Este livro foi escaneado por Clodoaldo Verrissimo de Oliveira e corrigido por Edinaldo Celestino da Silva trata-se de uma edição dirigida as pessoas que sofrem algum tipo de deficiência visual sendo totalmente proibido a distribuição ao publico em geral, o que acarretara ao infrator as penalidades legais, segundo as leis vigentes sobre direitos autorais mo Brasil. Titulo: O clube do Beijo Autor: MARCIA KUPSTAS 1º Edição Editora Moderna (r) MARCIA KUPSTAS 2000 COORDENAÇÃO EDITORIAL: Maristela Petrili de Almeida Leite ASSISTÊNCIA EDITORIAL Rosa Chadu Dalbem PREPARAÇÃO DO TEXTO: José Gabriel Arroio COORDENAÇÃO DA REVISÃO: Estevam Vieira Lédo Jr. REVISAO: Eduardo Perácio, Glaucia Amaral, Liduína Santana, Rita de Cássia M. Lopes GERENCIA DE PRODUÇÃO GRÁFICA: Wilson Teodoro Garcia PROJETO GRÁFICO: Anne Marie Bardot EDIÇÃO DE ARTE: Elizabeth Kamazuka Santos CAPA: Estore Bottini DIAGRAMAÇAO: Enriqueta Monica Meyer SAÍDA DE FILMES: Hélio P. de Souza Filho, Luiz A. da Silva COORDENAÇÃO DO PCP: Fernando Dalto Degan IMPRESSÃO E ACABAMENTO: Banira Gráfica e Editora Ltda. ao proibida. Art.184 do Código Penal e lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. Todos os direitos reservados EDITORA MODERNA LTDA. Rua Padre Adelino, 758 - Belenzinho São Paulo - SP - Brasil - CEP 03303-904 Vendas e Atendimento: Tel. (0_ _11) 6090-1500 Fax (0-11) 6090-1501 www.moderna.com.br 2000 Impresso no Brasil Kupstas, Márcia O clube do beijo / Márcia Kupstas ; [ilustrações da autoral. - São Paulo : Moderna, 2000. 1. Literatura infanto-juvenil I. Tíralo 00-0026 CDD-028.5 índices para catálogo sislemólico: 1. Literatura infanto-juvenil 028.5 2. Literatura juvenil 028.5 ISBN 85-16-02585-3 Agradeço pela atenção e carinho com que o livro foi recebido pela equipe do Colégio Bandeirantes, ainda na sua formulação, e aos conselhos fundamentais dos jovens alunos. Um abraço carinhoso a todos.- Maria Estela Benedetti Zanini, Clarice Murakami Kelbert, Cândida Beatriz Vilares Gancho, Regina Mara da Fonseca, Karina, Heloísa, Guilherme, Carlos, Paulo, Carolina, Lucas, João, Gabriel. PREFÁCIO Em casa, na escola, no clube, numa festa, a sexualidade está presente na vida de todos, e em particular na do adolescente. Ela é um atributo do ser humano e se desenvolve a despeito da nossa vontade. Por muitos e muitos anos se acreditou que com punições, julgamentos rígidos e uma educação severa era possível tirar a força do desejo sexual, de modo que o sexo só servisse para reprodução. Durante algum tempo isto até que funcionou para muita gente, mas hoje é impossível se pensar assim! Nos últimos 40 anos, muita coisa mudou! E principalmente o conhecimento sobre sexualidade. Hoje já se sabe que sexo não é só para reprodução, que ter desejo sexual é tão normal quanto sentir fome ou sono e que, além do mais, a sexualidade é um instrumento relacional muito importante. Tudo isso alterou os valores sociais que disciplinavam a sexualidade, de forma que o adolescente passou a ser responsável por suas atitudes sexuais e pelo que há de mais valioso para ele: sua vida. Clube do beijo mostra como um grupo de garotas encontraram um jeito para conviver com esta responsabilidade. Solidariedade, respeito, intimidade e confiança são os ingredientes-chave deste livro que permite a cada personagem contar sua história. E que histórias! Pornográficas? Absurdas? Não. Simplesmente histórias que poderiam ser a história de qualquer adolescente. Clube do beijo é um livro ousado, no qual a autora com muita sensibilidade, humor e bom senso aborda temas polêmicos como homossexualidade, primeira vez, abuso sexual, promiscuidade. Sem a intenção de dar respostas nem de ser um material didático sobre sexualidade, o livro é interessante porque coloca esses temas na pauta das discussões dos adolescentes. Divirtam-se e conversem. Este é um bom jeito de aprender sobre sexualidade. Maria Helena B. V. Gherpelli Diretora-Presidente do Instituto Kaplan - Centro de Estudos da Sexualidade Humana Orientadora sexual de adolescentes e consultora em educação sexual de escolas. Capitulo 1 O PRISIONEIRO ÁRABE Não acredito que elas vão fazer isso - falei. Eu estava excitado. Excitado mesmo, todo duro, olho arregalado pra cima da cara de coruja do China. Esse aí também, como a gente pode adivinhar o que ele pensa? Os olhos dele feito duas riscas fininhas, só o brilho das pupilas aceso, olhos rasgados como os orientais têm... Ele não riu nem me respondeu. Cara séria, moveu o rosto pra cima pra baixo, confirmando. - Não é possível - eu falei. E passei a mão na cabeça, tenho um danado de cabelo torto, o topete vive subindo e eu viro um picapau, aliás, Picapau é o meu apelido. O nome é Pedro, mas nem minha avó me conhece por Pedro, é Picapau pra todo mundo. De novo, aquele bestão do China deu a mexida de cara, pra cima pra baixo. 9 - Você disse que a Débora, sabe a Debi, é a chefe do grupo... E vai a Penélope, a Rita, a Sarah, a Angélica - ia contando nos dedos, usei uma mão, continuei na outra - a Bia, até a tonta da Maria Fernanda... O mesmo gesto de cabeça do China. Se ele não abrisse a boca, nem que fosse pra um arroto, eu ainda dava um soco nele, desgraçado, mudo, filho da mãe mentiroso. Aí o China falou: - Quem contou foi o Edgard. Bom, se justo o Edgard contou, devia ser verdade... afinal, o Edgard era o irmão da Débora. Irmão gêmeo, ainda por cima. Não que isso fizesse alguma diferença, mas me pareceu que um gêmeo devia saber mais da vida da irmã e, se ele contou isso pro China, tinha de ser verdade mesmo. Só que eu não acreditava. - E é nesse sábado... - Elas já se encontraram antes. Foi o que o Edgard disse. Mas desta vez, elas vão mesmo fazer isso. Fazer isso, fazer isso, mais excitado eu fiquei. Que meninas safadinhas! A Maria Fernanda e a Sarah eram da minha classe. Tinham a minha idade, pó! Tinham mais coragem que a gente? Ou não? - O Edgard falou que eu podia contar pra você. Mas só pra você - disse o China, ameaçando dar uma risadinha. - Ele quer vinte paus de cada um pra botar a gente dentro da casa dele. Na hora em que as meninas forem fazer aquilo... - VINTE? É grana pra burro. - Mas você tem. 10 E, eu tinha. Aliás, tinha mais que isso. Uma semana antes acertei no bolão do jogo de futebol da nossa classe quando o time jogou contra o time do Colégio Andorinhas. Como eu tinha cravado 3 a 0 a favor do Andorinhas, faturei o bolão em cima do azar dos nossos pernas-de-pau e fiquei "riquinho". - E quem mais vai? O China falou o nome de um bando de caras, da nossa classe, da classe da Débora, do outro primeiro colegial. - E todo mundo vai dar vinte mangos? O Edgard vai ficar rico, filho da mãe. - Se você não quer topar... Se eu não ia topar? Eu dava mais que grana, eu doava sangue, tomava café com leite com nata, comia barata, mostrava a bunda no pátio de colégio de freiras, visitava meu tio-avô Reginaldo, fazia qualquer sacrifício, mas nunca que ia recusar um negocio desses. - Mas como é que a gente vai fazer... tanta gente assim entrando escondido... - O Edgard falou que elas se trancam no quarto da Debi. Os pais do Edgard e da Débora foram pra praia, a casa vazia... A gente tem de subir a escada devagar, passar pelo quarto do Edgard e ir pra varanda. Tem uma varanda que pega o quarto do Edgard e da Debi, então a gente se esconde lá, a persiana fica fechada, a gente olha pelos buraquinhos. Frestas. O nome correto pra buraquinho de persiana é "fresta", mas até esqueci da minha mania de consertar o português de quem fica ao meu lado, numa hora como aquela. Fiquei até comovido. Podia até dar um beijo no China - blé! - só por me fazer um convite desses. 11 - E vai dar pra gente ver? O China apertou ainda mais os olhos, como se isso fosse possível. Vai ver é o jeito oriental de mostrar que estava com tesão. Então eu comecei a rir. A rir mais e mais, parecia um doido, rindo tão alto que até o professor Leonardo apareceu na janela da sala e fez "psiu!" pra gente, nós dois parados no meio do pátio... tínhamos cabulado a aula do Dimas, então eu tentei segurar o riso, mas riso preso é pior que peido preso, a gente se esforça pra conter o danado e ele acaba escapando pros lados, então eu fazia era brrrrrruuuuffffffgfggggrrre a risada escapava pelos dentes. Antes que soltasse um peido de verdade, catei o China pelo braço e fomos depressa nos esconder atrás da cantina, onde, aí sim, dei uma risada tão alta que até o cachorro da vizinha começou a latir. *** Deixa explicar algumas coisas antes de continuar: eu sou o Picapau, e morro de medo desse apelido virar uma praga. Sabe, meu pai é careca. Bola de bilhar. Eu tenho esse cabelo fofo, se arrepia fácil pra cima, fica uma ponta pra cima e daí o apelido. Já imaginou se é apelido que fica pra vida inteira? Picapau careca? Tenho um primo que é Toquinho desde os 3 anos de idade. O desgramado pesa hoje 130 quilos e continua sendo Toquinho, com 30 anos e esse peso todo. Picapau careca... os deuses me livrem dessa sina. Gosto de implorar a ajuda "dos deuses", gosto de ler e odeio aula, adoro encher o saco de quem fala errado, vivo consertando burrada alheia, gosto de tirar 12 sarro da minha cara e da cara dos outros e adoro, tenho paixão, tesão e o escambau por mulher. Pra me ajudar nessa sacanagem ou pra me desgraçar de vez - pelos deuses! -, a minha escola, o Colégio Pitágoras, deu de colocar aulas de Educação Sexual para as primeiras séries do ensino médio desde o- começo do ano. Meu colégio é meio alternativo, meus pais são legais, eles acreditam que eu preciso ter uma boa educação, então na nossa escola não tem bronca, tudo se discute. Tem hora que a escola é meio besta, tanto se discute se é politicamente correto... não se pode chamar ninguém de preto, mas de "origem africana". Não se pode chamar uma mina de "gorda", mas de "acima do peso", e quando um cara quer brigar com outro tem de fazer isso escondido, senão lá vem uma das donas da escola passar sermão e toca a gente a ficar duas horas conversando... Quer dizer, eu até gosto, é bem melhor uma escola assim do que a escola onde estuda um primo meu, que tem um bedel tão troncudo que devia ser carcereiro em presídio. Mas tem vez que toda essa conversa dá o maior sono e a maior canseira. Sou novinho mas acredito que o bicho-homem, o tal "ser humano", é um grande filho da puta, isso é e vai continuar sendo, por mais que as donas de escola tentem consertar ele, pra não ter preconceito nem dar porrada nos outros, a gente não presta, vai continuar tendo guerra e miséria até o final dos tempos, desculpem, pode ser muito canalha falar isso, mas é o que eu acho. Eu, Picapau, 16 anos e uns novecentos livros lidos em toda minha breve existência, porque se tem uma coisa que eu adoro no Pitágoras é o incentivo pra gente ler, e isso, caros amigos, eu 13 sempre fiz e continuarei fazendo pela vida afora, ler livros, todos os que puder. Agora, o que eu gostei também foi quando surgiu à novidade pras primeiras séries, a tal Educação Sexual que o Pitágoras botou no currículo no começo do ano e agora, em outubro, eu sei que sei mais coisa do que já sabia, se isso lá é possível. A professora é a Maria Celeste, uma tiazona até legal. Uma carioca que fala chiadinho, o sotaque dela é um barato, e tem cara de quem entende do assunto - sexo. Fala as coisas assim, coisa na coisa, dá risada da gente e com a gente, principalmente quando alguém fala alguma besteira grossa, tipo masturbação faz nascer pêlo na mão ou comer jaca quando a mulher tá menstruada faz a coitada ficar doida... essas coisas que o povo conta, mas que são um imenso mar de bobagens. Agora, ela foi falar aquilo e deu a idéia pra Débora - pelo menos, como o irmão dela contou. A profa tinha explicado as diferenças dos sexos, como é o pênis, como é a vagina e o tal do clitóris ("clitóris" ou "clítoris": o pessoal andava na maior dúvida sobre o jeito certo de falar a coisa) quando uma garota perguntou pra ela de que jeito era o "normal". A Celeste deu risada e falou que o sexo das meninas podia ser tão diferente quanto os narizes... Bom, na hora eu pensei que se isso era verdade, queria passar a vida olhando centenas, milhares de "narizes" diferentes, e isso seria o máximo! Então eu imagino que, se eu pensei isso, uma garota como a Débora também deve ter pensado alguma coisa parecida... A Debi não é da minha classe, o irmão dela é. E foi ele, o Edgard, que contou pro China e pros outros caras, 14 filho da mãe, o cara ia faturar a maior grana dos caras que ele convidou pra ver, ele contou pros caras... Pra ver, ver o quê? Deixa eu contar logo, vai. E que depois dessa tal aula da Celeste, segundo o Edgard a Debi veio com a idéia de juntar umas amigas e fazer uma sessão de "mostragem". Elas iam tirar a calcinha, iam pegar um espelho e comparar a vagina umas com as outras. Era isso, isso, ISSOISSOISSO que o Edgard tinha convidado a gente pra ver, escondido das meninas, na casa dele. E era isso, isso, ISSOISSOISSOISSO que eu ia ver, depois que pagasse pro Edgard e encontrasse com ele no sábado, lá pelas dez da noite, na porta da casa dele. *** Era mais gente do que eu imaginava. Tinha lá uns doze caras, e a vinte mangos, fiquei até com inveja do Edgard quando ele recolheu o dinheiro da mão de cada um. Todos nós lá de jeito excitado, dando risadinha e tentando falar baixo, volta e meia um cara metia o cotovelo no outro, "cala a boca, veado", e o Edgard dizendo que as meninas já estavam no quarto da Debi e explicando como a gente devia fazer pra se esconder na varanda... A casa do Edgard é grande pra caramba, é meio mansão. Os pais dele são ricos e passavam o fim de semana no Guarujá, deviam achar que os dois filhos de 16 anos eram suficientemente maduros pra ficar sozinhos. Coitados, cada filho aprontando uma. E ainda me veio assim uma premonição, de que aquela história ainda ia acabar em fria (e acabou em fria!). Se eu confiasse 15 na minha intuição... olha, mesmo que eu pudesse adivinhar como aquilo ia terminar, juro pelos deuses que faria tudo de novo, nunca me arrependi do que aconteceu, faria tudo de novo, tudo de novo mesmo. Então, como ia dizendo, a casa é meio mansão. Muro alto separando o jardim da rua, rua calma, com aquela dúzia de moleques parados na calçada, e depois do muro o jardim e aí vinha a casa, sobrado elegante, a gente ia subir a escada devagar, passar pelo quarto do Edgard, ficar escondido na varanda e ficar olhando pelas frestas da persiana da janela do quarto da Debi a sessão de "mostragem" que elas iam fazer. Quer dizer, esse era o nosso plano. Devia ter desconfiado quando vi o bando de débil mental que o Edgard tinha reunido: eu, o China, o Romano, o Tiago, o Manu, o Zé Frido, o Minhoca, o Bacalhau, o Gabiru e, sei lá, mais dois de quem eu nem sabia o nome. - Cala a boca e me segue, falou o Edgard, abrindo a porta da sala com a chave dele e alisando a cabeça do cachorro que era praquele pastor alemão ficar caladinho diante de tanto homem estranho na casa. Uma sala enorme, na penumbra, outra sala de tevê, a escada de madeira com tapete, nunca tinha visto tapete em escada, mas casa de rico é um negócio, pena que não vi sequer um livro, um monte de quadro bonito, a gente foi subindo devagarinho, o Gabiru deu risada, o Minhoca deu uma porrada nele pra ele calar a boca, doze caras se metendo pela porta do quarto do Edgard, um quarto legal pra caramba, tinha tevê e vídeo só pra ele, aí a gente ouviu risada de mulher, fiquei teso na hora, elas já tinham começado, será? 16 - Entrem aí - mandou Edgard, abrindo devagar a porta da varanda, e doze caras passaram pela porta, se agachando e se empurrando pra ver pelas frestas da persiana. Tratei de ficar bem encolhido, debaixo da perna do Manu, sou baixinho, então me ajeitei num bom lugar, podia ver as costas da Bia e a cara redonda da Rita, era ela quem dava risada, estavam, sim, todas elas lá, sentadas no chão, numa roda de meninas, meninas, meus deuses, sete meninas! Estavam vestidas. Que pena! A gente ficou quieto e tentava ouvir e tentava ver o mais que podia. Era a Maria Fernanda quem falava, mas falava tão baixinho, o Tiago perguntou pro Edgard se ele estava ouvindo o que ela dizia, o Edgard deu um tapa na barriga dele. E por que foi fazer isso justo com o Tiago, o cara é enfezado pacas, ele revidou o tapa, e veio outro tapa, acertou também o Romano, o Romano deu um empurrão no Bacalhau, o Bacalhau caiu sentado nas minhas costas, eu também chiei e, quando a gente viu, tava um meio que caindo por cima do outro e eu queria mesmo era ver as meninas, bando de debilóides... eu devia imaginar que com uns caras como aqueles à coisa só ia acabar em fria e... Não deu outra. De repente, a persiana foi puxada. Eu vi só a perna lisa da Débora, ela usava short, e depois o grito do Edgard: - Elas descobriram! Tentei levantar, mas a bunda do Bacalhau continuava sobre as minhas costas, me espremendo contra o chão. 17 - O QUE É QUE VOCÊS ESTÃO FAZENDO AQUI? EDGARD... EU TE MATO, EDGARD! O Edgard começou a gritar: - Vamoembora, gente, vamoembora! O Bacalhau era pesado e até aquele retardado conseguir mexer a bunda foi uma eternidade. Quando consegui me levantar, já dei de cara com a Debi, a Debi é alta pra caramba, tem quase o metro e oitenta do irmão dela, e ela veio de cadeira em punho pra cima da gente, tinha aberto a porta da varanda, vi as meninas todas gritando lá dentro do quarto e eu, hem? Debi estava doida com a gente, gritava, e não teve dúvidas: acertou a cadeira, com força, nas costas do irmão dela. O barulho foi fofo, plofl, porque era uma cadeira de fresco, estofada, mas mesmo assim deve ter doído nas costas do Edgard, a cadeira acabou explodindo, soltou as pernas e o estofamento, então eu via a cara furiosa da Debi segurando uma perna da cadeira e já levantava aquele pau pra acertar outro garoto nas costas. - Corre, meu, corre! - gritou outro cara, que foi saindo atrás dos meninos, o Edgard e uma turma corria pro quarto dele, ouvi um barulhão de passos corridos na escada, taptaptaptap. O China ainda ficou em dúvida um segundo, depois se jogou da varanda, era só um andar, ele escapou pulando por ali mesmo. Achei que dava pra fazer o mesmo. Peguei fôlego, um, dois, três, meus deuses, pulei. Vi o chão se aproximando, era mais alto do que imaginei, quase caí em cima do China, meu pé virou, caí no chão, fiquei lá, virei de barriga pra cima, reparei assim na Lua redonda no meio das nuvens do céu, ainda pensei "lua cheia 18 ou lua nova?", sou meio estúpido pra acertar as fases da Lua, idéia mais besta, por que a gente tem idéia besta em hora de perigo? E era hora de perigo. O cachorro do Edgard (o próprio, o canino, não estou xingando o cretino do Edgard) latia pra caramba, respirei fundo, tentei me levantar... Doeu, doeu mesmo. Devo ter torcido o pé quando bati no chão, meu olho se encheu de lágrima por um instante, vi um vulto passar voando do meu lado, sei lá quem era, gritei: - Me ajuda, eu me machuquei! Volta aqui, cara, me ajuda! Ajudou? Filho da puta, ajudou? Sei lá quem era, continuou correndo, vi uma menina correndo atrás dele, tentando agarrar ele pela camisa, vi mais longe o Edgard, com o portão aberto, berrando pra gente se apressar, ele batia a mão no portão de ferro, fazia o maior barulho, aliás tudo fazia barulho: cachorro latindo, meninas gritando, portão batendo, e meu danado do pé doeeeeeeendo... Aí o cachorro me atacou. Eu tenho um azar com cachorro, odeio cachorro, ainda lembrei que o pastor dele é macho, então devia era estar do nosso lado, por que me atacava, justo eu, tadinho de mim!, cachorro desgraçado. Um pé doendo e outro sendo mordido pelo cachorro, ainda gritei pro Edgard "Me espera, cara, me espera!". Esperou? E lá esperou? Vi o portão de ferro batendo, pou!, no mesmo instante que uma menina me agarrava pelo cós da calça jeans. 19 - Peguei um! - gritou ela, me agarrando mais. - Peguei um, peguei! Tive a idéia de meter o cotovelo na barriga dela, mas o cachorro começou a subir a mordida, tinha largado do tênis pra morder minha canela, eu gritei e, quando vi, tinha menina me agarrando um braço, outra me segurando o outro, uma terceira ou quarta com as mãos na minha cintura e teve até uma que me puxou pelos cabelos, enquanto alguém gritava: - É o Picapau! Débora, a gente pegou o Picapau! E quem estava ali, na minha frente, um metro e oitenta de mulher furiosa, o toco da cadeira nas mãos, o rosto vermelho, o olho brilhando, só afastando o cachorro pro lado e me olhando, satisfeita como uma gata que acabou de jantar o ratinho? Ela mesma. A Debi. - Então a gente pegou um - ela falou. Ouvi de longe as risadas dos meus "companheiros". Eles podiam rir, filhos da mãe, estavam livres, na rua. E eu, ferrado. - Me solta, Debi, me solta... eu me machuquei. Tentei levantar o pé, o cachorro rosnou. - Vamos levar ele pra cima. Segura bem - falou a Débora. Prisioneiro. Foi assim que eu tive de voltar mancando pra dentro da casa, foi assim que eu tive de subir a escada, agarrado por tudo que era lado pelas sete meninas, aquele cachorro macho traidor ajudando elas e rosnando pra mim, língua de fora, tão contente quanto elas, por terem prendido um coitado de um Picapau. O quarto. A Debi puxou uma cadeira, uma cadeira fofa que nem aquela que ela tinha estourado nas costas do irmão, ela puxou a cadeira pro meio 20 do quarto e me botou sentado ali. Depois girou a chave na fechadura da porta e perguntou: - O que é que vocês estavam fazendo aqui, hem? - O Edgard... - eu murmurei. - O que aquele imbecil do meu irmão aprontou, hem? O que ele contou pra vocês, hem? Olhei pra cara das meninas, uma por uma. Todas muito sérias. Com muita raiva. Sete meninas. Na hora, lembrei daquela famosa historinha, mas desta vez era uma história diferente: eram sete Brancas de Neve e um anão. O anão era eu, azarado, infeliz, se elas quisessem me bater ia apanhar feio. Claro que entreguei o Edgard. Quem não faria isso numa hora de tortura como aquela? Quando eu expliquei o que o Edgard tinha contado que elas iam fazer, a Debi ficou alucinada. Foi até a varanda e gritou pra noite: - EDGARD! Você vai voltar pra casa, Edgard! Eu te mato, Edgard! Na rua, mais longe, ouvi uma gargalhada. E algum cara ainda soltou uma cacarejada, gozando da cara da Debi. - Filho da puta - disse a Debi. - Olha como você fala, Debi - era a Sarah, rindo. - É o seu irmão... você tá se xingando também. - Eu mato ele, eu juro que mato! Era bem isso o que eu também desejava fazer com eles, os meus ex-camaradas. E nessa hora, da rua, veio um assobio alto, novas risadas. A Angélica foi até a varanda e gritou pra rua: -A gente pegou um pica-pau, pica-pau, pica-pau... 21 As outras meninas gostaram da brincadeira. Foram seis pra fora (a sétima era a Débora, que se encostou em mim como uma guardiã), e pra aumentar o meu pânico as meninas todas fizeram coro, cantando: - A gente pegou um pica-pau, pica-pau, pica-pau... Eu pedi: - Me soltem! Vai, gente, me solta... a culpa é do Edgard. Desculpa. Olha, Debi, pelo amor dos deuses, me desculpa mesmo, tá? Eu não queria sacanear, foi uma besteira, por favor... - Cala a boca. "A gente pegou um pica-pau, pica-pau, pica-pau"... "Acho que hoje eu morro", pensei. *** Não morri. E acho que essa noite foi uma das melhores coisas que me aconteceu na vida. Só que na hora não pensei assim. Fiquei lá, implorando feito um bebezinho e, quando as meninas se encheram da cantoria do "pica-pau", elas voltaram todas pro quarto e se sentaram, como estavam antes, formando um círculo no chão. Com o Picapau preso no meio da roda. Pareciam um bando de leoas que iam jantar o coitadinho. Quando até a gritaria da rua também acalmou (acho que o Edgard e os caras se assustaram depois que um vizinho berrou que ia chamar a polícia), as meninas se concentraram em mim. Ficaram me olhando, e olhando pra Debi... Debi era a líder, e foi ela que começou o papo. - Quer dizer que aquele safado, canalha, sem vergonha do meu irmão falou que a gente ia fazer isso... ia se exibir umas pras outras? Foi o que ele falou? 22 - Safado, canalha, sem-vergonha. Isso aí. É culpa dele. Agora vocês me soltam? A Débora andava pelo quarto, felinamente, indo de lado a outro, aquelas pernas enormes se exibindo no short curtinho, se fosse numa hora melhor, bem que eu ia adorar olhar as pernas dela, mas, assim prisioneiro, tinha mais é medo daquele modo felino de caminhar. Falava sem me olhar direto na cara: - Como é que ele inventou isso? Que idiota! Como é que ele... - E ainda cobrou vinte mangos de cada um - aumentei a sacanagem do irmão dela. - Ele cobrou dinheiro de vocês? Só pra ver a gente? Confirmei. A Sarah caiu na risada. - E você pagou, Picapau? Você teve coragem de pagar, só pra ver a... - ela sorriu -... a "coisa" da gente? Não consegui deixar de sorrir quando fiz o gesto que "sim". Outras meninas também caíram na risada. - O que a gente vai fazer com ele, Débora? - perguntou Rita, acendendo um cigarro e passando-o depois para a Sarah. As duas eram as únicas fumantes do grupo. - Solta o Picapau, Debi - falou Penélope. - Tadinho dele... Fiz a mais perfeita cara de infeliz, "isso, Penélope, minha querida amiga, convença elas a soltar o Picapau". A Penélope deu um sorriso lindo pra mim. "Penélope" é o apelido, nem sei direito o nome dela, é Penélope por causa de um velhíssimo desenho animado, o da PENÉLOPE CHARMOSA, e ela é mesmo assim toda fofinha e dengosa, se ela convencesse as amigas... 23 Até parece que alguma coisa ia convencer uma tigresa como a Débora! - De jeito nenhum! - Olhou para a cara de todas as meninas, passou a mão pelos cabelos compridos, depois me sorriu, malignamente aproximou o rosto do meu e sorriu. Gelei. Era esquisito ver a cara dela assim perto, a mesma cara do meu ex-amigo Edgard, a cara de um, focinho do outro: lábios muito finos, retos, o lábio superior quase sumia numa linha. O rosto quadrado, queixo largo. E os olhos muito azuis, claríssimos, transparentes, com uma crueldade que poucas vezes pude reparar em alguém. Os pais de Débora são descendentes de noruegueses, suecos, dinamarqueses, de alguma raça que foi viking em outras gerações, e um pobre neto de italianos como eu ia ser devorado pelos normandos. - Sabe o que a gente vai fazer? Hem, meninas? - Débora olhou para as amigas. Elas ficaram quietinhas, esperando. - A gente vai deixar ele ficar. - Como assim? - perguntou Maria Fernanda. - O Picapau vai ficar aqui? - Ele não queria saber o que a gente ia fazer? Não queria, Picapau? - Eu já pedi desculpa... - Então ele fica - confirmou Debi, sem nem sequer me dar atenção. Elas iam me fazer mostrar o pau pra elas, era isso? Meus deuses, o coitado ia encolher até ficar do tamanho de uma azeitona! Eu ainda estava apavorado com a idéia, quando a Débora virou o dedo na minha direção: - Você já deu beijo em alguma menina? 25 - O QUÊÊÊÊÊ?! - me espantei. - É o que você ouviu. Já deu beijo numa menina? - Bom. Claro que sim. - Então ele pode ficar. Mas vai ter de contar. E aceitar as regras do Clube. - Clube? - a cada hora eu ficava mais espantado. - O Clube do Beijo - explicou Penélope, dengosamente como sempre. - O Clube do Beijo - confirmou Maria Fernanda, muito séria, como se falasse o nome de alguma seita religiosa. E me explicaram o que era o tal Clube: - A gente não ia se mostrar coisa nenhuma, seu safado - falou Débora. - Nem sei como meu irmão inventou isso, aquele sem-vergonha só arrancou a grana de vocês. A gente se encontra aqui uma vez por mês... - Só pode entrar no Clube quem já deu um beijo - falou de novo Maria Fernanda. - E tem de contar pras outras - explicou Bia. - Contar como foi o beijo... - Se rolou mais coisa - sorriu Sarah. - Se foi bom - completou Angélica. - Se não foi bom - falou Rita. - Com quem foi - completou Penélope. Era só isso? Eu não ia ter de mostrar o meu pau? Elas não iam me comer vivo? - E seguir duas regras - falou Debi. - Primeira: Sinceridade. Sempre, total. Segunda: sigilo. O que a gente Fala aqui, morre aqui. Você aceita? Prisioneiro no meio de um harém, o valoroso guerreiro árabe lá era tatu de negar sua rendição? Eu 25 me senti naquela hora feito um personagem dos livros de aventura que adoro ler. Jurei solenemente, até ergui a mão, prometia qualquer coisa que elas pedissem, naquela hora. - Então nós vamos começar. - Débora sentou e jogou-se molemente no chão, cruzando as pernas. - E começa por você. - Eu? E o que eu tenho de contar? - Você tem de contar sobre um beijo que deu na vida - sorriu Sarah. - Dar detalhes. Dizer como foi... - Não... - de novo, os cruéis olhos azuis sobre mim. - Com ele, vai ser diferente. Sabe o que você vai fazer, Picapau? - Debi olhou para as amigas, fez suspense. - Ele vai ter de dizer o que pensa da gente. De cada uma de nós. As meninas riram. Debi continuou: - E dizer também o que os meninos pensam da gente. Tudinho. - Isso é sacanagem... - reagi. - Sacanagem é o que vocês iam fazer! - gritou Rita. - Isso, sim, é sacanagem... ficar escondido na varanda pra ver a gente... Tive de concordar com ela de que era mesmo. - Vai falar sim - insistiu Debi. - Sem mentir. E quer saber? Pode começar por mim. Eu não tenho medo. Pode dizer o que pensam de mim. Vai, fala. FALA, Picapau! - ela gritou. O que um prisioneiro rendido pode fazer num momento como aquele? Hem? Hem? Eu só podia contar a verdade. Respirei fundo e soltei a bomba... 26 Capitulo 2 DÉBORA - Os meninos dizem que você é lésbica. Falei e gelei. Esperei levar porrada, ouvir ela xingar, berrar... fiquei até surpreso quando ela ficou quieta. A Debi jogou o cabelão pra frente da cara, respirou fundo. Quando ergueu o rosto, os olhos estavam mais brilhantes que nunca. Ela ia chorar? Justo a Débora, será que ia chorar? Antes que Débora dissesse alguma coisa, a Maria Fernanda perguntou baixinho para Sarah: - Que, que é isso? - Você não sabe, sua tonta? - falou Sarah. - É homossexual... - Mas isso não é coisa de homem? -Como você é burra, Fernanda! Tem homossexual masculino e feminino... - completou Sarah. - Tem homem que gosta de homem e mulher que gosta de mulher. 27 - Mas eu não sou - a Débora respondeu, afinal. Falou e ficou olhando para as amigas. Todas elas ficaram caladas. Debi repetiu, gritou: - EU NÃO SOU! Por que vocês estão me olhando desse jeito? Ela levantou de modo brusco, num movimento só, vuuup, ficou de pé, as pernonas, no short curtinho, chamando a maior atenção. - Que é que deu em vocês? Ficaram loucas, agora? EU NÃO SOU LÉSBICA! Só porque um Picapau fala isso, vocês acreditam? - Pera aí, Débora. Não sou eu quem fala isso... são os caras da escola. - É meu irmão. Aquele imbecil. É ele que espalha essas merdas, não é? Não é, Picapau? Não tive coragem de dizer que não, que era todo mundo. O Edgard só não desmentia, e isso era muito confirmador, vindo de um gêmeo... Débora veio pra mais perto de mim. Botou aquela cara-xerox-do-Edgard bem na minha cara, me segurou pela gola da camisa e começou a gritar: - Pensam isso de mim, por quê? Porque eu não sou feminina, é isso? Eu sou muito feminina... - E me chacoalhava pela camisa. Sou um cretino, um cretino que não tem amor pela própria pele, mas era engraçado, ela me chacoalhando e exigindo que eu reconhecesse que ela era feminina, eu falava "vo-cê-é-fe-mi-ni-na-De-bi-vo-cê-é-fe-mi-ni-na" com a voz tremida, tamanhas chacoalhadas ela me dava, e isso acabou gozado pra burro, por que fui fazer isso? Terminei a frase caindo na maior e mais intensa gargalhada... A fera acordou de vez. 28 - Picapau, você ainda vai ser um pica-pau morto! - Espera ai, Débora, espera ai - a Rita levantou também, ela é quase tão alta quanto a Debi, graças aos deuses tirou a bichana doida de cima de mim. - O Picapau só falou o que os caras pensam... - E tem muita gente que pensa assim - falou Sarah. - Olha, Debi... eu sei que você vai ficar brava. Mas tem menina que também pensa assim. - E por quê? - de novo, o brilho molhado nos olhos dela e eu engoli a risada. A coisa era séria... Já imaginou se pensassem que eu era bicha, acho que ficava muito chateado também. Ainda mais se eu não fosse. - É o seu jeito... - falou Penélope, como era fofinha a Penélope, mexendo num cacho do cabelão crespo. - Você fala gritando, Debi. Você está no time de basquete, vive brigando com tanta gente... - Com quem eu briguei? Só com a Soraia. Só com ela. - E com a professora de Inglês - completou Bia. - No ano passado, lembra? A mulher deu até queixa na direção. - Aquela era uma cretina. - Tem tanta gente que você chama de cretina - falou Penélope. - Vive falando palavrão - comentou Maria Fernanda. - Ah! E até parece que vocês não dizem palavrão! - falou Debi. - Vão dar de mentirosas, agora? De hipo... - ela engasgou, eu completei pra ela: - Hipócritas. - O que você falou? - o olho azul em mim. - Você ia chamar suas amigas de hipócritas, não era isso? Que elas estão se fazendo de hipócritas... 29 Debi suspirou fundo. Olhava agora enfezada para as amigas. Voltou a se sentar, o cabelão no rosto. - MAS EU NÃO SOU! Por que vocês pensam isso? Se uma menina não é aí toda... toda dengosinha, se fazendo de fraquinha pra agradar os caras, ela tem de gostar de mulher, tem de ser machona? Debi olhava sério pras amigas. Ninguém respondeu. Ela repetiu: - Não sou MESMO! Eu gosto de vocês, mas. Eu gosto como amiga. Do outro jeito, eu. Olha, querem saber? Eu gosto de homem. Sei disso. Eu até já transei com um cara. Opa! A conversa estava ficando boa! Me ajeitei melhor na cadeira, pronto pra esperar pelo que vinha. - Por que você não contou isso pra gente, antes? - perguntou Bia. - Acho que eu ia contar... sei lá. Vocês também não se abrem muito, ninguém até agora contou alguma coisa mais forte. Não é mesmo? Olhos nos olhos. Eu me sentia como um estranho no ninho, ou melhor, um pica-pau no galinheiro. A Sarah arrepiou o cabelo ruivo e curto, falou bem devagar: - E a regra do Clube, Débora? A gente não jurou falar a verdade, falar tudo? - Você falou tudo? De verdade? - rebateu Debi. Sarah passou a língua pelos lábios, abaixou os olhos. Quando olhou em volta, para o rosto das amigas, sorria: - Não. - Então! O que vocês estão me cobrando? Acho que todo mundo também escondeu alguma coisa. Não é verdade? 30 - E hoje? A gente vai mesmo contar tudo, hoje? Até o que pode ser muito sério, muito estranho? - falou Rita. - De sexo? De segredos? - Não! - Maria Fernanda estava com o rosto vermelho. - Eu acho que a gente deve se cuidar, isso pode. ser ruim, o fim da amizade. - Pois eu acho que é o contrário - Sarah arrepiou de novo o cabelo, aquela também devia ter apelido de Picapau. - Meninas, se a gente quer mesmo ser tão amigas assim... tem de contar a verdade. Eu topo. E se alguém tiver uma história pesada? - falou Bia. - Como é que fica? A segunda regra - disse Penélope. - Manter segredo. - Só entre a gente, nunca ninguém vai ficar sabendo. A gente jurou. - falou Angélica. - E ele? - perguntou Sarah. Pronto! Eu tinha voltado pra história. Dei uma tossida, enfrentando sete pares de olhos sérios. - Eu prometo. Não é o trato, o juramento do Clube? Se jurei, eu cumpro. Palavra de Picapau! Como se um passarinho lá tivesse palavra... - falou Bia, e a frase ficou ainda mais engraçada naquele sotaque do interior, dela. Todas riram. E parece que me aceitaram, porque a Débora não prestou atenção especial em mim enquanto ficou dando, olhos fixos no chão do quarto, voz menos aguda do que é o normal nela. - O nome dele é Roberto - continuou Débora. É o primo da Júlia, não sei se vocês lembram da Júlia, Olhos nos olhos, olhos nos olhos... eu tentava ç ela já estudou no Pitágoras... Minha mãe ajudou a mãe dela a alugar uma casa de praia perto da nossa, no 30 Guarujá... no fim do ano passado. A Júlia foi lá, foram uns parentes dela. E foi o Roberto também. - Como ele é? - perguntou Maria Fernanda. Débora deu um sorriso. - É altão, eu fico quase baixinha perto dele. Debi apontou uns dois palmos acima dela, credo, o cara devia ser um monstro. Se ela já é enorme... - A gente fez dupla pra jogar vôlei na praia, ele era ótimo em vôlei, a gente não perdia pra ninguém... é um cara aí de uns 20 anos, moreno com cara de turco, vocês têm de lembrar da Júlia, era uma turquinha nariguda, magricela... - Eu lembro dela - falei. E completei: - Não achava ela assim tão nariguda. - Você também, hem, Picapau - falou Sarah, sorrindo -, você não perdoa nada: paga vinte paus pra ver boceta escondido, gosta de nariguda, de turca, de preta, de branca... Completei: - De japonesa, cor de abóbora, javanesa, loira, ruiva, taitiana, iugoslava, russa, eu gosto de mulher. Todas elas riram. A charmosa Penélope ficou até com um ruborizado no rosto, me olhando comprido, com suas pestanas longas em volta dos olhos amendoados, cara de mestiça japonesa. - Gente, mas deixa a Débora falar. Ela tem de falar, contar tudo pra gente... Como é que foi? - perguntou a Rita, olhando para as outras. - Does? Na hora em que você e ele... - Não, não doeu muito... Olha, eu sei que foi uma coisa assim... estranha. Foi rápido, foi uma vez só. Ele não sabia que eu era virgem, eu não contei pra ele, ele só percebeu que eu era virgem depois. E depois, quando ele soube da 32 minha idade, ele ficou foi louco da vida comigo. Pensou que eu era da idade dele, uns 20 anos. Tenho esse tamanhão todo, o pessoal me dá mais idade... - Onde é que foi? - perguntou Angélica. - No carro dele. - No carro? - sorriu Sarah. - Em carro fica comprado. ainda mais dois gigantões que nem vocês... - Era uma van. Gargalhada. "Aaaaaaah!, bom", falou alguém. - A gente tinha saído uma noite, a Júlia e uns parentes dela ficaram no barzinho até mais tarde... eu e a Roberto tínhamos marcado um jogo de vôlei com uns caras pro dia seguinte logo cedo, nós voltamos na frente; Ele parou a van numa praia afastada, a gente foi pro banco detrás... ele usou camisinha. E entrou em mim, um pouquinho e só. Silêncio. Uma olhando pra cara da outra. A Debi baixou os olhos, ficou riscando o carpete com a unha, pernas cruzadas. - E você fala assim, pó!? - reclamou Angélica. - Como assim? Ah!, sei lá... tão sem sentimento. - Angélica continuou: - Você nem contou da virgindade pro cara, ficou com raiva porque você era mais nova do que, ele pensava... - Ele não ficou com raiva. Ficou foi apavorado! Cês sabem que por lei ainda existe esse negócio de ção de menor, não sabem? Se eu contasse pra alou desse queixa na polícia... - E você ia fazer isso?! - escandalizou-se Maria manda. - Claro que não! Se eu deixei, se falei que topava... 33 - Continuo achando essa história muito besta - reclamou Angélica, apertando os lábios grossos, num gesto de irritação. - Como é que pode, Debi? Sua primeira vez, e você diz que deu pro cara num carro, sem romantismo, sem um namoro maior, que foi rápido... Por que você deu pra ele, então? - É, eu também não entendi - falou Rita. - Coisa sem amor... Quer saber, Débora? Acho que você inventou isso agora. Só pra enrolar a gente. Pra fingir que já fez isso e na verdade... - É tão virgem quanto a gente - falou Penélope, se "entregando". - Fale por você, queridinha... - disse Sarah, com uma cara safada. - Fale só por você... As meninas deram gargalhada, eu também achei legal. A Débora não riu. - Eu não sou mentirosa, Rita, que coisa... se estou dizendo que dei pro Roberto, que foi a primeira vez, que não foi muito legal... eu. Olha, eu nem gostei. Nem aproveitei a coisa. Sei lá, fiquei com medo que doesse... Depois ele ficou todo assustado, me emprestou o lenço dele pra colocar na calcinha, porque começou a sair um sangue... Não um saaaaangue... mas uma mancha na calcinha... - Débora encarou rapidamente as amigas. - Por que vocês estão me olhando assim? Não é nenhum drama, não precisam ficar com dó de mim. - Eu não estou com dó - disse Bia, mas parecia estar, sim, morrendo de dó, com aquela cara de menininha, o aparelho nos dentes. - Eu só não entendo, Débora. Não entendo o que você fez. Debi ficou cutucando o dedão do pé, o pé enorme que ela tem, deve usar dois números a mais que eu, idéia besta (já falei que na hora do perigo tenho o péssimo hábito 34 de pensar merda), se eu falasse em "sapato grande" nessa hora em que a Débora andava tão incomodada como os caras pensavam dela, ah!, ela não me matava? Picapau, pau, você tem de controlar seus pensamentos... Debi continuou cutucando o dedão e depois rompeu, o silêncio, falando baixinho: - Acho que eu queria era ficar livre logo disso. Como assim? - perguntou Sarah. - Da virgindade. Esse negócio de valorizar a virgindade, de se guardar pra maridinho, pra um cara especial... O Roberto era um cara legal, por que não podia ser ele? Por que não podia ser num dia qualquer, sm nada de... violinos tocando, luar maravilhoso, jantar à luz de velas... ele perguntou se eu queria, falei sim, pronto, a gente transou, perdi o cabaço e tchau. Outro silêncio comprido me fazendo de novo sentir estranho no ninho. Elas não iam pedir a minha opinião, mas que achava essa história do caramba, ah!, eu dava. Podia ser que a Debi não fosse lésbica, mas c ela era uma mulher esquisita... E achei que, mesmo com meus 16 anos, tipo do cara que fica de pau duro até diante de um repolho aberto, ah! Eu achei que comia ela. Se ela quisesse dar pra mim, meus deuses, dava até medo só de pensar. Durona como ela era, toda nervosa e... se eu negasse fogo ou ela não gostasse lá se não acabava comigo à dentada! Não foi bem isso que a Rita falou, mas chegou perto: - E por isso, Debi, que o pessoal fala que você é lésbica. Acho que não tem garota no mundo que queira transar assim, despachada desse jeito que você fala, - imitou a voz aguda da amiga - "transei pra ficar livre da virgindade, acabar com esse negócio"... Pó!, não é assim... Eu acho que tem de ser romântica. Precisa, 35 sim, de ter luz de vela, hora especial, um cara apaixonado. Senão como é que fica? Todas as meninas começaram a falar junto, uma atropelando a fala da outra, e de repente a Sarah falou mais alto: - O Picapau! Quero saber o que o Picapau acha! - Acha do quê? - perguntei. - De virgindade - Sarah sorriu. - Do que a Debi contou... - Eu sei lá, não acho nada... Elas me vaiaram, senhoras e senhores. Fiquei profundamente ofendido por ter sido vaiado em pleno quarto da Debi, mas confesso que preferia mesmo era manter minha opinião sigilosa. Sem chance. A Penélope me lembrou da promessa, da honestidade, do sigilo... Então pensei um pouco. Não ia ser doido de contar a idéia do sapato grande ou do medo que a Debi me inspirava. Mas sobre virgindade... - Olha, querem saber? Acho que é muita coragem, da mina se entregar assim, se na primeira vez dói. - Ah!, o Picapau tá me chamando de corajosa... - Debi sorriu. Chamava mesmo. Era verdade. Se a Debi lutasse com um urso, eu apostava que ela ainda fazia um casaco de peles com o couro do bicho. Mas claro que também não falei isso. - Olha, querem saber? Eu acho que a natureza faz um monte de coisa ruim pra mulher. - Apoiado - falaram duas ou três. - Tipo menstruação, o tal de hímen que rompe e dói na primeira vez, fazer xixi sentada... - Apoiado!!! - dessa vez, foram umas cinco que gritaram. E eu fui me entusiasmando: - Tirar sobrancelha, rapar a perna e debaixo do braço... - APOIADO!!!!! - dessa vez, foram todas. 36 E eu então me entusiasmei de vez: - Querem saber? Acho que deve ser uma droga s mulher. Eu não queria ser mulher, nem a pau eu queria ser... - eu e a minha boca grande! Eu e minha mania de botar o pescoço na guilhotina, terminei a frase, olhando de rosto enfezado pra rosto espantado, e foi assim baixiiiiinho: - ... mulher. - Nada a ver, Picapau - reclamou Angélica. Eu voto em botar o Picapau pendurado na janela pelo pé machucado - falou Sarah, malvada. Reagi: - Calma aí, calma aí... já sou prisioneiro, tortura nem. Desculpem, tá? Eu falei sem pensar, um milhão e duzentas mil desculpas, garotas, pelos deuses, compreendam... Mas, se eu acho, eu acho. Vocês não disseram que é pra usar de sinceridade? O cretino tem razão - justo a Debi me defendeu. Até me espantei. - A gente combinou, tem de r-o que realmente pensa. Se o Picapau é um machista cretino e preconceituoso, a gente tem de aceitar. É, coitado... - falou Penélope, com voz tão doe que me comoveu, mas só até completar a frase: ele não tem culpa de ter nascido homem, tadinho As outras sacaram a maldade, e foi a vez da Maria Fernanda: Deus fez primeiro o homem, mas logo percebeu o erro. Aí passou a limpo e fez a mulher. Elas riram e até eu ri, vai, da piada velha. 37 Aí foi Bia: - Se alguém paga pra ver, é porque nunca viu, a não ser escondido. Completou Angélica: - Coitado de homem. Tem de pagar pra ter sexo. Se for pobre, então, faz o quê? - Espera aí! - eu gritei, já meio puto com aquele papo. - Tem mulher que paga também, tem mulher que procura homem e... - Homem bonito - completou Rita. - Cara bonito, sim, mas um Picapau... olha o apelido dele, gente. É Picapau por que, meu bem? - E por causa do cabelo, do topete do cabelo. Vocês não vêem que o cabelo... - eu ia gritando, e elas riam, nem ouviam, mas elas riam... A Sarah terminou a maldade: - Vai ver é desse tamanhinho... - Não é não, não é não... A Debi de novo me salvou. Nem acreditei que ela de novo me salvou: - Calma aí, meninas... sem baixaria. Ele falou de mulher no geral, agora a gente já está abusando. E a gente tem de reconhecer que o Picapau tá participando direitinho... Estava era puto. Olhei feio pra cara delas, todas rindo que nem um bando de maritaca no cio. Não que eu já tenha visto um bando de maritaca, ou sequer imagino se ave fica no cio. Mas estava tão bravo que tinha vontade de chamar elas pelos nomes mais estrambóticos que eu pudesse inventar. - E de mim, Picapau... você falou de mulher, do que a natureza faz pra mulher... E de mim? O que você fala sobre o que eu fiz? 38 Era pra dizer se eu achava que ela era lésbica? Era que a Debi me perguntava? Não sou tatu. - Como é que eu posso saber? - então falei. - 10o sou mulher, a primeira vez de um homem é diferente, Você fez o que achava certo... - E como é a primeira vez de um homem? - Perguntou Bia, rindo feito uma retardada. Gelei. Elas iam perguntar isso pra mim, agora? Eu ter de responder? Mas a Sarah me salvou. Tinha acabado de esmagar seu toco de cigarro no cinzeiro, pegou o isqueiro Zippo e ficou abrindo e fechando a tampa, antes de falar alto e fazer o papo voltar pra confidência da Debi: - Vamos lá, pessoal! A gente tem de respeitar. Fbi o segredo da Debi, o jeito dela perder a virgindade, tem quem acha isso estranho, mas vamos respeitar... honestidade, não é? O que se fala aqui daqui tio sai, a gente prometeu. - E a ruiva se virou pra Mb ora, falou com ela, só com ela: - Sabe, Debi? Eu penso diferente, bem diferente de você. Você deu pro cara e parece que nem aproveitou direito. Eu já penso exatamente o contrário... - Então é a vez da Sarah - falou Maria Fernanda. Aí elas se entusiasmaram de novo e, graças aos deuses, me deixaram de lado. Fizeram um coro: "Sarah, Sarah, Sarah...". A ruiva ergueu as mãos pra cima da a, como se estivesse cumprimentando a multidão de uma vitória, um gesto legal, eu quase ri, tentando esquecer a baixaria delas... até que sobrou: E aí, Picapau? - perguntou Sarah, me encaran Não vai dizer o que os caras da escola pensam Mim? E o que você pensa de mim? 39 Capitulo 3 SARAH * - O que eu acho de você? Ah, eu acho... que você é alegre. - Alegre, sei... - Sarah fez no ar um sinal com a mão, como se falasse "continua, vai". - Ah!, eu acho... que você é legal. Você conta muita piada, faz bagunça. - Sou uma palhaça, você quer dizer! - Não! Eu não disse isso. Imagina! Fiquei olhando pra cara engraçada da Sarah. Devia ser um pouco só mais alta que eu. Cabelo vermelho natural, num corte da moda, formando um minirrabinho atrás. Olhos amarelados, grandes. Seios grandes, ela usava sempre bustiê. As leves sardas pelos ombros chamavam a atenção, os meninos bem que ficavam olhando pros peitos dela. - O pessoal acha que você é gostosa. 40 Pronto! Foi eu dizer isso pra assanhar a mulherada. minas todas se arrepiaram, ficaram rindo. "Iiiiiih, fresca! Agora vai ficar toda exibida", falou uma lá. - E que mais, Picapau? - Como assim, que mais? - Ninguém comenta, sei lá... do que eu faço, quem eu saio... Repassei mentalmente um monte de moleque da ola, tentando lembrar de alguém que já tivesse saído a Sarah, mas não lembrei do nome de nenhum. Só ma conversa com o Gabiru, um dia qualquer e ele falava era mal, de que ela era muito fresca, enjoada. - Sei lá! Os rapazes não comentam se você saiu com esse ou com aquele. Acho até que o pessoal pensa que você não vai muito com a nossa cara. Achei que ela fosse ficar brava porque falei isso, s a cara da Sarah continuava muito safada, um riso parado na boca, o aparelho nos dentes deixava a risada a ainda mais maluquinha. Ela estava de pernas cruzadas, usava short e tinha sardas também nas pernas, pernas ruivas, coisa mais bonita! Então se balançou pra frente e pra trás e depois gargalhou. - Então funciona direitinho - riu Sarah. - Como assim? - perguntou uma delas. Sarah olhou para todas. Depois parou de sorrir, o riso continuava saindo pelos olhos, olhar brinte. - É sinceridade, né? É o tal "falou aqui, morreu , não é? E continuou olhando. Que coisa, o que ela esperava a gente dissesse? Debi resumiu por todas as outras: - Claro que sim, Sarah. Pode falar... 41 - Olha. Eu acho que se vocês querem uma definição minha... eu diria que sou é uma grande galinha. - Galinha! - protestou Maria Fernanda. - Que coisa feia de dizer, Sarah! - Feia, não! Eu acho uma estupidez, essa palavra... mas é verdade. Se mina galinha é aquela que sai com uma porção de caras, e faz um monte de coisas com eles... então eu sou galinha. Que vontade doida de soltar um "cocoricó", só pra fazer graça. (Eu e a minha mania suicida de pensar merda etc. e tal.) Aí elas ficaram tão sérias... só a Sarah continuou sorrindo e balançando a perna, sentada daquele jeito, com os pés enfiados debaixo da bunda. Eu acho que elas estavam era pensando o que a Sarah queria dizer com o tal "fazer um monte de coisas". Pelo menos eu estava. - Mas, o que você faz, exatamente? - perguntou Penélope, bem devagar. - Você deixa colocar aqui, ali... pega nele, põe na... Ela não conseguia achar as palavras exatas. E eu não agüento deixar o vocabulário faltar, pra ninguém. Fui falando depressa: - Sexo anal, sexo oral, "cunilingus", masturbação, meia-nove... - Pára, pára, Picapau! - gritou Débora. - Você já está exagerando... - Exagerando, nada - falou Sarah, sempre com o mesmo riso parado na boca. - Eu faço um monte de coisas. Mas tem uma que não: eu não deixo colocar "lá". O lugarzinho da vagina ainda está virgem. É só pro marido, pro dia em que eu casar. 42 Aquele silêêêêncio... cada uma imaginando o que e a outra fazia, ou dizia fazer, se não dava a boceta. hem? Se soubesse que a Sarah era assim de topar tinha mudado de carteira desde o primeiro dia de não desgrudava dela. Mas ela tratou de tirar os s cavalinhos da chuva: Só que eu não saio com cara da escola. Tenho amiga, a Deise... ela é mais velha que eu, já tem de 18. Ela volta e meia marca um programa pra conhece um monte de caras, assim de vinte e s anos... a gente sai, vai pra clube privé, danceteestaurante fino, motel... - Você já foi em motel, Sarah? - quis saber a Rita. - Em qual motel você foi? - Tem um monte... Tem um lindo na Raposo Tavares, todo decorado como se fosse um castelo medieval, a banheira é redonda, enorme. Mas por que você faz isso? - perguntou Penélope. Estava com uma carinha tão preocupada, tinha até uma ruga na testa. A Bia e a Maria Fernanda também estavam com cara esquisita, eu diria "chocadas". Isso deve ter deixado a Sarah meio brava, porque ela começou a falar alto e depressa: - Como assim, por que faço isso? Porque eu gosto porque sexo é legal, porque tem cara muito interessante que vale a pena transar. Eu não saio com moleque, com cara boboca. É cara de grana, que me dá presente... me leva a cada lugar incrível, já fui jantar no Leonardo's,, vocês nem imaginam o que é o Leonardo's, saísse aí com um... - olhou pra cima, pra baixo e s pra mim, me apontou - ... com um Picapau qualquer, rolava o quê? Cachorro-quente em barraquinha? 43 - Sem catchup, que eu não gosto de catchup - falei, sabendo que a piada ajudaria a melhorar o clima. Não ajudou muito. Só a Angélica deu uma risadinha, as outras meninas continuaram sérias, pensaaaaaando... - Você pode dizer então que é virgem... - falou Debi, mordendo o lábio de cima e fazendo ele sumir de vez, boca apertada. - Posso, sim - concluiu Sarah. E ficou silêncio. Pensei por um instante no que a profa Celeste poderia falar sobre o que a Sarah fazia. Talvez a profa entrasse com o papo sobre "baixa auto estima". Era o que ela dizia, não era? Pra definir uma pessoa que só se valorizava pelo sexo. Mas não tive chance de falar. - Ah, essa eu não agüento! - nessa hora, a Bia estourou. Nem estava reparando na Bia, fiquei surpreso com o modo dela se levantar, ajeitando a minissaia na bunda, e com o rosto tão vermelho, tão brava com a Sarah como se fosse a irmã dela que estivesse fazendo uma coisa muito feia e tivesse de levar bronca... - O que foi? - perguntou Sarah, que continuou sentada e apenas levantou a cara pra outra. Bia foi falando depressa, ela tinha um sotaque do interior, muito engraçadinho, o jeito "caipirês" dela falar os "erres" puxados e, enquanto falava, ela estendia a mão pra frente, quase botando o dedo no nariz da ruiva: - Não acho certo, não acho certo, não acho legal, Sarah, a Debi chamou a gente, chamou a gente de... de hipócrita, num foi, Debi? Mas mais hipócrita é você. É você, Sarah! Porque tá áí saindo com um monte 44 de caras, fazendo um monte de coisas e vai depois pegar um tonto, um rapaz bobalhão pra casar com ele, vai ser enganado, pensando que você e virgem... - Não vai ser enganado, não! Eu sou virgem, mesmo! - E, fazendo tudo que diz que faz, ainda diz que é virgem? - Tecnicamente, sou sim. O hímen está no lugar Ninguém colocou lá dentro, tá tudo fechadinho. Vai ficar pro dia do casamento. Bia abriu a boca umas três vezes, o aparelho nos dentes brilhando, engraçado que a Sarah também usava aparelho, era o EMBATE DOS APARELHOS DENTAIS, a eu aí pensando merda de novo, devia era estar com dó da Bia, assim tão escandalizada e tão magrela, a sim, parecia ter até menos do que os 15 anos, menininha zangada. Depois de abrir e fechar a boca que nem peixe, Bia afinal resumiu o que queria dizer, antes de voltar pro seu lugar sem nem olhar na cara da Sarah: - Não concordo. Não concordo com isso, Sarah. Sarah esquentou. - Não concorrrda com o quê, Bia? - ela imitou caipirês, forçando o "erre". - Não concorda com o Quem é que te deu o direito de falar o que é certo errado na vida dos outros, hem.? O certo é o quê? r virgem? Vou casar virgem, sim. Mas gosto de sexo, de sair com rapazes, gosto do que eles me fazem, de ganhar presente... Afinal, o que, que é o certo? Sarah enfezou de vez. O rosto dela ficou verme e, como ela tem o rosto sardento, as manchas se toaram no cor-de-rosa das maçãs do rosto. Pegou o isqueiro do chão e ficou abrindo e fechando a tampa, 45 fazendo aquele barulho de mola que os Zippos fazem, tlec petlec, tlec petlec, depressa, depressa. - O certo e fazer que nem a tonta da minha irmã? A Judith, idiota, engravidou aos 17 anos. Adorava o namorado... vivia só pra ele, era Jeová no Céu e o Paulinho na Terra... faziam tudo juntos, parecia assim o maior caso de amor depois de Romeu e Julieta. E aí? Aí ela engravidou. E cadê o Paulinho, hem? Tá casado com ela, assumiu o nenê, trocou fralda, ajudou com mamadeira? Não. Tá nos Estados Unidos, na casa de uma tia. Nem manda cartão-postal, a família dele botou o Paulinho bem longe na hora que a idiota da Judith falou que estava de barriga... Isso é o certo, Bia? É? Sarah olhou para as meninas, eu vi que seus olhos estavam brilhando, era outra que ia chorar? Puxa vida, eu estava vendo coisas que nem sequer imaginava... a Debi, ameaçando chorar. A Sarah, tão engraçada e galinha, como nunca imaginei isso, chorando? Mas ela se controlou e continuou falando. Agora não mexia a perna nem abria o isqueiro, deixou o Zippo largado no chão, falava sem olhar no rosto de ninguém: - O que é o certo? É fazer como a minha mãe, que se separou do meu pai e fez a burrada de aceitar uma pensão que é uma merda, ela tem de se matar na malharia pra pagar as contas da gente enquanto ele, que é médico, fica no bem-bom com uma amante que tem quase a idade da minha irmã... Isso é o certo? Eu não quero sofrer por causa de homem. Quero me divertir e quero casar. E marido tem de ser rico. Isso mesmo. Tem de me tratar super bem, me dar tudo de bom. Aí sim. E não pensem que eu possa continuar galinha a vida inteira, tá? Porque isso é ago 46 eu estou curtindo isso... mas se achar um marido legal e rico, eu serei fiel. Verdade. Só não vou frouxa. Não vouser trouxa. A Deise é que está certa: mulher apaixonada é trouxa. Só faz engravidar e se ferrar. Eu quero de duas uma: ou prazer, e aí eu saio com um monte de caras... ou um marido, e aí eu quero um cara rico que me trate bem. - Foi essa tal de Deise que lhe colocou essas idéis na cabeça, não foi? - perguntou Rita. - Por quê? Você acha que eu sou urna... uma boba influenciada? Eu sempre pensei assim, mais ou nos assim... desde que a Judith engravidou e agora ta lá com 21 anos, um nenê pra minha mãe cuidar, se ferrou na escola, ainda tá no colegial com essa idade, tudo que ela queria ser, fazer, viajar, passear, conhecer, ela perdeu... e o Paulinho? Nos States, meu bem! Arumando uma gringa pra ele comer e abandonar de novo com nenê, como fez com a minha irmã... Lembrei de outra aula da profa Celeste, em que ela falou de papéis sexuais, a Rita também deve ter lembrado da mesma coisa, falou: - Sarah, sabe o que parece? Que você está quedo se vingar das bobagens da Judith ou da sua mãe seu jeito de sair com os caras - respirou fundo s de continuar. - Mas qualquer um, Sarah? E se o a tiver mau hálito, ou for um nojento metido, um bobalhão, você topa assim mesmo? - Não é bem assim, falou Sarah, o rosto mais vermelho que nunca. Outra menina ainda soltou "Não é legal sair com pra ganhar presente", num tom de voz que foi de certeza do que de pergunta. 47 De novo, Sarah murmurou: - Não é bem assim... - respirou fundo e falou mais alto: - Tem muita garota que ganha presente quando sai com um cara. Que é que tem? - Tem que é uma concorrência muito safada, pra homem que é duro - eu falei, não agüentei, tinha de falar. Todas elas encararam o prisioneiro. Mas desgrudaram da pele da ruiva. - Verdade, meninas, verdade! Isso é outra coisa que eu acho uma droga em mulher: é tudo interesseira. Nesse ponto, é galinha, sim. Só sai com cara por interesse... Pra que fui dizer isso! Elas começaram a falar ao mesmo tempo. A Penélope, com o rosto vermeeeeelho.. . a Bia e seu caipirês, no "não concorrrrdo, não concorrrrdo'... a Rita sorria, falando "Que absurdo!"... a Maria Fernanda com a mão na boca, mordendo as unhas... a Debi fazia um discurso enorme em cima da Sarah, em voz alta, que não dava pra entender nada.., a Angélica ficou só sorrindo... Eu me levantei. O pé doeu, fiz uma careta mas não deixei a peteca cair. - É verdade, vão dizer que não é verdade? - tive de gritar pra elas me ouvirem. - Olha só, olha só: saí um dia desses com uma mina, não vou dizer quem e, vocês conhecem... ela quis um cinema. Okay, de cinema eu também gosto. Depois, um lanche. E a peste escolheu o sanduíche mais caro, puta mina gulosa, o troço era caro que nem filé, meu! A maior grana... e eu paguei. Depois, sorvete. Aí, passeio no shopping e ela dando um monte de dica pra ganhar flores, ganhar bombom... comprei bombom e ela comeu a caixa inteira, 48 só me deu um! E depois... ah!, depois ficou brava porque eu não queria ir pra casa dela de táxi. E aí, o que eu ganhei, hem? Quando comecei a agarrar ela, na casa dela, a mina ficou brava. Falou que... - coloquei a mão na cintura, exagerei no jeito dondoca de falar - "ai, Picapau!, se eu soubesse que você era assim tarado, nem tinha saído com você!". Puta fria eu entrei. Papel de trouxa... não comi a menina, gastei a mesada, não comi chocolate... - E ainda ficou com fama de tarado - completou Angélica. - A Rosana me contou do passeio de vocês. - Está vendo? Olha só, o que mulher faz... ainda contou pra você. Mas que Rosana filhada... - Ooooooh, Picapau! - interrompeu Bia. - Quem mandou você procurar uma fresquinha que nem a Rosana? Nem sei o que vocês tanto vêem na Rosana, os caras só falam na Rosana... Bom, eu não ia falar pra uma magrelinha como a Bia o que a gente via na Rosana, aquela morena com tudo-tudo-tudo no lugar, a cinturinha, os peitos de bico duro furando a camiseta, os olhos de gata, o bumbum mais arrebitado do Pitágoras inteiro... - Você entrou nessa com a Rosana porque quis, Picapau - falou Debi. - Claro que foi porque eu quis. E eu queria mais, mas me senti foi usado. Usado pra burro de carga, pra pagar conta e ficar só chupando o dedo. - Se você tivesse transado com ela, Picapau... - perguntou Debi - ... se tivesse, sei lá, dado uns amassos nela... você ia ficar arrependido de ter pago as coisas? - Claro que não. Era o que eu queria. 49 Aí Debi sorriu e completou a idéia: - Então por que você ficou tão bravo com a Sarah, chamando ela de interesseira? Homem também e interesseiro. Se eles pagam as coisas e a mina aceita, é pra transar com ela. - Também não é assim - voltei a sentar. - Também não e assim pra mulher. Mulher, homem... falar assim no geral dá nisso. Fica... vazio - falou Angélica. Consertei o vocabulário: - Generalização. - O quê? - perguntou ela. - Conceitos generalizados a respeito do comportamento sexual de homens e mulheres podem cair no preconceito e na estigmatização dos papéis - falei bonito. - O QUÊÊÊÊÊ? - generalizado. Ergui os braços, como tinha visto a Sarah fazer, agradecendo assim os aplausos da galera. - Esse daí não falta nas aulas da Celeste - falou Bia. As outras riram, mina falando só com a outra, o pessoal sorrindo e o clima voltou a ficar legal. - Gente, essa conversa está ficando uma loucura... - falou Rita, ajeitando a blusa sobre a barriga, ela e meio gorda, deu pra ver um pouco da barriga dela, podia não ser muito bonita, mas nunca que eu perco a chance de ver qualquer coisa de mulher. E ela continuou: - A gente nunca fez uma conversa assim. Tão despachada. - Tão verdadeira - completou Penélope. - Tão cheia de detalhes - falou Maria Fernanda. - Tão intensa - falou Debi. 50 - Tão realista - falou Bia. - Tão discutida - falou Sarah. - Tão engraçada - sorriu Angélica; e sorriu pra mim. Todas elas sorriram pra mim. - Vocês acham que isso está acontecendo é porque eu estou aqui? - Não tenho certeza - falou Debi. - Acho que é por causa de tudo... da sacanagem do meu irmão, da gente correr atrás de vocês... - Foi uma coisa boa a gente ter prendido um Picapau, né? - sorriu a gracinha da Penélope. - Obrigado, minha flor - mandei um beijo pra ela, as outras riram. Silêncio. Dessa vez, eu não senti que era um estranho no ninho. Ficamos meio que nos olhando e meio que sorrindo, umas pro outro. Debi bateu palmas. - Bem, acho que a gente conversou bastante sobre a história da Sarah... Alguém tem mais alguma coisa que queira falar sobre ela? - e apontou para Bia. - Você tem, Bia? A caipirinha falou: - Olha, Sarah. Eu. Continuo não concordando com o que você faz. Mas. Tem a história da sua irmã e. Olha, Sarah. O que eu quero falar, Sarah... é que eu não quero perder a sua amizade. - Ninguém vai "perrrderrr a amizade", Bia! - disse Sarah, arremedando o sotaque da amiga, e sorriu. Débora continuou a enquete: - Maria Fernanda? Ela mexeu o rosto num "não", um lado e outro, um monte de vezes. 51 - Angélica? - Eu até queria falar umas coisas, mas acho melhor deixar pra minha vez, quando for a minha vez de contar a história. - Rita? - Só queria dizer que o importante é o jogo da verdade e da sinceridade, e que a gente não deve estar aqui julgando ninguém. Só isso. - Nossa, que papo sério! - falou Penélope e, como ela era mesmo a próxima a ser chamada, já continuou: - Eu acho, gente... que estou aprendendo muito. Que tudo isso que a gente está falando, assim, é... é super. Que jeito lindo dela falar "super"! Não agüentei: - Lindinha! Adorei, Penélope, adorei! - mandei outra beijoca pra ela. Acho que exagerei. O meu tesão pela Penélope já devia estar muito na cara. As meninas se olharam, sorriram. Débora falou pelo grupo: - O que você acha da Penélope, Picapau? - O que eu acho? - Ei, eu vou ser a próxima? Então agora sou eu? - falou Penélope, acariciando a ponta da blusa bordada, o sorriso formando covinhas nas bochechas. - Pode ser, não é, pessoal? - Debi consultou as garotas com o olhar, todas rapidamente sinalizando "sim". - Então fala, Picapau. O que você acha da Penélope? O que os rapazes acham da Penélope? 52 Capitulo 4 PENÉLOPE Penélope?! - falei. A E, antes de dizer mais alguma coisa, fiquei olhando pra ela... de um jeito tão derramado que era como se as outras meninas todas tivessem desaparecido e eu só enxergasse a Penélope. Se fosse num filme, sabe quando tem a cãmera que dá um zoom na atriz e ela enche a tela toda? Foi isso que eu senti que aconteceu, naquela hora, com a Penélope... Baixinha, bate no meu ombro. Toda fofinha, proporcional, ela lembra sempre coisas redondas, duvido que tenha qualquer coisa reta ou dura na Penélope. -Acho que até cotovelo e dedo do pé dela devem ser redondos, macios... Morena, pele toda igualmente cor de mel, fico imaginando que o sovaco dela também é cor de mel, sola dos pés, nuca, toda ela é um pão de 1 doce e delicado. 53 E o rosto? Miudinho, tudo proporcional: nariz muito pequeno e arrebitado, as maçãs do rosto salientes, o sorriso formando covinhas no rosto, dentes tão brancos destacando-se numa boca com formato de coração, lábio superior bem pontudo pra cima e o de baixo assim rechonchudo, faz a gente ficar imaginando como seria bom dar beijo naquela boca, comer aquela boca feito um bombom. E os olhos meio amendoados, ela tem sangue de japonês e de francês, isso eu sabia, essa mistura de raças foi formidável, a Penélope é lindinha, lindinha, com a voz tão delicadinha, um ronronar de gatinha, descrever a Penélope é morrer de vontade de falar a língua do "inha", que bonitinha. - A Penélope? - perguntei de novo, sem saber como continuar. - Sabe que eu nem sei o seu nome, Penélope? A gente na escola só conhece você pelo apelido... por causa do desenho animado... - DA PENÉLOPE CHARMOSA... - duas ou três garotas falaram junto, a Debi ainda fez uma careta, levantando os olhos pro teto, como se dissesse "Que saco!". - Não sei quem foi que colocou esse apelido em você, mas foi genial. Nunca vi ninguém que fosse assim tão... tão Penélope Charmosa quanto você. - Obrigada, Picapau... - ela fez um dengo, sorrindo pra mim e abaixando o olhar. - Nem me lembro de quem me apelidou, foi quando era criança... mas o meu nome mesmo é Salete. Feio. Era melhor não ter ficado sabendo. Assim mesmo sorri. - Não vai falar, Picapau? Agora deu de ficar só olhando e rindo, feito bobo? - falou Rita. -Ah? 54 - Acho que você nem precisa responder, Picapau - falou Debi. - Olhem só, meninas, olhem só: ele tá gamado. É isso que eu acho um saco nessa tal feminilidade. Essa coisa de ser dengosinha, fofinha, mulherzinha, fragilzinha... e todo homem cai feito trouxa por isso. - Ah!, Debi, - reclamou Penélope, mas com o riso dengoso - não fala assim de mim. - É um exagero, Penélope - continuou Debi. - É jogar muito charme. É se fazer de menininha, você não é tão tonta assim... Penélope abaixou o olhar, e eu me senti puto. Tinha vontade de defender ela sim, de brigar com a grandona só pra que ela parasse de atacar a Penélope. Falei: - O que tem de errado a Penélope ser feminina? Ser fofinha? Mulher é isso, Debi. Mulher tem de ser isso, fazer o homem se sentir macho, protetor. Ela é muito feminina e eu gosto disso - insisti, olhando sério pra Debi. - Homem gosta de mulher feminina. Ainda lembrava dos chacoalhões que ela havia me dado, mas enfrentei os olhos azuis da fera. Antes que a Debi atacasse, a Maria Fernanda veio em defesa da baixinha: - Sabe o que eu acho, gente? Esse jeito dengoso, na Penélope, não fica feio. Não fica exagerado. - Acho que se outra menina qualquer, - falou Rita - até mesmo a Bia, que também faz o gênero menininha, fizesse esses beicinhos e essa vozinha da Penélope, ficava besta. Mas com ela funciona. - É o gênero dela, - falou Sarah - o tipo fêmea procurando colo. Você pode achar um saco, Debi, eu também prefiro uma coisa mais... mais despachada. Mas nela e legal. 55 - Homem gosta de mulher assim - insisti. - Tá bom, tá bom - concluiu Débora, fazendo com as mãos o gesto de "encerrar assunto". - Vocês me convenceram. É o jeito dela, nela o jogar charme fica natural, homem gosta de mulher dengosa... agora continua, Picapau. - Continua o quê? - O que os caras falam da Penélope. - Ah, eu acho! Eu acho que todo mundo queria namorar uma menina como a Penélope. - Estão vendo? - Debi rides again. - Estão vendo? Ele falou "namorar". Com o resto da gente, ou com outras meninas da classe, ia falar "transar, ficar, agarrar, comer"... Agora, porque a Penélope faz esse gênero procurando proteção, a coisa fica diferente. É isso que me deixa louca da vida, essa estupidez masculina de querer se sentir machão pra cima de mulher... O pivô da discussão, a própria Penélope, fez um beicinho mais charmoso ainda e me sorriu. Eu até me desliguei da conversa da Debi com a Sarah e mergulhei no mistério daquelas covinhas no canto da boca. - PICAPAU! - berrou a Debi. - A Rita falou com você. - Ah? Rita segurava um cigarro aceso, baforou a fumaça e voltou a me perguntar: - Eu queria saber... Você falou em namorar a Penélope. Mas o que um cara pensa quando diz que quer namorar um tipo dengoso como a Penélope? Eu pensei: em tudo. Como seria gostoso beijar aquela boca, fazer amor, dar beijo "lá" e alisar a pele dela todinha, ver 56 seus seios que devem ser redondos como é ela inteira, e eu sorri tão picapaumente safado, que todas as meninas riram. - Se a gente estivesse num desenho animado, eles iam colocar em cima da cabeça do Picapau um balão escrito CENSURADO - brincou Angélica. - Agora eu posso falar? - perguntou Penélope. - Fala, claro - disse alguém. - Ficou todo mundo aí comentando.., do meu jeito, de que sou dengosa, de que sou fofinha, que isso e aquilo... aí o Picapau fala em namorar, ficou com essa cara de sonso... - De sonso, não tem nada - riu Sarah. - Cara de quem está pensando em muita coisa... Penélope continuou: - Iiiih!, Picapau... então eu acho que vou é decepcionar você. Ela falou olhando bem na minha cara: - Eu não gosto de sexo. E olhou depois para todas as outras meninas. Ficou aquele instante de silêncio, o pessoal se dando um tempo pra digerir o "sapo gordo" que a minha queridinha tinha soltado. - Como assim, Penélope? - eu perguntei. - Você não gosta, você já fez, o quê... - Fazer? Você pergunta se eu ia fazer sexo? - risada linda. - Eu? Nunca. Só de pensar no cara, dele botar o. O coiso dele em mim... eu já fico com tontura. Não sei, Sarah, não sei como você. Você pode gostar daquilo. - Você é muito novinha, Penélope. Não saiu com um cara que soubesse agradar você de jeito... 57 - Sarah, você tem a minha idade. Se é que eu não sou mais velha, fiz 16 no começo do ano. Não tem nada a ver, a idade. É outra coisa. - A Penélope tem razão, Sarah - comentou Rita. - Nada a ver com idade. - É um problema seu, Penélope? - perguntou Maria Fernanda. - Você não gosta mesmo? Você não pensa de fazer isso depois, com um namorado bem legal, com o marido, sei lá!? - Pensar, né... eu penso. E fico com mais medo. Ela baixou os olhos, novo silêncio. - Mas, Penélope, você não gosta... - perguntei - ... não gosta do que exatamente? Você já saiu com alguém, o que foi que... - Picapau, eu já fiquei com cara em festa, já beijei, até bastante, uns dez caras. Mas... - olhou um breve instante para mim, baixou os olhos para o carpete - ... beijar é bom quando o rapaz é bem delicado e dá beijo suave, assim de lábio, só assim, beijo macio. Mas, se ele quer enfiar a língua na minha boca, eu me assusto. Eu não sei, eu travo. Alguma coisa dentro de mim trava, de repente, se o cara fica excitado. Se a gente tá só se beijando, de um jeito suave, fica gostoso. Mas se eu percebo que ele começou a ficar... O coiso dele começou a ficar... - Fala logo, de pau duro - concluiu Debi. Penélope não conseguiu repetir. - É,_ vocês entenderam. Aí eu não quero mais, eu quero ficar longe do cara, tenho vontade de empurrar o cara, de parar de beijar, de ir embora. E se ele quer me pegar, colocara mão aqui - apontou o busto - ou descer a mão pra... - também não conseguiu 58 dizer o nome, só apontou para o meio das suas pernas - ... eu nunca deixo. Acho assim um absurdo, acho errado. - Mas você nunca experimentou pra ver se gostava? Nem pensou em deixar ele te agradar pra ver se você achava bom.? - falou Angélica. - Se ela trava só de pensar nisso, Angélica! - falou Rita. - Como é que iria continuar? Seria quase um estupro rolar mais intimidade. - Acho que você ainda não encontrou o cara certo - comentou Sarah. - Dar beijo aí em dez caras, puf!, isso não é nada. Vai ver só pegou cara afobado, molequinho com pressa... - Não sei... eu já saí com um cara muito bonitinho, de quem eu gostava e que eu estava até bem a fim. Mas, na hora, é sempre a mesma coisa. É ele ficar excitado, eu perceber que ele quer mais coisa, que ele começa a descer a mão, a querer agrado, eu travo. - Isso é muito chato, Penélope! - falou Angélica. Penélope olhou pra mim: - Eu acho o Picapau uma gracinha. Mas, se a gente saísse, Picapau, eu sei o que ia acontecer. Você ia querer coisa, eu ia ficar com medo, ia ficar com nojo, ia me sentir mal... Tadinha da boneca japonesa. Estava com vontade de pegar ela no colo. A Maria Fernanda perguntou: - Será que isso é normal? - Você não lembra, Penélope, - perguntou Bia, rosto pálido, -olhos fixos no rosto de Penélope - se aconteceu alguma coisa na sua infância.., se aconteceu alguma coisa com você... se alguém fez alguma coisa com você? CLUBE DO BEIJO 59 - Algum trauma, é isso? - perguntou Penélope. - Não lembro, Bia. Acho que não. Eu nem brincava com menino quando era pequena... só tenho duas irmãs, a gente sempre ficava junto. - Não precisa ser um menino estranho - insistiu Bia. - Ela já falou que não lembra, Bia! - disse Debi. - Não sei se é trauma, duvido. Olha, Penélope... acho mesmo que faltou experiência. Que você devia tentar um cara legal, de quem você gosta mesmo, ir devagarinho, hoje tenta isso, amanhã tenta aquilo... - Um namorado. Namorado mesmo, de verdade. Não um cara de ficar em festa - explicou Sarah. - Acho que é mais o seu gênero, ter namorado. Senhoras e senhores, todas elas olharam pra mim. Só que eu não sabia se queria encarar uma barra daquelas. Que a Penélope é lindinha, e... deliciosinha, é... mas me imaginar dias e dias só pegando na mão e sendo empurrado toda vez que ela percebesse a excitação... Não sei se queria uma galinhona como a Sarah ou uma machona como a Debi, mas topar também menina complicada, menina apavorada, é duro. Então preferi desconversar. - Sabem de uma coisa? Estou precisando ir ao banheiro. Elas sorriram. A Rita falou: - E eu estou com fome. A gente não podia fazer um lanche, Debi? - Tem um monte de frios na geladeira. Minha mãe também deixou feito um bolo de cenoura. Levantei. Tentei dar um passo, mas o pé doeu pra caramba, eu gemi. 60 - Tá ruim assim o seu pé? - Debi também havia se levantado, ficou do meu lado. Confirmei com a cabeça. Quando eu estava sentado, o pé não doía. Mas havia inchado. Era firmar o pé no chão, ele doía. Tentei dar um passo, procurando pousar o pé o menos possível no chão. - Foi o cachorro que mordeu? - quis saber a Maria Fernanda. - Não. Eu torci quando pulei da varanda. - Você pulou da varanda, Picapau? - riu Penélope. - Que maluquice... - Lógico. Essa doida veio de cadeirada pra cima da gente... - falei, apontando para a Debi. - Não sei como ela não me agarrou pelas pernas e me jogou de cara lá pro andar debaixo, plof!, ia estourar que nem uma jaca madura caindo de um arranha-céu. Risadas. Até a Debi sorriu. Dei outro passo. - Vai, Picapau. Deixa eu te ajudar a ir ao banheiro, senão você só chega lá amanhã. Se apóia no meu ombro. Oferecimento desses vindo da Debi mais me assustava do que dava alegria. Falei: - Não, pode deixar... - Oh, eu também ajudo! - falou a outra grandona, a Rita, surgindo do meu lado esquerdo. - Tadinho do Picapau, a gente tem de tratar ele melhor... - Então vamos, todas nós, dar um trato nele - falou Angélica, tentando segurar o meu pé machucado. - Não, não! Ei, o que você vai fazer? Cuidado, tá doendo! Mas as outras já estavam me agarrando, não adiantava eu gritar: a Sarah pegou meu pé bom, a Bia me amparava as costas, a Maria Fernanda quase botou a 61 mão na minha bunda, a Penélope foi destrancando a porta do quarto... - Parem! Vocês vão me derrubar! Socorro... Que adiantava eu gritar? A Sarah começou a imitar ambulância e lá fomos nós, eu sendo carregado no colo pelas sete malucas, a gente seguia feito um bicho doido de tantas pernas pelo corredor do sobrado, o "uóóóóóóóáóó" se misturando com os latidos do cachorro (o filho da mãe estava encostado na porta do quarto, pronto pra me morder de novo, odeio cachorro) e sei que graças aos deuses não me derrubaram, não bati a cabeça na parede, não me pisaram no pé machucado nem me jogaram pela escada abaixo: fizeram o que prometeram, me conduziram direitinho até o banheiro da suite dos pais da Debi. - Você vai fugir? Vai tentar escapar? - perguntou Debi. - Se vai tentar isso, vou botar alguém aqui de espiã... - Que isso, Debi! Fugir como, pular outra janela? Com esse cachorro enorme do lado de fora? Você tá maluca? E depois... agora eu não sou do Clube? - Me deixa de espiã - riu Sarah. - Depois eu conto pra vocês como é... - Sarah, você disse que não sai com cara da escola. E eu não tenho grana pra te levar em restaurante... - E se eu abrir uma exceção? A cara dela era de malandra. Epa!, será que ela... Era brincadeira. Sarah arrepiou meu cabelo pra cima, como se eu fosse um garotinho precisando de agrado e foi até mesmo a primeira a sair do banheiro. Depois dela, as outras resolveram se despedir de mim do mesmo jeito: arrepiando meu pica-pau cabelo. 62 Recebi agrado de uma, de outra, da terceira... Quando finalmente todas saíram, olhei pro espelho e me assustei: meu cabelo parecia um ninho de saúva cabeluda, se é que isso existe. Elas podiam estar até cuidando de mim, mas não sou tatu (adoro falar "não sou tatu" - sei que é frase do tempo dos meus avós, mas me sinto um bicho cascudo e desconfiado -, aliás, adoro frases esquisitas): antes de usar a privada, olhei pelo buraco da fechadura e confirmei se a porta estava trancada. Eu, hem? Dá que elas invadissem o banheiro de repente e me pegassem no flagra! Se tem coisa que eu acho que nunca vou conseguir na vida é fazer xixi com alguém olhando... Como disse, "não sou tatu". 63 Capitulo 5 ANGÉLICA Demorei pra sair do banheiro, quando voltei pro quarto topei com as meninas no maior agito, correndo da cozinha pro quarto da Debi, trazendo garrafa de refrigerante, bandeja com um monte de sanduíches de pão de forma e fatias de bolo, deixaram um saco de balas aberto, no chão... Cansei ficar de prisioneiro. Pedi licença pra sentar no meio delas, no chão, ser só mais um no grupo, nada de cadeira no meio da roda, o eunuco no harém do sultão. Elas toparam. Então sentei entre a Sarah e a Penélope, juro pelos deuses, sem qualquer intenção safada, foi assim mesmo por acaso. Comi dois sanduíches, um pedação de bolo, dois copos de refri... que fome, meu! Acho que, quando a gente chega tão perto de ser morto, o apetite deve aumentar. 64 E, depois de me fartar daquele jeito, depois que a barriga estava cheia, ah!, fiquei olhando pra elas, três meninas de um lado, quatro de outro... e todas elas me excitavam a imaginação. De todas elas, eu podia tirar alguma coisa que prestasse, acho que não têm mulher no mundo, mesmo as mais horrorosas, que não tem alguma coisa que homem possa achar bonitinho. Não sei se pra transar ou agarrar, mas acho que, se existe uma coisa que os deuses fizeram muito bem feito, acertaram mesmo no mundo, foi mulher. Pra olhar, pra ouvir, pra cheirar. Isso é o que eu acho, Picapau, que eu sou, e que espero ser o resto da vida, o tipo de cara que gosta de mulher. Foi a Rita quem reparou na minha cara, no jeito de eu olhar de uma pra outra, e ela caiu na risada, as meninas pararam de conversar e olharam pra ela. - Que foi, Rita? - perguntou Sarah. - Viu o passarinho verde? - Ou o pica-pau cor de abóbora? - gozou Maria Fernanda. - O Picapau tá aqui olhando a gente de um jeito, que me deixou morrendo de curiosidade... No que é que você está pensando, Picapau? - Conta, Picapau... - pediu Angélica. Eu ri. Fingi de encabulado. - FALA, FALA, FALA... - disseram todas elas. Se tem uma coisa que nunca fui na vida é encabulado ou tímido. Adoro chamar atenção, ainda mais atenção feminina. Só fiz um pouco mais de charme, deixei aquele bando de mulher me pedir bastante, antes de contar... Aí eu sentei melhor no chão, coloquei as mãos para trás, assim espalhado como se estivesse pegando 65 sol na praia, respirei com vontade, com força, pelas narinas... e soltei a bomba. - Sabe o que eu acho um barato de estar aqui no meio de vocês? - O quê? Farejei de novo o ar, mas nenhuma delas percebeu o que eu queria mostrar com isso. - Fala logo, Picapau! - reclamou a Debi. - É que mulher tem cheiro. - Ei!, tá chamando a gente de fedorenta? - reclamou Maria Fernanda. - Será que meu desodorante venceu? - Sarah levantou o braço pra se cheirar nas axilas. As minas deram risada, eu fiquei na minha. Só depois que as risadas diminuíram é que expliquei a sacada. - Tem cheiro sim. Eu adoro, não sei outros caras... mas eu adoro. E o cheiro não é de suor, e não e também um cheiro ruim, é uma delicia. Adoro quando entro numa sala cheia de mulher... fico meio bobo, todo rindo sozinho, meio elétrico, nariz pra cima, farejando o ar... é bom. É um cheiro bom. - Nunca ouvi falar isso, Picapau. Ninguém jamais me falou uma coisa dessas! - disse Debi. Pensei quem seria o louco de ter essa coragem, se a Debi não gostasse do comentário acabava com ele, mas até a Debi tinha cheiro também, e eu jamais ia achar ruim o cheiro de qualquer mulher. - Teve até um filme, PERFUME DE MULHER, vocês não viram? - perguntei. - Com o Al Pacino, não viram? - Eu vi - falou Bia. Mas é que o cara era cego, Picapau... então o cheiro pra ele devia ficar mais forte. Foi o que eu entendi. 66 - Que nada! Se o cara gosta de mulher, se ele descobre como esse cheiro é bom, ele pode ser cego, mudo, aleijado, só não pode ser deficiente olfativo, que aí é covardia... mas ele sente. Pelo menos, eu sinto. Silêncio. Todas elas começaram a mexer os narizes, tentando farejar. A Penélope ainda deu um muxoxo ("Muxoxo", adoro essa palavra! Adoro livro em que aparece alguma frase do tipo: "Então o terrível pistoleiro deu um muxoxo irônico e falou para o caubói, `Prepare-se para morrer, Jhonny!"). Eu devia estar mesmo à vontade com elas - já estava até pensando merda! Porque eu, Picapau, devo ser meio doido, tem hora que me dá ataque de bobeira e eu viro uma verdadeira metralhadora mental (ou merdal), assim pensando duzentas mil coisas por minuto, a maior parte se pode colocar na descarga e puxar, tchaaaau pensamentos de jerico do Picapau ("jerico", olha aí outra palavra que eu acho do caramba!). Mas deixa eu voltar pra história, meus deuses, o que aconteceu: elas cheiraram e cheiraram e não sentiram nada. - Picapau, acho que você está tirando sarro da nossa cara - falou a Bia. - Se isso for gozação, Picapau... - ameaçou Débora. - Juro por todos os deuses do Olimpo, do candomblé, do catolicismo e do zen-budismo. - Por que você fala "dos deuses", Picapau? - perguntou Sarah. - Que religião é a sua? - Todas. Sou panteísta. Acho que um Deus só é muito pouco, tem que ser que nem na mitologia grega, deuses de todas as coisas... até do pé de trigo. Elas riram e eu adoro quando faço as garotas rirem... Fiquei lá, no meio da roda, me sentindo não mais 67 o prisioneiro no harém do paxá, mas o próprio paxá, todo feliz no meio da mulherada... A Angélica falou: - Meu primo também dizia que mulher tem cheiro. E dizia que adorava o meu cheiro. - Seu primo? - perguntou urna delas. - Era primo do meu pai, então também é meu primo - ela deu um sorriso encabulado. - Mas ele foi mais do que primo... - Então você tem de contar pra gente - falou Sarah. - Sua vez, Angélica! - gritou Bia. - CONTA, CONTA, CONTA... - o alegre corinho das sete princesas voltava a atacar. Mas, antes, a Debi quis botar ordem no galinheiro: - Pera aí... vamos fazer como a gente fez antes. Picapau, pode começar. - O que eu acho da Angélica? O que os meninos acham dela? - Isso al. - Hu . - fiz uma cara analítica, como se fosse o juiz de algum concurso de beleza. A tadinha da Angélica ficou vermelha, muito sem graça. Não quis judiar dela por mais tempo, dei logo o veredito: - A Angélica é uma gracinha. Um bombom. Essa cor de chocolate é de deixar qualquer cara maluco. Elas riram, mas era verdade. A Angélica é mulata (ou para se usar aquele tal besteirol politicamente correto da nossa escola, tem "descendência africana"). É magra e alta, pernas compridas... o cabelo é de um leve crespo, cai armado pelos ombros, um baita cabelo bonito, castanho-escuro. Os lábios são grossos, é pelos 68 lábios que a gente percebe mais a tal "descendência africana" - tem até uma marquinha no meio do lábio inferior. O nariz é fino, assim felino, as narinas ficam levantadas pra cima. E é nos olhos que eu me perco. São tão negros, tão, tão escuros, parece que a noite se perdeu dentro dos olhos dela, ah!, eu vou ser um poeta, a "noite se perdeu nos olhos dela", olha aí, preciso lembrar desse tipo de frase pra colocar em redação pra nota nas aulas de Técnica e Metodologia de Redação do Pitágoras. De corpo? Magrela, sem peito, só uns botõezinhos. E, confirmando a raça, o que a danada tem de bonito é o traseiro, a Angélica é bem bundudinha. Um traseiro arrebitado e bonito, saliente, não é quadril largo, nada disso, é bundinha arrebitada, o que é uma coisa diferente. Dava pra falar isso pra elas? Dava? - E o que os caras comentam? - perguntou Sarah. - Hunimmm... nada de ruim. Acho que a Angélica também fica no time das meninas que o pessoal acha que é pra namorar, que não é de ficar muito em festa, que ela não é de sair com qualquer cara. Sabe, o tipo que espera o príncipe encantado? Por aí. - Isso e você que diz ou são os caras? - perguntou Angélica. - Eu, mas... - fiz um gesto com a mão, como que mostrando que falava em nome da categoria masculina - ... nunca ouvi um comentário mais baixaria sobre a Angélica. - É, você falou uma coisa que é verdade... eu não sou muito de festa, de ficar com cara... E tenho até uma história de namorado pra contar pra vocês. 69 Angélica procurou a Sarah com os olhos, falou com ela: - Sarah, quando foi a sua vez, você falou tanto de sair com rapazes, de gostar de sexo, fazer coisas com eles. Bom, me desculpa. Mas eu acho que você não gosta é de ninguém. Por isso, sai com tanto cara diferente. Se você se apaixonasse, se você gostasse mesmo de um rapaz, se você amasse alguém de verdade... duvido que se interessasse por outros homens. Sarah fez várias caras e bocas enquanto ouvia isso. A gente não sabia dizer se ela estava ouvindo bronca, ou concordando, ou tirando sarro do que ouvia da Angélica. Mas não discutiu. Foi ouvindo. E Angélica continuou: - Olha, eu não estou falando isso, Sarah, pra criticar você, pra ser careta, mas... acho que, quando acontece uma coisa grande, de amor mesmo, é diferente. Não sei se amor mesmo é fácil de acontecer, se acontece pra todo mundo. Mas, quando acontece, pode ser muito especial. Muito forte. E muito bonito. E aconteceu comigo. - O tal primo - falou Sarah. - É, o tal primo - Angélica concordou e olhou para a cara de todos nós por um instante, tentando criar coragem, vendo como ia falar. Aí suspirou fundo e começou sua história: - Foi há dois anos. Agora eu tenho 16... Tinha acabado de fazer 14 anos quando os pais se separaram. A mãe queria se casar com outro homem, e o pai de Angélica ficou furioso, não queria de jeito algum que os filhos vivessem na mesma casa com outro homem. Angélica e o irmão dela, Evandro, foram então morar uns tempos na casa de uma tia-avó, parente do pai. 70 Era numa fazenda, em Minas Gerais. Gado leiteiro, a tia mexia com laticínio, um lugar muito grande e organizado. A tia devia ter grana, tratou muito bem dos dois. E devia ser também comum que a família usasse aquela fazenda como uma espécie de "refúgio" para as crianças com família encrencada. O tal primo, Vinícius, era filho da irmã da tia, tinha 16 anos e, apesar do cabelo liso, era bem moreno, "quase negro", como pensou Angélica quando o viu pela primeira vez. Era um rapaz alto e forte, o tipo que passava o dia sem camisa, andando a cavalo e jogando bola. Eles se gostaram muito logo que se viram. Foi atração à primeira vista. Iam juntos para a escola, uma escola rural dentro da própria fazenda, não era muito boa, mas foi o combinado estudarem lá uns meses, até os pais de Angélica e Evandro acertarem o destino deles e o dos filhos. Angélica e Vinícius conversavam muito. Falavam de planos futuros: Angélica dizia que seu sonho era ser aeromoça, voar pelo mundo inteiro. Vinícius queria lidar com terra - o pai também era fazendeiro -, mas antes disso sonhava em ser peão de rodeio. Ele tinha habilidade com animais, montava em touro, marcava o gado, até ajudava a esquartejar boi, coisa que Angélica achava terrível e nojento, mas até isso o Vinícius sabia fazer. Passeios, conversas, escola, morando na mesma casa, a família sempre ocupada com os próprios negócios, os dois sem a mãe e o pai por perto pra "marcar" mais em cima, os dois quase da mesma idade, os dois se gostando cada vez mais... Foram sozinhos, de cavalo, até uma cachoeira, numa segunda-feira depois das aulas.., a tia pensava que eles iam estudar com colegas. O lugar era muito bonito... água cristalina correndo entre as pedras, o musgo macio forrando uma espécie de cama, a água formando uma piscina natural meio encoberta pelas ramas das árvores, formando um teto sobre as suas cabeças... 71 Vinícius tirou a roupa. Toda. Ficou nu e se atirou na água. De dentro d'água, sorria e convidava a garota. Angélica nunca havia visto o sexo de um homem. E, vendo assim só um instante, lhe pareceu grande, de uma cor mais escura que o resto do corpo, meio assustador. Pensou em mentir que estava menstruada para não entrar na lagoa. Mas gostava tanto do primo. E dentro d'água ela só enxergava o rosto dele, o bonito sorriso do Vinícius, seu cabelo liso coroando uma expressão tão contente.., não quis decepcioná-lo. Começou a tirar a roupa, ficou com vergonha na hora de tirar a calcinha, mas tomou coragem, e também pulou nua dentro d'água. A água estava fria, mas Angélica se esquentou nos braços do rapaz. Beijaram-se muito, profundamente, por tanto tempo. Ele alisou os seios dela, com muito carinho, sentindo os bicos endurecidos em suas mãos. Beijou e lambeu os seios, com desejo... Angélica sentia um calor intenso no meio de suas pernas e, quando ele a acariciou "ali", ela achou que o calor se espalhava, subia para a barriga, para o peito, deixando o coração agitado como um passarinho batendo as asas em gaiola, e ela segurou nele. Segurou no seu pênis, sentindo como ele era comprido e muito duro, pela primeira vez ia sentir como era um homem quando ficava excitado. Durante longos minutos eles se acariciaram dentro da lagoa. Vinícius perguntou: - Você é virgem? Timidamente, Angélica moveu o rosto, confirmando. Então Vinícius disse que ele não queria ir mais além, que eles podiam se dar muito prazer, mas que ele não queria ser o primeiro, não "achava justo" ser o primeiro homem dela. Angélica quis protestar, ela queria, sim, senti-lo dentro de sua vagina, era um calor tão intenso, um desejo tão forte que latejava no 72 sexo daquela menina-moça, que era quase dolorido o modo como ela sentia. Vinícius podia ser jovem, mas era experiente nas artes do amor. Beijou os lábios dela, com muita suavidade, ergueu Angélica em seus braços fortes e a tirou da água, num só impulso, estendendo seu corpo virgem por sobre o lençol de musgo da margem da lagoa. E, ali, Vinícius a fez sentir o que era um orgasmo. Usou seus lábios e seus dedos com muita suavidade e conhecimento, e fez Angélica gemer e abrir-se em gozo, seu sexo aprendendo as artes do amor... Depois, Vinícius perguntou se ela também não queria proporcionar a ele, como homem, o mesmo tipo de orgasmo que ela havia experimentado como mulher. Angélica disse que sim. O rapaz explicou o que a moça deveria fazer, com os dedos e a boca, para que ele chegasse ao auge. Angélica achou estranho tocar o corpo dele daquela maneira, mas a intensidade do prazer que ela podia dar ao seu homem, o modo como ele respirava e implorava que ela continuasse, ah!, isso era também excitante para ela. Tão excitante como se fosse ela que estivesse gozando de novo, os dois unidos pelo sexo. Podia ser igualmente bom, mesmo que solitário. E quando o líquido do homem saiu do membro, Angélica se espantou, com o jorro e o cheiro. Mas ao mesmo tempo era bom, porque era dele, do rapaz adorado, seu primeiro homem a dividir artes e conhecimentos do amor, e ela achou aquele momento bonito, era um prazer que se davam em plenitude. Um momento mágico... Gostaram? Hem, hem? Gostaram do jeito que o Picapau aqui descreveu o encontro da Angélica com o primo? Eu falo, podem decorar meu nome, ainda 73 vou ser um escritor famoso, vocês ainda vão ler meus livros por aí, o Picapau é fogo: "rama das árvores formando um teto", "lençol de musgo", "coração agitado como um passarinho", "artes do amor"... Tenho estilo, e estilo e tudo num escritor, pelo que diz nossa profa de Português. Seguiu-se um momento de silêncio, o silêncio mais comovente daquela noite. Angélica chorava, um choro manso, as lágrimas escorrendo lentas pelo seu rosto, sem que ela percebesse o caminho riscado pelas lágrimas. Já a Penélope!... essa teve um ataque soluçante. Seu peitinho subia e descia, a cada soluço, o nariz fungando. Peguei na mão dela, procurei um lenço no bolso, mas ele estava tão sujo que fiquei com vergonha de oferecer, a Penélope agarrou o lenço assim mesmo, passou o infeliz pelos olhos e assoou-se com ele fazendo um barulhão, como é que num nariz tão pequeno podia caber tanta meleca? Eu tentei acalmar ela, ficava falando "não chora, fofinha, é só uma história...". - É que foi tão romântico... - ela soluçava. - Não sei, pra mim... é que a Angélica contou isso com tanto. Tanto amor, foi diferente, foi bonito. A Bia e a Sarah também estavam com os olhos vermelhos, mas davam menos bandeira. Sarah disfarçou se levantando, e andou pelo quarto fazendo movimentos de ginástica. Ninguém teve coragem de dizer mais nada por um tempo bem longo. A gente ficou esperando a Angélica "acordar". Porque, depois de tudo que ela contou, assim de voz suave e sem se constranger em detalhar o ato de amor, ela havia começado a chorar e tinha "escapado" da sala. Seu corpo estava ali com a gente. Mas sua mente andava por algum outro 74 lugar... acho que por um lugar e uma cachoeira muito especiais. Afinal, Debi se aproximou de Angélica e lhe deu um abraço muito forte, apertado. Quase de pegar a garota no colo, feito nenezinho. Falava: - Tudo bem, Angélica... você contou pra gente, foi lindo. Foi muito bonito. E ele? O que vocês fizeram depois? Ela limpou os olhos, quase espantada de ver a umidade na ponta dos dedos, nem sequer devia ter reparado que chorara. Depois, mordendo os lábios grossos, continuou: - Nós nos encontramos mais algumas vezes... nunca fizemos tudo, ele não queria a primeira vez, achava que era injusto, que eu era muito novinha. Acho que era coisa de machismo, lá por aquelas bandas existe esse negócio de casar virgem, é importante... e, depois... O pai de Vinícius foi buscar ele. Hoje o Vinícius mora numa fazenda em Goiás. Duas semanas depois, eu e meu irmão viemos pra São Paulo, morar com minha mãe e o novo marido dela. Meu pai acabou concordando. Angélica ergueu os olhos negríssimos, ainda mais escuros e tão incrivelmente brilhantes: - E agora eu estou aqui - sorriso triste. - E ele, lá. Em Goiás. - Vocês nunca mais se encontraram, nunca mais se falaram? - insistiu Rita. - Telefonema, Internet, correio... Goiás não é o Deserto do Saara! - Hoje nem no Deserto do Saara se fica isolado. Li numa revista que a Internet está ligando até esquimó com o resto do mundo. - Eu falava depressa, quando fico comovido fico mais ligado ainda, a 120 por hora. 75 - O Almir Klink, manja o Almir Klink? Ele tava no meio do pólo sul... ou foi pólo norte? Sei lá, cercado por um mar de icebergs e ele conseguia "internetar" pra um monte de gente quando tinha algum problema. - PICAPAU! - gritaram bem em cima de mim. Calei a boca. - Deixa a Angélica falar, Picapau! - reclamou Sarah. - Sossega o topete um pouco, seu passarinho maluco! - Tá bom, tá bom... E Angélica respondeu: - Claro que sim, gente! A gente se escreveu, se "internetou", ele me ligava toda semana, a gente tentou se ver numas férias... o que vocês acham? - lágrimas brotaram instantâneas nos olhos da garota. Ela apertou os lábios com força enquanto falava. - Eu queria estar lá agora, queria ter coragem, sabe, de viajar sozinha pra lá, ficar com ele. Mas como é que a gente faz? E o dinheiro? E meus pais? E a coragem? - Foge de casa! - gritou Sarah. - Vai lutar por esse amor, menina! Vai à luta. - A ruiva se levantou depressa, foi andando pelo quarto e falando: - Um amor assim, uma paixão dessas é coisa mesmo pra fazer e acontecer, você devia mesmo era procurar pelo Vinícius e falar com ele e... - Quem fala! - ironizou Rita. -Justo você, que disse não acreditar em amor. Como é que era, mesmo? imitou a outra: - "Ou prazer... ou casamento." Mudou de idéia? Que bicho te mordeu, Sarah? - Nada a ver, sua bruxa! Uma coisa é o que eu acho pra mim... não posso dar uma opinião sobre o que a Angélica falou? Não posso? 76 - Pode - disse Debi. - Mais alguém quer dar opinião sobre a história da Angélica? - Eu só acho... - a voz de Penélope veio rouca, quase soluçante. - Angélica, eu só acho que um amor tão bonito não pode acabar assim. Um dia, você vai ver.., ele vem pra cá e vocês se encontram. Ou você, quando for mais velha, vai até Goiás e fica com ele. Coisa assim de destino. Se é pra ser seu, será seu. - Apoiado! - concordei. - Minha avó sempre dizia "O que é do home, o bicho não come". Cada um é que faz o seu destino e o que os deuses marcam pra gente, da gente será... - Cala a boca, Picapau! - gritou Maria Fernanda. Até me espantei com a força do grito dela, devia ter ficado bem impressionada com o primo da Angélica. - Você, também! Parece até que está fazendo pouco da história da Angélica. - EU? EU? EU? Justo eu? Eu adoro história de amor, adoro a Angélica, adoro todas vocês, estou achando do caramba estar aqui essa noite com vocês, juro pelos deuses, se os deuses pedissem acho até que aceitaria perder um dedo, trocava com eles um dedo pelo prazer da vossa companhia, mas vocês não acham que estão exagerando? Bola pra frente que atrás vem gente. Não é o Clube do Beijo, não é cada uma contar a sua história? A gente não pode arrumar a vida da Angélica. Não pode trazer o primo dela de volta. Então... como ficamos? Vai todo mundo chorar, agora? Aí fica Clube do Choro. Traz a caixa de lenço de papel, Debi, porque vai ser um escândalo só, duas horas de choradeira. Estava pronto pra receber pedradas, mais uma vez. Ou ouvir o tal "PICAPAU" exagerado da Debi, me pedindo 77 que eu calasse a boca. Mas não foi isso que aconteceu. Vi um sorrisinho em meia ao rosto choroso da Penélope. Um olhar divertido no rosto da Debi. Uma Sarah que brincou com o isqueiro, meia dúzia de vezes, antes de falar: - Sabem que ele tem razão? - falou Sarah. - Vocês não concordam?... Angélica? - Claro. Eu que desabafei e fiquei assim. Mas não quero estragar a noite. Está sendo tão bom pra mim ficar aqui com vocês. E ter a coragem de contar essa história.., nunca falei disso pra ninguém. E vocês entenderam! Isso é uma das coisas mais legais que podia ter acontecido neste ano - e ela olhou para as amigas, aqueles olhos negros que guardavam a noite. - Obrigada! A todas vocês - depois olhou pra mim: - Obrigada também, Picapau! Você tem toda a razão. "Claro que eu tenho razão, o Picapau aqui sempre tem razão", pensei, exibido, só não falei porque aí, sim, acabava recebendo o "PICAPAU" furioso da Debi, desta vez com justificativa. - Quem é a próxima? - perguntou Penélope. Olhamos para a Bia, a Rita e a Maria Fernanda. Elas se entreolharam. - Acho que pode ser a minha vez - falou Bia. - Então é você - disse Debi. 78 Capitulo 6 Bia - Olha, gente, espero que vocês não fiquem aí - imaginando que eu tenha assim uma graaaande história pra contar, porque pra dizer a verdade vocês até já sabem, eu já contei, da vez em que eu fiquei com o Rodrigo, ele é aquele parente do Tom Zé, o Tom Zé, todo mundo conhece o Tom Zé, é do terceiro colegial, o Rodrigo é bem diferente do Tom Zé, ele é aquele cara que também tinha aparelho nos dentes e enganchou no meu aparelho de dente e já contei a história, não vou contar de novo. Ela foi falando tão depressa, no sotaque acaipirado, que ficou engraçado. A Sarah levantou, erguendo os braços, e gritou "Pára o jogo, pára o jogo", depois meteu dois dedos na boca, soltou um assobio agudo, mais forte que de homem, mais forte até do que eu consigo dar, e olha que sou bom de assobio! O cachorro começou a uivar do 79 lado de fora do quarto, resolvi não ficar pra trás, meti os dedos na boca, soltei o meu "trinado de pica-pau". Mas pra quê? O cachorrão, acho que assustou, ficou uivando feito louco. A vizinhança tava ferrada, o que a gente tinha feito de barulho naquela noite não estava no gibi. - Uai!, o que deu vocês? Que foi que eu fiz de errado? - se espantou Bia. - Bia querida, vai mais de-va-gar - pediu Rita. - A gente não está entendendo na-da. - E deixa o Picapau falar antes - sugeriu Debi. - Pra ficar igual ao de todo mundo... Fala, Picapau! Assobiei mais uma vez, novo latido do cachorro, desta vez as meninas não acompanharam, sobrei. Então não me fiz mais de rogado (gostaria de saber como surgiu o tal "não se fazer de rogado", tenho uma teoria, a seguinte: era uma vez, na Idade Média, um gajo português cujo nome era Rogado. O cara era lerdo, lerdo daqueles que, se fosse cuidar de tartaruga, a tartaruga fugia. Então todo mundo, de saco cheio, mandava ele se apressar e aí, quando alguém começava a ficar muito vagaroso, muito lerdo ("lesma lerda", essa e outra expressão engraçada, eu também tenho uma teoria a respeito (mas eu sei que abri parêntese dentro de mais parêntese, e isso não se faz, então vamos fechar um) e, depois pra fechar outro, vamos concluindo que, por causa da lerdeza do tal Rogado, todo mundo, quando queria dizer pra alguém se apressar mais, falava "não se faz de Rogado", quer dizer, não seja igual ao Rogado, assim morto de vagaroso, pronto, agora eu posso fechar mais parênteses)) pra falar sobre a Bia. Bia: magrelinha de perna comprida. O que eu adoro na Bia são as pernas compridas, principalmente porque ela está sempre usando short e minissaia, como estava naquela noite, e os joelhos da Bia são que nem ímas 80 para meus olhos. Ela é branca leitosa, a pele dela é naquele tom ainda mais branco que o normal, os cabelos longos e castanhos, mas a minha tara é que, nas pernas, a penugem dela e loira. E ela tem, sim, penugem nas pernas, principalmente nas coxas. E que lindo, lindo! Ela não depila. Talvez em outra mulher ficasse feio, se fosse pelão assim do tamanho do de cachorro seria um horror, mas, como são pêlos fininhos e ela é tão magrela e novinha, parece mais coisa de nenê e é muito bonito o jeito dela se deixar peludinha nas pernas. Dava pra contar essa minha tara pelos pêlos da perna da Bia? Dava? Então eu falei de outra coisa: - A Bia é meio tímida. - Tímida, eu? Uai!, eu falo tanto. - É o que o pessoal fala, não digo tímida assim de ficar toda enrustida, babando de vergonha pelos cantos (elas riram), mas é que você volta e meia se confunde com o que estão falando e muda de assunto sem mais nem menos. - Mas isso não é timidez, Picapau - estranhou Rita. - Acho que é mais coisa de ser distraída. Odeio que usem as palavras melhor do que eu. Mas tive de confirmar: - Então ta. É mais coisa de distraída. A Bia é do tipo que entra de repente na conversa... E sabe quando tem aula vaga e a turma está jogando... ela entra no jogo de carta e se confunde. Ninguém quer ser seu parceiro na classe, sabia? - Por quê? Por causa disso que você falou? - Bia. Eu vi você jogando com o Paulão, um dia. Você soltou a carta com que ele fazia canastra de mil pontos, Bia. 81 - Qualquer um pode se enganar, Picapau! - Mas você conseguiu fazer isso duas vezes, Bia. Na mesma partida. O Paulão ria tanto, ganhou de você em duas rodadas, foi demais. - Tá bom, foi azar. E você? O que acha de mim? - Desde que não precise ter você como parceira de jogo... - sorri pra ela - ... você me parece ser muito legal. Ela suspirou, aliviada. Soltou os ombros para baixo e só aí pude perceber como ela estava tensa, os ombros retos e duros. Não imaginava que minha opinião sobre elas pudesse ser assim tão importante. Mais uma descoberta na vida, senhor Picapau. Trate de cobrar pelos seus palpites de agora em diante. - E você é bonita. Melhor, se você não se ofende... - reparei que ela se encolheu de novo, os olhos grandões e esverdeados se arregalando nesse Picapau aqui. - Eu acho que você dá a impressão de quem ainda não está pronta. - Como assim? - De que você ainda é muito novinha, menina demais, ainda nem entrou na adolescência. Ainda vai ser mulher. E diferente, né... quando a gente olha a Débora, a Sarah, a Rita.., mesmo a Penélope, com o jeitinho fofo dela. Elas me lembram mulheres jovens. Você, não. E menininha. - E que eu. Eu sou menininha, mesmo. - Como assim? - perguntou Sarah. - Eu ainda não menstruei. Opa! Esse era um assunto de que não entendia nada. - Ainda não? - espantou-se Angélica. - Você está com quantos anos, Bia? Pra mim, vem há tanto tempo... eu mal tinha feito 11 anos. 82 - Pra mim foi com 12 - falou Penélope. - Eu menstruei com 11, também - falou Sarah. As outras resolveram se exibir diante da coitada não menstruada. Só fiquei ouvindo. - Eu tinha dez anos e meio - falou Débora. - Sempre competitiva, hem, dona campeã de basquete! - falou Sarah. - Tinha de ser a primeira, dez anos e meio... - Não foi só ela, viu? - falou Rita. - Eu também tinha dez anos e meio... - Pra mim foi com 13... - falou Maria Fernanda. - E pra mim foi com 12 - falei. EU TINHA DE ENTRAR NA CONVERSA, TINHA DE SER METIDO! Resolvi apalhaçar de vez, comecei a imitar bicha: - Queridas, eu nem conto! Aquele sangue todo, e eu sem nenhum absorvente na bolsa. Precisei ir correndo pra farmácia, sujou meu vestido dourado, ah, que horror! - Eu voto na gente pendurar o Picapau na janela pelas duas pernas - sacaneou Sarah, a malvada. Mas bem que ela também deu risada, todo mundo deu risada! - E uma droga quando suja a roupa - falou Sarah. - Já aconteceu com vocês em aula de Educação Física? Em dia de jogo, com uniforme branco? Aceno geral de simpatia pela desgraça atlética. Rita: - Eu já dei o maior fora em campeonato. Lembra, Sarah? Do jogo de vôlei, semifinal contra o Américo Vespúcio e eu marquei o ponto... a torcida do Américo ameaçou dar uma vaia, depois umas meninas começaram a rir e a me apontar... eu achando que era por causa do ponto, e depois você teve de me dar um toque, a maior mancha vermelha na frente do short. Que vergonha... 83 - A profa de Educação Física devia ter deixado você no banco de reserva - falou Debi. - Pelo menos no basquete a gente faz assim. - E eu ia topar? Tava doida pra pegar aquelas meninas frescas do Vespúcio. Passei vergonha, fui me trocar no intervalo... - Mas a gente arrasou com elas - completou Sarah. -Já vi acontecer com noiva - falou a dengosinha Penélope. - Uma prima. A coitada entrou linda, vestido branco justo, todo mundo na igreja olhando pra ela... e tinha lá, no meio, a manchinha vermelha. Que tristeza. Pensei que mais triste deve ter ficado o noivo na lua-de-mel. Dá que o cara estava a seco há anos, esperando a hora H, pra descobrir que ia adiar a brincadeira? Debi: - Com o absorvente intimo e mais fácil. Não faz volume. - Mas quem é virgem não pode usar. Pelo menos é o que eu ouvi, não é? - falou Angélica, mas foi olhar pra cara cínica da Debi, lembrou: -Ah, é! E que você já pode... - Nada a ver - lembrou Rita. - Eu uso. Lembram do que a Celeste falou? Noventa por cento das meninas virgens podem usar absorvente íntimo. - Pra praia é ótimo - completou Sarah. - As outras emendaram seus comentários e eu pensei que dava pra fazer meia dúzia de piadas com o assunto, mas o Picapau ficou mudo: podiam falar à vontade da tal menstruação, se era papo sério, não era um Picapau gozador que ia estragar o barato delas. - Você tá com quantos anos, Bia? - perguntou Maria Fernanda. - Vou fazer 16 em novembro. Daqui a um mês. 84 - Meio tarde... - disse Angélica. - Não está? - Minha ginecologista diz que é normal - falou Sarah. - Que até os 18 é normal. Depende de mulher pra mulher. Tem aí uma média de idade, 12 ou 13 anos, mas pode vir antes ou depois... é o que a médica diz. - Eu nunca fui a um ginecologista - falou Penélope. - Acho que minha mãe pensa que sou muito menininha pra isso... - Mas mãe sempre vai pensar isso - disse Debi. - Depois da primeira vez, da vez com o Roberto... eu fui. Não contei pra minha mãe, mas tenho o meu cartão de convênio médico, marquei consulta no escuro, procurando no guia o nome de alguma médica, achei que podia ser mais legal falar com mulher. E fui. Ela falou que estava tudo bem e que foi importante a gente ter usado camisinha. E eu: - Sabem o que aconteceu com um primo de um amigo meu? Ele fez a mesma coisa, a de marcar consulta no escuro. Marcou consulta por telefone, um dr. Fung Lung Shu, qualquer coisa assim. Quando chegou lá, descobriu que Fung Lung Shu era uma mulher. E ele tinha de mostrar o pau, porque tinha dado um negócio de alergia no pau dele. O cara amoitou. Nem morto, ele quis mostrar o pinto pra doutora. Foi embora, meu. Foi sim. Um primo de um amigo meu. Juro. E elas não riram. Que pena! Uma piada tão legal! Tinha lido numa revista e inventado o primo do amigo, e elas... nada? - Po!, criancice sua, Picapau - reclamou Rita. - A gente tá aqui falando sério... menstruação, exame ginecológico, camisinha... não é pra fazer piada com esse tipo de assunto. 85 - Tá bom - assumi a bronca. - Tá legal, pisei na bola, desculpem... mas é que esse assunto. Bom - cocei a cabeça e arrepiei o topete. - É muito ruim pra homem. A gente não faz idéia do que dizer, quando mulher fala de menstruação, coisa assim. Eu nem tive irmã, tenho só aquela besta do Catatau como irmãozinho e ele tá um horror, com 8 anos de idade. - Catatau? Seu irmão se chama Catatau? - falou Bia. - Legal, né? Fui eu que apelidei. - Eu não acredito que vocês sejam... Catatau e Picapau - riu Debi. - Que é que sua família tinha na cabeça? - Melhor que-enchi a boca pra falar - Edgaiiiiird e Dééééébora. O nosso apelido é mais engraçado. Aliás, com o seu apelido também dá pra fazer piada, você sabia? - Eu sei, eu conheço, seu metido. Tem umas minas pivetas na quadra de basquete que me chamam, de vez em quando, pra me gozar, de Debi-lóide. A Maria Fernanda começou a rir, rir... - Eu não conhecia. - Vê se não espalha, tá? Ficou assim um silêncio meio besta, o primeiro que aconteceu naquela noite, elas não sabiam se aquele papo de ginecologista e de menstruação ainda rendia um pouco mais, se passavam a bola pra outra garota, se a gente ficava só falando abobrinha... foi um breve branco na conversa. Foi a Bia que voltou a chamar nossa atenção. - Gente, eu. Tem uma coisa. Eu estou aqui me segurando, não sei se conto, se não conto... - É a sua vez, garota! - insistiu Debi. - Use como quiser. 86 - É que eu fico com medo... - Medo? - gozou Sarah. - Depois do que eu falei, do que a Angélica contou, da confissão da primeira vez da Debi, você diz que está com medo de contar? - É diferente. Claro que eu acho que vocês foram super corajosas e, podem crer, eu nunca vou espalhar nada do que a gente está dizendo aqui, vocês são super amigas, eu adoro o que a gente está fazendo. Mas. O que vocês disseram foram coisas que aconteceram. Aconteceram mesmo. E eu. Eu não tenho certeza se era mesmo aquilo, se era mesmo de sacanagem o que me aconteceu. - Você falou, falou, falou e eu não entendi nada, Bia - disse Angélica. - Afinal, o que você quer contar pra gente? - Olha... - Bia ajeitou a saia curtíssima sobre os joelhos, ela estava ajoelhada e eu adorava olhar aqueles joelhos redondos dela - ... é como eu disse. Num tenho certeza... foi há muito, muito tempo. - Muito tempo, como? Se você está agora com 15 anos... - falou Rita. - Acho que eu tinha uns 8 anos. Nova sessão de todo mundo calado, só ouvindo. - Bom. Vocês sabem que a gente é do interior, a gente é de Bauru. Faz só dois anos que eu to aqui em São Paulo. A família é grande pra burro, eu tenho duas irmãs e três irmãos. Minha mãe é a quarta filha de seis, e meu pai também tem três irmãos. - O pessoal do interior não tem televisão? - falei, e todas elas gritaram, juntas, um PICAPAAAAAAAU raivoso. Tapei a boca, mas depois falei: - Nãoagüenteinãoagüenteinãoagüentei, um milhão de perdões, a piada estava grudada na minha boca, 87 faz mal pra saúde guardar piada, é a mesma coisa que guardar peido, se a gente não solta na hora fica com dores, verdade, eu sou um cretino, Bia meu amor, lindinha do coração, desculpe. - Tudo bem, Picapau, eu sei como você é palhaço, que você não faz por mal... - ela sorriu pra mim. Continuava ajoelhada, tão menina. - Conta, Bia. Você não tem certeza se aconteceu... aconteceu o quê? - perguntou Sarah. - Deixa que a gente vê se tem ou não importância - falou Debi. - Importante é desabafar. Se faz tanto tempo... você tinha 8 anos... - Então vai. Teve uma época, quando eu tava aí pelos 8 anos, que a família se visitava muito. Todo mundo morava em Bauru... agora não, cada .tio ou tia anda por uma cidade, e mais difícil se encontrar, só assim em Natal e olhe lá. Mas naquela época era a tiazada, a primaiada sempre se vendo. Sempre aqui e ali na casa de um, churrasco na casa de outro... foi o tio Alberto... Ela olhou bem sério para nós. Talvez apenas dizendo "Foi o tio Alberto", ela já tivesse contado tudo. - O que aconteceu, Bia? - perguntou Sarah. - Não aconteceu nada, mas... Ele sempre era diferente comigo. Os outros tios... nenhum deles fazia isso. Era só o tio Alberto. Fiquei reparando mais nos dedinhos de unhas roídas da Bia. Ela suspirou e falou, de uma vez: - Por exemplo, eu sentava no colo do meu pai. Do tio Wagner, do tio Reginaldo. E eles. Sei lá, me faziam cosquinha, agradavam meu braço, alisavam meu cabelo. Alguma coisa engraçada. Depois, era meio rapidinho, fazer assim uma festinha na criança e depois tirar do colo, dar um tapa no bumbum e falar "Vai brincar, agora vai correr" 88 e nem davam bola, era pra sair de perto. Vocês entendem? Bem como se faz com criancinha. Como se o adulto pensasse "Já dei beijo, já dei agrado, agora vai brincar e deixa os adultos conversarem". Não é assim que se faz? - É, e assim - falou Penélope. - Acho que com todo mundo é mais ou menos assim... - Mas com o tio Alberto não era assim. Os olhos esverdeados dela ficaram maiores, eu achei, quando olhou pra gente, uma por um. - O tio Alberto parecia fazer questão que eu sentasse no colo dele. Toda hora, assim "Vem cá, Biazinha, senta no colo do titio", e eu ia, claro. E ele ficava. Ele ficava parado. Ele não fazia cosquinha nem agrado e depois me soltava. Queria que eu sentasse bem em cima do colo dele e ficasse lá, de perna meio aberta pra frente, quietinha. E ele, parado. E não sei, pode ser só coisa mesmo boba, isso aconteceu faz tanto tempo, mas. Eu achava que tinha alguma coisa dura no colo do titio. E, depois, ele ficava chacoalhando a perna... dizia que era pra me fazer cavalinho, mas e a coisa dura? E ele olhava muito, de um lado pra outro, vendo se não estava vindo ninguém. E o agrado dele. Era assim, fingia fazer cosquinha, fingia que era agrado na perna, mas sempre estava com a mão mais perto. Mais perto de "lá". Teve até uma vez que ele puxou o elástico da minha calcinha. Eu falei "tio", ele ficou todo nervoso, falando "brincadeira, brincadeira com a sobrinha". Mas. Bom, é isso que tenho pra contar pra vocês. - O cara era tarado por criança, gente! - falou Debi. - Mas que filho da puta! - Eu não sei, Debi, pode ser só imaginação, eu não tenho certeza, ele nunca fez nada assim mais... de se mostrar pra mim ou querer que eu fizesse coisa, pegasse 89 nele. Era mais impressão minha que alguma coisa estava errada nos agrados do tio Alberto. - Pois eu acho que, se você desconfiava disso, mesmo sendo tão novinha, era porque era verdade mesmo. Era coisa de tarado - falou Rita. - E você não contou pra ninguém, Bia? - perguntei. - Eu ia contar, Picapau... o quê? Que o tio me pegava no colo? Mas os outros tios também não faziam isso? E meu pai ou minha mãe iam... falar o que pro tio Alberto? - Gente, que loucura... - Debi estava furiosa. - Isso e um absurdo. Eu acho absurdo esse tipo de tara. Sexo com criança, eu acho assim um crime. - Mas é crime mesmo - falou Rita. - Meu pai é advogado, ele já trabalhou num caso de sedução de menores. Ele ficou puto com o cliente dele, acabou largando o caso. O cara gostava de menino, menino novinho, assim 7, 8 anos. E comia os meninos. - Tem estupro de menino? - falou Penélope, meio desconfiada. - Claro que tem! - insistiu Rita. - Estupro pode ser pra homem ou pra mulher. Se é sexo feito sob pressão, na obrigação, é estupro. E se é feito em criança, então, é crime sé-ri-o - continuou Rita, separando bem a palavra e encarando a gente com seriedade. - Dá cadeia, sim. - Se me permitem uma opinião... aqui como o único representante macho da sessão, queria dizer o seguinte (olhei bem pra cara delas): - e filhadaputice. Dos 16 aos 96 tem muito tempo pra curtir sexo. Querer "coisa" com criança é sacanagem demais. É o que eu acho. - Ah, gente! Mas e se - falou Bia - e se é a criança que fantasia isso e o coitado do cara nem está 90 pensando em nada disso? Eu sempre fiquei com muita dúvida no caso do tio Alberto. Se contava pra alguém o que ele tinha de diferente dos outros tios... depois, eu comecei mesmo a evitar o tio Alberto, nas festas. Só que ele insistia... ele vinha atrás de mim e das crianças, ficava me olhando, pedindo pra eu ir conversar com o titio, falando que estava triste porque eu não gostava mais do titio.., e, depois... uma outra coisa que eu só fui lembrar e reparar bastante tempo depois, é que ele nunca me pegava no colo se tivesse mais gente por perto. Era sempre numa hora em que ele me chamava num canto, ou que as pessoas tinham se afastado da gente. - Então era isso mesmo, Bia - falou Sarah. - O seu tio era tarado por criança. - Pedófilo - dei o nome correto. - Que loucura... - insistiu Debi, balançando a cabeça. - Tem cada coisa que acontece, e a gente aqui achando que falar de sexo como a gente está falando pode ser muuuuuuito atrevimento... - É nada - falei. - Na Internet mesmo. Dá cada aberração que nem te conto. Tem um site de hermafroditas que é um negócio. - Pronto. Voltou a baixaria - falou Rita, segurando a cabeça entre as mãos, como que desistindo da Humanidade por minha causa. - Por quanto tempo você consegue falar sério na vida, Picapau? - Pra que falar sério na vida? - olhei pra todas elas, mandei um beijinho pra Bia. - Olha, Bia. Eu acho que seu tio era taradão mesmo. Mas ainda bem que ele não foi mais longe. Ficou só essa encucação na sua cabeça. Não é isso? - Nem é encucação, Picapau. Gente, eu nem lembrava disso direito. Só que hoje, com a nossa conversa, 91 veio assim essa história e achei que devia contar. E, quando você falou, Penélope, que não gostava de sexo, que não conseguia se interessar pelo sexo e pelos rapazes, eu pensei se... Na sua vida... - Não, não teve nada parecido comigo. Eu nem tenho tio. - Porque comigo também não ficou nenhum trauma. O que eu acho é que tenho mesmo é azar com os meninos. Eu quero um dia viver uma história de amor bem bonita... quero namorar, quero um rapaz que goste de mim, quero casar e ter um monte de filhos. Mas é tão difícil eu arrumar alguém. Vai ver é aquilo que você falou do cheiro, Picapau. Eu ainda não estou fazendo o cheiro direito... Lindinha. Me prometi que, se fosse a uma festa em que a Bia também estivesse, ia dar um jeito de dançar com ela. Penélope resumiu a história: - Que fique o alerta, meninas! Cuidado com os titios. - Posso falar dos hermafroditas, agora? Posso? - perguntei. - NAO, não pode, Picapau! - gritou Debi. - Eu voto pra gente pendurar o Picapau na janela, desta vez a gente pendura ele é pelo... Antes que a Sarah dissesse por onde, soltei outro assobio agudo e fiz o cachorro uivar do lado de fora do quarto, pra ninguém ouvir a sugestão de por onde a Sarah pretendia me pendurar na janela. 92 Capitulo 7 RITA Mesmo depois que eu parei o assobio, o cachorro da Debi continuou latindo, desta vez de um jeito interrompido, como se estivesse ouvindo coisas do lado de fora da casa. Latia. Parava. Latia. Parava. - O que será que deu nesse cachorro? - Débora levantou pra ver. - Será que seu irmão voltou? - perguntou Maria Fernanda. - Tomara. A gente agarrava ele e botava aqui com o Picapau. Mas não ia ser tão boazinha com ele. Daquele ali eu não tenho dó. Até ajudava a Sarah a pendurar ele pela janela... O cachorro continuou latindo. Depois a gente ouviu o bicho descendo as escadas. - Vai ver é ladrão - riu Sarah. 93 - Nem brinca com isso! - falou Angélica. - Entrou ladrão na nossa casa tem dois meses. Levaram televisão, som, umas jóias da minha mãe... ainda bem que a gente não estava. Já imaginou? Assalto com arma, com violência? Com estupro? - Deve ser horrível estupro - falou Penélope, arrepiando-se. Eu comecei a rir. - Que deu em você, Picapau? - Desculpa, Penélope, foi só uma idéia besta, idéia de Picapau... É que eu pensei, assim... Se fosse ladrão... ladrão mesmo, e entrasse aqui, vendo sete mulheres e eu. E se o ladrão fosse gay? Com tanta mulher, o escolhido seria justo eu! Veio do jardim um som abafado. No andar de baixo, o cachorro rosnou. A Débora correu até a varanda, esticou-se toda por ali. Voltou: - Tem luz acesa na garagem. Acho que foi mesmo o Edgard que voltou. Nem coragem de entrar em casa, ele teve... - Deixa ele lá, Debi. Vai trazer ele aqui pra quê? Nosso papo está legal - falou Angélica. - A gente não precisa de outro cara. Basta o Picapau. - Obrigado, obrigado... - coloquei os polegares debaixo dos sovacos, fiz um gesto de folgadão no meio da mulherada. - Você teria coragem de fazer um estupro, Picapau? - quis saber a Bia. - Eu? Nunca. Se a menina não quer dar, por que vou forçar? Vou procurar uma que queira. É que nem roubo. Se não é meu, por que vou pegar? 94 - Mas nem com a Rosana? - perguntou Angélica. - Sei lá o que a louca contou pra você! Estava desesperado... bombom, cinema, táxi, e a fresca nem sabia me beijar direito, ficava lá, de boca mole... eu botei a mão dela "lá" pra ela entender como é que estava o meu entusiasmo, e ela saiu com essa de que eu era tarado... fui é burro. Estupro! Imagina, fazer isso! Sarah: - Tem homem que fica alucinado de raiva se percebe que a garota não é mais virgem e não quer dar pra ele. Acha que é obrigação: deu pra um tem de dar pra todo mundo. Já aconteceu com a minha amiga, a Deise. Ela saiu com um cara que fazia jiu-jitsu, um monstrengo de forte, mas não foi lá muito com o jeito dele, quis mudar de idéia antes de entrar no motel. Olha, ele rasgou a roupa dela, ela teve de unhar o cara... ficou com os pulsos roxos por um tempão. - E foi violentada? - perguntou Penélope, baixinho. - Ela diz que não. Que fechou as pernas de um jeito que só se ele batesse mesmo ia conseguir. - Eu tive um namorado que era meio assim... - falou Rita. - Assim como? - perguntaram. - Assim. De confundir sexo com pancada. - Você podia contar a história pra nós, Rita - falou Penélope. - Ainda não teve a sua vez... Rita soltou o cabelo da presilha, mexeu a cabeça pra um lado e pro outro, aquele cabelo loiro e liso que ela tem. Ficou mais bonita daquele jeito, se virou pra mim: - Pode começar, Picapau. - Começar o quê? 95 - A falar de mim. Bem ou mal, as baixarias que os caras falam... entrega os amigos, vai. Você parece que gosta de fazer isso... Depois de ouvir essa dura, a primeira coisa que eu tive vontade de dizer foi "gorda" e isso ia ser grosseiro, porque a Rita nem é assim tão gorda. Depois, tive vontade de falar "metida, chata". E, só depois, eu parei pra pensar por que ela deixava os caras irritados. Porque a Rita tem, sim, alguma coisa que irrita os caras. Isso eu falei. E ela: - Mas que "coisa" é essa, Picapau? Seja mais explícito. - E por aí, Rita! Você acertou, na mosca! E como se você tivesse sexto sentido pra sacanear os rapazes. - Não entendi. - Agora, o que você me disse? Você sabe que eu gosto de usar as palavras direitinho. Você sabe disso e, mesmo sem perceber, na hora você já lascou o "Seja mais explícito" - imitei a voz ríspida, nervosinha, dela - pra me deixar puto com você. E não é só comigo... olha, tô lembrando agora de uma coisa. Você não está na classe do Geraldo? - Estou, e daí? - O Geraldo não é o campeão de matemática do Pitágoras? - É, e daí? - Daí que você vive trazendo pegadinha de jornal, problema tirado de revista, pra ver se ele erra. - Isso é uma brincadeira da gente, só isso... - Não é não, Rita! É pra sacanear. Você parece que descobre aquilo que mais irrita o cara e é ai que vai cutucar. Você nem é tão feia... - ela arregalou os olhos 96 pequenos e eu fiquei vermelho, mas se era pra ser sincero, era tudo ou nada mas parece que faz questão de se fazer de feia quando está junto dos rapazes. Parece de propósito se fazer de chata. Incomodar. - Isso é exagero seu, Picapau! Exagero. - Rita pegou um cigarro e o acendeu depressa com o isqueiro. Depois largou o cigarro no cinzeiro, sem tragar uma só vez, jogou o cabelão por sobre a cara, a gente mal via os olhos e o nariz dela. - Será? - disse Angélica. - Agora que o Picapau falou, eu fiquei aqui pensando... em como você é na classe. Tem uma coisa sim, Rita. De gostar de incomodar os rapazes. Parece que você não pode ver os caras numa boa... se o Rodrigo entra na classe, todo contente porque o time dele ganhou, por exemplo, você dá um jeito de lembrar de uma derrota numa outra semana. Se o... Tadeu, vai. Fala que ficou com uma mina linda numa festa, você solta alguma coisa do tipo "a menina devia estar bêbada". Não é? - Isso é brincadeira... eles são meus amigos... nada a ver. Não concordo. - Não é brincadeira - insisti. - É irritante, Rita. Brincadeira deixa a pessoa leve, alegre... com você, nenhum cara fica assim. Fica com raiva, fica com vontade de revidar esse seu jeito... - Competitivo - falou Penélope. - Acho que essa é a palavra. Virei pra morena e mandei um beijo pra ela. - Isso aí. A Penélope achou a palavra certa, Rita, e falou de um jeito que eu não fiquei irritado com ela. Se fosse você quem falasse, ia dar um jeito de provocar. Pra ser isso mesmo: com-pe-ti-ti-va - soletrei. 97 Rita movia o rosto de um lado para outro, meio que negando, de olho no cigarro, que ela girava no cinzeiro... o cabelo loiro e comprido caído pra frente, o encarar-não-encarar a gente... Ela não era feia, daquele tipo de feia que assusta até presidiário que não vê mulher há anos. Nem era um trator dinamarquês como a Debi, que tem um corpaço e pode fazer o gênero sensual mas é agressiva. Rita tinha um cabelão comprido, loiro, natural. Os olhos azuis pareciam aguados porque as sobrancelhas e pestanas eram brancas, de tão claras. Os lábios grossos eram bonitos, mas, como o nariz também era grosso, parecia uma cara meio que exagerada, sobravam coisas da cara dela. A pele avermelhada, algumas manchas de acne. Com dez quilos a mais de peso, dava uma idéia de desleixo. De alguém que estava se devendo um banho de loja, um trato em cabeleireiro, estava se devendo um bocado de coisas. Tive a idéia exata: - Sabe? Alguém que não gosta de si mesma. E isso, Rita. Parece que você tem ainda de aprender a gostar de você. E se você não gosta de você, então fica provocando quem pode estar feliz com a vida. Parece que tem a obrigação de ferrar com a alegria de quem está contente. "Touché", era assim que os esgrimistas falavam quando davam com o espadim uma estocada fatal no adversário nos romances que eu lia... Só que o bestão aqui só reparou que estava chutando cachorro morto depois de ter dado o pontapé no cujo. A Rita tinha ficado o tempo todo com o cabelão no rosto, ouvindo, ouvindo... e, quando apagou o cigarro no cinzeiro e afastou o cabelo, é que reparei nas duas lágrimas que caminhavam devagar pelo rosto dela. Aí fiquei com dó. Tentei consertar: 98 - Não sei, acho que falei bobagem. Rita, desculpa. - Não, Picapau - ela afastou as lágrimas com a mão. - Você tem razão. Acho, sim. Que eu estou numa fase de não gostar de mim. Não é sacanagem minha falar coisas ruins pros outros. Não é por mal. Pode apostar que eu nem tinha reparado que fazia isso. - A Rita é legal com as meninas - falou Sarah. - A gente está no time de vôlei, né, Rita? Você sempre deu a maior força pras colegas. - Mas é o que o Picapau falou - disse Bia. - Ela é competitiva com os rapazes. - Eu nem acho que dá pra se falar assim, "dos rapazes". Eu estou meio machucada, gente. Olha, eu nem queria contar isso, mas vou falar. Até agora, eu estou me xingando, achando que a coisa toda foi muito maluca... - Conta pra gente, amiga. Estamos aqui pra isso - falou Debi. - Quer mais coca-cola? Rita afirmou que sim, outras meninas se serviram de refrigerante, o pessoal se ajeitou enquanto Rita tomava um bom gole e começava: - Olha, eu to aqui ouvindo o papo de vocês, tem quem gosta de ficar, quem fala que é galinha, tudo isso... eu acho diferente. Eu sou, assim. Séria. Acho que isso que o Picapau falou, competitiva... concordo. Eu gosto de ser primeira aluna da classe. Gosto de ganhar no jogo de vôlei. Gosto da idéia de ser uma pessoa especial. Acho que entre homem e mulher tem de ser especial. Ter uma pessoa, um namorado... não é só pra passear com ele, conversar com ele, mas é pra saber tudo da vida dele. Um pro outro e outra pra um. Eu tive aí uns namoradinhos, até com 12 anos eu tive um namoradinho, o Eduardo, achava o máximo, a gente estar namorando... mas, 99 quando fui ver, ele tinha outra namorada, das aulas de Inglês. Na hora eu desmanchei o namoro, nada a ver. Eu queria ser A namorada, sacaram? Pra mim, tá comigo, acabou. Não deve estar pra mais ninguém. Se não é pra encarar desse jeito, então nem quero nada. Deixa pra lá, fico sozinha, eu me dou muito bem sozinha. Rita ajeitou o cabelão loiro pra trás, deu um nó apressado e apressadamente continuou falando, um resumo de biografia, parecia estar em sala de aula, apresentando trabalho de Ciências, tudo tão ajeitado e conferidinho, na vida que ela queria. Continuou: - No começo deste ano eu encontrei o Zé Paulo. A gente se conheceu numa excursão que eu fiz com meus pais pro Nordeste, ele estava no grupo. A gente ia em forró, em show de humorista, mas todo mundo assim em turma. Ele pegou meu telefone de São Paulo e disse que ligava. Achei que era papo, ia ligar nada. Mas ele ligou, marcamos um cinema, ele parecia ser assim um cara rico, me levou em um monte de lugar legal. A gente ainda saiu como amigo, mas depois. Ele falou que queria namorar. Fiquei supercontente, porque encontrar namorado, hoje em dia, com esse bando de caras que só querem ficar e, olha lá, é uma raridade. Eu topei. Até ele teve uma conversa séria comigo. De que queria fidelidade, que era pra gente ser fiel um com o outro, que ele esperava que eu nunca traísse ele... bom, nem precisa explicar, era o cara dos meus sonhos, né? Então combinamos: namorados mesmo, um pro o outro, fidelidade, paixão. Okay. Me passa o cinzeiro, Penélope. Penélope pegou o cinzeiro com uma caninha de nojo, como se o danado fosse um rato morto e fedorento (não se parecia com um - só cheirava como um) e o estendeu 100 para a Rita. A gente esperou que ela acendesse o cigarro, depois a Rita ainda ficou brincando com o Zippo dela, fazendo truques rápidos com o abrir-fechar da tampa prateada. Isso prendia a atenção que era uma coisa danada. - Ele me bateu a primeira vez na semana seguinte daquela que a gente começou a namorar. Foi no carro dele. Nós tenhamos saído de uma pizzaria e o Zé Paulo invocou de dizer que eu estava paquerando o garçom. Que achava um absurdo que uma mina riquinha como eu corseasse ele com garçom. Eu pensei que era brincadeira, quando entrei no carro ainda soltei a piada de que o "garçom bem que era bonitinho"... e me virei pra ele. Ele veio na minha direção, achei que ia fechar a minha porta ou mesmo me dar um beijo, mas, não, ele virou a mão no meu rosto. - Não acredito!... - Sarah se horrorizou. - Bateu em você? - Não foi nenhum espancamento, foi um tapa rápido, que nem a gente vê nos filmes quando tem mulher histérica, sabe? Um tapa rápido. Eu me senti tão humilhada, não sabia o que dizer, todo o caminho até minha casa fiquei só chorando no banco do carro, sem entender... Ele foi embora sem falar comigo. No dia seguinte me telefonou, na maior. Com jeito de que não tinha acontecido nada, estava tudo bem entre a gente... eu sei que agi errado. Devia ter imediatamente tirado satisfação com ele, ter conversado com ele, pra entender por que ele tinha feito aquilo, mas... O namoro tão no começo, achei que podia ser um mal-entendido bobo. Tudo bem, o namoro continuou, por um tempo a gente não brigou. No outro mês, a coisa foi ficando pior. Rita ficou enrolando o cigarro no cinzeiro, um tempão. 101 - Ele começou a invocar com os amigos do meu irmão, ele odiou a galera do meu irmão. É uma turma legal, uma meia dúzia de caras que está sempre em minha casa, pra jogar baralho e vídeo game, dormem lá... o Zé Paulo morreu de ciúmes da idéia de ter rapazes estranhos dormindo na minha casa, "dormindo comigo", como ele falou. E o que eu podia fazer? Eram os amigos do meu irmão, se meus pais deixavam, eu ia proibir? Então era o inferno. Ele queria saber, todo dia, toda hora, quem estava lá, o que os caras falavam pra mim, se eu ficava na sala com eles, se andava de short enquanto eles estavam lá, se nunca tinha visto ninguém no banheiro, era um absurdo! Um absurdo, o que ele imaginava que acontecia em casa, só porque meia dúzia de moleque, meu irmão tem 13 anos, os amigos dele também, estava em casa no fim de semana... Rita esmagou o cigarro no cinzeiro, soltou a última baforada para cima. E encerrou a história: - Bem, o Zé Paulo queria demais manter relações sexuais comigo. Realmente insistia. Mas eu tinha medo. Porque, se só nos abraços, nos agrados, ele já era assim exagerado, meio de agarrar com força, quase machucar... eu imaginava como ia ser, com ele pelado, num motel. Ele me parecia assim o tipo de cara que gosta de violência, algema, chicote, não sei. A gente nunca transou, graças a... - olhou pra mim, um breve segundo, olhou e sorriu -... graças aos deuses, como fala o Picapau, eu não dei pra ele. Mas ele insistia, sempre, sempre. E... um dia, eu vi o Zé Paulo com uma garota no carro. Eles não me viram, foi na rua, uma passagem rápida... Quando eu fui cobrar dele quem era a moça, ele falou que "não era ninguém. Que era só uma puta", que homem tinha necessidade, e já que eu não dava pra ele, não podia 102 cobrar nada e uma puta não era traição, era aquilo que ele falou: "necessidade". E aí... Eu quis terminar o namoro. O Zé Paulo concordou, mas só de boca pra fora. Deu de me seguir. De aparecer de surpresa na escola de natação. Eu fiquei com medo. E contei pro meu pai. Vocês não sabiam disso, mas meu pai chegou a contratar um segurança, que ficou me protegendo e me seguindo por uns tempos. E é isso. Acabou. Nós ficamos sabendo que o Zé Paulo está com uma nova namorada, então parece que me esqueceu. Mas todo esse pesadelo acabou não tem um mês e eu estou nesse arraso todo e... é isso. Silêncio. A Sarah pediu o maço de cigarros pra Rita, tirou um fedorento de lá, acendeu com o Zippo... todo mundo ficou tão olhando pra ela, que a ruiva acabou sorrindo. - Ei!, não sou eu que precisa falar alguma coisa. Não me encarem desse jeito. - Nossa! Tem tanta coisa do que você falou que dá pra comentar, Rita! - disse Bia, colocando os dedinhos de unhas roídas no rosto. - Comentar por que esse cara te batia, do ciúme louco que ele tinha... - Esse papo de traição... - falou Angélica. - O que é traição? O cara sair com puta é traição? - Esse cara era muito louco, Rita... - meti meu bedelho na história ("Meter o bedelho" é outra expressão fantástica. Eu tenho uma tese de que o tal bedelho é... bom, vou deixar o bedelho pra outra vez). - Era muito louco, sim. Mas você também com esse negócio de um viver pro outro, outra viver pra um... sei lá se isso funciona. - Que besteira, Picapau! - a Sarah baforou o cigarro na minha cara, meio brava comigo. - É a melhor 103 coisa na história da Rita. Eu acho legal o que você falou, Rita, super importante, de querer assumir um compromisso e de levar a sério. - Sarah, você, falando de compromisso? - estranhou Penélope. - Eu, sim. Se é pra galinhagem, é pra não ter compromisso mesmo! É curtir uma noite, um passeio e tchau. Mas se é pra namorar, casar, pra ficar junto mesmo, aí tem de ter confiança. Tem de ter fidelidade. São coisas diferentes. - Sarah, me desculpa... - tinha de falar. - Mas até parece que você não conhece homem. - Eh!, Picapau. Não sacaneia. - Não, é sério. Tem um primo meu que fala sempre "Cavalo de cabresto também come". Eu duvido que tenha homem no mundo, por mais compromisso que tenha jurado... se aparecer uma outra dona qualquer se oferecendo pra ele, que ele num come. Duvido. - Quer dizer que pra você, Picapau, homem nenhum é fiel? - perguntou Debi. - Mas que sacanagem, Picapau. E a gente deixando você ficar aqui, até esta hora, pra quê? Pra ouvir a frase que até minha avó achava babaca, "Os homens são todos iguais"? - Vai ver sua avó tinha razão. Pra que fui dizer isso! Elas resolveram atacar o pobre Picapau de boca grande. Quem mandou ser sincero, o mulherio deu de falar ao mesmo tempo, e era a Debi falando com a Bia, a Sarah com uma conversa comprida pra cima de mim, e a Penélope chegou a pegar no meu rosto, pra eu me virar pra ela e ouvir que "Picapauzinho safado eu era..." 104 - PERA AÍ! - gritei. - DEIXA EU FALAR! Agora me deixem falar... posso? Vocês deixam? Foram sossegando. - Essa é a história da Humanidade, sabiam? Porque acho que desde que o homem ainda era um macaquinho, a coisa é assim o macaco quer comer tudo quanto é macaca que aparece pela frente, e a macaca quer agarrar um peludo pra tomar conta dos macaquinhos com ela, e ficar só com ela e trazer banana pra ela. Então, a história do Homem é tentar fugir do casamento e a história da Mulher é prender o cara no pé dela. Um quer fugir, a outra quer prender. É isso aí. Novo buchicho. A Sarah ia de novo me baforar cigarro na cara, eu me agachei, ela fumaçou a Bia, a coitada ficou tossindo, a mulherada se irritou, a Penélope, particularmente, tinha se irritado com a idéia dos "macacos", dizia que de jeito algum era macaca, eu tive de assobiar de novo e falar depressa: - Não é que eu falei que um cara pode não se apaixonar por uma menina... não é que não dá pra namorar, casar, adorar uma mina... o cara pode viver anos com uma mulher... mas, se tem a oportunidade, homem é safado. Pode gostar de uma, mas vai querer experimentar outra se tiver jeito. - Qualquer uma? - falou Rita. - Dependendo do perigo, qualquer uma - elas desconfiaram. - Vocês conhecem a história da índia velha? - Ah, Picapau, pára de fugir do assunto! - gritou Debi. - Não estou fugindo nada, a índia velha tem tudo a ver. 105 - E você acha que com mulher é diferente? Mulher vai ser mais fiel que o homem? - continuou Debi. - Tem mulher que, se pintar uma chance, bota corno no marido, sim. Já tem outra que não. - E por que com homem também não pode ser assim, Picapau? - perguntou Angélica. - Por que não pode ter homem fiel e homem galinha? - Tá bom, pode ser. Mas é mais difícil. Posso contar a história da índia velha? Precisei insistir um pouco mais, mas elas acabaram deixando eu contar a história da índia velha: - Tinha o dono de um garimpo, ele tinha aí uma meia dúzia de peão, que ele levava pro sertão, pra garimpar ouro no riacho, é um trabalhão, parece que passavam assim um mês, sei lá se mais, garimpando... e o dono levava a peãozada e levava uma índia velha com eles. Bom, os caras não entendiam por que a índia velha ia junto. Era horrível, a índia. Banguela, fedorenta, careca... cozinhava mal, não servia pra nada. O dono do garimpo só dizia: "Daqui a pouco vocês descobrem". Bom, eu sei que peãozada trabalhava, trabalhava... até que, um dia lá, tinha um peão que botava um risinho safado na boca e comentava: "Sabe que essa índia não é tão feia?". Pronto! Era o que o dono queria ouvir, pra recolher tudo e levantar acampamento. Era a hora de ir embora. A índia era o termômetro. Quando até a índia velha o cara queria comer, era porque já estava no maior atraso do mundo, fazia qualquer coisa. - Índia velha, que absurdo! - falou Angélica. - Absurdo? É que vocês não sabem o que é ficar a perigo! O desespero de saber como é, de querer transar... e nada. Ninguém a fim de você. É duro... Elas riram. 106 - Dão risada, dão risada! - eu me irritei. Sentei melhor, tentei levantar, mas o pé não deixou. - Vocês mesmas... ficam rindo, tirando sarro de mim... quem de vocês ia querer dar pra mim? Hem? - Picapau, olha a baixaria - falou Debi. - Baixaria? Que baixaria? Acabei de fazer 16 anos, sou baixinho. Sou magro. Nem tenho muito pêlo no peito. Se um cara tem a minha idade mas é altão, parece mais velho, ainda pode topar uma mina corajosa, aí de uns 18, 20 anos que queira dar pra ele. Se é mais decidido, ou o cara tem grana, pode pagar uma mulher, procurar uma puta... e eu? Como é que eu fico? Primeiro, elas tentaram ficar sérias. Era o riso preso, e isso é pior que peido, eu falo. Começou com a Penélope, que foi rindo pelos olhos. Depois a Sarah soltou a risada pelos cantos da boca, brrrüiffffzzzggrrr. E aí, foi geral. Gargalhadas. - Verdade. Ninguém quer dar pra mim. Quem de vocês quer dar pra mim? - O riso aumentou mais, parecia um uivo do bando de onças se divertindo com um mico antes da hora do bote. - No desespero, a gente... a gente topa índia velha, mulher barbada de circo, vizinha tarada que não rapa a perna, empregada da avó... É assim, minha filha. No perigo... - Ah!, Picapau... - Sarah limpava as lágrimas dos olhos, tinha dado tanta risada que acabou chorando. - Dessas que você falou aí, dessas do "a perigo"... com quem você ia? Com a mulher barbada do circo? - Não. A empregada da avó. Elas não acreditaram. - Verdade. Juro pelos deuses. - Então você tem de contar. - falou Bia. 107 Capitulo 8 PICAPAU Minha avó_ paterna era aí meio italiana, e ela falava um negócio assim de europeu, uma simpatia lá deles. Diziam que quem nasce _ empelicado tem sorte na vida.~,11u falei empelicada não falei vi... vocês entenderam. Pára de rir, Sarah, que você também é filha de gringo, deve ter ouvido uns troços assim, superstição, minha vó dizia que era verdade... o cara nasce com uma pele em volta, parece que a placenta arrebenta, o nenê nasce embrulhado numa pele, então ele é empelicado.. fica sortudo o Bom. Amigas do coração, posso garantir pra vocês que eu não nasci empelicado. Nasci foi cuspido. Azarado. Minha mãe diz que nunca viu bebê mais feio. Como se fosse possível ser mais feio ainda do que sou hoje, mas ela dizia que eu era tão feio que nem as enfermeiras tinham coragem de dizer "que bonitinho"... 108 - Ah!, Pára com isso, Picapau - falou Penélope. - Vooocê é bonitinho, sim... - Bonitinho? Com um cabelo desses? - Seu nariz é bonitinho. Você tem um jeito de moleque. -jeito de moleque? E quem é que quer ter jeito de moleque? Queria ser aí... um homão. Bonitão. Querem ver quem é empelicado? O Felipão. O raio do Felipão tem a minha idade, mas tem aquela cara de Tarcísio Meira aos 15 anos. Grande, fortão, moreno de dentes brancos... e fica lá, parado feito bobo, só rindo pra mulherada. E é um tal de oferecer coisa pra ele. - E imitei uma menina bem fresca: - "Quer bombom, Felipe?" E vem outra: "Você já viu o filme Tal, Felipe?", e outra: "Tenho convite pro Playcenter, Felipe, você não quer ir no sábado?". E sabem o que me deixa mais puto, sabem? É que o Felipão só bota a cara de bobo - imitei uma cara tão retardada que se o Felipão se parecesse com aquilo ia ganhar os tubos como monstrengo em circo de periferia. - O bobo fica lá, "brigado. Hoje não. Num gosto de filme. Bombom engorda", o filho da mãe nem percebe a mulherada. O cretino gosta de jogar bolinha de gude e usa aqueles bonezinhos de pivete, e com aquela maldita cara de artista e o tamanhão todo o panaca se rala pra mulherada... e é essa maldade dos deuses! Eu, que adoro mulher, que dava um dedo pra comer toda a mulherada, fico sobrando. Cara de moleque. Orelha grande. Cabelo que arrepia em qualquer vento. E sabendo tuuuuudo de mulher, vendo o bobalhão recusando todas, dá assim a maior raiva... Olhei pra elas e resolvi. Apoiei meu peso no ombro da Sarah, ela deu um gritinho, tratei de me pôr de 109 pé. Estava tão com vontade de falar, agora ia botar tudo pra fora e, quando a gente faz isso, senhoras e senhores, tem de tratar bem a platéia. Coloquei todo o peso no pé bom, me estiquei no 1 metro e sessenta e dois que eu tenho, ajeitei a camisa e falei: - Meu primeiro beijo. Vocês querem saber como é que foi o meu primeiro beijo? Não foi uma merda, que eu não sou tatu de tripudiar em cima de um negócio desses, mas foi azarado que vou te contar... Maná casamento em sítio? Parece que foi moda há uma pá de tempo, mas sempre tem uns parentes que resolvem seguir tradição, e toca fazer casamento na roça. Uma prima de prima, nem lembro. Lá foi a família inteira, eu devia estar com... 10 anos. Disso não passava. Casamento no sítio é aquilo: todo mundo bota roupa chique, camisa branca, melhor tênis e tal. E o padre demora. E tem mosquito na igreja, cada pernilongo deste tamanho. Churrasco, que é bom, necas. Séculos pra servir a carne. Morrendo de sede, e cadê bebida? Quando oferecem guaraná, tá morno. E toca tomar guaraná morno. Um olhando pra cara do outro, não se conhece ninguém... E vem lá a mãe, ou a tia: - "Picapau, esse é o Tonhão" - imitei uma tia minha horrorosa, uma que fala cuspindo na cara da gente. - E cumprimenta o Tonhão, um baita cara de mongo, o primo Tonhão, que você nunca viu mais gordo. "Esse é o tio Onofre" - imitei de novo - e o tio Onofre tá bêbado, derruba caipirinha na sua melhor calça, quando vai te dar beijo e você lá, morrendo de vergonha de receber beijo babado de bêbado, parece até trocadilho, beiijobabadodebêbado e se morre de vergonha, porque você tá é grande demais pra receber beijo de homem, mas fazer o quê? É casamento na roça. Família. Todo 110 mundo tem de ficar feliz, né?... E vem a pivetada, a priminha Giovana, a Filomena, a Fulaninha, a Sicraninha... até que vem a prima Genoveva. Opa! A tal Genoveva já é mais interessante, e tem a amiga da prima Genoveva, que é mais interessante ainda. - Peguei fôlego e continuei: - A amiga da prima Genoveva já era uma coisa um pouco mais interessante. Alta pra burro, bem, mais alta que eu, e era do tipo de pegar no braço ,e falar - imitei a voz de uma mina bocó mas gostosa: - "Ai!, Picapau, onde você estuda?... Ai!, Picapau, você é tão engraçadinho, ai!, Picapau, você mora onde em São Paulo?". E eu só pensando: "É essa aí".. E o problema, então, era me livrar da prima, porque o raio da prima grudou na amiga que era uma sarna e nada da gente ficar sozinho... Eu já estava desesperado, com fome ainda por cima, até que apareceram uns pedaços de carne sangrenta, não sou gato, mas naquela hora comia até se fosse carne crua mesmo, a tal amiga da prima gostou, fui buscar mais carne pra ela e como é que eu iria botar a prima pra longe? Desespero, mesmo. Até que a prima foi na casinha, é, banheiro na roça é casinha, ou foi pegar, refrigerante choco, "é agora", eu pensei. Agarrei a amiga, acho que o nome dela era Sandra, Silmara, era com S. E lá fui eu, levando ela pruns matinhos --me imitei, fazendo cara de safado: - "Quer conhecer a horta? Vamos ver a horta?" Sei lá se tinha horta, tratei de empurrar a mina pra bem longe da festa, a gente foi assim se metendo por um mato, e aí ela gritou: "Olha, tem um riachinho!". Ótimo. Então a gente .foi seguindo o riachinho, eu andava depressa, quanto mais longe a gente ficasse do churrasco, melhor. E anda que anda, e pega no braço dela aqui, 111 e ela dá risada e pega no meu ombro ali, eu agarro na cintura dela e vamos seguindo o riacho... dá que de repente a gente começa a ouvir a Genoveva gritando. Chamando a gente. "IÜÜh!, acho que estão chamando a gente", falou a tonta. "Estão nada. É outra pessoa, boba", eu falei e toca a empurrar a mina pra frente, e aí eu vi um caminho assim meio saindo do riachinho, uma trilha, e me meti lá com a menina, ainda subi num morrinho e é agora! Tasquei um beijaço nela. Agarrei mesmo na mina. E foi bom. Sabe, a danada sabia beijar bem, a gente ficou lá, boca com boca um tempão... e a Genoveva aos gritos: "PICAPAAAAAAU! SILMAAAAAARA!" - Acho que era Silmara, e a mina queria desgrudar a boca e responder, e eu fingindo que não ouvia nada, tapando a boca dela com beijo, mas aí foi um tal de ouvir também a minha tia chamando. A minha mãe chamando. Era pra gente voltar, mesmo. Que saco, eu tive de largar da grandona, maior dó de largar dela e ela ficou lá me olhando, toda dengosa e eu quase que ia dar outro beijo quando vejo a tal Silmara farejando o ar, depois fez uma careta... "Picapau, que cheiro é esse?", ela perguntou. E só aí eu olhei em volta, vi o morrinho onde eu tinha subido pra beijar ela... a gente tava... Po, só comigo, mesmo. A gente tava rodeado de merda de cavalo, de vaca... era uma espécie de esterqueira, vocês sabiam que em sítio tem um troço desses? Eu nem sabia, que nojeira, dá pra imaginar um lugar só pra guardar merda de bicho? Pra se usar como adubo na horta, agüenta? Peguei fôlego de novo: - E toca a voltar. A Silmara cheirando o ar, eu falando que não tinha fedor nenhum, nós dois fedendo que nem gambá e eu mentindo. E, quando a gente aparece na festa, todo mundo 112 puto comigo, minha mãe nervosa, a prima mais furibunda ainda com a amiga dela, fuzilando a amiga dela com os olhos, achando que tinha sacanagem, e tinha mesmo, né, mas era eu que ia falar isso? Só sei que meu pai tava com a maior pressa, me enfiou no carro sem nem dar chance de eu usar o banheiro, parece que ele tinha brigado com um parente, ou o meu irmão, que foi mordido por uma abelha? Sei lá, vai ver isso aconteceu na praia, no carnaval... mas sei que a gente tava lá no carro, um calor no carro e o fedor, vou te contar, que fedor... e meu pai ainda falava: "Que cheiro é esse? Que aconteceu, por que tá esse cheiro?" Eu ainda na cara de pau: "E esterco aí do pasto, pai. Quando pegar a estrada, melhora", sabendo que o fedor era do meu tênis, tênis novo, ainda por cima, ficou catinguento por uns dois meses, esse foi o meu primeiro beijo, isso lá é história pra se guardar na vida? Tem cara que lembra de perfume de flor, de música romântica, eu, o Picapau azarado aqui, tem de ter um primeiro beijo com cheiro de estrume, isso não se faz, meus deuses, tem de ter muitos deuses mesmo pra ver se escapa um, pelo menos um, pra proteger um coitado de um picapau que só sabe se meter em fria... Olhei de uma pra outra. Elas riam tanto que dava até raiva ou alegria, sei lá, de ver. - É a história da minha vida. Gente, vocês estão rindo da história da minha vida! Aí, sim, elas riram mais. - Vocês dão risada? Ah!, é? Assim eu não conto mais. Acabou. Fingi que ia sentar. A Penélope segurou na minha mão. 113 - Não, Picapau, conta, conta! Eu estou comovida... tadinho de você, Picapau. Comovida? Aquela víbora dengosa tinha era lágrimas nos olhos - e não era de piedade, não. Era puro riso. As outras toparam o pedido: - CONTA, CONTA, CONTA! A Bia: - Vai, Picapauzinho, você fala tão legal... - Você faz de propósito, pra ficar engraçado, Picapau... - a Debi enxugava os olhos também, rosto vermelho. - Você sabe disso, não sabe? - Eu adoro o jeito de você contar as coisas, Picapau... - falou Sarah, tentando conter os soluços acendendo um cigarro. - Você devia ser ator, Picapau - falou Maria Fernanda. - Ia ganhar a maior grana - confirmou Angélica. - Fala mais, Picapau. Por favor - pediu Rita. - Por favooooor... - "dengosou" Penélope. Então eu olhei bem pra cara das meninas... sabia que isso seria ainda a perdição da minha vida, mas não era o tal Clube? - Olha lá!, vocês prometeram segredo... - Picapau, a gente já contou cada coisa cabeluda! - falou Sarah. - O que é que você pode contar de mais segredo ainda? - E que aí a desgraça é minha. Se vocês espalham isso na classe, ainda ganho apelido de Blecaute. Ou de Ceguinho. Sei lá, apelido é praga. Os caras não perdoam... - Não perdoam o quê? - insistiu Bia. - A minha primeira vez. 114 Elas se entreolharam ("entreolharam" é bonito, hem?). Dá bem a idéia da cara safada que elas fizeram, já antegozando (essa também, é uma palavra do caramba) a minha história, a minha perdição, azar da vida. - CONTA, CONTA, CONTA - de novo. Ia me ferrar ainda mais, mas não era minha sina? Boca mole, falastrão, azarado e exibido, ainda por cima. Então eu contei: - Minha avó materna é viúva, e ela tinha uma empregada que estava com ela assim uns vinte anos e a mulher deu de querer visitar uns parentes que estavam doentes e vovó ficou apavorada de morar sozinha, sabem como é velha... e aí a empregada falou um "tudo bem" e mandou lá de Minas uma sobrinha dela pra trabalhar com a minha avó nas suas férias. Dinorah, o nome da sobrinha. Era mais velha que eu, claro, mas não era nenhum jaburu, era mocinha, bonitinha e tal, a tal sobrinha. Muito melhor que a velha, que nem bom-dia me dava, era muquirana e enfezada e aí vem aquela anjinha. - Imitei um jeito molenga: - "Aaaah!, seu Picapau" (ela me chamava de "seu Picapau" que era pra dar respeito), "aaaaah!, seu Picapau, não quer bolo de fubá, fiz bolo de fubá fresquinho". Vocês manjam, o tipo que está dando dica? E eu comia bolo de fubá. E outro dia era doce de abóbora. No fim de semana, ela ia passear mas deixava brigadeiro enroladinho no armário com um bilhete "Pra seu Picapau". Aí tinha coisa. Eu sabia que tinha coisa. E doido pra ficar uma noite na casa da avó, só pra ver se dava um tempo de ficar sozinho com ela. Tava meio difícil continuar falando apoiado num pé só. Pedi pra Debi me alcançar a cadeira fofa, ela levantou pra buscar, eu me joguei na cadeira, acabei de 115 novo no meio da roda, mas desta vez era porque eu queria e não pra ficar de isca de leoa antes da chacina. Continuei: - Aí nas férias de julho o Catatau teve de operar apendicite, a maior correria, pai e mãe no hospital, eu fiquei com a avó. E é um sobrado assim fuleiro, num é que nem este casarão da Debi, mas o bom é que o quarto da avó é em cima e o quarto de empregada é nos fundos, então lá uma hora a minha avó foi dormir e eu tratei de me enfiar na cozinha. Toca a pegar bolo, guaraná, pegar lanche pra ver tevê e puxei papo, a Dinorah no quartinho, de porta aberta, metida na cama e me falando dengoso: "Aaaaah!, seu Picapau, olha que programa engraçado". E eu, que não sou tatu nem nada, todo interessado no programa. "Ah, ah!, que engraçado, senta aqui, seu Picapau, vem ver", e ela fechou a porta. Opa! Aí tinha. Sentei na cama dela. E dou risada, e acho tudo liiiiindo... e a Dinorah: "Ah!, seu Picapau, você é tão bem-humorado, é tão engraçadinho", e nessa hora, caras amigas, eu ria até de velório, tava tudo lindo. Na hora em que um cara na tevê deu um abraço numa mina, eu tratei de abraçar a Dinorah. E beijar a Dinorah. E a Dinorah, mais ajeitadinha que nunca, no "Aaaaah!, seu Picapau". Eu pensei: é hoje. É hoje que descobria como é que era. Respirei fundo. - A Dinorah bem que tava a fim também. E tiro a camisola da Dinorah. E a gente tá lá, nos amassos... e ri, ri, ri do programa de tevê. E tiro o sutiã. E é mais amasso, eu já querendo lembrar em que bolso tinha metido o pacote de camisinha, porque é hoje... todo feliz, o Picapau bestão aqui, todo contente... e tira a calcinha da Dinorah. E vai se ajeitando na cama da Dinorah, é agora. 116 Parei de falar e olhei depressa as meninas: - E vocês lembram lá do que aconteceu? Os deuses podem ser muito, muito safados... Sabem lá o que aconteceu, em julho? Vocês não lembram? Caras e bocas, "Não, o que foi?", "Conta logo, Picapau!" e eu olhando pra elas: - Gente, foi o pior blecaute que esse país já teve. Faltou força do Rio Grande do Sul até Minas Gerais. No dia da estréia do Picapau, tinha de ter o pior blecaute da história. - Picapau! E o que você fez, Picapau? - perguntou uma delas. - Bem na hora... bem na hora que eu tava "lá". "Lá", vocês entenderam? Ficou tudo escuro, a tevê pifou. Escuro meeeeeesmo... e a gente só ouve a minha avó: DINORAH! - gritei histérico que nem uma velha. - Bem na minha hora, a velha acorda. E eu lá no vamo que vamo, "finge que não ouve, Dinorah, finge que não ouve", e a minha avó gritando no andar de cima: "DINORAH, TRAZ A VELA, DINORAH!", que vela que nada, eu acalmando a Dinorah, ela querendo escapar, eu no meio do serviço, "escuro não mata ninguém, ela dorme, Dinorah, sossega", e a gente ouve um barulhão do andar de cima... um baita remorso, e se a avó tentou levantar no escuro e rolou escada abaixo, já imaginou, a minha cara no velório, eu acabar fazendo a velha rolar a escada, só porque estava comendo a empregada dela? E a vá que grita mais, "DINORAAAAAAH, TÁ ESCURO, DINORAAAAH!". Pelo menos, a gente ficou aliviado em saber que a velha ainda tava viva. E aí toca sair correndo, levar vela pra avó... Levar água com açúcar, que ela tinha medo do escuro... e ficar com ela, porque deu ataque de asma. E aí foi mãe 117 que telefonou do hospital, preocupada de ver como a avó estava, e queria contar do Catatau... Então na minha primeira vez teve Catatau, - fui marcando nos dedos - Catatau doente, blecaute, avó que quase rola a escada e berra "Dinorah" no meio da coisa, e Dinorah me olhando com cara de culpa, medo de perder emprego e eu, assim, sem nem saber se foi bom direito. Tudo isso tinha de acontecer, meus deuses, na primeira vez do Picapau... Ainda bem que eu estava sentado, porque, se esperava receber solidariedade e comoção com o meu digno relato, ia cair que nem jaca madura no chão, plof! Minas mais cruéis, pó! Tinha em volta de mim as sete meninas mais gargalhantes que um cara pode imaginar em toda sua vida. - Isso é um drama - ainda falei. - Juro que é um drama. Vocês deviam estar chorando... - Eu es-es-tou... - conseguiu falar Debi, segurando a barriga de tanto rir, fungando em meio a soluços. - Você inventou essa história, Picapau... - falou Rita. - Ninguém pode ser tão azarado na vida, é impossível! - Num credito, Picapau... - era a Bia. - Não falei? Não falei que eu sou azarado? Que nasci foi cuspido, e não empelicado? Vocês não acreditaram. Agora, estão aí... tirando sarro do Picapau. - Eu não estou tirando sarro de ninguém - falou Penélope, mas com o rostinho afogueado, de tanto que tinha rido da minha tragédia. Sorri também. Se era tragédia, era porque era minha. Mas, se um dos caras da escola contasse uma barbaridade dessas, eu ia morrer de rir do desgraçado, mais do que elas estavam fazendo, oh!, se ia. 118 - O primeiro beijo... a primeira transa... Picapau, desse jeito a gente não consegue acreditar. Só tem azar - falou Angélica. - Também não é assim, meninas - falei. E sorri. - O Catatau teve de ficar internado. Foi fazer consulta em outro dia... eu acabei sobrando com a avó uma vez ou outra durante as férias da tia da Dinorah. Também não era blecaute toda noite... Porque se fosse, eu podia ter certeza do ódio dos deuses. Mas sempre sobra um deus ou outro que é mais malandro e resolve proteger a vida sexual dos pica-paus. - Você podia escrever um livro - brincou Sarah. - A VIDA SEXUAL DOS PICA-PAUS... - Ôh! Ia ficar rico. Deve estar "assim" de gente interessada em sexo de passarinho. - Vendia pelo menos sete exemplares... - completou Rita. - E a gente, não conta? - Vocês? As que menos compravam. Já ouviram, já sabem do meu azar, já deram risada de mim... e pior: todo mundo se divertiu à minha custa, mas não tem uma que quer dar pra mim. Não é? Ou é? Hem? Alguém, se candidata? Hem? Hem? - Sossega, Picapau! - resmungou Sarah, mas ela também ria. E olha que eu tinha botado a minha cara mais safada de novo, e de novo elas ficaram nas risadinhas delas, é, caros deuses, parece que meu destino é fazer a mulherada dar risada. Mas tem também um primo meu que fala (se não tem, eu invento: devo ter uns quinze mil primos, um pra cada ocasião), um primo que fala que "homem que faz a mulher dar risada não perde a chance de dar uma trepada", e isso bem podia ser verdade, não é? 119 Elas tinham uma nova versão: "Homem que faz a mulher dar risada acaba arrumando uma bela namorada". Foi a Bia quem falou: - Picapau, sabe o que eu acho? Você fala, fala... mas, se qualquer menina, qualquer uma se engraçar pro seu lado... acho que você se amarra. Namora, mesmo. Se apaixona. - E tem mais! - completou Debi. - Pode até ser mina feia. - Epa! - exclamei. - Feia, eu não digo - continuou Debi. - Mas se for aí mais ou menos... e ficar ligada em você. Você ainda vai ser o namorado mais apaixonado da Terra. "Desde que ela gostasse de sexo e topasse tudo aquilo que eu imagino fazer e fizesse comigo", eu pensei. Por que não? Mas dei uma de difícil. - Não é assim também! Pó!, estão me achando com cara de Paraguai? - Paraguai?! - É, vocês não sabem? O Laerte ganhou apelido de Paraguai. Vocês não sabem da história? - Eu sei - falou Sarah. Ela é da minha classe, devia saber mesmo. - Você não vai contar, Picapau... não vai, não é? Coitado do Laerte! - CONTA, CONTA, CONTA! Claro que eu ia. Era bom sacanear outro cara, além de mim, pra variar. E contei: - A professora Neide, de História, estava falando da Guerra do Paraguai. Explicou que o Brasil fez uma cachorrada com o Paraguai, que morreu gente pra burro, quase acabaram com os homens do Paraguai... e que, 120 depois da Guerra, o governo paraguaio liberou a poligamia pra ver se repovoava o país. Um homem podia ter aí duas, três esposas... tinha de ter muitos filhos, criar paraguaizinhos, né! E a professora ia falando, era negócio sério, todo mundo prestando atenção na classe, até eu estava sério... e aí vem o Laerte e solta, assim, falando alto, "oba!". Ninguém entendeu o que ele queria dizer com isso, "oba!". E o cara continua: "Tava pra mim. Ter duas, três mulheres". Aí o Porpeta não agüentou e gozou dele: "Laerte, imagina só: no século passado não se tomava banho, mulher sem dente, fedorenta, e você fala `oba!"'. Aí o cara ficou parado, pensando... mexeu a cabeça e falou de novo: "Oba!". E enfrentou a gozação na maior... então virou apelido dele. Quando a gente quer gozar um cara, de que ele topa qualquer bagulho, qualquer mulher mesmo, a gente chama de Paraguai. - Mas você é Paraguai - afirmou Angélica. - Eu? Eu, não! Sou um cara de bom gosto. Muito bom gosto. - Ainda acho, Picapau, - falou Debi - que, se pintasse uma garota legal, você namorava. Tive uma idéia. Primeiro, pensei se não era baixaria. Se elas iam ficar bravas. Depois, achei que dava pra encarar. Fiquei rindo um tempão... até que uma delas se invocou com a risada e perguntou: - O que foi, Picapau? No que você tá pensando? - Gente. E que eu tive uma idéia. Sobre essa namorada aí, legal, eu topava. Mas ela tinha de ser super especial. Juntar um monte de coisas - olhei no rosto de uma por uma. Todas de olhos brilhando sobre mim. - Um monte de coisas de vocês. - Da gente? - riu Bia. - Como assim, Picapau? 121 - A namorada tinha de ter... o rosto dengoso da Penélope. O sorriso maneiro e cheio de covinhas da Penélope. - Tá vendo? Isso ainda dá coisa - falou Bia, dando um empurrãozinho na Penélope. Era difícil, pensei. Depois do que a Penélope contou, de ter medo de sexo, ela acalmou mesmo o meu penacho, era uma barra muito chata de enfrentar. Mas que eu achava ela lindinha, isso eu achava! Resolvi continuar: - Mas não pára aí, esperem um pouco... a minha namorada especial tinha de ter o sorriso lindo da Penélope... - marquei a característica num dedo, segurei no outro e completei: - e tinha de ter os olhos verdes e grandes da Bia. Bia ficou vermelha. As outras deram risada e me olharam, assim com cara de quem está esperando a avaliação. Segurei o terceiro dedo e olhei pra Debi: - A cintura da Debi. Não sei, cintura não. A curva toda. Com esse tamanho todo seu, Debi, você não tem um violão, mas um violoncelo. Dá pra se tocar muita música, nessa cintura... Até a Debi consegui deixar ela vermelha. Olhei pra Angélica: - Você é lindinha, Angélica, mas tem um lugar seu que é demais... não leva a mal, mas eu escolhia colocar na minha namorada esse seu lindo traseiro arrebitado. Deram risada. A Angélica fingiu esconder o rosto com as mãos, mas ficou me olhando por entre os dedos. Segurei no dedão, pra marcar a quinta qualidade. Olhei pra Sarah: - Da Sarah eu escolhia o busto. Melhor, o decote. O colo, esse é o nome certo. Você é sardenta, mas 122 não é assim manchada, é uma coisa delicada essas manchinhas no colo, fica legal. E da Rita... O rosto da Rita estava sério. Ela afofou o cabelo e jogou ele pra trás. Foi o escolhido: - O cabelo da Rita é demais. Assim loiro, caindo sobre o rosto, é o que faltava na minha namorada ideal. Já estava segurando o mindinho da segunda mão. Segurei no dedo anular e procurei a última menina com os olhos. Maria Fernanda. Deu um branco, na hora. Cadê a Maria Fernanda? Olhei pra ela, o que eu poderia escolher da Maria Fernanda? Ela não havia falado nada nos últimos quarenta minutos. Tinha quase se escondido atrás da Sarah, rindo junto com as outras ou olhando junto com elas, mas sem expressão própria, sem destaque. Aliás, ela era assim: o que se destacava na Maria Fernanda? Ali sentada meio nos fundos, parecia pálida e assustada. Era mais fácil explicar a Maria Fernanda pelo que ela não era: não era tão magra quanto a Bia, nem tão gorda quanto a Rita, mas também não era gostosa como a Penélope. Não era tão baixinha como a Penélope, mas não era alta como a Debi. Tinha cabelo comprido, mas não era tão bonito quanto o da Rita. Os olhos eram grandes, de um branco saliente, nada de olhos esverdeados como os da Bia, mas também não eram misteriosos como os da Angélica. Os seios não eram tão pequenos como os da Angélica, mas também não eram ótimos como os da Sarah. As pernas eram compridas, mas nada de chamar atenção como as da Bia ou de serem esculturais como as da Debi. Era uma menina tão comum... 123 E o grupo todo me olhando e eu, segurando o dedo anular e olhando pra Maria Fernanda, tentando achar nela alguma coisa, alguma coisa de ótimo, . de lindo, pra colocar no retrato da minha namorada ideal. Gaguejei: - Da Maria Fernanda... - apertei mais o dedo, pra baixo. - Da Maria Fernanda, eu escolhia... - Não escolhia nada de mim, não é, Picapau? - ela falou, com voz triste. Diabo, que Picapau mais canalha eu estava saindo! Esmagava o dedo pra baixo, com força: - Da Maria Fernanda, eu escolhia... as mãos! - Ufa!, ainda bem que achei alguma coisa. - As mãos são pequenas, mas têm uns dedos compridos, o pulso é delicado, acho que escolhia as mãos. Vitória! Sorri feliz pra mulherada, elas olhavam de mim pra Maria Fernanda, Maria Fernanda que tinha um olhar estranho, o sorriso parou no seu rosto de um jeito fixo como se alguém fosse bater uma foto antiga, daquelas em que a pessoa tinha de ficar imóvel por minutos, assim o rosto dela, sorriso triste e revelador, e ela encarou as meninas e a mim, levantou o braço esquerdo e foi desabotoando o relógio, um relógio de pulseira grossa, enorme, ela soltou o fecho do relógio e ergueu o pulso pra cima: - Mesmo com isso, Picapau?... Mesmo com isso, você me escolhia? Era uma cicatriz. Uma estranha cicatriz horizontal, assim de uns dois centímetros, avermelhada e saliente, com a marquinha de pontos arrepiando as bordas. Nós formávamos um retrato estranho - já que eu lembrei de fotografia quando falei da Fernanda, 124 lembrava agora de como nós ficamos naquele momento. O sorriso ainda e sempre imóvel no rosto de Maria Fernanda, as meninas caladas, ora e outra um olhar rápido cruzando entre nós, a gente não queria imaginar o que era aquela cicatriz. Era aquilo, mesmo? Maria Fernanda, menininha, Maria Fernanda. O que você fez, o que você tentou fazer, um dia, na vida? - Maria Fernanda. Fefê - falou Penélope, tão devagarinho como se conversasse com uma criança. - Você se machucou, foi isso? Um acidente? - Não foi acidente - ela falou, afinal, recolocando o relógio e abotoando a pulseira. - Fui eu que fiz. 125 Capitulo 9 Maria Fernanda - Eu nem sei. Nem sei o que estou fazendo aqui, no Clube. Quem devia estar aqui era a minha ~ 4 irmã. Ela, sim, tinha um monte de coisas pra contar. É bonita. Teve um monte de amigos. De namorados. Maria Fernanda falou olhando para a varanda, para a noite mais além, um olhar por cima da gente. O mesmo sorrisinho esquisito nos lábios, manja riso de Monalisa? Assim, o riso virando um risco e sabe-se lá o que anda por dentro da cabeça da pessoa! Foi assim que ela ficou e foi com essa cara que ela falou. E falou: - A minha irmã, a Maria Alzira. Tem cinco anos a mais que eu. É alta, quase igual a Debi. Tem um cabelo comprido, pinta ele de loiro, parece com o da Rita. É magra, mas tem assim o. O traseiro, né? Arrebitado, 126 parecendo o da Angélica. Dela, você ia gostar, Picapau. Não ia ter dúvida pra escolher coisa bonita nela. Quase sorriu, um mínimo instante seu olhar procurou por mim, antes de se fixar de novo naquele "além janela". - Meus pais sempre gostaram mais da Maria Alzira. Não sei se até não preferiam ter só ela, como filha única... quer dizer, nunca disseram assim, pra mim, que eu fui um descuido da minha mãe, ou algo como "a gente não queria você". Mas não precisavam dizer. Eu sabia. Mas eu não ficava com raiva deles por isso. A Alzira é mesmo uma pessoa especial. Tão bonita. Tanta personalidade. Se ela aparece num lugar, numa festa, é sempre nela que todo mundo repara. "Que menina bonita!", "Como ela fala bem!", "Como gosta de ler!", "Como ela vai bem na escola!"... É assim mesmo, eu sabia. Não ficava com raiva. Tudo era pra ela porque ela merecia isso. E na escola, quando entrei na mesma escola que ela. Bom, tinha de acontecer, "Você é a irmã da Maria Alzira?" - Maria Fernanda imitou uma voz assombrada de professora - "Nossa, como você é diferente dela!". Sabia o que eles queriam dizer com "diferente dela". Eu não era brilhante. Não era bonita. Não ia bem nas aulas, sempre ficava no fim da turma, era a última a fazer lição, a entregar prova, a ser escolhida em dia de jogo nas aulas de Educação Física... Sarah e Rita acenderam seus cigarros, mudaram-se para perto da varanda, a Bia não agüentava mais cigarro, exigiu uma folga. Maria Fernanda sequer as acompanhou com os olhos, ficou na mesma postura, mesmo sorriso reto. - Eu nunca acusei a Maria Alzira. Nunca. Nem quando ela era tão ruim com eles. Não é "ruim" o que 127 eu queria dizer. É que a Alzira nunca entendia o que eles faziam por ela. Porque é até gozado uma irmã assim tão preferida pelos pais, era talvez até pra fazer pouco da caçula. E não era assim. Quando ela ficou mocinha, era até o contrário: a Alzira é que me protegia. Se a minha mãe inventava fazer na janta o prato favorito da Maria Alzira, ela reclamava: "Perguntou pra Maria Fernanda se ela também gosta de omelete de queijo?". Ou se minha mãe comprava roupa pra gente, comprava sempre azul, que era a cor favorita da Alzira e ela "essa cor a Fernanda não gosta, por que não perguntou antes para ela?". Mas eu não me importava, falava pra ela: "Deixa, Alzira. Eu como queijo, não me importo, não... Azul não é feio, eu não sou de ligar pra roupa, deixa pra lá". Era ela que se incomodava por mim. Meu olhar cruzou com o da Angélica. Ela tinha uma rugazinha na testa, cara séria. Molhou os lábios grossos com a língua, antes de desviar o olhar, concentrando-se em Maria Fernanda. Que falava, sempre depressa e com voz aguda, como se fosse um discurso falado tantas vezes para um ouvinte atento e compreensivo: - A gente se mudou muito pelo Brasil. Meu pai é funcionário do Banco do Brasil, a família é aqui de São Paulo, mas a gente já morou em Campo Grande, Curitiba, Salvador. A última cidade foi Salvador. Foi lá que aconteceu - ela ergueu o pulso, o relógio grande escondia sua cicatriz. Mesmo nesse momento não modificou a expressão. - Eu sofria muito com as mudanças. Porque era tão difícil achar amigo, amiga... e, às vezes, estava começando a ter alguém, a conversar com alguma menina e era hora de mudar. Pra Maria Alzira, não. Tudo bem. Em uma semana, ela estava super enturmada na escola nova. 128 Recebendo convite de festa. Arrumando paquera, entrando no Centro Acadêmico da escola, participando do grupo que fazia teatro ou organizava jogo. Bem que ela tentava me colocar no meio. Mas cinco anos de diferença é muita coisa. O que eu, aí com 10 anos, ia fazer com adolescentes de 15? A turma dela me tratava como criança, as outras só me davam atenção porque a Alzira insistia, mas a gente percebe quando alguém está sendo gentil só pra fazer um favor. Sabe, numa certa hora da noite, por exemplo, eu dizia que estava com sono e ia dormir. Aí as amigas dela, que estavam lá em casa, até respiravam fundo, aliviadas. De se verem livres de mim. E era a Alzira sempre que insistia: "Fica mais, Fernanda. Não quer mais coca-cola, não quer contar daquela vez que você fez isso ou aquilo", e ela botava os assuntos na minha boca. Teve uma vez, ela até mentiu que fui eu quem pesquei um peixe-espada, fui nada, foi ela, ela só pediu pra eu ajudar a puxar a linha. Mas até isso ela tentava, ela mentia por mim, para que as pessoas viessem a gostar um pouquinho de mim. Sarah e Rita voltaram a seus lugares, sentaram no chão. Alguém pediu pra fechar a porta da varanda, um vento frio começava a soprar. Também, tão de madrugada, nem me atrevia a olhar a hora, menos ainda no relógio da Maria Fernanda, aquele relógio parecia ter visgo, grudava meu olhar nele, ele e seu mistério. - A gente estava em Salvador até o começo deste ano. Mas tinha mais de ano que a Alzira e meus pais estavam em pé de guerra. Começou quando ela entrou na Faculdade, lá em Salvador, foi fazer Sociologia. Primeiro, meu pai achava um absurdo uma moça talentosa como ela "perder tempo" - era assim que ele falava - 129 com "essa bobagem", também era isso que ele falava. Bem, enquanto a coisa era só a escola, ainda vá lá. Não era nada, comparado com o que aconteceu depois. Meu pai volta e meia criticava o curso dela e a Alzira respondia em cima, sempre: "Se vocês não respeitam minhas idéias, não tenho mais espaço nessa casa". E isso eles sabiam que não era ameaça. Se a Alzira resolvesse sair de casa, saía mesmo. E se tinha uma coisa que deixava meus pais apavorados era a idéia da filha querida deles se mandar. Então, mesmo contra a vontade, eles tinham de concordar com o curso da Alzira, os amigos dela... as saídas dela, porque a Alzira dava de ficar dois, três dias fora de casa. E se insistiam em saber onde ela estava, com quem, ela nunca respondia. Falava aí... "com uma amiga" e só. E até era bom que eles pouco perguntassem. Pouco soubessem. Só que eles souberam. E souberam de um jeito horrível, foi quando a minha irmã brigou mesmo com meus pais. Ninguém perguntava nada. Só ouvia. - Foi uma vizinha quem contou. Uma vizinha chata, do prédio, uma fofoqueira. Tinha visto a Alzira numa moto com um cara "de cor". Isso mesmo, ela usou de... - Maria Fernanda interrompeu e procurou por mim. Levei até um susto - Como é o nome mesmo, Picapau? Quando alguém quer usar uma palavra mais agradável, pra dizer uma coisa forte? - Eufemismo - falei. - Isso! O eufemismo da vizinha: "rapaz de cor". Que a Alzira e um rapaz de cor estavam saindo de moto e que a minha irmã ainda deu um beijo nele, antes de segurar na cintura dele e sair. Aí... nem preciso dizer o que meu pai falou, né? Ele é racista pra burro. Engraçado, 130 ele nem é tão branco assim. Já vi um tio-avô dele que me pareceu até meio mulato, mas meu pai casou com branca mesmo, filha de alemães, minha mãe é loira. Só que meu pai consegue ser mais racista que minha mãe, vê se pode! Ele é que ficou doido da vida, foi a Alzira chegar da Faculdade, e meu pai já foi querendo saber que história era aquela. Muito bravo. Nunca vi meu pai tão furioso como naquele dia. Ele berrava! Chegou a erguer a mão pra minha irmã, vê se pode! Erguer a mão pra Alzira. E, ela, pensam que recuou? Pensam que ficou com vergonha, tentou mentir? Que nada! Ela gritou também. Que a vida era dela, que ela sabia o que queria da vida, que estava apaixonada pelo Antônio, que já devia mesmo era estar morando com o Antônio, que só não tinha ido embora porque tinha dó de mim. Ainda falou isso, tadinha! Dó de mim, do jeito medíocre, ela falou "medíocre", com que me tratavam. Isso deixou meu pai mais louco ainda. Falou que ela não tinha de se meter na minha educação. Era "o fim da picada", ele falou. E sabem o que ela fez? O que a Alzira fez? Maria Fernanda olhou para nós, e isso foi bom. Estava devagar saindo do jeito alienado, sonso, com que olhava a varanda. Eu sorri para ela, em cumplicidade. Outras meninas também tentaram sorrir. - Minha irmã foi embora. Naquela hora mesmo. Só pegou umas coisas no quarto, telefonou pro tal Antônio e foi esperar por ele no portão. Nem beijou minha mãe nem se despediu do meu pai, se mandou. E não deu endereço nem apareceu por uns dois meses. - Nossa... - murmurou Bia. Depois tapou a boca, como se seu espanto fosse um arroto mal-educado, de que ela devesse se sentir culpada. 131 Maria Fernanda nem reparou nisso: - Olha, se foram os piores dois meses da vida de meus pais, acho que foram também os piores dois meses da minha vida. Minha mãe só chorava. Entrava no quarto da Alzira e chorava. Meu pai deu até de faltar no serviço. Contratou um detetive, vê se pode, parece história de filme, contratou um cara, ficava pegando relatório do cara, pra saber por onde Alzira andava, como era o tal Antônio, como ele podia atrapalhar a vida do Antônio, até isso eu ouvi num telefonema que ele dava do quarto, a porta estava aberta, eu ouvi, meu pai queria até ver se achava alguma patifaria na vida do Antônio, ver se ele ia preso, pra tirar, como ele dizia, tirar a filha "das garras daquele animal", juro que ouvi uma coisa assim. - O Antônio era bandido, Fernanda? - perguntou Penélope, com aquela sua vozinha de menina assustada. - Que nada! - falou Maria Fernanda. - Isso só na cabeça do meu pai. Era estudante de Sociologia, que nem minha irmã. Um cara legal, depois eu conheci ele, um cara normal, falava bem, era professor. Mas era negro. Bem negro. Era isso que o meu pai não perdoava. Ser negro. E ter levado a filha dele, era o que meu pai dizia, ter "roubado a filha dele", como se eu também não fosse filha! - O rosto de Fernanda se cobriu de uma sombra, uma repentina sombra de dor, os lábios se contraíram numa careta: - Se era mesmo como eles diziam, de que agora "não tinham mais filha". Pensam que eles me trataram melhor depois que ela foi embora? Pensam? NÃO! Ficou pior. A Alzira só não estava em casa em carne e osso, mas EU! Eu estava lá e era como se não estivesse. Como se tivesse sumido. Virado fantasma. Ninguém falava comigo. 132 Ninguém queria saber como eu estava na escola, pra onde eu ia, o que eu queria. A empregada é que fazia a comida e me servia. Minha mãe lá conversava comigo? Se não chorava, via tevê. A cabeça longe, diante da tevê. Meu pai, naquele um milhão de telefonemas dele, pros amigos, pras amigas da Alzira, pro tal detetive... No começo, ainda ficava em casa. Depois, se ele já era de trabalhar muito, no fim dos dois meses deu de fazer hora extra em cima de hora extra, tudo pra não ficar em casa. Pra não sofrer, em casa. Maria Fernanda ergueu o pulso. Chegou a tocar no relógio, mas desistiu de tirar a pulseira. Só deixou o braço erguido enquanto falava. - Não sei se isso foi porque eu estava tão sozinha. Não sei se foi. Ou foi porque eu achei que, fazendo isso, fazia a Alzira voltar... Ou se era pra chamar a atenção deles, pra dizer "Ei, eu estou aqui... vocês têm outra filha... não querem perder esta outra filha também, não é mesmo?". Não sei o que me passou pela cabeça naquela hora. Nem lembro, assim, como eu fiz aquilo. O passo a passo. Como estava a noite quando eu entrei no banheiro da suíte de meus pais. Como procurei a gilete na gaveta. Eu sabia, meu pai gosta de aparelho antigo, nada de descartável, então é gilete bem afiada mesmo. Como eu me olhei no espelho, olhei sem ver nada, só olhei, muito tempo. Sabia que minha mãe estava diante da tevê e tanto tempo fiquei ali, ela não deu falta de mim? Não deu. Depois, peguei a gilete e comecei a passar assim, de lado a outro, pelo pulso. Bem de levinho. Só pra sentir se a lámina era mesmo tão afiada. Uma vez, duas, pra lá e pra cá... devagarinho. Terrível. Terrível ver como a Maria Fernanda imitou o gesto, olhando fixamente para o pulso, onde a 133 pulseira do relógio escondia a cicatriz, e com a outra mão imitava o gesto firme de passar uma imaginária lâmina cortante por sobre a pele fininha do pulso... terrível, seus olhos grudados na sua tarefa, a voz estranhamente calma. - Foi um instante só. Foi apertar um pouquinho mais. Estava tão fora de mim que nem percebi se doeu. Quando vi, saiu sangue. Muito sangue, sangue escuro. Começou a correr pela pia, a pingar em gotas bem grossas. Eu fui olhando. Não queria morrer, mas fiquei olhando. Pensando se demorava muito, até que num instante eu lembrei, "demora muito... pra quê?" e aí... Aí teve uma coisa que gritou forte dentro de mim. Alguma coisa assim: "O que você está fazendo?". Nem sei se foi dentro de mim que essa voz falou. Ou se foi depois quando meu pai entrou no banheiro. Ou se eu gritei, não lembro se eu gritei. Só sei que vi o meu pai, a cara apavorada dele, "o que você está fazendo?", e aí foi tudo tão. Tão corrido. Minha mãe amarrando um lenço no meu braço, meu pai telefonando pro médico, a gente descendo depressa o elevador, pegando um táxi, era mais rápido ir de táxi, ainda lembro dele falar isso pra minha mãe, ainda pensei: "Mais rápido, pra quê? Por que eles estão preocupados desse jeito se eles não gostam de mim?", pensei. E aí, hospital. E aí, aí eu nem sei mais o que falo. - Você ia se matar, Maria Fernanda? - não agüentei. Não agüentei ficar quieto e parado, como as meninas estavam fazendo. - Você queria mesmo morrer? - Picapau, eu. Eu ia estar mentindo se te dissesse que pensei, assim. Em morrer mesmo, em ficar num caixão, acabar. Eu só não agüentava mais! Queria que acontecesse alguma coisa pra mudar aquilo. Era uma 134 dor tão funda, uma tristeza tão funda... só queria acabar com aquela dor. Queria ver minha irmã. Queria que meus pais gostassem de mim... foi nisso que eu pensei. E quando entrei naquele banheiro e comecei a fazer a coisa, eu. Não pensei mais. Só fui fazendo. Como se tivesse alguma outra pessoa dentro de mim, que me ensinava o que devia fazer e eu tinha obrigação de seguir as ordens que ela me dava. - Que triste - falou Bia. - Mas o que você fez? O que você fez? - perguntou Debi, tentando talvez achar palavras mais fáceis - E a Alzira? Ela ficou sabendo, ela voltou pra casa, a sua irmã? - Ela foi me visitar no hospital, lógico. A primeira pessoa que eu vi, de visita, foi ela. E a Alzira achou tudo tão absurdo, deu a maior bronca nos meus pais, conversou com os médicos, conversou muito comigo. Me deu toda a atenção que eles não deram durante aqueles dois meses em que a Alzira ficou fora de casa. Trouxe o Antônio pra eu conhecer. E aí... Bom, a gente foi fazer terapia de família. E meu pai veio pra cá, a gente voltou pra São Paulo. E fui eu que escolhi o Pitágoras! A primeira vez que eu que escolhi a escola. O rosto de Maria Fernanda ficou radiante quando falou isso. Um brilho, de dentro pra fora, parece que iluminou o rosto comum, quase-apático, daquela menina de cabelos castanhos. Ela olhava para as meninas, feliz. E, no outro instante, parece que se lembrou de mais uma coisa, uma coisa muito triste, e sua expressão de novo se encolheu. - Quando eu fiquei sabendo do Clube. Quando a Bia me contou. Gente, fiquei tão feliz! Amigas. Será que eu finalmente ia ter amigas, de verdade? E vim aqui... 135 e ouvi as histórias de vocês, e vocês me trataram tão bem, não era pela minha irmã que era legal e vocês queriam puxar o saco dela, era por mim mesma. Vocês queriam que eu ficasse aqui. Que contasse coisas, e vocês me ouviam. Vocês não podem imaginar como fiquei contente. Mas... eu nunca tinha dado beijo em ninguém! Se nunca consegui sequer ter um amigo, como é que podia ter ficado com alguém numa festa? Dado beijo em rapaz? Então menti. Menti, sim. Meu primeiro beijo, de eu ser menininha e do menino que está na caverna escura e pensa estar beijando uma menina mais velha, foi tirado de um filme, OS GOONIES. O beijo que eu contei, do rapaz que beijava primeiro o cantinho da boca, devagarinho, e depois colocava a língua... Bem, era um personagem, o Desmond, de um livro que eu li, um livro do Pedro Bandeira, A HORA DA VERDADE. Os outros, também. Vieram de livro, de filme. Do que eu ouvia de vocês e inventava coisas parecidas. É isso, gente. Nunca dei beijo na vida em rapaz nenhum. Eu não devia estar no Clube. Eu menti. Pfuuu! "Como se isso tivesse a menor importância depois de uma história como aquela!", eu pensei. Mas tinha importância. Pra Maria Fernanda. Não que as meninas se importassem, eu achei, com o fato dela ser "zerinho". Ninguém seria tão safada de botar a coitada pra fora do grupo depois do que ela tinha falado... mas eram as regras do grupo, não eram? Ninguém estava ali por piedade. Isso, sim, seria outra filhadaputice que podia se fazer com a menina. E também não foi por piedade que eu falei aquilo. Foi porque queria que ela ficasse no Clube. Ela merecia ficar, depois de ter tamanha coragem de contar pra gen 136 te a sua história. Foi isso, sim, que me fez levantar da cadeira. Elas todas de olho no Picapau aqui. - Maria Fernanda? - chamei. Ela ergueu os olhos escuros pra mim. - Acho melhor você vir até aqui, porque pra andar até aí o meu pé tá doendo. Vem cá? Eu pedi, delicadamente. Ela olhou de um lado a outro, "mas pra quê? Picapau, pra quê?", olhou como se pedisse a opinião das colegas e uma falou "Vai lá, Fefê!", outra balançava a cabeça, sorrindo, a Sarah soltou seu assobio de dedos na boca, mas não tão alto pra assombrar o cachorro, a Rita pegou no braço da Maria Fernanda pra que ela se levantasse melhor do chão e... Ela veio. Bem devagar e tímida, ela se aproximou de mim, ali no meio da roda das garotas. Os olhos indo do chão pra mim, ficou bem perto, assim exata da minha altura. - Você quer? - perguntei, bem baixinho, no ouvido da Maria Fernanda, pra que só ela escutasse. - Quero - ela respondeu, os olhos nos meus olhos, enquanto seu rosto se inclinava um pouquinho e eu aproximava devagar meus lábios dos dela e, vendo que os olhos dela estavam fechados, eu também fechei os meus. O beijo. Morno, lábios macios, minha língua devagar procurou pela língua dela, o contato tímido das línguas, depois as bocas ficaram com mais fome, um beijo longo, o corpo dela tremeu levemente nos meus braços, eu abri os olhos, afastei os lábios, ela abriu os olhos também... - FER-NANDA! FER-NANDA! FER-NANDA! - as meninas gritaram. 137 Maria Fernanda tentou olhar para as colegas, eu não deixei. No nosso círculo, ali no meio do quarto, abracei forte os seus ombros, falei só para ela, baixinho: - Foi um dos melhores beijos da minha vida, Fernanda. - Pra mim foi o primeiro. - O primeiro de um monte, Fernanda. Com quem você gostar, pela vida afora, com quem você quiser, porque você tem coragem pra burro, menina. E merece ser feliz. Aí eu olhei nos olhos dela e ela ameaçava chorar, como é que se consola uma garota que ameaça chorar? Só conheço um jeito: tasquei outro beijo nela, desta vez mais assanhado, mais direto na história de língua com língua, ela correspondeu depressa e a gente ouviu a risadinha da Penélope: - Picapau, basta um pra entrar pro Clube, Picapau! Não exagera, Picapau... Alguém bateu palmas, veio o assobio forte da Sarah, e desta vez o cachorro latiu, então eu encostei minha testa na testa dela, dei um aperto forte nos seus braços e a Fernanda voltou para o seu lugar, o mesmo brilho radiante que vinha de dentro pra fora agora iluminava ela inteira, digna membra do Clube, ela tinha esse direito. O cachorro latiu e de novo a gente ouviu o taptaptap dos passos dele descendo escada e de novo ele ficou no andar de baixo, fungando na porta, ora latindo, ora cheirando. - O seu irmão? - perguntou e ao mesmo tempo afirmou a Rita, apontando Debi com o queixo. - Deve ser. 138 A grandona foi até a varanda, esticou-se toda de novo, deu o veredito: - A luz da garagem continua acesa. E agora... esperem... - ela se esticou mais uma vez - ... tem uns caras lá. Os garotos devem ter voltado. - Nossa. E quase de manhã - falou Maria Fernanda, olhando o relógio, que agora não me apavorava mais. Era só um objeto de ver horas. - Quase cinco - falou Angélica, também conferindo a hora. - É por isso que eu estou assim com sono... - Eu também - confirmou Bia, inesperadamente abrindo um bocejo. - Tá na hora da gente tentar dormir - falou Penélope, dando uma espreguiçada tão bonitinha como se já estivesse de camisola ou baby-doll. - É um convite? - não consegui segurar. - Não, Picapau sem-vergonha. Não é um convite - Debi saiu da varanda e voltou pro quarto. - Acho que é o fim da sessão do Clube - falou Sarah, levantando-se e dando a mão pra ajudar a Rita a se levantar também. - Mas, já? - reclamei. - Então deixa eu ficar aqui, Debi, eu mereço dormir aqui também... - Não. Você veio sem convite e não tem colchão pra você. Está na hora do passarinho sair voando - falou a malvada. - Ainda tem o juramento - lembrou Angélica. - Isso aí, falou Maria Fernanda, levantando-se também. - Juramento? - perguntei. - Isso mesmo, Picapau. Levanta da cadeira e dá a mão pra gente - explicou Debi. 139 Ficamos todos em pé, bem perto um das outras. Demos as mãos. Eu fiquei entre a Maria Fernanda e a Bia. Mãozinhas quentes e macias. Debi começou falando: - E aqui termina outra sessão do Clube do Beijo. "Quem já deu um beijo num rapaz tem de contar como foi. Tem de ter sinceridade e coragem pra contar. E certeza de que o que a gente falou aqui morre aqui" - ela suspirou fundo. Sorria para as amigas: - Eu aprendi que é importante saber o que falam da gente. Até pra ver se é possível mudar, vou rever o meu jeito agressivo, vi que ser feminina pode ser uma coisa boa. Vou tentar! Não dou certeza, mas vou tentar. Bia apertou mais a mão da colega do lado. Ergueu sua mão, sempre presa na mão da Sarah e falou: - Sarah, Sarah, Sarah! Foi legal saber que eu posso não concorrrdar (ela fez questão de puxar o "erre" bem acaipirado no "concordar" e riu), não concorrrdar com você e continuar sua amiga. É ou não é? Sarah falou em cima da fala da outra: - Amigona! - E deu um abraço tão forte na pequena Bia, que deu até pra se ouvir o osso estralando. E riram. Depois Sarah completou: - Achei tão legal ouvir uma verdadeira história de amor, que agüenta distância - apontou Angélica com os olhos - e continua. Isso é lindo - sorriu, maliciosa, antes de completar - para as outras, já para mim... Elas riram e as mãos se apertaram mais, senti a vibração do toque dos dedos de Fernanda nos meus. Ela falou, olhando pra mim: - Obrigada, Picapau. Agora eu sei como é um beijo de verdade. Não só nos filmes ou nos livros. 140 Angélica: - Eu só posso agradecer demais a vocês. Por ter podido contar o que nunca contei pra ninguém. E vocês, vocês compreenderam. Vocês são mesmo minhas amigas - e virou pra mim - e amigo. Penélope fez um dengo, as covinhas do rosto bem salientes, antes de falar: - Sabe, gente? Acho que não é bom ficar jogando charme o tempo todo. Vou tentar ser mais madura, mais séria, mais intelec... - deu uma tropeçada, mas terminou: - intelectual. Juro, vou ser, sim. Me engana que eu gosto! O charminho dela falar aquilo já desmentia a intenção. Faltava Rita: - Confio tanto em vocês! Foi legal. É bom a gente nunca se esquecer de si mesma. De se cuidar. De se dar valor. Valeu! Só faltava eu. Respirei fundo, aproveitando o cheiro bom de estar assim perto da mulherada. Soltei: - Eu aprendi o que já sabia: mulher é bom. Elas riram e nós soltamos as mãos. Burburinho de gente se espreguiçando, passos, a porta do quarto foi aberta, o cachorro desgramado invadiu o recinto procurando por mim, o peste, me cheirando todo, a Rita se virou pra Debi: - E o que a gente faz com o Picapau? - Faz o que tem de fazer: devolve ele pros amigos. -Jogando pela varanda? - brincou Sarah. - De cabeça pra baixo? - Espera aí, espera aí... - eu reclamei. - Depois de tudo isso, ainda não têm confiança em mim? Sarah ficou séria. Botou a mão no meu topete: - Estou brincando, cara. Confio à beça em você, sabia? Amigo do peito. Pra sempre. - E me deu um abraço. Um abraço apertado, quase me cortou o fôlego. 141 Foi a despedida. Cada uma delas, em sua vez, me alisou o topete e me deu um abraço. Debi, de um jeito forte que quase me esmagou os ombros; Penélope deixou minha bochecha umedecida pelo seu beijo estalado; Angélica foi macia, me abraçou deixando as mãos apoiadas no meu peito; Bia me deu um beijinho de longe, mais beijando o ar do que o meu rosto; Rita abriu bem os braços, sorriu, depois fechou os braços com força ao redor do meu pescoço; e a Maria Fernanda... bom, na Fernanda eu aproveitei pra dar mais um beijo na boca, só que de levinho desta vez. - Está na hora, Picapau - falou Débora. *** - EDGARD! A GENTE TÁ DEVOLVENDO O PICAPAU, EDGARD! - gritou Debi, me empurrando pra fora da casa e fechando a porta. Eu fiquei lá, o pé doendo, a cara de bom ator de quem está muito puto com a humanidade masculina, só esperando que os vultos difusos ("Vultos difusos!", essa é boa também, hem? Hem.? Parece trecho de livro de mistério, ainda vou escrever um livro de suspense com este título: VULTOS DIFUSOS. Mas deixa pra lá.) se aproximassem de mim, ali parado na porta da casa. Ainda bem que o cachorro ficou com elas, dentro da casa, senão a fera me babava no pé machucado e isso, sim, seria azar. - É o Picapau? - perguntou um dos caras, ainda no escuro. - Sou eu, sim - gritei de volta. - Cadê o Edgard? Deu pra reparar no tamanho do cara se aproximando depressa pelo quintal. 142 - Picapau! - falou o Edgard, perto de mim, me tocando um braço, o outro. - Você tá vivo, Picapau? - Se eu estou, não foi graças a vocês. - Reconheci o China, o Bacalhau e o Gabiru, ali junto do Edgard. - Bando de canalhas safados, vocês me abandonaram... isso não se faz nem com cachorro... Cadê os outros caras? - O Tiago queria que o Edgard devolvesse o dinheiro, já que ele num tinha visto nada... - falou o China. - Aí o Edgard saiu correndo porque não queria devolver a grana. - Claro que não! Foi culpa dele. Ele é que me deu o tapa, fez barulho. Que se dane, devolver dinheiro! - Aí ele correu - continuou o China. - E sobrou pra gente, da classe dele. Os caras queriam pegar a gente de pau. - Só que a gente conhece melhor o bairro - riu o Gabiru. Como é feio, o Gabiru! Merece o apelido. Ria fungado, ãhãhãh!, e ameaçou me dar um tapa nas costas, o cretino. - A gente fugiu, meu! - Mas minha grana o Edgard teve de devolver - falou o Bacalhau. - Então devolve a minha também - falei pra ele. - Tô mal, cara! Ferrei o pé quando pulei da varanda. Vou ter de pegar um táxi. O Edgard ia reclamar, mas eu levantei a calça e mostrei o inchado da canela, ele ficou com dó e me passou as duas notas de dez. Oito pares de olhos em cima aqui do Picapau. Silêncio. Podia ler, nos olhos dos caras, o que eles queriam saber. - E... aí? - perguntou o China. 143 - Aí o quê? - me fiz de besta. - O que aconteceu lá dentro? - a voz excitada do Gabiru, mal segurando a vontade de soltar outra risada anasalada. - Aconteceu, aconteceu o que tinha de acontecer - fiz minha melhor cara de torturador de amigos. - Elas mostraram? - perguntou Edgard, completamente em dúvida, já que aquele papo era mentira dele. - Sabem, caras? - olhei de um pra outro, pra outro, outro e outro. E sorri. E falei, com meu mais sincero sorriso: - Vocês nem imaginam o que eu aprendi sobre as mulheres nesta noite. Era verdade. A mais absoluta verdade. FIM 144