CRESCER É PERIGOSO Marcia Kupstas Capa e ilustrações de José Carlos Martini CRESCER É PERIGOSO BRUNO SCHREINER Coleção Veredas Coordenação editorial: Maristela Petrili de Almeida Leite Revisão de texto: Regina Gimenez Capa e ilustrações: José Carlos Martinez Composição: Linoart Impressão e Acabamento: Gráfica Editora Hamburg Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional (Cámara Brasileira do Livro, SP, Brasil) índices paia catálogo sistemático: 1. Literatura infamo juvenil 028.5 2. Literatura juvenil 028.5 ISBN 85-16-00080-X Todos os direitos reservados EDITORA MODERNA LTDA. Ros Afonso Brás, 431 822-5099 CEP 04511-901 - Sto Posto - SP - Brasil 1995 Impresso no Brasil EsL Kupstas, Muda. K98c Crescer é perigoso / Marcia Kupstas. - - São Paulo Ed. Moderna, 1986. (Coleção veredas) 1. Literatura infamo juvenil I. Título. 85-2106 CDD-028.5 RISLIO1ECA POSL.ZCA PMtN4A MIO _ Para Clarice Missae Murakami Kelbert e Ubaldo Luiz de Oliveira 20 de maio Eu não sou um cretino. Não sou, não sou. E isto aqui não vai ser um diário, poxa vida. Eu só não agüento mais ficar quieto. Não agüento mais ficar achando que sou o único esquisito, maluco e sozinho da face da Terra. Mas eu estou fazendo uma coisa idiota dessas. Como é que a gente começa? "Querido Diário"? Igualzinho aquelas meninas chatas, a Cíntia ou a Alice, que ficam escondendo o caderno, mas no fundo estão loucas para os garotos acharem uma página "esquecida". Aí o Adal ou o Beto olham e caem na risada, todo mundo fica sabendo: "A Cleide tá a fim do Gilberto" ou "Você sabia que a Débora é apaixonada pelo Teacher?" Agora, se estou escrevendo, quero colocar o que eu acho, o que eu sou. Escrever tudo mesmo. Na aula de Literatura a professora deu uns poemas do Drummond, pra gente estudar. Tem umas coisas dele que eu achei bobagem, a tal da pedra no meio do caminho, por exemplo, que é que tem a ver? Mas uma poesia dele achei legal. Aquela em que ele falava que, quando nasceu, apareceu um anjo e mandou ele ser gauche na vida. Gauche. O que é ser gauche? Me dá a idéia de ser torto, feio, esquisito. Igual a cara dele, no fim do livro. Será que o Drummond, quando tinha quinze anos que nem eu, era tão sozinho e tão feio? Assim, um cara de que menina nenhuma gosta. Que só dá azar. Que não consegue falar com as meninas sem ficar vermelho, ou pior, isso é muito pior: ficar falando sem parar e, daqui a pouco, acabar sozinho. Sou baixinho, 1,ï( . Um o acho de cahe1n tico_ não tem &nzI nem moda que mude a cale. Mas o pior tino ser neto e ,,ápQ S ser sansei. Não sei, mas acho que não tem muna no mundo que goste de japonês. E por que isso? Por quê? Tem cara muito mais feio que eu e vive rodeado de meninas. O Pepenella, por exemplo. É mais baixo que eu, mais espinhento ainda. Mas as meninas vivem procurando por ele, ele é engraçado, ele é simpático. Não tem fim-de-semana que o Pepenella não sai com um bando de garotas. E eu, sobrando. Ficar vendo tevê ou indo com a família pro sítio. Merda. É a primeira vez que eu escrevo um palavrão, assim, escrevendo mesmo. MERDA. PUTA QUE PARIU. E se a minha mãe pegar este caderno? Não vai pegar, Gustavo, deixa de ser bobo, eu fico falando uma coisa e depois mudo de idéia. Agora eu escrevi, e pronto: Merda. Não morri, nem levei tapa na boca. E se tiver vontade, escrevo mais e mais palavrões, porque estou cheio. Todo mundo fala que eu sou bom aluno, que eu sou inteligente, quinze anos e no segundo colegial, que eu passo fácil em qualquer vestibular do mundo. Eu só não sei se quero passar num vestibular. Não sei se quero fazer Engenharia; meu pai fala que é legal, é importante. Computação, um curso do futuro. Eu morro de medo do futuro - merda. Esse medo de fazer uma coisa, depois voltar atrás e ir pra frente, essa esquisitice minha. É uma bobagem, e até parece que eu não penso bobagem. Eu penso. E como penso. Acho que não tem ninguém que pense tanta bobagem que nem eu. Até na aula, a aula da Silmara, de Desenho. Ela é bonita e é solteira, e eu fico imaginando tanta bobagem que sem querer acabo ficando vermelho, se ela me olha na cara e me pega no momento em que eu estou pensando besteira com ela. E a aula de Educação Física das meninas? Quando elas passam do vestiário para a quadra, aquele corredorzinho só, o a gente fica amontoado na porta, gritando e assobiando... o elas, passando reto, uma ou outra ainda se vira pra gente: "Deixa de ser grosso", e aí sim, a gente berra e grita mais ainda. Eu não sou de gritar, não. Eu aproveito pra ficar olhando as pernas das meninas, as pernas da Débora, da Márcia. Da Cláudia não, a Cláudia sempre faz ginástica com training, mesmo no verão. Será que as meninas também pensam nessas coisas? Em sexo. Em sacanagem. No banheiro o Tadeu falou que a Clea não- é virgem, que ela já saiu com um monte de caras, mas só sai com cara de Faculdade, maior de idade. Até o Carlão ela esnobou - e olha que o pai do Carlão empresta sempre o carro pra ele. Será mesmo que a Clea? Duvido. Ela tem a minha idade. Não ia ter coragem... O meu irmão veio dormir e eu vou parar por ai. Aquele pivete idiota, eu não quero nunca que ele veja este caderno. 25 de maio Ontem eu passei um apuro danado na aula de História. Quem dá aula é o Gregório, e ele é durão. Tinha marcado um questionário, e eu acabei não fazendo. Levei um baita de um zero, e depois ele ainda ficava me judiando: - Fala, Gustavo. Por que você não fez o questionário? Qual é a dificuldade em História? - e falava alto, todo mundo ouvindo. Eu fui ficando assim vermelho, foi-me dando uma gagueira, e todo mundo assobiando e fazendo barulho e eu sei que meu olho foi ficando vermelho e, olha, graças a Deus bateu o sinal, porque eu ia estourar. Mas depois acabou sendo legal. O Gregório me chamou, eu e mais quatro, e abriu o jogo: - Vou dar uma oportunidade pra vocês. Marquei um 6 7 trabalho em equipe, valendo nota. E vou colocar vocês em equipes mais fortes. Aproveitem esta chance, hem? E eu caí na equipe da Claudinha. Valeu, puxa vida, se valeu a pena, a Claudinha é morena, tem cabelo comprido. Tem um rosto lindo, quando ela dá risada faz uma covinha na bochecha. E nunca me esnobou. Nunca mesmo. E nem é japonesa. E brasileira, é meio italiana, sei lá. É linda, linda. 29 de maio Acho que eu preciso me apaixonar de novo. E desta vez pra dar certo. Já encheu ser gauche na vida. Já encheu ficar passando vergonha. E eu preciso contar pra você - você, quem? "Querido Diário"? -, deixa pra lá. De qualquer jeito eu vou contar e, depois, é desabafo. Pra ver se eu aprendo a não fazer burrada de novo. Foi no ano passado, primeiro colegial. A Anita era aluna nova, agora ela saiu da escola, e ela foi das primeiras meninas a dar beijinho em colega. E nem era beijinho desses discretos. Ela era toda exagerada, gritava: "Fulaaaaaaano", se pendurava no pescoço, onde ela encontrava com colega ela fazia isso: cinema, praia, lanchonete. Eu já achava legal esse jeitão dela, mas ficava difícil eu conseguir chegar perto, porque eu não era assim tão amigão da Anita. Mas teve uma festa, era aniversário da Cíntia, e a Cíntia também é japonesa, só que a família dela é mais solta que a minha. O irmão mais velho da Cíntia até casou com gaijin, quer dizer, é tudo mais misturado, não tem só japonês, só nihonjin. A Cíntia é grande amiga da Fernanda, e a Fernanda era grande amiga da Anita. E eu lá, na festa, quando eu vejo a Anita chegando. Sei lá o que deu nela, gritou Gustaaaaaaavo e se grudou no meu pescoço. A Anita nunca tinha feito isso comigo, eu fiquei feito bobo, na minha família todo mundo é sério, a gente não é de dar beijo uns nos outros, nem em prima - a gente só aperta a mão. E de repente aquela italiana maluca se pendura em meu pescoço, encosta a boca grossa de batom na minha cara, e eu, sabe quando passa uma corrente elétrica, tão forte, tão forte que eu acabei pulando pra trás, nem deu pra sentir direito, aproveitar o beijo da Anita, aquele negócio assim de eu ficar morrendo de medo de que ela pensasse que eu não gostei. E a festa foi um negócio incrível. A Anita é grandona, de salto ela ficava mais alta que eu, mas aceitou dançar comigo, sabe, até aceitou. Eu mal encostava no corpo dela, a i j respiração dela ficava quente na minha nuca... o cheiro da Anita, puxa, eu nunca vou esquecer disso, mas vinha um cheiro que não era só perfume, não era não. Era assim uma coisa de hálito, da pele. Me falaram que mulher tem cheiro, mas eu pensava que era gozação, eu nunca pensei que a gente pudesse sentir o cheiro diferente, de mulher. De mulher. Parece que todo mundo tinha desaparecido, só existia a Anita, a única mulher na festa. Mas que raiva. Raiva mesmo. Primeiro, porque no dia seguinte eu já fiz uma besteira, que foi me meter na conversa do Adal e do Beto. Os dois estavam falando das meninas da classe, aqueles sempre estão conversando de mulher, e vivem falando de tudo quanto é mulher, parece mesmo que eles já saíram com todo mundo. - Pra mim, a gatinha mais bonita é a Cláudia. - Que nada, é morena demais. Eu gosto de loira, assim a Vera, sabe? - A Vera? Tão aguada. E eu me meti na conversa. - A Anita, a Anita é a menina mais bonita. Um olhou pro outro, os dois caíram na risada. - A Anita? Aquela gorda? - e eles riram, riram pra valer. Olha, não é que eu ia ficar impressionado com dois idiotas como aqueles. Não ia não. Mas eu sei que na classe bem que eu achei que a Anita era meio cheia. Mas também 8 9 não era isso, poxa. Eu lembrava dela, do cheiro dela, de dançar com ela. A tijolada mesmo veio depois, um tempo depois. Agora não dá pra contar. Pedro veio dormir. Tchau. 30 de maio É domingo e a gente está no sítio. Tá chovendo pra burro, e meu pai foi com Pedro até a cidade comprar carne pra churrasco. Minha mãe e minha avó aproveitaram uma estiada e foram ver a horta. A casa é só minha. Tinha uma cerveja aberta e eu peguei um copo. Foi bom ter trazido o caderno. Fiquei pensando muito sobre a Anita. Deixa contar o resto. No ano passado eu sentava perto da Fernanda, e era uma aula vaga, então ela e uma outra menina faziam fofoca. Eu ouvia um pouco, um pouco eu estudava Português. Aí a Anita chegou perto delas, e aí sim, eu fiquei todo duro, louco pra entrar no papo. Anita fez um "Oi" pra mim, sentou com as outras duas. Falaram lá umas coisas, depois o assunto foi a festa de aniversário da Cincia. -- Que chatice! Festa que só dava japoronga. Eu ouvi a Fernanda dizer isso, a Anita deu risadá. Pior, foi muito pior, porque ela fez um "Chiu" pras amigas, uma olhadinha pra trás, pra mim. Mas eu ouvi. Ouvi e fingi que não cava ouvindo, enterrei o nariz no caderno, na folha em branco do caderno, e fingi que estava lendo, assim um tumtum nas minhas orelhas, uma raiva. Japoronga, japonês mocoronga. Festa que só dava japonês mocoronga. Quem aquela italianinha gorda pensava que era, hem? Quem ela pensava que era, assim uma graaaande coisa? Japonês, merda, por que sempre continuam falando que eu sou japonês? Minha avó era japonesa, e só a minha avó paterna, que de mãe eu nem sei direito. Eu não falo japonês, eu só sei umas palavras, aquelas palavras que todo mundo 10 que é descendente sabe, pra xingar, pra falar da família: Obâa-chan, que é vovozinha; XTÜ-chan, que sou eu, filho mais velho; Bôya, que é como vovó mama o Pedro; Okâa-chan, que é mamãe; Otôo-chan, meu pai. Ou os xingamentos: joorô-no-ko, que é FDP; kurombo, que é prelo, quando a gente quer saber se alguém é preto. E umas comidas, mas a gente só faz de vez em quando, come mesmo é feijão, é dobradinha. Eu nem sei direito onde fica o Japão. Mesmo na classe, poxa vida! O Samir é descendente de libanês, nem turco é, e só falam turco de vez em quando, de brincadeira; a Vera tem um sobrenome de quinze letras, é Zwenjanzertczic, uma porcaria assim, e não ficam chamando ela de alemã, de polaca. Não tá na cara deles ser alemão ou ser turco. Mas pra mim, não. Tá na cara, eu vou ser japonês a vida inteirá: saionara. Risadinha amarela. Olho-puxado. Samurai. Japoronga. Poxa, eu não sou nada disso! Eu só sei falar português. Eu moro no Brasil desde que eu nasci, até o meu nome é nome de brasileiro: Gustavo. Estudo num colégio em que todo mundo fala português, mas, quando querem ser chatos comigo, é muito fácil: pronto, virei japoronga. Olha, japoronga é a mãe delas, tá? Eu quero que elas vão à merda, tá? 30 de maio Agora é de noite, a gente já voltou pra São Paulo. Nossa, eu fiquei com raiva, quando escrevi isto, no sítio. É que acabei tomando mais um copo de cerveja. Meu pai ficou bravo comigo, achou que eu cava bébado, fez até eu ir dormir depois do almoço. Vi que ele falou um monte de coisa com a minha avó, em japonês. Eles sempre falam em japonês quando é pra falar mal de mim. Briguei com o Pedro, no carro. Ele queria deixar a janela aberta e eu pedi pra fechar. Ele ficou fazendo hora. "Fecha a janela, poxa!" Bem, não foi bem "poxa" que eu falei. Meu pai virou pra trás, "GUSTAVO", ele gritou. Eu abaixei a cabeça, o Pedro na maior alegria, e eu meti um beliscão disfarçado nele. Ele berrou, se encostou todo na vovó, aí o pai brecou o carro, "Urussái! Urussái! Chega de kenká!" - quando ele tá bravo sempre xinga e manda a gente calar a boca em japonês. Minha Bâa-chan agradando o Pedro, e eu latejando uma raiva, sabe, uma baita raiva, mas não dava pra responder pra ele, ele ainda falou mais umas coisas em japonês com vovó, e ela me olhou daquele jeito de bronca pra mim. Abaixei a cara, fiquei quieto-quieto o resto da viagem. Sei que foi um inferno. Meu pai já foi dormir, minha avó também. Pedro e minha mãe estão terminando uma partida de videogame, eu vim aqui pro quarto. Puta merda, agora escrevo palavrão e é isso aí. Puta merda, que dia., 3 de junho A Cláudia está muito legal comigo. É verdade que ela é legal com todo mundo, mas o trabalho em equipe está muito melhor do que eu pensava. Ontem fui à casa dela, e a casa dela é um verdadeiro parque. Fiquei aliviado quando a Claudinha sugeriu da gente se encontrar lá, um baita medo que quisessem vir aqui; nem lugar tem, um sobradinho dos mais fuleiros. O pessoal dela deve ser abonado mesmo. Tinha até interfone na porta. Aquele zun bidinho, uma voz aguda: "Quem é?", eu já tinha ido para o outro portão, corri de novo até o interfone, " É um amigo... um amigo da Cláudia, eu vim..." e a voz, de novo: "Como é o seu nome?" "Gustavo." O zumbido parou, mas eu ainda fiquei falando um tempão com o aparelhinho, explicando: "A gente vai fazer um trabalho em equipe, eu acho que cheguei muito cedo, é que hoje", quando vi, a Claudinha no outro portão, me olhando. Papel de bobo, ainda por cima! - Entra, Gustavo. O pessoal daqui a pouco aparece. E ela estava de short. Meu Deus. De short. A Cláudia 12 faz ginástica sempre de training, e de repente me aparece de short, assim saindo do céu. Me deu um beijinho no rosto, não era daquele jeito apaixonado da Anita, mas eu senti a mesma coisa, o mesmo fio elétrico passando pelo corpo, e de novo - sua besta - acabei puxando o rosto. Só que consertei logo, segurei a mão dela, então acho que ela não pensou que eu pudesse não ter gostado. - Eu tenho uma sala de estudos no quintal. Vem pra cá. A gente foi subindo pelo quintal, lá do fundo apareceu um baita dum cachorro, acho que dobermann, latindo que nem o diabo. "Pronto!", eu pensei. "To morto." Mas o bicho foi mesmo é me lamber todo. E a Cláudia tentando segurar o cachorro. "Sai, Nick. Nick, vem pra cá, enquanto o bicho me babava inteiro. Francamente, não sei o que eu tenho com cachorro. Dizem que cachorro treinado aprende a não gostar de preto, a atacar preto. Juro que eu acho que ensinam pro cachorro que ele deve adorar japonês. Tudo quanto é cachorro vai demais com a minha cara. Então era a Cláudia puxando a fera pela coleira, eu protegendo o saco e a cara, e o cachorro entusiasmado em me lamber. A Cláudia gritava: "Pára, Nick", mas não tinha jeito de segurar o bicho. Aí, um segundo, eu e ela nos olhamos, bem nos olhos, e quando eu vi, a Cláudia caiu na gargalhada. Eu sei que parei de me proteger e comecei a rir; rir demais, aquilo devia estar engraçado, engraçado pra diabo. Até meus óculos o cachorro embaçou com lambida. Depois, quando apareceram o Tadeu, o Adal e a Márcia, a Claudinha contou a história do cachorro, no maior bomhumor. Eu, sem querer, ainda soltei essa: "Pior se ele hoje tirou o gosto. Da outra vez, ele me come." Sei lá, uma piadinha besta, mas agradou. O pessoal riu cinco minutos. Foi a primeira vez que davam risada de mim, melhor, de uma coisa que eu tinha falado e tinha agradado tanto. A tarde correu legal, umas coisas que eu falei sobre ó trabalho, o 13 pessoal acabou aprovando. Juro que eu não fiquei nem tão nervoso, como eu sempre fico. Teve um instante que até esqueci o short da Cláudia. 10 de junho É feriado e meu pai convidou tio Kenji e tia Rosa para virem aqui no sítio. Eles moram em Belo Horizcmte e aproveitaram os feriados pra passear. Veio também o Carlos, meu primo. Carlos tem 21 anos, está fazendo Faculdade de Arquitetura e é louco por cinema, arte. Eu sempre achei que ele era maluco, pelo menos era isso que meu pai. falava, minha tia falava. Mas gostei muito dele. Hoje ele foi superleg caínigo. -- Você já assistiu Blade Runner? Não peguei em vídeo ainda. É bom? - falei. E ele falou do filme, que era um barato, assim uma ficção científica com cinema noir (isto eu não conhecia, mas balançava á cabeça como se entendesse tudinho) e falou-falou. A gente tava tomando sol na beira do rio, o Pedro e tio Kenji nadando, o pai tentava pescar lambari numa quebrada do rio, mais em cima. Tia Rosa e mamãe adiantavam o almoço. Olhei bem pra ele. Não era muito mais alto do que eu, mas era bem mais troncudo. E muito mais tranqüilo, sei lá. Tudo me deixava com o coração batendo-batendo, por qualquer coisa eu ficava suando e aí achava que eu tava fedendo, falava cuspindo nos outros. ,O Carlos usava óculos escuros e queimava a barriga, nem aí com o mundo. Acho que mineiro deve ser bem mais sossegado que a gente. - Como é, Gus. Voce já tem namorada? - Eu? - que susto. - Não, não tenho. - Precisa arrumar uma namoradinha, cara. Voce já está com quantos anos? bezesseis? - Vou, fazer. Daqui a tres meses. 15 - Não vai ficar aí um ce-dé-efe. Assim igual o Valtinho. A gente riu. O Valtinho era o modelo da família. Com 16 anos, tinha entrado em quatro faculdades. O nome dele apareceu em um monte de jornal. Com 25, era médico de futuro. Mas era chato-chato-chato. Não falava com ninguém; quando tinha festa ou reunião, ele se trancava no quarto. Obâa-chan é que era genial: quando falavam do Valtinho, ela sempre lembrava que ele fez xixi na cama até os 14 anos. -- E vócê? Tem namorada? Ele tirou os óculos, deu uma espreguiçada. -- Uma incrível gatinha. Mas eles não sabem - fez um gesto com a cabeça, apontando o tio Kenji. - E vão ter uma baita duma surpresa, quando eu apresentar. No sotaque mineiro dele, a frase ficava até mais engraçada. Eu sentei, todo interessado. Carlos também sentou. - Mas ve lá, Gustavo. Se você contar pro tio Bernardo, ele vai direto contar pro meu pai. Bico calado? Jurei que sim. Mistérios familiares, nunca pensei. Comecei até a suar mais, e também vinha assim. uma espécie de orgulho: o Carlos, me tomando por confidente. - A Karen. Ela é brasileira. A gente tá pensando em morar junto no fim do ano. - Morar junto? - É, juntar os trapos - e falou assim, sem mais nem menos. Foi falando dela, mas eu comecei a sentir o nariz ficando suado, nunca tinha pensado em qualquer coisa parecida com o que o Carlos estava falando. A idéia dele morar com uma moça, viver com ela, fazer amor com ela - e não ser casado, além dela ser brasileira -, era uma espécie de pecado que em momento algum teria me passado pela cabeça. Só como aquelas grandes sacanagens noturnas, e mesmo assim numa fantasia. Como ele - meu primo - me falava uma coisa dessas e nem ficava sem jeito? 16 - Mas se você gosta, Carlos, por que você não casa com ela? Você não confia... r--- Confia? --, e ele caiu na risada. - Gustavo, você está pensando que eu; qão caso porque não confio na Karen? Ei, você está pensando o_ quê, que a Karen é assim uma puta, é? Quase morri de tão vermelho, mas que merda, era isso mesmo que eu pensei. _E o Carlos achou graça do meu jeito, ainda bem que não 'se ofendeu. - Você é muito criança, ainda, Gus. Ainda devé ficar nessa, de dividir as meninas: as que dão, de um lado. As que não dão, do outro - e riu. - Depois você vo que não é nada disso - aí ele se espreguiçou, ficou de pé, a fi de entrar no rio. - O que eu não acha legal é ficar dando satisfação pra titio, titia, parentada..- -- já ia mergulhar. - No fim do ano, Gus. Se prepara pra surpresa - e mergulhou. 12 de junho Os outros dias que a gente passou lá foram um sufoco. Primeiro, eu ficava atrás do Carlos, vendo se ele contava mais sobre a namorada, forçando confidência, falando em voz' baixa, querendo perguntar detalhes: como ela era, o que ela fazia. Era loira? Era mulata? Kurombo, preta? Nunca teve.gaijin na nossa família. Depois, eu também ficava muito sem feito com a tia e o tio: eu sabia de uma coisa que era segredo pra eles. E ora eu me sentia muito orgulhoso pela confiança do meu primo, e ora eu ne envergonhava: olhava a tia Rosa, escamando peixe e falando em japonês com Obâachan, toda feliz, e vinha a idéia - "No fim do ano ela vai ficar chorando, triste. Ela vai ligarepra casa toda infeliz; o Carlos é filho único, e eu sei de ptudo mas não posso cóntar nada, eu prometi". E comecei a- fugir dela, do ti. Kenji. Quando eles conversavam comigo, não conseguia tirar da 17 cabeça a idéia de que eu tinha um segredo, um grande segredo. No fim dos feriados, Carlos começou também me evitar, pelo menos eu achei isso. Eu tinha perguntado se a família da Karen ia gostar dele ser japonês, ele falou que não queria nem saber e cortou o papo , oi andar por ali. Tem me convidou. Fiquei muito mal, quem sabe eu tinha ofendido ou o quê? 14' de junho Hoje foi o último dia de reunião em grupo, pra terminar o trabalho de História: Eu fiquei de pesquisar os hábitos da tribo dos Bororó, o tetra era sobre tribos indígenas no Brasil. E consegui fazer um resumo legal. Eu li, a Claudinha falou OK, mas ela estava com a cabeça longe, meio brava. Só estávamos eu, Márcia, Cláudia e o Tadeu. O Adal alada não tinha chegado, e ela mala zangada ainda. Desabafou: - Eu já estou cheia com o Adal. Ele fala muito, mas na hora de fazer o trabalho nunca faz nada. Quanto você aposta que não trouxe coisa alguma dos Tupinambá? Dito e feito. Adal chegou só às quatro horas,' maior cara de folgado, cabelo até úmido de ter ido à piscina. A Cláudia ficou fula da vida, passou uma dura nele: - Assim não dá, Adal. Eu falei pro Gregório que eu topava ajudar na equipe, mas juro que preferia ficar sozinha. É um inferno trabalhar com você. Por que você não faz que nem o Gustavo, pox?. Ele arrumou tudo, até bateu à máquina. Eu fiquei contente de ver a briga deles. A Márcia abaixando a cara, mas queria dár risada. O Tadeu é gozadór, mas acho que ficou sem graça de depender da Cláudia, acabou ajudando. E a briga dos dois esquentou. Eles gritando, e a gente quieto. No-fundo-no-fundo, eu tava gostando pra diabo de ver o Adal levar uma dura, ainda mais porque o Adal é bonitão, tipo do cara que as meninas paqueram. E saber que a Claudinha não tinha caído nessa, cie ficar bajulando a vagabundice dele só porque ele é bonito, isto me deixava assim fascinado por ela. E com uma enorme alegria de ver que ele tinha se ferrado. - Olha, quer saber de uma coisa, Cláudia? Você é uma chata, tá? Uma cu-de-ferro muito das babacas, tú? Pode tirar o meu nome do trabalho! E se mandou. Se mandou mesmo, foi andando depressa pelo jardim, o cachorro da Cláudia correndo e latindo atrás dele, parece até que de propósito, botando ele- pra fora. - Que sacana... - a Claud tão nervosa, até com dor de cabeça ela ficou. Então nós dividimos as tarefas e eu me ofereci pra batér a parte dela à máquina, porque o trabalho é pra depois de amanhã. 17 de junho Foi um sucesso. Maravilha, puxa vida, é a primeira vez que 'eu faço alguma coisa que dá certo, na escola. E graças à Claudinha. O Gregório já tinha recolhido os trabalhos, ia dar até dois pontos pela apresentação oral. Como ninguém sabia da nota escrita, era o maior sufoco. A Clau estava nervosa, olha, até mais nervosa do que eu. O Adal, sentado na frente dela, de cabeça abaixada o tempo inteiro_ A Márcia é meio tonta, também é meio burra, nem sabia direito o assunto da pesquisa. O Tadeu? Aquele só quer saber de bagunça. Então, quem é que podia falar pela equipe? Isso mesmo: Gustavo Muramatsu. Eu. E falei legal, no começo ainda dei umas gaguejadas, depois fiquei de pé, uns e outros dizendo "Fala mais alto" e eu abri o pulmão: "Porque na nossa pesquisa, a-' gente percebeu que as tribos que habitavam o litoral do país praticamente desapareceram. .. " 18 19 Tudo sem ler, é que eu é que tinha batido o trabalho à máquina, e boa memória eu tenho. E foi-foi. Falei e todo mundo ficou quieto, eu não olhava pra cara de ninguém, mas sentia os olhos da Claudinha brilhando em cima de mim. Até o Adal, deu uma levantada de cabeça e ficou ouvindo. Nota dez. Dez-dez-dez-dez. Oito pela redação da pesquisa e a nota máxima pela apresentação oral: resultado, 10. A Cláudia não se continha. Deu gritinho, ficou falando alto com as meninas. Se pendurou no meu pescoço e deu um beijo na minha bochecha. E. Cu não tremi. Nem suei. Nem fiquei nervoso: Acho que se eu morresse naquele momento, com a Claudinha me dando um beijo, eu dava no céu. 23 de junho Começaram as provas no colégio, e eles dividem a classe em época de prova, pra evitar cola. Eu sou ímpar, a Cláudia é par. Na classe a gente não se via mais. Hoje eu vi. A primeira coisa que eu falei: - O trabalho de História, hem, Clau? Que coisa! Nunca imaginei o dez. Dá vontade de botar numa moldura. Meu pai até me prometeu um aumento na mesada. Ela não fez pouco caso, não é isso. Mas não ficou assim tão contente. Falou: - Legal. Mas amanhã tem Química, né? Estou tão mal de Química... a Cleide me prometeu uma aula. Vamos ver. Sabe, de repente entrou a Cleide e a Química na História e eu ainda me achava um grande herói. É isso aí. Talvez a Cleide seja a heroína, se a Clau conseguir um notão em Química. Não sei. Acho que eu também estou mal, estou desesperado com tanta prova e tanta coisa pra estudar. E depois, julho. 20 Pra dizer a verdade, um baita medo de julho. Medo mesmo. Estou começando a encontrar mais gente, a ver mais gente. De repente, um mês longe de todo mundo. Em casa, no sítio, tantos dias comprimidos no sítio. Pedro me enchendo o dia todo, a avó com a conversa chata, pedindo ajuda pra tudo. Eu não queria nada disso. Queria tanto continuar tudo certo com todo mundo. Eu só quero ser feliz. E me veio, agora, assim de repente, na cabeça:"... Mas , eu sou gauche". Talvez o Drummond, na estante, esteja dando risada. 29 de junho Hoje foi a última prova Laboratório de Física. Acabou. Na sala, ainda resolvendo o teste 25, ouvia os gritos que vinham lá do pátio: "ACABOOOOOOOU! FÉÉÉÉÉÉÉRIAS... " Um e outro levantou a cabeça da prova e deu risada. Quem tomava conta da nossa prova era o Nando, de Educação Física, ele acabou rindo também: "Vocês pensam que é só com vocês? Eu também estou louco pra pegar férias. .. " Se eu falar que não estou nem um pouquinho a fim, não vão me chamar de maluco? Mas é verdade. Queria mais que amanhã eu levantasse às seis, tomasse café logo, chegasse na classe e a Claudinha lá, meio destrambelhada de acordar cedo, encostando a cara na carteira, jogando o cabelão pra trás: "Aaaai, que sono. .. e sempre a Bete, a Márcia ou a Clea no "Que é isso, Clau. Daqui a pouco melhora". Mas hoje foi o último dia. E parece que deu doidice em todo mundo. Todo mundo mesmo. Depois da prova fui ao banheiro, o Samir, o Roger e o Adal lá dentro, maior das zoeiras. Motivo: o Adal trouxe uma revista de sacanagem, destas bem baixaria, e exibia pra todo mundo a página central. Uns caras do terceiro colegial olhavam, davam risada. Outros mais chegados queriam a revista, 21 folheavam e tal.. Um e outro -- que nem eu - muuuuito sem jeito. Ele, pegando a página central e abrindo a revista: "Quem quer? Quem quer? Porque senão, eu `quero!" -- e encostava a cara na fotografia, fingia que ia dar um. beijo ".`lá". O Samir dava risada, o Roger dava risada. Me falaram depois-que eles estavam bêbados, saíram da prova e foram pro bar, tomaram dois rabos-de-galo cada um. Por isso estavam assim, porque do Adal eu espero mesmo uma coisa baixaria, mas o Samir e o Roger são legais, são sérios. Não entendia como eles entravam nessa. Depois que eu saí do banheiro, cheguei no pátio, e as meninas, a Clea muito maluca, será que era de fumo? Não que entenda dessas coisas, mas a Clea estava maluca demais, entende? Demais. Ela usava walkman e ficou dançando rock - só que só ela' estava ouvindo, e era um negócio supergozado, todo mundo conversava, indo e-vindo, e ela dançando a maior pauleira que eu já vi, rebolando e virando, com os fones no ouvido. Aí eu achei a Claudinha, tomando CocaCola no balcão do pátio. - Oi. Como é que foi de provas? - Sei lá. E você? - fez züiüp com o canudinho. Tinha colocado batom. A beirada do canudo ficou corde-rosa, eu vi bem, com aquelas risquinhas da boca, de fazer o biquinho. - Acho que fui bem. Principalmente em História, né. Depois de um dez no trabalho, qualquer nota ajuda, né? Ela deu uma risada bem aberta. Se eu não conhecesse a Cláudia, até falava que ela tinha bebido alguma coisa, sei lá se tivesse - não, nunca que ela ia fazer isso - entrado no mesmo fumo junto com a Clea. - Isso aí, Gus. O negócio é trabalho de História... E me pegou no braço, ficou pendurada no meu braço. Fechou os olhos, deu uma suspirada. Eu acabei tão duro e sem jeito que ela riu. - Tchau, amor. AMOR-AMOR-AMOR - ela fez. 22 E foi andando pelo pátio, fingiu que dançava igual a Clea, naquele rebolado maluco, e eu só não fui atrás dela porque o Yun grudou em mim pra saber do gabarito do Laboratório. O Yun é coreano e dos bem ce-de-efe, e acha que eu também sou. Desde a sétima série que ele me procura o a gente checa todos os gabaritos juntos. Mesmo em classes diferentes, ele não perde essa mania. Mas hoje - não sei por que, mas principalmente hoje - minha vontade era de mandar o Yun à merda e sair atrás da Claudinha, dançando o dando risada, como todo mundo estava fazendo, mesmo que a música estivesse só na orelha da Clea, com o walkman. 1º de julho Quinta-feira, são quase duas da manhã e acabou de passar um filme na tevê. Um filme triste-triste, e minha mãe chorou no fim, eu vi que, ela assoou o nariz na ponta do penhor, mas não deu o braço a torcer, levantou tão depressa que nem deu pra ver a cara dela, só falou "Como -é tarde!" e correu pro quarto. O pai já está dormindo faz um tempão e nem deu pra falar que eu também tinha ficado triste. Obâa-chan já foi diferente. A velhinha é durona, andou devagarinho até o quarto dela, suspirou antes de abrir a porta, falou pra mim: - Coitadinha, ne. É. Guerra muito ruim... Não sei se vovó ia contar das lembranças dela, eu sei que chacoalhou a cabeça e entrou no quarto. Eu, sozinho no corredor. O Pedro, dormindo faz um tempão. Tanto tempo que eu acabei levantando e estou aqui, escrevendo, só a luz do abajur. Ele tinha deixado o rádio ligado e ligado continuou. Agora está tocando uma musica assim "As coisas que eu sei de mim são pivetes da cidadé%Pedem, insistem, e eu me sinto pouco à vontade e é da Elis Regina e eu nem conheci a Elis Regina, só sei que ela cantava bem. E estou tristetriste. E me pintóu na cabeça um negócio terrível. A moça 23 - a Soraia - do filme, que acabava morrendo e tinha só 18 anos, e eu, que nem fiz 16 ainda? E se aparecesse uma guerra, como no filme, e eu morresse agora, já, nesse minuto que estou escrevendo? Se um presidente americano maluco, ou um russo qualquer, sei lá, resolvesse jogar uma bomba atômica, e acabasse tudo e eu morresse, o que é que eu fiz'? Eu nunca dei um beijo numa mulher. Nunca fiz amor com uma mulher. Nem sei direito como é o corpo de uma mulher. Nunca viajei, tipo passar semanas, meses, longe de casa. Só conheço o sítio, logo aqui em Atibaia. Três visitas pro tio Kenji, em Belo Horizonte. Não conheço nada e nem tenho 16 anos. E iria morrer. - A Soraia pelo menos tinha um amor, tinha o Albert, o namorado dela, que morreu junto com ela. E tinham um ideal, ele não deixou que ela fosse presa pelos nazistas, ele se sacrificou por ela. Ora, eu queria pelo menos ter alguém - ou um motivo - pra me sacrificar. Poxa, isso já 'seria tão importante, eu estou disposto a morrer - ou a viver'- por alguma causa, por alguém. Mas QUEM? QUAL? Não sei. E isto é triste demais. Tive de parar de escrever porque o Pedro acordou e ficou naquela de querer fazer xixi, agora tá lá, no banheiro. E eu não vou poder continuar, porque ele já desligou o rádio e vai desligar também a luz. Boa noite. 4 de julho Hóje é dia da Independência dos EUA. Sabe como é que eu sei disso? Minha mãe me botou num curso de férias de inglês. E o professor fez questão de reforçar isso ontem, no primeiro contato com a classe: "Tomorrow is the 4th of July, the Independence of the United States". E eu com isso? Pra começar, nem queria o. curso de férias. E se quisesse, não seria de inglês. Minha mãe: - Vai ter um curso de férias de inglês na minha escola 24 de ginástica. Quem já é aluno tem 50% de desconto. Gustavo, você precisa de inglês. Pra vestibular, pra tudo. E como é que podia dizer não? É fácil? Ela veio tão feliz que não dava. Depois, ela fez a tática certa: primeiro, conversou com meu pai, sobre as facilidades de pagamento e vantagens pra mim, no futuro. Depois, conversou comigo, sobre vantagens no futuro e facilidade no pagamento. Melhor. mesmo foi a avó, com a ironia dela: - Eles num ganharon guerra? Deve ter o que ensinar. Adorei a velhinha. 13 de julho Liguei agora pra Cláudia. Melhor: eu estou ligando desde que as férias começaram. Primeiro, só aparecia a secretária eletrônica: "Isto é uma gravação. Favor deixar..." , e tal. Gravei três mensagens. Depois dava vergonha, então eu desligava logo que o bip eletrônico aparecia. - Alô? - Por favor, eu queria falar com a Cláudia. - É ela. Queria morrer. O coração veio assim pra boca, eu não sabia nem como era o meu nome. - Cláudia? Aqui é o Gustavo. - Gustavo? - É. Da sua classe. Muramatsu. Gustavo Muramatsu. Quase que eu falei: "O do trabalho de História". Mas ela lembrou antes. Aaaaaaah, sei. Oi, Gus. - É muito cedo, né? Acordei você? São 9 horas e eu já estava de pé desde as 7. Ela deu o maior bocejo, deu pra ouvir pelo telefone. - Não, tudo bem, tudo bem... agora eu já acordei mesmo... 25 Acordei mesmo, acordei mesmo. E eu não sabia se pedia desculpa, me dava um soco na cara ou falava alguma coisa. Silêncio. Baita silêncio. Mas fala, Gus.. . -- Não... num sei... é que... bem, eg pensei. Ouvi ela bocejar de novo. O suor escorria pela manga da amiseta. -- Escuta, você vai sair de tarde? A gente podia bater um papo. Tem um filme passando, uma reprise, o Blade Runner, voce... - Tudo bem. Eu num vou sair, não; Gus. Passa aqui, tá? Ainda consegui falar, antes que ela desligasse: - Mas que hora, que hora, Cláudia? Porque a sessão são... - Qualquer hora, de tarde. Sei lá. Tchau. Uma hora? Muito cedo, e se ela estiver almoçando? Duas horas? Aí dá pra pegar a sessão das quatro. Tomar banho, podia ir no barbeiro, cortar o cabelo, aí tomava banho e almoçava. Depois eu tenho de pegar o ônibus e o metrô. A sessão das quatro, legal. 13 de julho Não sei nem por que estou escrevendo agora, porque o que eu queria mesmo era -me enfiar num buraco e sumir, desaparecer, ser devorado por 4 000 minhocas e mais algumas ratazanas. É azar, é praga, é gauche, diabo! Parece que não vou conseguir nunca. Merda. Olha, deixa eu falar logo - a Claudinha. Então. 'De manhã, eu todo contente. O que me passou pela cabeça, se eu for colocar aqui, sei lá. Não dá nem pra dizer. Cheguei duas horas na casa dela. Em ponto. AI foi a empregada que atendeu: - A Cláudia saiu com a mãe dela. Mas cia volta logo, ela... - Ela não deixou recado, não senhor. E a maldita empregada só com a cara. peia beiradinha da porta, nem. abriu. Eu sem jeito de pedir pra entrar, o Nick latindo que nem doido atrás das pernas da mulher - até o cachorro .me reconhece e a burra da empregada na desconfiança, pensa que eu sou o qué? Ladrão? Tá, obrigado. Eu volto depois. Ai eu parei na porta, encostado no muro. Duas horas, 2h20, 2h40. Nada. Ruazinha sossegada, nern passa gente, que pelo menos distraía. Fiquei recordando na minha cabeça todas as fórmula de Química, os autores da Literatura Brasileira, contando pra mim mesmo as piadas que eu ouvi na tevê, olhava o relógio: 2h50. Al já era demais. Toquei de novo a campainha. Quem sabe, telefonou. Não sabia mesmo onde... Nick latiu mais ainda, a burra mais enfezada comigo. Nenhuma notícia. Bom, aí fui dar uma volta. Cheguei até a avenida, subi, desci. Telefone público: sé a voz da 'nordestina. Perguntei pela Cláudia: "Saiu com a mãe, não sei que hora volta". Adeus, sessão das quatro. Comprei um jornal, podia ser sessão das seis. Ou uma comédia maluca, passando ali perto, com sessão às cinco e pouco. Quem sabe, ela gostava. Tornei uma Coca-Cola. Liguei de novo. Ainda a nordestina. Quinze para as seis me plantei na porta da casa dela. Pensei em tocar a campainha, mas não tinha carro na garagem e, depois, meu última telefonema tinha sido dez minutos antes. O cinema já era. Sé se a Claudinha topasse sair de noite. Quem sabe el... Virou um carro. Deu seta. O coração batendo na gar ganta. Era o pai dela: 28 i não? guejci que parecia até defeito de nascença. A cara, afilhou. Debaixo do braço, só sentia a mancha de suor do. U da escola... eu sou da classe da Cláudia, traDde História, eu vinha aqui... Aaaaaaah, sei. Já lembrei. E você está esperando a 9 u nem pude responder, chegou a Claudìnha e a mãe parando um outro carrão, maior que o do pai. Eles são tão ricos, a mãe e o pai dela, tão altos e ajeitados, família americana de filme de televisão, tudo bonito demais pra ser de verdade. E eu juro que sé me pergunque é que eu fazia ali, merda. Eu, que pretensão mais a minha: eu, magricelo, japoronga, gago e idiota, que+o namorar a filha daquele baita homem, o maior jeito de granfinagem. Mas a Cláudia foi legal. Isso ela foi. Desceu do carro com mil desculpas, porque a mãe tinha hora no cabeleireiro, achou que voltava logo, avisou a empregada, a empregada não falou? Não, não falou. Ai, desculpasse de novo, porque sabe como é empregada... e a gente foi entrando. Ela estavamentindo? Não, não pode ter sido por sacanagem.. Não pode ter sido por esquecimento, não pode. A Claudinha não ia fazer isso. E a gente entrou. Me botaram numa saleta, perto da televisão. Que eu desse licença. E sumiu o pai, sumiu a mãe, a Claudinha. Só o Nick ficou comigo, babando nas minhas pernas, dando umas patadas que me ameaçavam ó saco. Vinte minutos. Fui vendo o cuco na parede, 7h10, a Claudinha voltou. Sentou no sofá da frente, cruzou as pernas: - E aí, Gustavo? Como é que está de férias? Como eu estou? Que férias? Por que a gente não consegue dizer as coisas legais, aquilo tudo que a gente fica pensando, ensaiando? Que nada. Falei-falei-falei. Fiz um relatório, não parava de falar, desde as aulas de inglês até 29 lustrar o carro pro meu pai, até brigar com o Pedro ou ver filme de madrugada na tevê, e a Claudinha balançando a cabeça, balançando. A -mãe dela apareceu na porta, fez um a l, ela fez um gesto com a cabeça e eu falando-falando, e quanto mais eu falava mais idiota e triste eu me sentia. Eram oito horas quando a Clau se levantou. Levantou mesmo, me estendeu a mão, toda solene -- Olha, - Gus. Foi legal você vir aqui, legal mesmo. Mas sabe que é, a gente tem o aniversário da minha tia e daqui a pouco a gente vai sair, sabe? Não é por nada, não, mas que não dá pra faltar - e eu apertei a mão dela, assim looooonge, semrn beijinho? Sem nada? Aperto de mão, lá longe? Peguei nos dedos dela, na ponta dos dedos. Tinha feito as unhas, reparei. Falei um tchau para os pais dela. O pai, de bermuda e camiseta. A mãe, de penhoar. Não sei, mas ninguém com cara de ir pra festa. A empregada me olhando com a mesma cara feia, lá da copa. Parece que só o Nick ficou feliz pela visita. Que idiota, que besta, que japoronga que eu sou. Quando é que vou aprender? Será que não vou aprender nunca a ser um cara legal? Preciso abrir logo esse buraco e me enterrar, com as 4000 minhocas. 17 de julho Hoje aprendi como se faz frango shop-suei. Isso mesmo, e ainda em inglês. O idiota do professor falando, explicando os ingredientes, e olhando o tempo todo pra minha cara; será que aquela besta não sabe a diferença entre chinês e japonês? O curso tá chato, ruim, três vezes por semana aquela tortura... criei coragem e -falei pra mãe que não ia mais. Que não estou aprendendo nada, 'que o inglês que a gente tem na escola é melhor que o do cursinho. Ela ficou superbrava comigo. 30 - Bobagem sua, Gustavo. Pagou só a metade. Precisa aproveitar. Está ficando preguiçoso que nem gaijin. Aí não sei o que me deu, eu geralmente deixo que ela fale estas asneiras e o máximo que faz-é ir -embora, resmungando. Mas me deu assim um ódio e' eu gritei com ela: - Pára com isso, mãe! Eu não quero que a senhora fale desse jeito de brasileiro! Eu sou brasileiro, moro no Brasil e acho que esse Japão que vocês falam tanto é uma grande porcaria, tá? { E a avó, que estava costurando na salinha do lado, e acho que nem ouviu a conversa por inteiro, chegou até mais brava que a mãe, apontando o dedo pra mim e ainda segurando a tesourinha: - Korá, Gustavo! Japão hoje muito importante, nê! Mais importante que Brasil! Japão ficou forte depois da guerra, nê! Eu não queria brigar com a velha Yuki, mas acabei brigando. Falei alguma coisa dela ficar puxando o saco do Japão, de que ela era - aí eu soltei aquele monte de palavra difícil que a coitada da avó nunca que ia entender - alienada, retrógrada, desinformada, enfim, palavras que eu conhecia das aulas e que eu sempre usava com ela, quando queria botar banca. Avó olhando reto pra mim, do jeito de dizer "Este menino está louco", e eu acabei me enfiando no quarto e estou aqui até agora. Não vieram nem me chamar pro almoço. Uma fome danada, mas também não vou dar o braço a torcer. Não vou, não vou. 19 de julho Pelo menos uma semana de sítiò. Não é lá grande coisa, mas ficar em São Paulo estudando inglês e sem nada pra fazer... 31 Avó veio junto comigo e com Pedro, mãe volta pra cá na quinta-feira e pai vem buscar a gente no fim-de-semana. ,Hoje o dia ficou bonito e todo mundo aproveitou bastante, alou sol, passeou. São dez da noite e estão dormindo. Estou na varanda, escrevendo e ouvindo só o barulho dos grilos, a noite.. quietinha, vendo uns trovões no céu, riscando- uma noite bem azul-escura, carregada de nuvens. É bom e é triste. Eu gosto de ficar sozinho, tem vez q é bom, parece que não existe pessoa alguma na Terra, e eu nao preciso ficar sofrendo pra ser legal com os outros, não preciso ,sofrer pra agradar os outros. Como isso é complicada, não?? Por que é tão importante assim os outros gostarem da genté? Por que eu não posso ser um cara sério, com opinióes que os outros respeitam, que não fique gaguejando nem nervoso pra discutir com os outros? Assim igual o Flávio, de Física, Ele não dá bronca, ele não é nenhum monstro com os alunos. Mas ele só olha pra gente e a bagunça pára. Ele explica as coisas, todo mundo tem certeza de que ele conhece muito, muito mais do que ele fala, e não mente e não faz média. Será que algum dia eu vou ser assim? Ou igual o Carlos, meu primo. Andei hoje pensando muito nele. Eu fui nadar no rio e lembrei muito dele, das conversas, da Karen, a namorada brasileira. Não vi mais o Carlos, desde os feriados. Será que ele vai mesmo juntar os trapos com aquela moça? Vai ter essa coragem? Algum dia eu vou ter coragem de enfrentar, assim, todo mundo, pra defender uma idéia minha, umá vontade minha? Eu? Será que algum dia vou ter sequer a alegria de ter uma namorada, uma mulher? Eu queria hoje uma mulher, sabe. Pra falar a verdade, uma mulher qualquer, qualquer uma (desde que. não fosse muuuito feia) e que ela coloçasse a mão no meu cabelo, falasse "Vem cá, me dá um beijo". Nem beijo, eu dei numa mulher. Nada. O máximo foi dançar com a Anita, foi beijinho no rosto de umas e outras e só 32 Que baixo astral, ontem. Nossa! Gustavo, ve se não entra nessa, porque aí voce chora e não é nada disso. Hoje a tte foi até a cidade, pegamos um Ónibus catacaipira que cit a na estrada e foi superlegal,. Obâa-chan parecia até mal animada que a gente. Colocc : vestido novo, batom na boca. Ela é gulosa, não pode abusar de açúcar porque já teve um começo de diabete, mas hoje era um dia especial. Entramos na única confeitaria da cidade e foi a festa. Sc +ete, bolo, e chocolate. Até deixou - pegou um copo, pra ela, também - eu pedir cerveja. E ficou tão contente, sabe. E começou a falar dela,. e como eu sei pouco dela! De chegar no Brasil com cinco anos, de .nem lembrar. do Japão. Melhor: do Japão, a lembrança da flor de cerejeira, sakurá, "Non cereja igual daqui, outra cereja". E a lembrança forte da neve, aí ela riu muito, achei um barato : "Neve é yuki, eu sou yuki, Gustavo. Neve.. . " Neve, a velha Yuki era de neve, mas como era forte a velhinha, nada de se derreter, trabalhar pra diabo e continuar sendo alegre; uma fibra que este pessoal tinha. Aqui, até os 17 anos morando em fazenda, a vida dura que ela teve em fazenda, nem escola ela fez, era colher café, a Yuki devia ser uma menina ainda, e ficar colhendo café desde madrugada, como se fosse adulta. Casar com 17 anos, com meu avô Eiji. Aí ela deu uma parada, uma graaaaande parada na conversa. Olhava pra fora da docen a, olhava pro Pedro, que a essa altura estava correndo na pracinha e tinha deixado eu e ela sozinhos, na mesa da confeitaria. E era difícil ala falar. Que vontade de eu ter coragem, coragem mesmo, abrir a alma com ela, perguntar, falar: Você gostava dele, Obâa-chan? Você foi feliz? Você amava ele? Como é amar alguém, vó? 20 de julho 33 Mas nunca uma coragem dessas! Ela falou de costumes da terra, coisa assim de homem ir na frente, de mulher ir atrás, imagina, pegar no braço, abraçar? Isso coisa de gaijin, n o de japonês, nunca. Dele ser caladão, dele ser mais inteligente, "Eu boba", ela repetiu, "Muito boba". Dele saber her em japonês e portuguésde comprar revistas e jorrnii importados do Japão, de montar um comércio em São Paulo. "Trabalhar muito-muito-muito." Ter cinco filhos. Dos cinco, 1 vivos:_Kenji, meu pai Bernardo e a tia Adelaide. Da morte de vc tì, sei eu lembrava de vovô. Eu era pequeno, mas falei;: que lembrava sim, apesar de ter uma vaga lembrança do velho Eiji. Aí falou dos netos, tantos netos, "Bonitos, no? Forte, inteligente. Que.nem Nü-chan, Gustavo". E eu sofrendo por besteira, chorando, como ontem, por besteira. Vai vete a danada dessa velhinha é mágica, percebe tudo isso. Só de noitinha a gente voltou pro sítio. E agora eu estou aqui, escrevendo. A noite está bem clara, assim de estrela no céu. Na varanda bate um vento gostoso, só sei que vem assim uma paz, um sossego... sono. Eu vou dormir. Boa noite. 1.0 de agosto As férias acabaram! Que-bom-que-bom-que-bom! Amanhã eu já levanto às seis, tomo café correndo e vou pra escola e vou ver Claudinha e vou encontrar os colegas e vou - até que enfim - sentir que estou fazendo alguma coisa, me sentindo útil. Engraçado, isso. Sentindo útil. Só porque estou estudando? Ahn!? Só por isso? As vezes eu acho que isto é coisa esmo de japonês: de s8 ficar contente com o trabalho, com obrigações, com deveres. Acho que esta danada dessa raça nunca vai ser brasileira, sabe. A gente não aprende a relaxar. Fazer coisa igual o Beto, o Adal, o Tadeu. Preguiça, matar 34 aula, viver folgado pelo mundo. Se dissessem que o mundo ia terminar agora, em meia hora, garanto que o japonês arrumava um jeito de terminar o serviço_ dele, nestes minutinhos finais. Que idéia mais idiota, Gustavo! Mundo acabar, que é isso! É -mellfor parar logo de escrever, amanhã é levantar cedo e tanta-tanta coisa está esperando voce. Pensei na risada gostosa da Claudinha e fui dormir. Fiquei feito bobo caçando a Claudinha pela escola. Fui pesado pra aula, cheguei lá e só o porteiro e meia dúzia de dé-efes, que nem eu. Mas eu sabia que não era pelas aulas, nada disso, que euxinha-ide cedo: era a Çl, , i Era ch r logo, quem sabe procurar um cara ïg ra áue desse ra ficar mais dela, se entasse ali logo no rimeiro dia; -dava pra negociar com a Márcia, qu quem senta bem d Chegaram os "orientais" da classe: o Jorge, o Chang, o Miguel e o Lin. E eu. Só nós, assim quinze pras sete, lá dentro da classe. Parecia reunião da colônia, só que trés japoneses, um coreano e um chines. Um olhando pra cara do outro, aquele papo bobo, "Como é que foi de férias?", mas eu sabia que as férias deles tinham sido tão chatas como as minhas, que a gente tava louco pras aulas começarem. Deu uma vontade de rir, se eu desse risada iam falar que eu era louco; mas deu mesmo, porque se eles estavam pensando que eu era cé-dé-efe, tavam muito enganados, era a Cláudia. "Eu estou gamado pela Cláudia", e se eu dissesse isso, não iam achar que era mais doido ainda? Dez pras sete. A classe foi enchendo. Primeiro sinal. Agora! Arrumei tudo na carteira que era da Márcia, pronto para enfrentar qualquer briga' ou .discussão, mas dali eu não saía. O zunzum da conversa, a Clea chegou morena pra dia35 Q Or ra o 2 de agosto bo, como é que ela consegue esta cor em julho? "Salvador, quérido", imitava sotaque baiano. "Oxente, tá pensano o que?", e eu sei que começava a suar e o professor já vinha chegando, o Adal gritou "Lá vem o Glauco", o pessoal foi tentando nas carteiras. E a Cláudia? A Márcia entrou com pressa, cabelo mólhado de ter tomado banho. Não brigou pela carteira, não: pura e simplesmente se sentou na carteira que era da Cláudia. -- Ei! Aqui é a Cláudia -- eu falei. --- Você não sabe? Ela foi viajar. Volta só dia dez. Eles foram pra D sneylándia. Viajar. Dia dez. Levei um bom tempo pra entender o que a Márcia dizia. Dez-dez-dez-dez dias ainda, sem ver a Cláudia. A aula, do Glauco nunca foi tão chata, e olha que ele é o professor que melhor sabe contar piadinhas. 9 de agosto Neste semestre apareceu um cara novo na classe. É de Mato Grosso, Goiás, coisa assim. Agora veio estudar em São Paulo. Eu também não fui com a cara dele, sei lá, a primeira coisa que eu pensei foi o que todo mundo deve ter pensado. Ele é escuro, cara de índio ou de mulato. E grandão, e no primeiro dia de aula que ele chegou na classe já foi fazendo pergunta pra professora de Geografia e ela até gostou das perguntas dele e todo mundo achou que ele era um crioulo metido. Mas hoje ele fez um negócio que me deixou encucado. Deixou mesmo. Nos primeiros dias, o pessoal ainda não tinha maior intimidade, mas depois de uma semana, já começaram as brincadeiras. O Tadeu, que gosta de sacanear os outros, mais ainda se é novo na classe, forrou a carteira dele com papel preto, até no assento da carteira. Tudo. Inteirinha de luto. Todo 36 mundo rindo e doido pra ver como é que o "crioulo" ia reagir. Ele chegou, viu o papel, a gente esperando o maior esporro, "Quem foi?" e tal. Mas não. Ele chegou, todo mundo rindo. Ele olhou pra carteira, olhou pra gente. Sério e calado. E em vez de gritar ou rasgar o papel, que era o qne a gente esperava, ele sentou. Sentou como se nada tivesse de diferente,; sentou e. começou a assistir aula. As seis aulas e ele sentado lá, copiando a matéria, como se nem tivesse percebido a carteira forrada de preto. No como, um- e outro ainda ria, gritava "A coisa tá preta", algo s im. Depois, eu sei que foi dando vergonha nó pessoal. A a tla acabou ficando um inferno, porque todo mundo prestava mais atenção na carteira preta do que na aula, e se algum' professor estranhava, pelo menos não disse nada, acho que mei i sem graça, ele é aluno novo, sei lá que doidice era. Só sei que a classè inteira nem,eonseguiu assistir aula direito, porque ele senta na primeira filéira, e todo mundo só conseguia grudar os olhos na carteira forrada de preto, dele. Na saída, o Tadeu e o Beto criaram coragem e tentaram falar com ele. - Olha, João - o nome dele é João. - E o seguinte. A gente... Ele nem deu chance do pessoal falar. Levantou, pegou o material, interrompeu: - Você não copiou a aula? Eu anotei tudo. Se quiser, eu passo depois pra vvcés' E saiu. Nunca vi o Tadeu daquele jeito. Ele arrancou todo o papel preto da carteira, mas com uma raiva, raiva mesmo, e eu sei que todo mundo acabou a aula com uma coisa que nunca teve. Não sei, mas gostei dele. Gostei mesmo do que ele fez. 10 de agosto E hoje, eu falei quando vi minha cara no espelho. E hoje, eu fui marcando a cada passo que eu dava. E hoje, eu senti por dentro do corpo, quando o primeiro sinal tocou, mandando todo mundo entrar. E-hoje-&hoje-é-hoje que a Claudinha volta de viagem. Era uma luta eu controlar o nervosismo. Experimentei fechar os olhos, assim disfarçado, quem sabe se eu me concentrasse muito-muito, eu conseguia "chamar" a Claudinha mais depressa. Ouvia as vozes dos colegas, era engraçado ouvir o pessoal, sem enxergar. Mas eu não podia desviar a atenção: pense. "Cláudia! Cláudia!", eu chamava. Chamava como se meu grito viesse de dentro, muito dentro do meu coração. O segundo sinal tocou, abri os olhos. Uns e outros se sentavam, um ou outro ainda bagunçava na porta. Era aula com o Gregório, ele chegou, "Bom dia, pessoal", colocou o material dele na mesa, ia fazer a chamada. Fui murchando meu coração, assim bem pequenininho, nada feito. Acabou. "Adalberto", "Presente". "Alice", . "Presente". Ana Cecilia", "Presente". "Ana Maria", "Presente". "Carlos", "Presente "Cármen", "Presente". "Cíntia", "Presente". "Cláudia". E toda esbaforida, lá mesmo do batente da porta, "Presente". Era ela-ela-ela-ela, eu queria morrer, levantar o braço, falar "Olha eu aqui, que saudades, eu gosto de voce", ou tantas coisas, mas ela veio depressa, nem olhou direito pra classe, viu uma carteira vazia lá na frente, sentou e, meu Deus, como é que eu podia prestar atenção? A primeira aula acabou, corri pra perto da Cláudia. - Oi. Como foi a viagem? A Clea tinha chegado antes, fez a mesma pergunta em inglés, ela já conhece a Disneylândia, já conhece os EUA inteiro, um monte de lugar, e a Clau fez "Oi" pra mim e respondeu também em inglés pra Clea, maldito inglés, se aquele 38 39 1 carsc~ de férias servisse pra alguma coisa, eu também podia, tio é mesmo que se fala "Senti saudades suas" em inglês? O professor de Matemática chegou, é um japonês bravo, tinha de sentar logo. Só consegui falar "Depois a gente conversa" pra Claudinha e corri pra minha carteira. Na terceira aula, me danei. Bateu o sina, o ;professor ainda na classe, a Claudinha correu pra fora: ainda fui atrás, e vi que ela entrou no banheiro. Chegou até meio atrasada. Tinhaa de ser no intervalo. Como 6 qúe você está, Cláudia? E a viagem? superlegal - será que ela tinha crescido mais, em duas semanas? Sapato baixo, mas mesmo assim dois dedos mais alta da que eu, dohïice, ninguém cresce em tão. pouco tempo. Ela ia falando e eu ergui bem as costas, posição reta; não, se eu ficasse bem reto, ela ainda era exatinho da minha altura. E você? Eu fiquei de te ligar depois daquele dia, mas aí pintou essa viagem... tudo bem? Péssimo, mal, horroroso. Mas eu falei: - Tudo, tudo bem. E foi assim, o intervalo. As meninas queriam saber mil coisas,da viagem, sé fui ouvind i,. aquelas covinhas- lindas que a Cláudia tem no canto da boca, o ca elão que _ela jogava pra trás do rostò, pã~ëcé que também mais comprido, mais liso, os olhos de gato que ela tem, aqueles dentes brancos e lindos. E foi assim. Assim, assim, chocho, sem graça, sem a menor chance de falar o que eu queria, sem conseguir ficar sozinho com a Cláudia por dòis minútos que fosse e sentando tão longe, tão longe dela. 16 de agosto Aniversário, por que eu não pensei nisto antes? Aniversário. Não, "Querido Diário", hoje não é o meu aniversário. Mas é que hoje pintou uma idéia, uma idéia incrível, e tem de dar certo, vai ser o melhor -dia da minha vida! Foi assim: o Samir tinha escrito a data río caderno, antes da aula e virou pro Rogério, falou: "Sabe? Falta um més pro meu aniversário "Você também é de setembro?", falou o Roger. "Eu sou do dia 27." Eu ouvi e entrei na conversa: "Eu também, do dia 26". E a gente embalou num papo sobre festa de aniversário, de família que não sabe dar uma festa legal, coisa assim. O Samir falou que a mãe dele não entende, só dá festinha de criança, e ele tava cheio de festinha de criança, tipo bolo-guaraná, que no ano passado foi a maior vergonha, a mie botando velinha acende-apaga e bexiga na parede, que ele já estava com 15 anos, agora ia fazer 16 e tinha crescido, será que eles não perceberam que ele tinha crescido? (E tinha mesmo. Olha que o Samir tem metro oitenta e tanto, é Brandão à beça.) Al foi o Rogério que começou a reclamar. Que ele adoraria se tivesse pelo menos festa de criança. Falou do pai &le, do tipo bem durão, "Se eu não tive, meu filho não tern", e que achava festa de aniversário um desperdício, uma besteira. "Ele prefere me dar em dinheiro, fala que é muito melhor do que encher a barriga de um monte de gente." Aí falei eu. Falei das famigeradas festinhas da colônia. Tudo vira motivo pra juntar toooooodos os japoneses, e fica aquele monte de parente 'e nem dá jeito de chamar amigos, porque só a familia já encheu a casa e fica um saco. Eu até andei inspirado, naquela hora, Roger e Samir morreram de rir quando contei dos meus últimos presentes: uma calculadora eletrônica e uma camisa social, colarinho engomado e tudo. E o contrário disso, que foi um bichinho de pelúcia. Quer dizer, o japoronga aqui ou é bebê ou executivo. A Silmara chamou a atenção da gente trés vezes, porque aí um lembrava de um presente: ` E eu, que ganhei abotoaduras! Com iniciais, já viu coisa mais cafona?" e daí 40 41 ;ato lembrava da parentada "E aquela tia chata, que não Eíicn festa que não fale: Com você cresceu... pensava que eu era o quê, anão? Cresceu, cresceu. Claro que cresceu". E também lembrava outra coisa: E quando a mãe quer fazer economia e ela mesma faz o bolo? O bolo todo torto, ninguém co n a menor vontade de comer a gororoba. ..-E a gente ria, a gente se cutucava, maior fogo de contar coisa... Conclusão: a Silmara botou nós três pra fora da classe. A primeira vez na minha vida que me botaram fora da classe, mas eu estava tão contente, com a barriga até doendo de dar risada, que não fiquei nem aí. Tinha dado uma febre em mim, e neles também, uma febre e uma alegria, que a gente ficou papeando o intervalo todo, o sinal tocgu pra entrar, a gente resolveu ir até a lanchonete e continuar conversando, e na mesa da lanchonete, depois de um copo de cerveja, uma idéia: fazer uma festa de aniversário conjunta, de nós trés, com tudo que a gente sempre quis e os caretas nunca entenderam. - Tem de ter luz negra - falava o Samir - que é pra gente agarrar as meninas e elas nem perceberem. - Tem de ter chope, uísque, caipirinha falava o Roger, fazendo brinde. - Pra ninguém dizer que faltou bebida. "Tem de ter a Claudinha", eu pensava. Mas eu dizia outra coisa, que não sou besta: - E meninas, muitas meninas. As da nossa classe, todas das outras classes. Encher de mulher, abaixo festa que não tem mulher! E eles também gritaram: "ABAIX0000!" E a gente fez mais um brinde, foi arrumando detalhes, fazendo contas. O dinheiro tinha de sair da gente, "Nenhuma interferén cia da familia", como falou o Roger. E a data? Quando? Tinha de ser no meio dos aniversários. Contas daqui, pedir calendário pro garçom, ver que fosse sábado, não coincidisse com provas e tal. Chegamos à brilhante conclusão: entre 42 V4rgem e Balança, dia 25. Um magnífico sábado de primavera. 18 de agosto Estou aqui no maior fogo com as minhas coisas, roupas, badulaques. Ontem eu, o Roger e o Samir começamos um orçamento. Como a gente anda de mesada, se algum de nós terra ume poupança pessoal, aquela com os restos das migaihas que os pals dão pra gente, se não tem chance de vender alguma coisa. É istoque estava fazendo agora. Achei u ìi blusão de couro, bonito, que meu pai me deu tem dois anos. Ainda serve e serve bem, mas eu posso dizer que tá apertado., E se eles falarem "Então deixa para o Pedro?" Ah, mas nèm passando por cima do meu cadáver.' Vou botar anúncio no mural da escola amanhã mesmo. Quanto vale um casaco de couro? Novo é uma fortuna. Usado, porém pouco usado... deixa eu ver. E tem também a correntinha de ouro, aquela que a tia Rosa me deu quando eu era bebê. Ouro dá pra vender legal. E se a mãe invocar, "Cade a correntinha?", sei lá, falo que não vi, não sei. Que me roubaram, que eu perdi. É isso,_ perdi. Quer saber de uma coisa? Vou ligar pro Samir. Contar pra ele tudo que já achei. 18 de agosto Eu sou uma besta, mesmo. Na loucura que eu tava, hoje de tarde, eu tinira de contar pra mãe. Tinha, né. Sua besta. Fazendo tudo errado, sem preparar terreno. Tinha que ir de mansinho, idiota! Mas não. Fui de tijolada. - Mãe! Eu, o Samir e o Roger estamos planejando uma coisa incrível. Superlegal, mãe. - Samir? Roger? Gaijin ou nihonjin? 44 - E daí, mãe? Que é que tem a ver? São amigos, lá da escola. A gente quer, a gente tá combinando uma festa. - Festa? Aí ela parou de preparar a sopa de'missô, que ela vive fazendo e que mais a avó toma, e ficou me olhando, enquanto eu contava tudo de uma vez, bem blablablá, o que a gente queria, o como, mais ou menos o porquê a gente queria uma festa só, 'só da gente. - Gustavo, mas só de vocês, quer dizer que eu, pai, Obâa-chan.. . -> É, quer dizer, a festa mesmo é no sábado, dia 25. Não é no dia do meu aniversário, é pra comemorar os três aniversários de 'uma vez. Assim, um bailinho. - Bailinho? E onde? Da voz dela ia quase que caindo gelo, assim de mão no queixo, um frio começou também a crescer no meu peito, eu ainda mostrando alegria, e ia dando medo, eu falava todo contente, mas debaixo do braço um calor e um frio. - O Samir já falou com o pai dele. Eles têm uma garagem, uma garagem bem grandona, e pelo menos o pai empresta a garagem. O resto é a gente que peie: música, comida, divide o dinheiro de tudo, de bebida, de tudo. E depois que eu falei-falei-falei, veio o silêncio. O maior silêncio do mundo. Eu olhava pra baixo, pra cima, mãe com a mão no queixo, olho reto em mim. E só o rádio da empregada, no "Ooooooooi gente", lá do fundo da lavanderia. - Não sei não... - devagarinho ela me deu as costas, foi dissolvendo o missô na água de legumes e mexendo na panela. Nunca achei o cheiro daquilo tão ruim. - Que é que a senhora não sabe, mãe? Vai ser superlegal, vai estar todo mundo, um monte de gente, de amigos... - Que monte de gente? Bailinho, Gustavo? Festa sua, na casa de gaijin? - e foi resmungando, falando mal de mim, que eu andava com esquisitices. * Que custa fazer 45 festa aqui? E sua tia?. E os primos? Obâa-chan, coitada dela. que ela vai pensar? - Mãe, mas o que é isto .. . - Não sei não. Eu não aprovo isso, não. E virou de vez as costas, a maior atenção na panela de sopa, tipo "fim de conversa". Mas não, desta vez não, ela anão entendia, merda! Eu não podia deixar assim. Veio pra minha barriga um fogo, uma agonia, eu nem percebi, mas quando vi eu taxa chorando, na garganta fez um bolo, e eu sei que comecei a gritar: A senhora NAO ENTENDE! Não entende! Eu vou fazer 16 anos eu nao quero titia, prima, parentada! Eu quero amigos, eu giero uma festa mesmo, eu... e olha - al eu tremia com a dedo levantado no nariz dela - eu vou fazer esta festa, tá? Eu vou e vou mesmo, tá? O dinheiro é meu, da mesada. Eu faça como eu quiser, mas EU-VOU-EU-VOU nesta festim E saí correndo, chorei-chorei até ficar com a cara inchada, até babar no meu travesseiro todo, e vi que o tempo foi passando, e vi que foi escurecendo, e vi que o Pedro chegou da escola quando o ônibus escolar freou na porta, e vi que eu queria morrer, todo esvaziado, triste. Obâa-chan veio chamar pra janta, eu falei OK, mas não abri a porta. Quando vi que ela foi embora eu sal, fiquei um século no banheiro, lavei bem a cara, toda vermelha e inchada, queria mesmo que meus óculos fossem tão-tão escuros que não se visse nada dos meus olhos, só dois buracos negros. Na mesa, o tempo todo eu fiquei de cara abaixada. Sabia que pai ia puxar conversa e vi também que mãe tinha os olhos vermelhos - ela também tinha chorado -, e fiquei assim mais dolorido por dentro, porque eu não queria que, ela sofresse, mas também não podia voltar atrás, não podia. Por que só eu tinha que entender eles? Nem consegui comer. Ficou tudo muuuuito quieto, nem o Pedro fez barulho, me olhando tão sério e esperando a tempestade. Todo mundo esperando a tempestade. 46 Que acabou não vindo. Comi qualquer coisa, falei que ia estudar e me tranquei no quarto, enterrei o nariz num livro de Química, mas só pra fazer de conta, porque eu não lia uma palavra, eu fechava os olhos e ficava sofrendo, doendo todo =o peito- Aí o Pedro veio dormir, eu tomei banho e estou escrevendo. Pai e mãe já foram dormir, vó também. Bem, pelo menos por hoje estou salvo, mas amanhã volta a tempestade. Só que eu juro, juro mesmo, desta vez eles não ganham. Eu vou ter esta festa de aniversário de qualquer jeito! Consegui. Nem sei direito como, mas eu consegui. Hoje de manhã eu falei mais ou menos (porque a vergonha não ia deixar contar tudo) com o Samir. Falei otimista, dizendo que por bem. ou por mal eu ia fazer a festa junto; no final, até exagerei minha valentia, acho que era até pra me convencer, além do Samir. Samir ouviu-ouviu. Depois deu um palpite incrível: - Gustavo, o meu pai é mais legal e até está achando um barato a gente entrar com a grana, e tal. Eu podia pedir pra ele ligar pro seu pai. Sempre ajudava... Se ajudava? Só ajudava. Cheguei da escola de tarde, vim aqui pro quarto. Meu pai chegou como sempre às seis horas, eu desci pra sala. A janta ainda não estava pronta, quase sete tocou o telefone. Era a hora que a gente combinou. Atendi - Pai, é pro senhor. Lá veio o velho Bernardo, atender. Eu, perto, fingindo que via tevê. Pai começou só falando uh, uh. Depois abriu mais o jogo: "Aaaaaah, sei. É que vai incomodar.., tanta garotada, 'não é? A gente... uh. Certo, senhor? Senhor Válter. Pode falar". 19 de agosto 47 Eu fazia figa, escondido. Com os dedos das duas mãos. Tentava cruzar os dedos dos pés, também. Grudado na televisão. Pai desligou o telefone, olhou bem pra mim. -- Gustavo - eu virei pra ele. - O pai do seu amigo, escola. Essa festa de aniversário, você... Corri pra perto dele. -- Entáo, pai. É a gente que está fazendo, é a gente está juntando o dinheiro, arrumando tudo. O pai do Sa mir sé i np stou a garagem. Vai ter só pessoal da escola, vai ser tipo u bailinho. Ninguém quer festa de criança, de Pai ttrc ù e ficou limpando os óculos. Quando ele, quer tempo pra pensar, e tira e fica limpando os óculos. Ouviu, pelo menos ele dùviu até o fim o que eu faiei. Colocou os óculos, devagar. - Eu vou pensar, Gustavo. Vamos ver. E no jantar, a mãe ainda sem me olhar na cara, só passando a comida. Eu grudava os olhos nela e no pai. Vai, mãe. Fala, pai. Avó acho que nem sabia de nada, ou pelo trenos fingia que não sabia. 1m século depois, na hora da sobremesa: - Uma festa só pra amigos... mas quando vai ser? Eu, gaguejando e torcendo o guardanapo, repeti tudo de novo, "Dia 25, juntar os aniversários, só para gente da escola". Pai olhava pra Obâa-chan, que tomava missâshiru, ela toda noite toma sopa, e até eu me servi de missâshiru, quem sabe ajudava. Depois ele olhou pra mãe, ela desviou o rosto e pegou o pudim de sobremesa, se serviu e foi falando: - Dia 25 é sábado? Podia no domingo avisar a Adelaide, tipo almoço, pelo menos convidar eles. E no sábado o Gustavo ia na festa dele - confirmou meu pai com os olhos. Pai bem quieto, fez só o gesto de erguer as sobrancelhas. Se não era "ótimo, maravilhoso", pelo menos não proibia. Que alívio. OK, OK, ia ter minha festa. No domingo, que ..aparecesse o bairro inteiro da Liberdade em casa, que se dane" _mas que MINHA festa saísse no sábado. Tava tão nervoso que mal conseguia empurrar o pudim garganta abaixo, quase ia explodir. Mas ganhei. Não posso dizer que foi uma vitória assim tão grande, mas deu certo. Como é difícil conversar com eles, será que nunca eles vão entender? 22 de agosto Domingo. Um frio de doer nos dentes, mas hoje de tarde assim mesmo eu fui até a casa do Samir, a gente ficou de olhar a garagem e decidir a arrumaç o. Eu fiquei desde manhã, todo contente: até parecia que ia encontrar namorada (Deus me livre! O Samir? O Roger? Blááá). A mãe foi levar Obâa-chan até a casa de uns conhecidos, lá na Aclimação, e até me deu carona. Uma ajudona, né? Ah! Pensa que eu não conheço minha mãe? O que ela queria mesmo era ver onde ia ser a tal da festa. Vai ver, pensava que era um cortiço. Pela cara dela, vi que aprovou a rua residencial, o baita sobrado onde mora o Samir. - Quer entrar? - eu falei, só de sacanagem. - Não, não. Não demora, ha? Amanhã tem aula. E eu voltei só agora, e já é tarde mesmo. É que o tempo passa superdepressa, com tanta coisa pra arrumar e mexer e conversar. Mas mesmo já sendo mais de onze horas, nem pai nem mãe deram bronca. Só estavam lá vendo tevê, a mãe ainda perguntou se eu queria um leite, e só. Eu, preocupado se. vinha bronca e tudo bem! Agora deixa apagar o abajur antes que o Pedro acorde. É bom nunca abusar demais da sorte. 49 Hoje apareceu um cara disposto a comprar o blusão de couro. Eu sou uma merda pra negociar, já ia até aceitando o que ele queria pagar. O Samir percebeu que eu ia fazer bobagem - era hora do intervalo, o cara que queria comptar oo casaco é do terceiro colegial, pinta de malandro - e chegou perto da gente. Quando o cara viu o tamanho do Samir, já ficou menos metido. Olha al, é couro do melhor. E nem foi usado, pelo menos eu nunca vi o japa aqui usando isso - pegou no casaco, revirava os bolsos, conferia o zíper. - Quanto vale? O cara deu o preço dele, o Samir caiu na risada, me deu um tapinha no ombro - O Gustavo, ele pensa que a gente é trouxa! Escuta aqui, meu, o Gus tá-vendendo a própria roupa pra fazer uma festa de aniversário. Se é pra dar de presente, eu falava pra ele levar pra asilo, porque mixaria não. O dobro ou nada. E foi a maior sessão pechincha. Terminou com o cara aceitando um aumento de 50% no preço, e ainda ganhou do Samir "Pelo menos você fica convidado pra festa. Aproveita e toma algumas a mais pra descontar o dinheiro". Peguei o cheque, uau! Era o que faltava pra encomendar salgadinho. Fiquei meio comovido, era engraçado, nós três nos ajudando assim tão bem. Samir chamou o Roger, que se aproximou mastigando um sanduíche. - Que foi? - Olha que bonito - o Samir puxou o cheque da minha mão, mostrou pra ele. - Salgadinho de montão. O que faltava pro bufê. - Hum-hum ele falou de boca cheia Do Gus? - Isso aí. E ele ia vendendo o casaco por bem menos. Se não sou eu... E o Roger começou a gozar dele. - Tinha de ser turco, esse cretino. Se não fosse, era judeu. 50 - E daí? Fazer negócio e isso aí, não tem de perder, não. Japonês não sabe negociar, tem de apelar pro turco. A gente riu, o Samir não se zangava de ser chamado de turco? Pra falar a verdade, nem eu de ser chamado de japonês. -~ 25 de agosto Nunca pensei que o aniversário botasse tanto fogo no pessoal. A gente avisou a classe inteira ontem, mas uns e outros já sabiam, então o buchicho ficava maior. Tinha os invejosos, como não podia faltar. O Tadeu tentou jogar merda: "Bailinho? Bailinho é coisa de careta. O negócio e metal, pauleira" Mas o Samir também não deixou por mentis: "Não precisa ir, se acha que é careta. Mas azar o seu. Vai ter som de todo tipo". E se apareceram os invejosos, também teve muito bacana que prometeu ajudar. O Edu ficou de emprestar o som, ele tem uma aparelhagem quase profissional, com gravador de cartucho e tudo. E tem umas vinte fitas já selecionadas, ficou de gravar mais algumas. A Bete prometeu um grande desconto em bebida, no atacado do pai dela, se a gente quisesse. cO, se a gente quer! A Cláudia, eu fiz questão de convidar especialmente. E tive até essa coragem: "Cláudia, você vai ser o meu presente. Isto é, se você for". Ela riu, saída da aula, já ia entrar no carro da mãe e só falou: "Claro que eu vou. Esta festa promete um bocado", e me deu um beijo no rosto, delicioso, incrível beijo, o nariz encheu de bolinha de suor e eu fiquei fazendo tchaaaaaaau com a mão, um baita tempo. 27 de agosto Até aqui em casa, no final das contas; a minha euforia está contagiando o pessoal. Não que pai ou mãe vão dar o 51 23 de agosto braço a torcer, não é isto. Mas de tanto eles ouvirem meu papo no telefone, de tanto eles me verem pesquisando preço de bufê, indo na casa do Samir pra ver limpeza (até pintar a garagem! Se não fosse pela festa, nem pagando eu pintava parede), que sempre acabam por ficar mais animados. - Vocés é que estão vendo dinheiro, mas se precisar... não está faltando, o que... Aproveitei e dei uma facadinha no velho. E na mãe, dei uma chorada pra roupa nova. Ela aceitou, mas depois tentou barganhai - Se vai taaaaanta gente assim, por que você não fala com seu primo, o Valtinho? Ele também é moço, solteiro... - Ah, máe. Não dá.. Vai só pessoal' da escola, se eu convido o primo, ele.n o conhece ninguém, fica o tempo todo grudado em mim. Não, não. E só quem se conhece. Ela, acho que. ainda não acreditava tanto assim. - E a família de seu amigo; Samir, não é isso? E na casa deles, não vai ter parente, coisa. . . - Vai ser na garagem, mãe. Isolada da casa, não vai ter parente. E se tiver, nem vão ficar na festa. Mãe o assinou um cheque pra roupa, ainda pensando se valia a pena fazer mais alguma chantagem. - Quer que eu vá junto, pra comprar a roupa? - Não, mãe. Eu vou numa loja que o Roger falou, não é careira, mas só tem coisa jovem. - Jovem, jovem! Vé lá, não aparece aqui ridículo, roupa de kurombo, de preto. Todo de roxo com abóbora. Roxo com abóbora era o máximo que minha mãe podia imaginar de horroroso. Se soubesse que até anda na moda... 31 de agosto E aconteceu. Alguma coisa dentro de mim dizia isso desde o começo, o pavor; pavor não, a tragédia. A Tragédia 52 vinha correndo atrás de mim, e coma sempre veio e tinha de aparecer, tinha. E foi hoje. Logo cedo, a segunda aula mal tinha começado, apareceu o bedel na porta: - O aluno Gustavo Muramatsu. Telefone na diretoria. Pode pegar também o material. Se eu fiquei gelado ou quente quando ouvi isso, eu não sei. A classe ficou quieta-quieta, como se eles também tivessem sentido a Tragédia entrando pela porta, falando pela boca do bedel. E eles, que sempre gozam, "Esqueceu de pagar? "Vai ver é suspensão", não, nem isso, ninguém falou. A cara séria, eu mal olhei uris e outros, só dei uma olhadinha com o rabo do . olho pra Cláudia, ela também séria, o professor fechou a porta atrás de mim e os corredores tão compridos, os sapatos do bedel fazendo barulho na minha frente, eu nem perguntei o que era, eu ia atrás dele como se fosse um preso, ou como se andasse por um lugar completamente desconhecido, a escola não fosse a minha, a cidade, as paredes, o mundo fosse outro. Fiz um sinal de cabeça pro diretor, ele me apontou o telefone. Eu: Alô? Era meu pai. A voz dele vinha de longe, longe mesmo, e eu senti assim que ia ficando cheio de vazio, se é possível isso, mas fui ficando lotado até o último fio de cabelo com vento, com vazio-vazio-vazio. - Gustavo, foi a Obâa-chan. Vovó está no hospital. Ficou doente e veio pro hospital. Agora escute, escute direito, Gustavo: passa em casa, pega as roupas dela, pede pra empregada ajudar e vem pra cá agora. Ela vai ficar internada. Anota o endereço. . Eu não fiz pergunta, era uma ordem, daquelas ordens a que não se pode responder, não pode perguntar, o vazio-cheio me fazendo segurar muito firme a caneta que o diretor me passou e com letra muito firme anotar o endereço e colocar o telefone no gancho. O diretor ainda disse "Se você quiser, 53 peço pra alguém levar você", e eu respondi, muito sério inda, que não precisava, eu morava perto e depois pegava E eu saí. Eu saí, o vazio-cheio dentro de mim o tempo todo, a cidade inteira parecendo estranha, uma cidáde fantasma, mesmo que todo mundo corresse pela rua e os carros também e fosse hora do rush, mas estava tudo vazio, porque EU era o único vazio, o único tão machucado. E me pareceu louco, muito esquisito, porque parecia uma obrigação que todo mundo estivesse triste e vazio como eu, "Obâa-chan no hospital", na minha cabeça, a cada passo que eu dava - e se ela morresse? Me bateu o frio, a faca, cortando o vazio todo - e se ela morresse! - Gustavo... Dinalva de olho vermelho, toda nervosa, na porta de casa. Entrei devagar, eu não queria perguntar, não queria saber o que era, eu rinha uma missão, e de repente essa missão era o que podia existir de mais importante. Só falei "Vou pegar a roupa de Obâa-chan", e subi pro quarto. Ela ainda perguntou se eu queria um café, eu disse que sim e fui subindo as escadas, enquanto a Dinalva ia pra cozinha. No quarto dela, não deu mais. Não deu mais, e agora de tarde, escrevendo tudo isso, eu estou chorando de novo. Merda-merda-merda, estou chorando de novo, e como é que dá pra escrever tudo que a gente sente, assim? Chegar no quarto dela, cada vez menos eu vou ali, eu visito ali, o quarto dela. Foi abrir a porta e sentir o cheiro de incenso, e antes mesmo de procurar roupa eu fui direto pro Butsudam, o santuário, acho que é budista, onde vovó reza tanto, e vi o incenso pela metade, "Coisa da mãe", eu pensei, porque ela ou mesmo o pai, acho que acenderam o incenso e devem ter rezado pela saúde de Obâa-chan, antes de saírem de casa. E o cheiro de incenso, a comida na frente do Butsudam, que Yuki troca todo dia, em memória do avô Eiji, e o dryuzu, o terço, ali perto. E vejo um frio, aquilo era 54 táb catedral, tão misterioso, e se de repente fosse eu, ou papai, que tivesse de pôr comida pela alma de vovó, pelos antepasssdos? Eu tinha antepassados, nunca pensei nisto, mas Obâachan era meu passado, era aquele Japão de que eu nem queria saber, mas era: E o retrató do Imperador, perto da cama, que ela tanto admira e- eu tanto brigo com ela, "por essas bobagens". E como cheiro de incenso o tempo todo no meu nariz, abrir a camiseira, que coisa louca, mexer nas roupas de Obáa-chan,'nao eram só as roupas, era a vida dela ali dentro: separar camisola, blusa, vestido e ir achando o ôbi, a faixa do quimono,-meio comido de traça - roupa do casamento dela? Um livro em japonês, velho, com um desenho de moça sorridente logo na capa; uma flor murchinha é amassada debaixo do livro. E olhar pro -outro lado, o olho já cheio de lágrunae reparar naquilo que a gentervê todo dia, mas nunca repara, o zôori, o chinelo palha, que ela sempre usa, embaixo da cama. A cama, desarrumada, a velha Yuki estava dormindo ali, e podia nunca mais acordar, e eu fui ficando mais e mais comovido, revirei outras gavetas, lenço, calça, remédio, passaporte amarelado, um punhado de fotografia preso com elástico; abri o pacote, ir olhando: eram parentes do Japão'e nós, o papai Bernardo e tio Kenji, ainda no tempo de colégio; casamento de tia Adelaide, já na igreja católica; os primos Válter, Carlos; foto do Pedro quando era bebê e eu, naquela fotografia de cinco anos atrás, quando pesquei um pintado de três quilos e eu ria, eu lembrava daquele dia, a avó também, era tão doido, tão maluco pensar como ela gostava da gente, como ela podia querer demais a gente, e eu fui chorando-chorando, de mansinho, só lágrima muito quente descendo pro queixo, apertei a boca, apertei os olhos, as lágrimas pulando dos meus olhos até os óculos pararem elas, e fui soluçando e fui mordendo, porque ela gostava tanto da gente, eu era tão pouco paciente com ela, e como é que podia? Como é que eu era tão egoísta, mas no fundo da minha cabeça eu ficava com outro pavor e aquilo tinha ficado lá, latejando, desde que o bedel apareceu na classe, eu enfiando esta idéia besta bem no fundo da cabeça, mas a frase, só uma frase "E o meu aniversário?" cutucava, martelava pra sair, ` E a festa?" e eu esquecia de novo, e vinha de novo a idéia, como se alguém falasse comigo: "Se avó morre tem festa?" - sua besta, sua besta, será que existe alguém tão egoísta, ingrato e safado como você? Porque é nisto que eu ficava --- e EU FICO - pensando, e ver que Obâa-chan gosta tanto da gente, e eu sou um idiota, ela no hospital, e se ela morre e sabe lá se volta. 31 de agosto Parei de escrever antes porque ensopei toda a folha, comecei mesmo a chorar. E depois, papai chegou do hospital. Deixa resumir: Obâa-chan teve um princípio de infarto, começou a sentir dores, eles levaram logo ela pro hospital e agora ela está na UTI. Fica lá pelo menos mais 24 horas. Nunca vi papai desse jeito. Mãe está do jeito dela, ela já é nervosa e, quando tem alguma coisa séria, não consegue parar por um minuto: vai, volta, pega uma coisa, esquece outra, liga tevê, desliga, vai até a porta, o telefone, a cozinha e fica botando todo mundo irritado. Papai, não. Fala baixo, sério. Age devagar. Ele só parece mais alto. Reto, tão reto com as costas e tão duro com os braços, parece que ficou mais alto. Falou, falou as explicações do médico, falou que por enquanto não se sabe se é preciso operar, falou tudo. Depois olhou-bem pra gente - não sei, me pareceu por um instante que os olhos dele estavam vermelhos também - e deu de novo as drdens, do mesmo jeito que de manhã: - Amanhã o Pedro vai pra escola. A Dinalva toma conta de tudo, leva ele para a escola. Você - falou com mamãe - vai comigo até o hospital. Já avisei na firma que eu não vou. E você, Gustavo - falou comigo - fica aqui em casa. Tio Kenji chega amanhã cedo. s 56 57 São três horas, madrugada, desde as seis da manhã eu estou de pé, mas parece que o dia desapareceu, que não fiz nada, o sono não existe, minha vontade era continuar escrevendo; era ir até o santuário e acender outro e outro incenso, se é que é verdade, mas pedir que este dia não existisse, tudo isso fosse um grande pesadelo, não quero chorar nem ficar triste, o Pedro dorme que e um cavalo, a casa está quieta, e amanhã eu gostaria de levantar com Obâa-chan mexendo nas panelas e tudo fosse um dia, um sonho, um pesadelo. 1.0 de setembro Acordei com se eu viesse do fundo de um poço, um poço tão esçuro, e quando abirisse os olhos a luz me machucasse a vista, sabe. E de repente, estava diante de tudo aquilo outra vez. Não tinha sido pesadelo. Tio Kenji e tia Rosa chegaram lá pelas oito horas, papai e mamãe já tinham saído pro hospital. Foi Dinalva quem me acordou, a cara de tia Rosa atrás dela, um choro gritadinl o como se ela forçasse pra mostrar dor, uh-uh-uh e um "Oh! Gustavo" e apertava os dedos, eu nem sabia o que falar, a avó morreu? Foi isso? A avó... - Obâa-chan! - eu gritei. - Tudo bem, Gustavo - tio Kenji logo atrás dela. - Seu pai já foi pra lá, ela vai ficar boa. Vai sim. O pesadelo continuava. Mas vó Yuki viva, ela ia ficar boa, tinha. Depois foi correria, o Pedro dormiu até as onze, eu fui tomar café com os tios, Carlos não pôde vir, provas na Faculdade, chegava no fim-de-semana, como é que foi? O que eu sabia? Falei pouca coisa, no hospital a gente nem podia chegar perto de Obâa-chan, e eles. foram também pro hospital, eu continuei aqui; aqui, guardando o quê? Fazendo o qué? Queria ir também, mas eles acharam melhor alguém ficar, pra atender telefone, alguma emergência, buscar alguma coisa. O pior é ficar esperando, esperando o quê? O maldito telefone não tocou. A casa quieta-quieta, a Dinalva nem ligou o rádio a manhã inteira, eu também, nem conseguiria ligar tevê, som, nada, porque dá a impressão que qualquer coisa que lembre uma quarta-feira normal e tranqüila não pode existir, o mundo lá fora não 'existe, tem só _ minha avó, minha Bâa-chanzinha, doente no hospital, a nossa dor e eu, guardando o quê, aqui dentro, sozinho? Sofrendo-sofrendo-sofrendo... 1.° de setembro Mamãe e tia Rosa vieram almoçar logo agora, papai e tio Kenji ficaram no hospital. Conseguiram pelo menos ver vovó, na UTI. Mas ela estava dormindo, só deu pra ver. - O médico falou que está melhor. Acha que amanhã já pode receber visita. Eu mal comi, tia Rosa e mamãe também, só o Pedro é que almoçou bem, e eu fiquei com uma bruta raiva dele, de repente era como se ele fizesse algum sacrilégio, comendo igual a um cavalo e com aquela cara animada, parece piquenique, novidade, o quê? Mas não briguei com ele. Eu quase desprezava o Pedro, por ser tão criança, tão bobo. Não entender nada do que a acontecendo: idiota, será que ele não pensava que vovó podia morrer? E eu? Não pensava na festa, cretino? A festa, a festa. Vontade de bater na minha cara, cuspir na minha cara. Agora de tarde o telefone tocou pra diabo. Ligaram da diretoria da escola, eu expliquei tudo, direitinho e tal. Se ofereceram pra ajudar, até falaram em abonar minhas faltas. e 1.0 de setembro 58 59 Ligou um amigo de papai, o Nélson. Também ofereceu ajuda. Ligou Jorge, que também é sansei. Lá da minha classe. Claro, como bom japa que é, cê-dé-efe, falou que me passa a matéria atrasada. "Para eu não me preocupar." Idiota. Acha que estou morrendo de preocupação poí dois dias de matéria? Ligou a- Claudinha. - Gustavo? Aqui é a Clau. Que coisa, hem? Sua avó está melhor? Falei tudo, sei lá. Tipo relatório. Cópia do que eu sabia. - Ai, que chato... o ano passado minha mãe ficou internada. Apendicite. Foi horrível, eu... bem, a gente se preocupa, né? Quenga anos ela tem? Eu falei: 78. A Clau fez um "Aaaaah" cheio de significado, será que ela também podia pensar coisa do tipo "Já está velhinha. É nesta que bate as botas?" Não, a Claudinha ligou, poxa. Está preocupada, puxa vida, eu precisava aproveitar a chance, eu... - Sabe, eu não sei se vou amanhã na escola. Esto precisando de mim. Você me faz um favor? - Claro, claro. - Copia a matéria pra mim. Eu pego com você, depois. E se tiver alguma dúvida, se você puder explicar... eu vou na sua casa, sei lá. - Tudo bem... eu não sou assim tãããããd boa aluna, tem matéria que eu mesma não entendo direito, mas tudo bem... 1.0 de setembro De noite, quem ligou foi o Rogério. Mas ai, foi uma merda. Papai e titio voltaram lá pelas oito horas, o médico dispensou eles. O período critico tinha passado, 80% de chance 60 de recuperação. Parecia que não era desta vez que a velha Yulci iria embora. Um clima mais leve, mesmo assim a canseira nos olhos de todo mundo. Só: o Pedro, feito um bobo, correndo pela casa com patins e assistindo. tevê. O resto, todo mundo na copa. Tocou o telefone. Um olhou pra cara do outro. Meu pai levantou, decidido, a gente se perguntando por dentro: "Notícia ruim?", a voz dele do mesmo jeito das ordens: - Alô? E voltou pra mesa, "É pra você, Gustavo. O Rogério". E eu levantei, ainda vi a cara que minha mãe fez, fui até o telefone e ouvia o que ela falava pra meu pai: - Só falta Gustavo vir com história de festa. Tudo gajjin, fazer farra - e foi contando, do pior jeito possível, pros tios, sobre o baile de aniversário, e eu ouvia o Roger com uma orelha, a outra ardendo de ouvir o que eles falavam. Foram as coisas de sempre, se precisava de ajuda, se tudo bem, quando eu ia pra escola, e tal. Cheguei na mesa, a conversa parou. Sentei. Todo mundo calado. Também não disse nada, sobre o Roger. Eles lá iam entender? Será? Será que algum dia na vida eles vão entender o que é um amigo? 2 de setembro Hoje foi um dia supercorrido, só agora consegui ficar sozinho. De manhã fui fazer a feira pra minha mãe, pagar a conta de telefone no banco e pegar um novo talão de cheques pro ;meu ,pai. No almoço, tio Kenji chegou todo animado e disse que vovó já pode receber visitas. Fui com ele pro hospital, de tarde. Sabe, eu ficava alegre, superalegre, sentado ao lado do tio Kenji, que dirigia o carro de mamãe. Eu tinha umas idéias malucas, do tipo comprar flores, levar bombons pra vovó. Era 61 como se não bastasse eu falar, coisa assim "Gosto da senhora." mas eu tivesse de mostrar isso, quem sabe com as flores, c+om os doces. Mas no-fundo-no-fundo, na minha cabeça, tinha também uma esperança de que tudo aquilo fosse um - sonho ruim, perto do final, e que eu acordasse logo e logo descobrisse -que Obâa-chan estaria em casa, fazéndo as coisinhas dela, e se tudo voltasse ao normal, minha festa de aniversário saísse e a vida toda entrasse de novo nos eixos. Yuki branquinha e sem dentadura, lá no fundo da cama, o braço furado por soro, o cabelo amarrotado atrás do rosto. - Niï-ch t - e sorriu. Devagar, simples, mas sorriu. Meus olhos vermelhos, as lágrimas ficando presas na beirada dos óculos. - Obâa-chau - e o que se pode dizer? Ela me olhava de um jeito, mas de um jeito... Saudade? Alegria? Carinho? Nunca-nunca ninguém me olhou do jeito que vovó fazia, e ela me estendeu a mão, segurou na minha mão, a mão dela era fria e não apertou, que vontade de falar, perguntar: sobre o Japão, sobre os sentimentos dela, sobre as fotografias - a gente era tão importante assim, para ela? Eu, na pescaria? O Pedro, de bebê? Os tios? Mas eu ficava feito bobo, incomodado e alegre segurando a mão dela, e vovó me perguntou da escola. - Não fui - respondi. E me passou uma bronca: ela contente de me ver, mas não era certo. Precisava ir, não podia perder o ano, ela já estava bem, pra que tanta preocupação, ia logo pra casa... E agora estou aqui em casa, ainda é cedo, dez horas. Mamãe vai passar esta noite com vovó no hospital, amanhã fica tia Rosa no quarto. E papai já me impôs a escola amanhã. São dez horas e pouco, e preciso dormir. Acordo cedo, a vida continua, e o desgraçado do Pedro está chorando porque quer ver o filme de televisão até o fim. Boa noite. 62 Hoje eu fui a atração da classe. Todo mundo queria saber por que eu faltei (os que não sabi n). Quem sabia, queria notícia da minha avó. E eu me senti, engraçado, meio alegre, porque de repente eu ficava importante, mesmo que fosse por um motivo ruim, mas era eu que tinha vivido uma experiência diferente, marcante. E ficava lá, de cara séria, repetindo tudo que eu ouvi dos meais pais, detalhes técnicas sobre infarto, ênfase na ajuda que eu precisaria dos amigos, sobre as matérias que perdi. Samir chegou pra mim no recreio: - Olha, poxa. Escuta, Gustavo. Sabe o que é, eu - ele olhava pra baixo, pra cima. Gaguejava. Rogério de olho na gente, lá do café. Desviou os olhos quando percebeu que eu olhava pra ele. Samir continuou: - Escuta, Gus. E superchato falar isso. Eu... bem, o Roger e eu - ele olhou pro Roger. Fui gelando. Eles iam me tirar da festa? Era isso? lam ntar se eu ia ou não ficar na festa, é isso? O frio-frio na milha barriga, tinha acabado de comer um sanduíche, que ficou revirando e voltando na minha barriga. O Samir respirou fundo, bem fundo, olhou de novo pro Roger, que fingia não ver a gente: -- Bom, a gente ficou preocupado, Gustavo - e aí ele levantou os ombros, voltou a me olhar bem na cara, a falar sem gaguejo. - Sua avó já está melhor, é isso? Você acha que ela volta logo pra casa, tudo bem? E eu repeti pra ele aquele discursinho que já sabia de cor, o estado de saúde, os cuidados com infarto, os detalhes técnicos sobre cardíacos. Ele ouviu muito sério e concluiu: "Tudo bem, então. Se precisar.. . ", e eu vi o Samir indo depois até o Roger, os dois gesticulando, e, bem, se ele ia dizer alguma outra coisa, mudou de idéia. Se era pra perguntar da festa, eu também não saberia responder. Graças a Deus, ainda tenho amigos. Eles não iam me abandonar numa hora dessas. 63 3 de setembro 3 de setembro Agorinha mesmo chegou o Carlos. Vejo de avião, porque segunda-feira ele tem de estar em Belo Horizonte, novas provas na Arquitetura. Não parecia tão preocupado, nem demonstrando dor, como tia Rosa. Vejo do mesmo jeito de sempre. - Fala, Gustavo. Muito corre-corre por aqui? - e foi comer um sanduíche, abriu geladeira, se serviu de uma cerveja. O resto da família ainda no hospital, até o Pedro conseguiu uma permissão pra ver vovó. Gozado, mas se mistaravadentró de mini um contentamento de encontrar de novo meu primo e uma sensação de raiva, irritação, porque ele deveria estar mostrando dor, e não, ele ficava bebendo cerveja com a mesma cara animada de sempre. Me lembrou o Pedro, não sei por que, mas uma coisa infantil; ou era maliciosa, ruim? - Quer um copo? Major tentação de aceitar, mas ergui os ombros, do jeito que vi meu pai fazendo esses dias todos e falei, solene: - Não. Ele encheu de novo o copo, enfiou a cerveja na geladeira. Sentou na mesa da cozinha, mastigando o sanduíche: - e... a Yuki. Tá com 78 anos, né? Será que vovó chega nos oitenta? - Claro que chega. Escorria gelo do que eu falei. Carlos ergueu os olhos, deu um quase-sorriso. Ele não se importava com vovó. Ou ele era meu cúmplice, por isso não usava a "máscara da dor" comigo? Eu mesmo, um grande sem-vergonha, não tinha pensado na festa o dia inteiro? Hem? - Senta aqui, Gustavo. Vai. Ou você vai ficar de pé o tempo todo? 65 Sentar eu sentei. Mas a conversa não foi mais longe que isto. Agora ele foi tomar banho, estou ouvindo o carro na porta, devem ser os tios. É, sim. Já ouvi os gritos do Pedro. Acho que ,-. vou ter jeito de escrever mais, hoje. Carlos dorme no nosso quarto. Tchau. 5 de setembro Ontem o dia foi tão cheio que nem deu pra escrever. E so agora, pra; lá de meia-noite, com o Pedro dormindo e todo mundo dormindo, que eu consegui acender o abajur e escrever, depressinha.., . Não dá pra contar tuuuuudo. Ontem cedo chegou tia Adelaide, não veio com o marido nem as crianças, eles moram longe, e o mercadinho deles abre no sábado até tarde. Então fomos todos visitar vovó no hospital, e como era muita gente, dividimos em duas turmas de visitas. Primeiro entrou tia Adelaide e a família do titio, eles resolveram voltar pra Belo hoje, junto com o Carlos. Depois fomos nós. Eu queria matar o Pedro. Ele tava mais interessado na cama sobe-desce do que na vó Yuki. E só falava abobrinha, meu Deus: se a comida do hospital era boa, se o soro não doía no braço dela, coisas assim. Ela respondia, e até bem alegre. Eu queria esganar o Pedro, mas, no fundo, acho que não fiz perguntas melhores que as dele. Bom, depois que voltamos, não consegui muito tempo pra falar com o Carlos. Ele foi comprar cigarros e perguntou se eu queria ir junto. No caminho, perguntei da Karen, ele falou que tudo bem. Não tive coragem de perguntar se eles iam mesmo "juntar os apus" no fim do ano. E hoje, a gente foi no hospital de manhã, depois almoçamos num restaurante e levamos os tios até o aeroporto. O idiota do Pedroo imitou avião o tempo todo, eu ainda vou rachar a cabeça dele em duas, juro que vou, e tia Rosa me pediu muita paciência, falou que eu., era sério, ajuizado, estava ajudando bastante e tal. O Carlos botou uma cara engraçada, o tempo todo que ela falou isso, e eu percebi: tudo aquilo que ela me elogiava, no fundo, era pra ferrar o meu primo. Mas ele não pareceu se importar muito. Tia Adelaide também foi embora agorinha de noite, a gente levou ela .até a rodoviária. Depois nós voltamos, -e a mãe, meio sem jeito no começo, depois até mais confiante, ligou a tevê no Fantástico. Estes dias todos a gente sem tempo, depois sem jeito de ligar a televisão. Mas primeiro ela, começou a assistir.. A Dinalva apareceu logo em seguida. Quando pai sentou na sua poltrona favorita, eu sentei tam= bém no meu lugar. É quase igual de antes, menos pela poltrona vazia de vovó, onde ninguém teve . coragem de sentar. Está esperando por ela, é dela. Era quase como se a velhinha também estivesse conosco. 8 de setembro Que bom. Que alívio. Que alegria. Foi o seguinte: fui pra escola, e tal. De tarde, eu e mamãe fomos até o hospital. Papai hoje foi trabalhar, só agora de noite ele ia passar no hospital. Foi o seguinte: vovó Yuki parecia melhor, tinha colocado a dentadura e penteado os cabelos. Primeiro a gente falou o mesmo de sempre, se ela estava melhor, como que eu ia de escola. E pela primeira vez, ela perguntou pra MIM, pra mim mesmo: - Nü-chan, logo, logo, aniversário? Eu não sabia se ela falava daqulcla festinha careta que a gente faz todo ano, ou se ela sabia e perguntava da MINHA festa. E a dúvida: e se eu pensasse que era a careta e confirmasse minha desistência no baile; ou se eu falasse que ia ter 66 67 o baile, e ela ficasse ressentida comigo, tipo "Eu aqui morrendo e esta besta comemorando?" Debaixo do braço, a manchona de suor. A cara, vermelha. E a gagueira: Obâa-chan, sei lá. Eu, bom, acho... Vovó foi genial. Mãe logo ali, ouvindo: -- Já sei, já sei. Gustavo e Gustavo-no-tomodati fazer festa na garagem. Nü-chan tem dinheiro? Yumiko ajuda Gustavo? Minha m àe é que ficou sem graça, e como é que se pode recusar alguma coisa pra alguém que quase morreu? Ela continuou: - Yumiko, por que não faz pastelzinho pra festa? Gustavo-no-tomodati pule gostar, ne? - e aí elas danaram a fa ar em japonês. Vovó 4izia pra mamãe fazer umas comidas pra festa, eu entendi ainda umas palavras do japonês delas, um "Sim, senhora" e um "Está certo", e fiquei sorrindo, ali, como se entendesse tudo, e não veio dentro de mim nem calor nem frio, o que escorreu pelas veias todas foi momo, alguma coisa morna e tranqüila. O pesadelo acabou. Acabou. Queria gritar ou chorar, ou me agarrar na mão mole e amarelada e beijàr aquela Obâa-chan, Bâa-chanzinha do meu coração. 9 de setembro Voltei ágora da casa da Claudinha. Ontem eu expliquei pra vovó que eu não ia hoje no hospital, precisava ver a matéria dos dias faltados. E já que ela, o tempo todo, ficava me pegando no pé pra não prejudicar na escola, foi a primeira a incentivar: .ai, yai, ü-chan. Perder ano, no. E eu fui. Não sou bobo, porque se eu dissesse que tinha dúvidas em Física ou Matemática, a Clau podia dizer que ela também era fraca nas matérias. Então eu disse que minhas dúvidas vinham de História e Biologia; ela tira a maior nota nessas matérias. Não dava jeito de dizer não. Foi o de sempre: Nick me babando no calcanhar, a empregada pra-lá-de-chata, a mãe toda emperiquitada e indo pra alguma reunião de mulheres. Mas a Claudinha, numa calça jeans superapertada, e as covinhas de risada, e o chinelo de dedo mostrando as unhas pintadas de vermelho. - E a sua avó, como é que está? Passei a ficha técnica, solene. Ameacei um chute discreto no Nick, quando ele tentou se agarrar na minha perna. Não sei se a Cláudia percebeu, mas botou o cachorro pra fora da sala de estudos, fechou a porta. - E o aniversário, Gus? Então vai sair mesmo. E a gente falou da festa, da escola, um pouco eu elogiei o Samir e o Roger. Ela concluiu, no fim, "Que barato'. E depois, lição. Fui aluno obediente e legal. Só de poder olharolhar-OLHAR pra cara dela, sem nenhuma distração, sem nada pra se intrometer entre nós dois, era algo assim perto do paraíso, de total prazer, de fascinação. Claudinha, Claudinha. A minha festa de aniversário. E faltam apenas dezesseis dias pro grande dia. 10 de setembro "ao sentir esmagarem-se no seu largo e peludo colo de cavouqueiro os dois globos túmidos e macios, e nas suas coxas as coxas dela, sua alma derreteu-se, fervendo e borbulhando como um metal ao fogo, e saiu-lhe pela boca, pelos olhos, por todos os poros do corpo, escandescente, em brasa, queimando-lhe as próprias carnes e arrancando-the gemidos surdos, soluços irreprimíveis, que lhe sacudiam os membros, fibra por fibra, numa agonia extrema, sobrenatural, uma agonia de anr jos violentados por diabos, entre a vermelhidão cruenta das labaredas do inferno." 69 Uau! N ao é um negócio? Não fui eu que escrevi, nem estava lá. Ah! É do livro escolhido pra ler, das aulas de Liteura: O cortiço. A professara tinha falado-falado, disse que Aluísio Azevedo 6 autor do Realismo, falou do excesso de descrição; dos conflito : entre terra natal e país tropical, foi lá com a.aula. O Roger cochichou na minha orelha se eu já tinha lido. Eu falei que não. E ele: "Eu já li. Esse é quente". Quente,' quente - como, quente? E comecei a me interessar mais pela aula, ontem mesmo comprei o livro, é só pro mês que vem.; Imas já quis lera E estou aqui, sem parar, já quase -no fim. Ó trecho gire eu copiei é da página 208, e tem umas coisas no livro que :são.. , olha, um negócio. Não posso di c que nunca h sacanagem, que nunca vi revista masculina, Isto não, eu até vi, mas num livro de escola? Na escola, os livros têm de ser sérios. Pra não dizer chatos. Um saco! Ficar lendo aí Vidas secas, aquela miséria desg açada, aquela fome. Ou A Moreninha, eu achei a moreninha da história uma babaca total, aquele juramento de criança, nunca vi criança fazendo juramento de amor, é mais fácil menino dar porrada na menina do que trocar presentinho com ela. Então, pra mim, livro de escola eram estas drogas, e vem o Roger e fala que "este era quente". Quente e era de escola? Então ficava liberado? Eu podia ler um livro desses .aqui, na sala, na frente da mãe,- da avó, que tudo bem? Era da escola, então podia? Só seì que achei o livro um negócio, estou lendo direto: como todo mundo _se pegava, se beijava, se agarrava naquele cortiço! Parece que lá o pessoal inteiro só pensava em sexo. E eu tive um sonhò maluco, sei lá se era sonho, mas foi dando um frio assim na barriga, eu enxergava não a Rita Baiana dançando na festa, era a Cláudia, com aquelas saias rodadas e os braços nus, e eu me via, melhor, não era bem eu, japoronga, cheio de espinhas, era eu, mas era o Jerônimo do livro, daquele jeito que o Aluísio descreve ele, tão alto, eu era mais alto que o Samir; tão forte, mais forte que o Nando, de Educação Física, peito e barba peluda, tipo assim o Gregór o, de História. E eu ficava lá, forte, alto, um homem; mas inteiramente possuído por aquela mulher dançando, aquela mulher que "soltava um gemido prolongado, estalam os dedos no ar e vergando as pernas, descendo, subinc , sem nunca parar com os quadris", e o coração enfeitiçado e a alma me saindo pelos olhos, e a Rita Baiana, que era a Cla inha, me provocando e gemendo enquanto dançava, e nestee meu sonho - era sonho? - ia imaginando o resto do livro, eu enfrentando o homem dela, enfrentando à faca com a maior valentia, a Cláudia-Rita gritava "Nããããão' , e eu todo ensanguentado, ela me alisando o peito, me curando os ferimentos, como aquele banho que a Rita deu no Jerônimo, e eu estava nu,, como o português estava, e ferido, e ela me alisando o peito, "carícias de fera, carícias de doer, fazendo estalar de gozo", e as mãos dela eram como de fada, "uma vontade desenfreada de senhorear-se no mesmo instante daquela mulher e possuí-la inteira, devorá-la num só hausto de luxúria". Bom, o despertador tocou, não ouvi, acho que misto i o alarme do relógio com os gemidos que a Cláudia fazia na minha orelha, virei e revirei na cama, e acabei molhando a cueca, até sujando o lençol. E fiquei super sem jeito, de acontecer isso. Detesto quando acontece isso. Quer dizer, no sonho é bom, na hora do sonho é jóia, mas depois vem uma vergonha, sei lá, que mãe perceba, Dinalva perceba. E atrasado. Merda. O Pedro dormia, e já eram oito e pouco, puta merda, oito e pouco. Ainda correr pro banheiro, pegar papel higiênico, limpar, buscar talco, ficar esfregando a mancha, o Pedro acordou: - Que é que foi? Nada, nada. Você fez xixi na cama, é? Não te interessa. - Foi sim. Deixa eu vgr. - Sai, daí, seu bostinha! Fora! - e empurrei o Pedro, ele caiu, abriu o maior berreiro ainda bem que mamãe está dormindo no hospital, .não era o inferno, eu mesmo arrumei mini a cama, ele no "Eu vou contar pra mamãe", e eu sem saber se exp*ave, consolava ele ou dava mais uma porrada, de se é pra levar . bronca, pelo menos por um bom Paro, o que foi, Pedro? Erma Dinalva, batendo.na porta. Só faltav essa! E ele: - O Gusta' o me bateeeeeeu! Agarrei os braços dele e falei baixinho: Olha, eu teve nervoso, desculpa, tá? Eu to atrasado pra escola, é isso. Eu trago um gibi pra você, agora pára de chorar e-não conta pra Dinalva. Ele melhorou um pouco, eu falei pra Dinalva que estay legal, a gente já ia descer e me troquei depressa-depressra pegar pelo menos as aulas depois do intervalo. O pe t ha me desfalcou em um gibi, quando ele chegar da escola agóra de tarde vai cobrar o presente. Bom, é melhor do que passar vergonha. Meus tios do Interior vieram com a criançada pra visitar vovó, a casa ficou uma bagunça. Eu acabei dormindo na sala. Mas é até melhor. Acabou de passar um filme na tevê, são quase duas horas da manhã e assisti, sozinho, até o fim. O filme foi legal. Era história capa-e-espada com o Errol Flynn, ele se fingia de pirata pra capturar os bandidos, ser aceito no bando e depois derrotar eles. Mas quem era o chefe dos piratas? Uma moça, uma moça bem bonita, e ele ficava todo apaixonado. Mas a peste da moça judiou à beça, ela, gostava do Errol Flynn mas era durona. Só que no fim, como sempre, o amor venceu, e o filme termina com um beijo, daqueeeeeeeles beijos que duram minutos, tão gostoso... como é que a gente faz, pra dar um beijo de língua, fica passando a língua de um lado e do outro, primeiro é a vez de um, depois é a vez do outro? Ou é só o homem que põe a língua na boca da garota, e ela fica parada? Ou é tudo ao mesmo tempo, e se morde, e se apega : uau. Eu devo estar ficando maluco, só me passa sacanagem pela cabeça, estes dias. Vai ver, porque terminei de ler O' cortiço. Fica triste, no fim. Não gostei. O idiota do Jerônimo anu mais bêbado e folgado que os brasileiros, ele que era todo forte e valente e acaba se 'danandò com a Rita. A Rita, também, saía com qualquer um, Não gostei. E o João Romão, muito do safado, acabou fazendo a Bertoleza se matar. Acho que o, livro tinha de parar antes, quando o Jerônimo e a Rita estavam -se amando, ou a Pombinha ficar com o mando deli Eu não iria nunca terminar um livro com um final triste, se eu escrevesse O cortiço, eu botava tudo muito legal, muito-muita legal. Será que existe nihonjin igual o Jerônimo? Ou só português fica nessa de se misturar com preto, se enrabichar por mulata? Eu nunca vi japonês que larga a vida, vira brasileiro mesmo... eu não quero ser cu-de-ferro, camicase, como o pessoal goza, que se mata pra estudar. Mas também tem umas coisas que, sei lá. De vagabundo. De não ter nenhuma responsabilidade. Igual a outra empregada, que a gente teve: o namorado largou dela com quatro meses de gravidez e foi embora. Nunca vi japonês fazendo isso, não consigo achar certo uma coisa assim. Se, sei lá, por exemplo, a Claudinha ficasse grávida, eu casava com ela, eu assumia tudo, porque ~Se a gente gosta e faz sexo, a gente tem de cuidar. Primo Carlos. Agora que escrevi isso, na hora lembrei dele.. Se acontecesse isso, será que ele casava com a Karen? gale nem gosta da Karen, só quer desfilar com ela, mostrar q, . é_japc nés e é baixinho, mas "liba que namorada linda eu arrunnei?" 73 11 de setembro Hoje foi um dia tão legal! Q que é que meu pai iria falar, se soubesse que o dia inteiro, na casa do Samir, a gente jogou baralho, bebeu cerveja, falou de sacanagem (isto eu conto daqui a pouco) e ninguém ficou me chamando de japoronga, de criança, toas eu era igual o Roger, igual todo mundo? Dez horas da manhã eu já estava tocando campainha da casa dele. E toquei-toquei; só quando a mãe do Samir veio atender, de penh+t ar,- é que eu percebi que eles ainda estavam dormindo. - Bom' dia, dona Sumaia. O Samir.. . Pode entrar. Eu já acordei ele - e me apontou a porta do quarto dele, no andar de cima. Bati na porta, bem de levinho. - Entra, Gustavo. - Oi, Samir - ele deitado, barriga pra cima, só de cueca. - Só não acende a luz, japa. Puta, que horas são? - Dez e quinze. - Hum. E que eu fui dormir tão tarde, ontem... Ele todo à vontade, só de cueca, sem lençol nem nada, me recebendo como se eu já fosse um veeeeeelho amigo, e eu lá, de pé, perto da porta. O Samir é peludo no peito, tem a minha idade, mas já parece um homem mesmo, não é como eu, que mal tenho fio de barba, sou magrinho, só tenho pêlo mesmo na perna. - O negócio é levantar - e ficou sentado na cama, a cara toda amarrotada. - Senta aí. Como é, veio disposto a trabalhar? Na garagem? Mas é. claro. E eu fui falando-faiando. O quarto é suíte, a casa dele é bonita pra diabo, ele disse "Pode ir falando" e levantou, foi até o banheiro, deixou a porta aberta, Samir mij ando e eu super sem jeito, como é que ele ficava tão à vontade, como é que eu podia ir falando enquanto alguém mijava e ainda fazia pergunta "E sua avó? Tudo bem com ela?" Eu comecei a discursar o que o médico tinha dito, e o Samir tirou a cueca - ficou pelado- e pegou outra cueca, vestiu e eu falando. Mas como, eu nunca que ia ficar pelado na frente dos outros, claro que o pessoal` fica, aula de Educação Física e tal, mas eu não, já vou com -a roupa por baixo, mas vejo que uns e outros ficam à vontade, na minha casa ninguém faz isso, só quando é criança e bem criança, e eu ainda fico quase sempre de cueca, é difícil mesmo ficar pelado, até na frente do Pedro, que é meu irmão. - Vamos tomar café? - Samir de short e camiseta, até que enfim. E essa não foi a minha única surpresa, teve um monte. Quando a gente desceu, o pai do Samir é que estava fritando uma omelete, a mãe do Samir tinha ido até a padaria e era tão esquisito, imagine que meu pai ia fritar omelete, nunca. Talvez até fosse na padaria, mas olhe lá. - O leite já está quente. Você quer café ou chocolate? - Eu pego. Acho que também vou na omelete. E aí o Samir atacou a geladeira, preparando uma omeletepra ele, e os dois, grandalhões - o pai dele também é alto pra caramba -, se acotovelando nas panelas, no fogão. Será que eles não têm empregada? Sei que o pai do Samir morou uns tempos nos EUA, lá parece que é difícil arrumar empregada, mas, aqui, o que tem de baiana sobrando; está certo que é domingo, mas e a mãe dele? Os dois dividindo serviço da casa. Depois o Roger chegou, agente foi pra garagem, a NOSSA garagem está cada vez melhor. Eu tinha trazido uns posters, o Roger também. O Samir já tinha até pregado uns, cc motoqueiro pulando fogo e fot de antigas estrelas de Hollywood. - Ah, eu tenho a maior tara pela Marylin Monroe - falou o Samir apontando unia foto sexy da loiraça. 75 12 de setembro - Sei, sei. Só voce - falou Roger! Ela era bem bonita, mas era quase uma sacanagem eu pensar na Marylin Monroe. Só a Claudinha era bonita, só dela eu podia gostar. Misturar outras mulheres era uma espécie de traição. - Ontem eu sal com ela. - Jura? Roger, todo animado, sentou num caixote. O Samir tinha uma risadinha das mais sacanas. - Que ela? - eu perguntei. Iiiiiih, é uma história... tem uma mulher aí, ela é desquitada e tá me dando a maior bola, desde janeiro que ela vem me dando dica. E meio coroa, tem mais de trinta, mas bonita... Deu uma estralada de língua, uma risada. Eu fiquei vermelho, ainda bem que o Samir tava mais virado pro Roger que pra rnirn, na verdade acho que nao queria ouvir, mas o coraçào começava a pular no peito, de sim, de querer saber mais e mais coisas. E ele contou. Contou que a coroa é que tinha carro, eles foram num motel. A palavra, só a palavra motel já me paitcia escandalosa, eu imaginava espelhos, cama redonda, sexo por todo lado. E ele falou que a mulher devia estar no major atraso, cia é que provocou ele, deu uns detalhes, como é que ele podia contar uma coisa assim? Se eu saísse com uma mulher, imagine se fosse a Claudinha?, mas qualquer mulher, eu ia guardar bem pra mim tudo que aconteceu, ficar falando dessas coisas sobre ela, não era certo, eu achava. Mesmo que nem conhecesse a tal da desquitada, não era certo. Mas nao falei nada. O Roger ficava todo aceso e puxava detalhe, como era isso no corpo dela, como era aquilo. Se ela fez isso, se ela deixou aquilo. Eu ouvindo, ora eu sentia minha vara vermelha, ora eu ficava, acho, do mesmo jeito do Rogério, assim o olho brilhando, apertando disfarçado as coxas, e o Samir falou-falou e quando ele parou, ninguém conseguia dizer coisa alguma. 77 Depois de muito tempo, eu só perguntei: - Mas você vai estar, sei lá, namorando com ela? - Namorando? O Gustavo! É transa, é sarro. Ela é advogada; coroa. Imagine se eu quero me amarrar. Mais umas saidinhas C tchau. Namoro eu quero com uma gatinha... - E- por falar em gatinha... O Rogério ia começar a falar, a mãe do Samir apareceu, a gente foi almoçar, a conversa parou aí. Nossa, já é uma hora! Amanhã acordo às seis, eu to ferrado. Tchau, deixo pra contar o resto depois. 15 de setembro Minha avó saiu do hospital. Meu pai foi buscar a velhinha hoje, e eu não sei, todo mundo muito contente. A Dinalva com o radinho no último volume, agora de tarde. O Pedro insistiu tanto que faltou na escola. Mãe colocou um vestido novo, e eu fiquei todo bobo, o tempo todo fingindo que via tevê, mas de ouvido em qualquer carro que panasse por aqui. Chegou. Veio andando, devagarinho, segurandò no braço de meu pai. A velha Yuki. Deu uns passos, parou bem no meio da sala, olhou tudo em volta, como se por um momento achasse que nunca mais ia ver a casa de novo. Eu senti que meu olho ia avermelhando, comecei depressa a falar um monte de coisa, é o meu jeito quando fico nervoso, a Obâa-chan acenava com a cabeça. - Para o quarto, mãe - o meu pai ajudou devagarinho minha avó a ir até o quarto, nós todos atrás deles, ela olhando as coisas daquele jeito, um sorrisinho muito fino, os olhos meio cansados, mas tão brilhantes, muito mais que vendo a casa, sentindo. Sentindo que de novo tinha voltado,, ainda pertencia à família, à gente. 78 - E hoje. E a gente bem podia estrear a garagem, hem? Na hora, todo sonado, nem entendi. O Roger é que se tocou: - Aaaaaah, sei. É aniversário dos três, meu. Não e só o seu. Combinou, tá combinado. O Samir abriu de leve a mochila, mostrou uma garrafa de vodca lá dentro: Pelo menos começar hoje... - e me deu uma cotovelada. , O Roger riu: - Agora? Não é muito cedo? - Então às dez.' Fechado? Eu nem sabia bem o que eles queriam fazer, mas disse que tudo OK. Vi depois um monte de papelzinho passando pelas carteiras, pra cá e pra lá, a Clea virar pra trás e dar risada, um papel sobrou na minha mão: "Dez horas, na esquina do snooker. A gente vai no zoológico". Eram 9h40 e eu já estava lá na esquina. Antes, eu fui telefonar. Ainda bem que só a Dinalva em casa. Eu sou uma desgraça pra mentir, mas empregada é meio tonta pra dar recado, até de noite sempre enrolava melhor uma desculpa, tipo "Fiquei na biblioteca", "Trabalho na casa de um colega", coisa assim. Só eu na esquina. Era lá mesmo? Bateu o primeiro sinal, vi os amigos entrando. Vi a cara do Lin, do Jorge, vi o Marco polonês, vi o Yun. "Cus-de-ferro", me passou pela cabeça. Então, por que eu também me sentia meio humilhado, de ir junto numa farra, quando devia estar na escola? Acabei fingindo não ver os caras. E passaram as meninas. Cíntia e Ana Cecilia, as nisseis. Por que só passava japonês por ali? Só pra que eu ficasse mal, merda? Ou era eu, que só via o pessoal certinho, e nem percebia que havia vagau no snooker, vagau na lanchonete? 7 o do isso passou quando vi quem começou a subir a rampa. Logo quem: a Claudinha. -- Oi, Gus - um beijo-beijo-beijo no rosto. - E o resto do pessoal? - olhou em volta, eu sem saber o que dizer, sei lá do pessoal. Tinha mais alguém? E aí o Samir pintou na outra -Esquina, correndo, sem camisa, todo' suado, ele ria, agarrou- a Clau pela cintura e rodou ela, a Clau gritando "Nããããão, Samir", mas bem que dava risada, e ele estralou um beijo na bochecha dela. o Roger, o Edu e a Clea chegaram quase na mesma hora. Então o Samir deu um abraço tão forte na Clea como tinha dado na Clau, meu peito parou de pular, eu, que tinha olhado pra baixo e pro céu, tão sem jeito, quando ele estava girando o Claudinha, mas tudo bem, era o aniversário dele, quando for o meu aniversário eu também vou ficar tão contente de fazer maluquice e rodar e beijar a Claudinha. - Japa, vambora! o foi tanta maluquice no zoológico, tanta bagunça, dá pra contar tudo, assim? Vi macaco, vi anta, vi leopardo. Sei lá, eu queria mesmo era ver um jeito de ficar mais sozinho com a Clau. 4 - Morta de fome! - berrou a Clea. - Quem é ó cavalheiro que me paga uma coxinha? - Pegar na coxinha? - falou o Edu, fingindo agarrar a Clea - pegar na coxinha eu quero. - Cretino - ela riu. - PAGAR. Quem tem grana? Grana, é mesmo. A gente começava a ficar com fome, o as meninas não tinham quase nada. O Samir se garantiu, adiantou a mesada, mas não ia dar pra todo mundo. O Roger o o Edu com pouca coisa. Eu tinha o dinheiro da apostila de Química, fiquei nessa de dou-não-dou, a Cláudia decidiu a parada: "Eu morro de fome". Lá se foi a apostila. Na lanchonete, todo mundo pediu hambúrguer e CocaCola. O Samir cantou o garçom e veio com um enorme copo com gelo. Ele arrancou da bolsa a garrafa de vodca, abriu e encheu o copo até em cima. Parabéns para mim, parabéns para mim... A gente cantou, o Edu pegou o isqueiro da Clea e fingiu de vela. Ele apagou a "vela" umas duzentas vezes, cada vez que ia soprar, o Edu desligava. O copo de vodca foi rodando. Samir' buscou gelo mais três vezes, o olho e a animação c todo mundo começou a diminuir na mesma medida. Acho minha cara pegava fogo, queeeente... Samir e Roger am a camiseta. Num acesso de coragem, tirei também a a. - Eeeeeeh, viva o Gus! - e cantaram, só pra gozar: O_ japa é bom camarada, o japa é bom camarada... Mais vermelho e sem camiseta. Parece até que eu tinha ata ou algo assim, pra esconder. Se os outros ficavam meio pelados, tudo beni. Comigo, era piada. Mas sossegou. O Edu continuou de camiseta, eu logo falei que "deu frio" e coloquei a minha de volta. Depois a gente foi descansar perto do lago. O Roger falou que ia dormir, se jogou na grama. A Clea sentou perto, o ficou alisando o cabelo dele. Aquela também, quando está a fim... "A Clea não é mais virgem", não foi um papo de banheiro, que eu ouvi? Besteira, ela só ficou alisando o cabelo do Roger. E ele, dormindo. Sobrou a Claudinha, entre três homens. E parece que ela tinha entendido, três homens, meio de pileque, ela é bonita, é bonita mesmo, e legal. O Samir deitou de peito no chão, as mãos segurando o queixo. Eu e o Edu, superanimados, perto da Claudinha, babando com qualquer coisa que ela dissesse. Eu juro que nunca falei tanto, queria mostrar pra Cláudia como entendo de tudo, sou inteligente. Ela falava abobrinha, eu falava abobrinha, o Roger dormiu mesmo, o Samir só olhava a Clau e a gente, e, na volta, sei que o Edu o eu viemos na maior discussão sobre seres extraterrestres, quando eu tava mesmo era doido de vontade de saber do que a Clea, o Samir, o Roger e a Claudia davam risada, no último banco do ônibus. 81 s 80 Acordei mal. Não fui pra escola: Não sei se é resultado do pileque (pileque! Cheguei andando e em cima dos "quatro" pés. Desculpe. Essa é a piada favorita do. professor Glauco). Ou se fiquei chateado, perdi a chance de me aproximar mais da Clau. Ou foi a consciência culpada.: . Olha aí, "Querido Diário" ou o escambau, o negócio é o seguinte: èu fiquei com baita remorso de ter cabulado aula. De ter mentido. De ter enrolado a mãe, "cara tão vermelha... " e super sem jeito quando Obâa-chan chamou no quarto dela e enfiou quatro notas na mão, pra comprar meu tênis novo e eu meió bodeado e idiota-idiota-idiota. Hoje eu não to legal pra escrever. Pra ver ninguém. Eu quero é me enterrar debaixo da terra, com as 4 000 minhocas e sumir. 18 de setembro Sábado, daqui a uma semana - o grande dia! A garagem estava tão arrumada que o pai do Samir até brincava: "Se eu soubesse antes, tinha liberado a casa. Vocês faziam a reforma que eu estou precisando". Assim mesmo, apareci na casa do Samir, hoje de tarde. Nem sei se o Roger ia aparecer, mas, sei lá, tão acostumado a pintar lá toda semana. Eram umas cinco e pouco quando eu cheguei. A mãe dele mandou eu entrar, que o Samir tava no telefone. Ouvi uns trechinhos: - Falou. No dia do aniversário, hem? OK. Tudo bem, não esquenta. A gente conversa melhor na festa. Eu sei... tchau, Clau. O "Clau" nem sei se imaginação, verdade... o coração fez duzentos bilhões de batidas ao mesmo tempo. E se o atem r .:. não, o Samir gosta de loira. Eu ouvi Clau? Foi tchau. Repetiu: tchau, tchau. Ou foi tchau, Clau? Ele chegou, bermuda e camiseta regata. - Tudo OK, japa? Japa, japa? Quem este turco sem-vergonha chamava de pa? Mas só respondi tudo OK. Ele era tão alto, todo espoxtista naquela roupa, todo ricaço. Mas ele já tinha tudo! tinha lá a desquitada dele? Não tinha amigos, monte de tangos? Não tinha umas meninas a fim dele, na classe? Por uè ele também queria a Cláudia? Foi uma merda, a noite de hoje. Primeiro, porque eu botava tão encucado com aquilo que não conseguia puxar conversa. Depois, porque o Samir, fazendo mil e uma voltinhas, disse que tinha encontro com a coroa. Mais tarde e tal, mas não dava pra sair comigo. Me segurou lá até oito e pouco, até o cinema eu acabei perdendo, e me dispensou. E eu aqui, pai e mãe no programa imbecil de tevê, á gargalhada de débil do Pedro, e eu aqui. Não existe nada pior que um sábado à noite com a família, ficar em casa sábado à noite com a família. 20 de setembro Ela chega sozinha, pára na porta. Linda. Um vestido verde, com um decote que dá pra ver certinho aquela cor de madeira lisa que só a Cláudia consegue ter. O cabelo tão liso, tão comprido, dividido de cada lado do rosto. Um pacote nas mãos. Sorri pra mim. - Gustavo, eu trouxe um presente para você, mas não repare, porque é coisa simples. - Cláudia, você não precisava trazer nenhum presente, porque o maior presente do mundo já Chegou na festa. E a Cláudia vai rir, com aquelas covinhas lindas. - E eu posso saber qual é? Eu não falo nada, vou pegar na mão dela, beijar de leve 82 83 os dedos da mão dela. Nessa hora vai estar tocando Overkill, do Men at Work, e a luz negra girando devagarinho. Pegar na cintura da Cláudia, nós dois da mesma altura, e o rosto dela grudado no meu, primeiro a gente vai dançar, ela vai ficar de olhos fechados, eu posso até sussurrar o trechinho "I can't get to sleep/Perhaps it's just my imagination...' e aí até podia traduzir, apesar da Claudinha saber inglês melhor que eu, "Eu não consigo dormir, talvez seja minha imaginação... ~~ - Cláudia, preciso muito falar com você. - Quanto mistério, Gus. Ela ainda vai estar rindo, quem sabe até meio vermelha, de sem graça, porque eu não vou afastar meus olhos do rosto dela, enxergando dentro dos olhos negros e lindes dela: - Cláudia, quando eu disse que o maior presente do mundo já estava aqui... -respiro fundo, faço uma pausa, nós dois dançando, "Perhaps it's just my imagination..." - é voce, Cláudia. Eu te amo. Eu te amo mais que tudo. - Oh, Gustavo! - ela vai querer falar, mas aí eu vóu fechando os olhos e encostando, mais perto, mais, mais ç1 rto, até que os lábios da gente se juntem, e primeiro vou dar um beijo daqueles leves, igual eu vi no vídeo do Rocky, o lutador, ele deu um beijo na moça, e ela estava meio assustada, depois o calor vem de dentro e de fora, a Cláudia vai abrir a boca, eu encosto a língua, ela também... 21 de setembro Ou então podia ser diferente. Vamos dizer que a gente já dançou, assim gostoso, mas eu não cheguei a falar nada. Então, quando a música der uma parada, vou perguntar se ela quer uma bebida, e nós dois vamos subir a escada da garagem até o quintal, de mãos dadas, devagar... ou correndo. É, correndo pode ficar engraçado, mais surpreendente. 84 Nesta hora, ela talvez fique sem graça, eu me aproximo ;Mais, falo rouco, voz baixa, olhos-nos-olhos: - Eu amo você, Cláudia. Queria que você ficasse coquero que você seja minha namorada. Talvez ela olhe de um lado e do outro,, aí eu largo meu ou jogo no chão, dane-se, e me aproximo, quem sabe a coisa mais... sei lá, mais desesperada, paixão: "Eu amo, te amo... ainda fico louco, de tanto que eu penso em você" e me abraço nela, o beijo já vem direto, quente, pegando fogo mesmo.., o copo dela pode até cair também chão, ou então meus óculos; é, os óculos é legal, porque af ela fica preocupada: -- Gustavo, seus óculos... E eu Que óculos, que mundo, que nada, nada. Não existe adaa ao mundo a não ser você, Cláudia. E a° gente se beija-beija-beija até se cansar e dança e uau. Amnda é terça-feira. Merda, airada é só terça-feira e eu acho que fico doido até o sábado! um copo pra ela, outro pra mim. Eu quero fazer um brinde, Cláudia. M sei.- Viva o seu aniversário! Não - e vou ficar bem sério. - Pra mim, este áüo não tem a menor importância. O que é isso, Gustavo! E todos os seus amigos, os ovos... -- Cláudia, eu gastei a mesada dos próximos meses. Eu o blusão de couro, fiquei com as unhas até arrebentadas ~tstto arrumar a garagem. E isto é pouco, eu faria qualquer cio, eu me entregaria aos piores inimigos, eu enfrentava ` uer briga, mas não pela festa, por alguém que é mais Importante que o mundo. Alguém que eu amo. I,! 23 de setembro Agora, eu ia dormir e aí eu lembrei, seu tonto, e se for diferente? Vim escrever aqui na sala, e bom, e se a Cláudia chega sem eu ver, e vamos dizer que vai dançar com alguém? Então só tem um jeito: eu ser mais arrojado. Vamos dizer que ela está lá, dançando com alguém. A música é lenta, eles estão juntinhos. Eu chego e bato de leve no ombro do cara: Dá licença, o aniversariante sou eu. E ainda não falei com a Cláudia. É um assunto importantíssimo! Eles ficam espantados.. A Cláudia: - Nossa, Gustavo. Mas o que... - É uma emergência. E eu só posso contar dançando com você. Ela deve achar engraçado, até. E a gente começa a-dançar, ela daquele jeito que fica, quando está curiosa e eu falo: - É uma doença, Cláudia. Existe aqui neste salão uma pessoa gravemente doente, que não consegue se alimentar direito, não consegue dormir, fica falando sozinho pela c sa, pela escola... e só tem um remédio pra curar esta doença. Porque se esta pessoa não se salvar, ela pode fazer alguma loucura. Pode até morrer. - Nossa, Gustavo. Mas quem é .. . Aí eu fico sério: - Não é exagero, Cláudia. Sou eu o doente... Iüih, que droga! Não é nada disso, quanta besteira. Primeiro, eu não tenho o menor jeito pra ser engraçado. E depois, e se o cara fala que não vai parar de dançar coisa nenhuma, vou ficar lá, feito bobo? Ou dou um murro nele? Também não dá.. E born, vá lá, e se a gente começa a dançar, mas o cara fica sapeando? Besteira, eu lá vou falar na frente dos outros? Não, que idéia cretina. Se ela estiver dançando, eu espero. Uma hora ela fica sozinha, uma hora vai pegar uma 86 Hoje fui reler umas coisas do "Querido Diário", fiquei fingindo que estudava, não consigo fazer porcaria ne a, nem prestar atenção na aula, nem bater papo, nada. Nada. Acho que nem viver estou vivendo, , só fico nessa de esperar o sábado. Na ciasse, quando olho pra Claudinha vem urn negócio na barriga, mas também não consigo falar com ela, parece que qualquer conversa entre a gente só pode vir no sábado. E é amanhã. Na semana toda, eu me pegava con tando as horas, "Faltam três horas pra ir dormir e acabou a terça-feira". Agora faltam duas pra acabâr a sexta. É o medo. Um medão de doido. Tudo tem de dar certo. Sabe assim coisa de azarado, de gauche como eu? A semana inteira eu fiquei nessa: até sábado você ainda pega um resfriado, sua besta. Olha que vai dar diarréia. Olha que vai nascer uma espinha daquelas feridentas na ponta do nariz. Ficava me olhando no espelho: a cara de bobo, de todo dia. Mas nem espinha, nem resfriado. Nem dor de barriga. Tudo certo. Certo demais, quer dizer: se nunca nada dá certo pra mim, será que pelo menos o aniversário? O merda. O Samir tá a mil. O Roger, nem se fala: cortou cabelo, v com roupa mais transada, disse que "ganhou" a paren tada pra antecipar o aniversário dele, tá desfilando com cada pa'l+egal... eu também já comprei a roupa de amanhã. Não-é o abóbora com roxo, de deixar mamãe doida, mas tam pão é nenhum terninho. Tipo meia-estação, mas bem Camisão solto, amarelo-claro. Um jeans daque les macios, dos que já vêm desbotados. A maior grana. A mãe estrilou quando entreguei a nota, mas era promessa, só ficou xingando que se "Era pra desbotar e pisar em cima, e12C~ + então o que eu posso fazer é isto, mesmo: "Hoje aniversário. E meu presente é dançar com você". É, ue pode ser. Menos mal. 24 de setembro 87 mesma fazia isso, não ia pagar pros outros estropiarem a roupa antes". Caretice. Isso só pode ser caretice dela. E hoje é sexta-feira. "Bless, God, it's Friday." Sábado, sábado. Dá pra dormir esta noite? 25 de setembro E hoje: Frio na barriga. É hoje. Escovar os dentes. É hoje. áó tomar café. É hoje. Conferir a roupa. E hoje. Ligar pro Samir. É hoje. Ver tevê sem ver tevê. É hoje. Não alrnoçar. É hoje. Ligar pro Roger. É hoje. Chegaram os salgadinhos e o bolo. É-hoje-hoje-hoje-hoje-hoje-hoje. Uau. Eu vou ficar maluco. Aindaa são só duas e pouco da tarde e fico nessa: tomo banho agora? Daqui a pouco?,Vou pro Samir? Ligo pra Cláudia? Falo com a vó? Brigo com o Pedro? Diacho. É hoje. Dor de barriga? Alegria, medo, paúra? É hoje. 25 pra 26 de setembro Olha, eu vou contar. Vou contar tudo sim, tudo-tudo não me importo se já é de manhã, se pai vem me encher, vou ficar aqui na sala e vou-vou contar. Não vou nem dizer coma foi, não vou nem dar opinião, "Querido Diário": vai ouvindo. Vai, vai. - Eu sou o seu presente de aniversário! -- gritaram Crés punks, logo que eu abri a porta da garagem, e as três 88 foram me beijando a testa com a boca marrom-marrom, e quem é que era uma delas? A Cláudia. Levei meio minuto até reconhecer a Cláudia debaixo dos óculos gatinho, cabelo arrepiado new wave, minissaia de couro preta. E quando eu reconheci, ela já estava lá longe. Corri atrás dela, lógico. - Que é que você disse, Clau? - porque só aí eu entendi, "Sou o seu presente", meu Deus, será verdade? E ela virou, mais alta que eu, com botas de salto muito alto, e deu risada. A boca marrom, eu só consegui olhar aquela horrível coisa marrom que ela passou na boca, e a Cláudia riu mais, bem maluca, tirou os óculos gatinho e colocou na minha testa. Fiquei feito idiota, eu já uso óculos, com o outro na testa, devia parecer um gafanhoto. Ela não falou nada, mastigava chicletes com força, arrancou os óculos da minha testa, o som pauleira-pauleira e foi berrar na orelha do Samir: "Happy Birthday", e ele rodou com ela no colo, eu sou uma besta, hoje eu podia fazer isto e não, de novo o Samir me passa na frente. Ia saindo da porta pra correr até eles, aparece a Ana: - Gustavo, é de coração - dois beijinhos beeeeem de longe, me passa um idiota de um pacote cheio de laçarote, como ela também estava cheia de laçarote, vestido de babado, cabelo todo encrespado... japonesa também, quando quer ficar com cara de boba, resolve fazer cacho no cabelo. E eu, maluco pra correr até a Cláudia, ainda abraçada no Samir, chegando e chegando gente, a maior briga pra arrebentar o papel de presente. - Espero que sirva - ainda na risada tonta, servir, serve, mas que coisa feia! Da Ana, também, só se pode esperar presente babaca, uma camisa xadrezinha daquelas que saíram de moda tem uns três anos. Eu ainda falando "Obrigado", mais um beijinho - ela me enfiou a cara no nariz, não deu pra escapar. "Cláudia, Cláudia", latejava meu coração, e agora eu já podia falar tchau, mas não, tinha mais uma japonesa pra eu beijar, a prima da Ana, mais emperiquitada ainda, e, de novo, os "Parabéns, felicidades", não teve presentinho, ainda bem. Carreguei o presente embaixo do braço, a Clau, cade a Clau? Vi que ela e a Márcia fizeram tchau pro Samir, subindo as escadas até o quintal. Larguei correndo o presente perto do som, Cláudia-Cláudia-Cláudia era o que o rock pauleira do AC4DC batia no ar, na parede, na minha orelha. Lá em cima, ainda percebi as duas entrando no banheiro. Me plantei ali, desta vez elas não escapam. Encostei no muro, respirei fundo. É hoje. Cláudia, presente de aniversário, entre Virgem e Balança; hoje não, virgem não, e eu fiquei vermelho e quente, fechei os olhos - beijar, abraçar a Cláudia, precisava de um jeito de dançar com ela. De punk, mas que idéia: de punk! E daí? De princesa, de fada, qualquer coisa, mas Cláudia! A porta abriu, pulei na frente dela. A Márcia mais atrás, também punkete, ela é gorda e naquela míni.., de novo, a Clau tentou me enfiar os óculos gatinho, não tinha outra brincadeira? Tava cansado de ficar de bobo, com quatro olhos além dos meus, mas ela punha e tirava os óculos da minha cara e falava gritando: - Um tesão de festa, Gus. Quem já apareceu? Quem já apareceu? Todo mundo, sei lá, meio mundo. ELA-ELA-ELA já estava lá, queria mais alguém? E falei qualquer bobagem, a Márcia me pegou pelo braço: - O que é que a gente bebe? É mesmo, eu sou uma besta, nem ofereci nada. Não deixo de ser meio anfitrião, se a casa é do Samir, parte da grana é minha. Fui caçar um chope, no fundo do quintal. O chope demorava à beça, fiquei lá, acabei dando uma força pro Carlão, que brigava pra ajeitar a serpentina. Quando voltei perto do banheiro, três copos de plástico na mão, cadê as duas? Tchau. Fiquei feito bobo, a maior luta pra segurar três copos. Deixei dois no muro, bebi um de uma vez, com os outros dois fui chegando na garagem. 90 91 Uma guerra, gente pra diabo: escada, garagem, quintal. Todo mundo ajeitado, feliz, parece que a classe inteira ficou no maior fogo, umas meninas que eu sempre vi, assim caladinhas, igual a Vera, de repente de calça agarrada, miniblusa. O Válter e a Lia, maior dos beijos, bem no meio da escada. É verdade que eles namoram, mas justo ali? Não dava nem pra pedir licença, quase tropecei nos dois, mas conseguimos passar, eu e meus dois copos de chope. Porta da garagem. Fiquei dando uma geral, lá de cima, luz negra, som do Guns n' Roses e vi: a Clau, maior pauleira, dançando com o Samir. Bebi o segundo copo, fui bebendo, enquanto descia e dava um tempo. - Você não vai dançar? - berrou a Alice na minha orelha. Toda pintada, olho com um baita negócio verdenene, pensei. A Alice, nunca. Chata, cê-dê-efe, baixinha. Beeeeem mais baixinha que eu. E, ainda, usa aparelho nos dentes. Eu me agarrei no copo: - Agora eu to bebendo. E fui-fui-fui. Encostei numa mesa perto, bem perto de onde a Cláudia dançava e fiquei olhando: parece que só a Clau dançava, só existia ela, ali. Maluquice, ela dançava legal à beça, ela levantava os joelhos láááá em cima, depois o cabelo new wave punk se chacoalhando, meia azul-metálicà e as coxas, na míni. E sem sutiã. Dava pra se ver que sem sutiã, porque balançava, e a camiseta de furo, um furo logo ali debaixo do braço, se ela se mexesse mais, quem sabe um seio escapava por ali... chacoalhei a cabeça, eu devia estar ficando de fogo, o copo de plástico esquentaaaaaaaando na minha mão. Trégua. A fita parou, Edu correu pro som, cheguei com o copo. Samir todo suado, a camisa aberta no peito, a Cláudia colocou a mão no peito dele, ele pegou a mão dela e beijou, aí eu cheguei e enfiei o copo justo nesta mão da Cláudia. Ela pegou o copo, falou: - Legal, não é, Gustavo? A festa tá jóia. 92 Eu respondi "Jóia, jóia" e era a milionésima vez que eu falava que estava jóia, mas estava jóia bosta nenhuma, eu estava nervoso pra diabo, louco-louco demais e precisava falar com a Claudinha. Ela deu um gole só no chope, passou o copo pro Samir, e aquela besta me vira o copo inteiro! Tamanho trabalho pra trazer o copo até a garagem e justo o Samir virar o copo. Demorava pro Edu arrumar o som. Cláudia e Márcia encostaram numa mesinha, num canto. Eu e o Samir junto com elas. A Cláudia resolveu sentar em cima da mesa, subiu numa cadeira e subiu na mesa. Na hora de se agachar, abriu mais as pernas, eu e o Samir, de frente pra ela, e deu pra ver tudo, meu coração ficou doido, vi que o Samir também estava olhando, e, sei lá, senti que ficou superquente a minha cara, vermelho, eu devia ter ficado todo vermelho, mas parece que a Claudinha não ficou nem aí que eu e o Samir pudéssemos enxergar debaixo da saia dela. - Vamos. pegar um chope, Clau? - Márcia segurou na mão da Claudinha e puxou pro chão, as duas saíram correndo, eu era um idiota, EU devia ter falado e feito isso antes. Fiquei olhando as duas saírem correndo, fui vendo a bunda dela, certinha, dividida no meio, duas maçãs grandes e negras, carnudas. Mas que idéia, onde eu fui achar isso? Carnuuuuudas, CARNUDAS; a palavra na minha cabeça, como se eu estivesse lendo O cortiço e aparecesse uma palavra que eu não conhecesse, carnuda. Samir sumiu também, sei lá. Só o Edu e o Pepenella, dando duro pra ajeitar o som. Fui até o quintal, onde ficava o chope, que continuava uma praga pra sair. Apontei o uísque, lá perto. - Não sou chegada, falou a Clau - e eu, pra provar minha valentia (ou bobeira?), não virei meio copo, sem gelo nem nada? Aí tossi. E a Márcia, numa risadinha - Não falei? Eu, louco da vida 93 - Falou nada. Eu engasguei. E aí chegou o Adal. Veio de punk, também, e deu a maior risada, vendo a Clau daquele jeito e deu um berro: CLÁÁÁÁÁÁÁÁÁUDIA e se agarrou nela, a Claudinha até tirou os pés do chão, as coxas todas de fora,, a míni escondendo só as carnudas da bunda dela, mas que merda; esse cara não ferrou a nossa equipe, ela não tava louca da vida com ele? E o abraço dos dois durou assim uns vinte segundos, o Adal depois foi pra Márcia e deu outro abraço nela e eu lá, arrotei pela terceira vez o maldito uísque. O Adal nem reparou em mim, cretino. Me deu as costas na maior e me separou das duas. Vi que o chope tinha saído, agarrei depressa um copo, pedi licença pro Adal e estendi o copo pra Cláudia. E a tonta não me passa o copo adiante, pra todo mundo? Começou uma música. Legal, arrumaram o som. Virei decidido mesmo pra ela: - Agora a gente vai dançar, Cláudia - ela me apontou o cigarro, baforou pra cima: - Não dá, to fumando. Odeio cheiro de cigarro, e a fumaça fazia uma voltinha e vinha direto pro meu nariz. O negócio era esperar ela terminar, peguei um chope e fiquei bebendo. E aí, oh! e aí: sei lá quem botou Led Zeppelin pra tocar. - Stairway to heaven! - gritou o Adal - eu amo esta música! - Eu também! - berrou a Clau. E os dois falaram juntos: - Vamos dançar? Eu ainda tentei cortar a deles, "Clau, você falou", mas ela largou o cigarro aceso na minha mão: - Segura, Gus - e foi descendo as escadas correndo, pegando na mão do Adal. Que é que eu podia fazer com um cigarro aceso? Não responde. Não responde, porque foi ISSO MESMO que eu pensei. Que filho da puta, e nem me olhou na cara, um cretino, e sai assim na maior, com a Cláudia, pra dançar... a Márcia se pendurando toda no pescoço do Samir, este também, acabou ficando com o osso. Assoprei a brasa do cigarro, fiquei virando o cigarro entre os dedos, a mancha marrom da boca da Claudinha no filtro. Sei lá o que deu na minha cabeça, encostei minha boca em cima do marrom, Cláudia... o gosto do batom, da boca da Claudinha, mas era só fumaça e aquele cheiro horroroso de fumo. Atirei longe a bituca, esmaguei com o sapato. Peguei mais um chope, saí de perto do Samir, maior briga pra escapar da Márcia. Fui andando. O Stairway to heaven todo choroso. Era essa a nossa música, quer dizer, seria.., e ficou praquele lá. Virei a cara de um lado, o Marco polonês num canto, e olha, eu sempre achei aquele cara tão bobo, e ele, dando o maior amasso numa loirinha, mas um amasso, e eu virei a cara do outro lado, não é que o João dava beijo na Bete, até o crioulo do João se arruma, e a Bete é bonitinha, fui andando pelo quintal com o copo de chape, sei que no fundo do quintal havia mais uns casaisinhos, pelo visto metade da classe vai estar de namoro na segunda-feira, e eu fiquei lá, meio do caminho, sem saber se ia ou voltava, porque só eu, SOZINHO-SOZINHO, e a festa era MINHA, bosta! Virei o copo de chope, deixa de bobeira, Gustavo, você vem com esta besteira de querer chorar, merda, vai lá na garagem agora e arranca a Cláudia daquele filho da puta do Adal e fala com ela e abraça ela e é isso, é isso. O Stairway to heaven começava a virar pauleira. A Cláudia e o Adal, eu vi, foram os últimos a dançar separado, a se soltar, a maior risada de úm pro outro, o rock turn-turn, meus ouvidos estourando, e eu só consegui ficar de olho nela, na Cláudia, meu amor, a bunda girando, a saia escondendo quase nada. Graças a Deus, acabou a música. Ela desabou numa cadeira. 94 95 - Quero dançar com você, Cláudia. Falei assim, uma ordem, mesmo. Ela estava se abanando com uma bandeja vazia, levantou a cara pra mim, fôlego todo difícil, pernas bem esticadas, rosto suado: - Agora eu to cansada demais, Gus. A Débora passou, mãos dadas com o Edu; "Um barato a sua festa", ela gritou na minha orelha, e eu vi a cara dela assim beeeeem perto, de repente os dentes dela me pareceram maiores, enormes, dentes de lobo mau, devia estar bêbado: lobo mau, carnudas... - Você vai dançar comigo, Clau. Eu sou o aniversariante, Clau. Ela olhou de novo pra mim, passou a língua pela boca. Língua é um troço feio à beça, mas até a língua da Cláudia é bonita, tudo é bonito na Claudinha. Tá legal - e levantou, decidida. Uau. Tocava I'm missing you, e minha mão começou a suar, até a música ajudava, Diana Ross com aquela voz sexy, e tinha mais um monte de casal que correu pra dançar nessa hora. É hoje. Não era osso, não era gordurinha a mais, a cintura da Cláudia era certinha, era gostosa, e eu podia ficar ali, mogno, as veias todas se derretendo e fazendo em pedacinho, e tava com a cabeça e com a cara girando, ela falou: - Sua festa está legal, Gus. Só não vi direito foi o Roger - dane-se o Roger, quem é que quer saber dele? A mil, a mais de mil, eu segurei nela e era perfume, era cheiro, e o cabelo new wave dela, a boca menos marrom. Ganhei coragem: - Cláudia, que foi aquilo que você disse, de ser meu presente de aniversário? E ela: - Vai me cobrar presente, pão-duro? Pão-duro? Pão-duro? Boto meu casaco de couro, mesada, esfolo os dedos pra arrumar a garagem e ela me chama de pão-duro? Mas apertei os dentes, nunca que eu ia brigar com a Clau, eu DANÇAVA com ela e ela respirava forte na minha nuca, sussurrou um trecho da música, eu via a Bete dançando de olhos fechados com o João, será que a Claudinha também estava de olhos fechados? - Cláudia, aquilo - gaguejei. - De você, de você ser o presente. . . Ela deu a maior gargalhada, rosto bem pra trás, tãotão-tão perto de mim, até uma sujeirinha no dente dela eu enxergava, ela passou a língua na boca, falou: - E eu não sou? - e encostou o rosto no meu cabelo, eu queria morrer, era com ELA que eu dançava, ficou assim um zumbido na minha orelha, e sentia que eram as coxas dela, tão perto, encostei mais o corpo e era calor, meu rosto pegou fogo, eu comecei a sentir assim que eu ficava... mais excitado, né, e que vergonha, e se a Clau percebesse? Porque eu queria namorar com ela, Cláudia, meu amor, mas a idéia de que só pano, pano fininho separava a gente, e fiquei com o corpo todo duro, até me afastei um pouco, eu te amo, te amo, pensei e fui vendo tudo girar, ligaram a luz negra, e ia vendo pedaços das coisas: cabelo da Clau, os olhos fechados da Bete, o beijo que o Marco dava numa garota, a Cíntia dançando com o Jorge, a gente girando, a luz girando. No canto das mesas, vi recortados pela luz negra a Clea e o Roger no maior amasso, aqueeeeeeele beijo, ver meu amigo numa dessas me deixou assim calmo e decidido, era agora, não tinha mais vergonha, eu te amo, eu quero você. - Cláudia, eu preciso falar com você. Ela me olhou na cara, meu Deus. Tão pertinho. E a música mudou, mudou de repente, maior rock pauleira, assim sem avisar nem nada, a Cláudia soltou um gritinho, " É o Judas Priest", e soltou minha mão, parece que foi o inferno, ficou maluca, rebolava o corpo, mais e mais gente foi dançar solto, e logo ali, do meu lado, não é que o Adal aparece e quase me empurra, fica perto da Claudinha, dan96 97 çando a mil, filho da puta. E EU? Tentei dançar, claro, mas me sentindo mal, eu lá sei dançar estas merdas, parecia que uma perna ia pra um lado e a outra não combinava, e quando achei que a Débora estava rindo de MIM, ah, não, não dava pra dançar aquilo. Cheguei bem na orelha da Claudinha - Vamos beber um chope? Berrei três vezes, até que ela fez um sinal com a mão e eu fui depressinha pra mesa de comes e bebes, mas cade a Cláudia? Acho que ela não entendeu o que eu disse, continuava dançando com o Adal, o safado sabia que era dança solta mas pegava no braço dela, rodava ela. Voltar lá não dava pra voltar, então eu peguei um chope, bebi um, bebi dois, três. Tempo que pareceu a noite inteira, até a Cláudia resolver parar. E ela caiu numa cadeira, mais longe, o rosto meio vermelho, o cabelo grudado na testa. O Adal sumiu, graças a Deus. Eu sentei perto dela. Logo atrás da gente, o Roger e a Clea se beijando, nem aí com o mundo. Eu vi os dois e virei a cara, mas a Claudinha, muito à vontade: - Parece que grudou, hem? Eu, de risada amarela, mas a Cláudia cutucando a Clea, pedindo um cigarro. Clea rindo toda carinhosa pro Roger, daquele, exatamente DAQUELE jeito que eu queria que a Cláudia fizesse comigo, e pegou um cigarro do bolso dele, passou pra Cláudia. Os dois continuaram abraçados, falando baixinho um com o outro... namoro? Faz tempo que a Clea anda dando umas dicas, vai ver. .. eu olhei pra Cláudia, ela superdistraída, fumando e comendo um salgadinho. E voltou o Adal, junto com a Márcia, o Carlão e o Beto. - Vamos pra uma farra, Clau? Sair pela vizinhança, fazer zorra com os babacas? - o olho dele meio parado, além de filho da puta, fumeiro, se eu pudesse, eu esganava ele. - Vamos, Roger? Uma zoninha com os vizinhos? Sair da babaquice, meu. 98 Babaquice? Como, babaquice? Era o MEU aniversário, o eu vi a Cláudia falar jóia, como é que ela podia falar que o MEU aniversário era babaca? Vi a Clea beijar de novo o Roger, eles darem risada, e ia o Carlão, ia o Beto, a Márcia pondo fogo pra todo mundo ir também, e eu ainda com o copo de chope na mão, o gole ficou amargo, amargo, não falei nada, mas a Cláudia ia, eu também ia. A luz negra girando, minha cabeça girando... Até a saída. Quando levantei a porta da garagem, maior choque, vento frio lá de fora e lá dentro tao quente... o Adal saiu correndo na frente, botando fogo pro pessoal correr também. Eu nem tentei, de repente uma zoeira nos ouvidos, a barriga fez barulho. Alcancei o oal duas esquinas abaixo. O or buqueria arrancar a placa PROIBIDO ste, pra colocar no quarto e pensei em falar que ficava mal, era perigoso, mas a Claudinha batia palmas, "Um barato". O Roger e a Clea queriam mesmo era se beijar, qualquer coisa estava bom. O Beto o o Carlão se ajeitaram pra fazer cadeirinha pro Adal. Eu nem me ofereci pra ajudar, de novo um arroto, a barriga dava uma tremida, cuspi disfarçado na rua, e nos ouvidos as coisas começaram a ficar longe, a risadinha fina da Márcia, o Adal soltando palavrão, porque era difícil arrancar a placa. Aí uma janela abriu, uma voz de homem: - Molecada, vou chamar a polícia! - Corre, gente! Pintou sujeira! E eles foram correndo, subindo a rua. Eu também fui, subi uns passos, mas as pernas desandaram a tremer, uma a atropelar a outra, se não me agarrasse na parede, cafa._.na_.__ calçada, e aí foi. Vomitei. Não deu nem pra perceber quando ou como, voou da garganta uma vomitada forte, que bosta, merda) vèrgonha; tentei fechar a boca, não dava, foi um jato, dois, via as costas do pessoal, lá longe, a voz da Claudinha: "Olha i t r A9 s 99 o Gustavo", e uma risada, RISADA de mim, sei lá se agora eu chorava ou vomitava, e veio, de novo, outro jato e acho que dos olhos também, esguichou assim um montalhão de lágrima, os óculos segurando elas, até que os óculos caíram também, enquanto eu vomitava de novo. Não consegui olhar pra cara da Claudin1 a. Do Adal. Do Beto, o filho da puta do Beto nem disfarçava, ele RIA de mim. O Roger veio ajudar, me colocou sentado no chão, fez eu abaixar a cabeça, limpou meus óculos, devolveu. Eu apertava os óculos, meio sujos e abaixava a cabeça, mordia a boca porque chorar, não, a vergonha já era tanta-tanta, imagine se eu chorasse! O Roger tinha vindo com o carro do pai dele, e foi buscar. O Carlão, a Márcia e o Beto se mandaram, só a Claudinha, o Adal e a Clea, ali perto de mim, esperando o carro do pai do Roger. Eu sentia frio, muito frio no pescoço, e mais frio ainda, sentado na calçada, cabeça baixa. Não erguia o rosto, mas sentia que o Adal abraçava a Cláudia. Ela falou ainda alguma coisa, tipo "Isso passa, Gus. Tudo bem", tudo bem, bosta, queria chorar até arrancar os meus olhos, isso sim. Veio o carro, o Roger ajudou a me levantar e me colocou no banco de trás. A Clea entrou junto com ele, os dois agarradinhos no banco da frente. - Tudo bem, Gustavo? - perguntou a Clea, eu olhava pra trás, pelo vidro, via a Cláudia e o Adal, os dois sozinhos na rua, meu olho se encheu de lágrima, apertando os óculos na mão, queria morrer. - To melhor - e ia olhando, olhando, enquanto o carro ia embora, e a Cláudia e o Adal subiam a rua, abraçados, só os dois, só os dois. E foi isso. Aqui, eu já cheguei chorando, eu já fui direto pro banheiro, graças a Deus todo mundo dormia, bebi duzentos litros de água, tomei sal de fruta, queria ter um veneno, formicida, pra misturar na água, o vazio-vazio-vazio. Aí eu falei não, não posso dormir, e vim pra sala e tenho de escrever, botar tudo isso no papel, pra não me matar mesmo, pra não chorar demais ou acordar o Pedro, e essa foi a pior noite, a pior-pior-pior noite de toda a minha vida. Hoje eu faço dezesseis anos. Um brinde, que merda, à pior noite de toda a minha vida. 26 de setembro Sei que é tarde-tarde, já deve ser mais de meio-dia. Quando abri os olhos, vi o teto, a cama desarrumada do Pedro, minha roupa largada na cadeira, falei comigo: "Será que ainda to vivo?" Depois, fui ouvindo o barulho no quintal, a risada do Pedro, a voz de tia Adelaide... era verdade, bosta, era verdade, ontem foi a maldita festa, e eu ainda estou vivo. Estou louco pra fazer xixi, mas não tenho a menor vontade de sair do quarto, encontrar parente. Catei o Diário e estou aqui, criando coragem. Coragem? Pois é. Achei um pacote perto da cama. Veio pelo correio, cheio de selo, e só podia ser do tio Kenji, aquele enorme pacoté de presente. Abri. Era aquilo que eu queria (só que há três anos) : uma coruja empalhada, que o tio tem na casa dele e eu achava um barato. Uma coruja. Ela tem as asas abertas, a língua é de plástico, olho vermelho de vidro. Merda-merda-merda. Sabe, não consigo pensar direito, sei que ficou de ontem uma única sensação: vergonha e vazio. Agora eu nem consigo chorar, nem ficar bravo, acho que nem triste eu consigo, é só o vazio mesmo, como se tivessem me arrancado tudo por dentro e colocassem palha, igualzinho fizeram com a coruja, fingindo que me ataca, lá de cima do armário onde coloquei ela, e eu não estou igualzinho, sua besta?. Daqui a pouco eu vou descer, enfrentar a parentada toda, fingir que estou contente, que sou um jovem e feliz aniversariante.. Mãe tá batendo na porta. Lá vai o presidiário pra cadeira elétrica! 1 100 i 101 26 de setembro Olha, quando a mãe me chamou e eu desci, naquela de enfrentar a morte, eu. .. Bom, quem é que tava lá embaixo? Samir, Roger e Clea. Sentados na sala. Deram o maior abraço em mim, disfarçando porque mamãe 'perto, e. ela convidou pra eles ficarem que meu pai fazia um churrasco e eles acharam OK, e depois o Samir disse que tinha ficado preocupado comigo, a Clea disse que ontem nem deu pra me dar o presente, e me passou um disco superlegal do Iron Maiden e o Roger brincou, "Ainda bem que você não sujou a garagem, né?". Eu, ainda encabulado, mas depois caí na risada, igual eles caíram e o pessoal ficou até de noite aqui em casa, mamãe tratou superbem deles, o Samir ainda me pegou num canto: - Você ficou na fossa, não foi? Um bolo me subiu na garganta, pra eu chorar. Eu bebia guaraná, empurrei o bolo garganta abaixo com a bebida, só mexi com a cabeça. - Eu também. Só que porre tomei mais tarde. A Claudinha, né? De novo, só engoli guaraná e mexi com a cabeça. - Não esquenta, Gus. Ela é muito fresquinha. Nada a ver. A gente parte pra outra, Gus - aí ele riu. - E sabe do que mais? A coroa me deu o fora. Vi a sacana saindo com o vizinho da rua de cima. E eu ri-ri-ri, não tinha graça nenhuma, mas caí na risada, o Samir também, porque no fundo a festa foi uma merda, mas não só pra mim, e era legal saber que tinha amigos, olhei pro Samir, pra Clea e o Roger, de mãos dadas, e mamãe parece até me tratando diferente, amigos, amigos mesmo, nada de gaijin ou não, era uma coisa, sei lá. De crescer. É, eu tenho 16 anos. E hoje é meu aniversário. Crescer é tãò importante. Só que é muito perigoso. AUTORA E OBRA É muito difícil a gente ficar contente consigo mesmo. A moda nos é tirana: sejamos loiros, jovens, magros, bonitos e seremos telizes; ou é a sociedade, com seus Modelos padronizados do que é ser n ãe, ser bom aluno, um profissional, um amigo. Como é importante para a njaioria das pessoas o colocar os outros em vidro e classificar. Como é¡ difícil as pessoas perceberem que a mistura "gente" é mais complexa do que parece. E é sobre isso que eu gostaria de bater um papo com voces. No meu livro Crescer é perigoso, Gustavo aparece como uma personagem muito querida para mim, porque vai arrancando os rótulos, tornando-se um indivíduo forte e descobrindo a felicidade como uma conquista. Nada cai do céu. E o que eu tenho a ver com isso? Bem, tenho que sinto Gustavo um "irmão" em seu processo de crescer. Ele é uma personagem, e ficção; minha vida e trajetória são outras, mas já fiquei - como ele - bastante preocupada com o que os outros poderiam pensar de mim. E Ç que poderiam pensar? Sou mais pra gorda que pra magra - e se ficasse o tempo todo me massacrando com isso, jamais iria perceber que consigo ser bonita. ou neta de russo e filha de lituano. Um sobrenome complicado que volta e meia vem escrito errado. Muitas coisas pra me sentir diferente. Mas a partir do momento em que percebi o bom-humor como ;nossa melhor arma, aprendi a ser mais tranqüila. Aprendi a rir dos gestos solenes ou orgulhosos das pessoas "perfeitas" e vi que era impossível agradar a todos, indistintamente. Não se pode agradar ao mundo. Não se pode entrar em todos os rótulos, só para conquistar as pessoas que já nos classificaram e ficariam "decepcionadas" se não correspondêssemos ao seu modelo. Descobrir um espaço pessoal é descobrir um caminho de ser feliz. 102 Que mais eu sou e fiz? Nasci em 1957. Tenho um mandão legal o Edu (outro nome impronunciável: José Edward Janczukowicz). Tenho dois filhos, o Igor, que nasceu em 1980 e a Carla, que nascem exatos dez anos depois, em 1990. Já fui professora de Português. Na ocasião em que escrevi o Cres - cer é perigoso, tinha mais de 1000 alunos (isso mesmo, mil!) e li, t todas as redaçoes deles. Acho importante incentivar o gosto por ler, por escrever. E sou também escritora. Pra mim, é uma necessidade de vida, projeto de vida. Escrevo, respiro, como, bebo, converso. Não consigc imaginar uma existência sem que a máquina de escrever e um monte de personagens fiquem me rondando. Pra falar a verdade, não sei mesmo como é o processo de criação. E pouco quero saber. Eu só tente criar esses meus demônios. Ou anjos. Ou novos amigos, coma Gustavo, Samir, Roger, Clea... amigos que podem ficar amigos de outras pessoas; talvez - de vocês. Final do livro.