Titulo: Pesquisa na escola- o que é – como se faz Autor: Marcos Bagno Pág.07 Primeiras palavras Este livro se divide em duas partes. A primeira, mais longa, trata da pesquisa na escola em geral, e quer dar algumas sugestões para transformar a atividade de pesquisa numa verdadeira fonte de aquisição de conhecimento. A segunda é uma tentativa de introduzir a atividade de pesquisa também naquela disciplina que, ao lado da matemática, é considerada a mais importante: língua portuguesa. As idéias expostas ali são bastante diferentes do que tradicionalmente se lê e se ouve a respeito das questões gramaticais. Algumas pessoas podem até se assustar com elas, mas este é um dos meus objetivos: sacudir a poeira acumulada durante séculos sobre o ensino da língua para ver o que realmente existe ali embaixo! Tenho de agradecer a algumas pessoas sem as quais este livro não teria surgido. Primeiramente, é claro, a Júlia Francisca, que trouxe para casa a situação caótica que é o não-ensino da pesquisa na escola. A Maria Sônia, que compartilha comigo as angústias de quem tem de fazer em casa muito do Pág.08 que os professores deixaram de fazer em sala de aula, além de me ajudar sempre a melhorar tudo o que escrevo com suas críticas precisas, comentários e sugestões pertinentes. E a Marcos Marcionilo, das Edições Loyola, que aceitou a idéia de publicar este manualzinho. Todas as idéias aqui contidas, no entanto, são de minha inteira (ir)responsabilidade! marcos bagno www.marcosbagno.com. Br Pág.09 “Relembremos primeiro que as habilidades de raciocínio, de observação, de formulação e testagem de hipóteses — em uma palavra, de independência de pensamento — são um pré-requisito à formação de indivíduos capazes de aprender por si mesmos, criticar o que aprendem e criar conhecimento novo [...] e é neste setor que nosso sistema educacional se tem mostrado particularmente falho: se há algo que nossos alunos em geral não desenvolvem durante sua vida escolar é exatamente a independência de pensamento. O estudante brasileiro (e, muitas vezes, também o professor) é tipicamente dependente, submisso à autoridade académica, convencido de que a verdade se encontra, pronta e acabada, nos livros e na cabeça das sumidades. Daí, em parte, a perniciosa idéia de que educação é antes de tudo transmissão de conhecimento — quando deveria ser em primeiro lugar procura de conhecimento e desenvolvimento de habilidades". mário perimi, Gramática descritiva do Português, São Paulo, Ática, 1996, p. 31. Pág.11 Primeira parte O FIO DE ARIADNE A pesquisa na escola em geral Pág.13 1. CANSEI DE ME INDIGNAR! O que me deu a idéia de escrever este livrinho foi uma mistura de cansaço e indignação. Sim, cansei-me de ver Júlia, minha filha mais velha, ficar em pânico ao chegar em casa dizendo que tem um "trabalho de pesquisa" para fazer. Geralmente, é um trabalho em grupo, e quando ela e os colegas se reúnem para fazê-lo, fico indignado com a atitude de um professor que não sente a menor piedade dos alunos e os submete a um estresse emocional injusto e desnecessário. Acabo me vendo obrigado, junto com minha mulher, a preencher o vazio que deveria ser ocupado pelo profissional a quem confiamos a tarefa de ensinar nossos filhos. Quando pergunto a Júlia e aos colegas qual foi realmente o "comando" da professora, eles me mostram o caderno onde está anotado, laconicamente: "Trabalho de Pesquisa. Tema: X. Entregar até dia X". E nada mais. É ou não é para a gente se indignar? Para sorte de Júlia, o pai dela é um apaixonado pelo estudo, alguém com verdadeira mania de pesquisar e que se sente muito à vontade fazendo o papel de orientador da pesquisa (tarefa que caberia, na verdade, ao professor). Ela conta também com uma mãe inteligente e muito hábil na hora de desenrolar o emaranhado psicológico criado pela Pág.14 encomenda da escola. Mas nem todos os pais são assim, e nem têm que ser. Quem põe seu filho na escola espera que ela cumpra com seu papel mais importante que — ao contrário do que muita gente pensa, professores inclusive — não é apenas "transmitir conteúdos", mas sim ensinar a aprender. Ensinar a aprender é criar possibilidades para que uma criança chegue sozinha às fontes de conhecimento que estão à sua disposição na sociedade. A vida de hoje é caracterizada por um verdadeiro bombardeio de informações. Para todo lado que olhamos, nos deparamos com alguma dessas "bombas" pronta para explodir: televisão, rádio, cinema, jornais, revistas, cartazes, livros, folhetos, Internet, cd-rom... Essas "bombas" podem estar também armazenadas em "arsenais" específicos: livrarias, bibliotecas, museus, salas de espetáculo, centros culturais, circos, escolas, monumentos históricos, prédios públicos, fábricas, empresas, laboratórios, jardins zoológicos, supermercados, shopping centers, jardins botânicos, estações de metro, galerias de arte... Tudo isso junto cria um verdadeiro labirinto onde é muito fácil alguém se perder, a menos que tenha um bom fio de Ariadne* para se orientar. E esta é mesmo a palavra-chave: orientação. Se o professor abrir mão de seu papel fundamental de orientador da aprendizagem de seus alunos, estará se responsabilizando pelo que vier a acontecer com eles ao tentarem atravessar esse labirinto, que na verdade é um grande campo minado. Afinal, não falei em "bombas" só porque gosto de metáforas exageradas. Muito, mas muito mesmo do que anda solto por aí disfarçado de "informação" não passa, na verdade, de "bombas" de inutilidades, modismos, pseudociências, superstições e futilidades. (Faça você mesmo o teste: pegue a grade de programação diária de alguma emissora de televisão das mais assistidas e tente filtrar o que é "bomba" e o que tem algum valor formativo ou informativo...) Na mitologia grega, Ariadne é a bela princesa que ajuda o herói Teseu a se guiar pelo labirinto, onde ele entra para matar o Minotauro, monstro devorador de gente. Para isso, Ariadne amarra a ponta de um novelo na entrada do labirinto e vai desenrolando-o à medida que ela e o herói penetram na emaranhada construção. Morto o Minotauro, ambos conseguem sair do labirinto enrolando o fio de volta. Pág.15 Ensinar a aprender, então, é não apenas mostrar os caminhos, mas também orientar o aluno para que desenvolva um olhar crítico que lhe permita desviar-se das "bombas" e reconhecer, em meio ao labirinto, as trilhas que conduzem às verdadeiras fontes de informação e conhecimento. Infelizmente, a grande maioria dos nossos professores de 1° grau não estão muito preparados para assumir essa tarefa de orientadores. Os cursos de formação de professores, em geral, deixam de lado esse componente importantíssimo e se concentram nas metodologias que facilitem a tal "transmissão de conteúdos". Nem mesmo os cursos superiores garantem uma boa visão desses problemas. Existem, nas universidades, disciplinas chamadas "Metodologia do Trabalho Científico" ou coisa semelhante, que muitas vezes são oferecidas apenas "para constar no currículo", ministradas em grandes auditórios com centenas de estudantes que — exatamente como os nossos alunos de 1° grau — acabam fazendo algum "trabalho de pesquisa" sem orientação, bom apenas para "garantir nota" e "passar". Isso quando não encomendam os trabalhos a terceiros, pagando para se livrar da obrigação. Eu mesmo muitas vezes, em meus tempos de graduação, fui procurado por gente disposta a me propor coisas assim: "Você faz o trabalho, põe os nossos nomes e a gente te paga". Como sempre fui muito cdf, recusava, ofendido, aquelas ofertas e não pensava coisas boas daqueles colegas. Pág.16 Hoje, refletindo melhor, eu me pergunto: será que a culpa era só deles? Afinal, existem muitas coisas que, quando não são aprendidas bem cedo, deixam sempre "buracos" na formação de um indivíduo. Boas maneiras, por exemplo. Tolerância, compaixão, espírito crítico, independência de opinião, amor ao próximo... E o mesmo acontece com o hábito de pesquisar. Quem não aprendeu a pesquisar decentemente no 1° ou no 2° grau vai penar muito quando chegar à universidade ou à vida profissional e se vir obrigado a empreender uma pesquisa! Quod in iuventute non discitur, in matum aetate nescitur — "o que não se aprende na juventude na idade madura se ignora", já dizia o sábio latino Cassiodoro, no século V. Porque, como veremos daqui a pouco, a pesquisa é uma atividade que, embora não pareça, está presente em diversos momentos do quotidiano, além de ser- requisito fundamental num sem-número de profissões. Ler a bula de um remédio antes de toma-lo é pesquisar. Recorrer ao manual de instruções do aparelho de videocassete também. Remexer papéis velhos atrás daquela preciosa receita de bolo da madrinha Miriam é fazer pesquisa. E a eterna dificuldade de consultar um dicionário ou um catálogo telefónico é ou não é uma tarefa de pesquisa? Por isso, cansado de me indignar, resolvi costurar alguns retalhos de idéias que venho juntando num balaio e tentar, com elas, ajudar aqueles que sentem falta de um pequeno "manual de instruções" para empreender uma pesquisa ou — e este é meu principal objetivo — para ensinar a pesquisar. 2. O QUE É PESQUISA PARA VOCÊ, PROFESSOR? Se você é daquele tipo de professor que acha que a pesquisa é uma boa maneira de se livrar da responsabilidade Pág.17 (e da trabalheira) de encontrar métodos criativos e interessantes para avaliar seus alunos, ou apenas como um substituto para as provas que dão mais trabalho para corrigir, eu convido você a fechar este livro exatamente aqui. Não fechou? Ó timo. Então podemos prosseguir. Antes de você responder à pergunta feita ali em cima, vamos passar em revista o conceito mesmo de pesquisa, começando pela própria palavra. 2.1. A palavra pesquisa Pesquisa é uma palavra que nos veio do espanhol. Este por sua vez herdou-a do latim. Havia em latim o verbo perquiro, que significava "procurar; buscar com cuidado; procurar por toda parte; informar-se; inquirir; perguntar; indagar bem, aprofundar na busca". O particípio passado desse verbo latino era perquisitum. Por alguma lei da fonética histórica, o primeiro r se transformou em s na passagem do latim para o espanhol, dando o verbo pesquisar que conhecemos hoje. Perceba que os significados desse verbo em latim insistem na idéia de uma busca feita com cuidado e profundidade. Nada a ver, portanto, com trabalhos superficiais, feitos só para "dar nota". 2.2. Pesquisa no dia-a-dia A pesquisa, como já andei insinuando, faz parte do nosso quotidiano. Quando você, pensando em alugar uma casa, abre a página de classificados do jornal e sai marcando os anúncios que lhe interessam — está fazendo uma pesquisa. Quando quer comprar um televisor e sai pelo comércio anotando tamanho, modelo, marca e preço, para depois comparar e se decidir — está fazendo pesquisa. Pág.18 Quando você quer dar um presente de aniversário a um amigo e telefona para a mulher dele perguntando o que poderia agradá-lo — está fazendo pesquisa. É mesmo difícil imaginar qualquer ação humana que não seja precedida por algum tipo de investigação. A simples consulta ao relógio para ver que horas são, ou a espiada para fora da janela para observar o tempo que está fazendo, ou a batidinha na porta do banheiro para saber se tem gente dentro... Todos esses gestos são rudimentos de pesquisa. 2.3. A pesquisa a sério Mas é claro que não é dessa pesquisa rudimentar que vamos nos ocupar aqui. A pesquisa que nos interessa é a pesquisa científica, isto é: a investigação feita com o objetivo expresso de obter conhecimento específico e estruturado sobre um assunto preciso. Parece sério, não é? E é mesmo. A pesquisa é, simplesmente, o fundamento de toda e qualquer ciência digna deste nome. Quando alguém vier lhe falar de alguma "ciência", portanto, fique logo atento e procure saber quais foram os últimos avanços conseguidos por essa ciência. Se não houve avanços é porque não houve pesquisa — e se não houve pesquisa é porque não é ciência. Compare, por exemplo, um livro de astronomia do final do século passado com um livro de astronomia dos dias de hoje. Muita coisa terá mudado: novos conceitos, novas descobertas, novas explicações para fenômenos antes misteriosos... Faça o mesmo com um livro de astrologia. Pág.19 Nada mudou de lá para cá! São as mesmas interpretações para os mesmos signos, as mesmas fórmulas fixas para "explicar" as "influências" dos astros. Aliás, quanto mais "antiga" e "tradicional" for a "explicação", melhor. Qual das duas então é uma ciência? 2.4. Importância da pesquisa Sem pesquisa não há ciência, muito menos tecnologia. Todas as grandes empresas do mundo de hoje possuem departamentos chamados "Pesquisa e Desenvolvimento" (P&D). Os departamentos de P&D estão sempre tentando dar um passo à frente para a obtenção de novos produtos que respondam melhor às exigências cada vez maiores dos consumidores ou, simplesmente, que permitam vencer a concorrência das outras empresas. As indústrias farmacêuticas vivem à procura de novos medicamentos mais eficazes contra doenças velhas e novas (e rezamos para que consigam!). As montadoras de automóveis querem produzir carros mais econômicos, menos poluentes, mais seguros. A informática não pára de nos assustar com seus computadores cada dia mais rápidos, com maior capacidade de memória, com programas mais eficientes. Uma porcentagem significativa dos lucros dessas empresas é destinada à P&D. Nesses departamentos existem laboratórios ultramodernos, pistas de testes (quando é o caso), campos de aplicação experimental, oficinas para montagem de protótipos etc. Neles trabalham técnicos e cientistas altamente preparados. Se não houvesse pesquisa, todas as grandes invenções e descobertas científicas não teriam acontecido. A velha história da maçã caindo na cabeça de Newton e fazendo-o "descobrir" Pág.20 a lei da gravidade não passa de conversa para boi dormir. Se a queda da maça fez Newton pensar na gravidade, é porque ele já vinha ruminando, refletindo, pesquisando acerca do fenônemo. Nas universidades, também, a pesquisa é muito importante. O professor universitário que se limita a dar suas aulas sem estar engajado em algum projeto de pesquisa não é visto com bons olhos pelos seus colegas. Afinal, a universidade não pode ser apenas um "depósito" do conhecimento acumulado ao longo dos séculos. Ela tem de ser também uma "fábrica" de conhecimento novo. E esse conhecimento novo só se consegue... pesquisando. Para uma pessoa obter o título de doutor numa universidade, ela tem de fazer uma grande pesquisa na sua área de conhecimento e submetê-la a uma banca de examinadores — é o que se chama defender uma tese. E essa pesquisa tem de ser inédita, isto é, precisa trazer alguma contribuição nova àquele campo de estudos. Como você pode perceber, essa história de chamar de "doutor" todo médico, advogado e delegado de polícia é apenas uma tradição da linguagem popular. O médico que se forma e passa o resto de sua vida profissional em seu consultório apenas examinando seus pacientes e prescrevendo receitas é bem menos "doutor" do que alguém que defendeu uma tese, por exemplo, sobre as personagens femininas nos romances de Machado de Assis! A importância da pesquisa é reconhecida também pelos órgãos governamentais. No Brasil, por exemplo, em nível nacional, existem entidades como a CAPES e o CNPq que financiam projetos de pesquisa. Em São Paulo temos a FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo). Outros Estados têm instituições semelhantes. Existem também fundações privadas que apoiam pesquisadores, dando-lhes condições de levar adiante seus projetos. Pág.21 Em resumo, podemos dizer que a pesquisa está presente: no dia-a-dia, nas ações mais corriqueiras; no desenvolvimento da ciência; no avanço tecnológico; no progresso intelectual de um indivíduo. Como é fácil perceber, a pesquisa é, mesmo, uma coisa muito séria. Não podemos tratá-la com indiferença, menosprezo ou pouco caso na escola. Se quisermos que nossos alunos tenham algum sucesso na sua atividade futura — seja ela do tipo que for: científica, artística, comercial, industrial, técnica, religiosa, intelectual... —, é fundamental e indispensável que aprendam a pesquisar. E só aprenderão a pesquisar se os professores souberem ensinar. 3. PRIMEIRO PASSO: O PROJETO Quando eu era criança, aconteceu algumas vezes: em dia de prova, na escola, havia questões sobre assuntos que o professor simplesmente não tinha abordado ou, como se dizia na linguagem escolar, pontos que ele não tinha dado. Como o programa de ensino era extenso demais para ser coberto no prazo previsto, muita coisa acabava sendo deixada para trás. Era época de ditadura, de autoritarismo e repressão. O medo dava as cartas em todas as áreas da sociedade — e a escola não tinha como escapar. O órgão responsável pela educação cobrava da escola, a escola cobrava do professor e este era obrigado a cobrar dos alunos... que não iam protestar. Direitos humanos^ cidadania e liberdade de expressão eram palavras proibidas na época. Infelizmente, esse tipo de injustiça, embora atenuada, ainda vigora no modo de ensinar de muitos professores. Pág.22 Chegar em sala de aula, escrever na lousa: "Trabalho de pesquisa. Tema: X. Entregar até dia X" e depois querer receber trabalhos bem-feitos é uma atitude pedagógica completamente autoritária. Para começo de conversa, antes de pedir à classe que faça uma pesquisa, o professor tem que estar plenamente consciente da seriedade que envolve este tipo de trabalho. Precisa também ter bem claro o propósito, o objetivo, a finalidade daquela pesquisa. Pesquisar só por pesquisar? Só porque a Secretaria de Ensino pede? Só porque virou modismo pedagógico? Com licença... 3.1. O que é um projeto? Nenhum médico tomará uma decisão importante sobre o tratamento de um paciente antes de fazer seu diagnóstico. Nenhum engenheiro iniciará uma obra antes de fazer seus cálculos. Nenhum diretor de cinema começará a filmar sem ter nas mãos um roteiro. Da mesma forma, ninguém pode iniciar uma pesquisa sem antes ter preparado um projeto. Usa-se muito essa palavra, mas o que será mesmo que ela significa? É fácil descobrir. Pense no que faz aquela máquina que existe nos cinemas e que se chama projetor. Você está sentado na plateia, no meio da sala. Na sua frente, a tela. Atrás de você, aquela cabine com buraquinhos na parede por onde passa o filme. Se a cabine está atrás de você, e a tela está na frente, o que significa projetar o filme? Significa isso mesmo: lançar para a frente (neste caso, o filme). Fazer um projeto é lançar idéias para a frente, é prever as etapas do trabalho, é definir aonde se quer chegar com ele — assim, durante o trabalho prático, saberemos como agir, que decisões tomar, qual o próximo passo que teremos de dar na direção do objetivo desejado. Pág.23 Assim como fazemos pesquisa de modo informal e rudimentar quase a todo momento, também é comum fazermos projetos simples para termos uma idéia, uma previsão do que nos espera pela frente. Por exemplo: quando você quer dar uma festa de aniversário e faz a lista dos convidados, calcula a quantidade de salgadinhos e refrigerantes, pensa no tamanho do bolo e no número de cadeiras e sofás para aco modar todas as pessoas... está fazendo um projeto. As anotações que você faz em sua agenda são seu projeto para aquele determinado dia. Uma receita de bolo é o projeto de um bolo. O mesmo vale para a planta de uma casa ou apartamento. Uma lista de compras também é um projeto (o de gastar só o necessário! Ah, como é difícil!). Nas pesquisas científicas importantes, o projeto é uma etapa imprescindível. Para que algum daqueles órgãos de apoio à pesquisa que citei lá em cima se disponha a financiar um pesquisador, é preciso que ele prepare um projeto minucioso, detalhado, mastigadinho, dando conta de tudo o que pretende fazer em seu trabalho, especificando inclusive quanto dinheiro pretende gastar em cada fase da pesquisa. Na universidade também é assim: uma pesquisa só pode começar de verdade depois que seu projeto tiver sido analisado e aprovado por um ou mais orientadores. 3.2. Um projeto para ensinar a pesquisar É claro que para um trabalho de pesquisa na escola de 1° grau podemos fazer projetos mais simples. Como quero dar aqui algumas idéias bem práticas, imaginei que, ao longo deste livro, podemos empreender um trabalho de pesquisa. Tudo o que vou fazer junto com você, professor, a partir de agora é o mesmo que você deverá fazer junto com Pág.24 seus alunos para ensinar a eles como pesquisar. O que estou querendo dizer é que, antes de pedir a eles que façam por conta própria uma pesquisa, você deve mostrar a eles como se faz este tipo de trabalho. Isso porque você só pode obter um produto depois que tiver conhecimento do processo de produção. Quando pede ao aluno para resolver um problema de matemática, você normalmente solicita a ele que mostre também os cálculos que fez para chegar ao resultado, não é? Aliás, é aí que está a importância de um problema de matemática: ele nos mostra o caminho seguido, o processo, que é muito mais interessante do que o mero resultado. Está combinado assim? Quando você for levar estas idéias à classe, substitua o tema que eu escolhi para nosso trabalho e siga os mesmos passos que seguiremos daqui para a frente. Imaginei como tarefa prática pesquisar a vida de alguma pessoa famosa. Aposto que, para aprender a pesquisar, os alunos vão gostar muito disso. Na idade deles, a curiosidade sobre a vida das pessoas é muito grande. Quando vou visitar escolas de 1° grau onde livros meus foram lidos pelos alunos, costumo ser bombardeado por uma infinidade de perguntas que nada têm a ver com a minha atividade de escritor, e respondo a todas elas porque sei que isso faz parte do modo de estabelecer relações sociais das crianças dessa faixa etária. Além disso, é bom aproveitarmos esse instinto "fofoqueiro" que cada um de nós tem dentro de si (eu confesso, sem vergonha: adoro ler biografia!). Você se importaria muito se fosse Monteiro Lobato? Escolhi-o por duas razões bem simples. Primeiro, porque sou fã de seus livros infantis (até me tornei escritor por causa deles!). Segundo, porque é muito fácil encontrar material de pesquisa sobre ele. Afinal, o que nos interessa em primeiro lugar aqui são os procedimentos da pesquisa, muito mais do que o tema em si. Pág.25 É claro que se você e seus alunos preferirem Madonna, Ronaldinho ou Mickey Mouse, tudo bem, vamos tentar agir sem nenhum tipo de preconceito. (Eu mesmo gosto muito da Madonna, e estou escrevendo neste momento ao som da trilha sonora do filme Evita.) Aliás, vai aqui uma boa dica: procure descobrir temas que despertem o interesse de seus alunos. Depois do sucesso do filme Titanic, por exemplo, houve uma verdadeira enxurrada de livros, revistas e documentários sobre Leonardo Di Caprio. Muita menina que eu encontrei nessa época sabia quase tudo a respeito do ator. Quando eu perguntava como tinham descoberto tanta coisa, respondiam que tinham lido todas as revistas e livros e assistido todos os filmes e documentários sobre ele. Ou seja: fizeram pesquisa sem saber! É o tipo de oportunidade que não podemos desperdiçar. Leonardo Di Caprio pode não fazer parte do programa da escola, mas faz parte, sim, do programa das alunas naquele momento. Estimulando a investigação sobre um tema que interesse aos alunos, estaremos contribuindo para despertar neles o gosto pela pesquisa, que deixará de ser uma obrigação aborrecida para se tornar uma atividade prazerosa. Aliás, é difícil encontrar um pesquisador que não goste do seu tema. Ninguém vai querer perder tempo e energia (e muitas vezes até dinheiro!) pesquisando alguma coisa que não seja de seu interesse. Os itens do projeto (muito simples) que poderíamos elaborar são os seguintes: Título: ... Objetivo: ... Justificativa: ... Metodologia: ... Produto final: ... Fontes de consulta: Cronograma: … Pág.26 Nosso próximo passo será preencher cada um desses itens de acordo com a idéia inicial, que é o tema geral da pesquisa. A montagem do projeto é uma fase importante do trabalho. É preciso que ela se faça dentro de um clima de muita discussão e debate, permitindo a democratização das decisões. Para cada item é provável que surjam diversas propostas. O professor deverá anotá-las (ou, melhor ainda, escolher alguém que queira fazer isso), para depois submetê-las a votação. Está claro que tudo isso leva tempo e exige muita diplomacia e jogo de cintura da parte de todas as pessoas envolvidas. São os "males" da democracia. Mas é também uma boa oportunidade para as pessoas aprenderem a exercer a paciência, a tolerância, a humildade, a autocrítica e outras virtudes que não aparecem muito nas novelas da Rede Globo nem nos programas do SBT ou da TV Record... 4. DISCUTINDO O PROJETO É bom que fique bem claro, desde já, que não vou apresentar aqui idéias para você cobrar dos seus alunos, mas sim sugestões de procedimentos para mostrar a eles como é que se faz uma pesquisa. Se você não concordar com algumas delas, ótimo! Substitua-as como achar melhor e mais adequado ao ambiente escolar em que você atua. As atitudes dogmáticas são o antônimo perfeito de práticas pedagógicas! O professor pode vir com o projeto pronto, mas tem de estar disposto a permitir que ele seja discutido em classe para eventuais modificações, desde que lhe pareçam compatíveis com o tipo de trabalho que se quer fazer. Por exemplo, no nosso caso, alguém pode sugerir uma viagem a Taubaté, onde nasceu Monteiro Lobato, e visitar o sítio do avô dele que existe até hoje e é um museu. Tudo bem se a escola ficar Pág.27 em São Paulo ou em algum lugar perto, mas se for no Recife ou em Porto Alegre... É importante também que o professor explique detalhadamente cada elemento do projeto, que ressalte a importância de organizar as idéias antes de começar a pô-las em prática. Só para você ter uma idéia da utilidade de um projeto, eu fiz um antes de começar a escrever este livro, e estou seguindo-o com cuidado, para não me perder no meio de tantas idéias que vão aparecendo no meio do caminho. Quando alguma me parece muito boa, acabo incorporando-a ao projeto inicial. (Se você quiser saber como acabou ficado meu projeto no fim, basta ler o índice deste livro! Cada item dele corresponde a um ponto específico do projeto.) 4.1. O título É coisa fácil de explicar, não é? Tudo o que a gente faz precisa ter um nome. Mas nem sempre ele é definitivo. Se você (ou a turma) não estiver muito inspirado para batizar o trabalho, dê um título provisório. No desenrolar da pesquisa pode ser que alguém encontre um nome interessante, pitoresco ou divertido para ela. Quando uma fábrica de automóveis está estudando um modelo novo, ele recebe um nome provisório, só para constar do projeto. Uma vez terminada a pesquisa, feitos todos os testes e terminados os últimos ajustes é que a equipe de criação vai imaginar um nome que tenha um bom apelo comercial para o carro. Recentemente, foram lançados dois livros sobre Monteiro Lobato com títulos muito saborosos: Um jeca nos vernissages (de Tadeu Chiarelli) e Furacão na Botocúndia (de C. L. Azevedo, M. Camargos e V. Sacchetta). Para o nosso projeto, sugiro o seguinte título: Pág.28 Monteiro Lobato, vida e obra 4.2. O objetivo É o ponto de chegada, a meta final. É a contribuição que o projeto quer dar ao conhecimento daquele tema. Uma pesquisa sem objetivo é uma aberração científica! Essa história de mandar o aluno pesquisar com o único "objetivo", de apresentar um trabalho para o professor dar uma olhada superficial e atribuir uma nota é um verdadeiro crime contra a ciência! O pesquisador em farmácia que está testando novas combinações de substâncias para tentar combater uma doença tem o objetivo claro de salvar vidas humanas. Faça ver a seus alunos que fazer pesquisa é assumir pelo menos um compromisso: aumentar o conhecimento das pessoas acerca de um determinado assunto. E isso é uma grande responsabilidade! Nosso objetivo aqui será: Tornar mais bem conhecida dos alunos e da comunidade a importância de Monteiro Lobato na literatura e em outros aspectos da história do Brasil. 4.3. A justificativa É a "desculpa" que você dá para fazer aquela pesquisa. Qual a importância daquele tema escolhido? Ele tem relevância para as pessoas envolvidas? Ele pode contribuir de algum modo para o aperfeiçoamento da sociedade em que está inserido? Fazer uma pesquisa sobre os efeitos da neve sobre a saúde das pessoas pode até ser importante, mas não no Brasil! Pág.29 A justificativa é a defesa que você faz de seu projeto. Nela você apresenta argumentos que convençam as pessoas de que aquele trabalho é digno de interesse e de... financiamento! Os órgãos que dão verbas para a realização de pesquisas querem saber minuciosamente por que aquele projeto merece investimento. Já me aconteceu de preparar um projeto lindíssimo e receber de volta um parecer com as palavras: justificativa insuficiente. Caprichei no título, detalhei os objetivos, mas não fui convincente o bastante na justificativa. (Pense bem agora nas justificativas que você dá para pedir trabalhos de pesquisa aos seus alunos...) Veja se você concorda com a seguinte justificativa (se não concordar, elabore outra): Monteiro Lobato é considerado até hoje o nosso mais importante autor de literatura infantil, gênero em que foi pioneiro no Brasil. Além disso, teve atuação fundamental na criação da indústria editorial brasileira, tendo sido o fundador de algumas das primeiras editoras do país, que existem até hoje. Por isso, a data de seu nascimento foi escolhida para se comemorar o Dia do Livro. Seu papel na campanha do petróleo também merece destaque. 4.4. A metodologia A metodologia, como o nome indica, tem a ver com o modo de obtenção dos dados que sustentarão a pesquisa. No nosso caso, como queremos escrever um texto, nossa metodologia não será das mais complicadas. Vamos ler, fichar, redigir. Pág.30 Mas nem toda pesquisa se faz com métodos tão simples. Algumas exigem gravações em fita cassete ou em vídeo, elaboração de maquetes ou protótipos, experimentos controlados, testes monitorados, entrevistas com informantes, visitas a cemitérios, autópsias de cadáveres, consultas a museus, dissecação de animais, escavações, prospecções, explosões, implosões, mergulhos em alto-mar, escalada de montanhas etc. É praticamente infinito o número de métodos de pesquisa que existem. Mas é preciso ter um método. Pedir ao aluno um trabalho de pesquisa sem ajudá-lo a definir os melhores métodos para fazê-lo é o mesmo que dar um prato de comida a uma pessoa e obrigá-la a comer com as mãos amarradas para trás. Bem ou mal, ela vai acabar comendo, mas só Deus sabe como! É preciso não só desamarrar as mãos dos nossos alunos, como também mostrar a eles os talheres adequados para aquele, tipo de comida! Sopa com faca, nem pensar! Nossa metodologia então será: Leitura de obras de referência. Fichamento de dados. Redação de um texto informativo sobre Monteiro Lobato. 4.5. O produto final Este é um ponto importantíssimo deste nosso projeto, e quero insistir muito nele. Imagine que alguém lhe encomedou um bolo e que você fez um maravilhoso. Pronto o bolo, a pessoa aparece, enfia um dedo nele para ver se está macio, dá uma cheiradinha por cima, diz que está bom e depois joga tudo no lixo. Não é horrivelmente frustrante? Um bolo (principalmente se for maravilhoso!) é para ser apreciado, saboreado, compartilhado com muitas pessoas, aproveitado por todos Pág.31 os que estão à nossa volta. Em torno dele podemos até organizar uma festa! Por que estou falando de bolo e de frustração? Porque o que acontece com a maneira convencional de fazer pesquisa na escola é uma história bastante parecida. O professor pede uma pesquisa ao aluno. Ele a faz do jeito que pode e leva-a para o professor. Este passa os olhos pelo trabalho (afinal, para que ler mesmo, não é? Eu já sei essas coisas de cor!), dá uma nota e o devolve ao aluno (quando simplesmente não o joga fora). E ou não é absurdo? Já vimos que fazer uma pesquisa é assumir um compromisso e uma responsabilidade. Todo trabalho tem que ter um produto final. No nosso caso, a pesquisa tem que dar aquela contribuição, de que já falamos, para o aperfeiçoamento intelectual do indivíduo, da turma, da escola, da comunidade... É preciso, então, que tenhamos em mente — e no projeto — o tipo específico de produto final que desejamos obter com a pesquisa que propusemos aos alunos. E é igualmente preciso que este produto final tenha um destinatário, que não pode ser apenas o professor. Nenhum laboratório farmacêutico vai pesquisar e desenvolver um medicamento novo para aplicá-lo numa única pessoa e depois jogar a fórmula no lixo, vai? Produto final visado: Um texto informativo 4.5.1. O que fazer com um texto? Como no nosso caso o produto final desejado é um texto, precisamos saber o que fazer com ele. Ninguém escreve para ser lido por uma única pessoa — só se for uma carta Pág.32 íntima ou um código secreto. Um texto é um instrumento poderoso de intervenção na sociedade. Pense na força que têm os decretos, as leis, as proclamações. Foi um documento escrito, um texto, que acabou com a escravidão negra no Brasil. Foi também uma autorização escrita do presidente dos Estados Unidos que permitiu que fossem lançadas as bombas nucleares sobre Hiroxima e Nagasáqui... Quem escreve precisa estar consciente dessa responsabilidade. Quem escreve depois de uma pesquisa, então, tem mais responsabilidade ainda, pois é egoísmo puro e falta de solidariedade guardar os frutos de seu trabalho só para si ou para um grupo fechado de pessoas. Depois que nosso texto estiver pronto, é imprescindível que ele tenha um destinatário coletivo. Por isso aqui vão duas sugestões: (l) publicar o texto no jornal da escola. O quê? Sua escola não tem jornal? Não existe desculpa para isso. Minha filha Júlia, quando estava na 2a série, preparou sozinha um jornal para sua classe. Ela mesma digitou ao computador (catando cada tecla!), fez os desenhos, escolheu o tipo de papel e imprimiu duas dúzias de exemplares. Chamou-se Jornal da Manhã (porque ela estudava no turno da manhã). Nesse jornalzinho tinha tudo: piadas, jogos, adivinhações, contos, poesias, fofocas, correio elegante. Se uma menina de oito anos pode fazer isso (e nem foi a professora que pediu!), o que não poderá fazer toda uma classe, ou toda uma série, com a ajuda dos professores, dos pais e da administração da escola? "Ah, mas a nossa escola não tem computador." Também não é desculpa. Pelo menos uma máquina de escrever deve existir por aí. Ou algum aluno terá computador em casa. Papel, lápis de cor, caneta hidrográfica, Pág.33 giz de cera, tinta guache, cola, purpurina, etiqueta autoadesiva, recorte de revista, tesoura... Todos esses materiais são de fácil obtenção. Além disso, preparar um jornal (bimensal, trimestral, semestral que seja!) vai ser uma maneira muitíssimo mais gostosa de escrever e refletir sobre as questões da linguagem — incomparávelmente mais prazeroso do que as temidas redações, que, pensando bem, do jeito como tradicionalmente são feitas (sem destinatário!), não servem para nada! 2) apresentar o texto na forma de palestra para os demais alunos, professores, funcionários, pais e comunidade em geral. Se minha pesquisa foi interessante para mim, tem de ser também para outras pessoas. Se eu acredito que ela é uma contribuição válida para aumentar a minha cultura e a de quem me cerca, preciso levá-la ao conhecimento de todos. Pode-se organizar um dia especial para isso, numa data comemorativa (o Dia do Livro, por exemplo, no nosso caso, que é o dia de nascimento de Monteiro Lobato, 18 de abril) ou coisa assim. A escola pode entrar em contato com outras escolas ou instituições do gênero (bibliotecas públicas, por exemplo) para que a palestra seja feita também em outros lugares. Além dessas duas formas de publicação do trabalho, muitas outras podem ser imaginadas. Saber que seu texto não será lido apenas pelo professor ou por um grupo de colegas certamente levará o aluno a querer preparar um texto bem elaborado, bem escrito, agradável de ler, coerente e interessante. Ter consciência de que seu trabalho poderá ser exposto a um público maior, numa palestra, também contribuirá para que ele se sinta mais responsável pelo que vier a fazer. Não é assim com todos nós? Pág.34 Uma ressalva importante. O fato de estabelecermos desde cedo um destino para o produto final do trabalho de pesquisa dos alunos não pode se transformar num motivo de pressão por parte do professor, gerando ansiedade ou insegurança nos alunos. É bom evitar avisos e conselhos do tipo: "Cuidado, esse texto vai ser lido por muita gente!" "Pense no que dirão de seu trabalho quando você for apresentá-lo!" A conscientização da responsabilidade representada pela pesquisa e pelo texto (ou outro produto final) tem que ser feita com sutileza, tato e por meio de sugestões, "toques", "dicas" e "papos". Elogios com ressalvas são uma boa tática: "Seu trabalho está muito legal, mas acho que podia ficar ainda melhor se você aqui fizesse tal e tal coisa"... 4.6. Fontes As fontes da pesquisa podem ser tão variadas quanto as metodologias. Tudo depende, mais uma vez, do objetivo visado. Para a produção do nosso texto, poderemos recorrer basicamente a uma pesquisa bibliográfica. Para obtermos informações sobre Monteiro Lobato usaremos enciclopédias (em livro ou em cd-rom), dicionários, livros de história da literatura etc. Indicar as fontes é muito importante. Conheço muitas pessoas que, assim que pegam um trabalho científico para ler, vão direto às páginas finais para saber em que livros e documentos o autor se baseou em sua pesquisa. Normalmente, as boas teses, os bons tratados científicos vêm apoiados em extensa bibliográfia. É muito difícil alguém escrever quatrocentas páginas sobre um tema específico e citar, no fim, três ou quatro obras. Nem mesmo o mais genial dos génios! Nenhuma universidade aceitaria uma tese assim. Mais comum é alguém publicar um artigo de dez páginas seguidas Pág.35 de outras tantas de referências bibliográficas: significa que o autor, antes de se aventurar a tratar daquele assunto, investigou tudo o que conseguiu para saber em que pé estava o conhecimento de sua área naquele momento. Só que a indicação das fontes pode criar um problema para o aluno e para o professor acostumados àquele tipo de pesquisa que nem mereceria esse nome. Qual o problema? O problema de já não poder fazer mais uma cópia pura e simples! Mandar copiar textos pode ser bom no período da alfabetização, para ajudar a criança a movimentar melhor o lápis ou conhecer a forma escrita das palavras. Mas na 3% 4% 5a série, professor, com licença! Se não apelarmos para a criatividade de nossos alunos, quem vai fazer isso? A Xuxa? o Faustão? o Ratinho? o Gugu? Estou me detendo neste ponto porque todos sabemos que a grande maioria dos alunos, nos assim chamados "trabalhos" que são feitos por aí, limitam-se simplesmente a copiar a página da enciclopédia onde encontraram o verbete referente ao tema solicitado pelo professor. É ou não é? Se eu peço ao meu pesquisador que indique as fontes (veja bem: as fontes, no plural!) é porque, em caso de alguma duvida minha a respeito do que ele escreveu, posso consultar aquelas fontes e verificar onde está o problema. Além disso, consultar mais de uma fonte permite que obtenhamos dados e informações diferentes, que enriquecerão o trabalho. Vou dar, mais uma vez, um exemplo tirado da minha experiência pessoal. Na minha sina de tradutor, é muito comum aparecer, no texto original, uma bendita palavrinha que nunca vi mais gorda! Se eu consultar um único dicionário e ela não estiver lá, vou ficar em maus lençóis, pois as pessoas que contratam meus serviços exigem que eu lhes entregue a tradução pronta e acabada, sem "buracos" nem Pág.36 dúvidas pendentes. É por isso que tenho uma coleção de dicionários, não só de língua, mas também específicos como dicionários de termos técnicos, dicionários de vidas de santos, dicionários de botânica, de agricultura, de títulos de filmes etc. Quando nenhum deles resolve, lá vou eu procurar na Internet, telefonar para algum especialista da área, visitar o embaixador! A atividade do tradutor é, basicamente, uma atividade de pesquisa. Por isso as fontes de consulta têm de ser muitas e variadas. Uma boa idéia seria mandar que os alunos consultassem alguns dicionários e lessem a definição que cada um deles dá de pesquisa. Em seguida, você pode dizer, em tom gaiato: "Perceberam que nenhum dicionário diz que pesquisa é o mesmo que cópia?" Chame a atenção deles para o fato de que a pesquisa é o processo de conseguir algo novo com base em coisas já dadas. Se você misturar leite em pó, chocolate em pó e café solúvel em água quente o que acontece? Acontece um capuccino! Os três ingredientes ainda estão lá, mas muito bem combinados, a ponto de não conseguirmos mais identificar cada um deles. (Já deu para perceber que eu sou ligado em cozinha, não é?) Nosso trabalho de pesquisa tem de ser assim: um bom capuccino! Se não quero uma cópia, que método devo seguir para obter um texto novo, original? É o que veremos daqui a pouco, depois que tivermos montado o nosso projeto. 4.6.1. Preparando uma bibliografia Existem atualmente diversos métodos para indicar a bibliografia usada numa pesquisa. De certa forma, cada pesssoa acaba adotando um deles que melhor combine com seu próprio estilo de trabalho. Como estamos pensando em alunos Pág.37 de 1° grau, não convém complicar demais as coisas, até porque a bibliografia, nesses trabalhos, não será muito extensa. Mas, por outro lado, também é conveniente começar a mostrar a eles a importância de se fazer um trabalho organizado, sem "furos", com todos os elementos necessários em seus devidos lugares. A fórmula mais comum para se indicar um livro é a seguinte: último sobrenome, 1° nome. Título da obra, cidade, editora, ano. Exemplo: BAGNO, Marcos. A língua de Eulália, São Paulo, Contexto, 1997. Quando se trata de uma enciclopédia, a referência pode vir assim: Grande Enciclopédia Delta-Larousse,vol. 7, Rio de Janeiro, Delta, 1970. Uma reportagem de revista ou jornal assinada poderá ser citada assim: GUIMARÃES, João L. "A oficina do sabor", Superinteressante, ano XI, n° 12, dezembro de 1997, pp. 34-39. Se a reportagem não trouxer o nome do autor, começa-se a referência pelo nome do jornal ou revista: Pág.38 Superinteressante, ano XI, n° 12, dezembro de 1997, p. 10 ("Surge um macaco novo no galho"). No caso de cd-roms, que costumam ser obras coletivas tenho visto citações dessa forma: CD-ROM ALMANAQUE ABRIL 1996. Quando a fonte consultada for uma página da internet, coloca-se o nome comercial da página seguido do endereço eletrônico dela: BRITANNICA ON-LINE. WWW.eb.COM Acredito que esses modelos de indicação bibliográfica bastam por enquanto. Você pode, junto com os alunos, produzir uma ficha que sirva de guia para eles na hora de enumerar as fontes de consulta que sustentaram a pesquisa. A indicação bibliográfica, como eu já disse, confere credibilidade ao trabalho, mostra que o pesquisador agiu com seriedade e, principalmente, com honestidade. Ela nos prova que se trata de um trabalho original e não de uma simples cópia. 4.6.2. Citações Se o pesquisador considerar importante e válido citar textualmente alguma das fontes consultadas, não há problema algum em fazer isso. O fundamental é que essa citação venha entre aspas e que a fonte seja indicada claramente no texto, além de constar obrigatoriamente da bibliografia. Exemplo: Pág.39 Concordo plenamente com o Prof. Perini quando ele diz, na p. 22, que''as gramáticas portuguesas de hoje representam a situação dos estudos linguísticos por volta dos princípios do século XX — quase um século de atraso, portanto". Por isso o ensino de português hoje, no Brasil, é tão cheio de incoerências e contradições. Se meu leitor quiser saber a que livro estou me referindo, pode consultar a bibliografia e encontrar lá: * PERINI, Mário A. Gramática descritiva do Português, 2a ed., São Paulo, Ática, 1996. 4.7. Cronograma Vamos considerar extinto aquele velho esquema rançoso de escrever na lousa "Trabalho de Pesquisa. Tema: X. Entregar até dia X". Afinal, ele é mesmo um dinossauro metodológico! O cronograma de uma pesquisa é tão importante quanto qualquer outro ponto do seu projeto. Se eu prometer entregar a tradução de um livro de oitocentas páginas daqui a duas semanas, nenhum editor vai acreditar! Mas se, por outro lado, disser que só posso entregar o serviço pronto daqui a dois anos, vão me mandar catar coquinho (na melhor das hipóteses)! O cronograma de qualquer trabalho tem que ser realista. Os prazos precisam ser condizentes com as tarefas propostas: nem curtos demais, para gerar aquele estresse insu- Pág.40 portável; nem demasiado longos, para permitir distraçao e dispersão. Como o projeto é um todo coeso e coerente, as partes que o compõem estão interligadas e dependem umas das outras. Os prazos para o cumprimento de cada etapa da pesquisa vão depender das exigências de cada tarefa. Além disso, eles têm de ser negociados democraticamente. Os alunos conhecem suas próprias dificuldades e limitações (tudo bem, às vezes eles exageram!), e nós reconhecemos as nossas (tudo bem, às vezes nós as subestimamos!). O importante é que haja um consenso e uma boa distribuição das tarefas ao longo do período previsto. E vale sempre repetir um bordão muito velho, mas eficiente: qualidade vale mais que quantidade. É melhor fazer uma bela pesquisa bem feita usando todo um semestre do que uma cópia vagabunda a cada dois meses! Uma vez delimitados os prazos, o professor — na sua qualidade (insubstituível e precípua!) de orientador da pesquisa — deverá controlar o progresso dos trabalhos, avisando quando as datas estiverem se aproximando (mas sem paranóia, por favor) e auxiliando os alunos em suas dificuldades ao longo do percurso. Prazo é coisa séria. Nos dias de hoje, em que tudo na vida (infelizmente) exige muita competição, é preciso criar o hábito de cumprir os prazos, de não deixar o trabalho se arrastar demais. Mas nem por isso vamos sair por aí prometendo o impossível. A pessoa que resiste à pressão e diz, com toda honestidade: "Meu prazo é X e antes disso não dá" está impondo respeito, está mostrando que é um profissional sério em suas determinações e consciente de suas responsabilidades. Além disso, no decorrer do trabalho, muita coisa imprevista pode acontecer e talvez seja necessário alongar o Pág.41 prazo. Tudo vai depender da avaliação feita pelo professor, com base em critérios racionais e, sobretudo, democráticos. Pode ser também uma boa oportunidade para os alunos aprenderem as práticas da negociação*. 4.8. O projeto montado Agora que já discutimos todos os itens do nosso projeto, vamos ver como ele ficou depois de pronto: Título: Monteiro Lobato, vida e obra. Objetivo: Tornar mais conhecida dos alunos e da comunidade a importância de Monteiro Lobato na literatura e em outros aspectos da história do Brasil. Justificativa: Monteiro Lobato é considerado até hoje o nosso mais importante autor de literatura infantil, gênero em que foi pioneiro no Brasil. Além disso, teve atuação fundamental na criação da indústria editorial brasileira, tendo sido o fundador de algumas das primeiras editoras do país. Por isso, aliás, a data de seu nascimento foi escolhida para se comemorar o Dia do Livro. Seu papel na campanha do petróleo também merece destaque. Metodologia: Leitura de obras de referência. Fichamento de dados. Redação de um texto informativo sobre Monteiro Lobato. Produto final: Um texto informativo. Pág.42 Fontes de consulta: Enciclopédias, cd-roms, livros de história da literatura, outras. Cronograma: l. Levantamento das fontes: deXaT 2. Leitura da bibliografia: de X a T 3. Preparação das fichas: de X a T 4. Re dação do texto: de X a T 5. Apresentação: de X a T 5. A COLETA DE DADOS Agora que nosso projeto já está bem montado, vamos partir para o trabalho prático. De acordo com a metodologia que escolhemos, nossa próxima tarefa é coletar os dados da nossa pesquisa. Isso pode ser feito de diversas maneiras. Cada pessoa tem seu jeito próprio de trabalhar. Algumas são mais organizadas e metódicas. Outras são mais bagunçadas e caóticas. Nenhum dos dois modelos é melhor do que o outro, fique logo sabendo. Conheço muita gente que produz coisas maravilhosas em pleno caos. Dizem que Villa-Lobos só conseguia compor no meio da sala da casa dele, com a televisão ligada, carros passando na rua, gente almoçando, cachorro latindo e papagaio xingando. Outras pessoas necessitam da paz de um convento. Tudo depende, é claro, do tipo de personalidade e do temperamento de cada um. Por isso, professor, preste atenção para não querer transformar seu aluno num pequeno obsessivo só porque ele é um pouco desorganizado. O importante é que ele produza coisas, que consiga realizar seus objetivos. O que vou dar agora são algumas sugestões para a gente organizar os dados que for coletando ao longo da Pág.43 consulta às fontes. Como vamos recorrer basicamente a material escrito, nossa pesquisa não vai ser muito complicada. 5. 1 Fichamento É um velho método de coleta de dados, documentado até mesmo em obras escritas antes de Cristo! Você pega uma ficha (do tamanho que lhe parecer conveniente: há vários modelos nas papelarias) e vai anotando nela os principais dados que encontrar à medida que for consultando a fonte. Para que sua leitura não seja cansativa, tendo de interrompê-la a todo momento para preencher a ficha, é recomendável ir assinalando, no próprio texto (com aquelas canetas de tinta brilhante chamadas marcadores), tudo o que lhe parecer interessante para a pesquisa. É claro que você só poderá fazer isso se o material de consulta for seu. Pelo amor de Deus, não vá rabiscar a enciclopédia de nenhuma biblioteca! Tirar uma fotocópia das páginas que interessam pode ser uma boa. (Mas cuidado: fotocopiar livros inteiros é crime! É o mesmo que tirar dinheiro do bolso do autor!) Chame a atenção dos alunos para a importância de conservar no melhor estado possível as obras de referência (dicionários, enciclopédias, coleções), que são de utilidade pública (mesmo que pertençam a eles!). Depois de lido e assinalado o texto, você pode passar ao fichamento. Desse modo, ele estará praticamente resumido na ficha, com todas as palavras-chaves anotadas. Se fôssemos fichar um artigo lido sobre Monteiro Lobato, por exemplo, provavelmente obteríamos uma ficha preenchida mais ou menos assim Pág.44 * Fonte: cd-rom almanaque abril 96 José Bento Monteiro Lobato Nasceu em Taubaté (SP), 1882. Morreu em 1948 Formou-se em Direito (São Paulo, 1904) Promotor em Areias (SP) por sete anos Fazendeiro em Buquira (SP) Publica Urupês(l9l8), contos (aparece aí o Jeca Tatu) A Menina do Narizinho Arrebitado (1921), 1° livro infantil Demais livros sobre o Sítio do P. Amarelo: entre 1921 e 1946 Vive em Nova York: 1926 a 1931 (adido comercial) América: livro sobre o progresso dos EUA O Escândalo do Petróleo (1936): inicia sua atividade Ceio petróleo brasileiro É preso (1941) por ter escrito carta ao ditador Getúlio Vargas Filho morre de tuberculose. Muda-se para Argentina. Publica (1943) A Barca de Gleyre: correspondência com Godofredo Rangel. Observe que no alto da ficha nós citamos a fonte de onde tiramos os dados fichados. Já é o primeiro passo para organizarmos, mais tarde, a bibliografia que vai sustentar a pesquisa. Com os dados acima já poderíamos escrever um texto, não é? Bastaria alinhavar todas as informações, construir frases bem conectadas e pronto. Mas não é o que faremos. Afinal, já sabemos que para fazer uma boa pesquisa é preciso recorrer a várias fontes, e essa foi só a primeira. Depois de termos consultado todas as fontes de que dispomos (ou que selecionamos para nosso trabalho) e Pág.45 preparado as fichas de leitura é que procederemos à elaboração do texto, que será o produto da nossa pesquisa. 5.2. Questionário Este talvez seja o método de coleta de dados mais adequado para os nossos alunos de 1° grau. Uma vez escolhido o tema, é natural que a pesquisa vise responder a determinadas perguntas, que o professor não terá dificuldade em formular. É um modo bastante didático de dirigir a pesquisa. Querendo responder ao máximo de questões, o aluno recorrerá ao máximo de fontes possíveis, o que é bom. O professor esperto terá obtido muitas informações acerca do tema a ser pesquisado para poder formular boas perguntas. Além disso, pode compor o questionário juntamente com os alunos, incentivando-os a dar suas próprias sugestões. Se estamos pesquisando a vida de uma pessoa, e se já sabemos que se trata de um escritor, não há como escapar das seguintes perguntas: fonte: ... 1. Qual o nome completo de Monteiro Lobato? 2. Onde nasceu? Quando? 3. Onde morreu? Quando? De quê? 3. Qual o nome de seus pais? 4. Cursou universidade? Quando se formou? Onde? 5. Exerceu sua profissão? Quando? Onde? 6. Quando iniciou suas atividades literárias? 7. Qual foi o primeiro livro que publicou? 8. Quando começou a escrever para crianças? 9.Viveu no exterior? Onde? Quando? Pág.46 10. Qual a sua participação na questão do petróleo? 11. Sofreu repressão política? Por quê? 12. O que fez pela indústria editorial do Brasil? 13. ... 14. ... 15. ... Tal como os dados coletados nas fichas, as respostas dadas a essas perguntas podem ser "costuradas" até formarem um texto. Faça ver aos alunos que cada uma das fontes consultadas terá respostas diferentes — mais longas, mais breves, mais detalhadas, mais sucintas — para as mesmas perguntas. Além disso, algumas fontes bibliográficas podem simplesmente não ter respostas para algumas delas, o que exigirá mais consultas. 5.3. Conheça uma velha amiga: a síntese Não é má ideia fazer um uso misto das duas técnicas que acabamos de ver. Por exemplo, terminado o fichamento das fontes, o pesquisador pode aplicar às fichas o questionário elaborado em classe. Em vez de fazer cada fonte bibliográfica responder ao questionário, ele pode simplesmente pinçar as respostas já dadas nas fichas, obtendo assim uma síntese. Este é um termo que merece atenção. Síntese é uma linda palavrinha grega. Para traduzi-la os latinos usavam compositio, compositionis. Isso mesmo: é a nossa composição! Fazer uma síntese é compor um produto novo servindo-se de todos os "ingredientes" coletados ao longo do caminho. Lembra-se do capuccinol É uma bebida sintética, um composto de diversos elementos. Pág.47 O texto que desejamos elaborar como produto final da nossa pesquisa será a síntese do nosso trabalho, uma composição que faremos com base nos dados obtidos. Este conceito de síntese será fundamental para a etapa seguinte do trabalho, que é justamente a redação do texto final. 5.4. Uma palavrinha sobre as fontes de consulta Como já vimos no primeiro capítulo, a pesquisa tem como objetivo trazer uma contribuição nova ao conhecimento do campo de saber em que vai ser feita. Por isso, não adianta muito fazer uma pesquisa que dê resultados que já foram alcançados e ultrapassados por trabalhos anteriores. Qual a graça de fazer uma pesquisa para descobrir que os portugueses chegaram ao Brasil em 1500? E chover no molhado. Interessante será investigar se de fato foram eles os primeiros europeus a passar por aqui, ou se Cabral saiu ou não de Portugal com a missão secreta de ocupar a parte sul do continente descoberto oito anos antes por Colombo a serviço da Espanha! Para darmos esta contribuição nova, precisamos selecionar com muito cuidado nossas fontes de consulta. Todos os dias a ciência dá um passo adiante, a história da humanidade também (infelizmente, nem sempre na melhor direção!). Eu me lembro de ter lido na infância um livro de ciências que dizia que o "sonho" dos pesquisadores era inventar um avião que decolasse verticalmente — em 1982, na guerra das Malvinas, os ingleses já estavam usando aviões assim! E veja que eu nem sou tão velho! Um mapa do Brasil anterior a 1988 não trará o Estado de Tocantins. Um mapa da Europa anterior a 1990 não apresentará uma dúzia de países novos que se constituíram depois dessa data! Pág.48 Por essas e outras, devemos buscar sempre obras de referência atualizadas. E claro que tudo vai depender, também, do tema da pesquisa. Quando se trata de ciência, tecnologia e história recente, é bom ter à mão um material sintonizado com os últimos acontecimentos (ou, pelo menos, com os penúltimos, já que é tão difícil acompanhar no mesmo ritmo o assim chamado progresso da humanidade). Uma boa sugestão é consultar o ALMANAQUE ABRIL, em livro ou em cd-rom, pois é uma obra que se atualiza a cada ano. Embora suas informações não sejam muito extensas nem muito profundas, elas tem a vantagem de estarem mais sintonizadas com o momento atual. Por isso, procure sempre a edição do ano em que você está. Se você lê bem inglês e está conectado à Internet, não existe melhor fonte de consulta no mundo (e desta vez não é exagero meu) do que a ENCYCOPAEDIABRITANNICA ON-LINE,. O endereço é www.eb.com. Ali as informações são atualizadas quase que diariamente! Para consultá-la, você precisa fazer uma assinatura anual, que não é muito cara (não chega a duzentos dólares), principalmente tendo em conta a maravilha que é. Além disso, existe a opção de assinatura institucional. Se sua escola tiver condições e estiver conectada à Internet, não custa nada tirar vantagem dessa nova forma de "biblioteca virtual". Hoje em dia, não sei o que seria da minha vida de tradutor se não pudesse recorrer a ela. Já obtive informações ali sobre o Brasil que nenhum livro impresso por aqui me deu! Outra boa sugestão para a escola como um todo é assinar a revista Superinteressante. Ela cumpre o que promete no nome: seus artigos e reportagens são interessantíssimos! A linguagem é clara e acessível, pois o público visado é a garotada de 1o e 2° graus. Além da revista existe também um cd-rom com as matérias mais interessantes publicadas naquele ano. Vale a pena consultar. Pág.49 Na televisão brasileira, infelizmente, não existe, nem de longe, o objetivo de educar o cidadão, de contribuir para sua formação cultural e intelectual. Muito pelo contrário, o apelo se faz sempre no sentido inverso, o do emburrecimento, do estímulo às atitudes mais mesquinhas e vis. As únicas exceções, nos canais abertos, ficam por conta da tv cultura, de São Paulo, e das televisões educativas dos outros Estados. Nelas existe uma programação que valoriza a inteligência do espectador: documentários científicos, entrevistas com gente que tem o que dizer, programas infantis e juvenis que não querem apenas vender sandália de plástico e bonecas medonhas de feias... Na televisão por assinatura, conheço pelo menos dois canais que vale a pena ver de vez em quando: DISCOVERY CHANNEL e DISCOVERY KIDS. (O único problema é que os programas são todos estrangeiros, e as traduções de vez em quando me fazem subir pelas paredes de tão horríveis!) Essas são apenas algumas sugestões para você orientar seus alunos na consulta às fontes de pesquisa. Peça para eles estarem sempre de olho na data de publicação do material que forem usar em seu trabalho. Dependendo do tema, uma enciclopédia velhinha pode continuar sendo útil: é difícil que apareça uma "novidade" na biografia de Monteiro Lobato, por isso uma enciclopédia como a minha Delta-Larousse, que é de 1970, tem ainda sua contribuição a dar. Mas é bom reforçar a necessidade de consultar sempre as fontes mais novas, pois isso criará no aluno um hábito que lhe será muito útil na sua atividade profissional e intelectual futura. 6. O PRODUTO FINAL Vamos agora passar à parte prática do nosso trabalho. Já vimos muitos conceitos e definições e aprendemos o signifi- Pág.50 cado de algumas palavras importantes. Chegou a hora de começarmos realmente a nossa pesquisa. E o primeiro passo, como já sabemos, vai ser a coleta de dados por meio de fichamento. Como meu interesse aqui é fazer o professor "pôr a mão na massa", selecionei quatro fontes de consulta para o nosso trabalho. Já que a nossa pesquisa é basicamente bibliográfica, nossas fontes de consulta, obviamente, serão textos. Os quatro textos que escolhi estão agrupados no anexo, lá no final do livro, por medidas práticas. Vou pedir para você fichá-los, tudo bem? Não tenha pressa. Eu espero (lembre-se que já fizemos um cronograma de atividades)... 6.1. Outra amiga nossa: a análise Terminou o fichamento? Otimo. Vamos passar agora a analisar os dados que temos nas fichas. E muito comum a palavra análise aparecer como um oposto de síntese. Por que será que isso acontecer? Nós já vimos que síntese quer dizer "composição". E o que significa analisar? Significa "dissolver, desligar, decompor, quebrar em pedaços". Parece estranho, não é? Mas é isso mesmo o que acontece. Veja só: quando um médico pede um exame de sangue, a amostra coletada vai ser analisada num laboratório: o analista vai investigar cada um dos elementos que compõem o sangue (glóbulos brancos e vermelhos, plaquetas etc.) para ver se há algo errado em algum deles. Analisar uma situação é uma atividade que sempre começa com uma enumeração de fatores. Se formos analisar a situação da educação no Brasil, por exemplo, teríamos de falar do salário dos professores, da formação dos professores, Pág.51 do investimento do governo na educação, da superlotação das salas de aula, da ausência de equipamentos e assim por diante. De posse de todos esses dados, poderemos elaborar uma síntese da situação educacional no país. Como o objetivo da análise ("decomposição, dissolução, quebra") é obter uma ideia geral do que está sendo investigado, o verbo analisar passou a ser sinónimo de "examinar". 6.2. O que vamos analisar? Na nossa pesquisa, o objeto da nossa análise serão os textos que consultamos. Vamos "quebrá-los em pedacinhos", isto é, vamos extrair deles os dados que nos interessam. Não será difícil notar que esses dados podem ser classificados em dois grandes tipos. De um lado, os dados que são comuns a todos os textos. De outro, os dados que são fornecidos apenas por um ou outro texto. Daí a importância de um número variado de fontes: cada uma delas virá a acrescentar as informações oferecidas pelas outras. Os dados do primeiro tipo são aqueles que terão de aparecer no nosso trabalho obrigatoriamente: nome completo de Monteiro Lobato, data de nascimento e morte, lugar onde nasceu, títulos dos principais livros, atividades mais importantes etc. Não há como escapar disso em qualquer pesquisa sobre qualquer tema. Os dados do segundo tipo são informações que poderemos ou não acrescentar ao nosso trabalho, tendo como critério para "peneirá-los" os objetivos que estabelecemos desde cedo no nosso projeto. No nosso caso, dificilmente vamos querer deixar de fora alguma coisa, e isso por duas razões bem simples. Primeiro, nosso objetivo é tornar Monteiro Lobato mais bem conhecido de quem vier a ler nosso texto, e por isso qualquer informação nova será bem- Pág.52 -vinda. Segundo, nossa pesquisa é simples, breve, em nível de 1° grau, e nossas fontes de consulta não são muito profundas. Em pesquisas mais demoradas, contudo, o investigador tem que ser muito criterioso na hora de acolher ou descartar informações que vai encontrando ao longo de seu trabalho. As vezes a gente lê um livro inteiro para descobrir que apenas algumas páginas têm interesse para o nosso trabalho. Aqui a palavra-chave é relevância. Não podemos encher nossa pesquisa de dados, informações, digressões e citações que não contribuam especificamente para o nosso objetivo. Mas também não podemos deixar de fora coisas muito importantes, relevantes para o tema que estamos investigando. Como eu já disse, pesquisa é coisa séria e difícil! Analisando, portanto, as fontes que temos, vamos ver o que todas elas têm em comum: 1........................... 2........................... 3........................... 4........................... 5........................... Vejamos agora o que cada uma delas nos apresenta de diferente em relação às outras: 1........................... 2........................... 3........................... 4........................... 5........................... Pág.53 6.3. Vamos tomar um capuccino? Chegou o momento de prepararmos o nosso capuccino, isto é, o nosso texto informativo, produto final da nossa pesquisa. Nele devem aparecer todos os dados comuns a todas as fontes de consulta e também aqueles que, pelo critério da relevância, julgamos importantes para o nosso objetivo. Eu elaborei o meu próprio texto seguindo esses critérios. É provável (e desejável) que ele apresente diferenças em relação ao texto que você escreveu. Afinal, ninguém faz mesmo nada igual a ninguém. Se dois seres humanos não têm sequer as mesmas impressões digitais, que são apenas umas linhazinhas na pele dos dedos, imagine se conseguirão escrever os mesmos textos, que são um produto muito mais elaborado das suas faculdades mentais! Ter isso em mente é sempre bom na hora de avaliarmos os trabalhos de nossos alunos. É natural que tenhamos uma expectativa: sabemos de antemão o que é importante naquele momento da aprendizagem, o que estamos tentando ensinar. Mas não devemos usar essa expectativa como se fosse uma camisa-de-força para aprisionar a criatividade das crianças. Aliás, este me parece um bom momento para eu lhe contar uma historinha... 6.4. Já ouviu falar de Procusto? Na velha e boa mitologia grega, havia um personagem muito cruel que se chamava Procusto. Já ouviu falar desse nome horrível? Procusto era um malfeitor que morava numa floresta. Ele tinha mandado fazer uma cama que tinha exatamente as medidas do seu próprio corpo, nem um milímetro a mais, nem um milímetro a menos. Quando capturava uma pessoa na estrada, Procusto amarrava-a naquela cama. Pág.54 Se a pessoa fosse maior do que a cama, ele simplesmente cortava fora o que sobrava. Se fosse menor, ele a espichava e esticava até ela caber naquela medida. Simpático ele, não? Procusto foi morto pelo herói Teseu, o mesmo que depois matou o Minotauro. É fácil decifrar a simbologia desse mito. Procusto representa a intolerância diante do outro, do diferente, do desconhecido. Representa a visão de mundo totalitária daquele sujeito que quer moldar todos os demais seres humanos à sua própria imagem e semelhança. É a recusa da multiplicidade, da diversidade, da criatividade, da originalidade: "Quem não se conforma ao meu tamanho não pode andar solto por ai, a menos que vá jogando fora tudo o que eu não tenho até caber na minha medida, ou a menos que se espiche e se estique até ter o mesmo que eu e ser igual a mim". O espírito de Procusto esteve presente em várias etapas da história da humanidade. Esteve presente durante a Inquisição, que condenou à fogueira tudo o que não se encaixava nos dogmas da Igreja. Esteve presente na caça às bruxas, que levou à morte milhares de mulheres, cujo único crime era saber um pouco mais que os homens a quem deviam submissão. Esteve presente na conquista da América, que representou o extermínio de civilizações inteiras de norte a sul do continente. Esteve presente no longo e doloroso processo de escravização de milhões de negros africanos. Esteve presente nos campos de concentração onde os nazistas eliminaram milhões de judeus, ciganos, homossexuais e todo e qualquer opositor ao regime. Esteve presente nos regimes totalitários de esquerda e de direita que imperaram depois da 2a Guerra mundial em vários países do mundo. Infelizmente, ao longo da história, percebemos que a escola teve um papel muito importante na difusão do espírito de Procusto. A educação tradicional — repressora e into- Pág.55 lerante — sempre se guiou pelo autoritarismo e pela consolidação de preconceitos dos mais diversos tipos. Não acha que já é hora de tentarmos mudar essa situação? 7. OUTRAS idéias SOBRE PESQUISA NA ESCOLA Agora que nossa pesquisa acabou e que obtivemos nosso produto final, podemos descansar um pouco e deixar vir à nossa imaginação algumas idéias que possam tornar mais interessante e (por que não?) divertido o ato de ensinar a aprender. 7.1. O que fazer do produto final? Nosso produto final foi um texto informativo sobre Monteiro Lobato. Vimos o que poderíamos fazer para que ele saísse do círculo fechado da sala de aula e se tornasse um instrumento de divulgação do saber útil também para o resto da escola e a comunidade em geral. Mas e se o produto final da pesquisa for outra coisa? Vamos pensar juntos: • Uma pesquisa no campo da química, da física e da biologia, por exemplo, pode ter como resultado a demonstração de um experimento prático. Que tal montar uma feira de ciências na escola para exibir esses experimentos? Já visitei muitas feiras desse tipo e vejo quanta satisfação os alunos que participam delas têm em demonstrar as diversas fases do experimento ou as coisas que aprenderam na pesquisa. • Uma pesquisa pode ter como produto final um belo cartaz, um quadro, um painel, um mural, uma "insta lação artística", uma maquete ou qualquer coisa do gênero. Que tal organizar uma exposição? Melhor ain- Pág.56 da: que tal manter uma exposição permanente dos produtos das pesquisas científicas/atividades artísticas dos alunos da escola? Uma exposição que se renovasse periodicamente, à medida que novos trabalhos pudessem substituir os mais antigos? Isso geraria entre os alunos a curiosidade de estar querendo sempre descobrir o que as outras classes andam aprontando. Seria também uma boa amostra do dinamismo da escola, da sua capacidade de instigar os alunos a produzir! • Uma pesquisa na área da literatura, do folclore ou da História pode oferecer aos alunos a chance de demonstrar suas habilidades dramáticas. Já vi excelentes encenações de pequenas peças adaptadas de livros escritos por mim. Confesso que gostei bem mais delas do que de saber que os alunos tinham que ler aqueles livros para "fazer prova". Você pode não acreditar, mas ainda tem professor que manda a turma toda ler um livro só para preencher aquelas horripilantes fichas de leitura que as editoras teimam em enfiar dentro dele! E ai do aluno que não preencher igualzinho às respostas que já vêm prontas no livro do professor! É a cama de Procusto! Uma vez uma professora quase teve um faniquito depois que eu entrei na sala de aula dela e convidei todos os alunos a rasgar junto comigo a ficha de leitura que vinha dentro de um livro de minha autoria! Em compensação, já vi coisas lindas feitas inspiradas em textos que escrevi: teatro, música, cartazes, maquetes... 7.2. Diminuindo a distância entre escola e comunidade Outra coisa que me intriga muito é a distância que ainda existe entre a escola e a comunidade. Não falo da comunidade em sentido amplo — bairro, cidade, Estado —, mas da Pág.57 própria comunidade formada pela escola e pela família dos alunos. Por que não aproveitar, por exemplo, as habilidades/ profissões dos pais, mães, irmãos e demais familiares como "material didático"? Se você tem um aluno em cuja família há um médico, por que não trazê-lo para falar com a turma ou mesmo com toda a escola? Não faltam temas relativos à saúde para serem discutidos na escola. Se você tem na sua comunidade escolar um funcionário da limpeza urbana, por que não convidá-lo para relatar suas experiências profissionais, suas opiniões acerca do modo como as pessoas cuidam do lixo na cidade? E uma boa ocasião para falar dos problemas do lixo e da reciclagem! Pode ser que essas pessoas se sintam acanhadas ou não se considerem aptas para falar em público. Que tal ajudá-las a preparar uma palestra ou uma demonstração? Ou convidá-las simplesmente para serem entrevistadas pelos alunos? Não é preciso ser nenhum génio para responder a perguntas relativas àquilo que se faz diariamente, não é? Seria bom, nesse tipo de atividade, salientar a importância de todas as profissões, por menos prestigiadas que sejam na sociedade. Imagine a cidade sem lixeiros, que horror seria! Imagine a sua própria escola sem faxineiros, que terror! Pense na tristeza de um mundo sem manicures e cabeleireiros! O melhor restaurante do mundo não sobrevive quinze minutos sem um batalhão de cozinheiros... O importante é usar métodos persuasivos para atrair os familiares de nossos alunos a essas atividades. Enfatizar que toda experiência pessoal é digna do interesse da escola. Repetir aquela frase velha e verdadeira: "A vida é a melhor escola". Mostrar que a escola é também um lugar privilegiado para troca de informações, para intercâmbios de experiên- Pág.58 cias, e que o trabalho do professor tem um sentido prático, objetivo, válido. Já no século I antes de Cristo o filósofo Sêneca lamentava, com amargura: Non vitae, sed scholae discimus, isto é: "Não aprendemos para a vida, mas para a escola". Que tal contribuirmos para acabar com essa situação deplorável? É claro que isso tudo vai depender muito do tipo de comunidade em que a escola está inserida. Não vamos negar a realidade: sabemos que existem muitas pessoas (normalmente da classe média para cima) que torcerão o nariz diante de uma proposta dessas. Conhecemos muita gente que acha que o dever da escola é entupir os filhos de "conteúdo" para "entrar na faculdade" e ponto final — e existem escolas que se prestam a esse papel deplorável. Eu mesmo já fui visitar escolas onde os administradores não se acanhavam em dizer, com todas as letras: "nosso objetivo é preparar os alunos para o vestibular". Saí de lá agradecendo a Deus por não ser a escola dos meus filhos! Afinal, eu tenho a ilusão de que a função da escola é preparar um cidadão consciente de seus deveres e de seus direitos, apto para levar uma vida digna em uma sociedade! 7.3. Pesquisa permanente Seria muito bom que a atividade de pesquisa não se limitasse aos trabalhos batizados com este nome e empreendidos oficialmente poucas vezes durante o ano letivo. Que tal estimularmos nossos alunos à pesquisa permanente? Peça a seus alunos que tragam, pelo menos uma vez na semana, uma notícia de jornal ou de revista que lhes pareceu interessante, divertida, estranha, absurda, horrível... A notícia pode ser lida e comentada por todos, gerando um bom debate. (Já ouviu falar do livro O jornal na sala de aula, de Pág.59 Maria Alice Faria? Não? Então trate de ler já! É da Editora Contexto, de São Paulo! Nenhum professor pode deixar de conhecer esse manual maravilhoso!) Encoraje-os a falar de alguma coisa que viram na televisão ou ouviram no rádio. Gostaram? Não gostaram? Por quê? Surgiu alguma dúvida? Mostrar que a escola pode (e deve!!!) estar integrada com a vida diária das pessoas. Que tal pedir um relatório informal de um passeio, de uma viagem, de uma visita a um museu, de um espetáculo de teatro, de um filme, de qualquer atividade de lazer ou cultural feita pelo aluno? Pode haver uma boa troca de informações, outros alunos podem se interessar em repetir a experiência do colega. Essas últimas sugestões — dá para perceber — são um estímulo para que os alunos se manifestem em sala de aula, para que tenham voz e opinião própria. Precisamos derrubar esse mito autoritário de que a escola é o repositório exclusivo do saber, de que só ela tem o que transmitir em termos de conhecimento e cultura! Não existe professor, por mais culto e bem informado que seja, que não tenha sempre o que aprender, não é? A verdade não é privilégio de ninguém! Temos que abrir a palavra aos alunos, conscientizá-los de que eles são parte integrante de um todo chamado sociedade, que cada ato e gesto deles influi na vida de todos os demais! Se não fizermos isso desde pequenos, como vamos querer que, mais tarde, eles se conscientizem do significado do voto nas eleições ou da importância de participarem de uma passeata de protesto contra algum tipo de injustiça? 7.4. Sobre o acesso às fontes Imagino que alguns leitores deste livro podem estar pensando: "Este autor fala de computador, Internet, cd-rom e Pág.60 coisas assim como se fosse muito fácil para qualquer professor ter acesso a esses meios!" Eu sei por experiência própria (meus três filhos estudam na rede oficial) que a escola pública brasileira, sobretudo nas regiões mais pobres, enfrenta graves dificuldades materiais. É verdade que muitas escolas particulares já estão integradas aos novos meios de comunicação representados pela expansão da rede mundial de computadores, a Internet. Essas escolas têm suas próprias home pages, onde são exibidos os trabalhos feitos pelos alunos, que podem também entrar em contato com universidades, museus, centros de pesquisa etc. por meio do correio eletrônico. Mas e as escolas públicas? Muitas não têm sequer um único computador... Além disso, sabemos que existem professores que, formados pelos métodos tradicionais de ensino, têm receio de se aventurar pelo mundo da informática. Diante desse universo em vertiginosa expansão, muitos se apavoram e preferem dar as costas às novidades, agarrando-se com toda força às velhas metodologias, aos velhos recursos pedagógicos de quando eles próprios se formaram. Realmente, a mudança aconteceu muito depressa. Mas já é tão profunda, já causou tamanha revolução em tantas áreas da sociedade, que não podemos fechar os olhos e fingir que ela não está aí. Já surgiu até um termo específico para as pessoas que não conhecem os recursos da informática: analfabeto digital. E isso mesmo: hoje em dia, desconhecer esses recursos é uma deficiência tão grave quanto não saber ler e escrever. No caso dos profissionais envolvidos com a educação, o tema ganha proporções ainda maiores. Muitas crianças, no que diz respeito à informática, estão bem à frente de seus professores. Já nasceram num mundo informatizado e o Pág.61 computador não representa nenhum mistério para elas. Computador é o que não falta no banco, no supermercado, na padaria, na farmácia, no cinema, na livraria, no shopping center. Muitos dos aparelhos usados em casa também já incorporaram essa tecnologia, como o telefone, o fax, o videocassete, o forno de microondas e até as máquinas de lavar roupa, sem falar nos tão polémicos videogames. È inadmissível, portanto, que a escola se mantenha alheia a tudo isso. A falta de recursos, certamente, é um problema grave, que nenhum professor sozinho pode resolver. Mas todos os professores juntos, organizados em suas entidades de classe, associações e sindicatos, podem e devem exigir sempre do poder público a atenção devida à educação. É preciso também que os pais e a comunidade em geral se mobilizem nessas exigências. Por que não cobrar, por exemplo, das secretarias de ensino, municipais e estaduais, que criem uma home page na Internet onde as escolas da rede possam estar interligadas, trocando informações, comunicando experiências bem-sucedidas, elaborando projetos conjuntos? Os computadores estão se tornando cada dia mais baratos. O poder público gasta tantos milhões em obras muitas vezes dispensáveis que não há desculpa para que as escolas públicas não tenham pelo menos um computador! Por outro lado, os professores de uma escola, junto com seus alunos, podem tentar se servir dos recursos que estão a seu alcance. Usar o computador pessoal de um aluno ou pai de aluno pode ser uma ideia. A maioria das empresas provedoras da Internet fazem promoções para conquistar novos clientes, oferecendo um período de acesso gratuito, normalmente de um mês. A Encyclopaedia Britannica On-line, que já citei, também oferece sete dias de free trial, isto é, de teste gratuito. Há empresas (por exemplo, fabricantes Pág.62 de refrigerantes) que dão um computador para quem conseguir juntar certo número de embalagens, latas ou selos. Toda uma escola engajada nessa missão não terá dificuldade em cumpri-la! Existem bibliotecas e outras instituições públicas, museus, espaços culturais, universidades, que dispõem de salas de computadores onde o usuário pode consultar a Internet. As livrarias do tipo megastore que estão surgindo nas grandes cidades têm sempre vários terminais que podem ser usados livremente pelos clientes. São chances que devem ser aproveitadas! O importante é mostrar aos alunos que existe na escola uma vontade de acompanhar as transformações que estão se processando do lado de fora da sala de aula e que todos os meios e multimeios oferecidos pelas novas tecnologias também devem ser usados para tornar o aprendizado mais atraente, mais atualizado, mais vivo. Pág.63 Segunda parte O FANTASMA DE PROCUSTO A pesquisa em língua portuguesa Pág.64, em branco Pág.65 8. PESQUISA EM LÍNGUA PORTUGUESA? É curioso, mas aquelas que são consideradas normalmente as duas disciplinas mais importantes — língua portuguesa e matemática — nunca (ou raramente) são objetos de pesquisa na escola. De matemática eu entendo muito pouco, mas acho que estou mais ou menos habilitado a dar meus palpites no ensino de português. O ensino da língua ainda é feito com base em dogmas, preceitos e regras que nada têm de científicos — e esse é o seu maior defeito. Fomos habituados a aprender e a ensinar português como se a língua fosse uma coisa imóvel, pronta, acabada, estática, sem nenhuma possibilidade de mudança, variação, transformação. Essa é a atitude dos gramáticos tradicionalistas, exatamente oposta à dos linguistas, que são os cientistas da linguagem. Para o gramático, o certo é o certo e acabou, ponto final. Tudo o que escapa desse conceito de certo (ou tudo o que escapa da cama de Procusto!) é considerado "errado", "feio", "estropiado", "corrupto", "viciado" etc. E assim se instala um terrível preconceito linguístico na maneira de ensinar português. Para o linguista, ao contrário, o que a gramática tradicional chama de "erro" é um fenômeno que merece ser Pág.66 investigado cientificamente, com métodos rigorosos de análise. Se alguém diz y onde era de se esperar x, é porque existe algum fator que está influenciando essa variação. Esse fator pode ser linguístico, social, étnico, histórico, geográfico, etário etc. O ensino da gramática (e provavelmente também o da matemática) não acompanha os progressos dá ciência da linguagem, o que é simplesmente um absurdo. Do mesmo modo como a química, a física, a astronomia, a biologia, a psicologia, a medicina e outras ciências vão avançando e fazendo novas descobertas a cada dia, a linguística também vai se enriquecendo mais e mais graças ao trabalho de incontáveis cientistas espalhados pelo mundo inteiro. Hoje em dia, por exemplo, ninguém mais ousa dizer, como no século passado, que as moscas nascem da carne podre. A biologia já mostrou que essa noção é falsa. Recentemente, a astronomia descobriu que outros planetas, além de Saturno, também têm anéis, e que as luas de Júpiter são em número maior do que se pensava. Nosso ensino gramatical, porém, se baseia em conceitos e noções formulados centenas de anos atrás e que a ciência linguística já provou serem equivocados, ambíguos, errados mesmo. Não é uma maluquice? Não vou me alongar aqui sobre esse assunto, que é o meu "cavalo de batalha" hoje em dia, e que eu já abordei em outros trabalhos. Se você tiver interesse em se aprofundar mais no tema do preconceito linguístico, pode ler o meu livro A língua, de Eulália (Editora Contexto). 8.1. Pesquisa, sim, em língua portuguesa O que vou propor agora são algumas idéias para tentar soprar um pouco de ar fresco no ensino de português. Nada Pág.67 radical demais, nada profundo demais. Atividades simples e até gostosas para a escola de 1° grau. Um dos fundamentos da boa ciência é investigar as regras e leis que provocam os fenômenos naturais, que fazem as coisas acontecerem. Só que no ensino da gramática, em vez de investigarmos as regras e as leis, nós simplesmente as entregamos prontas e acabadas para os alunos, que são obrigados a decorá-las, sem terem percebido de modo mais palpável por que as coisas funcionam daquele jeito. Você já tentou ensinar o fenômeno da crase e já viu como isso dá dor de cabeça, não é? Eu gostaria de lhe propor uma atividade diferente das tradicionais para ver se funciona. Faça o teste e depois me diga o que aconteceu (escreva para as Edições Loyola ou mande-me uma mensagem eletrônica: marbag@hotmail.com). Ao invés de listar aquele monte de regras para depois mandar os alunos preencherem buracos em frases soltas e descontextualizadas, vamos agir exatamente ao contrário. Vamos dar textos completos e bem escritos para deles extrairmos as regras de funcionamento. Esta é a atitude do cientista. Um zoólogo, por exemplo, não vai estudar uma determinada espécie de animal esperando, de antemão, que ela se comporte assim ou assado. Ele vai observar o comportamento do animal, tomar nota de tudo o que lhe parecer importante para depois poder afirmar, com base em sua pesquisa: "Esta espécie se alimenta disso e daquilo, vive nos ambientes tais e tais, acasala-se tantas vezes por ano, nos meses x e y'' e assim por diante. Essa mesma atitude científica, de observação e dedução, pode ser aplicada ao estudo da língua. Vamos experimentar? Pág.68 8.2. O que é crase, afinal? Primeiramente, meu caro professor, vamos definir o nosso problema, em termos científicos, por favor. As pessoas no dia-a-dia costumam falar de "crase" como se ela fosse um "acento" gráfico: "Esse a aqui leva crase?" "Tem crase nesse caso?" e coisas assim. Mas nós somos especialistas e temos que agir com mais rigor, não é? Crase, para começo de conversa, é uma palavra grega que significa "mistura". Este termo é usado para designar um fenômeno fonético: a fusão de duas vogais iguais numa só. Na formação da língua portuguesa aconteceu crase a dar com o pau. Se você fez Letras, deve se lembrar de suas aulas de gramática histórica, quando o professor mostrou, por exemplo, a origem da palavra pé: pede- > pé e > pé Primeiro, houve a queda do -d- intervocálico, característica da língua portuguesa, que eliminou as chamadas consoantes dentais (d, l, n] quando vinham entre vogais. Por isso o latim tuna deu lua em português, e o verbo volare deu o nosso voar. Em seguida, as duas vogais ee se "misturaram" (isto é, sofreram crase) e se transformaram numa só. Esse é um exemplo de crase histórica, isto é, de uma crase que aconteceu no passado da língua. Mas o fenômeno continua atuando na língua de hoje. Quando as pessoas pronunciam alcólico a palavra escrita alcoólico, estão fazendo a crase dos dois oo. Os nordestinos da zona rural chamam de catinga aquela vegetação que, nos livros, aparece descrita como CAATINGA. E existe, é claro, a mais famosa das crases: a crase do a. A origem dessa crase é bem conhecida. Temos a preposição Pág.69 a que se encontra com o artigo definido feminino a. Quando acontece este encontro, o fenômeno fonético da crase faz com que pronunciemos os dois (ia como um só. Para indicar esse fenômeno na escrita, ficou definido que usaríamos o acento grave: à. O acento deixa claro que ali houve um fenômeno de crase, e que aquele a não é o artigo definido nem a preposição, mas uma "mistura" dos dois (uma "contração", como dizem as gramáticas). Na teoria, não fica tão difícil, não é? Mas na prática... 8.3. A crase no português do Brasil: explicações velhas e novas A visão tradicionalista do ensino gramatical perguntaria: "Por que o brasileiro erra tanto na hora de usar o acento grave indicador de crase?" E lá viriam aquelas respostas cheias de preconceito: porque "brasileiro é burro", porque "a gente não sabe português", porque "português é muito difícil"... Já o cientista da linguagem formularia a questão de outra maneira: "Notamos que as pessoas no Brasil, em geral, têm dificuldade para representar a crase na escrita. O que estará causando essa dificuldade?" É claro que "burrice", "subdesenvolvimento" e "atraso mental" do nosso povo não são respostas científicas. Muito menos a bobagem de que "português é muito difícil" (nenhuma língua é difícil para seus falantes nativos)... 8.3.1. Uma preposição em desuso Pesquisando, a gente descobre algumas respostas. Por exemplo, a preposição a, na fala diária informal de boa parte Pág.70 dos brasileiros, está caindo em desuso. (Digo boa parte porque sei, por exemplo, que em Pernambuco, onde morei, ainda se usa bastante essa preposição). Com os verbos dizer, falar, dar, entregar, telefonar, responder, escrever, pedir e muitos outros — que na língua literária clássica usavam a preposição a — nós estamos usando com muito mais frequência a preposição para. Em vez de dizer "Eu dei o livro ao Pedro" dizemos "Eu dei o livro pró Pedro". Com os verbos de direção do tipo ir, vir e chegar é muito mais frequente o uso da preposição em (e suas combinações) do que da preposição a. "Eu vou no cinema", "Você já tinha vindo nesta loja?", "Ela chegou em São Paulo ontem" são formas perfeitamente normais do uso diário do português do Brasil. "Quando chego em casa nada me consola", já cantava Caetano Veloso. Embora os gramáticos tradicionalistas fiquem de cabelo em pé e queiram morder a parede de raiva, até mesmo os grandes poetas e escritores brasileiros deste século já incorporaram essas construções na linguagem literária. (E claro que entre eles eu incluo o Caetano!) Por isso, aquela explicação que a gente dava para orientar os alunos sobre o fenômeno da crase — prestar atenção nos verbos que "pedem" a preposição a — não funciona mais muito bem, pois a preposição a já está se tornando um "corpo estranho" na língua falada dos brasileiros. 8.3.2. Dois sons lá, um só aqui Outra explicação que se combina com essa para responder à pergunta do linguista pesquisador está no campo da fonética, isto é, dos sons da língua. No português falado em Portugal existem dois sons vogais bem diferentes representados pela letra a. Pág.71 Um deles, que a gente vai representar aqui pelo símbolo /a/, é exclusivo do português falado por lá e não faz parte dos sons da língua portuguesa do Brasil. É um "a" fechado e átono. Na boca de portugueses, esse som está presente na preposição a e no artigo feminino singular a. Quando acontece a crase, aparece o segundo som vogal, que vamos representar como /a/, que é o "a" aberto e tónico, que nós conhecemos bem e que aparece na palavra fubá. Por isso os portugueses não têm dificuldades em representar, na escrita, o fenômeno da crase. O "a craseado" tem um som diferente do "a não craseado". Eles ouvem dois sons, por isso sabem onde vão colocar o acento! Um português pronuncia diferentemente o A nas frases: "Vi a casa" e "Vou À casa do João". Ora, isso não acontece entre nós, no Brasil, porque a nossa língua não tem esse outro "a" fechado tão diferente do "a" aberto. Nenhum brasileiro confunde, por exemplo, avô e avó ou pê e pé, porque nós temos esse jogo entre vogal fechada e vogal aberta no caso do o e do h. Mas nosso ouvido não reconhece dois sons em "a Bahia" e "à Bahia". 8.3.3. Então para que ensinar? Se na língua que falamos diariamente não usamos mais a preposição a e, mesmo que a usássemos, não ouviríamos a diferença entre o a simples e o a "misturado", será que é inútil ensinar crase no Brasil? Claro que não! Só precisamos tomar consciência de que a crase é importante, sim, mas num único contexto de uso da língua, que é o da língua, escrita formal. Precisamos ensinar nossos alunos a acentuar correta-mente o "a craseado" para que possam ser capazes de escrever bons textos. Pág.72 O acento indicador da crase torna o texto escrito mais preciso, evita ambigüidades de interpretação: "mencionei a aluna" é diferente de "mencionei à aluna". Aliás, acredito que foi exatamente para evitar esse tipo de ambigüidade que a língua falada passou a recorrer mais à preposição para, que não tem como ser confundida com o artigo definido. Viu só como a investigação científica é muito mais interessante do que as velhas rabugices dos gramáticos herdeiros de Procusto, que só sabem pensar em termos de certo ou erradó? Felix qui potuit rerum cognoscere causas ("Feliz de quem pôde conhecer as causas das coisas"), cantava o poeta Virgílio. 8.4. Uma sugestão para pesquisar a crase Como faremos, então, para que nossos alunos descubram as regras que governam o uso do acento indicador da crase? Já sabemos que despejar aquela lista de explicações e exemplos não adianta nada. As explicações são confusas porque não se baseiam na realidade da língua falada pelos brasileiros e ainda se servem de teorias ultrapassadas. Os exemplos são mal escolhidos porque não representam essa mesma língua falada, além de misturar língua falada com língua escrita: "Vou à casa do Pedro" ou "Maria saiu às compras" são exemplos infelizes e pouco didáticos simplesmente porque ninguém no Brasil fala assim! Minha sugestão é a seguinte. Sabe aquele livro que você mandou os alunos lerem para depois fazerem algum trabalho com eles? Isso mesmo, aquele livro "paradidático" que você (espero que tenha sido você!!!) escolheu para eles lerem. Eu chamo esses livros simplesmente de literatura e tenho embrulhos no estômago quando alguém diz que sou Pág.73 autor de livros "paradidáticos" (esse nome me faz pensar logo em doença!). Que tal pegar esse mesmo livro como material para a nossa pesquisa sobre a crase? Depois que os alunos já o tiverem lido pelo simples prazer de ler uma história interessante e bem escrita (assim espero/), você pode pedir a eles que leiam o livro todo novamente como uma pesquisa de língua portuguesa. O comando é simplíssimo: "Assinalem ao longo do texto todas as ocorrências de à e às". Isso pode ser feito em grupo, na sala de aula, em casa, junto com o professor, como lhe parecer melhor. O importante é que o texto seja longo o bastante para que apareçam muitas ocorrências do "a craseado". Peça aos alunos para recolherem todas essas ocorrências numa folha de papel, por ordem de aparição no texto. Lembre-se sempre de dizer a eles para colocar a ocorrência entre aspas, seguida do número da página entre parênteses, para facilitar à localização. ATENÇÃO: É importantíssimo que se recolha não só o "a craseado", mas também o contexto em que ele aparece. Para isso, diga a eles para copiarem tudo o que está entre o ponto final imediatamente anterior e o ponto final imediatamente seguinte. Por exemplo, não copiar apenas "à janela" (p. 15), mas sim "Valentina apareceu à janela e sorriu para nós" (p. 15) Pág,74 Por que isso? Porque queremos levar os alunos a deduzir as regras de uso do acento indicador da crase, e para isso é importante ver o contexto sintático maior em que este uso vai ocorrer. Terminada a lista com todas as ocorrências, você pode começar a agir como o velho e bom Sócrates, aquele filósofo grego que, por meio de perguntas, ia levando seus discípulos a encontrar as respostas adequadas às suas inquietações filosóficas. (Sócrates queria "arrancar" a verdade de dentro de seus discípulos, por isso seu método é chamado maiêutica, "a arte do parto".) A primeira pergunta que você pode fazer é: Observem na lista todas as palavras que vêm logo depois de à/às. O que elas têm em comum? Espere as respostas. Quando alguém disser: "são todas palavras femininas", você levanta o polegar e diz: "É isso aí". E continua: "Já descobrimos então a regra de ouro do uso do acento indicador de crase". Vai até a lousa e escreve: Usa-se à e às exclusivamente diante de palavras FEMININAS (Observe que escrevi femininas em caixa alta, negrito e sublinhado, para chamar a atenção o máximo possível.) Essa regra simples e clara já resolve uma porção imensa das dúvidas sobre o uso ou não do acento indicador de crase. Procure fixá-la bem para seus alunos, insistindo na ausência total e absoluta de palavras masculinas depois de à/às. Inverte uma rima, uma musiquinha, qualquer processo mnemônico que os ajude a se lembrar disso. Pág.75 Em seguida, procure ver com os alunos quais são os verbos que estão sendo regidos naquele texto pela preposição a. Peça a opinião deles: "Por que se usa à/às depois desses verbos?" Ouça o que eles têm a dizer. Explique que, na língua falada, a gente dá preferência a outras preposições, como para ou em, e que não há nenhum problema nisso, mas que na língua escrita formal — como num texto literário, científico ou jornalístico — é necessário conhecer bem os verbos que são regidos pela preposição a. Escolha alguns exemplos dentre os recolhidos pelos alunos em que a não acentuação do à poderia gerar ambiguidade: "apareceu a janela" versus "apareceu à janela"; "chegou a noite", "chegou à noite" etc. É provável que haja no texto referência às horas do dia. Mostre aos alunos que o a sempre é acentuado quando vamos designar as horas: "Cheguei à uma da tarde", "Jantaram às onze e meia", "O avião partiu às dezenove horas". Nas locuções adverbiais com palavras femininas no plural, o às é sempre acentuado: às vezes,, às pressas, às custas de às avessas, às cegas. Na língua escrita mais comum de hoje, sobrevivem poucas dessas expressões, embora nossa língua literária mais requintada tenha um repertório infinito e delicioso delas ("às escâncaras", "às bandeiras despregadas", "às expensas de", "às chusmas", "às boas", "às favas" etc.). Dificilmente, num livro destinado à faixa etária que nos interessa, aparecerão locuções tão rebuscadas. 8.4.1. Não seja um mágico amador: evite os truques que não funcionam! Evite cair no velho hábito de mostrar quando não se usa o acento indicador de crase. É melhor, mais fácil e mais Pág.76 útil mostrar os usos do que os não usos. Outra observação que me parece importante: evite recorrer àquele tradicional "macete" ou "truque" para saber se o a é acentuado ou não. Qual macete? "Se no masculino aparecer ao então no feminino será à craseado". Por que evitá-lo? Primeiramente, porque dar "macetes" não contribui em nada com o nosso propósito de investigar (de pesquisar) as regras de funcionamento da língua. Segundamente, esse "macete" nem sempre funciona e, o que é pior, ele pode acabar confundindo o aluno. Vamos ver quando o "truque" apresenta falhas? Nas locuções adverbiais em que aparecem palavras no feminino singular a substituição por uma palavra masculina não vai provocar de modo sistemático o aparecimento da forma combinada ao. Isso porque nessas locuções a preposição a ganha um acento grave apenas para evitar ambiguidades de interpretação do significado da frase. Veja o seguinte exemplo: (1) Não sou muito hábil para desenhar à mão. Se substituirmos mão por lápis, teremos: (2) Não sou muito hábil para desenhar a lápis. Veja que não podemos dizer: "Não sou muito hábil para desenhar ao lápis"! Viu como aqui o truque não funciona? No entanto, se na frase (1) apagarmos o acento grave em à mão, estaremos falando de alguém que tem habilidades para desenhar outras partes do corpo, mas não para "desenhar a mão". O que a história da língua nos conta é que em situações desse tipo o acento grave é apenas uma marca diferencial, uma mera indicação gráfica para que, na escrita, não haja equívoco de interpretação do significado. Pág.77 Observe estes outros conjuntos de locuções adverbiais em que a substituição da palavra feminina por uma masculina não faz surgir a forma ao, mas onde a eliminação do acento grave acarretaria ambiguidade: Cortar à navalha/Cortar a facão Cozinhar à lenha/Cozinhar a gás/Cozinhar a vapor Comprar à vista/Comprar a prazo Matar à faca/Matar a tiro Trancar à chave/Trancar a cadeado Essa é a razão da minha campanha contra "truques" e "macetes", que fazem tanto sucesso nos cursinhos de preparação para o vestibular, onde brilha certo tipo de professor que acaba ganhando fama de astro pop! Essa prática de ensino tem como meta exclusiva fazer o aluno passar no vestibular, e não torná-lo um bom usuário da língua escrita e falada em sua modalidade mais culta. Eu não me acanho em dizer que o vestibular é uma das instituições mais perniciosas, mais medonhas e mais injustas que existem no Brasil! Daí você já pode deduzir qual é minha opinião acerca daqueles que transformaram o vestibular em meio de vida e fonte de lucro! Ultima sugestão: deixe para mais tarde também, lá pelo final do 2° grau, aqueles casos em que aparece "a craseado” diante de palavra masculina, subentendendo-se a palavra moda: "escrever à Machado de Assis", "sapatos à Luís XV" (são sempre os mesmos exemplos, meu Deus!). Quase ninguém mais escreve assim hoje! Quando muito, ele aparece em cardápios de restaurantes muito requintados, desses que cobram oitenta reais por uma canja de galinha "á Fulano de Tal”! Esse uso é um arcaísmo que está em vias de extinção. Eu consultei, por exemplo, o cd-rom que contém todas as 365 edições do jornal Folha de S. Paulo do ano de 1997 e não Pág.78 apareceu um só caso desses! Para que, então, confundir nossos alunos com esses dinossauros linguísticos? 8.5. Muito além da frase O mesmo procedimento que aplicamos à questão da crase pode ser aplicado a outros aspectos do ensino da gramática na escola. O velho ensino dos sinônimos, por exemplo, precisa urgentemente ser modificado. Podemos aplicar a ele o mesmo método que aplicamos à questão da crase. Ao invés de darmos aquela lista bolorenta com os mesmos sinonimos ("feliz, alegre, contente"), e depois pedir que os alunos substituam uma palavra pela outra em frases descon-textualizadas e sem vida própria, vamos pesquisar em um texto de verdade os sinônimos que o autor utilizou para dar coesão e coerência àquilo que escreveu. Você vai se surpreender com as descobertas possíveis. É preciso ampliar a nossa visão do fenômeno da língua. Estamos viciados em parar a nossa análise na frase. Ora, a língua não se organiza em frases! Ela se organiza em textos, e o estudo de um texto exige ferramentas bem mais interessantes e sofisticadas que as classificações da velha gramática tradicional. Aliás, existe todo um ramo vivo e dinâmico da ciência linguística que se chama justamente linguística textual. Quer saber o que é? Experimente ler fávero, l. l. & koch, i. g. v., Linguística textual: introdução (São Paulo, Cortez, 1988), além dos diversos livros da Profª Ingedore Koch sobre o tema publicados pela Editora Contexto. 8.6. Língua falada e língua escrita: é preciso saber separar Algumas noções, contudo, têm que estar bem claras para o professor antes de empreender essas pesquisas. Pág.79 A mais importante delas é que a língua escrita e a língua falada são dois universos muito complexos de uso da língua, cada um deles com suas próprias características, regras de funcionamento, funções. Existem coisas que só acontecem na escrita, outras que só ocorrem na fala. Procure investigar, por exemplo, os tempos verbais que estamos acostumados a ensinar na escola. Alguns deles (como o mais-que-perfeito simples e o futuro do indicativo) aparecem quase exclusivamente na língua escrita. Duvida? Apure seus ouvidos: tente contar quantas vezes por dia você ouve alguém dizer "Quando ele chegou, eu já saíra" ou "Pedro e Paula se casarão mês que vem"... E o imperativo de nós? "Fiquemos por aqui", "Entremos no carro", "Falemos baixo" — são formas que a gente nunca ouve na língua do dia-a--dia. A língua falada prefere dizer: "Vamos ficar por aqui", "Vamos entrar no carro", "Vamos falar mais baixo", não é? Os possessivos também têm uma distribuição bastante interessante no que diz respeito à língua falada e à língua escrita. Na fala, o possessivo seu/sua é usado exclusivamente com referência a você. Com referência a ele/ela usamos, na fala, exclusivamente dele/dela. Na escrita, porém, a coisa é diferente: seu/sua pode muito bem referir-se a ele/ela ou eles/elas, e também a você/vocês. Se eu pergunto: "Você e Pedro vieram no seu carro?", é óbvio que estou me referindo ao carro que pertence a você. Se quisesse falar do carro de Pedro, eu perguntaria: "Você e Pedro vieram no carro dele!" Quando, porém, leio um texto escrito que começa: "Quando Pedro entrou em seu carro começou a chover" é óbvio que o carro é de Pedro. Agora procure ver se alguma gramática normativa trata dessas coisas. Nem em sonho! Para elas a língua falada é uma verdadeira obscenidade! Desde antes de Cristo o ensino gramatical tem insistido exclusivamente na língua escrita, como Pág.80 se ela fosse a única modalidade de uso da língua digna de ser estudada e analisada. Isso é a pré-história da linguística, mas infelizmente o nosso ensino ainda está nessa fase! Se você quiser se sintonizar com os avanços da ciência da linguagem nesse campo, procure ler, por exemplo, O espaço da oralidade na sala de aula, de Jânia Ramos (Editora Martins Fontes), e A língua falada no ensino de português, de Ataliba Castilho (Editora Contexto). Você vai se surpreender com o que é, realmente, a riqueza da língua falada! 8.7. Quem não sabe português? Outra ideia pré-histórica que continua vagando por aí feito um fantasma que se recusa a ir para o inferno é a de que "português é muito difícil". Bobagem! Falácia! Mentira! Difícil é aprender (ou antes, decorar) todas aquelas coisas perfeitamente inúteis e irrelevantes, que sempre nortearam o ensino da língua no nosso país (e não só da língua!). Para que saber que o coletivo de camelo é cáfila? Quando na vida você já teve ocasião de usar isso? A análise sintática, do jeito que é ensinada, servirá mesmo para alguma coisa? Para que despejar tanta nomenclatura (aliás, pouco clara até para os próprios linguistas) na cabeça de crianças que poderiam usar sua criatividade e memória para descobrir coisas muito mais interessantes na língua que falam? A noção absurda de que "português é difícil" é irmã gêmea de outra bobagem que tanto brasileiro inteligente vive repetindo: "Eu não sei português". A pessoa que consegue produzir a frase "Eu não sei português" está mentindo, pois se não soubesse "português" não teria conseguido pronunciá-la. O que ela não sabe nem consegue aprender é o caótico conjunto de regras, definições, conceitos e fórmulas que compõem o ensino tradicional da gramática e que, ao fim e ao cabo, mesmo para os poucos iluminados que conseguem aprendê-los, não têm utilidade nenhuma. Pág.81 Afinal, para ser um bom motorista ninguém precisa saber o nome e a função de cada peça do carro, não é? Ora, um dos melhores "motoristas" da língua foi, sem dúvida, Rubem Braga, e ele não hesitou em emitir o seu protesto contra o ensino do inútil e do irrelevante na gostosa crónica "Nascer no Cairo, ser fêmea de cupim": "Por que fazer do estudo da língua portuguesa uma série de alçapões e adivinhas? No fundo o que esse tipo de gramático deseja é tornar a língua portuguesa odiosa; não alguma coisa através da qual as pessoas se entendam, mas um instrumento de suplício e de opressão que ele, gramático, aplica sobre nós, os ignaros". Por essas e por outras é que meu livro Dramática da língua portuguesa mostra o que é válido e o que é irrelevante no ensino de português. Mas, agora falando sério, o que nós, professores, poderíamos fazer para reverter essa situação? O primeiro passo é simples. É um apelo que faço sempre aos professores quando tenho a oportunidade de falar em público. Peço a eles que no primeiro dia de aula digam o seguinte a seus alunos: "Tenho uma boa notícia para dar: vocês sabem português!" Parece piada, mas não é. O preconceito linguístico está tão arraigado no nosso modo tradicional de ensinar que entramos em sala de aula imbuídos da certeza de que nossa missão é dar aos alunos algo que eles não têm. Ora, a ciência linguística já provou há muito tempo que qualquer criança entre quatro e cinco anos já domina perfeitamente as regras de funcionamento de sua língua. Nós, porém, desprezamos todo o conhecimento prévio, intuitivo e natural dos nossos alunos, imaginando que a cabecinha deles é uma página em branco (ou uma tabula rasa, como Pág.82 se dizia antigamente) onde nós vamos escrever ou inscrever o conhecimento da língua materna. Não é nada disso. Se fosse assim, os analfabetos não seriam capazes de falar, de exprimir suas idéias, de manifestar seus pensamentos nem de se fazer entender. O mesmo aconteceria com civilizações inteiras que nunca tiveram uma instituição semelhante à escola, mas que conservaram durante milênios uma vasta literatura oral, um amplo repertório de lendas, mitos, hinos e cânticos, toda uma arte e uma religião, além de um grande arsenal de conhecimento sobre o homem e a natureza. (Posso citar como exemplo o povo maia, da América Central, que desenvolveu um sofisticado sistema de cálculo astronômico mas que nunca elaborou uma forma de escrita.) Este é o primeiro passo, então, dar a boa notícia aos alunos de que eles já sabem português, não tanto para eles se conscientizarem disso, mas para que nós, professores, não nos esqueçamos dessa verdade simples. O que nós vamos fazer é desenvolver esse conhecimento prévio, ampliar a visão do aluno sobre as infinitas possibilidades de uso do idioma, despertar seu interesse pela aquisição de recursos que lhe permitam fazer um uso adequado e aceitável da língua nas mais diversas situações e contextos. 8.8. Basta uma sílaba O segundo passo é uma simples troca de sílaba. Em vez de reFLEtir alguma coisa, nós devemos reFLEtir sobre ela. A gramática tradicional, que vem norteando o ensino da língua há quase dois mil anos, não é uma ciência: é uma doutrina. Como toda doutrina, ela tem os seus dogmas, que devem ser aceitos sem contestação e transmitidos intactos às gerações futuras. Pág.83 A nomenclatura gramatical, por exemplo, que usamos até hoje — sujeito, objeto, advérbio, subjuntivo, pretérito, antônimo, preposição, artigo etc. — é a mesma proposta pelos gregos antes de Cristo. O que o ensino gramatical faz, então, é repetir esses mesmos termos, conceitos e definições, sem submetê-los a uma análise profunda. A atitude oposta é a atitude investigativa, reflexiva e crítica da ciência. Em vez de se contentar em receber um pacote pronto e passá-lo adiante, o cientista da linguagem abre esse pacote e vai ver o que tem lá dentro, por que aquelas coisas estão reunidas daquele jeito, para que elas servem realmente, para quem elas podem de fato ser úteis, se elas deviam mesmo estar ali, se o nome que elas recebem é adequado etc. etc. Por exemplo, todas as gramáticas dizem que o sujeito da frase "Não se faz mais filmes como antigamente" é "filmes" e que por isso o verbo tem de estar no plural: "Não se fazem mais filmes como antigamente". Ora, se eu sair de gravador em punho e registrar a fala normal e espontânea de pessoas cultas, vou poder verificar, na prática, que a grande maioria dessas pessoas desrespeita esse dogma e diz tranquilamente: "Não se faz mais filmes como antigamente", "Vende-se casas", "Aluga-se salas comerciais", "Não se respeita os direitos dos cidadãos humildes" etc. O que devo fazer? Condenar à fogueira da reprovação todas essas pessoas? Dar nota zero para todas? Não. Eu vou refletir sobre o fenômeno e tentar ver o que está acontecendo. Se chego a uma estatística de 90% de verbos no singular contra apenas 10% de verbos no plural, só posso achar que o problema está no dogma e não em quem não o respeita. Então eu começo a pensar. No caso de "vende-se casas", por exemplo. O verbo vender só pode ser praticado por seres humanos. Pág.84 Portanto, as casas não podem se vender a si mesmas. Logo, casas não é o sujeito. Além disso, é normal o verbo vender vir acompanhado de um complemento, de um objeto direto, isto é, da coisa que é vendida. Na frase "Vende-se casas" é mais do que claro que o que está à venda são casas. Ah, é assim então que o falante da língua portuguesa do Brasil intuitivamente analisa esta frase: "Alguém vende casas", sendo que este "alguém" indefinido está representado pela partícula "se", que é um índice de indeterminação de sujeito. Por isso o verbo está corretamente no singular: "vende-se casas". A reflexão pode se. levada ainda mais adiante, mas não vou fazer isso aqui agora. Quem tiver interesse pode ler o capítulo "Aceita-se roupas novas" do meu livro Á Língua de Eulália, que aborda detalhadamente todo esse problema das frases em que aparece a partícula "se". E esta reflexão também se encontra formulada em obras de grandes filólogos e gramáticos brasileiros da primeira metade do século como Antenor Nascentes, Manuel Said Ali e Mattoso Câmara, embora seja sistematicamente desprezada pelos autores contemporâneos de gramáticas normativas e livros didáticos, pelos redatores de programas de televisão e de rádio e de colunas de jornal e revista sobre língua portuguesa, que querem ser mais realistas que o rei. 8.9. Vamos nos preparar melhor! Muitas pessoas dirão que para fazer esse tipo de reflexão crítica da gramática tradicional é necessária uma formação específica, uma preparação rigorosa dentro da ciência da linguagem. E eu digo: é necessária sim! A formação dos nossos professores de língua portuguesa precisa começar a ser feita de outro modo, sem recorrer tão desesperadamente à gramática tradicional como única tábua de salvação. Pág.85 Por exemplo, qualquer pessoa pode tirar excelente proveito com a leitura dos seguintes livros: bechara, Evanildo. Ensino da gramática. Opressão? Liberdade? São Paulo, Ática, 1986. gnerre, Maurizzio. Linguagem, escrita e poder. São Paulo, Martins Fontes, 1985. ilari, Rodolfo. A linguística e o ensino da língua portuguesa. São Paulo, Martins Fontes, 1986. mattos e silva, Rosa Virgínia. Contradições no ensino de português. São Paulo, Contexto, 1997. neves, Maria Helena Moura. Gramática na escola. São Paulo, Contexto, 1990. perini, Mário A. Sofrendo a gramática. São Paulo, Ática, 1997. possenti, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas, Mercado de Letras, 1997. soares, Magda. Linguagem e escola. Uma perspectiva social. 10a ed., São Paulo, Ática, 1993. São livros pequenos, escritos em linguagem simples e bem acessível, mas que abordam assuntos importantíssimos para a crítica e a renovação das práticas tradicionais do ensino da língua. Essas e algumas outras leituras serão muito mais úteis para você, professor, do que esse monte de "manuais de redação do jornal X” ou livros do tipo "Não erre mais!" que andam por aí, além dessa infinidade de programas de rádio, televisão e colunas de jornal que dão "dicas" de português "certo". Com que autoridade essas pessoas querem ditar as normas do "bem falar"? Aliás, seria interessante fazer um rápido levantamento do curriculum científico das pessoas que estão transformando Pág.86 o que elas chamam de "português" (ou pior, "nossa" língua portuguesa) num produto de consumo que tira proveito da fictícia "dificuldade" da língua ou, pior, da "ignorância do brasileiro", mitos e preconceitos tão arraigados na nossa cultura. A maioria delas têm apenas o diploma de Letras: não fizeram mestrado nem doutorado (ou seja, não empreenderam uma pesquisa científica rigorosa), nunca publicaram artigos ou livros sintonizados com as mais recentes tendências científicas no campo da linguagem, nunca participaram de nenhum projeto de pesquisa, nunca dirigiram nenhum grupo de investigação científica da língua viva. São meros repetidores da velha doutrina gramatical. Fechadas em seus escritórios, limitam-se a copiar e copiar indefinidamente os mesmos exemplos dados pelos seus antecessores das décadas e dos séculos passados. Por isso seus trabalhos são tão preconceituosos. 8.10. Uma questão de direitos humanos O que estou querendo dizer é que, para mim, o problema do ensino da língua tem muito a ver com a questão da cidadania e dos direitos humanos de que tanto se fala hoje em dia. Para mim, é um verdadeiro atentado aos direitos do cidadão e da pessoa humana dizer que são formas erradas "eu vi ele chegar" ou "aluga-se casas" ou "me dá um tempo" ou "eu vou no cinema" ou "assisti o filme". A pessoa que passa um traço de caneta vermelha sobre essas manifestações linguísticas, ou que reprova num exame ou num comcurso quem se expressa dessa maneira, está na minha opinião violando os direitos humanos. É uma reencarnação de Procusto. Afinal, é assim que se expressam cento e tantos milhões de brasileiros, de todas as classes sociais. Pág.87 Condenar essas formas de uso da língua — que já foram inclusive consagradas pelo uso literário dos escritores deste século — é o mesmo que recusar um emprego a uma pessoa porque é negra, ou não querer pagar um salário decente a uma pessoa porque é mulher, ou achar certo uma pessoa ser espancada porque é homossexual, ou considerar uma pessoa merecedora de deboche e zombaria porque é nordestina, como acontece nas novelas da televisão, onde todo personagem nordestino é fatalmente uma caricatura grotesca. São todos preconceitos cuja origem é a necessidade que as elites têm de se manter no poder político, econômico e cultural. Encorajar um preconceito — que é fruto da ignorância — é um dos muitos instrumentos que as elites empregam para se apropriar dos bens públicos e da riqueza coletiva, mantendo cada vez mais à margem as amplas camadas já tão marginalizadas da população. Você acha que é exagero? Então me dê outra explicação para os seguintes paradoxos: o Brasil tem a oitava economia do mundo, o maior parque industrial do hemisfério sul, produz e exporta tecnologia de ponta, mas ao mesmo tempo possui um dos piores sistemas educacionais do planeta, perdendo feio até mesmo para países muito mais pobres, como os da África. Ocupamos também um triste lugar entre os países com maior número de analfabetos, além de termos a segunda pior distribuição de renda do mundo, ficando atrás somente de Botswana, um país desértico da África, bem menor e bem mais pobre que o Brasil. Em termos de investimento social a coisa também é feia para o nosso lado: nenhum outro país grande da América Latina investe tão pouco em habitação popular, educação, saúde e transporte público. Existem cinco milhões de famílias de camponeses sem-terra vagando por este país gigantesco, onde o que não falta é terra, e passando fome numa nação que exporta alimentos! Pág.88 São estatísticas publicadas pela ONU, pela unesco, pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, e que só vêm comprovar uma triste realidade: no Brasil, desde 1500, o poder sempre existiu para apoiar e favorecer as classes privilegiadas. O Estado brasileiro é refém da minoria rica, que dá as cartas em todas as áreas sociais importantes. Aqui temos uma ínfima parcela que vive em padrões melhores que os do Primeiro Mundo, enquanto uma imensa maioria sofre miséria pior que a de alguns dos países mais pobres do planeta. Estudando a história do nosso poder legislativo vemos a dificuldade que sempre houve e ainda há para se arrancar dele uma lei que facilite a vida das amplas camadas desfavorecidas da população. Fica bem mais fácil entender, assim, a situação da escola pública brasileira, entregue à mesma sorte infeliz de outros serviços fundamentais que é dever do Estado oferecer a seus cidadãos, de quem ele cobra tanto e a quem oferece tão pouco. Pág.89 ANEXOS Pág.90 em branco Pág.91 Fonte 1: enciclopédia mirador internacional, vol. 14. São Paulo, Encyclopaedia Britannica do Brasil, 1987. MONTEIRO LOBATO 1. Vida. Escritor brasileiro, José Bento Monteiro Lobato nasceu em Taubaté, SP, a 18 de abril de 1882 e morreu em São Paulo, SP, a 3 de julho de 1948. Foi viver no interior de seu Estado até 1917. No ano seguinte comprou a Revista do Brasil e publicou Urupês, seu primeiro livro, fundando a Editora Monteiro Lobato. Suas obras para crianças começam a aparecer em 1921, com A Menina do narizinho arrebitado (mais tarde Reinações de Narizinho). A Semana de Arte Moderna (1922) encontra no escritor um adversário, que considera o movimento modernista "mais um estrangeirismo" e "paranóico". 2. A Editora Monteiro Lobato faliu em 1925, sendo substituída pela Companhia Editora Nacional. Adido comercial do Brasil em New York (1927-1931), Monteiro Lobato volta preocupado com o subdesenvolvimento brasileiro, Pág.92 passando a incentivar as campanhas do petróleo e do ferro. Em 1931 funda a Cia. Petróleo do Brasil. Uma carta que escreve a Getúlio Vargas, criticando a política brasileira do petróleo, leva-o à prisão e a julgamento pelo Tribunal de Segurança Nacional, que o condena (1941) a seis meses de cárcere, de que cumpre três. 3. Caracterização. Na personalidade de Monteiro Lobato, do contista de Urupês ao defensor insubornável dos interesses nacionais, pioneiro na luta pelo petróleo, valorizam-se sobretudo o ficcionista que descobriu a realidade do interior brasileiro — contraposta a uma civilização litorânea de fachada — e o admirável autor de histórias para crianças, verdadeiro criador do gênero na literatura brasileira. 4. Dono de um estilo saboroso, vernáculo entremeado de bom humor e colorido caipira, o contista é, também, muito apreciado nos E.U.A., especialmente pela tradução norte-americana de "O comprador de fazendas". O Lobato das histórias infantis tem sido paixão e alegria de muitas gerações de crianças brasileiras, particularmente por ser um hábil inventor de tipos, alguns dos quais, como Emília, vão ao encontro da semente de crítica e irreverência que já se excita na alma dos adolescentes. 5. Personagens como Dona Benta, Tia Anastácia, o Marquês de Rábico (um leitão), o Visconde de Sabugosa (um sabugo de milho) traduzem para o mundo das crianças a visão irónica e brincalhona de uma sociedade que deita raízes no patriarcalismo de base colonial e ainda evoca as frustradas ambições de um império melancólico. É significativa a omissão da figura de um senhor Pág.93 ou patriarca no sítio do Pica-pau Amarelo, centralizando-se em Dona Benta o papel social daquele. No brinquedo, a crítica; na crítica, a idealização, a utopia. 6.Obras. Para os adultos, Monteiro Lobato escreveu Urupês, idéias de Jeca Tatu (1919) — que Rui Barbosa mencionou em discurso no Senado, chamando a atenção sobre o autor, por sua denúncia do atraso do interior —, Cidades mortas (1919), Negrinha (1920) — na mesma linha de Urupês; O choque das raças ou o Presidente negro —romance sobre os E.U.A. (1926); e, entre os escritos políticos, o Escândalo do petróleo (1936). De alto senso pedagógico, Lobato ensinou disciplinas escolares através dos mesmos personagens de suas histórias infantis. As obras infantis foram reunidas em 17 volumes pela Editora Brasiliense, compreendendo, ente outros, Viagem ao céu, História do mundo para crianças, Memórias da Emília, O Poço do Visconde — em que expõe às crianças o problema do petróleo —, A reforma da natureza, A chave do tamanho etc. Importante é também sua correspondência com Godofredo Rangel, editada em A Barca de Gleyre. Pág.94 Em branco Pág.95 Fonte 2: monteiro lobato, j. b., Histórias de Tia Nastácia, 30a ed., São Paulo, Brasiliense, 1993, p. 78. BIOGRAFIA DE MONTEIRO LOBATO A 18 de abril de 1882 em Taubaté, Estado de São Paulo, nasce o filho de José Bento Marcondes Lobato e Olímpia Augusta Monteiro Lobato. Recebe o nome de José Renato Monteiro Lobato, que por decisão própria modifica mais tarde para José Bento Monteiro Lobato desejando usar uma bengala do pai gravada com as iniciais J.B.M.L. Jucá — assim era chamado — brincava com suas irmãs menores Ester e Judite. Naquele tempo não havia tantos brinquedos; eram toscos, feitos de sabugos de milho, chuchus, mamão verde etc. Adorava os livros de seu avô materno, o Visconde de Tremembé. Sua mãe o alfabetizou, teve depois um professor particular e aos 7 anos entrou num colégio. Leu tudo o que havia para crianças em língua portuguesa. Em dezembro de 1896, presta exames em São Paulo das matérias estudadas em Taubaté. Pág.96 Aos 15 anos perde seu pai, vítima de congestão pulmonar e aos 16 anos, sua mãe. No colégio funda vários jornais, escrevendo sob pseudónimo. Aos 18 anos entra para a Faculdade de Direito por imposição do avô, pois preferia a Escola de Belas-Artes. É anticonvencional por excelência, diz sempre o que pensa, agrade ou não. Defende sua verdade com unhas e dentes, contra tudo e todos, quaisquer que sejam as consequências. Em 1904 diploma-se Bacharelam Direito, em maio de 1907 é nomeado promotor em Areias, casando-se no ano seguinte com Maria Pureza da Natividade (Purezinha), com quem teve os filhos Edgar, Guilherme, Marta e Rute. Vive no interior, nas cidades pequenas, sempre escrevendo para jornais e revistas, Tribuna de Santos, Gazeta de Notícias do Rio e Fon-Fon para onde também manda caricaturas e desenhos. Em 1911 morre seu avó, o Visconde de Tremembé, e dele herda a fazenda de Buquira, passando de promotor a fazendeiro. A geada, as dificuldades levam-no a vender a fazenda em 1917 e a transferir-se para São Paulo. Mas na fazenda escreveu o Jeca Tatu, símbolo nacional. Compra a Revista do Brasil e começa a editar seus livros para adultos. Urupês inicia a fila em 1918. Surge a primeira editora nacional, "Monteiro Lobato & Cia.", que se liquidou transformando-se depois em Companhia Editora Nacional sem sua participação. Antes de Lobato os livros do Brasil eram impressos em Portugal; com ele inicia-se o movimento editorial brasileiro. Pág.97 Em 1931 volta dos Estados Unidos da América do Norte pregando a redenção do Brasil pela exploração do ferro e do petróleo. Começa a luta que o deixará pobre, doente e desgostoso. Havia interesse oficial em se dizer que no Brasil não havia petróleo. Foi perseguido, preso e criticado porque teimava em dizer que no Brasil havia petróleo e que era preciso explorá-lo para dar ao seu povo um padrão de vida à altura de suas necessidades. Já em 1921 dedicou-se à literatura infantil. Retoma-a, desgostoso dos adultos que o perseguem injustamente. Em 1945 passou a ser editado pela Brasiliense onde publica suas obras completas, reformulando inclusive diversos livros infantis. Com "Narizinho Arrebitado" lança o Sítio do Picapau Amarelo e seus célebres personagens. Através de Emília diz tudo o que pensa; na figura do Visconde de Sabugosa critica o sábio que só acredita nos livros já escritos. Dona Benta é o personagem adulto que aceita a imaginação criadora das crianças, admitindo as novidades que vão modificando o mundo. Tia Nastácia é o adulto sem cultura, que vê no que é desconhecido o mal, o pecado. Narizinho e Pedrinho são as crianças de ontem, hoje e amanhã, abertas a tudo, querendo ser felizes, confrontando suas experiências com o que os mais velhos dizem, mas sempre acreditando no futuro. E assim o Pó de Pirlimpimpim continuará a transportar crianças do mundo inteiro ao Sítio do Picapau Amarelo, onde não há horizontes limitados por muros de concreto e de idéias tacanhas. Em 4 de julho de 1948 perde-se esse grande homem, vítima de colapso, na capital de São Paulo. Mas o que tinha de essencial, seu espírito jovem, sua coragem, está vivo no coração de cada criança. Viverá sempre enquanto estiver presente a palavra inconfundível de "Emília". Pág.98 em branco Pág.99 Fonte 3: cd-rom almanaque abril 96. MONTEIRO LOBATO, JOSÉ BENTO escritor paulista (1882-1948), considerado o principal autor de literatura infantil do país. Nascido em Taubaté, diploma-se pela Faculdade de Direito de São Paulo em 1904. Ingressa no Ministério Público e é promotor em Areias (SP) durante sete anos. Abandona o cargo e torna-se fazendeiro em Buquira (SP). Em 1918, publica Urupês, coletânea de contos onde nasce o Jeca Tatu, protótipo do lavrador brasileiro abandonado à própria sorte pelo poder público. Funda uma editora, mas não tem sucesso comercial. Volta-se, então, para a literatura infantil. Com A Menina do Narizinko Arrebitado (1921), cria um universo mágico habitado por Pedrinho, Narizinho, a boneca falante Emília, o sabugo de milho Visconde de Sabugosa, o porquinho Marquês de Rábico, Dona Benta e Tia Nastácia, que convivem com personagens das histórias encantadas, da mitologia grega e do folclore brasileiro, como Peter Pan, Hércules e o saci-pererê. As histórias do Sítio do Picapau Amarelo são contadas em diversas obras, escritas de 1921 a 1946. Pág.100 Vive em Nova York de 1926 a 1931, como adido comercial, entusiasma-se com o progresso dos Estados Unidos e publica o livro América. Preocupado com a questão energética, volta ao Brasil e lança o livro o Escândalo do Petróleo (1936), com suas idéias sobre o assunto. Durante o Estado Novo escreve uma carta ao ditador Getúlio Vargas, protestando contra sua política petrolífera. Em consequência, em 1941, é preso e condenado pelo Tribunal de Segurança Nacional. Depois da morte do filho, de tuberculose, mora na Argentina. Não se acostuma ao clima e volta para o Brasil. Publica sua correspondência com o amigo Godofredo Rangel em A Barca de Gleyre (1943). Pág.101 Fonte 4: Grande Enciclopédia Larousse Cultural, vol. 17, São Paulo, Nova Cultural, 1998. MONTEIRO LOBATO (José Bento), escritor brasileiro (Taubaté, SP, 1882 — São Paulo, SP, 1948). Em 1918 editou seu primeiro livro de contos, Urupês, com grande sucesso, e principiou sua atividade editorial fundando primeiro a empresa Monteiro Lobato & Cia., depois Companhia Gráfica-Editora Monteiro Lobato. Estreou em 1921 na literatura infantil com A menina do narizinbo arrebitado (refundido depois como Reinações de Narizinbo). Escreveu a seguir O saci, O Marquês de Rabicó, Fábulas, O Jeca Tatuzinbo, com milhões de exemplares vendidos. Em 1924, a editora faliu. Posteriormente, com a venda de uma casa de loterias de que era sócio, arrematou o espólio da massa falida de sua própria editora, criando a Companhia Editora Nacional. No Rio de Janeiro, escreveu para o Jornal os "Diálogos de Mr Slang" e para A Manhã um romance em folhetins, O choque das raças ou o Presidente negro. Adido comercial do Brasil em Nova York, mostrou-se empolgado com o progresso dos EUA, publicando em 1930 o livro América. Em 1931, preocupado com o problema do petróleo, voltou ao Brasil, fundando a Companhia Petróleo do Brasil. Em 1933 chegou a extrair Pág.102 petróleo do seu poço em Araquá (BA) e no ano seguinte percorreu o Brasil, numa espécie de pregação cívica e econômica, em que denunciava manobras dos trustes petrolíferos. Em 1936, expôs em O escândalo do petróleo todas as suas idéias sobre o tema e traduziu e publicou A luta pelo petróleo, de Essad Bey. Em 1935, com as finanças novamente abaladas, voltou a escrever e traduzir. Publicou então Contos leves, Contos pesados, Geografia de Dona Benta, História das invenções, Memórias da Emília. Em 1937 publicou Serões de Dona Benta, Histórias de Tia Nastácia, O poço do Visconde e, em 1939, O Minotauro, O Pica-pau Amarelo, além de contos. Em março de 1941, em pleno Estado Novo, esteve preso por haver endereçado a Getúlio Vargas uma carta de crítica à política brasileira do petróleo. Em 1946, fez a revisão das suas Obras completas, publicadas pela Editora Brasiliesse em 13 volumes: Urupês (1918), Cidades mortas (1919) idéias do Jeca Tatu (1919), Negrinha (1920), A onda verde (1921), Mundo da Lua (1923), O macaco que se fez homem (1923), O choque das raças ou O presidente negro (1926), Mr Slang e o Brasil (1929), Ferro (1931), América (1932), Na antevéspera (1933), O escândalo do petróleo (1936), além de Miscelânea, Prefácios e entrevistas, e um volume de correspondência, A barca de Gleyre. Além da literatura infantil de sua autoria, merece menção o notável trabalho de tradução e adaptação para crianças de clássicos como Dom Quixote, Gulliver, Robinson Crusoé e outros.