A cor do invisível Mario Quintana ___ Orelhas do livro Orelha esquerda: O poema é uma garrafa de náufrago jogada ao mar. Quem a encontra salva-se a si mesmo", decreta Mario Quintana em A Cor do Invisível. Tais versos expressam o trabalho consistente de Quintana, que soube, sem dúvida, salvar-se. Neste livro, mais uma garrafa encontrada na praia, o poeta perscruta sua memória e seu imaginário, costura cada um de seus poemas com o fio do tempo - reúne, travesso, sonetos de adolescência, rouba pequenos versos de livros anteriores, registra novas versões, surpreende com inéditos extremamente líricos -, e o resultado é um só: uma tessitura lúcida e ingênua, prosaica e metafísica, comprometida com a tradição modernista e livre como um anjo. Revela-se enfim Mario Quintana, que ultrapassa, corajoso, os noventa anos? Lembramos que os poetas raramente escrevem biografias convencionais, mas deixam-se conhecer por sua obra, o poema, "essa estranha máscara, mais verdadeira do que a própria face". ___ Orelha direita: MARIO QUINTANA nasceu em Alegrete, em 30 de julho de 1906, e morreu em 5 de maio de 1994, em Porto Alegre, RS. Trabalhou em jornais de Porto Alegre (O Estado do Rio Grande do Sul e Correio do Povo) e na Livraria do Globo, atual Editora Globo. Traduziu Proust, Conrad, Voltaire, Virginia Woolf, Maupassant, Graham Greene, Balzac, Merimée e outros autores de importância. Em 1940, lançou A Rua dos Cataventos, seu primeiro livro de poesias. Ao que se seguiram Canções (1946), Sapato Florido (1948), O Aprendiz de Feiticeiro (1950), Espelho Mágico (1951), Caderno H (1973), Quintanares (1976), Apontamentos de História Sobrenatural (1976), A Vaca e o Hipogrifo (1977), Prosa e Verso (1978), Baú de Espantos (1986), Preparativos de Viagem (1987), além de várias antologias. ___ A cor do invisível Copyright - 1989 by Mario Quintana Capa; Ettore Bottini Direitos de edição para o Brasil, adquiridos por EDITORA GLOBO S.A. Avenida Jaguaré, 1485 - CEP 05346-902 - São Paulo - SP www.globolivros.com.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida - em qualquer flleio OU forma, seja mecânico ou eletronico, fotocópia, gravação etc. - nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados, sem a expressa autorização da editora. Impressão e Acabamento na Gráfica Imprensa da Fé Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil Quintana, Mario, 1906-1994 A COr do invisível / Mario Quintana -6. ed. - São Paulo Globo, 2003. ISBN 85-250-0667-X 1. Poesia brasileira 1. Título. 88-2416 CDD-869.915 Índices para catálogo sistemático - Poesia : Século 20 : Literatura brasileira 869.915 2. Século 20 : Poesia : Literatura brasileira 869.915 _ 4 HOJE É OUTRO DIA Quando abro cada manhã a janela do meu quarto É como se abrisse o mesmo livro Numa página nova... _ 5 _ 6 _ 7 As ESTRELAS Foram-se abrindo aos poucos as estrelas... De margaridas lindo campo em flor! Tão alto o Céu! ... Pudesse eu ir colhê-las... Diria alguma se me tens amor. Estrelas altas! Que se importam elas? Tão longe estão... Tão longe deste mundo... Trêmulo bando de distantes velas Ancoradas no azul do céu profundo... Porém meu coração quase parava, Lá foram voando as esperanças minhas Quando uma, dentre aquelas estrelinhas, Deus a guie! do céu se despencou. Com certeza era o amor que tu me tinhas Que repentinamente se acabou! (1934) _ 8 UM RETRATO Seus olhos grandes, redondos e pretos Tempos depois ainda ficavam pregados na gente Como botões... _ 9 _ 10 _ 11 O ÚLTIMO VIANDANTE Era um caminho que de tão velho, minha filha, já nem sabia mais aonde ia... Era um caminho velhinho, perdido... Não havia traços de passos no dia em que por acaso o descobri: pedras e urzes iam cobrindo tudo. O caminho agonizava, morria sozinho... Eu vi... Porque são os passos que fazem os caminhos! _ 12 PRIMA VERA As águas riem como raparigas Á sombra verde-azul das samambaias! _ 13 _ 14 _ 15 VIAGEM DE TREM Esses burrinhos pensativos que a gente encontra às vezes na estrada dispensam a gente de pensar... _ 16 As COISAS O encanto sobrenatural que há nas coisas da Natureza! No entanto, amiga, se nelas algo te dá encanto ou medo, não me digas que seja feia ou má, e, acaso, singular... E deixa-me dizer-te em segredo um dos grandes segredos do mundo: - Essas coisas que parece não terem beleza nenhuma - é simplesmente porque não houve nunca quem lhes desse ao menos um segundo olhar! _ 17 A MUDANÇA Para a Sandra A alegre, a festiva agitação das panelas e tachos A inútil zanga dos velhos armários de mogno, solenes, Achando tudo aquilo uma grande palhaçada... As xícaras e pires fazendo tlin-tlin-tlin-tlin As gaiolas dos passarinhos cantando em coro com os [próprios passarinhos Oh! a alegria das coisas com aquela mudança Para onde? Não importa! Desde que não seja Este eterno mesmo lugar! _ 18 MORGUE Minha alma gelou nas prateleiras! _ 19 MAGIAS Os antigos retratos de parede Não conseguem ficar por longo tempo abstratos. Ás vezes os seus olhos te fitam, obstinados. Porque eles nunca se desumanizam de todo. Jamais te voltes para trás de repente: Poderias pegá-los em flagrante. Não, não olhes nunca! O melhor é cantares cantigas loucas e sem fim... Sem fim e sem sentido... Dessas que a gente inventava para enganar a solidão [dos caminhos sem lua. _ 20 O POEMA O poema essa estranha máscara mais verdadeira do que a própria face... _ 21 POEMA PARA UMA EXPOSIÇÃO O quadro na parede abre uma janela que dá para o outro mundo deste mundo... _ 22 HAI-KAI DE OUTONO Uma folha, ai, melancolicamente cai! Um mundo isento de rumores e de mil flutuações atmosféricas - alheio a toda humana contingência... Onde um momento é sempre e o mal e o bem não tem nenhum sentido... Mundo em que a forma também é a própria essência. Ó Vida Transfixada ao muro - e que palpita, entanto, num misterioso, eterno movimento! _ 23 O FUTURO Na bola de cristal procuro o meu futuro: futuro tão brilhante que aos olhos me faz mal... Não, não esse brilho fácil das girândolas, mas uma súbita, silenciosa explosão de cores - prenúncio da total subversão! - até que então o Grande Mágico regendo o novo Caos (... e mesmo porque nada pode ser destruído...) até que o Grande Mágico - afinal - com todos os espantosos subprodutos da última Bomba H recomponha o milagre de cada indivíduo! _ 24 HAI-KAI Silenciosamente sem um cacarejo a Noite põe o ovo da lua... _ 25 DEDICATÓRIA Quem foi que disse que eu escrevo para as elites? Quem foi que disse que eu escrevo para o bas-fond? Eu escrevo para a Maria de Todo o Dia. Eu escrevo para o João Cara de Pão. Para você, que está com este jornal na mão... E de súbito descobre que a única novidade é a poesia, O resto não passa de crônica policial - social - política. E os jornais sempre proclamam que "a situação é crítica"! Mas eu escrevo é para o João e a Maria, Que quase sempre estão em situação crítica! E por isso as minhas palavras são quotidianas como o pão [nosso de cada dia E a minha poesia é natural e simples como a água bebida [na concha da mão. _ 26 HUMILDE ORGULHO Aquele fiozinho d'água Não era um rio: Bastava-lhe ser um fio de musica... _ 27 As BRUXAS DE PANO As bruxas de pano tão maternalmente embaladas pelas menininhas pobres são muito mais belas do que as bonecas suntuosas como princesas - orgulho das vitrinas... Essas humildes bruxas de pano com seus olhinhos de conta suas bocas tão mal desenhadas a tinta são muito mais belas porque mais amadas! _ 28 PAZ Os caminhos estão descansando... _ 29 NÃO BASTA SABER AMAR... Para Milton Quintana Neste mundo, que tanto mal encerra, não basta saber amar, mas também saber odiar, não só servir a paz, mas também ir para a guerra. Seguiremos assim o próprio exemplo de Jesus, que tanto amor pregou na Terra... quando Ele, num ímpeto de cólera, a relhaço expulsou os vendilhões do templo! _ 30 A CASA EM RUÍNAS Uma única porta No único muro de uma casa em ruínas. Cuidado... Quem atravessar essa porta, à noite, Pode ficar para sempre no Outro Mundo! _ 31 A MULHER BIÕNIcA Para Lindsay Wagner Eu quero uma mulher biônica Que me ame como uma suspirosa máquina Do mais intenso amor. Uma mulher que quase me mate... Mas me livre de todos os ataques! Eu quero, eu quero uma mulher biônica Para que eu possa, a qualquer momento, Desparafusá-la... _ 32 REZAS Rezas da infância, tão puras... Um dia a gente as esquece! Mas o bom Deus, das alturas, Ainda escuta a nossa prece... _ 33 A VERDADEIRA ARTE DE VIAJAR A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa, Como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos [do mundo... Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam [logo ali... Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração [cantando! _ 34 LEITURAS Tenho alergia a esses romances que se passam dentro dos [transatlânticos Em alto-mar... Como é que os seus figurantes não acabam jogando-se pelo [tombadilho, Fartos de verem as caras uns dos outros?! _ 35 INSCRIÇÃO PARA UM PORTÃO DE CEMITÉRIO Na mesma pedra se encontram, Conforme o povo traduz, Quando se nasce, - uma estrela, Quando se morre, - uma cruz. Mas quantos que aqui repousam Hão de emendar-nos assim: "Ponham-me a cruz no princípio... E a luz da estrela no fim!" _ 36 DETRÁS DE UM MURO SURGE A LUA Detrás de um muro surge a lua. Em frente acendem-se os lampiões. A noite cai. Na praça a banda toca de repente Um samba histérico... Aflições, dançai! Mas qual! Meu coração triste e indolente Olha sem ver, de tudo se distrai... Que pena faz uma criança doente! Como ele está! Cada passito é um ai... Vai morrer atacado de si mesmo, Dos longos poentes que passou a esmo, A embebedar-se de Cinzento e Roxo. E enquanto a Vida corre - ó Mascarada! Ele abre, vagamente, sobre o Nada, O seu olhar sonâmbulo de mocho! _ 37 ANOITECER Da chaminé da tua casa Uma por uma Vão brotando as estrelinhas... _ 38 ORLO A morte é um rio onde a gente Embarca de olhos fechados Se queres partir contente Nada deixes deste lado. É deste lado de cá Que moram nossos cuidados. Penas que amor nos deixou São penas que o vento trouxe São pelo vento levadas. Fecha os olhos bem fechados Basta de tanta rima em "ados" Dorme o teu sono profundo Longe, cada vez mais longe Deste mundo e seus cuidados. _ 39 O PACIENTE DISTRAÍDO Os óculos do Doutor têm janelinhas: Pode-se ver o céu azul por elas, Pode-se ver, por acaso, até mesmo um avião - ou o susto de um disco voador. _ 40 AS AEROMOÇAS Aeromoças... Não! Devem ser aero-anjos... Pois não nos atendem em pleno Céu?! _ 41 QUEM AMA INVENTA Quem ama inventa as coisas a que ama... Talvez chegaste quando eu te sonhava. Então de súbito acendeu-se a chama! Era a brasa dormida que acordava... E era um revôo sobre a rumaria, No ar atônito bimbalhavam sinos, Tangidos por uns anjos peregrinos Cujo dom é fazer ressurreições... Um ritmo divino? Oh! Simplesmente O palpitar de nossos corações Batendo juntos e festivamente, Ou sozinhos, num ritmo tristonho... meu pobre, meu grande amor distante, Nem sabes tu o bem que faz à gente Haver sonhado... e ter vivido o sonho! _ 42 HAI-KAI DA ÚLTIMA DESPEDIDA E os dois trocaram um beijo - frio como um beijo de esqueletos... _ 43 À MANEIRA DE JACQUES PRÉVERT Um homem de visão com uma mulher de vison Um homem público e uma mulher pública A poluição diurna e as poluções noturnas O rabo do olho num rabo de saia Um gato escaldado e um cachorro quente Um tigre de Bengala e um gato de guarda-chuva _ 44 SERENIDADE Um gato adormecido... Uma criança adormecida... As mãos de um morto antes que as cruzem sobre o peito... _ 45 CECILIA O nome de Cecilia, lá no Céu era, mesmo, Cecilia... _ 46 VERÃO Quando os sapatos ringem - quem diria? São os teus pés que estão cantando! _ 47 POEMA LOUCO DE DESESPERO Em cada nuvem pus um coreto de música Mandei soltar confete pelo céu azul E deitado no meio da praça deserta Cobri meu rosto com o teu lenço de seda escura! _ 48 O POETA Venho do fundo das Eras, Quando o mundo mal nascia... Sou tão antigo e tão novo Como a luz de cada dia! _ 49 DIÁLOGO - Que fazia Deus antes da Criação? - Dormia. - E depois? - Continuou a dormir. - Mas Ele não tem de cuidar do mundo? - Ele está é sonhando o mundo: está sonhando até nós dois aqui conversando... - Cruzes! Cala-te! - Fala mais baixo... _ 50 BRASÃO DE ARMAS muro cinza estriado a relâmpago de ouro... _ 51 O SILÊNCIO O mundo, às vezes, fica-me tão insignificativo Como um filme que houvesse perdido de repente o som. Vejo homens, mulheres: peixes abrindo e fechando a boca [num aquário Ou multidões: macacos pula-pulando nas arquibancadas dos [estádios... Mas o mais triste é essa tristeza toda colorida dos carnavais Como a maquilagem das velhas prostitutas fazendo trottoir. Ás vezes eu penso que já fui um dia um rei, imóvel no seu [palanque, Obrigado a ficar olhando Intermináveis desfiles, torneios, procissões, tudo isso... Oh! decididamente o meu reino não é deste mundo! Nem do outro... _ 52 ELA E EU A minha loucura está escondida de medo embaixo da minha [cama Ou dançando em cima do meu telhado E eu estou sentado serenamente na minha poltrona Escrevendo este poema sobre ela. _ 53 O TÚNEL Às vezes O longo túnel do sono é iluminado, apenas, pelos olhos verdes dos fantasmas... _ 54 BUCÓLICA A moça, recostada à porteira, olhava os longes... A vaquinha Cambraia mugia. O cachorro Piloto ladrava. O vento inventava verbos no infinito: Partir... andar... correr... fugir... voar.., voar! A vaquinha mugia... O cachorro ladrava... O vento fazia cosquinhas nas regiões poplíteas da moça. _ 55 Às VEZES TUDO SE ILUMINA Às vezes tudo se ilumina de uma intensa irrealidade E é como se agora este pobre, este único, este efêmero [instante do mundo Estivesse pintado numa tela, sempre... _ 56 O UMBIGO O teu querido umbiguinho, Doce ninho do meu beijo Capital do meu Desejo, Em suas dobras misteriosas, Ouço a voz da natureza Num eco doce e profundo, Não só o centro de um corpo, Também o centro do mundo! _ 57 TROVA Coração que bate-bate Antes deixes de bater! Só num relógio é que as horas Vão batendo sem sofrer. _ 58 Os GATOS, AS ADOLESCENTES, OS ÁLAMOS Os gatos, as adolescentes, os álamos Compensam a feia rigidez do mundo Porque tudo quanto é mecânico é rígido - mesmo que seja um automóvel desobedecendo a todos os [sinais do tráfego. E só nos resta, agora, olhar o vôo de uma ave... (Se ainda sobrou alguma.) _ 59 A ÚLTIMA CANÇÃO Quando disserem os médicos Que nada há a fazer, Eu quero que tu me cantes Uma canção de bem-morrer... _ 60 POEMA DATADO Para Armindo Trevisan Oh! este vento azul de primavera! E o céu tão límpido, lá - alto... Nem sei por que fui olhar para o chão. Mas encontrei na rua um lápis verde, Com borracha na ponta! Para emendar fatais tolices, creio... Mas não emendo, não.. E vou-as escrevendo Tal como as dita o coração relapso! Era ao sair da escola. O azul era tão límpido E só sei que meu vulto refletia-se Não em claros arroios matinais (que os não havia) Mas no cristal dos olhos das meninas E neles se lavava este pecado (venial) De estar... não sei como vos diga... tão Assim. Lavava-se todo, todo o meu passado. Passado? Que passado, meu Deus, Nunca tive passado! Enfim... Não sei por que Me sentia perdoado não sei de quê Nesse Dia Maravilhoso De setembro Dois de setembro de 1957 Em que encontrei na rua um lápis verde Para o bem de meus pecados! _ 61/62 UM RETRATO Margarida tinha uma boca tão grande mas com tanto frescor e doçura que parecia um leque quando sorria... _ 63 SONETO SEGREDADO POR UMA FRINCHA QUEM TE BEM, SEM QUE DE NEM UM AI — PUM! CAI... AH! AH! _ 64 TROVA Quem as suas mágoas santa Quando acaso as canta bem Não canta só suas mágoas, Canta a de todos também. _ 65 O BAILARINO Não sei dançar. Minha maneira de dançar é o poema. _ 66 SIMULTANEIDADE - Eu amo o mundo! Eu detesto o mundo! Eu creio em Deus! Deus é um absurdo! Eu vou me matar! Eu quero viver! - Você é louco? - Não, sou poeta. _ 67 A TROVA Trova: soneto do povo, Flor de nostálgico encanto... Todo o infinito do amor Numa só gota de pranto. _ 68 HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA Um dia os padres se desbatinaram, Disfarçaram-se de gente. E assim perderam até o respeitoso sorriso dos incréus. Felizmente, os seus Anjos da Guarda conservaram ainda as [suas grandes asas - palpitantes, inquietas, frementes. _ 69 MARIA Há três coisas neste mundo cujo gosto não sacia... É o gosto do pão, da água e o do nome de Maria. _ 70 HAI-KAI DA PALAVRA ANDORINHA A palavra andorinha Freme devagarinho E some em silêncio... _ 71 OUTRO RETRATO Ela era branca branca branca Dessa brancura que não se usa mais... Mas tinha a alma furta-cor. _ 72 ESTATÍSTICA As crianças, sem um tiro aliás, e isso é que tornava o caso ainda mais espantoso, morriam mais do que índios nos filmes norte-americanos. E quando a gente acaso perguntava, para se mostrar atencioso: "Quantos filhos a senhora tem, Comadre?" a comadre respondia, com ternura: "Eu tenho quatro filhos e nove anjinhos..." _ 73 POEMA TIRADO DE UMA ANTIGA CANÇÃO CARNAVALESCA O meu boi morreu... Quem me cortará agora as unhas da minha mão direita?! _ 74 O DESCOBRIDOR Para Evelyn Berg Vem vindo o Abril, tão belo em sua barca de Ouro! Vou contando os teus dedos: um... dois... três... quatro... Cinco! Amor, eu quero navegar-te!.., toda, de norte a sul... Enquanto Sentado à proa Vestido de arlequim Abril ponteia bem devagarinho Com um dedo só - seu bandolim azul. _ 75 SUSPENSE A aranha desce verticalmente por um fio e fica pendendo do teto - escuro candelabro, devem ser feitas de aranhas, desconfio, as Árvores de Natal do Diabo. _ 76 AS CIVILIZAÇÕES As civilizações desabam por implosão... Depois, como um filme passando às avessas elas se erguem em câmera lenta do chão. Não há de ser nada... Os arqueólogos esperam, pacientemente, A sua ocasião! _ 77 O TROVADOR Ah! uma canção de nina-nana que tu ouvisses de olhos fechados... Mas os meus poemas enlouqueceram - me dizem coisas que eu nem sabia... Dizem coisas que te fazem mal, meu pobre amor! Mesmo que nunca falem em dor tem uma trágica poesia... Ainda que nunca falem em dor - por que aprofundam o teu olhar como o de alguem que vão matar? Se tu soubesses quanto eu queria, queria apenas te embalar, acalentar-te com o meu calor... Mas dos meus dedos brotam signos... Fórmulas mágicas dançam no ar... Oh! se as pudesses esconjurar com teu amor! Eu trocaria todo o meu Reino e mais as minas de Trebizonda - Toda, toda esta magia ou seja lá o que for - por uma simples canção que tu ouvisses como quem sonha, os mansos olhos fechando de puro amor... _ 78 AH! OS RELÓGIOS Amigos, não consultem os relógios quando um dia eu me for de vossas vidas em seus fúteis problemas tão perdidas que até parecem mais uns necrológios... Porque o tempo é uma invenção da morte: não o conhece a vida - a verdadeira - em que basta um momento de poesia para nos dar a eternidade inteira. Inteira, sim, porque essa vida eterna somente por si mesma é dividida: não cabe, a cada qual, uma porção. E os Anjos entreolham-se espantados quando alguém - ao voltar a si da vida - acaso lhes indaga que horas são... _ 79 BOLA DE CRISTAL A praça, o coreto, o quiosque, as primeiras leituras, os primeiros versos e aquelas paixões sem fim... Todo um mundo submerso, com suas vozes, seus passos, seus silencios Deixo-te, pobre menino, aí sozinho... Que bom que nunca me viste como te estou vendo agora - e é melhor que seja assim... Deixo-te com os teus sonhos de outrora, os teus livros queridos e aquelas paixões sem fim! e a praça... o coreto... o quiosque onde compravas revistas... Sonha, menino triste... Sonha... - só o teu sonho é que existe. _ 80 BAR O doloroso sulco lábio-nasal junto à garrafa morta... _ 81 MADRIGAL RECUSADO Não sou mais que um poeta lírico, Nada sei do vasto mundo... Viva o amor que eu te dedico, Viva Dom Pedro Segundo! _ 82 O POEMA O poema é um objeto súbito. Os Outros objetos já existiam... _ 83 ARTE A paleta do pintor, Confusa, inquieta, multicolorida, É quase sempre mais bela Do que a pintada na tela. _ 84 MATINAL Entra o sol, gato amarelo, e fica à minha espreita, no tapete claro. Antes de abrir os olhos, sei que o dia Virá olhar-me por detrás das árvores. Ah! sentir-me ainda vivo sobre a face da Terra enquanto a vida me devora... Me espreguiço, entredurmo... O anjo da luz espera-me Como alguém que vigiasse uma crisálida. Pé ante pé, do leito, aproxima-se um verso para a canção de despertar; os ritmos do tráfego vibram como uma cigarra, a tua voz nas minhas veias corre, e alguns pedaços coloridos do meu sonho devem andar por esse ar, perdidos... _ 85 A VIAGEM Como é bela uma asa em pleno vôo... Uma vela em alto-mar... Sua vida - toda ela! - está contida Entre o partir e o chegar... _ 86 Eu ESCREVI UM POEMA TRISTE Eu escrevi um poema triste E belo apenas da sua tristeza. Não vem de ti essa tristeza Mas das mudanças do Tempo, Que ora nos traz esperanças Ora nos dá incerteza... Nem importa, ao velho Tempo, Que sejas fiel ou infiel... Eu fico, junto à correnteza, Olhando as horas tão breves... E das cartas que me escreves Faço barcos de papel! _ 87 FOSSE O MUNDO UM PARAÍSO Fosse o mundo um paraíso... - paraíso de verdade! - morrerias sem saber o que é a felicidade... _ 88 POEMA Tão nossa e tão além - a que mundo pertences, Greta Garbo? Ana... Cristina... Margarida.., tantas e tantas... como te amei... Visão! As outras agora é que me parecem irreais - sombras que se esvaíram numa tela... Tu? Não! Instante e eternidade, o teu sorriso é imemorial como as Pirâmides e puro como a flor que abriu na manhã de hoje! _ 89 TEUS OLHOS Zarpam, do Sonho, em teus olhos Os brigues aventureiros: Lindos Olhos cismativos, Com distâncias e nevoeiros... _ 90 FANTÁSTICA Ampla se estende a erma planície nua. Cobre-a o funéreo manto do luar E cada sombra no chão se recorta Com nitidez de paisagem lunar. Mas que imobilidade singular Que as coisas têm! E que nudez! Aflito, O ouvido indaga, espera... E nem um grito Vem o imóvel silêncio apunhalar. Mostra-se a Lua. A sua enorme face lembra um disco de prata formidandO que um Titã aos Céus arremessasse; Vem branca, branca, de um palor que pasma. E enquanto vai a Lua transmontandO uiva lugubremente um cão fantasma. (1923) _ 91 Os RIOS Há na vida tanta coisa, Tanta coisa e um só olhar! Toda a tristeza dos rios É não poderem parar... _ 92 ESTAMPA O Vagabundo senta-se num banco afastado da praça, tão abandonadamente que ele e o banco parece formarem [uma coisa única. Passa o Imagiário e observa como as joelheiras [de suas calças condizem com o empapuçado de seus olhos de babado [e como as falripas de seus bigodes caídos correspondem [ao esfiapado de seus cotovelos rotos. Uma figura feita de barbas [de milho, Um ser quase vegetal. Passa a Dama Sensível. É tão sensível mesmo que [quase morre e pensa logo em outra coisa. O Vagabundo, esse, não [pensa em nada, coça-se. Mas no céu que, lentamente, anoitece, todos os seus [Mortos sorriam, tristemente, perdoando... _ 93 DO IDEAL Como são belas indizivelmente belas essas estátuas mutiladas... Porque nós mesmos lhes esculpimos - com a matéria invisível do ar - o gesto de um braço... uma cabeça anelada... um seio... tudo o que lhes falta! _ 94 ESSA LEMBRANÇA QUE NOS VEM Essa lembrança que nos vem às vezes... folha súbita que tomba abrindo na memória a flor silenciosa de mil e uma pétalas concêntricas... Essa lembrança... mas de onde? de quem? Essa lembrança talvez nem seja nossa, mas de alguém que, pensando em nós, só possa mandar um eco do seu pensamento nessa mensagem pelos céus perdida... Ai! tão perdida que nem se possa saber mais de quem! _ 95 A LETRA E A MÚSICA Quando nos encontramos Dizemo-nos sempre as mesmas palavras que todos os [amantes dizem... Mas que nos importa que as nossas palavras sejam as [mesmas de sempre? A música é outra! _ 96 NUNCA Nunca ninguém sabe se estou louco para rir ou para chorar... Por isso o meu verso tem esse quase imperceptível tremor... A vida é triste, o mundo é louco! Nem vale a pena matar-se por isso. Nem por ninguém. Por nenhum amor... A vida continua, indiferente! (Nova Versão) _ 97 ARIEL Anel - peixe luminoso - escapa Por entre as malhas dos sistemas e doutrinas. O seu país flutuante não pode ser localizado no mapa. Mesmo porque a poesia mora é nas entrelinhas, Mora no branco puro do papel. _ 98 O MUDO PASSEIO DO DOUTOR QUEJANDO Ora pois, O Doutor Quejando Vinha andando Andando Quando encontrou o carneirinho Mé Em companhia da vaquinha Bu - Olé! Como vais tu? - disseram-lhe os dois. O Doutor Quejando continuou andando, Mudo. E o Doutor Quejando e o urubu trocaram um horrendo [olhar de simpatia. E o pior de tudo É que se acabou a história. Se acabou a história... E a vida continua. _ 99 ANOTAÇÃO QUE NÃO COUBE NO POEMA ANTERIOR O Doutor Quejando - no entanto - amava [apaixonadamente os gerúndios... _ 100 CLARO ENIGMA negras flores que se abrem sob a chuva... _ 101 LÁGRIMA Denso, mas transparente Como uma lágrima... Quem me dera Um poema assim! Mas... Este rascar da pena! Esse Ringir das articulações... Não ouves?! Ai do poema Que assim escreve a mão infiel Enquanto - em silêncio - a pobre alma Pacientemente espera. _ 102 EPITÁFIO PARA CATULO DA PAIXÃO CEARENSE Catulo não morreu: luarizou-se... _ 103 VÉSPERA DE TEMPESTADE Contra um céu de chumbo Aquelas árvores desesperadamente verdes! _ 104 DIÁRIO DE VIAGEM O poeta foi visto por um rio, por uma árvore, por uma estrada... _ 105 HAI-KAI No meio da ossaria Uma caveira piscava-me... (Havia um vaga-lume dentro dela.) _ 106 MAQUINAÇÕES DA INSÔNIA Na meia-noite da memória O relógio de meu pai Abre-se ao meio como um fruto O pince-nez de Tia Élida Com seu frágil brilho de prata Anula-se... Suspiro: a menina aquela A menina que eu mais gostava Tinha uns olhos cor-de-cinza. Onde andará seu fantasminha? Tudo agora se enevoa... Fim? Mas de repente, ó Adalgisa, Ressuscitas-me! Oh! a menininha... A tia... O relógio de meu pai... E a minha mão como um polvo Na tua vulva convulsa! _ 107 s.o.s O poema é uma garrafa de náufrago jogada ao mar. Quem a encontra Salva-se a si mesmo... _ 108 CANÇÃO DE BEIRA DE ESTRADA O menino canta canta Uma canção que não tem sentido Como não tem sentido o vento Nem a minha nem a tua vida... _ 109 ELEGIA Minha vida é uma colcha de retalhos Todos da mesma cor... _ 110 ESSES INQUIETOS VENTOS Esses inquietos ventos andarilhos Passam e dizem: "Vamos caminhar, Nós conhecemos misteriosos trilhos, Bosques antigos onde é bom sonhar... E há tantas virgens a sonhar idílios! E tu não vieste, sob a paz lunar, Beijar os seus entrefechados cílios as dolorosas bocas a ofegar..." Os ventos vêm e batem-me à janela: "A tua vida, que fizeste dela?" E chega a morte: "Anda! Vem dormir... Faz tanto frio... E é tão macia a cama: Mas toda a longa noite inda hei de ouvir A inquieta voz do vento que me chama! (1935) _ 111 URBANÍSTICA Praça pública agitada. Pleno ventre da metrópole. A tarde vai morrendo, dolorosamente... E eu... eu esmoreço e me fano Lentamente, à feição de menina amorosa... Homens passam, no entanto, a todo pano, Homens que nada vêem, positivos, e a rosa Pudenda e nua da emoção não amam... Beleza triste dos crepúsculos em prosa, Inutilmente, sobre o bruhahá urbano! (1924) _ 112 POEMA DIDÁTICO Como ainda não se tivessem inventado os botões É que eram tão soltos os costumes dos antigos romanos, Era só puxar por uma ponta Para que se desenrolassem como piões E, na outra ponta, surgisse uma guria nuinha em flor, Ao passo que, No século da Rainha Vitória, As moças usavam mais anáguas do que cebolas. E quem salvava a causa, como sempre, eram as mulheres [do povo, Que nunca possuiam money para tantas complicações: Por isso os ingleses existem até hoje. Ah! Hoje é tudo muito mais rápido e expedito - a velocidade da época não comporta delongas. E botões eficientes meçmo só os dos aviões. Basta apertar um para transformar qualquer cidadezinha [distante lá embaixo Num belo cogumelo atômico. Tratem os senhores de meditar sobre isto para o nosso [próximo debate. Mas eficientemente! Sim? Não fiquem a pensar com os seus botões... _ 113 A COMPANHEIRA A Lua parte com quem partiu E fica com quem ficou E - pacientemente - Aguarda os suicidas no fundo do poço _ 114 A VISITANTE O seu olhar imensamente verde ilumina o meu quarto _ 115 FRÊMITOS Atirei a pedra nágua. Trezentos anos depois A princesinha assustou-se Lá na estrela Aldebarã... _ 116 AMANHECE Um copo de cristal Sobre a mesa Inventa as cores todas do arco-íris... _ 117 O QUE O VENTO NÃO LEVOU No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as ünicas que o vento não conseguiu levar: um estribilho antigo um carinho no momento preciso o folhear de um livro de poemas o cheiro que tinha um dia o próprio vento... _ 118 PÁSSAROS As mãos que dizem adeus são pássaros Que vão morrendo lentamente... _ 119 NOTURNO ARRABALEIRO Os grilos... os grilos... Meu Deus, se a gente Pudesse Puxar Por uma Perna Umsó Grilo, Se desfiariam todas as estrelas! _ 120 GUERRA Os aviões abatidos São cruzes caindo do Céu... _ 121 A LUA SUBTERRÂNEA Ás vezes, numa esquina do Labirinto Avista-se, enorme, a Lua! Não, como é possível uma lua subterrânea! Mas cada um diz baixinho: Deus te abençoe, Visão... _ 122 TROVA Estes seios que te vieram Decerto são meus filhinhos... Maria, que gosto vê-los Cada dia maiorzinhos! _ 123 POEMA CHINËS O vento, o rio, a estrada, os joelhos, o riso, Com isso Poderias compor 999 poemas... Mas basta compor um filho. _ 124 ORAÇÃO Dai-me a alegria Do poema de cada dia. E que ao longo do caminho Ás almas eu distribua Minha porção de poesia Sem que ela diminua... Poesia tanta e tão minha Que por uma eucaristia Possa eu fazê-la sua "Eis minha carne e meu sangue!" A minha carne e meu sangue Em toda a ardente impureza Deste humano coração... Mas, á Coração Divino, Deixai-me dar de meu vinho, Deixai-me dar de meu pão! Que mal faz uma canção? Basta que tenha beleza... _ 125