o amo, mas para que ele me esquecesse e não criasse esperanças, achando que podíamos voltar, disse a ele que não o amava mais. Pode ser um pouco de frieza de minha parte jogar um balde d'água fria em seu amor, mas aquilo me incomodava tan- to... Era como uma roupa impecável e apertada: todos que a veem acham que a roupa é perfeita, mas só quem a está vestin- do sabe o quanto ela atrapalha e sabe que não vai aguentar ficar com aquela peça de roupa no corpo por muito tempo. Foi o que aconteceu comigo. Todos que sabiam do meu caso com meu amigo achavam que era um amor impagável, mas só eu sabia que a divergência entre nossos amores não permitiria que nos- sa relação fosse infinita. Nossos amores eram opostos, e opostos não se atraem. Ou talvez até se atraiam, mas não ficam juntos por muito tempo. Mil faces da diferença 52 Algumas vezes acho que a visão das pessoas as impedem de amar. O que elas sentem não é amor, mas sim um desejo lou- co por prazer. Deficientes visuais amam e sabem diferenciar o prazer da companhia. A verdade é esta: deficientes visuais são feitos de verdades. Marina Yonashiro 53 ODELITA FIGUEIREDO Salvador - BA I A Luta Passa a vida, a luta é cara. Passam as horas no fio do tempo, Corre o tempo na velha estrada, Corre a estrada ao longo da vida: Curvas, ladeiras, esquinas e muros. Duro seria não ter a luta, Nem participar da vida... II Luz da consciência (A segunda e mais importante visão.) Eis a luz que não se cala Mas apenas se sente: Novamente, novamente, novamente... Até a eternidade. Eis a luz que não se vê Mas apenas se ouve. E o tempo trouxe, trouxe, trouxe... Essa luminosidade para mim. Eis a luz que não tem fim Nem início, nem ótica, e nem meio. Mil faces da diferença 54 E eu creio: Que é a verdadeira essência Para quem a ouve, transmite E faz dela a sua crença e verdade Seja ela qual for. III Eu e a bengala Confesso que nunca me acostumei a tatear qualquer am- biente utilizando corretamente um objeto de apoio. Certamente por isso, sempre usei a bengala de modo inadequado. Eu a colo- co na frente do meu corpo, e saio em disparada arrastando-a. Tento manter uma linha reta, mas na maioria das vezes, em locais com muito barulho, não consigo. Nunca perdi este hábito infantil. Caminho, mesmo em am- bientes desconhecidos, como se estivesse enxergando normalmente. Apoio-me na audição e numa espécie de orientação têmporo-espacial. Às vezes, tento andar pausadamente, com mais cautela; porém, logo perco a concentração e lá vou eu com toda agitação que me é peculiar. Quando criança, aconteceu uma experiência interessante comigo que, ainda hoje, guardo na memória. Certo dia, numa fase onde eu já havia perdido todo o resíduo visual, estava numa corrida veloz pelo corredor da escola, quando apareceu uma pro- fessora no meu caminho. Ela trazia uma coleção de classificado- res de provas nos braços; eu esbarrei nela, fazendo com que todo o material caísse. Ela segurou-me pelo braço e disse: - Garota, você não sabe que perdeu a visão e que não deve mais andar nessa velocidade? - A visão eu sei que perdi - respondi, sem mesmo pensar. - Mas ainda tenho duas pernas que me ajudam a andar, correr e quem sabe até voar! Odelita Figueiredo 55 Ela mudou o seu tom, afrouxou a mão que detinha meu braço e, apesar de continuar argumentando, parecia haver rece- bido uma lição. Tinha a voz emocionada quando falou: - Minha filha, não custa nada você andar mais devagar e com cautela. Afinal você já é uma mocinha e não fica bem andar correndo. Tente se educar e andar com mais elegância. Não sei bem o que compreendi daquela conversa, no mo- mento. Porém, minha ansiedade e vontade de estar sempre em movimento são constantes, e estão presentes em mim até hoje. Deve ser essa a razão pela qual não gosto de andar a pé nas r uas. Em ambientes fechados posso muito bem me locomover somente com o auxílio da audição; o que não acon- tece em ambientes abertos, cujo nível de barulho atinge eleva- dos decibéis, e prejudica sensivelmente a minha locomoção. IV A ausência das letras Certo dia, um rapaz cego recebeu a incumbência de entre- gar uma carta de amor que havia sido enviada por seu grande amigo para uma futura pretendente. - Antônio, se eu sou cego e não sei onde mora a sua gata, como é que vou entregar a carta? - Celso, basta você solicitar a alguém que leia o endereço que vou escrever no envelope, e depois pedir para que a pessoa lhe encaminhe até o local. Caso queira, posso também te falar o endereço e você memoriza. O que prefere? - Antônio, não gosto de memorizar nada. Eu já tenho que utilizar muito minha memória para sobreviver, e tenho muito medo de perdê-la. Ela é minha maior arma. Portanto, escreva o endere- ço no envelope e tenha certeza que somente farei esse favor por- que é para você, que muito merece minha gratidão. Mil faces da diferença 56 - Cara, eu nunca fiz nada para merecer essa sua gratidão. Mas, por favor, entregue a carta em consideração à nossa velha amizade. Eu quero conquistar aquela gata. Soube que ela é mui- to romântica e adora homens à moda antiga. - Pois bem, dê-me a carta - respondeu Celso. O rapaz cego, sem outra alternativa pegou a carta da mão do amigo e seguiu o seu caminho. Tomou uma condução e, ao descer numa determinada parada de ônibus, percebeu a presença de alguém solidário querendo ajudá-lo. - Meu filho, você está precisando de alguma ajuda? O rapaz cego, percebeu pela voz meiga e trêmula, que se tratava de uma senhora. - Sim, a senhora pode me ajudar, por favor? - Claro, meu filho. Você quer atravessar a rua? - Sim. Mas não é somente isso. Eu preciso que a senhora leia o endereço que está escrito neste envelope, e depois, caso seja possível, me leve até a frente do prédio que está no endereço. Nesse instante, a senhora começou a gargalhar e não con- seguia articular nenhuma palavra. - Minha senhora, o que está acontecendo? A senhora está rindo de mim ou da minha deficiência? Quanto mais a mulher ria, mais suas gargalhadas chama- vam a atenção dos transeuntes. Quando o rapaz já estava fican- do impaciente, ela, muito séria, delicada e espirituosa, respondeu: - Não, meu filho, eu não estou rindo de você. Acontece que nós dois, apesar de estradas diferentes, estamos no mesmo caminho. Você não enxerga, e eu não sei ler. Portanto, acho que vamos precisar do auxílio de uma terceira pessoa. Eu empresto meus olhos a você para que atravesse a rua. Mas uma outra alma caridosa emprestará os olhos para ler o endereço que você preci- sa. Ah! Aguarde um pouquinho, já está vindo uma outra senhora, e eu vou perguntar para ela. Odelita Figueiredo 57 - Está bem, eu aguardo. Dona Marilena trouxe a outra senhora até o rapaz. Esta leu o endereço e ainda informou que o prédio ficava do outro lado da avenida, bem em frente onde eles estavam. Dona Marilena pediu ao rapaz que segurasse o seu braço e o condu- ziu com todo o cuidado até o edifício. Ela havia aprendido a técnica de conduzir pessoas com deficiência visual, através de um comercial que fora veiculado na TV. - Senhora, muito obrigado pela sua colaboração. Foi de grande importância para mim. - Meu filho, não me custou nada. E me desculpe pelo ataque de riso. É que eu também vivo e vejo o mundo diferen- temente das outras pessoas. Eu sou analfabeta, pois não tive a oportunidade de frequentar uma escola. Às vezes, sinto-me triste por isso, mas não sou infeliz, nem revoltada. Aprendi na escola da vida coisas importantes que não se aprende em uma escola regular. Acho que você também não é infeliz. Estou certa? - Certíssima. A senhora é um anjo bom que apareceu em minha vida, no momento certo e na situação necessária. V Um bandido solidário Certo dia, um rapaz cego estava à beira da calçada de uma avenida quase deserta de transeuntes, mas muito movimentada de automóveis. O rapaz já aguardava há mais de dez minutos para atravessar, sem que aparecesse ninguém para lhe acompanhar. Quando já estava impaciente a ponto de atravessar, mesmo sozi- nho, apareceu um homem muito solícito que lhe ofereceu auxílio: - O senhor deseja atravessar a rua? Caso queira, eu posso ajudá-lo. Mil faces da diferença 58 - Sim. Eu já estou a algum tempo querendo chegar ao ou- tro lado da rua. Posso segurar em seu braço? - É óbvio! Pois não. Aqui está o meu braço. Vamos! O homem ofereceu o braço ao cego e, muito gentilmente, conduziu-o ao lado oposto da avenida. Ao atingirem a outra calçada, o tal homem determinou: - Pois bem. Agora passe tudo de valor que o senhor traz consigo. Pode ser este relógio, o cordão de ouro do pescoço, o celular e todo o dinheiro que tiver na carteira. Ou melhor, me entregue também a carteira. E não faça nenhum gesto suspeito para não chamar a atenção das pessoas, muito embora existam muito poucas por aqui. - Meu Deus! Meu senhor, o senhor não foi tão cordato comigo? Eu jamais poderia esperar essa sua atitude. - Por que não, meu chapa! Ceguinho, acho que você ain- da não me compreendeu. Antes eu estava praticando a minha boa ação do dia. Sabe, eu ainda não havia praticado nenhuma hoje. Mas agora é diferente. Eu estou exercendo neste momen- to minha profissão. Você há de convir que bandido também necessita trabalhar. Tenho seis filhos pequenos e três mulheres para sustentar; e, infelizmente, não nasci em berço de ouro como você. Pelo contrário, minha mãe era prostituta; e meu pai, eu nem cheguei a conhecer. Agora deixe de se fazer de difícil e me passe o meu salário. Por favor, não me crie nenhum problema. Afinal, eu não quero machucar ninguém. - Muito bem, companheiro. Não precisa falar mais nada. Eu entrego tudo, mas, por favor, não me machuque. Deixe-me seguir essa calçada em paz, pois também tenho que chegar ao meu trabalho e exercer minha profissão. Também tenho mulher e filhos para sustentar. O cego seguiu o seu caminho. E o bandido, ao retornar, imediatamente se deparou com uma viatura policial que foi logo Odelita Figueiredo 59 disparando tiros, atingindo-o no peito. Pois é. Esta história não é inverossímil. Afinal, estamos vivenciando uma época de crise global, de inversão de valores, onde a desigualdade social, por mais combatida que seja, o cres- cimento desenfreado da população mundial e os interesses indi- viduais egoístas, acabam sufocando qualquer bom senso. Então, sem a proteção dos poderes públicos, é mesmo cada um por si, e o grande Deus por todos nós! VI O terceiro olho (Uma janela aberta para o mundo) E descubro em fim: A retina que trago, Fino tato; Olho aceso, Sensível e ligeiro Bem nas pontas dos dedos... Cerradas as cortinas, Vejo claro o mundo lá fora. Sinto os livros; Sinto as rosas; Sinto o rosto da Aurora Gorducho e infantil Macio, macio Sorrindo para mim. Mil faces da diferença 60 VII Oportunidade No ano de 1990, quando escrevi o poema "Ser cega", classifi- cado em terceiro lugar do concurso do SESI de Itapagipe. Ele parti- cipou de uma coletânea com outros autores e essa, talvez, tenha sido minha primeira afirmação como escritora. Eu havia experimen- tado uma das mais complicadas decepções da minha vida. Ao retornar de um almoço na casa da família do meu namorado, onde a única participante com deficiência visual era eu, sentei-me em meu quarto em silêncio, e refleti sobre a questão da ambivalência do estereótipo da pessoa com deficiência visual. Ao longo dos tempos, a humani- dade criou somente dois papéis para nós, cegos. Somos os coitados que pedem esmolas, ou os gênios que sobrevivem à cegueira. O teatro da vida não nos permite um papel intermediário. Foi sob essa forte reflexão que percebi o eterno jogo de cin- tura que teria que vivenciar entre as duas faces para prosseguir em meu caminho, e o quanto é importante aproveitar o que há de me- lhor em todas as oportunidades. Para que se tenha uma certa quali- dade de vida, é imprescindível a consciência dos seus limites pecu- liares; mas, também, a coragem para romper tais limites e enfrentar quaisquer desafios. Além disso, a fé numa energia suprema, o com- promisso com a própria vida e a consciência em paz, também são fatores determinantes para que se encontre a felicidade, indepen- dente das circunstâncias vivenciadas. A oportunidade da percep- ção do lado bom das coisas nos permite a definição do papel que iremos representar na luta. Existem momentos em que precisamos ser "cordeiros", e aceitar o que é irreversível; mas, também, exis- tem outros onde temos que ser verdadeiras feras, e defender o nos- so território, ou seja, o espaço que conseguimos conquistar. Po- rém, a questão básica é exatamente descobrir em qual momento Odelita Figueiredo 61 estamos vivendo. Eu, particularmente, acredito que com o auxílio divino, essa descoberta se torna mais fácil. Ser cega "Ser cega é viver tateando a vida". É viver na luz e ser treva; Sendo, ao mesmo tempo, Dócil cordeiro e fera. É possuir dois gumes, mas não cortar. É um sempre ir e voltar, Numa luta eterna Para sua verdade conseguir mostrar. Porém, vale a pena. É melhor aceitar o desafio E vencer ou perder a aposta, Do que se esconder num canto frio E permanecer na inércia - semimorta... Mil faces da diferença 62 REBECA SERRA Salvador - BA Catarse (Texto extraído do livro "Longa Carta para Ninguém", publicado pela autora.) Existe uma medida de tempo tão fracionada que, em pou- cas palavras, contar é impossível. O exato átimo em que a água morna, a escorrer do chuveiro, se encontra com as minúsculas gotas de suor que... Quanto mesmo antes?... Cobriam o corpinho do meu filho. Há um movimento levíssimo de relaxamento to- tal, um lampejo corpóreo de estremecimento; os lábios, no meu pescoço, sinto um quase não moverem-se; os cílios longos que nem pestanejam, roçam a minha pele num rapidíssimo quase piscar... E então, já num outro tão sequenciado movimento, leve suspiro que a alma murmura me chega ao ouvido, coladinho. Como é bom! Coladinho... Coladinho ele respira entre a água a cair, como peixe que é, como peixe que foi; nós dois, outra vez tão um. (Ninguém é dono do corpo de uma mulher como o seu filho - a ele recebe, com ele e por ele se transforma, com ele reparte/compartilha e nunca, nunca, nunca mais... Volta a ser o mesmo, graças a Deus!) Mas o peixinho escorrega, ri... Me lambe o rosto, meu sor- riso toca. Dedos descobrem: pequeninos, devagar, os bocados da sua parte apartada de si; grandes, velozes, a mais ínfima su- jeira que só os dedos de mãe sabem ver! Água, água e muito sabão! Sabão de aroma delicado que o nariz da mamãe quer o cheirinho de filho no fundo da limpeza; sabão na esponja, es- puma a fazer! Muita espuma, muita espuma! E o meu banheiro Rebeca Serra 63 (que dizem ser azul, mas que vejo branco), é branco e cheio de bolhas, lindas bolhas de sabão cheirosinho que guardam, cada uma e todas elas, a alegria que em prisma se reflete no nosso teto também branco e iluminado! Gritamos, crianças que so- mos... É felicidade. Agora acaba; pega a mangueira que tem dobrinha ainda!... Volta para o aguaceiro e, muito quietos, no- vamente abraçados como um, dois, jamais fôssemos; relaxar o corpinho... Lambidinha no ombro... Um cheirinho. Das minhas mãos para outras, também amorosas, quentes mãos de aconchego que, cantando ou inventando joguinhos, en- roscam, acalentam, atoalham o meu filhinho e... Num gesto au- tomático, apagam a luz. Meu banheiro, escuro, vazio... Vazio das vozes, das bolhas, do meu ser, o ser de mim, do cheirinho... Meu banheiro escuro, que dizem ser azul; que seja... A água cai barulhenta, como cachoeira de chuveiro quan- do se está sozinho; sozinho, o eu comigo mesmo - insuportável quase... Escorre por meu corpo a lembrança da falta de beijo, o devorar guloso que já, não sei há quanto, minh'alma não abraça- va; escorre o choro, o suor, o sangue, o medo e... Pelo ralo vai o meu desamor suado que brincou de chapinhar água na restinga... Pelo esgoto vai, pelo esgoto vão: a pirraça, a ameaça, as noites de silêncio a torturar um amor adoecendo... Vão, pelos canos ou nos córregos sujos da cidade, o mau cheiro da traição não disfarçada; vai a desesperança e o desalento se agregando a dores várias... E entra na estação de tratamento o meu deságue. Eu, já de armas arriadas e cabeça baixa, no meu banheiro escuro, a dei- xar sair pelos poros e escorregar por meus pelos, o desamor por mim cultivado. Meus erros, meu zelo, minhas culpas... Limpa, luz, a água de mim sangrada, suada e sofrida, chega ao mar. Úmi- da e fresca, tomo meu filho nos braços. O leite já não sai de mim mas, o alimento sim. Nas histórias e nas canções, volto a me Mil faces da diferença 64 dedicar a ser do ser de mim; sinto o fino cabelinho no rosto a dançar, os dedinhos que se encolhem e se esticam, pela pele a me passear em fantasias; cheiro de carinho que é meio leite, meio docinho, meio... De filho, cheirinho. E um levíssimo murmurar... Um beijo de boa noite: "Deus te abençoe, te faça feliz" Quase volto a amar o amor já desfeito por ter meu encanto nos braços e penso com a alma em razoável emoção, naquela medida de tem- po tão fracionada que... E vem um suspiro que cai suave e pesado sobre o meu seio de mãe, o peito onde bate o coração amado - adormeceu profun- damente... É nesta medida de tempo tão fracionada que, nestas fragilidades quotidianas vou buscar toda a força para cair ao mar como água limpa que sujo caminho percorreu a se transformar. Saber que a capacidade de amar permanece em mim, que tenho fome mas também alento, pouso e calma. E a lágrima quen- te e solitária que resvala no meu rosto de mulher diz que é por esta mãe que vivo e me reconstruo, dia após dia, neste átimo de tempo. Rebeca Serra 65 RITA DE CÁSSIA MENDES Embu das Artes - SP Saudades de enxergar Meu nome é Rita de Cássia Mendes. Moro em Embu das Artes, cidade próxima de São Paulo. Sou solteira e tenho qua- renta e quatro anos. Nasci de uma conturbada gravidez e, para encurtar a história, digo que minha mãe foi mais uma vítima da rubéola. Até os três anos, nada enxerguei. Após esta idade, o meu campo visual era de dez por cento em um dos olhos. Sem- pre gostei muito de ler e lia em tinta; era uma "cheiradora" de livros. Gostava imensamente de ler! Na realidade, construí um mundo para mim, um mundo em que só eu entrava. Tinha ma- nia de perfeição e achava que o que importava era a minha intelectualidade. Pensando bem, eu fazia parte, sim, daquele adágio que diz: "em terra de cego, quem tem um olho é rei". E, sendo assim, era uma pessoa hipermega-autoritária. Bom, um dia... Em nossas vidas, sempre há um dia... Eu comecei a perder aqueles dez por cento de visão, iniciando por enxergar uma mancha preta e daí, só fui perdendo e perdendo... Esta foi uma sensação horrível, inenarrável! E, para ser franca, é a primeira vez que digo isto. Aquele período de perda de visão foi tenebroso, negro. Pensem na cor preta... Multipliquem isto por mil e terão chegado perto. Foi horrível! Na verdade, foi uma época em que eu odiei Deus. Pergun- tava a Ele: "por que você me tirou o pouco que eu tinha?" Pensei Mil faces da diferença 66 em me matar. Achava que não valeria a pena viver sem visão. Enfim, que período bravo e solitário; pois minha família me cul- pava pela perda do pouco de visão que tinha. O tempo passou. Hoje, após dezenove anos de cegueira total, penso que, na realidade, há males que vêm para o bem... Não, não enxergar não é a décima maravilha. Ser cego não é fácil. O que não podemos e não devemos é mascarar a realidade. O cego que têm condições financeiras pode, com certeza, ter muito mais oportunidades do que aquele que não tem dinheiro nem para a bengala. Porém, devemos lutar; lutar para vencer não só os obstáculos lá de fora, mas vencer a nós mesmos. Tenho muitas saudades de enxergar. Fico pensando que, visualmente, perdi dezenove anos da minha vida. Sinto uma saudade muito grande! Tenho saudade de ver a imagem da televisão, as ruas da minha cidade, as cores, das quais, lilás e roxo são as que mais gosto... Saudades de várias coisas que aqui seria difícil enumerar! Gostaria muito de saber como é a tela do computador; como é um CD, sua cor, o que nele vem escrito... Enfim, tenho muitas saudades de enxergar! O meu caso não tem cura. Nasci com catarata congênita e meus olhos são pe- quenos. Fiz duas cirurgias que não surtiram efeito e os oftalmo- logistas me mandaram embora. Enfim, é o que há. Se sou infeliz? Olha, a felicidade, como diz a música, não existe. O que existe na vida são momentos felizes. É lógico que mesmo sendo cega total, eu tenho meus momentos felizes, sim. No universo da informática, toda vez que aprendo um comando novo, fico em êxtase! Recordo-me do dia em que gravei pela pri- meira vez um arquivo em disquete. Foi a glória! E gravar um cd, então? Foi lindo! O que é comum para uma pessoa normovisual, para nós, cegos, é a glória! Bem, vou indo. Rita de Cássia Mendes 67 RUBENS FIUZA Cuiabá - MT I O Cotidiano do bom humor Nós, deficientes visuais, somos uma parcela da população especial. Mas essa parcela é somente diferenciada, não pior ou melhor do que as outras pessoas; apenas e tão somente diferen- ciada. Isso se torna mais evidente pela contingência da dura, mas constr utiva realidade intrínseca, e a guer ra diária do enfrentamento das circunstâncias de uma convivência com fa- tores adversos e obstáculos de toda ordem, inclusive o precon- ceito e a discriminação, manifestos por cer tas pessoas desinformadas. Por outro lado, com muito esforço e o apoio gran- dioso de pessoas evoluídas, abnegadas e prestativas que nos dão total cobertura - através de iniciativas individuais e das entida- des, tão construtivas e importantes para a inserção, promoção e crescimento do cego como cidadão pleno, que, na realidade, so- mos mesmo - temos amenizado o nosso cotidiano. Há uma diferença gritante entre o cego do passado, inclu- sive do passado recente, para o cego atual. Um grande número de companheiros galgaram altas posições e funções no contexto social, no qual temos proeminências praticamente em todos os segmentos. (não tenho notícias e nem conheço um companheiro gay). Gostaria de enfocar o vigoroso humor, imprescindível para a sobrevivência do cego na convivência cotidiana. Neste seg- mento temos, por exemplo, Geraldo Magela ("Ceguinho é a mãe!"), humorista de renome internacional. Na realidade, a maioria dos cegos se tornam, compulsoriamente, para a sobrevivência social, Mil faces da diferença 68 criaturas muito bem humoradas. É evidente e lamentável que existam em nosso meio, não obstante a maioria ser muito inteli- gente, alguns poucos burros, cavalos e até jumentos (não pode- mos confundir estes últimos com os companheiros, nem deixar de considerar e apoiar totalmente alguns irmãos que, juntamente com a cegueira, são portadores de outros acometimentos tais como síndromes mental, intelectual, espiritual e emocional), que são deprimentes, patológicos e patéticos. Estes, são, verdadeiramen- te, cegos. Pessoas mal-humoradas, carrancudas, casmurras, so- rumbáticas, repelentes e que se autodiscriminam. II Uma cegueira provocada pelo golpe de 1964 Estou cego há dezesseis anos, em decorrência de um se- questro da malfadada revolução. Ou melhor, do terrível golpe de 1964. Naquela ocasião eu já era jornalista e comunitarista atuante; empresário e extencionista rural da ACARMAT, (As- sociação de Crédito e Extensão Rural de Mato Grosso), hoje EMPAER (Empresa Mato-grossense de Pesquisa, Assistência e Extensão Rural). Após isto, e em detrimento de tudo isto, tor- nei-me escritor, poeta, filósofo, astrólogo, compositor e até humorista amador. Escapei milagrosamente com vida, mas es- tourado, com os olhos estilhaçados pelos meliantes da dita "re- volução", assessorados por um colega jornalista que trabalhava no mesmo jornal que eu. Ele era, além de repórter policial, agen- te do cavernoso DOPS. Trago esta horrível passagem, como uma maneira de apresentar-me para o público leitor, contar a razão da minha cegueira total e firmar-me perante todos, au- tenticamente como um componente da parcela diferente da sociedade. Rubens Fiuza 69 III Este lugar é meu! A cadeira que fica localizada na frente, quando entramos nos ônibus, muitas vezes torna-se motivo de polêmicas. Costumo resolver esse problema da maneira mais bem-humorada que pos- so. Estando essa cadeira ocupada por alguém que não é de direi- to, abordo a situação com a seguinte tirada: "Mais do que eu, neste direito líquido e certo de assentar-me nesta cadeira, so- mente uma velha cega e grávida. Até porque, eu já tenho 68 anos!" IV No rumo do nariz! Costumo deparar-me sempre com pessoas gozadoras. Cer- ta vez, encontrei um cidadão que, quando solicitei informações sobre um lugar que eu necessitava localizar, respondeu-me: - Basta seguir o rumo do nariz... Percebi logo que era uma dessas inúmeras gozações. En- tão, recorrendo ao meu infinito bom humor, que geralmente uti- lizo quando estou próximo a estes circunstantes brincalhões para amenizar a situação e ainda realizar a proeza da descontração e conseguir estrondosas gargalhadas, respondi serenamente: - Está pensando que cego é também burro? De repente, você vai me orientar para seguir para cima... Neste caso, eu afir- mo categoricamente, meu amigo, que não sou anjo! Mil faces da diferença 70 V Na subida, o vento levou! Eu estava caminhando tranquilamente, bengalando pelo canto da parede da Rua Barão de Melgaço, bem no centro de Cuiabá, quando subitamente ouvi um grito de desespero. Numa ação contínua, involuntária, instintiva mesmo, arremessei com toda força a minha bengala. O arremesso involuntário, pegou de cheio a saia da mulher, que ficou assustada, tanto quanto eu. A saia dela foi lá pra cima da cabeça, deixando aquele bundão todo de fora! Que vexame. O pior foi a bronca que ela me deu: - Cego descuidado, presta a atenção ao andar pela rua. Então, prontamente, respondi: - Será que você também é cega, e não viu que eu estava seguindo, como nós cegos costumamos fazer, pela guia da parede! Conclusão: Amigo leitor, neste livro você encontrou 19 visões dife- rentes de uma mesma questão. Pôde compartilhar de 19 variá- veis da mente humana, 19 microcosmos distintos e solitários - verdadeiros em seus próprios parâmetros - que participam do macrouniverso. Espero ter atingido meus objetivos: apresentar de maneira simples e leiga, a complexidade da mente humana. E, ao mesmo tempo, convidá-lo à reflexão da nossa responsabilidade quando nos confrontamos com as diferenças, seja em outros seres ou em nós mesmos. Ao meu ver, devemos respeitar e valorizar todas as dife- renças em qualquer situação. Rubens Fiuza 71 Odelita Figueiredo A organizadora Odelita Figueiredo Silva, nasceu em Salvador, numa famí- lia pobre, em 1961. Perdeu a visão completamente aos nove anos, em decorrência de glaucoma congênito. Formou-se em Música pela Universidade Católica de Salvador; conseguiu um emprego numa grande empresa, onde trabalhou durante 26 anos. Hoje, enfrenta com muita coragem, uma outra doença: a esclerose múltipla. 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