O DIÁRIO DE SOFIA E COMPANHIA AOS 15 ANOS Luísa Ducla Soares Colecção Espaço Aberto - 1 Livraria Civilização Editora Este livro é proibido a professores, pais e outros que tais Deram-me este Diário quando fiz anos. Tive tal desilusão quando o embrulhei, que me apeteceu atirá-lo para o caixote do lixo. Um livro em branco, à espera que eu, que nem para ler tenho paciência, aí escreva a minha vida. Para algum dia um qualquer bisbilhoteiro ficar a saber os meus segredos mais íntimos, se apanhar a chave. Era o que faltava! Hoje encontrei-o. É Domingo. Devia estudar mas não estou para isso. Folheio o livrinho em branco, imagino o que está ainda em branco na minha vida. Porque não hei-de escrever sobre mim? Quem sabe se não virei a ser pessoa famosa? Ainda tudo me pode acontecer. O Diário de um super qualquer, que o meu pai tem, está recheado de altos pensamentos. Tão recheado que até enjoa. Fora com os pensamentos! Viva o sol! Estou aqui fechada em casa com 4 dinossauros (familiares). E chove: Óptimo para as alfaces, péssimo para mim. Que hei-de fazer para sentir que estou viva, se não pôr a música no máximo? O DIÁRIO DE SOFIA E COMPANHIA AOS 15 ANOS Luísa Ducla Soares Impressão e acabamento: Companhia Editora do Minho-Barcelos 1ª Edição - Fevereiro de 94 (C) Américo Fraga Lamares & C, Lda. Livraria Civilização Editora Rua Alberto Aires de Gouveie, 27, 4000 Porto À Helena, minha filha, e aos seus amigos, meus amigos também, sem os quais eu nunca teria escrito este livro. 3 de Outubro Deram-me este Diário quando fiz anos. Tive tal desilusão quando o desembrulhei, que me apeteceu atirá-lo para o caixote do lixo. Um livro em branco, à espera que eu, que nem para ler tenho paciência, aí escreva a minha vida. Para algum dia qualquer bisbilhoteiro ficar a saber os meus segredos mais íntimos, se apanhar a chave. Era o que faltava! Além disso Diário lembrou-me logo caderno diário, essa praga em que todos os dias tenho de escrever as confidências dos setores. E os trabalhos de casa... Abri-o. As suas páginas eram duras de mais para limpar o rabo mas serviam para escrever bilhetinhos... Atirei-o para o fundo da gaveta. Hoje encontrei-o. É domingo. Devia estudar mas não estou para isso. Folheio o livrinho em branco, imagino o que está ainda em branco na minha vida. Porque não hei-de escrever sobre mim? Quem sabe se não virei a ser pessoa famosa? Ainda tudo me pode acontecer. O diário de um super qualquer, que o meu pai tem, está recheado de altos pensamentos. Tão recheado que até enjoa. Fora com os pensamentos! Viva o Sol! 5 Estou aqui fechada em casa com 4 dinossauros E chove: óptimo para as alfaces, péssimo para mim. Que hei-de fazer para sentir que estou viva, senão pôr a música no máximo? 4 de Outubro Esqueci-me de me apresentar na primeira página. Mas Mas fiz bem. Chamo-me... mas vou inventar um nome falso para mim e para todas as pessoas de que vou falar. Assim serei uma personagem irreconhecível e não vou comprometer ninguém. Faz de conta, portanto, que sou a Sofia, que a minha escola é o Colégio Universal. O meu cão será o Pipocas. Só a minha terra permanece Lisboa. Quem me poderá descobrir? Por hoje acabo, estão a tocar à porta. Deve ser a Dona Adozinda a pedir salsa ou um desses rapazes que metem anúncios na caixa do correio. 18 de Outubro Como seria bom que a minha vida fosse uma aventura e eu uma heroína de não sei quê. Nesse caso o diário podia tornar-se um livro de aventuras. Adorava atirar-me de pára-quedas, escalar montanhas, embrenhar-me nas selvas, conhecer um Indiana Jones, fazer viagens a locais exóticos, apaixonar-me por um homem misterioso, descobrir um crime. Mas como é isso possível sendo escrava dos meus pais, da escola, das obrigações? Não tenho liberdade nem dinheiro... E, cá entre nós, teria coragem? 6 25 de Outubro Fiz, por acaso, uma descoberta sensacional - o café. (Claro que já milhões de pessoas a fizeram antes de mim, até o meu pai, vejam lá...) Ia a passar em frente da esplanada da Princesa das Arábias quando senti alguém puxar-me os cabelos. Era o Miguel. Chamou-me para a mesa dele, onde estavam dois jovens desconhecidos. Ao fim de pouco tempo éramos amigos e combinámos no dia seguinte voltar lá. Arrastei a Cátia comigo, porque ela também não conhecia o café, e passámos a levar para lá os livros de estudo. Enquanto não aparece mais ninguém estudamos as duas, depois ficamos a conversar. Dantes o meu maior desejo era ir para as Amoreiras, perdia uma hora para lá, outra para cá e no fim só víamos lojas, não arranjávamos amigos ou, se os arranjávamos, moravam em Campo de Ourique, na Caparica, em Cascais, por isso nunca mais os encontrávamos. Agora tenho imensos amigos na minha rua e no bairro. Tocamos à porta uns dos outros quando vamos sair, nunca mais me senti sozinha. Deixei de me revoltar por não ter irmãos. O meu pai é que não ficou nada satisfeito quando o homem do café se descaiu dizendo que eu ia para lá todas as tardes. E ele não vai à noite? Vai e toma café , que é um veneno para o coração, e compra maços de cigarros que provocam cancro do pulmão. Eu bebo laranjadas e como croissants, o que só faz bem à saúde. "Nos cafés perde-se o hábito de trabalhar". Será que ele tem os olhos tão tapados que não sabe que eu dantes ficava em casa a ver televisão? Os pais são mesmo inocentes! 7 26 de Outubro A tia da Vanessa trabalha no edifício ao lado da escola. É um casarão pousado no que resta de uma antiga quinta, com oliveiras retorcidas e um poço. Como o portão não tem fecho, a malta da escola vai para lá fazer piqueniques e curtir à hora do almoço. Nunca houve problemas. Mas agora a tia da Vanessa, campeã da bisbilhotice, viu um miúdo esconder um pacotinho numa portinhola lateral do poço e foi a correr, com os colegas, ver o que era. O parvo espantou-se, largou a fugir, deixando o pacote. Debaixo das árvores havia seringas. Claro que a tia da Vanessa, metediça como é, chamou logo a Direcção do Colégio, a Direcção do Colégio mandou os culpados acusarem-se e, como ninguém o fez, ficámos todos uma semana proibidos de sair nos intervalos. Droga! Raio de droga... Tramou-nos a todos. É impossível não desconfiar do Bebé e do Careca. A malta do judo apanhou-os na casa de banho e virou-os do avesso. Tinham erva mas nada de pós. Mesmo assim ameaçaram-nos com as correias das motos e deitaram o haxixe pela retrete abaixo. - Gostam de droga? Drogarias ambulantes! - Gostam de erva? Herbívoros! Carneiros! Vão mas é pastar! - gritei-Lhes eu. - Mas não venham dar cabo da nossa vida. O Bebé pôs-se a chorar baixinho e toda a tarde ficou com os olhos vermelhos. 27 de Outubro A Cátia, o Miguel e eu resolvemos fazer um pacto solene de eterna amizade e confiança. Somos colegas desde que entrámos para a Preparatória, os grupos iam mudando, mas nós nunca nos separámos. 8 - Um pacto de sangue? - perguntou a Cátia. O Miguel riu-se. - Isso está ultrapassado! E não sabes que as pessoas não devem andar a picar-se, a misturar os sangues? Parece que nunca ouviste falar da sida ou da hepatite B. - Damos a nossa palavra. Em vez de jurarmos pela Bíblia, juramos por alguma coisa que todos adoramos. , Pelo Sol, por exemplo - propus eu. Eles aceitaram. Um juramento pelo Sol é lindo e original. Que seria de nós sem o Sol? 28 de Outubro Aos 15 anos as pessoas não têm direito a nada. São uns paus-mandados. (Claro que podem não obedecer.) E aos 16? O Fernando, que já os fez, porque é repetente, esclareceu-me. - Aos 16 podes tirar carta de moto. - ƒptimo, se os meus pais me deixassem ter uma Assim... - Podes trabalhar. - Querias! Por enquanto prefiro a escola, embora a trabalhar sempre se ganhe. E abrir conta no banco? Movimentar dinheiro? - Isso só aos dezoito. - Então se a gente trabalha, os outros é que ficam com o dinheiro? - Podes ser julgada em tribunal. - É o meu maior sonho, como deves calcular! Felizmente não tenciono fazer crimes. - Podes casar, com autorização. - Casar! Pior ainda. Aturar um tipo dia e noite, arrumar a casa e ainda por cima coser-Lhe as meias! E ter uma barriga grande como uma bola de futebol! 9 - Ah, esquecia-me de outra coisa. - Já sei, posso entrar nas discotecas. Quem me dera que este ano passasse depressa para ganhar o único direito que vou aproveitar: entrar em discotecas. Qual será o preço? Quinhentos escudos? Um conto? Com a inflação até lá vai subir... 30 de Outubro Encontrámos hoje o Careca no café e começámos a falar sobre a droga, como se não fosse nada com ele, a ver se o rapaz se descaía. - Então os betinhos querem saber coisas. Venham comigo que eu mostro-Lhes um espectáculo. Eu ainda estive para refilar, porque prefiro ouvir dois palavrões a ser tratada por betinha, mas achei mais prudente calar-me, não queria perder o espectáculo. Ele levou-nos por ruas tortuosas até um descampado com prédios em construção. Havia lá meia dúzia de garotos pequenos, à procura de sacos plásticos numa lixeira. - Para que é que eles querem aquela porcaria? Ainda se fossem caixas de cartão para vender... - De pequenino se torce o pepino e se começa a snifar cola. À borla. Depois vem o resto. Um miúdo sentou-se na lama a tossir. Dois pareciam tontos, os outros riam e diziam disparates. - Fora daqui! - gritei eu -, ou chamo a polícia. Eles riram. - Não se prendem crianças. E se as prendessem ao menos não dormiam ao relento e tinham sempre que comer - disse o Careca. Porque é que eles não jogavam à bola, aos polícias e ladrões, ao berlinde em vez de estarem para ali a drogar-se? - pensei eu. 10 O Careca deu cem paus ao miúdo mais pequeno e fez-Lhe uma festa na cabeça. - Ó pá, vai comer um bolo. Daqueles bons, cheios de creme. 31 de Outubro A minha mãe diz sempre que está a fazer dieta para emagrecer, farta-se de passar fome às refeições, mas não abate nem um quilo. Finalmente compreendi porquê. Fui à carteira dela buscar as chaves e vi lá nada menos que 5 tabletes de chocolate! Para mim, nunca compra. Diz que fazem mal aos dentes. Tirei-Lhas todas e logo à noite na cama já vou comer uma. Eu é que estou magra e em idade de crescer! A mãe já remexeu na mala várias vezes, mas não deu um pio. Afinal só fiz uma boa acção, afastando-a das tentações. 2 de Novembro O setôr de desenho apareceu com umas calças cor de tijolo e uma camisa salmão. Na orelha esquerda usa agora uma argola com um peixinho pendurado, a dar a dar... É um tipo porreiro, que deixa pôr cassetes na aula e não se importa que todos estejam a falar. A única condição que nos põe é ouvirmos também uma cassete de música clássica que ele traz, não porque a nossa música seja má, mas porque se deve conhecer tudo. 11 Ele também deve conhecer tudo... Dizem que é casado, mas parece que sai com um amigo. Que é que isso me interessa? Para a semana vai fazer uma exposição numa galeria e perguntou-nos se não queríamos dar-Lhe uma ajuda a carregar e pendurar os quadros. O Fernando não quer ir porque o setor anda sempre a olhar para ele e até já disse que gostava de Lhe fazer o retrato. Que pintor não gostaria? É uma mistura de anjo e tigre. Por fora. Por dentro é apenas um burro, de raça pura. Mas o Miguel, a Cátia, o Raul, a Inês e eu oferecemo-nos. 3 de Novembro A filha do Sr. Rogério da mercearia anda na turma B. Ninguém da nossa turma Lhe liga, porque é uma baleia silenciosa. Usa sempre saias em vez de jeans, camisas com bordados nas golas e sapatinhos de verniz de meio salto. Um zero à esquerda. Ninguém dá por ela. Mas hoje desceu do autocarro a coxear e todos nós notámos que tinha grandes nódoas negras nas pernas. - O que é que te aconteceu? - perguntei-Lhe eu. Ela corou. - Caí... O Rafael, da mesma turma, segredou-me ao ouvido: - É o pai que Lhe chega. Um dia deu-Lhe uma sova tão grande que até teve de faltar. Será que ela Lhe vai comer as gulodices todas da mercearia e por isso está tão gorda? O meu pai nunca me bateu, não sei se por princípio, se por preguiça. A minha mãe dantes limpava-me o pó, eu fazia troça, não me doía nada. Mas se fosse filha do Sr. Rogério da mercearia, acho que Lhe atirava com a balança à cabeça. Ou ia fazer queixa à polícia. Mas, como ela é uma atadinha e uma cobarde, ao menos que telefone para o S.O.S CRIANÇA que anunciam na televisão. 12 Fui à lista telefónica ver o número e escrevi-Lho num papel. S.O.S. CRIANÇA 7931617. - Telefona para aqui - disse-Lhe no intervalo. - Obrigada. Mas não é preciso. Lembrei-me de um documentário que vi na televisão: miúdas violadas em casa que se calam durante anos por medo. Se Lhe acontecesse (ou acontecer) isso, com certeza que se cala. Por medo. Raios partam o medo! Raios partam os carrascos! Vou ter de andar uns 500 metros para ir ao supermercado, mas nunca mais dou um tostão a ganhar ao Sr. Rogério. 4 de Novembro Como a filha do Sr. Rogério é uma parva, resolvi falar eu própria para o S.O.S criança. Disquei o número e atendeu-me um homem muito simpático a quem eu contei o que se passava. Não me pediu o nome, porque o serviço é anónimo, e esteve muito tempo a conversar comigo sobre a melhor maneira de a ajudar. Como ela anda a estudar, vão começar por chamar o pai à escola, dizendo-Lhe que acham que a filha tem problemas, que ele devia compreendê-la, ajudá-la. Vamos lá ver se um idiota como aquele se convence. Depois desta conversa cheguei à conclusão de que também devia haver um S.O.S pais, para aconselhar essa geração de atrasados. Os paizinhos torturados pelos filhos terríveis (como eles se pintam) falavam a pedir ajuda. Talvez Lhes ensinassem que as feras (que somos nós) não se amansam com tabefes, mas com confiança, amor, sentido da liberdade. 13 Que horror, estou a transformar-me numa professora de moral! 5 de Novembro É incrível como na escola e em casa não nos ensinam certas coisas importantes. E nós só por acaso ficamos a saber que elas existem. Eu já tinha aberto mais de mil vezes a lista dos telefones, sabia o número das avarias, do totoloto, do serviço meteorológico, o 115, mas nunca tinha reparado nos números da amizade. A propósito do S.O.S CRIANÇA, descobri: S.O.S SIDA (há momentos em que precisas de falar com alguém) que é o 05001040. CENTRO S.O.S VOZ AMIGA - Prevenção do suicídio, que é o 544545. LINHA ABERTA - Informação sobre uso/abuso de drogas que é o 7267766. Na televisão anunciaram agora o S.O.S GRÁVIDA, mas ainda não vem na lista e, como não tinha lápis à mão, não tomei nota do número. A nossa cidade tem um milhão de habitantes mas às vezes não temos ninguém com quem falar, ou não temos lata para falar sobre certas coisas. Qualquer dia, quando estiver muito triste, vou falar para a voz amiga, a ver como é, mesmo sem ter qualquer intenção de me suicidar. Bem me basta morrer quando a hora chegar... P.S.- Chegou a lista nova. Já traz o S.O.S GRÁVIDA. É o 3011279 14 6 de Novembro A propósito de telefones, vou falar daquele telefone vermelho que vem anunciado. O telefone erótico. Tínhamos combinado, a Cátia, a Inês e eu, ligarmos para lá, mas só dois minutos para os meus pais não desconfiarem. Podiam escolher-se homens, mulheres, homossexuais, o que se quisesse. A Inês fez a ligação e nós aproximámos os ouvidos. Do outro lado, um parvalhão dizia ordinarices, arfava, arfava como se estivesse a correr a maratona. Começámos a gozá-lo. - Você deve sofrer do coração. Vá ao médico. - ƒ seu parvo, é mais ordinário que um carroceiro! Olhámos para o relógio. Tinham passado mais de dez minutos. Desligámos à pressa. O meu pai ia arder com dois contos! Ficámos a pensar se os homens, normalmente, ficam assim tão roucos, animalescos e grosseiros. Jurámos as três adiar para daqui a muito tempo o momento de perder a virgindade. 15 8 de Novembro O Raul tem cada ideia! Convidou-me, mais à Inês, para irmos almoçar com ele a um restaurante chinês , . daqueles com biombos pintados, e louça linda, de porcelana azul. - Saiu-te o totobola? Andas sempre a pedir dinheiro emprestado... Comigo não contes, não sou filha do Ministro das Finanças... - disse eu. - As despesas são comigo, não se atrapalhem. Comemos do bom e do melhor: crepes, gambas à não sei o quê, arroz chau-chau, tudo com pauzinhos, como deve ser. A certa altura, depois de ter a barriga cheia, o Raul levantou-se a gesticular, chamando o criado: - Vou queixar-me à Fiscalização, aqui não há higiene. Olhe, olhe, uma barata na travessa. O criado foi buscar um chinês baixinho, impecável que, se tinha os olhos em bico, com eles mais em bico ficou. O homem desfazia-se em desculpas, perplexo com tudo aquilo, a sua língua de trapos baralhava-se com a vergonha e o nervosismo. - Eu tlazele outo almoço, senhô não pagale nada. Tremiam-Lhe as mãos que tinham preparado o mais requintado almoço da minha vida. Apetecia-me sumir pelo chão abaixo. O Raul pôs um ar enjoado, doente, moribundo, pegou-nos por um braço, saiu numa aflição, só parando à esquina. Então tirou da algibeira duas caixas de fósforos, uma com uma barata viva, outra com úma barata morta. - Há para todos os gostos e necessidades. São fáceis de apanhar à noite, nas lixeiras. A Inês começou logo a combinar que restaurantes seriam as próximas vítimas. Eu apanhei o primeiro autocarro e zarpei para casa. As baratas tinham-me dado volta ao estômago. 16 10 de Novembro A Mafalda, mais conhecida por Miss Tolice, está tão magra, com a mania das elegâncias, que já troca jeans com a Maria, que era o esqueleto ambulante do 8º ano. A Marta, a que os rapazes chamavam Pétala de Rosa, parece um passador, toda picada de borbulhas. O Zé está a deixar crescer a barba, tão rala, tão rala, tão rala que deve ser feita de pêlo de rato. O Bebé às vezes parece sonâmbulo. Vive noutro mundo. Depois volta ao normal. Será que ele realmente se droga com seringas, ou é apenas um sonhador? O Rodrigo, de repente, cresceu tanto que resolveu tratar-nos como criancinhas. O Alexandre, a quem já chamávamos o Careca, por ter o cabelo curto, usa agora a máquina zero. A Maria só se desenvolve num sentido, da cintura para cima. Por isso os rapazes a tratam por Maria do Patriotismo. Só eu não cresço. Tenho quinze anos e detesto que os matulões me agarrem ao colo e me chamem a nossa pequenina. Quando fui ao médico de família, pedi-Lhe um remédio para crescer. Ele ainda troçou de mim: "A mulher e a sardinha quer-se fresca e pequenina". 14 de Novembro Já não sei a que propósito, enquanto limpava o frigorífico, a minha mãe disse: - Estás mesmo na idade do armário. - E tu estás na idade do frigorífico. Vê lá não congeles - respondi eu. Estou farta de ouvir dizer que os adolescentes deviam ser fechados num armário para só serem soltos ao chegarem a adultos. 17 Somos incómodos, irreverentes, o nosso prazer é contrariar as regras deles, ignorá-los, descobrirmos o mundo por nós próprios. Como eu era parva e dependente quando era criança (e eles me adoravam)! Como são acomodados, vencidos e mecanizados os adultos! Então os velhos, que se consideram sábios, donos da experiência... As criancinhas e os maiores de 25 anos é que deviam ser guardados no armário enorme dos objectos inúteis , ;, enquanto nós, sozinhos e à solta, vivíamos a nossa vida. A nossa força é como a música alta do rock da pesada que eles não suportam. Dizem que somos uma geração perdida, que não temos ideais. E os deles, em que deram? Se a sociedade fosse organizada por nós, não havia tantos hipócritas, tantos mortos-vivos, tantos congelados. Nós (eu não) tomamos droga, mas eles é que a inventaram e a vendem. Nós às vezes somos violentos, mas eles é que inventaram as guerras e somos nós, os novos, que temos de dar o corpo ao manifesto (eu não, porque sou rapariga). Nós temos a mania do consumo, mas eles é que fabricam as inutilidades e fazem publicidade para comprarmos. A propósito, vi uma T-shirt preta, linda, mas estou tesa que nem um carapau. Se não tivesse trazido hoje uma negativa e um pedido de justificação de falta à primeira aula, ainda cravava o meu pai. Mas assim... 15 de Novembro Ah, como é bom não fazer nada. Nem sequer escrever um diário. Por isso hoje, basta! 18 21 de Novembro (Mas parece Verão!) O Pipocas às vezes é fantástico! Hoje, dia de anos do meu pai, caçou um rato em Monsanto e veio pousá-lo no prato dele (estávamos a fazer um piquenique). A minha mãe fugiu, eu fartei-me de rir. - Vamos assar o rato para o teu almoço! Não podes ofender o Pipocas, desprezando um presente tão original! 22 de Novembro Isto de se ter avós é óptimo quando se é pequeno. Contam histórias, levam-nos a passear, ralham com os pais se eles nos querem castigar. Mas depois... Eu, é como se tivesse apenas 2 avós, os de cá. Os outros moram na Granja, nunca aqui vêm e pouco os vamos visitar, porque não gostam da minha mãe e estão sempre a dizer piadas: que o meu pai não acabou o curso e podia ter uma vida regalada como os irmãos mas não tem, que a minha mãe devia mudar de cabeleireiro. Claro que pensam que eu não sei, mas estou farta de saber que eles tinham querido que ele se casasse com uma senhora da alta, que parece uma montra de ourivesaria e mora numa vivenda com piscina. Eu só lamento a piscina... A avó Glória e o avô Francisco arranjaram um andar na nossa rua quando fizeram uma albufeira que inundou a aldeia deles e Lhes alagou as terras todas. Ficaram com a casa, que dantes era num alto, mesmo rentinha à água. É óptimo, mas eles não apreciaram. Estou mesmo a ver a minha avó a dar mergulhos da janela e o avô a fazer ski aquático! Podiam ter um rebanho de cisnes em vez de ovelhas e criar peixes em vez de plantar couves. Agora a mãe obriga-me a almoçar lá todos os dias. 19 Tenho de comer sopa de hortaliça, bacalhau e feijoadas. Se me deixassem ao menos ver a telenovela da hora do almoço... Mas o almoço é para a família se reunir, não é para ver televisão. Ninguém percebe que hoje a televisão faz parte da família! A avó quer por força coser-me os rasgões das calças. E eu que esperei tanto que elas se rasgassem ! - Por que não usas, ao menos de vez em quando, uma saia? Se não fosse essa cabeleira, parecias um rapaz. O meu avô ri-se. No outro dia chegou-se a um matulão, com brincos e rabo de cavalo, e tratou-o por menina. O homem não era menina, mas pouco faltava... fez-Lhe logo um convite. O avô Francisco só não ficou de cabelos em pé porque é careca. 28 de Novembro A prima da Inês fez anos e convidou 50 pessoas para a festa. Fiz-me convidada. - Deve ser milionária! Jantar e discoteca para 50 pessoas... Não contes com uma festa assim - barafustou logo a minha mãe. - Cada um paga o seu jantar, que é um hamburguer ou uma pizza e a entrada na discoteca. Para as raparigas o bilhete é mais barato. - Mais o presente... - Já ninguém pensa em presente. Vamos só divertir-nos. Eles deixaram-me ir porque afiancei que os pais da Inês a iam buscar cedo e me tinham convidado para dormir em casa deles. Fiquei excitada. Era a primeira vez! 20 O pior foi que o estafermo do porteiro pedia o bilhete de identidade. E eu sou tão pequena... Não escapei. A Inês, que tem a minha idade mas um palmo a mais, entrou logo. Esperei cá fora, sozinha na rua, sentada no patamar. - Então, minha, não queres dar uma volta? - gritou-me um rapaz de mota. - Tens frio? Sei como aquecer uma miúda - gabou-se outro. Não podia entrar, não podia ir para casa, senão nunca mais me deixavam sair. Quem estava lá dentro nem se lembrava de mim. Nunca senti tanta tristeza e tanto medo. De repente vi o Careca. Para onde iria ele sozinho? Para a má vida? Chamei-o. Contei-Lhe a minha horripilante, incrível, ridícula, inesquecível desgraça e ele sentou-se ali comigo no degrau. Falou, falou, falou. Dos 6 irmãos, dos pais analfabetos, lá longe, na Madeira, caseiros da sua velha madrinha meio inglesa, que resolvera dar-Lhe um futuro. Dão-se futuros? - Vocês não têm um charro? - pediu uma rapariga muito nova que andava no engate. O Careca ofereceu-Lhe um. Seria conhecida dele? - E para mim não há nada? - perguntei eu. Apetecia-me ali, na escuridão da noite, acender um fósforo e experimentar. Nunca mais repetiria. Ele riu-se, tirou um papel e um lápis da algibeira e disse: - O que é que preferes: jogar ao galo ou à batalha naval? 30 de Novembro A Mafalda emagrece de dia para dia. Ela, que parecia a Madona (em versão de trazer por casa), transformou-se num cabide. Desabituou-se de comer e agora deita tudo fora quando a obrigamos a almoçar. 21 O pior é que já não Lhe vem o período há 3 meses e pensa que está grávida. - Mas como, se tu até foges dos rapazes? - Há quem diga que basta usar uma toalha suja, um bidé mal lavado. Eu vou à mesma casa de banho dos meus irmãos... Estou doida, doida com isto. Seria possível? Realmente ela vomitava tanto... Eu e a Cátia fomos a uma farmácia desconhecida e comprámos um teste de gravidez que anda agora muito anunciado. Basta juntar urina, esperar... em pouco tempo sabe-se o resultado. Deu negativo, não tivemos dúvida. 1 de Dezembro Estou a ficar cheia de olheiras. Mas descobri um método óptimo - corto duas rodelas de batata e coloco-as sobre os olhos. Ficam logo mais descansados, mais frescos. Quando estiver de férias vou estudar as propriedades curativas e cosméticas da batata. Não há quem as use também para as dores de cabeça? Põem-se as batatas na testa, ata-se um pano à volta e é um alívio. O avô Francisco mete uma batata na algibeira por causa do reumatismo. Diz que atrai a humidade. Será? O que é certo é que ele anda bem ligeiro, sem reumatismo nenhum. Expus as minhas ideias ao avô que se propôs alinhar comigo. Podíamos ganhar dinheiro a fazer remédios de batata... O material não é caro. A avó Glória também se manifestou: - Tenho uma ideia muito melhor. Monto um desses quiosques muito modernos que vendem batatas fritas. Vamos a ver quem tem mais sucesso. É preciso aproveitar enquanto os lavradores de Trás-os-Montes estão a vender a batata ao desbarato por causa da concorrência da C.E.E. 23 2 de Dezembro Hoje, debaixo do meu copo encontrei um papel dobrado em quatro. Mistérios em casa dos avós? Desdobrei-o logo. Dizia assim: Cenoura crua - faz os olhos bonitos / Gema de ovo - fortalece os cabelos fracos Camomila - dá-lhes reflexos doirados Vinagre - dá-lhes brilho Óleo de amêndoa-doce - para peles secas Máscara de morango - para embelezar o rosto Sumo de limão - contra a pele oleosa, com tendência a criar pontos negros e borbulhas. Água de rosas - para refrescar a cara e olhos cansados (só aplicar por fora dos olhos) Leite - torna a pele bela e macia. Quem tiver muito dinheiro até pode tomar banho de leite. Água com sal - para desinchar os pés Álcool com flores - para fazer perfumes Era a letra alta e bem desenhada da Avó Glória. Estou a ver que a avó afinal também vai entrar para a nossa sociedade. Ainda vamos abrir uma loja de produtos de beleza à base de coisas naturais. É o que está na moda, é o que está a dar. 3 de Dezembro A Mafalda desmaiou na primeira aula, quando estava a escrever no quadro. 23 A setora entrou em pânico. - Mandem chamar uma ambulância. Isto não é normal. Antes da ambulância chegou o Dr. Silveira, que por sua vez chamou a setora de Saúde que Lhe levantou as pernas e Lhe deu dois tabefes na cara. A Mafalda acordou mas não se aguentava de pé. Lá seguiu no 115. Parece que a doença dela é uma coisa estranha chamada "anorexia nervosa", que, traduzida em português normal, quer dizer que ficou meia maluca por causa da mania das elegâncias e que agora, mesmo que queira, não consegue alimentar-se. Pode ficar estéril e até morrer. Vão levá-la ao psiquiatra. Todos nós fazemos dietas, principalmente antes da praia, só comemos iogurtes magros, às vezes uma maçã e os rapazes gozam-nos, pondo à nossa frente bifanas, bolos, cachorros, gelados que eles devoram. Mas acho que não vamos ficar assim, porque sentimos uma fome de lobo. E pouco tempo Lhe conseguimos resistir. 6 de Dezembro O avô agora anda muito comigo e eu já nem tenho vergonha de sair com um velhote. Os meus amigos acham-no porreiro e desde que descobriram que ele arranja motas e está sempre pronto a contar piadas, já não nos chamam A Bebé e o Cheché. Até o tratam por Avozinho. A avó é que nunca sai. Só limpa, cozinha, lava. Por isso está 100 vezes mais velha que ele. E resmungona. A distracção dela são as flores que tem na varanda, em todas as divisões, e os bordados que faz, sempre com flores. 24 - Para que são esses bordados, avó? - perguntei. - São para o teu enxoval. Já tens 12 lençóis bordados, uma colcha de renda... e não vou ficar por aí. E eu que sonhava com o tempo em que tudo será de papel para deitar fora, como os lenços, as toalhas... "Vou ter de lavar e engomar aquela tralha!", pensei num desespero, mas disse apenas: - Mas ainda nem tenho namorado... - Pois a tua bisavó, minha menina, casou aos catorze anos e tinha ela quinze quando eu nasci. E a seguir a mim foram mais dez filhos. "Ainda não havia a pílula", pensei eu. E dei por mim admirada ao ver nascer, daquelas mãos torcidas, enrugadas, malmequeres pequeninos azuis e cor-de-rosa. 9 de Dezembro A notícia era assim: Desembarcaram na América 400 cobras vivas, que tinham sido obrigadas a engolir pacotes de plástico cheios de droga. Os bichos, coitados, eram de uma espécie rara, em extinção. E aqueles ficaram todos extintos... Mostrei o recorte do jornal ao Careca e ao Bebé. Este ficou calado mas o Careca deu-me logo troco. - Sabes lá os sítios por onde a cocaína anda! Há passadores que a transportam na vagina ou dentro do rabo. - Que porcaria! que nojo! Desembarcaram na América 400 cobras vivas, que tinham sido obrigadas a engolir pacotes de plástico cheios de droga. Os bichos, coitados, eram de uma espécie rara, em extensão. E aqueles foram todos extintos... 25 14 de Dezembro Acordei uma hora mais cedo porque me enganei a acertar o despertador e resolvi chegar pela primeira vez à escola antes de tocar. Mas não consegui. A meio caminho ouvi um grito que vinha dum buraco das obras (andam a mudar os canos). Algum crime? Os críminosos teriam atirado a vítima, depois de devidamente roubada e espancada, para aquela fundura? Fui espreitar. Era um rapaz cego que caíra no buraco. Chamei mais duas ou três pessoas e ajudámo-lo a sair. Estava todo sujo mas não Lhe tinha acontecido nada. Tinha aprendido judo para saber cair! - Queres que te ajude? Para onde vais? - Para a escola. Eu conheço perfeitamente o caminho, ou conhecia, antes das obras - disse ele, ajeitando a mochila e tirando do bolso uma bengala, metálica, desdobrável. - É melhor passarmos para o outro lado. Este está todo em escavações - gaguejei eu. Nunca tinha falado com um cego. - E tu para onde vais? - Para a escola, também. Começámos a falar como se nos conhecêssemos há muito tempo. Quando chegámos à paragem ele despediu-se. - Vem aí o meu autocarro, o das 8 - disse, tacteando um relógio com os números em relevo. - Foi bom conhecer-te. - Foi bom - respondi eu, e disse-Lhe adeus com a mão quando virou a cara para mim, da janela, e me disse adeus. Que estupidez! 26 16 de Dezembro Para acabar o período com chave de ouro, resolvemos imitar aquele anúncio piadético da televisão. Colocámos um preservativo junto à cadeira da setora de Matemática e esperámos pela reacção. Como ela é muito míope, não viu e no fim da aula levou-o preso no salto do sapato. O que Lhe terão dito lá fora é um enigma. Pusemo-nos a imitar os conhecidos e desconhecidos que ela iria encontrar. Rimo-nos tanto, tanto, que a Inês até fez chichi nas calças. 18 de Dezembro As férias deviam ser maravilhosas, mas acontece cada coisa! Pior que no tempo de aulas. A Lúcia quis matar-se! Ou será que não queria e arranjou aquela fita? Foi preciso falar para o centro de intoxicações, porque ela tinha tomado 15 comprimidos. Afinal eram cinco de vitaminas, duas pílulas para o reumatismo, duas cápsulas para as dores de cabeça e outras seis para a diarreia. O médico fez troça e, para castigo, mandou-a beber copos e copos de leite. Como ela enjoa com o leite, passou a tarde a vomitar. Foi melhor do que fazer uma lavagem ao estômago. A Lúcia era tão prá frentex e divertida que ninguém compreendeu o que aconteceu. Mas quando eu fui visitá-la à noite ela contou-me tudo, em segredo. Contar a um diário não é quebrar um segredo, pois não? Pois a Lúcia, como é tão prá frentex, encontrou-se com o Paulo e perguntou-Lhe de caras se ele não queria curtir com ela. O Paulo não Lhe liga, mas aceitou. Com certeza qualquer um aceitaria a proposta. O pior foi depois. 27 Quando ela se pôs a fazer-Lhe festas e a prendê-lo, ele disse-Lhe: - Larga-me. Tu és uma puta. Fica sabendo que para mim não vales nada. Mas podemos repetir quando te apetecer. Para isso qualquer uma serve. Fiquei tão confusa que nem fui capaz de a consolar. Acho que nunca mais vou falar ao Paulo. 19 de Dezembro Fui fazer compras de Natal. Empurrões. Dia perdido. E dinheiro. 24 de Dezembro É Natal. Este ano já não tive paciência para fazer presépio e não resmunguei com a mãe por ela armar a árvore de plástico em vez de uma autêntica. Estou mais ecologista. Além disso, quero concentrar-me na minha irritação de haver Natal. Os meus amigos desapareceram todos, para cumprir os rituais. Eu fico como uma freira na clausura. Logo vou ter cá 2 avós, 4 tios, 7 primos parvos, além de uns velhos solitários que vêm sempre aterrar aqui. Os meus presentes bons, já sei que vão ser dinheiro. Os outros devem ser livros chatos, porque os meus tios têm uma papelaria e dão-nos os livros que não conseguiram vender. A Dona Antónia oferece-me lencinhos de assoar com rendas como se estivesse a desejar-me constipações e o Sr. Antunes oferece-me bonecos de porcelana, que atiro para uma gaveta, pois só gosto de peluches. 28 A mãe obrigou-me a pôr a casa toda num brinco, quando eu detesto brincos e limpezas. No fim vou ter de ajudar a arrumar a cozinha, enquanto o meu pai boceja na sala a ver o filme da meia noite, esperando que as duas burras de carga se vão deitar. Grande democrata! 26 de Dezembro Se algum dia me casar, há-de ser com um homem que: 1. saiba cozinhar, fazer compras, engomar e arrumar a cozinha. 2. não seja machista; 3. seja órfão, pelo menos de mãe (não estou para aturar sogras); 4. adore fazer viagens; 5. não tenha barriga; 6. não seja careca; 7. não dê sentenças; 8. lave os dentes a seguir a todas as refeições; 9. tenha os olhos verdes. Claro, há outras coisas... Não me caso sem experimentar. Ainda haverá alguém que não experimente? 28 de Dezembro O Raul, o Fernando e mais uns dois ou três desconhecidos estavam a conversar debaixo do velho plátano do largo. - É secreta a conversa? - perguntei eu, que vinha com a Cátia e o Miguel. - Qual quê! Estávamos justamente a contar anedotas. 29 - Desembuchem! - pediu a Cátia, curiosa. - Vocês já sabem aquela da Branca de Neve e do Pinóquio? O Pinóquio estava escondido debaixo da saia da Branca de Neve. Começou a falar e a dizer mentiras, e o nariz a crescer, a crescer. Tanto cresceu que... - Essa já tem barbas! Escusas de continuar - interrompeu a Cátia. O Raul chamou o Miguel de parte e começou a falar baixinho com ele, enquanto o Fernando nos enxotava. Ficámos a espiá-los de longe, com raiva. Quando a conversa acabou, o Miguel veio ter connosco enquanto os outros repetiam: - Não te esqueças: às dez horas, às dez horas! Eu comecei a espicaçá-lo. - Então, metido em segredinhos... O que é que eles queriam? - Coisas de rapazes... Também para ele existe um mundo de rapazes e outro de raparigas? E para mim? 29 de Dezembro Depois daquilo, a Lúcia parece meia pirada. Sai de casa e só volta às tantas da manhã, gasta o dinheiro todo em cigarros, anda com gente de meter medo. Como os pais estão na América e vive com a avó, que é meia cega, meia surda, totalmente antiquada e chorona, ninguém tem mão nela. A minha mãe não me deixa acompanhá-la. Diz que, mais dia menos dia, Lhe acontece outra desgraça (e não sabe ela do resto...), que os maus exemplos se pegam, etc. e tal. Mas se os amigos a desprezarem, o que vai ser da Lúcia? Os adultos são muito egoístas. Continuo a sair com ela. Por isso cheguei hoje às duas da manhã a casa, quando já tinham andado por aí à minha procura. 30 Levei um par de estalos. Foi a minha estreia. O pai não aprovou, mais tarde ouvi-o refilar, no quarto! Será que já alguma vez um par de estalos mudou as convicções de alguém? 30 de Dezembro A mulher-a-dias da minha tia Rita foi presa. Como é que uma mulher de 40 anos, tão simpática, trabalhadora e simplória, que mora no Casal Ventoso, está ligada ao tráfico de droga? O marido, esse, era um patife, mas deixou-a. Tem uma filha amorosa com uns cinco anos, afilhada dos meus tios. Mas a verdade é que encontraram em casa dela uma balança de ourives para pesar droga, ainda suja de pó. Tinha uma caixa cheia de fios de ouro, medalhas e pulseiras que Lhe davam como pagamento. Os meus tios tomaram conta da miúda porque ela não tem mais ninguém e agora vão fazer uma vistoria ao andar deles a ver se ela escondeu lá qualquer coisa. Por isso pediram-me para levar a garota ao Jardim Zoológico. No caminho, olhando as luxuosas torres rodeadas de relva e flores, ela ria, contando: - A minha mãe vai comprar assim uma casa grande, alta, numa rua. Porque a nossa é muito pequenina, de madeira e chove lá dentro. E não tem rua. 31 - A tua mãe trabalha muito? - perguntei eu. - Trabalha na madrinha, na Dona Olga e até à noite quando estou na cama batem à porta e falam. Eu pergunto o que é e a minha mãe diz-me que ainda está a trabalhar. Pisquei o olho a mim mesma. Que agradável passar a tarde diante dos macacos e dos leões! 32 31 de Dezembro Toda a gente da minha idade vai a uma passagem do ano. Menos eu. - Sabes lá quanto tempo vão viver os teus avós... - diz a mãe. Ainda têm sessenta e tal anos ou setenta, vivem pelo menos mais vinte porque não sofrem de nada, só fazem o que querem, levam uma bela vida. Irei passar com eles mais vinte passagens de ano? Vai ser assim: televisão até à meia-noite menos 1 minuto; agarrar no copinho de vinho do Porto e em 12 passas; subir para uma cadeira que abana toda; só eu sou obrigada a subir, eles ficam refastelados; comer as passas com grainhas que rangem nos dentes, engolir aquele vinho que tem mais de vinte anos (deve estar podre!) e faz calor na garganta; (quem me dera antes um pacote de pipocas e uma coca-cola gelada! ) desejar muitas felicidades a todos eles, cuja única possibilidade de felicidade é ficarem na mesma, como as múmias; tenho de pedir 12 desejos, um por cada passa. É como pedir os presentes ao Pai Natal, sabendo que não há Pai Natal... Não peço nada. Aconteça o que tiver de acontecer. O meu desejo era fugir dali num tapete voador e ir a uma festa com os meus amigos. Bem, vou vestir-me para a cerimónia. Hoje ponho mini-saia. 1 de Janeiro Ai como é bom receber uma carta de amor, mesmo quando estamos nas tintas para quem a escreve! 33 quando estamos nas tintas para quem a escreve! O Rodrigo rabiscou-me 3 páginas cheias de pieguices e juras. Enfiou o envelope debaixo da porta para eu receber a surpresa no 1º dia do ano. Acha-me a mais bela, a mais encantadora, a mais torturadora, a mais tudo. Parvo! Gostará de mim terna e eternamente. Eu conheço a ternura dele a dar golpes de karaté. Até já partiu não sei quantas costelas a um tipo. Que par tão ridículo, ele com 1 metro e noventa e eu a dar-Lhe por baixo do braço! Para ser mais romântico, meteu entre as folhas uma flor esborrachada, como os namorados de antigamente. Guardei a flor dentro de Os Lusíadas. Será que Camões também mandava flores secas às suas namoradas? Decerto Lhes escrevia porque então não havia telefone. Talvez Lhes mandasse poemas. "Amor é fogo que arde sem se ver" etc e tal...... Mas não se devia contentar com cartas. Logo que pudesse, passava à acção. É o que eu deduzo do Canto IX, pois ele acha que o paraíso é os homens andarem para aí na boa vai ela com as ninfas todas nuas na Ilha dos Amores. E nós é que somos desavergonhados! 2 de Janeiro Agora o meu cão tem otites. Só faltava esta! Deita pus pelas orelhas e um cheirete que até envenena o ar. É preciso meter-Lhe uma colher de antibiótico pela boca abaixo e pôr-Lhe um remédio nos ouvidos. Como só eu estou em casa, calhou-me o petisco. Enoja-me ter de o tratar. E irrita-me, até porque ele dá saltos de meia noite a fugir. Para o apanhar corro que nem a Rosa Mota! 34 Não estive para morrer de esgotamento por causa do bicho e não o tratei. Sentei-me calmamente a ver na televisão o Michael Jackson. O Pipocas sentou-se aos meus pés, gemendo de vez em quando, estragando-me a música, empestando o ar com o seu cheiro a cão doente. Depois, para cúmulo, começou a coçar as orelhas com as unhas nojentas. Quando, furiosa, olhei para ele, gotas de sangue pingavam na alcatifa. Arrastei-o até à cozinha, pela coleira, prendi-o entre as pernas. Enquanto ele estrebuchava, enfiei-Lhe a colher de antibiótico pela goela abaixo, espremi o creme para os ouvidos, numa luta corpo a corpo. Quando acabei tinha os jeans esborratados de sangue e o meu próprio sangue fervia-me nas veias. - Idiota! - gritei, como vingança. - Maldito! O cão fitou-me com olhos tristes e a sua língua lambuzada lambeu-me as mãos. 3 de Janeiro Amanhã recomeçam as aulas. Tínhamos combinado ir hoje às Amoreiras, mas chove tanto que a maioria desistiu. O Miguel e a Cátia vieram cá e passámos a tarde a jogar computador. A certa altura fartei-me, principalmente porque estava sempre a perder. - Chega. Dizem que isto até faz ataques epilépticos. A televisão estava a dar a Rua Sésamo. O melhor a fazer quando não há nada a fazer é petiscar. Fizemos uns bifes óptimos (de uma carne que a minha mãe tinha comprado em Sintra). Abrimos um pacote de batatas fritas. Íamos começar a comer quando a campainha tocou. Era a Inês. 35 - Olha, vem provar as nossas especialidades. Quais especialidades! O Pipocas saltara para uma cadeira da cozinha, tinha a travessa entre as patas e comia, à mesa como um senhor, o último bife. Todos desataram à gargalhada, menos eu, que Lhe atirei à cabeça com o pacote de batatas. O Miguel então abriu uma lata de comida para cão e espalhou-a numa sanduíche. - É foie gras francês! Do melhor. Pedigree-Pal! O meu tio contou-me que os emigrantes em França costumam comer disto. Que é óptimo. Saboreou com vagar, lambendo os beiços como um guloso. Eu tirei um bocadinho, com uma colher. Não era mau. Atirámo-nos, como cães, à lata e rapámo-la toda. O cão olhava-nos, sentado na cadeira. Que estaria ele a pensar? 7 de Janeiro Um cadeado no telefone! Era só o que faltava. Quando os meus pais chegaram, comecei logo a refilar. - Vocês não têm o direito de me cortar do mundo. De me separar dos meus amigos. - Quem quiser que te fale. Tu só telefonas à noite, quando as chamadas são mais baratas. Não tens tempo na escola para conversar? Estuda, isso é que é preciso. - E se eu adoecer? Se a casa arder? Se a avó me quiser telefonar a dizer que o avô morreu? Senti que a minha mãe estava vencida. O meu pai não contava, tenho-o sempre na mão. Ela foi à gaveta buscar a conta do mês passado. - Passa das marcas! Cada um então anota as chamadas que faz e a sua duração. O assunto estava encerrado. Quem tinha paciência para uma coisa dessas? 36 Quer fazer poupanças e gasta o dinheiro num cadeado para deitar fora! 11 de Janeiro A notícia caiu como uma bomba. O Bebé foi internado numa casa de recuperação para drogados. Falámos para casa dele mas a mãe disse-nos que tinha ido para a quinta de uns parentes. Claro que não ia agora de férias. Em tempo de aulas e para mais com péssimas notas... Vai perder o ano de certeza. Porque é que o escondem? Porque é que não nos deixam visitá-lo? Será que a mãe o irá ver? Se for, continuará a dar-Lhe descomposturas e berros como bem sabemos que era costume? Nós tínhamos-Lhe comprado uma caixa de chocolates, que ele adora. Para nada. Por isso o Raul, diante de nós todos, foi à cabine e discou o número do Bebé. Apareceu a mãe e ele insultou-a: - Vá para o raio que a parta! Você é a culpada do que está a acontecer ao seu filho. Ela desligou sem resposta. E nós comemos, na maior, os chocolates. 12 de Janeiro É bom que um pacto tenha utilidade prática. Nós agora vamos descobrir em segredo o que se passa ao certo com o Bebé. 37 13 de Janeiro A Cátia, o Miguel e eu convidámos o irmão do Bebé para ir à pizzaria, connosco. A princípio ele ficou desconfiado porque nunca Lhe ligámos. Oferecemos-Lhe uma Pepsi, contámos-Lhe piadas para o despistar e por fim, quando o miúdo já ia embalado na conversa perguntou-nos as horas. - Então, e o teu relógio. O miúdo corou. - O Bebé vendeu-o. - Para comprar droga? Acenou que sim. - Que mais é que ele fez? - Tirou as jóias todas da mãe e na véspera de ser internado assaltou um supermercado. Mas vocês não contem. Demos-Lhe um beijo e prometemos segredo. O Bebé era tão tímido, tão bem comportadinho... Até fazíamos troça dele. Ultimamente andava distraído, distante, calado. Seria aquilo verdade? Nunca o teremos conhecido? À noite, antes de adormecer, dei mais de cem voltas na cama. Quantos drogados haverá entre os meus conhecidos? Ele, o Careca... Mas esse não se deve meter em substâncias fortes. Quem mais? 38 16 de Janeiro Este sábado tivemos a nossa primeira tarefa. O Miguel puxou os cabelos para a testa, mascarou-se de óculos de sol, kispo emprestado e encostou-se à porta do Bebé para ver se seguia a família quando o fossem visitar. Eu, também disfarçada, meti-me num dos elevadores e parei-o um pouco abaixo do patamar. Que mal podia acontecer se nos apanhassem? Esperámos toda a manhã... nada! Ao meio-dia tivemos que ir à casa de banho e comer qualquer coisa, cada um por sua vez. Rapidamente voltámos. Deveriam ser duas e meia quando ouvi a voz do irmão do Bebé. - Mãe, deixa-me ir vê-lo... Só da porta. Prometo que não falo nada. - Não podem entrar crianças. Adeus. O outro elevador desceu. O Miguel, lá em baixo, não teve mais sorte porque a senhora entrou no carro, carregou no acelerador e desapareceu na primeira esquina. Ficámos desiludidos. Mas o Miguel teve uma ideia. - E se falássemos agora para o irmão dele? É um criançola, vai descair-se. 39 O Miguel entrou na cabine telefónica, enfiou um lenço dentro da boca e falou com um tom muito sério: - Por favor, chame a Sr.a Dona Laura. - Saiu - disse o miúdo. - É um caso da maior urgência. De vida ou de morte. Para onde foi? - Para a Clínica da Ajuda. O Miguel desligou logo. Esfregámos as mãos de contentamento. - Então o trabalho de grupo correu bem? - perguntou-me a mãe quando voltei. Já nem me lembrava que arranjara aquela desculpa. - Adiantámos um bocado. Mas ainda não acabámos. Não era mentira. 24 de Janeiro Como às quintas-feiras não temos aulas à tarde, a Cátia e eu resolvemos ir visitar o Bebé, logo a seguir ao almoço. À hora a que a mãe dele de certeza trabalha. O Miguel não pôde ir porque estava com febre. A Clínica da Ajuda é um grande casarão pintado de cor-de-rosa, com um jardim a toda a volta. Dissemos à entrada que éramos primas do Jorge Ferreira (é este o nome dele), que vínhamos de propósito do Norte para o visitarmos, por isso deixaram-nos entrar. - Onde fica o quarto? - perguntei eu. - Ele não está no quarto, procurem no jardim. Havia por lá vários jovens, uns a jardinar, outros sentados nos bancos com olhar parado. Do Bebé, nem sombra. Finalmente encontrámo-lo, encostado à porta da garagem. - Bebé! - gritei eu. Ficou especado, sem palavras. 40 Demos-Lhe um abraço, contámos-Lhe as últimas novidades. E ele, nada. - Gostas disto aqui? - quis saber a Cátia. Encolheu os ombros. Depois resolveu-se a falar. - Nos primeiros dias foi horrível. Eu não podia viver sem aquilo. Davam-me umas injecções não sei de quê, mas de pouco me serviam. Agora estou mais habituado. Mas não sei se aguento esta prisão. Vocês não me ajudam a fugir? Já estou bom. - Tens de te curar completamente! - disse eu. - Quando saíres havemos de fazer programas bestiais. Vaisver que o tempo passa num instante. Ele apontou para uma moça muito loura, com uns vinte e tal anos. - Aquela já cá está pela quarta vez. E apanhou sida. Há mais assim. Parecia uma artista de cinema, a filmar uma cena de despedida. 29 de Janeiro No ano 2000, um terço da população mundial contaminada com sida, No ano 2000, um terço da população mundial vai estar contaminada pela sida, vinha no jornal. Quantos amigos meus sofrerão dela? Eu própria a apanharei? Acho que vou ficar virgem toda a vida, o que não está muito de acordo com os meus projectos. Mas que projectos se podem ter quando se tem sida? É injusto isto acontecer agora. É preciso muita lata para pedir a um namorado o teste da sida, não é? A um marido, ainda é pior... É atirar-me de olhos fechados para um abismo... O Verão passado, na praia, quando nos entretínhamos a revistar as carteiras dos rapazes, vários traziam, bem à vista, preservativos. Para armar, claro. Não acredito que tenham muitas oportunidades. Mas os pobres, os desempregados, os ignorantes usá-los-ão? 41 Então os machistas... Quanto aos drogados... Nem sequer usam seringas próprias. É preciso um protector para fazer amor, outro para evitar os efeitos do buraco do ozono... Será que no futuro temos de enfiar um equipamento de mergulhador ou astronauta para sobrevivermos. 1 de Fevereiro A setora de matemática correu tudo a negas. Até parece que se sente feliz quando anuncia as notas: Cristina 1 Rodrigo 4 Vanessa 2 Fernando 7 Sofia 7 Só o Miguel teve um 12. Seremos todos estúpidos ou ela é que é tão estúpida que nem sabe ensinar? 2 de Fevereiro Estive a pensar que a nossa turma é péssima porque nós somos óptimos: Não somos carneiros e por isso não fazemos todas as parvoíces que nos mandam fazer (lembrem-se de que os carneiros acabam todos no talho). Não somos marrões, porque quem passa a vida a marrar não tem tempo para viver. Não estamos calados, porque o importante é comunicar. Achamos uma estupidez estar 6 horas por dia a ouvir pessoas com a mesma profissão: professores. Porque não nos dão aulas cantores de rock, 42 artistas de cinema, corredores de motos, escritores, médicos, pescadores, engenheiros, sei lá quê? Pessoas que tenham a ver com a vida real, que façam coisas em vez de ensinar abstracções. 10 de Fevereiro A principal missão dos pais, segundo noto, é mostrarem-se chateados. Os meus, para não fugirem à regra, estão chateados porque eu nunca quero sair com eles. Digo que tenho de estudar (mas não estudo), que tenho combinações feitas (raramente tenho), que tenho sono (mas em vez de ir para a cama vou ver televisão). Quando me fizeram, pensaram que me compravam como um boneco fofinho e durante muito tempo eu fui boneco fofinho. Agora não pertenço a ninguém. Eles têm inveja dos meus amigos porque acham que os troquei por eles. Dizem que os pais são para toda a vida e os amigos passam. Deixá-los passar. Outros aparecem. Apetecia-me dizer-Lhes: Mas os amigos escolhem-se. E os pais... Mas calei-me. Aliás eles não são maus de todo. Se não tivessem mais 20 e tal anos do que eu e não fossem meus pais, talvez até os escolhesse para amigos. Sei lá... 11 de Fevereiro Às vezes os pais também fazem as suas vingançazinhas. Como não têm mais filhos e não têm portanto com quem me comparar a toda a hora, deram para ligar... adivinham a quem? Ao cão! A mãe que andava sempre a escorraçá-lo para a cozinha para não largar pêlo na sala, comprou uma almofada de veludo para o bicho se sentar ao pé de nós. 43 O pai faz-Lhe festas enquanto vê televisão e, para cúmulo, até Lhe trouxe uma caixa de bolachas inglesas com cálcio e vitaminas. A mim não me oferecem nem umas reles pastilhas elásticas. Não me deram dinheiro para o concerto em Alvalade. Tudo por eu ter muitos amigos. Como é que o cão pode ter muitos cães amigos se só anda de trela? Tudo por eu ter negativa a matemática e a francês! E o cão nem sabe falar português (embora eles digam que percebe tudo em diversas línguas). Até já me parece que, quando chego a casa, o Pipocas olha para mim, trocista, como se dissesse: Estás a ver, o menino da casa sou eu! 15 de Fevereiro Fomos novamente visitar o Bebé mas logo à entrada disseram-nos que já ali não estava. Dirigimo-nos a casa dele. Tocámos à porta. Ninguém atendia, mas a porteira apareceu. - Somos colegas do Jorge do 1º andar. Que é feito dele? - Esse malandro? Olhem para o elevador... O espelho estava todo partido, as plantas dos vasos tinham sido arrancadas. - Se vocês são da mesma laia, ponham-se a andar. Não sei como é que a Sr.a Dona Laura ainda não enlouqueceu, com aquele demónio lá em casa. Saímos a correr. Seria possível? O Bebé que nós conhecíamos tinha-se transformado noutra pessoa? 44 19 de Fevereiro Aproxima-se o Carnaval. Agora fazemos todos os dias batalhas de ovos e farinha. Nos intervalos temos de ir lavar as cabeças, todas peganhentas, e voltamos para as aulas a pingar. (Segundo a minha avó, vou apanhar, pelo menos, 50 pneumonias!) Atiramos ovos para os pára-brisas dos carros e para as janelas dos autocarros. Mas hoje cercou-nos um grupo de miuditos de pé descalço, pedindo: - Uns ovinhos, para o nosso almoço. Ficámos embasbacados. Demos os ovos. Mas não de graça. Obrigámos os miúdos, que não deviam ter mais de seis anos, a prometer levantarem as saias de todas as mulheres que passassem. Infelizmente apareceu um polícia e ficou tudo em águas de bacalhau. 22 de Fevereiro Que cheiro horrível empestava a escola! Parecia de bombinhas de mau cheiro. Quem as teria deitado? O irritante senhor Frederico começou logo a mandar vir, que eram proibidas brincadeiras de Carnaval, que ia chamar a Direcção. E foi. Mas quando o Dr. Silveira se preparava para aplicar os seus simpáticos castigos, o Setôr de Físico-Química avançou, sorrindo: - Não se trata de uma brincadeira de Carnaval. Queria apenas mostrar aos alunos qual o cheiro do gás sulfídrico. Acho que nunca mais se vão esquecer. - É verdade! É verdade! - gritámos nós, às gargalhadas. O Dr. Silveira fez um riso amarelo. Mas para que serve uma escola senão para ensinar? 45 E depois, como diz o ditado, é Carnaval, nada fica mal. 23 de Fevereiro Pedi para me porem um espelho dentro do roupeiro. Chamaram-me logo vaidosa, mas a minha mãe achou que era um legítimo pedido feminino e alinhou. Claro que eu sou vaidosa e passo tempos e tempos a experimentar roupas minhas ou emprestadas, a pôr e tirar brincos, a fazer penteados. Mas o espelho é também para eu me conhecer. Sem brincos, sem roupas, quando estou sozinha. Para ficar a ver-me mudar, sem fazer nada para isso. Por baixo dos camisolões e dos jeans, o meu corpo esconde-se. Mas quando me dispo, ele inquieta-me, alegra-me, atrai-me. Já não sou uma garota, já tenho tanto peito como algumas artistas de cinema, a minha cintura estreitou-se ou parece mais fina porque as ancas se tornaram redondas, uma penugem ruiva cresce-me entre as pernas. Tenho o pescoço alto como uma gazela, os cabelos descem-me, ondulados, quase até à cintura. Sou linda como um bicho selvagem. Não devia dizer isto mas também ninguém me ouve. Nua, sinto-me selvagem, apetece-me fazer coisas selvagens. Amar numa praia deserta, com gaivotas a voar sobre a minha cabeça. Já tenho o período há 3 anos. Sou uma mulher. Mas finjo e os outros fingem que não sou. Menina, é como me chamam. 4 de Março Este ano quase toda a gente apanhou gripe, constipações, resfriamentos. Às vezes nas aulas desatamos todos a espirrar, uns sem querer, outros de propósito, para os professores ficarem furiosos. 47 Acho que o vírus diabólico vinha nos sacos de água que apanhámos no Carnaval. O setôr de ginástica é obrigado a dispensar-nos porque, se não o fizer, tossimos tanto que ele até fica surdo. A setora de matemática, que é maníaca, diz que qualquer dia a contaminamos e já não chama ninguém ao quadro. Para a assustar ainda mais, o Raul espalhou ramos de eucalipto pela aula e pôs em cima da secretária um monte de radiografias. Foi remédio santo, nós é que estamos doentes, mas ela é que faltou uma semana. 8 de Março Os meus pais pensam que eu tenho muitos apaixonados. Passam a vida a dizer parvoíces, à moda do tempo deles. Se soubessem... O Rodrigo adorava-me, agora trata-me por micróbio falante. O Raul telefona-me todas as noites, a fazer queixas da Inês. O Zé bate-me à porta porque a mãe da Sílvia não a deixa sair sozinha com ele e eu faço de pau-de-cabeleira. O Pedro chateia-se a toda a hora com toda a gente, só comigo é que não. Procura-me só para desabafar. O Fernando anda perdido por uma inglesa que conheceu em Albufeira. Quer que eu o ajude a escrever e decifrar cartas, porque é um zero a línguas. Com certeza em Albufeira só dava beijos à rapariga, nem sequer falou com ela... 48 O Miguel toca-me constantemente à porta... Mas vem quase sempre com a Cátia. Tem um pacto secreto comigo. E os pactos, que eu saiba, não levam a paixões. Antes levassem... Todos me convidam para o cinema, para a praia, para os anos, para fazer número. Falam-me a combinar as horas, a pedir para eu preparar sanduíches, comprar fruta, prendas, bilhetes... Mas que me importa? É tão bom ser livre! 9 de Março O Bebé não voltou mais à escola. Anda na vadiagem, foge de nós. Acho que toda a gente está a ficar farta dele. 12 de Março A Vanessa chegou-se ao pé de mim e perguntou-me de chapa. - És feliz? Fiquei engasgada. - Sei lá se sou feliz... Realmente não sei. Acho que dantes, quando era pequena e ridícula, eu às vezes era totalmente feliz. Lembro-me de quando recebi a bicicleta com rodinhas de lado e obriguei o meu pai a levar-me logo para o Campo Grande. Como era feliz a pedalar, a sentir o vento na cara, a saber-me dona daquela máquina prodigiosa! Era tão feliz no Natal, a desembrulhar presentes, na praia a chapinhar na espuma... 49 Hoje a felicidade é difícil de agarrar. Sonho com isto e aquilo tão intensamente que, quando acontece, se por acaso acontece, é felicidade em segunda mão, perdeu metade do sabor. - Tens tudo para seres feliz - dizem os meus pais -, mas só refilas, embirras, irritas, nunca estás contente com nada. Encolho os ombros, não respondo a figuras de Museu. Olho para a televisão. Passa anúncios - gente feliz : porque gasta lixívia, usa collants, lava os dentes. Feliz pela cola-cola, pelo papel higiénico, pelas batatas fritas, pelos insecticidas... O telefone toca. - Para quem há-de ser? - diz a mãe. - É de mais, parece que os teus amigos não podem viver sem ti. - Talvez não possam - respondo eu, quase, quase, quase feliz. 18 de Março Nós os três, a Cátia, o Miguel e eu, pedimos uma entrevista ao Dr. Silveira na sala da Direcção. Quem avançou foi o Miguel, que é o melhor aluno da escola e por isso é sempre ouvido com mais atenção. - Gostávamos que o Senhor organizasse uma semana contra a droga. Já pensámos tudo. Passava-se no ginásio um filme sobre a droga, todos escreviam redacções sobre o assunto para as aulas de português, faziam-se cartazes colectivos nas aulas de desenho e com eles se enfeitavam as paredes da escola. Organizava-se uma sessão ao fim da tarde para os pais, porque eles também precisam de saber. O director ficou estupefacto. Coçou o bigode, tossiu três vezes e por fim falou. - Ainda bem que vocês são contra a droga e a querem combater. Mas felizmente este colégio não sofre desse horrível flagelo social. E será melhor não falar de mais do tema para não atrair almas ingénuas. Vocês não sabem que o fruto proibido é sempre o mais apetecido? 52 - E se nós Lhe dissermos que há droga? O Jorge Ferreira tem estado internado. - O Jorge Ferreira não voltará a pôr aqui os pés. A fruta estragada não pode apodrecer a sã. Vocês avisem-me de mais alguém que se meta por esses caminhos. Aqui nem drogas, nem indecências. Queria fazer de nós espiões. Queria manter as aparências para os paizinhos não tirarem os meninos da escola. Despediu-se de nós com o seu sorriso super-branco de dentes postiços. Saberia ele o que se passava com o Bebé ou teríamos sido nós que o tínhamos informado, expulsando-o automaticamente? Apeteceu-me chorar. 19 de Março Como sabia que o petisco que a avó Glória me ia dar eram línguas de bacalhau porque as vi de molho, resolvi escapar a esse tormento horripilante. Comprei uma pizza e apresentei-me lá com ela, ainda quentinha. - É para provarem. A avó torceu o nariz. Mas o avô Francisco provou, repetiu e combinou logo comigo irmos no domingo todos a uma pizzaria. - Nunca pensei que o avô gostasse... - descaí-me eu. Ele deu-me uma palmadinha nas costas. - Quando era miúdo passava-se uma fome... Fiquei órfão com 9 anos. Uma vizinha dava-me um pão saloio, outra um pedaço de queijo, outra uma sardinha, uma cebola ou chouriço. Eu apanhava tomates, no tempo deles, punha tudo numa grande fatia de pão. Pedia à tia Joaquina, que tinha forno, para aquecer lá a minha comida e, sem saber, já então comia pizzas! 53 20 de Março Os pais da Vanessa divorciaram-se agora. Mais uns. De 31 que somos na minha turma, 11 são filhos de pais divorciados. É certo que 2 são gémeos. Mesmo assim... Os adultos, principalmente os velhotes, andam sempre com muita pena dessas pobres criancinhas. Mas eu vejo que eles nalgumas coisas têm muito mais sorte. O pai e a mãe nunca entram de acordo para Lhes dar um castigo. Recebem duas semanadas, têm férias por duas vezes. Os padrastos e madrastas que eu conheço são simpáticos, evitam discussões, dão-Lhes imensa liberdade. Os que não têm padrastos recebem todos os miminhos da mamã... A mim marcam-me sempre horas certas (e estúpidas) para chegar, fico sem semanada por dá cá aquela palha. Os meus pais fartam-se de discutir um com o outro mas, quando se trata de me prejudicarem, estão sempre de acordo! Será que algum dia se irão divorciar? 22 de Março O estripador matou mais uma prostituta e deixou-a de tripas ao léu. Será que apanhou a sida com esta ou com outra e agora se quer vingar? Será que odeia as mulheres? Que é louco? Não falámos de outra coisa nos intervalos. Uns parvos, para se darem ares, puseram-se a dar palpites como se conhecessem muito bem essas pessoas e esses meios. Acho que eles só têm ouvido conversas e lido romances policiais. 54 23 de Março A Lúcia chegou à escola mais excitada que nunca. Diz que viu o estripador ontem à noite, que ele quase a matava, mas conseguiu fugir. Nós ficámos horrorizados mas o Raul não se aguentou e começou a soluçar. De riso ou de choro? As lágrimas até Lhe caíam pela cara abaixo. Afinal foi o Paulo que, de combinação com ele, pediu a um amigo que Lhe fizesse uma espera e Lhe mostrasse um canivete. 25 de Março Descobri, há tempos, que o avô tem uma guitarra e sabe tocar! Emprestou-ma para eu aprender na escola. Agora, depois de almoço, ficamos os dois a tocar. Eu só sei três músicas, mas ele sabe tocar tudo, de ouvido. Hoje, depois do fadinho corrido, saiu-me com uma música dos Beatles! Até bati palmas. 1 de Abril Dia das mentiras. Pregámos tantas, que não têm conta. Mas, para mim, a melhor foi a que pregámos à setora de Matemática. Quando ela chegou à aula estávamos todos agarrados à cabeça e à barriga. - Ai que o almoço da escola estava estragado... - Setora, posso ir à casa de banho? 55 Felizmente o Raul foi logo o primeiro a sair, porque senão estragava a festa com as risotas. A pouco e pouco fomos saindo, um a um. - Ai, que cólicas! - Ai, que aflição! Claro que corremos logo para o café. Para os gelados. Foi lá que o Dr. Silveira nos encontrou, depois de muito nos procurar, mais aflito com a reputação do Colégio que com a intoxicação alimentar. O Raul apontou para o calendário com uma mulher em bikini, na parede. Parecia que tinha fogo no rabo, o Director, a sair dali! 3 de Abril Houve cinco assaltos esta semana no meu bairro. Sempre durante o dia, às horas a que as pessoas estão fora. Anda toda a gente cheia de medo. Os meus pais mandaram colocar um alarme, o que é uma maçada, porque me esqueço e faço tal barulheira a entrar em casa que até me assusto. 5 de Abril Férias da Páscoa! E os meus pais no emprego felizmente. Levantei-me às duas da tarde, pus o banho a correr e o Rui Veloso no máximo. Quando voltei ao quarto, além do meu disco, ouvia as pancadas que a velha do rés-do-chão dava no tecto dela (ou seja no chão do meu quarto). Já tinha idade para ser surda ou deixar de chatear. Por isso não baixei a música, fui comendo sanduíches de atum e ovos mexidos. A velha finalmente deixou de bater mas alguém tocou furiosamente à campainha. Fui a correr, devia ser a Cátia, abri a porta de sopetão: era a velha, com a vassoura a fazer de bengala. 56 - A menina não tem respeito por ninguém! Baixe o som da música ou chamo a polícia! Abanava com a vassoura. Como se eu tivesse medo! Fiz um sorriso amarelo e fechei a porta. Tem razão a minha avó quando recomenda: - Nunca abras a porta sem espreitares pelo postigo. 57 7 de Abril Despediram 50 empregados da empresa onde trabalha o meu pai. Deve ser por isso que chega a casa cada vez mais irritado e me obriga a estudar até à hora do jantar. - Só vence quem mais trabalha! - é o lema dele. Irritante, porque eu dantes ia sempre um bocadinho para o café. Agora acha que só posso sair ao fim-de-semana e que as pessoas que vão para os cafés nunca vencem. Porque é que ele lá vai? Acha que temos de lutar uns contra os outros à procura de trabalho, como cães atrás de um osso. Mas os meus amigos não querem lutar, querem ser amigos e curtir a vida. "Ao diabo o trabalho!" - penso eu. Mas sem dinheiro como é que vou arranjar todas as coisas maravilhosas com que sonho? Terá razão a minha avó Maria quando Lhe atira à cara que devia ter acabado o curso de engenharia? Por que não o acaba agora? Diz que não tem tempo, que é tarde de mais. Que autoridade tem então para me forçar a mim? 11 de Abril Mais uma Páscoa. Aqui não há procissões, nem festas, nem visitas de padres como dantes na aldeia dos meus avós. Dão-me um pacote de amêndoas e a avó Glória cozinha, à maneira dela, um cabrito no forno. E faz um folar gigante, como se tivesse muitas visitas. Não aparece ninguém. Os pais dos meus amigos aproveitaram a ponte e eles foram para qualquer parte. É a Primavera que todos procuram. Eu fico a vê-la, ao longe, da janela. 58 12 de Abril Hoje, sem sair daqui, fartei-me de me divertir. Vieram cá a Inês e o Raul. Estávamos na varanda quando vimos a velha a deitar espinhas e peles de carapau aos gatos. "Bichinho, bichinho", dizia ela, mas só apareciam cães. Então foi buscar ossos de frango (pelos vistos, farta-se de comer) e atirou-os também para o passeio, juntamente com pão e arroz. Os cães abocanharam o que Lhes apeteceu e deixaram o resto. - Dizem os velhos mal da nossa geração - observei eu. - Nós somos contra a poluição das praias, das florestas, das cidades. Eles gostam da porcaria. - Mas esta vai aprender - riu-se o Raul. Pegou num saco de plástico, desceu sorrateiramente as escadas, olhou para a varanda do rés-do-chão que estava vazia. Num instante pegou nos restos (pão cheio de espinhas e peles) e meteu-os na caixa do correio da senhora. Um bocado depois tocou o carteiro, como habitualmente: a Dona Zulmira desceu, decerto, a ver se tinha carta dos sobrinhos de África. Ficámos os três no patamar, a ouvi-la guinchar: - Ordinários! Ordinários! Se eu apanho quem fez isto, prego-Lhe uma vassourada. Nem dos animais têm dó! Corações de pedra! Nós ríamos à socapa. Mas o parvo do Pipocas precipitou-se pelas escadas e pôs-se a dar saltinhos à roda da velha. Ter-nos-ia denunciado? Não sei. A velha acalmou. Deve ter ficado ali a fazer festas ao cão, porque de vez em quando repetia: - Realmente vocês são os melhores amigos. À hora do jantar ouvi o alarme de uma ambulância. 59 Fui ver o que era. Dois bombeiros levavam a Dona Zulmira numa maca. A porteira choramingava. - Coitadinha, foi do desgosto. Recebeu hoje carta a anunciar que Lhe mataram os dois sobrinhos em Angola. Não tinha mais ninguém. Aqui está a carta, toda amarrotada e suja. Por onde terá andado! 14 de Abril A Dona Zulmira voltou do hospital. A minha mãe encomendou à avó um bolo caseiro e pediu-me para o ir buscar. Queria obrigar-me a levá-lo à velha senhora... Não tive coragem de a encarar. Inventei desculpas. - Então vou eu mesma levá-lo. E se a desgraçada Lhe contava as nossas gracinhas? Para meu descanso, a porteira estava lá e recebeu-o. A Dona Zulmira adormecera. Que vá dormindo em paz! 16 de Abril Dizem que sexta-feira é dia de azar, mas acho que é o melhor dia da semana. À sexta fazemos todos os planos para sábado e domingo. Planos bestiais. Que depois não têm a mesma graça porque os amigos faltam, os pais atacam, o boletim meteorológico manda chuva, os trabalhos de casa não ficam prontos a tempo. Será que eu já estou tão caduca que acho que sonhar é melhor que viver? Diabo seja surdo, cego e mudo! Que as bruxas, os gatos pretos, os mochos e as vassouras voadoras de sexta-feira me ajudem a nunca envelhecer. 60 Os abortos Como determinar, em primeiro lugar, se há atraso no seu ciclo mestrual - Anote num calendário o último dia do seu último ciclo (este primeiro dia é aquele em que a sua mestruação começou). - A partir do dia que marcou como o primeiro (dia 1), conte no calendário até ao dia 28 (se o seu ciclo é habitualmente de 28 dias). - Se o seu ciclo ultrapassou esta data sem que a mestruação apareça, conte quantos dias passaram desde o dia 28. Este número de dias indica o atraso do seu ciclo. Subtraindo o número de dias que constituem o seu ciclo menstrual habitual ao número de dias que se passaram desde o primeiro dia do seu período menstrual, obtém o número de dias do atraso do seu ciclo menstrual. Exemplo: se 36 dias se passaram desde o dia 1 do seu último ciclo menstrual, e o seu ciclo menstrual é de 28 dias: (36- 28=8), o seu ciclo tem 8 dias de atraso. 62 17 de Abril Eu agora ando lixada por causa duma prima de minha mãe. A rapariga ficou grávida e não disse nada a ninguém. Agora que descobriram, só faltam 3 meses para a criança nascer. Ela não diz quem é o autor do crime, o que ainda põe toda a família mais furiosa. O pai ameaça que o mata se o apanhar; naturalmente por isso é que ela não diz. Acho que, se tivessem sabido antes, a tinham mandado fazer um aborto, embora sejam todos religiosos, porque é uma vergonha ter um filho com 16 anos. Se casasse, só Lhe ralhavam mas ficava tudo bem. Assim não podem bater-Lhe porque não se bate numa rapariga grávida, nem podem matar o pai da criança porque não sabem quem é. Estive a ler um livro sobre bebés dentro da barriga das mães e é impressionante como eles desde tão pequeninos têm um coraçãozinho a bater, mexem os pés, as mãos, até chupam no dedo. Deve ser horrível fazer um aborto e ver o bebé cá fora, pequeno como um ratito, a chupar e dar pontapés. Vê-lo querer respirar sem conseguir. E morrer. Eu não tinha coragem, mas também não tinha coragem de estragar a minha vida por causa de uma criancinha que não tinha sido encomendada. Entregava-a para adopção. Deve ser muito mais prático ser homem. De qualquer modo, não me vou meter em sarilhos. Agora andam sempre a proibir-me as saídas, a falar dos rapazes como se eles fossem demónios, a meter-me medo com a sida, com a gravidez. Nem sequer conheço essa prima maluca ou infeliz (conforme os pontos de vista) que mora no Porto e que já começo a detestar pelo mal que me faz a 300 quilómetros de distância. 63 18 de Abril A Cátia tinha um canário numa gaiola, na marquise da cozinha. Quando íamos lá a casa, soltávamo-lo sempre. Hoje fizemos o mesmo. Mas o parvo foi logo pousar numa pega da panela que estava ao lume! Queimou-se e zás - caiu na água quase a ferver. A Cátia correu para a panela mas estava quentíssima. Eu fui buscar a concha da sopa e tirei-o. O bicho mal respirava, as penas ensopadas deixavam ver a pele toda cozida - O melhor para as queimaauras e manteiga. - É álcool. - É creme para a praia. Pusemos-Lhe um pouco de tudo. - Com queimaduras do corpo todo ninguém se safa - disse o Miguel. - Não há respiração cutânea. O melhor é matá-lo para ele não sofrer mais. A Cátia pôs-se a chorar. - Não tens éter, aquilo que se usa para tirar a cola dos pensos e o verniz das unhas? Podemos anestesiá-lo. A Cátia foi ao armário da casa de banho buscar o frasco e um maço de algodão. - Agora uma tigela, para o vapor se concentrar. Estava tudo a postos. Mas o pássaro já não mexia. Acabava de morrer. - Íamos praticar a eutanásia, não era? - murmurei eu. - Se fosse com alguém da vossa família, vocês tinham coragem? Fartámo-nos de discutir. Não chegámos a acordo, senão para comermos todas as bolachas que havia na despensa. 64 19 de Abril Recomeçaram as aulas. O despertador às 7. Tudo o mais. Sem comentários. 23 de Abril A mãe resolveu levar-me à ginecologista por eu ter dores de barriga em certos dias. Fiquei furiosa. Tantas amigas minhas sofrem do mesmo. A avó Glória escandalizou-se até alterou a voz. - Ó Adelaide, arranja uma botija de água quente para a miúda. Médicos para isso... De tanto serem remexidas até perdem a vergonha. Não pude deixar de rir. Mas, de facto, pelo menos por enquanto, eu tinha vergonha. Desconfiei logo que ela queria levar-me lá por causa do que se passou com a prima do Porto. Pensaria ela que eu também... Ouvi dizer num programa de televisão que um inquérito demonstrou que os pais estão convencidos que os filhos sabem muito mais do que sabem, fazem muito mais do que fazem... A médica, com um sinal, mandou-a ficar fora, o que por um lado foi bem feito, porque devia querer bisbilhotar. Despi-me diante daquela desconhecida, de bata com óculos de aros de metal e luvas transparentes. Apalpou-me o peito, a barriga, e por fim disse: - Vou observar por dentro o que puder. As minhas pernas tremiam como varas verdes. Sentia que ia ser violada. Virei a cara para não ver um instrumento de metal brilhante e uma luzinha. Para meu espanto, não me doeu. Só uma impressão. - Tudo fino! - disse ela. - E vi bem. Tens um hímen complacente. Passa-se através dele sem problemas. 65 - O que é isso? É bom ou mau? - Eu acho óptimo. Mas se fosse antigamente, quando as raparigas ao casar tinham de mostrar sangue nos lençóis, podias ver-te em maus lençóis. Até podias ser rejeitada. Sentei-me depois diante da secretária, enquanto ela passava uma receita. - Tomas até 4 comprimidos destes por dia quando tiveres dores. Mas isso vai passar. Deu-me um folheto para eu ler em casa, sobre os órgãos sexuais da mulher e do homem, a fecundação, os anticoncepcionais, as doenças transmissíveis sexualmente. E estatísticas. O número de adolescentes grávidas aumentava assustadoramente. O ano passado houve dez mil. Algumas não tinham mais de 12 anos! - Queres fazer alguma pergunta? - Não, não preciso. - Tudo o que aqui se passa fica só entre nós. Vem falar comigo, não depois, mas antes de teres problemas. Saí. Senti-me mais crescida. Vou emprestar o folheto à Cátia, que mo pediu, e dar à Lúcia fotocópias de umas páginas, que Lhe devem fazer falta. E, já agora, também as vou colar aqui.* Se os historiadores um dia puserem um nome à nossa época, vão chamar-Lhe "a era do preservativo". Como fã (teórica) do sexo seguro, vou pendurar no meu quarto o anúncio da Benetton, com preservativos de todas as cores, que tirei duma revista. Pensando bem, será melhor oferecê-lo, senão lá em casa ainda me dão piadas, apesar de se acharem muito progressistas. Deixá-los manter a minha imagem rodeada de assexuados ursinhos de peluche... É preciso saber viver e sobreviver com a família. * Folheto essencialmente baseado em "A sexualidade humana: 35 questões sobre a sexualidade para jovens", publicação da Associação para o Planeamento da Família. 66 DOENÇAS DE TRANSMISSÃO SEXUAL Nota: São muitas, algumas delas graves e mortais como a hepatite B e a Sida. Infelizmente nestes casos nem sequer há sintomas visíveis e uma pessoa seropositiva pode ignorar durante anos que o é e infectar a numerosos parceiros sexuais. A maior parte destas doenças têm felizmente menor gravidade, exigindo no entanto rápido tratamento. Síflis - Manifesta-se por uma ferida nos órgãos genitais ou na boca, que acaba por desaparecer deixando uma marca alaranjada. Herpes - Provoca também feridas nos órgãos genitais, por vezes com dores e febre. Gonorreia - Apresenta pus na uretra do homem e vagina da mulher. Outras: Quando notarmos algo de anormal, doença de pele ou secreção estranha convém consultar imediatamente um médico. Importante: A forma mais eficaz de nos protegermos é a utilização do preservativo. Métodos contraceptivos: Pílulas ou anovulatórios - São hormonas que impedem a ovulação. Só devem ser tomadas por indicação médica. Oferecem muita segurança. Dispositivo intra-uterino - Tem de ser colocado por um especialista. Oferece muita garantia. Diafragma - É um tampão de borracha que se coloca na entrada do útero, impedindo a penetração dos espermatozóides. Aconselha-se o seu uso com cremes, espumas, etc. É seguro. Preservativos - É um invólucro de borracha elástica que se enfia no pénis, onde fica retido o esperma. Deve ser mantido durante toda a relação, sendo nesse caso bastante seguro. Cremes, espumas, cones espermicidas - São pouco seguros. Devem ser usados com o preservativo ou o diafragma. Coito interrompido - Ou seja retirar o pénis antes de ejacular. É perigoso, pois há espermatozóides que se libertam entretanto. Abstinência periódica - Nos dias em que se prevê que ocorra a ovulação e nos mais próximos. Não é seguro. Duche vaginal - Após as relações. Não é seguro. Importante: De entre os métodos seguros o preservativo é o único que não exige consulta médica. 67 24 de Abril Este ano tenho de decidir o que vai ser a minha vida. O Joaquim já sabe que quer ir para sociologia. O Miguel decidiu aos seis anos que havia de ser - médico. A Mafalda nasceu com o destino marcado - vai para Farmácia, porque o pai dela tem uma e só pode deixá-la a quem for farmacêutico. A Cátia vai ter mais um ano para pensar, leva chumbo pela certa. A Vanessa sonha com viagens, será hospedeira, pensa ela. Eu acho que, com os dentes saídos e o rabo espetado, nunca conseguirá... A maior parte dá para tudo e para nada, como eu. - Vais ser um Leonardo da Vinci - diz a minha mãe, a gozar. - Não consegues escolher porque és um génio total. - Vais ser um zero à esquerda - diz o meu pai. - Juntas a habilidade para preguiçar com o gosto da futilidade, os vícios da sociedade de consumo e muito mimo à mistura. - Todas as mulheres um dia se casam e pronto - resolve a minha avó. O avô Francisco ri, fala da nossa loja de remédios de batata e cosméticos naturais. - Deixa, que toda a gente se safa, escarafuncha o seu caminho. Só na altura é que geralmente se sabe para onde se vai. Agora, que eu precisava de ajuda, ninguém me quer ajudar. Com as notas que sempre tenho tido, à recta para passar, como é que vou entrar numa universidade? Talvez aceite o conselho do Dr. Silveira e faça os testes de orientação profissional. 68 25 de Abril FERIADO! A setora de português mandou-nos fazer entrevistas a gente da nossa idade sobre o que foi o 25 de Abril. Instalei-me com a Cátia e o Miguel junto à paragem das camionetas. Quase toda a malta jovem ia para a praia. À nossa pergunta respondiam: - Uma coisa histórica. - Atiraram abaixo com um presidente chamado Salazar. - Qual quê! O homem caiu de uma cadeira e morreu. - Foi uma revolução qualquer, há muito tempo, antes de eu nascer. - É um feriado. E basta. Todos bateram palmas. Pois em minha casa logo pela manhã a mãe espeta um cravo vermelho numa jarrinha. Dantes punha-o ao peito. E faz rodar um disco antigo do Zeca Afonso que por acaso até é giro. O meu pai levanta-se tarde, veste-se à balda para o almoço de confraternização com os seus companheiros do 25 de Abril. A uns arrancaram as unhas, outro tem marcas de pontas de cigarro pelo corpo. A Maria das Dores esteve a fazer estátua, que não é propriamente posar para um escultor mas estar de pé dias e noites com uma luz virada para os olhos. O meu pai não sofreu nada. A prisão deve ter sido a grande aventura da vida dele, esteve com assaltantes a quartéis, participou em fugas, trocava mensagens por pancadinhas na parede. Foi até na prisão que se casou. Do seu tempo de revolucionário ficou esta sardinhada anual, regada a vinho tinto. Pois vivam as revoluções que dão feriado! Infelizmente são só três: o 5 de Outubro, o 1º de Dezembro e o 25 de Abril. 69 26 de Abril O Pipocas desapareceu. Já fomos ao canil mas ele não estava lá. Corremos as ruas todas das redondezas não o descobrimos, nem vivo nem morto. Naturalmente trocou-nos pela vadiagem. Talvez ande a farejar caixotes de lixo, a perseguir cadelas ou simplesmente a experimentar a liberdade. E se o apanham para fazer nele experiências médicas? Se Lhe injectam algum vírus mortal... Também haverá Direitos dos Animais? Se houver é só para alguns. Os outros matam-se, esfolam-se, comem-se, com aprovação da câmara e dos médicos veterinários. Com as pessoas passa-se quase o mesmo. É como li no outro dia num livro que o Miguel me emprestou: "Somos todos iguais mas uns são mais iguais que os outros." Como se chama o livro? Ah!, "O Triunfo dos Porcos". 27 de Abril A Inês não tem semanada, porque só leva negas, mas a verdade é que compra a Elle, a Marie Claire, a TV Guia, oferece gelados aos amigos, nunca deixa de ir ao cinema, à pizzaria, de alugar vídeos, por estar falida. - Como é que tu fazes? Eu ando sempre tesa. - Ora, a minha mãe é uma desmazelada. Tem moedas de 20, 50, 100 escudos no fundo da mala. E o meu pài sabe lá em que terá gasto uma nota de mil... Quando as coisas não vêm ter connosco, temos nós de ir ter com elas. 70 À noite, pensei experimentar o método. Levantei-me às escuras, palpei a carteira. Não havia nada espalhado, abri o porta-moedas. Levei duas moedas de 200, tornei a deitar-me. Eram quatro horas e ainda não tinha adormecido. A minha mãe tem sempre o dinheiro contado. Aponta tudo o que gasta num bloco e quando se aproxima o fim do mês diz inevitavelmente: "Tenho de esticar até ao último tostão." Levantei-me, pé ante pé, e tornei a meter as moedas na carteira. Dei um encontrão na porta. Rangeu. - Quem está aí? - perguntou a mãe e, num instante, apareceu à minha frente. - Estás tão pálida... Sentes alguma dor? Fiz que não com a cabeça. Foi à cozinha preparar-me um chá de tília. - Não te preocupes. Com quinze anos a gente liga de mais a muitas coisas. Desatei a chorar. 28 de Abril O Joaquim passou a tarde em minha casa a fazer um trabalho de grupo. O grupo somos nós dois, a Cátia e o Rui, mas estes baldam-se quase sempre, eu passo o tempo a pôr discos e a tirá-los e o Joaquim é quem dá sempre o corpo ao manifesto. "O TRABALhO É BOM PARA O PRETO" dIZ o ditado racista, mas neste caso nós nem nos lembramos que ele é preto. A verdade é que o Joaquim é o único trabalhador - o que consegue melhores notas e a gente aproveita-se dele. Se fosse com o Miguel, acontecia o mesmo. Às vezes fazemos intervalos em que ele também descansa, fartamo-nos de comer hamburguers óptimos que são a especialidade da Cátia e ligamos a televisão. 71 Foi numa dessas sessões de televisão que vimos o documentário sobre um ataque de skinheads a dois negros, atando um aos carris do comboio e esfaqueando o outro. Nós ficámos horrorizados com aquilo, chamámos palavrões aos tipos, mas para nosso espanto o Joaquim ficou na mesma. - Tu não reages? Devias sentir mais do que nós... - disse eu. Em resposta ele abriu a camisa e mostrou-nos uma cruz suástica, igual àquelas do Hitler, desenhada à navalha nas costas. Em cicatriz. - Quem é que te fez isso? Ele encolheu os ombros. - Sei lá... Apanharam-me. Nunca falei do caso a ninguém mas agora talvez compreendam porque não quero ir à praia com vocês. Não é para não me queimar mais... A Cátia abraçou-o e todos nós a imitámos. Apetecia-me fazer-Lhe mil perguntas sobre o que era ser diferente. Mas achei que ele preferia não falar do assunto. Nessa tarde, pela primeira vez, fartámo-nos todos de trabalhar em conjunto. No fim ele cantou-nos uma música africana, que falava de florestas, de Sol, do calor de Angola que nunca tinha conhecido, pois tinha nascido em Lisboa e era tão português como nós. 29 de Abril Hoje estou a pensar nos skinheads e no Joaquim. O Joaquim é meu amigo desde a infantil. Sempre achei normal ele ser preto, outros serem louros, outros morenos. Quando era pequena adorava ir à sua festa de anos. Não tinha irmãos e os primos estavam todos em África. Por isso só juntava meia dúzia de colegas. 72 A sala era cheia de estátuas lindas de madeira, mas a mais linda era um grande elefante negro com dentes de marfim. Gostava de me sentar ao lado do elefante e de Lhe fazer festas. Sonhava viajar com ele até à terra dos elefantes, dos leões, dos crocodilos. Na mesa havia o bolo de anos em forma de estrela, e muitas frutas que eu nunca vira noutro lugar - mangas, papaias, bananas-pão, pêras-abacates. Os sumos tinham um sabor estranho e delicioso. Havia no chão almofadas de panos de muitas cores, frescas e macias. Eu punha umas em cima das outras e encavalitava-me nelas. De repente desabavam e eu caía com elas, à mistura com as suas flores enormes, fofas. Depois atirávamos almofadas uns aos outros, enquanto no gira-discos rodava uma música de batuques. De repente o Joaquim começava a dançar e dançávamos todos, até os pais dele. Quando me vinham buscar, perguntavam-me sempre: - O que é que andaste a fazer para suares dessa maneira? Nem sequer há quintal... Com certeza os skinheads nunca conheceram o mundo belo, ritmado e misterioso do Joaquim. Não sabem que ele e o Miguel são os melhores da escola e que até o Dr. Silveira diz que ele é uma grande cabeça (como se não tivesse corpo). Como pode ignorar que o Joaquim tem corpo se é o ás da nossa equipa de futebol? 30 de Abril Por que é que as pessoas têm preconceitos e perseguem as de raças diferentes: os judeus, os ciganos, os negros, os Índios? Os cães, os gatos, os cavalos, não têm esses problemas. Se eu vivesse no coração da África, numa tribo da Austrália ou da Amazónia, seriam capazes de me desprezar, ofender ou matar por isso? 73 Felizmente não vou para essas terras. Aliás não vou para nenhumas. Só viajo em sonhos. Sou loura num país em que até os homens preferem as louras. No entanto sei que aqui os bandos de miúdos sujos do bairro da lata também não gostam de mim, porque desço de carro (em 2ª mão) em frente deles, porque tomo banho todos os dias, porque os meus jeans Levis custam 10 contos, porque moro numa casa com elevador, porque também sou diferente. Fujo deles, já não uso as argolas de ouro que a avó me deu nem o relógio, só levo o passe e cem escudos para comer um bolo no intervalo, porque sei que, mais dia menos dia, sou assaltada. O problema não é só da raça, da cor. É também do dinheiro. E de que mais? 1 de Maio. Dia do Trabalhador. Como é bom não trabalhar! 3 de Maio O Dr. Silveira chamou o Miguel, o único do nosso grupo por quem tem consideração. Nós nem existimos. Disse-Lhe que tinha estado a pensar na proposta dele (aliás nossa), que a escola devia intervir nos problemas sociais, mas, em vez de se dedicar um dia à droga, se ia dedicar ao ambiente. Era mais saudável. Por isso agora temos que fazer redacções e cartazes cheios de verde. (O pior é se aparece um burro e come tanta verdura! Acidente provável, sendo os alunos burros incompetentes com o freio nos dentes...) 74 O Miguel ofereceu-se para contactar uns amigos dele da QUERCUS (Associação Nacional de Conservação da Natureza), que fazem campanhas sérias mas espectaculares a favor da natureza, editam folhetos, etc. Só que o Dr. Silveira, com as suas ideias fixas, quis tudo à maneira dele, uma marcha ecologista, em que vamos todos desfilar com as camisolas de ginástica que têm o nome do colégio estampado (para fazer propaganda) e o mais que se verá. Grande fantochada! Sempre é melhor que ter aulas. 5 de Maio Est udar. Estudar. Estudar! Mais um ponto amanhã. Outro na quinta-feira. E ficha na sexta. Além do trabalho sobre ecologia. É de mais! Até sonhei com uma pirâmide feita de livros com uma múmia lá dentro - era eu! Nas paredes de papel, cheias de hieróglifos, estavam os deuses - não o Boi Ápis mas a Vaca Louca, setora de Matemática, a Baleia Assassina de Física, o Leonardo dá Vintes de Desenho, a Alegria de Cemitério de Francês, o Gil Vicente do Intendente de Português, a Vénus da Mitra de História. E, em ponto grande, com uma vara na mão, o Dr. Silveira. Nem a dormir me deixam em paz! 9 de Maio O pai da Vanessa teve uma criancinha da nova mulher, e ela foi obrigada a ir, pelos cabelos, ao baptizado da dita cuja, que ela trata por filho da cadela. - Anima-te, é um cachorrinho coitado, e tu sempre quisestes ter um... - disse-Lhe eu na brincadeira. 75 - Cachorro pelado! - explodiu ela. Foi ao baptizado e houve fita porque a certa altura o pai disse que não se comia frango à mão e ela respondeu que havia quem fizesse coisas mais impróprias, apontando para o bebé. A jovem esposa quis deitar água na fervura mas levou um empurrão e a Vanessa fugiu, no seu vestido de festa, ninguém sabe para onde. Ninguém, a não ser eu, porque fugiu para cá. - Ao menos, estraguei-Lhe a festa! - gabava-se a minha amiga, a chorar. Eu detesto dramas. Não sei se aquilo era um drama ou uma comédia porque a mãe dela, para comemorar o facto, tinha resolvido ir passar o fim-de-semana com um apaixonado de 60 anos. Oxalá o velho não tenha energias para fazer outra criancinha, senão a Vanessa rebenta. Emprestei-Lhe uns jeans, saímos porta fora, sem rumo nenhum. No Rossio, tivemos de ser intérpretes de umas suecas e de uns japoneses, a quem andámos a mostrar a cidade. Já temos convite para passarmos férias em Tóquio e numa aldeia a 100 km de Estocolmo. E dinheiro para as passagens? E licença? Esquecemos esses pequenos pormenores e à noite, no meu quarto, fartámo-nos de fazer projectos. Entretanto o pai da Vanessa ainda deve estar a procurá-la. Como será a sensação de ter, aos 15 anos, um irmão caído de pára-quedas? Como será a sensação de ter uma madrasta quase da nossa idade? 76 10 de Maio Afinal não é tão simples como eu pensava ter os pais divorciados. A Vanessa diz que vai cortar relações com o pai, mas também não quer ver a mãe por ela andar com o tal sujeito. Tem de a ver mesmo, pois moram na mesma casa. Diz que se os pais gostassem dela nunca se tinham separado, mas que cada um só pensa em si, e se estão marimbando para o resto (o resto é ela). - Mas tu dantes queixavas-te que eles andavam sempre à batatada, que já não aguentavas... - Dantes era isso, agora é isto. E eu? Alguma vez pensaram em mim? Acho que os pais dela fazem tudo (o que é possível) para Lhe agradar mas não querem perder a oportunidade de serem felizes, só que a felicidade deles não bate certo com a dela. Como é que se podem entender? 12 de Maio À tarde foi o desfile ecológico. Marchávamos como soldados, para a guerra da paz segundo as palavras do setôr de Educação Física, que nos ensinara a marcar passo. Levávamos cartazes pintados por nós com slogans. "VIVA A FLORESTA O POUCO QUE RESTA." "SALVEMOS A TERRA!" "SEM UM BOM AMBIENTE ADOECE TODA A GENTE." 77 Os mais pequenos iam enfeitados com flores de papel feitas nas aulas de trabalhos manuais. O Rodrigo e mais três matulões empurravam um enorme caixote de lixo, com uma cinta de papel que dizia: SEJA HIGIÉNICO USE O CAIXOTE DO LIXO. Os que aprendiam a tocar flauta, sopravam uma musicata. E os outros, de dez em dez minutos, trauteavam o hino que a Mafalda tinha escrito: Para salvar o ambiente Cante tudo, minha gente! Queremos ser muito felizes Sem taparmos os narizes Com tanta poluição Viva o verde, fora o lixo, Vivam os homens e bichos. Para salvar o ambiente Cante tudo, minha gente! As pessoas na rua batiam palmas, os polícias mandavam parar os carros para nós passarmos. Uma velhinha, com um saco de supermercado, até gritou: "Isto sim! Desta juventude gosto eu!" A certa altura, a Inês tropeçou numa pedra e torceu um pé. Como não podia andar, meteram-na no caixote de lixo. O Dr. Silveira dava-Lhe palmadas na cabeça para não a pôr de fora e mandava-nos cantar mais alto sempre que ela começava a guinchar. Foi a parte mais divertida. Quando voltámos à escola, plantámos um pinheiro no pátio e o Dr. Silveira fez um discurso contra os eucaliptos. Ah, como a sua dentadura brilhava num sorriso! 78 13 de Maio Senti raspar na porta. Milagre! Era o Pipocas. Vinha magríssimo, todo sujo e, pior que isso, cheio de pulgas e carraças. Apetecia-me metê-lo na máquina de lavar. Mas fechei-o na varanda, à espera que a mãe viesse, porque receava que aquelas carraças todas me mordessem se Lhe desse banho! Atirei-Lhe um pão com manteiga, porque não tinha rações nem comida cozinhada. Chamou-Lhe um figo. - Não há nada como a fome para habituar os gulosos a comerem tudo... - sentenciei eu. "Que horror", pensei, já estou a falar como a minha avó. "Virei algum dia a ser assim?" "Cruzes canhoto, que diabo é torto", diria ela se estivesse no meu lugar. 14 de Maio O Paulo começou a chamar à Lúcia a Pornoportátil e os outros mais ordinários só a tratam assim. É indecente, mas também é indecente ela agora receber dinheiro de certos tipos. O Miguel é o Super-homem porque os professores o consideram o máximo e é ele que em geral salva as situações. O Rodrigo é o Batman porque tem a mania de bater. A Cátia é a Piolhosa, pois todos dizem cate-a cate-a. Só se cata quem tem piolhos. A Inês é a Quebra-Bilhas porque há-de fazer sempre alguma asneira. 79 O Raul é o Diabo à solta. A Mafalda, o Cabide Falante. O Alexandre continua o Careca, naturalmente, porque não deixou crescer mais o cabelo. Eu sou a Mini. - Porquê? - refilei. - Porque és loura, fresca e espumosa como a cerveja Mini. - Porque és rápida e arranjas sempre lugar, como o carro Mini. - Porque pareces a Minnie dos desenhos animados. - Porque quando não usas calças, só pões mini-saia. - Porque és mesmo mini, pequena como um micróbio. 16 de Maio Amanhã temos excursão da escola. Ao Palácio da Pena. Cada um tem de levar uma coisa para o almoço. Já cravei a minha avó que vai fazer uma bola de fiambre e presunto para 20 pessoas! 17 de Maio A excursão foi gira. Como deve ser fantástico morar num palácio assim! Principalmente para quem vive encafuado num cubículo com vista para o estendal do vizinho. Até Lhe vejo os buracos das meias e das cuecas. A grande chatice destas excursões é que no fim temos de fazer um trabalho para apresentar na aula. Para nota. 80 Por isso já nem me apetece escrever. Mas gostava de lá voltar sem ser em visita de estudo, embrenhar-me no mundo de fantasia e aventura que se sente ali, nos recantos sinuosos, no parque cheio de penhascos. Deve ter sido o que sentiram o Raul e a Inês, que a certa altura resolveram separar-se de nós e meter-se pela mata. Tanto andaram, tanto se desorientaram que se perderam. Há quem pense que se perderam noutro sentido... Esperámos duas horas por eles. A setora de História vai propor 3 dias de suspensão. A setora de Português, essa só gritava que ainda havia de conseguir expulsar os dois. O motorista refilava, dizendo que ninguém Lhe ia pagar as horas extraordinárias. O Miguel pedia a todos para terem calma. A Inês chorava. Os do banco da frente cantavam. Nós, lá atrás, esvaziámos os restos de coca-cola na cabeça dos do meio, que grunhiam como porcos. 18 de Maio Não tenho nada para contar. Não vou falar dos traques que dava a senhora gorda no autocarro mesmo ao meu lado, nem na posta de bacalhau que o gato da Dona Mimi foi roubar à minha avó. 19 de Maio Vi ontem na televisão um macaco pintor. Porque não há-de o Pipocas fazer o mesmo? Levei-o para a varanda, enchi tampas de frascos de guaches, molhei as patas, cada uma na sua cor, e deixei-o pisar à vontade um grande papel de embrulho. Ele deve ter achado graça porque se pôs a dar ao rabo, que enfiei na tinta preta, e serviu para pintar como um pincel. 81 As almofadinhas das patas tinham carimbado formas arredondadas, vermelhas, cor-de-rosa, salmão. Entre elas sobressaíam grandes pinceladas negras. O efeito era, pelo menos, original. Deixei aquilo secar, enrolei a folha e hoje mostrei-a ao setôr de Desenho. - Gabo o teu trabalho, sim senhora. Estas manchas foram muito bem trabalhadas, têm um desenho interior como nunca vi. Que técnica é que usaste? - Um cão. Ele deu-me uma palmadinha no ombro. - Levas "Muito Bom". Nunca tinha visto desenhar com um cão. Deixas-me levar isto para uma exposição? Queres assinar? - Eu assinei. SOFIA PIPOCAS. 20 de Maio Hoje, no largo dos autocarros, junto ao quiosque, estava o cigano de blusão de couro que costumava falar com o Bebé. Ficámos logo desconfiados. Pusemo-nos de longe a espiar. Além dele, havia lá mais duas ou três raparigas. Cada uma delas apertou a mão ao cigano e, nesse aperto, notámos que as mãos não iam nem vinham vazias. Depois cada qual seguiu o seu caminho. 82 O Bebé passou mesmo ao pé da árvore atrás da qual estávamos escondidos. - Olá, não queres ir hoje connosco às Amoreiras? Nem nos respondeu. E largou a correr não sei para onde. 21 de Maio Já sei onde é que o Bebé se junta com a pandilha dele. É no jardim da Senhora da Luz quando desaparece a luz. Há lá drogados sentados nos bancos, outros deitados no chão. Alguns cambaleiam e caem. Alguns ficam com as seringas espetadas, a dormir, a sonhar enquanto outros vão fazendo charros ou cheirando não sei quê. Só espreitei de longe porque dizem que eles assaltam as pessoas com uma seringa infectada com sida. Dessas brincadeiras não gosto. O Careca topou-me e veio ter comigo. - Olha que a betinha anda por maus caminhos. Estás a ver como isto acaba? - e apontou para uma rapariga que parecia mais morta que viva. - Ora quem fala! Tu experimentas e eu só espreito. - Também já espreitei. Só para saber como era, já fumei, já me meti nos speeds. Sempre em pequenas doses, que não sou parvo. É como o dopping: a gente fica com lata, força, coragem para tudo. E volta a deixar de ter. Mas um dia comecei a delirar, estava consciente e a delirar, entrei em pânico, era, e não era eu, nem sei explicar. Que sensação horrível! Foi o sinal para parar. - Então por que é que vens para aqui? - Vou levar o Bebé para casa. Arrastado. Qualquer dia apanha uma overdose, estou farto de o avisar. Já três daqui bateram a sola. Eu safei-me a tempo. Do crack, da heroína, quem consegue fugir? 83 22 de Maio De agora em diante vamos ficar todos três, o Miguel, a Cátia e eu, calados mas de olho alerta. Que mais iremos descobrir? 23 de Maio Como levar avante os nossos planos? Agora não há tempo para mais nada senão para estudar. Tive duas negativas no último período e meteram-me um explicador. Que, nesta altura do ano, só tem horas livres no fim-de-semana. Acabou-se o descanso. Passou-me 60 exercícios para domingo, de maneira que este sábado já tenho programa. 24 de Maio A Maria quis engraxar o Dr. Silveira, que além de Director é, para nossa infelicidade, professor de Ciências. Levou-Lhe uns bolinhos de noz com caramelo por fora, que comprou numa pastelaria, fingindo que eram obra dela. O Dr. Silveira ficou todo babado com a gentileza e trincou logo o maior. Mas não se lembrou que o caramelo é pegajoso. Ficou colado à dentadura postiça. Ele queria mastigar, tentava falar e as duas dentaduras saltavam da boca. A Maria fugiu do gabinete, espavorida. Nós até nos contorcemos de gozo. Se ele tivesse aparecido no recreio durante a tarde, apesar do medo que Lhe temos, não sei se conseguíamos resistir, ou se desatávamos às risadas. 84 25 de Maio Vieram os resultados dos testes de orientação profissional. Inteligência acima do normal. "Uau! Nunca mais me chamem burra!" Capacidade para o que eu quiser. O que é que eu quero? Os parvos não descobriram a minha preguiça, a minha vocação para milionária pelintra (gostos caros) algibeira vazia, alegria no descanso. Como sou muito sociável e tenho capacidade de expressão, aconselham-me Comunicação Social. Num jornal? (Estão todos a acabar). Na rádio? Não era mau e fartava-me de ouvir música. Na televisão? Locutora? Apresentadora de programas? Até artistas? O pior é se apenas consigo lugar num hipermercado a comunicar à sociedade: Mata-Piolhos, higiene e beleza dos seus cabelos. Atenção: 30% de desconto em desodorizantes para retretes. Novidade: Escolha o seu próprio caixão nas mais lindas cores - um dia vai precisar. Paté de lagosta: a comida dos gatos requintados. Eu aposto na televisão. Vou lutar, vou lutar por isso. 85 26 de Maio O Bebé foi apanhado na arrecadação do Fernando. Tinha um saco cheio de garrafas de wisky e vinho do Porto. Parece que havia um outro qualquer, que fugiu. O pai do Fernando arrastou o Bebé até ao 7º andar, onde ele mora, fechou-o à chave, sozinho no quarto do Fernando, e disse-Lhe que ia chamar a polícia. Mas o filho convenceu-o a não fazer isso. - Ao menos vou chamar a mãe, para o vir buscar. O Bebé gritava: - Não chamem a polícia! Não chamem a polícia! Depois calou-se. Quando a mãe dele chegou, ficaram a falar na sala. O pai do Fernando já nem estava zangado, dizia que perdoava tudo, que era difícil educar um rapaz sem pai (o do Bebé tinha nova família no Brasil), que estava até disposto a dar uma ajuda. A mãe do Fernando até fez um chá para a senhora que estava fora de si, tremia, chorava. - Vou mas é buscar o Bebé - disse o Fernando. - Por hoje chega. Mas o Bebé não estava no quarto. Procuraram no roupeiro, debaixo da cama, na varanda. Ouviram vozes na rua. O Fernando espreitou. Deitado de bruços, no alcatrão, o Bebé estava morto. 27 de Maio O Raul foi com a Inês e a Cátia à casa mortuária para onde levaram o Bebé depois da autópsia. Era preferível a ir ao cemitério. Eu não alinhei, porque com o Raul há sempre tanta barraca que até os mortos são capazes de saltar dos caixões. Não me enganei. Chegou à capela e deu-Lhe uma cólica (quanto a isso não teve culpa, devia ser dos nervos), precisava de ir com urgência à casa de banho e as casas de banho estavam fechadas por dentro. 86 - Está lá gente, está lá gente... - avisavam as pessoas do velório. O Raul bateu à porta, deu murros e pontapés, mas nada. E as cólicas a aumentarem. Com a barulheira apareceu um padre que Lhe disse: - Não vale a pena insistires, meu filho. São drogados que se metem ali para se injectarem. Só saem quando o efeito passar... Numa aflição o Raul foi à casa mortuária seguinte onde estava uma morta com pelo menos cem anos, sozinha, baixou as calças e... Quem passava no corredor dizia: - Coitadinha daquela senhora, deita um cheiro... O Raul, atrapalhado, pegou numa coroa de rosas que uma florista trazia para o Bebé e foi colocá-la por cima do que tinha feito. A que ponto é preciso uma pessoa chegar para passar o dia na sanita duma casa mortuária... 28 de Maio Faltámos às aulas para irmos ao enterro do Bebé. Claro que o Dr. Silveira não foi. O rapaz era um marginal. Nem o cigano do blusão preto. O Careca chorava como uma torneira. Eu nunca tinha ido a um enterro. Acho que deviam ser proibidos. Se há filmes proibidos a menores, e as touradas de morte não se podem fazer, porque é que permitem uma coisa muito mais impressionante? Já não sei se a mãe do Bebé era o monstro que nós pensávamos. Ali, ela parecia um fantasma de olhos inchados, toda vestida de preto, agarrando-se ao filho mais novo, como se fosse uma tábua de salvação. 87 Felizmente a cara do Bebé estava tapada com um lenço, mas quem a viu disse que estava irreconhecível, por ter caído de tanta altura. Até os dentes se tinham espalhado pelo chão. O Fernando mostrou-me dois. À saída o Miguel pegou-me na mão. É bom ter um amigo. 29 de Maio Quando um primo do Raul, que era campeão de mota, morreu, os amigos não se conformaram e resolveram fazer-Lhe uma estátua, como se faz às pessoas importantes, para nunca mais serem esquecidas. Ergueram um pedestal, de tijolo e cimento, à entrada do jardim dos pais dele na Costa e colocaram lá a mota, presa com correntes a duas argolas de ferro. Mandaram gravar numa placa: "Ao Zé Jorge, companheiro do vento e da velocidade." Quando vamos à praia passamos sempre por lá. Foi uma ideia bonita. Mas quem pode ou quer imortalizar o Bebé? Fazíamos-Lhe uma estátua de charros encavalitados, púnhamos na varanda dele uma seringa gigante voltada para a rua ou espetávamos num pau um pacotinho de farinha a fazer de heroína? Todos vão querer esquecê-lo o mais depressa possível. 30 de Maio Quando nós íamos a atravessar a Alameda, encontrámos dois homens da televisão, um com um microfone, outro com uma câmara de filmar. Vieram ter connosco, queriam entrevistar-nos, mas parecia que nós é que os queríamos entrevistar a eles, pois não parávamos de fazer perguntas: sobre que era, para que programa, quando passava, etc. e tal. 88 Afinal o que pretendiam saber era qual o sonho da nossa vida. O João adiantou-se logo. - Quero que me saia o totoloto. A Maria, que é uma engraxadora e diz sempre o que os adultos querem, falou toda empertigada: - Quero que acabem todas as guerras, que se ponha fim à pobreza e desigualdade dos homens, que todos possam ser felizes. - Pois eu estou-me lixando para a tua conversa de menina ajuizada - troçou o Raul. - Não há nada como uma rapariga porreira e desavergonhada! A Maria encolheu os ombros. - E tu? - perguntou o entrevistador à Vanessa. - Se as pessoas gostassem sempre umas das outras, se os pais não se divorciassem... Era o problema dela. - Pois eu - declarei - queria viver no ano três mil. Isto está muito atrasado para o meu gosto. - Morrias com a poluição ou andavas de máscara. Naturalmente até já vivias noutro planeta - disse a Inês. A Maria interrompeu-os sentenciando: - É preciso que se creia em Deus, que acabe a droga, que os cientistas descubram a cura para a sida e para o cancro. - E para as borbulhas, não? - riu a Inês. Todos, vítimas de borbulhas, desatámos a rir. Os homens da televisão, para nossa raiva, focaram os mais borbulhentos e foram-se embora. 89 31 de Maio A Cátia, o Miguel e eu jurámos vingar o Bebé. Por isso quando hoje vimos o cigano rodeado de gente, no largo onde param os autocarros, fomos à cabine e falámos para a esquadra. "Venham depressa. Na Praça Joaquim Sequeira perto do quiosque, está um homem de blusão preto a vender droga." Ficámos à espera, olhando para o relógio. O cigano estava já a passar a mercadoria, a receber o preço... Uma carrinha da polícia apareceu. Quase pulámos de contentamento, de excitação. Enquanto o diabo esfrega um olho, o cigano saltou para uma mota em andamento, escapuliu-se a toda a pressa, os outros escaparam-se, cada um para seu lado. Dois polícias desceram no largo, correndo atrás deles, enquanto a carrinha perseguia a mota. Rapazes corriam pelas ruas. Um escondeu-se numa escada. Uma rapariga tropeçou - foi a única apanhada. Não a conhecíamos. Continuámos junto à cabine, enquanto interrogavam a vendedora do quiosque... Finalmente tudo voltou à normalidade. - Lembrem-se do nosso pacto - disse o Miguel. - Aqui ninguem viu, ninguem ouviu, ninguem falou ao telefone. Com esta gente não se pode correr riscos. 1 de Junho Um de Junho. Esperei que, como sempre, os meus pais me dessem um presente. Mas nem falaram do caso. - Então para mim não há nada? É o dia da Criança. - Mas há aqui alguma criança? Embatuquei. Dei-Lhes presentes no Dia do Pai e da Mãe. Pelos vistos, eles vão receber prendas até caírem para o lado, mas para mim acabou-se. 90 Fui estudar para a varanda. À noite, pousada na minha almofada estava uma chupeta velha, que tinham guardado como recordação. Se ao menos fosse de chocolate... 2 de Junho Foi giríssimo o concerto de música portuguesa no estádio. A nossa escola foi em peso e não podia passar despercebida porque fizemos uma pirâmide humana com 4 andares, que até apareceu nos écrans. A certa altura desabou e eu, que estava de fora, ia apanhando com o Zé em cima. Aterrou mesmo ao meu lado, até me deitou abaixo a mochila. Acho que o ponto máximo para a rapaziada foi quando os Xutos e Pontapés puseram a dançar no palco duas raparigas todas nuas. Porque é que não apareceram eles próprios todos nus? Machistas... O cheiro a erva era mais que muito. Não percebo porque é que não se guardam os charros para fumar em casa, quando não há mais nada que fazer. Quem gasta o dinheiro do bilhete, ao menos que aproveite os concertos. A Lúcia foi atirada ao ar e apanhada por um gigante tatuado com caveiras, que não a largou mais. Um idiota fez chichi na relva e salpicou toda a gente à volta dele. A Cátia, como estava sentada, apanhou a rega nos cabelos. Uma espécie de índio, com a trunfa em pé, pintada de encarnado, deu-me um beijo no nariz. O Miguel puxou-me para o pé das bancadas, sem dizer uma palavra. Como eu gostava de Lhe adivinhar os pensamentos... 91 3 de Junho Todos os anos há uma festa na escola para arranjar dinheiro para a viagem de fim de curso. Combinei com a Cátia entrar pelo muro de trás, que é o mais baixo. Encavalitámo-nos numas tábuas e saltámos com facilidade. Deu-me jeito poupar 500$00 porque as minhas finanças estão pelas ruas da amargura. Havia música para dançar, comes e bebes, que se pagavam à parte, e bastante animação. O Sr. Frederico, que é o vigilante mais chato, quase dormia num banco quando, de repente, se ouviu um estrondo na aula de Ciências. O homem acordou num sobressalto e largou a correr para o local. - Ai, ai, venham ver! - gritou ele. - São almas do outro mundo - disse a tremer a Dona Hortense, empregada da limpeza. O esqueleto humano, sempre muito direito, dera um trambolhão e tinha a boca escancarada, com seus dentes muito afiados, como se nos quisesse morder. Entretanto a Inês e o Raul fugiam e escondiam-se na casa de banho das raparigas. Aqueles dois! O Sr. Frederico acendeu a luz e pôs-se a ver se algum osso estava partido. Mas não. - A gente de outros tempos era mais forte, comia melhor, quem me dera ter vivido então. - Ó Sr. Frederico, se o senhor tivesse vivido então, estava morto - gracejei eu. Ele ficou um bocado desiludido com a ideia, pôs o esqueleto de pé, deu-Lhe uma pancadinha amigável na cabeça, fechou a porta à chave e voltou a adormecer no banco do jardim. 92 4 de Junho Na aula de Português, a propósito de um texto do livro chamado "A Adivinha", o Raul perguntou à setora se não se podia fazer uma sessão de adivinhas. Ela franziu a testa, mas o Raul insistiu. - Se a gente é obrigada a ler textos sobre adivinhas, porque não há-de exemplificar? É cultural transmitir o património oral duma nação - disse o malandro, a gozar. A Dr.a Filomena aceitou. Até sorriu. - Então digam-me lá, qual o sítio em que as mulheres têm o cabelo mais encaracolado? - Rua! - gritou ela, arrastando o Raul por um braço. Quando chegou à porta ele virou-se para nós, com todo o descaramento e exclamou: - É em Àfrica! Lá as mulheres têm carapinha. A setora deixou-o entrar de novo. - Agora outra, completamente inofensiva, até infantil... - tratou logo de propor: - Qual é o órgão humano que mais estica? Desatámos todos a rir à gargalhada. Alguns apontavam para a braguilha. A setora pôs um ar supersério. - Queres uma falta de castigo? - O órgão humano que mais estica é o útero. A senhora devia saber! Não se lembra do tamanho da sua barriga o ano passado! Diga-me se não é uma adivinha infantil? É de lá que vêm as criancinhas. O Raul passa das marcas. 5 de Junho Agora a toda a hora, a televisão fala do trabalho infantil e da necessidade de acabar com ele. 93 Mas o meu avô Francisco encolhe os ombros. - Em miúdo levei muita cabra e ovelha a pastar, ajudei nas feiras, rachei, reguei, carreguei pedra. E não morri, fiquei mais forte. Ganhei gosto pelo trabalho. Por isso é que mesmo hoje, que estou reformado, ando sempre a fazer biscates. - As crianças têm de aprender, de ir para a escola, de brincar, de se preparar para o futuro - diz o meu pai... - Saem da escola e não sabem fazer nada, não dão valor ao dinheiro. Anda por aí uma galderice... ladrões, drogados. - Ora, ora - digo eu -, acho que ladrões houve sempre, e antes de haver drogados havia bêbedos. O pior é que todos falam do trabalho infantil e não pensam que nós nas escolas trabalhamos, trazemos ainda exercícios para casa, temos que estudar para os pontos e não ganhamos nada! Aí é que está a exploração! Ensinam-nos geralmente o que nós não queremos, fecham-nos 5 dias por semana dentro de casas superlotadas, obrigam-nos por lei a trabalhar à borla. Desataram todos a rir. Irritei-me. É preciso criar um sindicato dos estudantes! 6 de Junho O James Dean é mais bonito, mais expressivo, mais sexy que qualquer rapaz que eu tenha visto. Por isso tenho um poster enorme dele mesmo em frente da minha cama. Como é que algum dia poderei gostar a sério de algum desses miúdos enfezados ou esticadinhos, balofos ou amostrengados que há por aí? Na minha aula quase todos têm borbulhas, um terço usa óculos, há narizes empinados, tortos, de papagaio, dentes saídos, encavalitados, amarelos. Só escapa o Fernando e, à sua maneira, o Miguel. 94 Se eu um dia encontrar um James Dean, será que ele gostará de mim? Que grande barracada houve hoje no furo do 2º tempo. A Rita tinha deixado a mochila em cima da mesa e o Raul foi logo espreitar o que ela trazia, pois a mãe costuma mandar-Lhe grandes fatias de bolo. 95 Apalpou um saco plástico, tirou-o - era uma embalagem de pensos higiénicos. Os rapazes apanharam-nos logo e, como são autocolantes, prenderam-nos nos cabelos, nas camisolas, nas calças. Quando a Rita voltou, ficou branca como a cal, mas não se deu por achada. À volta todos riam, dançavam, batiam palmas. O Sr. Frederico veio ver o que se passava e queria apanhar um ou dois para levar à Direcção. Mas não conseguiu. Acabou ele próprio com um penso em cada ombro. 8 de Junho A minha mãe tem a obsessão dos intelectuais (talvez porque queria ser uma e não conseguiu. Quase todos os adultos tinham peneiras que nunca realizaram). Por isso não perde a Feira do Livro para se encher de livralhada que diz que não tem tempo para ler (e acaba por oferecer em dias de aniversário). Pois agora insiste que me devo cultivar, ler, ler, ler. Ora cultivar, também se cultivam couves. E eu acho os intelectuais uns chatos que dizem em muitas palavras difíceis o que se podia dizer em poucas palavras fáceis. Claro que não quero ser burra, iletrada ou ignorante. Mas aprendo na escola, na rua, com os colegas, com a família, principalmente com a televisão, que ela despreza (mas não perde uma novela). Por isso ficou furiosa quando, ao insistir: "O que é que tu lês, o quê?" eu Lhe respondi: - Olhe, as legendas da televisão! É como se lesse vários livros por dia. Desligou o aparelho com fúria, o que irritou o meu pai, que via o telejornal. Enquanto discutiam, fugi, sorrateira, para o quarto para fazer troça deles à minha vontade. 96 9 de Junho O homem dos jornais é de Beja, por isso toda a gente passa a vida a gozá-lo, contando anedotas de alentejanos. Até já apontei umas, a Inês e o Raul fazem o mesmo. Estamos a pensar publicá-las. Tornamo-nos escritores sem trabalho nenhum e tenho a certeza que o livro se vende. As pessoas estão fartas de coisas sérias. - Ó Senhor Chico, o senhor também foi bebé proveta? A sua mãe também disse ao seu pai no meio da seara: "Aproveta, home, aproveta?" - massacrou-o o Raul. - Quem ri no fim é quem ri melhor - gracejou o homem. - Vocês já sabem que o Primeiro-Ministro demitiu o Ministro do Ambiente por ter contado uma anedota de alentejanos? Desta vez até voto nele. - Que anedota é essa? - Morreu aquela gente toda no hospital de Évora envenenada com alumínio da água, não foi? Pois agora o que ele diz que se faz no Alentejo é desenterrar os mortos para depois extrair e aproveitar o alumínio! Ficámos embasbacados. Até comprei o jornal para o meu pai, porque anda sempre à espreita das asneiras que os políticos fazem... 10 de Junho Hoje vivi uma aventura inquietante. Combinei com toda a malta ir à praia. Os rapazes levaram as pranchas de surf, body boards, e nós apenas o farnel. Éramos mais de 10 e divertimo-nos imenso. Às seis horas metemo-nos na camioneta como de costume. Connosco entrou um montão de gente. Entre eles 5 assaltantes da nossa idade com facas, que roubaram pranchas, pés de pato, mochilas. Como eu não tinha nada senão o passe e a roupa do corpo, não me puderam levar fosse o que fosse. 97 O motorista fingia que não dava por nada. Naturalmente também receava que o roubassem a ele. Nem sei se cheguei a ter medo deles. Eram como nós, sem tirar nem pôr. Vinham de calções e T-shirts, tinham mesmo cara de miúdos. Quando saíram, calmamente, numa paragem, todos começaram a barafustar. Eu fiquei a vê-los desaparecer : ao longe, dobrados ao peso das grandes pranchas. Lembrei-me do Bebé. 11 de Junho O meu pai foi falar com a Directora de Turma porque a minha mãe fez greve. Disse que trabalha de mais com os computadores, que se ocupa de mim, faz as compras, cuida da casa, que o tempo da escravidão acabou. Ele disse que se ocupava do carro, fazia furos com o berbequim, arranjava fichas, carregava malas e, se não fosse ela, podia viver como um lorde (devia ser piada, por causa da tal noiva rica lá da Granja) mas no fim. concordou, como sempre acontece. Foi queixar-se da setora de matemática, que me chama bruxa do inferno, só me dá negas e nunca responde às perguntas que eu Lhe faço. Mas isto não se passa só comigo, ela até confessou que adorava chumbar a turma toda. Claro que nesse dia houve alguém que, no fim da aula, Lhe esvaziou os pneus... Quando o meu pai chegou, fui logo ter com ele para saber notícias. Sentou-se, suspirou, pegou no jornal e finalmente falou: - A senhora está doente. Bastante doente. E vocês não ajudam. - Doente? Pesa uns 120 quilos! Anda sempre a comer bolos com creme nos intervalos! A chupar rebuçados nas aulas!Essa doença também eu queria... 98 - Ela teve um grave problema familiar... - Se não tem família, como é que pode ter problemas familiares? - O marido deixou-a, o filho foi viver para a América, a desgraçada não aguentou. Anda em tratamento. - Mais valia meter baixa, se está maluca. E nós, chumbamos todos? - No fim, há-de haver uma reunião de professores, o assunto tem de ser analisado. Já muita gente fez queixa... Mas tu ficas calada, não contas isto a ninguém. A minha mãe tinha a lágrima ao canto do olho. O meu pai abriu o jornal. Eu rasguei a carta anónima que Lhe tinha escrito, à máquina, a fingir que era um apaixonado, dono de três pastelarias. 12 de Junho Quando hoje saí do café com o Pipocas, dei de caras com o Anacleto. O Anacleto era o Papão da minha infância. Andava sempre bêbedo, aos trambolhões pela rua, e punha-se a gritar: - Viva Portugal! Viva o dinheiro! Vivam as putas! Viva o vinho! Se não Lhe davam esmola, dizia palavrões. Nunca o vi fazer mal a ninguém, mas eu encolhia-me toda, quando a mãe me dizia: - Come depressa, senão chamo o Anacleto. Nas traseiras da minha casa há um chafariz e quando o Anacleto estava mais bêbedo, despia-se todo e punha-se a dançar, chapinhando na água. Foi o único homem nu que vi na minha vida, mas nem vi bem o que mais me despertava a curiosidade, porque ele não parava quieto. 99 O Pipocas odeia o Anacleto desde o tempo em que ele fazia tropelias ou procurava restos de comida e papelões nos caixotes do lixo. Por isso sempre Lhe ladrou furiosamente. Se pudesse ferrava-Lhe o dente. Aliás o Pipocas detesta todos os pobres maltrapilhos, talvez por ser um cão de raça. Como de costume, começou a correr à volta dele. Só que hoje o Anacleto não trazia uma bengala para o enxotar. Não tinha pernas. Vinha numa cadeira de rodas subindo a custo a rua íngreme. Atrapalhado com o cão largou por um instante as mãos das rodas e a cadeira começou a descer em marcha atrás. Tinha-se esquecido de a travar. Agarrei-a, tão atrapalhada como ele, dei um pontapé no Pipocas. Nunca tinha visto o Anacleto de tão perto. Grossas gotas de suor escorriam-Lhe pela cara chupada. - Quer que o empurre até algum sítio? - perguntei, ainda com um pouco de receio. Mas que mal me podia ele fazer? - Estou muito cansado. A minha casa é aquele barraco, lá ao cimo. Não falámos, em todo o caminho, mas quando me preparava para voltar, ele fixou-me e disse-me: - Você tem os olhos iguais aos da minha mulher. - Não sabia que o senhor era casado. Anda sempre sozinho. - A minha mulher morreu. Há anos. Tinha uns olhos assim, azuis. Não sei por onde andam... - Não sabe? Mas se ela morreu... - Onde é que eu tinha dinheiro para o enterro? Deixei-a no Hospital. Tiraram-Lhe os rins, os olhos. Devem-nos ter dado a alguns ricaços. Agora os olhos dela andam talvez a correr mundo... A ver as coisas que ela nunca viu. 100 12 de Junho, à noite Os estúpidos do café a quem eu não passo cartão, começaram a irritar-me, dizendo que escolhi para namorado o Anacleto. Porque nunca fui até casa deles. O João, batendo palmas e bamboleando o corpo, até se pôs a cantar: O Anacleto, o Anacleto É o teu predilecto. Dá-Lhe um beijo no umbigo Pois é o teu grande amigo. Dei-Lhe um empurrão que até cambaleou! 13 de Junho Os meus pais vão levar os meus avós às marchas. Eu combinei encontrar-me no largo com os amigos para saltar a fogueira. O Miguel ofereceu-me um manjerico e outro igual à Cátia. Não me canso de cheirar a mão que pouso nele. Será que os manjericos murcham mesmo, se os cheirarmos? Como é bom ter um perfume vivo, verde, a crescer! 14 de Junho Tive doze no ponto de Matemática. Voltei para casa radiante. Mas o pai disse-me logo que se alguém estava de parabéns era ele, que andava a gastar uma fortuna com o explicador para não deixar chumbar uma calaceirona. 101 15 de Junho Os professores acabaram a matéria. Falam das notas que vão dar, chamam os que estão mais tremidos. Tenho a certeza que vou passar, por isso já fechei os livros. A Cátia também já os fechou porque tem a certeza que vai chumbar. O Miguel nunca os fecha, embora seja o melhor aluno. Ou por isso. Como é que ele consegue ser assim? 16 de Junho O ano vai acabar. Para mim os anos começam em Setembro e acabam em Junho. As férias são um buraco entre o fim e o princípio do ano. O Miguel vai para o Algarve, a Cátia emprega-se numa pastelaria de castigo, porque chumbou (mas para ela uma pastelaria é o paraíso). Eu vou com os meus avós para a terra deles no fim do mundo, lá onde já nem sequer há aldeia, apenas uma casa rente à albufeira. O avô Francisco comprou uma cana de pesca, diz que vai pescar da janela e farta-se de rir. A avó Glória limpa uma lágrima à ponta do avental porque se lembra dos seus mortos, que não poderá visitar, num cemitério afundado. Se os mortos estão enterrados como é que se podem visitar? Só se forem vampiros ou fantasmas, que ressuscitam de noite. Levo um barco de borracha e a Inês comigo. Com ela ninguém pode deixar de se divertir. Depois vou passar dez dias à Granja. Preferia ficar em casa. A Avó Maria vai comprar-me roupa nova ao Porto, para não fazer má figura. Ao gosto das minhas primas, que têm vinte e tal anos e noivos que as vêm buscar de carro descapotável. 102 O Avô Gustavo vai mostrar-me pela décima vez a sua preciosa colecção de selos, por que ninguém parece interessar-se. Eu também só gosto de selos para mandar cartas. Inscreveram-me numa coisa muito fina, uma Clínica de Ténis, onde vou ter de me esfalfar umas horas por dia. Aquilo deve chamar-se Clínica por dar cabo da saúde e no fim ser preciso tratamento. Os rapazes de lá hão-de ser todos queques e vão fazer troça de mim porque nunca peguei numa raquete. Finalmente, quando os meus pais gozarem férias, levamos uma tenda e vamos acampar em Espanha. Como será o estrangeiro visto ao natural? O pai acha que as pessoas, mesmo em família, vivem distantes umas das outras, que às vezes nem se conhecem, limitam-se a dormir na mesma casa (eu conheço-os de gingeira!). No campo, numa tenda, sem televisão, só nós os três, vai ser diferente. "O amor e uma cabana", pensei, desiludida. Apetecia-me ir a discotecas, estar rodeada de amigos, partir no inter-rail. Mas não tenho escolha, por mais que barafuste e me irrite. 18 de Junho Passei! Que mais me pode interessar? 19 de Junho O cigano nunca mais apareceu no largo dos autocarros. Mas hoje estava em frente da loja dos gelados, à tarde, um rapazola de jeans e T-shirt a dar não sei o quê à malta nova. Uma vendedeira, de xaile, passou por lá e perguntou: - O que é que você leva aí? Eu não tenho direito? 103 O rapazola riu. - Isto não é para a sua idade. Beba um licorzinho a seguir ao jantar. Virando-se para mim, chamou-me. - Anda cá tu, linda, toma lá. De ti gosto eu. Volta sempre. Estendi a mão. Agradeci com o coração a bater e afastei-me dele. Nem abri a mão. Mas sabia o que levava. Que pena não estarem ali a Cátia e o Miguel. À esquina encontrei o Careca. - Conheces isto? - perguntei eu. - Tu também? Vens pedir-me lições? - Pensas que sou doida? Esta porcaria vai já para a sarjeta. Não te lembras do Bebé, o teu maior amigo? Ele ficou uns segundos silencioso. - Se tu soubesses do que me lembro... Do que vi... O que me pode acontecer... Levei muita coisa fiada para o Bebé quando ele chorava que não aguentava viver sem droga. Tinha medo que enlouquecesse. Gastava contos por dia. Agora exigem que eu pague ou trabalhe para eles, senão dão cabo de mim. Isto não é vida para ninguém. Só para os tubarões. - A tua madrinha não podia ajudar-te? Não é rica? - Ela é inglesa. Foi para Londres. - Tens família espalhada pela Madeira. Lá não te vão descobrir. - E a massa para a viagem? - Bate à minha porta depois de amanhã, às 4 horas. Vou ver o que se pode arranjar. 20 de Junho A Inês e o Raul foram à praia do Meco. De boleia com um primo dele. Convidaram-me. - Aparece às 9 mas não tragas o fato de banho. 104 Gostava de ir lá espreitar, isso gostava, mas pôr-me em exposição... Falei ao Miguel, não estava. A Cátia também não. Fiquei a arrumar gavetas. Como deve ser bom sentir a areia, a água e o Sol em todo o corpo. Deu-me de repente um desejo selvagem, rebolei-me no edredão como se fosse uma duna e pumba! caí no meio do chão. Se hoje fosse sábado, ia vender alguma tralha para a Feira da Ladra. Mas é domingo. Onde é que vou desencantar o dinheiro? Só se o nosso pacto funcionar. 21 de Junho Uma viagem para a Madeira não é barata e eu só tinha o dinheiro que andava a poupar para o concerto em Alvalade. A Cátia, além de tesa, estava desconfiada. - O tipo vai gastar tudo na droga, vais ver. Disso, ninguém se cura. O Miguel, sem dizer nada a ninguém, vendeu o fio de ouro. Quando o Careca bateu à porta entreguei-Lhe, não o dinheiro, mas um bilhete de avião. - Felicidades, Alexandre. Era a primeira vez que o tratava pelo nome. - Obrigado. Nunca te esquecerei. E um dia hei-de pagar. Acredita. Fiquei a vê-lo descer a escada com o seu passo desengonçado, o cabelo à escovinha que Lhe valera a alcunha. Que iria ser dele? 105 23 de Junho A Cátia já se empregou na pastelaria Docinho. Como se farta de comer bolos, acho que vai aumentar no mínimo uns dez quilos. O Miguel foi para o Algarve com o Rodrigo e mais cinco ou seis da minha turma. Quem me dera ir para lá, tomar banho em águas transparentes e mornas, apanhar conchas à beira-mar, sair à noite para esplanadas. Claro que tenho a Inês e a Vanessa, vou com elas à Costa de vez em quando, mas não é a mesma coisa. Só as bichas que apanhamos nas camionetas... A mãe obrigou-me a fazer limpeza no meu quarto mas eu resolvi mudá-lo. Estou farta daquele tom cor-de-rosa. Vou pintá-lo de branco com a ajuda do avô. E tirar o poster do James Dean. Vou espetar numa placa grande de cortiça o retrato dos meus amigos e algumas recordações - bilhetes de concerto, recortes de revistas e um postal com um coração, que toca os parabéns a você quando se carrega no meio. Foi o Miguel que mo deu. 24 de Junho O Joaquim foi internado. Vai fazer um transplante de pele nas costas, para Lhe tirarem a cruz suástica. Não sei como, uma organização anti-racista soube do caso, foi lá uma comissão visitá-lo e filmaram-no para o telejornal. O Joaquim deve ter-se irritado, porque não gosta de publicidade, só a nós contou aquele segredo. Com certeza foram os médicos ou as enfermeiras que deram com a língua nos dentes. Já não há sigilo profissional? Como não podia receber mais de quatro pessoas, fiquei no corredor, nem sequer o vi. 106 25 de Junho Fiquei impressionada com a entrevista do Joaquim na televisão. Sentado naquela cama branca, com lençóis brancos, parecia mais crescido e mais escuro. Pensei que ele pouco falasse, mas quando Lhe perguntaram se havia racismo em Portugal, deu uma gargalhada. - Há racismo desde o século XV. As naus do Infante D. Henrique não partiram só à descoberta. Trouxeram escravos, que eram marcados com ferro em brasa como os bezerros. A Àfrica não foi descoberta pelos portugueses mas pelos negros, que já lá viviam. Os portugueses fizeram filhos às pretas mas não casaram com elas. Não compreenderam que nós também temos história e dignidade. Só que a nossa história não ficou em livros, passou de geração em geração pela boca dos velhos. Vocês dizem-se civilizados, fizeram uma constituição que repudia o racismo. Só para inglês ver. Onde mora a maior parte dos negros de Portugal? Em barracas. Quem chumba sistematicamente nas vossas escolas por falta de apoio social? Os negros. Que mulheres entram mais cedo para a prostituição e ganham menos por cliente? As negras. Agora arranjaram uma lei baseada numa norma qualquer da CEE para se verem livres de metade deles. Para os lançarem na miséria e no desemprego. Depois de os explorarem 400 anos. E deixam vir para cá os brancos da comunidade. Isto é o racismo. É racismo ser atendido no fim. Ouvir "Ó preto, vai pentear macacos." É racismo ser escolhido para aparecer em público à frente de brancos, para mostrar que não há racismo. 107 Conheço bem os brancos. Nasci em Portugal. E nós, os amigos dele? Que culpa temos? É impossível ele achar que é tudo farinha do mesmo saco. Será que o Joaquim, como reacção, se irá tornar também o racista, mas de sinal contrário? Quando estiver bom, irá afinal connosco à praia? 26 de Junho Enquanto não vou para fora, aceitei um lugar de Baby-sitter no meu prédio. Tomo conta de um miudinho que detesta ir para a cama. Como eu também detesto, não o posso criticar, por isso fico com ele a ver filmes até à meia-noite, hora a que cai, finalmente, de sono. Com o dinheiro que ganhar e com o que os meus avós da Granja decerto me vão dar, compro um fio ao Miguel. Em segunda mão, porque é muito mais barato. 27 de Junho A Cátia comeu na pastelaria 12 pastéis de nata. Ao fim da tarde estava tão enjoada, que nem teve tempo de ir à casa de banho. Vomitou em cima do balcão. Salpicou clientes, bolos, chávenas, sei lá. O patrão tev uma fúria e despediu-a logo. 28 de Junho Na empresa do meu pai avisaram que não há subsídio de férias mas parece que nem há dinheiro para os ordenados. Não admira, fazem relógios muito mais caros e antiquados que os japoneses. Ele pôs anúncios nos jornais a oferecer-se como técnico de máquinas com longa experiência e frequência universitária e responde a tudo o que aparece. 108 A única firma de Lisboa que Lhe marcou entrevista foi uma fábrica de pistolas e espingardas. Como o meu pai é contra a guerra e contra a caça, não quis aceitar e agora diz que é capaz de ir como cooperante para Angola. Para fazer aparelhos de ar condicionado. - E nós? - perguntei eu. - Vocês ficam, naturalmente. Não vão para um país em que se combate. E se ele morre? Claro que tenho esperança que, de repente, apareça outro emprego. Já não vou a Espanha porque se ele for trabalhar não tem férias e se estiver desempregado há-de fazer economias. Volto a tomar conta da criancinha... 29 de Junho Hoje estou muito filosófica. Cheguei à conclusão de que eu não sou só eu. Sou uma mistura de mim com a minha família, os amigos, o cão, a história da droga e tudo o mais. Por isso este Diário não é o Diário de Sofia mas O DIÁRIO DE SOFIA & C.A (AOS 15 ANOS) 109 Sou sobretudo um elo da cadeia enorme dos meus amigos, dos que têm a minha idade, dos que querem dar um salto para a independência mas às vezes têm medo, um restinho de saudades da infância. Dos que às vezes dão um salto seguido de um trambolhão. Eu própria quem sou? Já andei ao colo, já brinquei com a Barbie, já achei que os meus pais sabiam tudo. Agora refilo, revolto-me como se o passado me prendesse, não me deixasse ser livre. Será que só virei a saber exactamente quem sou quando for adulta? Ou será que até os adultos de vez em quando sentem o que eu sinto? Entretanto, para o Bilhete de Identidade e para os outros sou sempre a mesma. 30 de Junho Chegou uma carta para mim. Fiquei radiante. Desejei que fosse do Miguel, sinto tanto a falta dele. É o irmão que nunca tive, o amigo de sempre, o confidente. Ou... Seria estranho, talvez impossível, namorar o Miguel. Somos membros de um pacto secreto, a que também pertence a Cátia. Podemos ter uma ligação que não a inclua? Mas se ele confessasse que gostava de mim, acho que dançava de contentamento. Mirei a carta. Não tinha remete. Mas o carimbo era da Madeira. Abri-a curiosa. Dizia apenas: Sofia Consegui. Obrigado. Muito obrigado. Sem assinatura. A letra era muito certinha, até bonita. 110 Será que o Careca conseguiu libertar-se, não só dos traficantes mas da droga, para sempre? Coitado do Bebé... era um fraco... Mas o Careca é teimoso, esperto e quer viver. 1 de Julho Parto amanhã para o Norte. Tenho a mala por fazer. Mas antes vou escrever ao Miguel, em código. Como vai ficar contente ao saber o segredo da carta! E se eu Lhe contasse o outro segredo, o que tenho escondido até de mim própria? O pior é se ele me quer só como amiga. Irei estragar o nosso pacto? Esta é a última página do Diário. Acho que ninguém irá oferecer-me outro. Nem eu vou comprá-lo. Aprendi com ele a pensar em mim e nos outros, quase por obrigação. Está aprendido. Vou escrever ao Miguel tudo o que me apetece. De que serve adiar seja o que for? Principalmente o amor... Cheguei à última linha. O Diário está no fim. Mas a vida continua. Luísa Ducla Soares, 3 de Outubro