Luis Sepúlveda "Tá" Diz-se em uruguaio quando se procura afirmar com ênfase, e "Tá" respondeu Mário enedetti quando a decência perguntou se havia que arriscar pelos pobres, pelos fracos, pelos condenados da terra, pelos que náo tinham direito à alegria, pelos que sonhavam com uma existência justa, por uma palavra "amanhã plena de sentido." Esta frase, que dá início a uma das histórias que Luis Sepúlveda recolhe neste livro, resume perfeitamente tanto o espírito que guia a vida deste autor chileno, como as suas palavras. Palavras seguras, potentes: sussurrantes, que sempre nos interrogam sobre o estado do mundo e das suas gentes. Foi essa interrogação constante que consagrou Luis Sepúlveda como um dos mais originais escritores da língua castelhana. Nestas histórias somos transladados para diversos cenários, situações, países daqui e dali, mas as palavras do autor conduz sempre para um mesmo território literário: o território dos derrotados que se negam a aceitar a derrota. Um território conhecido dos leitores de Luis Sepúlveda que, neste livro, se reencontrarão com algumas das melhores passagens da sua extensa obra literária. Luis Sepúlveda nasceu em Ovalle, no Chill em 1949. Da sua vasta obra (toda ela traduzida para Portugal), destacam-se os romances O Velho que Lia Romances de Amor e História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar. Mas Mundo do Fim do Mundo, Nome de Toureiro, Patagónia Express, Encontros de Amor num País em Guerra, Diário de um Killer Sentimental'ou A Sombra do que Fomos, (Prémio Primavera de Romance em 2009, por exemplo, conquistaram também, em todo o mundo, a admiração de milhões de leitores. No catálogo da Porto Editora (que publicará toda a sua obra) figuram já A Lâmpada de Aladino, O Velho que Lia Romances de Amor, A Sombra do que Fomos e História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar. Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destina-se unicamente à >> leitura de pessoas portadoras de deficiência visual. Por força da lei de >> direitos de autor, este ficheiro não pode ser distribuído para outros >> fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente LUÍS SEPÚLVEDA HISTÓRIAS DAQUI E DALI Tradução de Henrique Tavares e Castro ¦¦ Porto Editora Histórias Daqui e Dali Luis Sepúlveda Publicado em Portugal por: Porto Editora, Lda. Divisão Editorial Literária - Lisboa Email: dellisboa@portoeditora.pt Título original: Historias de aquíy de allá (c)2010, Luis Sepúlveda by arrangement with Literarische Agentur Mertin Inh. Nicole Witt e. K., Frankfurt am Main, Germany Grafismo e ilustração da capa: (c) Alex Gozblau 1ª edição: Novembro de 2010 Reservados todos os direitos. Esta publicação não pode ser reproduzida, nem transmitida, no todo ou em parte, por qualquer processo electrónico, mecânico, fotocópia, gravação ou outros, sem prévia autorização escrita da Editora. índice RETRATO DE GRUPO COM AUSÊNCIA DE FUNDO: UMA REPORTAGEM 7 Plataforma Larsen B 37 Chile: uma semana de viagem, 30 de Janeiro de 2009 43 a dura e terna fragilidade dos heróis 53 Grandes inventos perdidos 59 Assalto à mão santa 63 OEnclave 67 História de duas tragédias 71 Meu amigo, O Velho 77 o verdadeiro autor de tarzan 89 Alquimia da luz, do respeito e do milagre 91 ... 19 de Julho de 1979 95 Observações sobre a intelectualidade 99 Escuta, Chile... morreu Katya Olevskaia 105 Quem é você? 109 Tá 113 Quando Indiana Jones não chegou à estação de montparnasse 117 Um caramelo de 62 páginas 123 Um cão chamado Edward 127 Adeus, Turquito 133 a televisão, esse veículo cultural 137 Vidas de cães 143 Um velho de que não gosto 147 A Pena dos Parra 151 Este é para ti, Soraya 155 Retrato de grupo com ausência de fundo: uma reportagem Um: um dia de 2009. Gijón. Astúrias. Esta reportagem apareceu subitamente no meio de umas caixas de documentos antigos, papéis sem nome, textos guardados sem eu saber porquê. Está datada de Maio de 1990 e escrita num caderno grosso de fabrico chinês, comprado talvez no Speichert de Hamburgo. Quando nos deparamos com velhos textos é como se nos encontrássemos de novo connosco, e estes reencontros são sempre comoventes. Li o texto, pus a girar a máquina da memória, lembrei-me de que foi publicado um ano mais tarde no Lateinamerika Nachrichten do mês de Maio de 1991 e que a sua primeira intenção foi contar a história de duas fotografias. Mas essas imagens desapareceram e restam apenas as palavras. Velhas palavras escritas há quase vinte anos. Alegra-me reconhecer que muito do Chile que se descreve nesta reportagem mudou para melhor e para pior: as vítimas viram reivindicados os seus nomes, há muitos criminosos na prisão, o tirano morreu como um ladrão miserável, e aqueles que viram no poder uma oportunidade para enriquecerem conseguiram-no e são cada vez mais ricos. Mas estas velhas palavras conservam a sua indignação inalterável. Dois: Março de 1991. Hamburgo. Alemanha. Durante a minha vida confrontei-me com muitas situações que me obrigaram a emudecer durante muito tempo, com a linguagem imobilizada por uma esclerose que não conhece outra terapia para além da ira ou da acção. Há exactamente doze meses fiz uma viagem ao Chile, após catorze anos de exílio. Quis viver os últimos dias oficiais de uma ditadura demasiado cruel para ser apagada com uma simples cerimónia cívica e os inícios do regresso a uma democracia mais fruto da desesperança do que do ânimo que, num passado ainda recente, derrubou o tirano. Uma democracia que nasce cansada, vigiada, permitida e paralisada por um pacto monstruoso: construir o eufemismo que salve a face de um Estado de delinquentes, que permita admitir publicamente a existência dos crimes cometidos, mas não os nomes dos criminosos. Um curioso acordo de forças políticas definiu este pacto como "custo da modernidade", remetendo-se a outras experiências de transições de ditaduras para sistemas democráticos, como a espanhola depois da morte de Franco, ou a alemã após a capitulação do Terceiro Reich e posterior desnazificação do Estado. Em ambas se impõe o esquecimento como razão de Estado, mas os pais da fórmula ignoram que nós, chilenos, em qualquer aspecto, em audácia e em ingenuidade, em acertos e erros, em talento e em estupidez, somos únicos. A título de pormenor ilustrativo, cito o lema do nosso escudo nacional, que reza: "Pela Razão ou Pela Força". O mais perfeito dos contra-sensos. Uma invocação total à barbárie. Todos os exílios duram demasiado tempo e cada experiência é única. No caso do exílio chileno, para alguns significou abominar as antigas crenças, e, depois de realizar actos de fé nas portarias das fundações Konrad Adenauer, Pablo Iglesias ou Friedrich Ebert, retomar com pujança as suas carreiras políticas: o poder esperava-os. Para outros não passou de um contínuo bater com a cabeça contra as evidências que demonstravam o fracasso da justiça e da igualdade impostas por decreto: revendo os antigos manuais de táctica e estratégia, não hesitaram em apelidar de traidores os povos que se livraram de tiranias medíocres e senis e acabaram por considerar enganados os coitados dos rapazes obedientes que enviaram para lutar em selvas que não existiam, empunhar armas que não apareciam, conduzir massas que não os esperavam, mas morrer de verdade enquanto eles se reservavam para melhores tempos: o poder esperava-os. E outros houve, poucos, que enfrentaram o exílio como uma espécie de bolsa de estudos, de descobertas, e que, como único resultado, encontraram dúvidas: dúvidas sobre a História, dúvidas sobre os procedimentos para mudá-la, dúvidas sobre a legitimidade do Poder. Um ano transcorreu após o meu regresso ao Chile e tudo continua na mesma, embora na linguagem oficial tudo tenha mudado: à falta de coragem civil e à cumplicidade com os criminosos uniformizados chama-se agora desconhecimento, à omissão de deveres elementares apelida-se agora descuido, o assassínio passou a denominar-se excesso. O cinismo inunda os dicionários e a velha arte da política transformou-se num concurso de eufemismos. É a ética da nova ordem internacional, da ordem do fim do século. Mas estas certezas permitem-nos, pelo menos, ficar a saber a que nos podemos ater, e, deste modo, permitem-me a mim romper um longo silêncio, a indignação contida liberta-me da esclerose e posso, enfim, enfrentar o tema com um ano de atraso. Outro motivo do meu regresso ao Chile foi um conjunto de sorridentes rostos infantis. A primeira vez que vi a fotografia daquele grupo de crianças, soube que jamais poderia esquecê-los. Foi em casa da fotógrafa que as retratou, Anna Petersen. Chegara há pouco à Alemanha, o meu exílio tinha apenas quatro anos, que haviam bastado, porém, para que o Chile se tivesse transformado numa dolorosa referência que eu via cada vez mais longe. O que primeiro me impressionou foi a doçura daqueles rostos, e, depois de observar com mais atenção as suas posturas, descobri o grande segredo que esse retrato de grupo encerrava: a pureza. Naquelas crianças habitava a pureza primordial que encontramos nos. milhares de fotografias que diariamente se tiram nos jardins infantis ou nas escolas europeias. Mas aquelas crianças não viviam na Europa. Viviam no Chile, num bairro pobre de Santiago, La Victoria, um dos mais fustigados pela repressão e pela miséria. Então estremeci de medo face àquela pureza e perguntei a mim próprio quanto tempo tardariam a perdêla. Os anos passaram. O exílio prolongou-se por cima dos discursos triunfalistas até Fevereiro de 1990. Durante todos esses anos conservei a fotografia, sentindo que a pureza daquelas crianças era tão-só o que me restava do Chile que conheci. 10 11 Contagiada pela minha paixão por aqueles rostos, Anna Petersen acedeu em voltar a viajar com o propósito de procurálos e tirar-lhes outra fotografia no mesmo lugar. Pensámos que as duas fotografias e os anos transcorridos entre uma e outra poderiam ser tecidos numa narrativa ou numa reportagem, e, assim, com a passagem no bolso, visitei pela última vez o consulado chileno em Hamburgo para obter novamente o visto de entrada. - Sim, pode voltar. O seu nome figura na terceira lista das pessoas autorizadas a viajar - informa-me um funcionário protegido por um vidro à prova de bala. Abandonei o consulado sentindo que a generosidade da ditadura era humilhante. O direito de viajar ou de permanecer é inerente ao ser humano. O visto para ir ou ficar é um golpe cruel e planificado na liberdade do indivíduo. Três: Março de 1990. Santiago do Chile. Há menos de uma semana que terminou a ditadura. Ainda é Verão. Uma espessa nuvem de smog cobre a cidade e apropria-se das distâncias outorgando-lhe contornos incertos. Comento com o taxista que o ar de Santiago está pior do que eu me lembrava. - Não temos de nos queixar. Na Inglaterra há nevoeiro, e como os chilenos são os ingleses da América do Sul, naturalmente, algo de semelhante temos de oferecer - responde com os olhos fixos na estrada. Ao percorrer os bairros do sul vêem-se numerosos grupos de chilenos a realizar as mil actividades da vida diária, os factos sem interesse, tais como comprar pão, esperar pelo autocarro, ler os jornais pendurados no quiosque ou simplesmente olhar numa direcção incerta sem saber o que se quer ver. A vida pura e simples. A vida dos seres anónimos em nome dos quais - diz-se - se fazem as revoluções. Mas estes habitantes dos bairros pobres possuem algo em comum que os identifica como um sinal de fogo: nos seus rostos lê-se a desesperança, a abulia, o tédio que sobrevive a uma sociabilidade que foi riquíssima e, por isso mesmo, brutalmente erradicada. Olho para eles - para a minha gente - e custa-me a crer que são os mesmos que, como eu, praticavam uma vida social que, de tão agitada, não permitia dar conta do cansaço. E que era, além disso, uma vida democrática, essencialmente democrática. Participavam e votavam nos sindicatos. Participavam e votavam nas associações de pais. Participavam e votavam nas juntas de freguesia. Participavam e votavam nas associações de socorro mútuo. Participavam e votavam nas associações de mães. 12 13 Participavam e votavam nos clubes sociais. Participavam e votavam nas instâncias menores dos partidos políticos. Cada chileno participava pelo menos em três associações diferentes, e, ao recordá-lo, que bela e longínqua me soou a palavra eleger, o simples gesto de levantar a mão, pedir a palavra, escrever um nome num boletim humilde, digno e secreto no momento de designar um dirigente de qualquer organização. E lembrei-me também, com um misto de dor e de vergonha, que eu fora um dos que, com as interpretações mais duvidosas do marxismo numa mão, e as mais nobres das intenções na outra, deram os primeiros golpes mortais nessa vida democrática e sã. As organizações populares chilenas de qualquer índole, excepto os partidos políticos, regiam-se por um conglomerado de normas tendentes a assegurar a participação e a renovar os dirigentes quando estes se mostravam ineficazes ou, simplesmente, não queriam continuar nos seus postos. Tudo estava regulado. De repente, num dia qualquer, no mais modesto dos clubes desportivos do último bairro de Concepción, Santiago ou Valparaíso, após ter votado para designar um novo presidente do clube, aquele que deixava o lugar pronunciou uma frase digna de placa no seu discurso de despedida: "Os homens passam e as instituições permanecem." E acreditavam nisso. Nós acreditávamos nisso. Salvador Allende mencionou uma vez que éramos um país notarial, e afirmou-o com razão. Tínhamos confiança, acreditávamos na legalidade porque a praticávamos. Um belo dia, num bar, dois ébrios pegaram-se; de repente, um deles disse para o outro: "És um palerma". A resposta inevitável foi: "Vais repetir isso diante do notário." Mas os nossos catecismos de esquerda diziam-nos que esses comportamentos eram burgueses, e, para impor as razões dos partidos políticos, destruíamos a unidade das organizações sociais. Era a nossa forma de conquistar o poder: o fim justifica os meios; quem não está connosco é nosso inimigo. E, no entanto, todas aquelas organizações, nascidas da influência dos primeiros anarquistas, juntaram-se ao nosso sonho colectivo, ao esforço dos mil dias do governo de Allende. Nunca um líder teve tanto apoio do seu povo como sucedeu com Salvador Allende, e a sua morte no Palácio de La Moneda foi a única maneira de responder dignamente a tanta entrega e generosidade. A um desses rostos que olham em direcção incerta, como se procurassem o futuro por entre a nuvem de smog, pergunto o que pensa da nova situação, do recente regresso à democracia. Encolhe os ombros e diz: - Meu caro, as coisas não podem ser piores do que já foram. 14 15 Entrar em La Victoria não foi fácil. Os seus habitantes não gostam dos curiosos nem dos turistas da miséria. Por intermédio da Vicária de Ia Solidaridad, a instituição da Igreja Católica chilena que, durante os anos da ditadura, oficiou de ministério da dor ou única fonte possível de alívio, conseguimos uma espécie de salvo-conduto que nos permite penetrar no gueto para fazer exactamente aquilo que declarámos: procurar as crianças da fotografia, tentar tirar -Ihes outra no mesmo lugar, e falar com elas sobre os oito anos transcorridos depois de Anna os ter retratado. O nosso contacto é Alicia, uma dirigente local que combina o seu trabalho na frente antialcoolismo com a manutenção de um jardim infantil a que orgulhosamente chamam Kindergarten. Recebe-nos rodeada de crianças. As mais novas têm três anos e as mais velhas, seis, embora haja algumas com mais idade. As crianças rodeiam-nos, outorgam-nos o título de "tios" e entoam para nós o Gana Ia Gente, a cançãoslogan da coligação opositora à ditadura que conduziu Patrício Aylwin à presidência, depois de dezasseis anos de tirania. Apesar da doçura das suas vozes, as frases, os versos duvidosos da canção soam longínquos, metálicos, frios talvez. Quando terminam, peço-lhes que cantem um pouco mais, mas desta vez uma música sua, das que cantam todos os dias sentados diante dos seus móveis liliputianos, no Kindergarten. Então, uma menina começa: Caballito hlanco, llévame de aqui, llévame a Ia tierra dondeyo nací...1 Quatro - Bem, vamos andar um pouco - diz-nos Alicia, e iniciamos o percurso pelas ruas estreitas de La Victoria. Quase todas têm nomes de antigos dirigentes da classe trabalhadora chilena: Elias Lafferte, Galo González, Luis Emilio Recabarren, homens que nas salitreiras do Norte contribuíram para formar uma cultura organizativa que hoje não passa de recordação. Numa esquina, um grupo de mulheres observa o trabalho que os empregados da companhia de electricidade realizam nos postes de iluminação pública. Instalam fusíveis de alta segurança; o logotipo da Siemens é visível nas caixas de metal. Aproximamo-nos das mulheres. "Conchas de su madre"2, murmura uma. É o pior insulto do vocabulário chileno. "Conchas de su madre", aprovam as outras. Quando reconhecem Alicia, explicam-nos os motivos da sua zanga: - Sabem o que estão a instalar? Uns aparelhos para impedir que façamos ligações clandestinas nos postes de 1 Cavalinho branco, leva-me daqui, leva-me para a terra onde nasci... (N. do T.) 2 "Cona da mãe deles." (N. do T.) 16 17 iluminação pública. Aqui em La Victoria ninguém paga electricidade. Onde vamos buscar dinheiro? São poucas as pessoas que têm trabalho, e o que ganham nem chega para comer. Agora, com esses aparelhos, se ligarmos os cabos, dá-se uma forte descarga eléctrica, e já arderam três casas esta semana. - "Conchas de su madre" - exclamamos Anna e eu, embora os nossos insultos não sejam dirigidos aos trabalhadores da companhia de electricidade, mas aos directores da Siemens que exportam aquelas armadilhas mortais. Alicia leva a fotografia das crianças bem visível e as mulheres interessam-se por ela. - Este é o Marquitos, o coitado do Marquitos. E os outros? Vizinha, acho que o mais pequeno, o da caixa de cartão, é o Henry. A vizinha observa a fotografia com atenção e concorda. - Sim, é o Henry. E ao lado dele está a Cecília. Ficaram tão bem. Esta foto tem vários anos, não tem? Dizemos-lhe que tem oito anos e que gostaríamos de encontrar os miúdos. Então, após uma breve troca de opiniões, aconselham-nos que falemos com Loco Garrido, parente de algumas das crianças da fotografia. Despedimo-nos das mulheres. Os empregados da companhia de electricidade prosseguem com a instalação dos artefactos sinistros que continuarão a incendiar as casas daqueles que se atrevem a roubar electricidade dos postes de iluminação pública para terem luz à noite, ouvir rádio, ver a propaganda da Siemens na televisão. Alicia comenta: - Estamos condenados a viver sem luz. Dantes, cada família fazia por estar em dia com as contas da electricidade, mas com a ditadura chegaram a falta de trabalho e as dívidas. Primeiro, cortaram-nos o abastecimento, depois levaram os contadores, e agora, se quisermos ter luz legalmente, temos de pagar a dívida antiga e comprar um contador novo. E sabes porque não fazem nada aos empregados? Porque sabem que são mandados, são pobres iguais a nós. E embora o trabalho que fazem seja uma merda, têm de cuidar dele. Mas não interessa. Mais dia, menos dia, alguém aprenderá a enganar aquelas caixas. Entramos numa rua de terra batida. As casas são baixas e desiguais; foram crescendo desde "a tomada", que teve lugar no Inverno de 1957. Arquitectura de tijolo, madeira, pranchas de zinco, de asbesto, proibidíssimo na Europa, de papelão, de objectos de lata aplanados, de restos de outras construções. Quase todas têm uns metros de jardim na frente, onde crescem gerânios - as orquídeas dos pobres - e ervas medicinais. Algumas casas têm uma videira de uvas pretas, uma laranjeira, uma humilde acácia de folhagem impecável e cuidada, mantida pelas formigas, e cujas sombras atenuam o calor impiedoso do Verão santiaguino. Na rua alinham-se as árvores plantadas pelos mesmos habitantes. Em alguns troncos reconheço as inconfundíveis marcas 18 19 que as balas deixam ao penetrar nas suas cascas. E por todo o lado está presente a proverbial limpeza dos chilenos: "A casa é um espelho da alma". Alicia detém-se diante de uma construção de tijolos e madeira. - Aqui mataram um recém-nascido. Foi por alturas do último protesto. Os soldados e os carabineiros invadiram La Victoria por volta das nove da noite. Vinham furiosos porque os rapazes da Frente Manuel Rodríguez tinhamlhes dado luta nas barricadas da Panamericana. Disparavam contra tudo o que se mexesse - pessoas, cães, gatos - e lançaram bombas lacrimogéneas para dentro das casas. Nesta estavam dois idosos com uma neta recém-nascida. Os carabineiros atiraram quatro ou cinco bombas através de uma janela e uma delas rebentou junto do bebé. Morreu no berço. Tinha duas semanas de vida. Continuamos a andar. Num muro lê-se: "Ser jovem é ser audaz. Não te deixes usar. Movimento Revolucionário Lautaro". Mais à frente, um grafite descolorido presta homenagem a John Lennon: "Imagina uma vida em paz". Um pouco mais tarde, vemos um mural da Brigada Ramona Parra inspirado em versos de Neruda, ao lado das promessas de salvação eterna oferecidas por uma seita religiosa. Espanta-me não ver propaganda política, restos das eleições presidenciais. Alicia responde: - Houve, e muita. Se os de Búchi vinham colar cartazes, de acordo, eram bem-vindos. Se os de Aylwin vinham ao mesmo, de acordo, eram bem-vindos. Se chegavam os de Fra Fra Errázuriz, também de acordo, eram bemvindos. Empapelaram La Victoria muitas vezes, mas, mal se retiravam, os rapazes descolavam os cartazes, pois o papel usado pode ser vendido ao quilo. De súbito, a rua desemboca numa parcela de terreno resguardada por uma cerca de arame. O chão de cimento rachado em muitas partes aumenta o calor e Alicia abana a cabeça. - Aqui havia um parque. Uma praça. Fizemo-la nós, os habitantes, em muitos dias de trabalho voluntário, durante o governo do companheiro Allende. Ficou linda, a pracinha. Cada qual trouxe uma árvore, uma planta, tivemos até árvores representativas de todos os países latinoamericanos. Parecia um jardim botânico em miniatura e, à tarde, dava gosto vir para aqui e sentar-nos. Mas um dia, depois do Golpe, apareceram os tropas com um bulldozer e apagaram-na do mapa. Disseram que era um sítio de encontros subversivos. Depois cobriram o chão com cimento e cercaram o terreno com essa rede de arame. Durante as perseguições, metiam lá dentro todos os homens com mais de dez anos. Creio que na Europa chamam a estes lugares campos de concentração... 20 21 Entramos noutra rua limpa e fresca. De uma janela aberta escapa-se o som de um televisor. Paramos involuntariamente. Conheço a melodia: é de um anúncio que vi várias vezes em televisores a cores. Neste, a imagem a preto e branco desloca-o no tempo e torna-o patético: uma música suave envolve o rodar de um camião carregado de cavalos. A câmara aérea capta os movimentos nervosos dos animais. Aproxima-se e centra-se num brioso corcel que começa a dar coices no costado do curral móvel que os encerra. Escoiceia cada vez mais. A madeira cede, cai, e os cavalos galopam livres, inteiramente livres, pelas serras de Almería, onde foi gravado o anúncio. "Assim gosto do Chile", diz a voz sensual de uma locutora, enquanto os cavalos galopam e galopam, levantando pó espanhol debaixo dos cascos. - Estamos a chegar - diz Alicia. A escassos metros de nós, uma figura cansada ocupa um banco de madeira à sombra de uma acácia. É um homem idoso. À primeira vista, dir-se-ia que passa dos setenta anos. Está vestido com um casaco remendado em vários pontos, uma camisa branca com o colarinho e os punhos desfiados, sapatos com o couro rachado mas impecavelmente engraxados, e um boné de jóquei com a pala caída sobre os olhos completa a indumentária. É Loco Garrido. Alicia apresenta-o como "Don António" e explica-lhe a nossa intenção. O homem assente e, em seguida, Alicia diz-lhe que nos deixa em boas mãos e que tem de se ir embora, porque tem muito que fazer. Mas, antes de se despedir, pede a Don António que, quando terminemos a conversa, providencie alguém para nos acompanhar de regresso ao Kindergarten. O homem volta a assentir e, de sorriso desdentado, convida-nos a sentar. - Trata-se destas crianças - digo, mostrando-lhe a fotografia. O homem pega nela. Semicerra os olhos para ver melhor. Reparo nas suas mãos pequenas, fortes, enérgicas. Depois percorro-lhe o rosto sulcado de rugas. - Sim, conheço-os. Como não vou conhecê-los - exclama como se falasse para si mesmo. Nesse momento, luto com a minha memória. Regressei ao Chile após catorze anos de exílio e as recordações tornam-se confusas, mas aquele homem não me é estranho. - Don António, desculpe que o fixe desta maneira, mas conheço a sua cara. Pergunto-me donde. Então o homem aperta os punhos e ergue-os à altura do queixo, antes de dizer: - Eu fui um campeão. A memória clareia, as recordações avivam. É claro: Loco Garrido, grande boxeador chileno, campeão sulamericano dos meios-médios, um autêntico ídolo dos anos sessenta. E ao recordar que o seu combate pelo título sul-americano foi há vinte e cinco anos, concluo que este ancião andará pelos cinquenta. - Eu fui um campeão - repete, aceitando um cigarro. Fuma com deleite. Sinto que tenho muitas perguntas para lhe fazer, mas nenhuma assoma aos meus lábios, e decido que é melhor deixá-lo falar como lhe aprouver. - Os catraios. Quatro deles são irmãos. São meus sobrinhos, estes catraios. Nesta foto estão cá todos, e como é bonito vê-los a rir. Gostavam de se rir, como todos os miúdos. Não levavam nada a sério. Sempre que os ia visitar, pediam-me que lhes contasse o meu combate com Panamá Joe. Ganhei ao panamiano por K.O. Mas isso foi noutro tempo. De todos eles, o que se ria mais era o Marcos, este que tem o braço por cima do Jorge. Pobre Marcos. Tinha fibra de desportista, o miúdo, e, quem sabe, se tivesse calçado as luvas, talvez tivesse sido campeão. O Chile dá bons pugilistas: lembre-se do Arturo Godoy, do Stevens, do Vargas, dos Molina. Marcos tinha pinta e mãos firmes. Pobre catraio. - O que aconteceu ao Marcos, Don António? - Não sabe? Morreu. Apanharam-no a roubar e mataram-no. Pobre Marcos. E que outra coisa podia fazer? Na casa dele viviam e ainda vivem umas doze pessoas. Eram tiranizados por um avô alcoólico, o pai saiu de casa há algum tempo, abandonando a mulher e os cinco filhos. O mais velho estava e continua preso a cumprir pena por assalto, e Marcos tinha de cuidar da família. Uma maldita tarde de 1986, foi roubar com um amigo. Chegaram ao Mercado Central e roubaram um saco com alimentos. O amigo contou-me que aquilo parecia fácil: um homem carregado de embrulhos deixou o saco no chão enquanto fazia outras compras e Marcos agarrou nele e largou a correr. Por azar, o homem era um carabineiro à civil. Azar. Puxou do revólver e disparou. Azar. Marcos levou um tiro na cabeça e morreu acto contínuo. Pobre catraio. Tinha quinze anos... Loco Garrido cala-se. Registo o que nos contou sobre Marcos e lembro-me de um dia, na Alemanha, ter lido uma notícia sobre um rapazinho chileno morto a tiro por roubar comida, história metida no meio do relato diário de horrores e escândalos, e que não incomodou muita gente, pois estes factos fazem parte do dia-a-dia e porque aquele rapaz de quinze anos não desempenhava qualquer papel transcendente na história quotidiana que se vende nos mercados da informação. Pobre Marcos. Marcos pobre. Nasceu e cresceu com o epitáfio pendurado às costas. Um miúdo aproxima-se de nós com passos tímidos e desconfiados. Tem uns dez anos. Veste calças cinzentas, ténis gastos e uma solene gravata azul. A brisa leve brinca com a sua cabeleira emaranhada e ele estaca a poucos metros. Loco Garrido faz-lhe sinal para se aproximar. - Este é o Henry. O da caixa de cartão. Henry, chega aqui, miúdo. Olha como estás gordo na fotografia. 24 25 Henry vê-se ao lado dos irmãos e de um amigo. Dizemoslhe que era assim há oito anos e sorri divertido. Repassa as caras uma a uma e o semblante estremece-lhe ao dar com Marcos. Perguntamos-lhe para onde vai. - Para a escola - responde. A resposta surpreende-nos, pois não traz com ele materiais escolares. Loco Garrido percebe a nossa admiração e esclarece: - Vai à escola para comer. É a única refeição quente que faz durante o dia. Não vai às aulas porque não tem livros nem cadernos. Henry, quando acabares de comer, traz os teus irmãos para verem a fotografia. E o Jorge também; agora deve estar em casa. Henry sai a correr e na esquina grita-nos que hoje é sexta-feira e há peixe frito na escola. Enquanto esperamos pelo regresso de Henry com os outros rapazes, falamos de tudo: da organização dos habitantes, da liderança política em La Victoria, do boxe chileno na actualidade, da falta de bons pugilistas no mundo, num bar de productos lácteos que os rapazes de um clube juvenil acabam de abrir, e onde não vendem leite porque é muito caro. Apenas chá e refrigerantes. - Os rapazes têm bons planos, boas ideias. Querem abrir uma pequena sala de cinema e formar um teatro. Até têm em mente um centro desportivo e tive de prometer que lhes ensinaria a calçar as luvas. De repente, passa por nós um veículo que deixa um rastro de poeira. É uma carrinha Volkswagen moderna. A palavra "Imprensa" pomposamente escarrapachada no pára-brisas faz sorrir Loco Garrido. - São jornalistas europeus. Como sabem que regressou Pierre Dubois, o padre que expulsou Pinochet, chegaram aos montes para fazer reportagens. Devem ser muito fraquinhos, os europeus, pois nunca andam a pé. Percorrem La Victoria de carro, filmam, tiram fotos, quando muito falam com o padre e vão-se logo embora. Uma vez vi um filme sobre o turismo em África. Os jornalistas que cá vêm fazem algo semelhante: um safári em La Victoria. - Don António, conte-nos como foi o combate do título. Ao ouvir o meu pedido, os olhos daquele homem envelhecido iluminam-se, e à minha memória chegam desordenadas as primeiras frases de O Velho e o Mar, com que Hemingway descreve os olhos não vencidos3 da personagem maravilhosa. Os olhos de Loco Garrido são também olhos não vencidos. No combate do título sul-americano dos pesos meios-médios, Loco Garrido tinha quase tudo contra si. Panamá Joe, seu adversário e detentor do título, era um boxeador formado pelos norte-americanos estacionados na zona do 3 A passagem do texto de Hemingway a que o autor se refere, na tradução de Jorge de Sena (Livros do Brasil, 1956) é a seguinte: "Tudo nele e dele era velho, menos os olhos, que eram da cor do mar e alegres e não vencidos." (N. do T.) 26 27 Canal. O panamiano subiu ao ringue melhor treinado, melhor vestido, melhor alimentado e com a maior parte do público a seu favor. Os dois pugilistas cumprimentaramse em espanhol, com acenos de cabeça aceitaram as instruções do árbitro, tocaram-se com as luvas e retiraram-se para os seus cantos. Soou o gongo e Panamá Joe começou a deliciar o público com a sua estratégia demolidora. Nos primeiros assaltos encostou Loco Garrido às cordas, castigando-o severamente nos braços e nos rins. Não lhe permitia chegar ao centro do ringue, não deixava de atacar, não lhe dava a mínima oportunidade de aplicar o directo de direita que fazia do chileno um pugilista temível. - Mas ao começar o terceiro assalto, cometeu o erro da sua vida: ao colocar o protector bucal, falou-me em gringo. Talvez me tenha insultado, não sei. Mas foi quanto bastou para eu sair das cordas e enfiar-lhe uma sequência de golpes com a esquerda até tê-lo à distância adequada para a direita. Caiu como um saco: K.O. no primeiro minuto do terceiro assalto. Não recebi nem um só aplauso dos gringos: assobiaram-me, e o árbitro levantou-me o punho com má vontade. Mas saí do ringue com o cinto de campeão. - E o que sucedeu depois, Don António? - Depois tive de defender o título. Três vezes. Contra o peruano Valdebenito, contra o argentino Porras, contra o mexicano Garcia. Derrotei os três. - O que quer dizer que continua a ser campeão. - Não. Eu fui campeão. Sabe, sempre que entravam em La Victoria e encerravam os homens na antiga praça, não havia carabineiro nem soldado que não me reconhecesse e tivesse o prazer de bater num campeão. Loco Garrido cala-se, olha para as mãos e, talvez por vê--las despidas, sem a elegante eloquência das luvas, culpa-as de todas as humilhações sofridas. Cinco Passaram trinta minutos e, à entrada da rua, vemos surgir o pequeno Henry acompanhado por uma rapariga e dois rapazes. À medida que se aproximam, comparamos os seus rostos com os da fotografia. Sim, são eles. Os olhos são os mesmos. As cabeleiras pretas não mudaram de cor, mas aqueles sorrisos puros imobilizados no papel, oito anos antes, não são os mesmos. Henry, demonstrando que já nos conhece, encarrega-se de fazer as apresentações e explica o que queremos. A rapariga e os rapazes encolhem os ombros, pedem-me cigarros e, enquanto fumam, dizem-nos que não gostam de jornalistas. - Nunca cumprem. Durante os protestos, faziamnos formar nas barricadas ou atirar pedras para nos fotografarem. Diziam sempre que nos mandariam as fotos, mas nunca cumprem. 28 29 No meio da confusão da conversa, ficamos a saber que todos estes miúdos, inclusive o pequeno Henry, ergueram barricadas, queimaram pneus, prepararam cocktails molotovs, enfrentaram tiroteios com frequência, e, ao ouvilos falar de tudo isso, parece que se referem a uma brincadeira inofensiva. Dão palmadinhas nas costas de Pablo e declaramno o melhor "devolvedor" de bombas lacrimogéneas. - Não tinhas medo, Pablo? - Não sei. Mais medo devem ter os palestinianos da Intifada. E para que serve o medo? Além disso, eu não quero viver... Ao ouvir aquelas palavras, Loco Garrido abana a cabeça. Quer dizer alguma coisa, mas o olhar duro de Pablo, que tem dezasseis anos e não quer viver, enfrenta o do campeão prematuramente envelhecido e obriga-o a calarse. - E tu, Cecilia, estás de acordo com o que o Pablo diz? Cecilia tem dezassete anos. É uma bonita rapariga. Balança o corpo formoso em cima de uns sapatos velhos de tacão e procura as palavras no vaivém. - Não sei. Dantes sonhava viver. Sonhava com muitas coisas lindas que podia fazer quando fosse grande. Agora já não sonho. Agora tenho medo de sonhar, e, quando o faço, fico com raiva, porque os sonhos são pura mentira. Enquanto fala, Cecilia cobre parte do rosto com os cabelos pretos compridos. Quero saber o que esconde e, quando lhe acendo outro cigarro, descubro uma cicatriz que lhe racha o lábio superior junto à comissura. Mais tarde, ao caminharmos em direcção ao lugar onde, oito anos antes, Anna os fotografara, Loco Garrido contame que aquela cicatriz é fruto de uma tareia que lhe deu o irmão, Mauricio, um rapaz pouco mais velho do que ela, encarregado de zelar pela honra da família. Uma tarde, Mauricio encontrou Cecilia prostituindo-se, vendendo-se no Paseo Ahumada, e, aos bofetões, levou-a para casa. Dos quatro rapazinhos, Jorge é o único que estuda; frequenta uma escola industrial e recebe formação de mecânico de automóveis. - Quando acabar os estudos, vou-me embora do Chile. Para a Austrália - diz-nos com firmeza. - Austrália fica muito longe - comento. - Melhor - responde com mais firmeza ainda. O pequeno Henry diz-nos que também se irá embora do Chile, mas não será mecânico: será futebolista como Maradona. - Os jogadores de futebol ganham muita pasta e têm carros novos - diz-nos, e põe-se a falar de Schuster, Butragueno e, sobretudo, do seu ídolo, Maradona. Por fim, chegamos ao sítio onde Anna lhes tirara a primeira fotografia. É um dos muros da igreja católica de La Victoria. A entrada está enfeitada com flores de papel e frases de boas-vindas a Pierre Dubois. Ao lado de uma janela 30 31 arde uma vela: por esta janela entrou a bala que matou o sacerdote francês André Jarlan. Foi disparada por um soldado. Entrou pelas costas do sacerdote, saiu-lhe pelo peito e incrustou-se entre as páginas da Bíblia que lia naquele momento. Os miúdos colocam-se na mesma ordem da fotografia. Da esquerda para a direita: Cecilia, Pablo e Jorge. Em primeiro plano, entre Cecilia e Pablo, o pequeno Henry. Falta o Marcos. Sempre faltará o Marcos. Descubro que não podemos falar do tempo transcorrido entre uma fotografia e outra, porque essa distância, esses oito anos estão aqui, no muro despido, no espaço deixado por Marcos, assassinado aos quinze anos por roubar comida, no semblante desta rapariga que já não sonha nem quer sonhar, neste rapaz que não quer viver, no outro que anseia por partir, quanto mais longe melhor, e no pequeno Henry, que se imagina num estádio longínquo a correr atrás de uma bola e a vestir uma camisola estrangeira. E descubro também que no vazio deixado por Marcos está a pureza, essa pureza que me acompanhou durante todo o exílio como um bálsamo. Com a máquina encostada à cara, Anna recua uns passos, a objectiva busca, a mão harmoniza a luz e depois a máquina desce para que os olhos efectuem a medição mais precisa: a humana. Antes de erguer novamente a máquina, Anna procura um lenço e limpa os olhos. Não é um grão de poeira que incomoda. Não é o sol de Santiago que humedece as pupilas. São os oito anos que ferem de impotência. Clique. Já temos o segundo retrato de grupo com ausência de fundo. Seis Empreendemos o caminho de regresso para nos encontrarmos com Alicia no Kindergarten. Não foi preciso que Loco Garrido nos tivesse designado um acompanhante, pois os quatro miúdos e mais outros que se juntaram à novidade das fotos acompanham-nos, escoltam-nos, protegemnos para que não nos assaltem, para que nada nos aconteça. Despedimo-nos de Loco Garrido. Quero deixar-lhe o maço de cigarros, mas ele só aceita um e, perante a minha insistência, diz: - Está bem, um para a tarde, mas nem mais um. É tudo quanto a sua dignidade de pobre e de campeão aceita. No caminho, Anna explica aos miúdos como funciona uma máquina fotográfica e empresta-a para que tirem fotos uns aos outros. Então, com a máquina encostada aos olhos, vejo Cecilia, Pablo, Jorge, Henry e os outros a sorrirem com o 32 33 mesmo sorriso puro e ingénuo de há oito anos, como se através da objectiva redescobrissem um mundo conhecido e que perderam entre a repressão da alegria, o despojo da infância,i humilhação dos sonhos e a desesperança. Como se do outro lado da lente vissem Marcos e se consumasse a unidade de um grupo de crianças sorridentes que impressionaram o público nos actos de solidariedade para com o Chile, na Alemanha. - Quem são esses meninos? - perguntavam. - São meninos de La Victoria, um bairro muito pobre de Santiago - respondíamos, sem nada saber das suas vidas. Sete: De novo em Hamburgo. Na Alemanha, um ano após aquele encontro, leio as notícias e fico a saber que o presidente Aylwin reconhece oficialmente que durante a ditadura se cometeram mais de dois mil assassínios, e informa ao mesmo tempo que não serão divulgados os nomes dos assassinos, nem serão julgados, e então penso na pureza daqueles rostos, nessa pureza que não perderam, antes lhes foi arrebatada em nome da "Pátria" e outros vocábulos vazios, sem sentido, que hoje são repetidos como uma invocação para alcançar a reconciliação nacional. E a raiva liberta-me por fim da esclerose e sou capaz de escrever estas linhas, apesar da amarga certeza de que nada mudarão. Em nome da Pátria será imposto o esquecimento da ausência que marca estes dois retratos de grupo. Em nome da Pátria reconciliar-se-ão os que sofreram com o afastamento do Poder e os algozes daqueles que não têm amanhã. Então a escrita transforma-se numa opção incómoda, e a ânsia de justiça converte-se num esgar ridículo, num gesto néscio que o espelho da realidade devolve. Mas do outro lado desse espelho em que nos devemos olhar ao som da música que nos ordenam, não encontraremos a agora das imagens fiéis. Veremos apenas uma pasta viscosa, uma mescla de mentiras, de ignomínias e de trapaças. Mas escrevo finalmente estas linhas que serão publicadas numa revista solidária e serão lidas por homens e mulheres dispostos a defender com energia a pureza daquelas crianças e a ternura do mundo. Sankt Pauli, Hamburgo, Maio de 1990. 34 35 Plataforma Larsen B O meu amigo Víctor agarra nos comandos da sua avioneta Piper, verifica os instrumentos sem proferir uma palavra, espera o OKay do operador de tráfego aéreo e, em seguida, elevamo-nos sobre as águas cor de aço do estreito de Magalhães. O vento eterno que sopra do Oceano Pacífico faz com que o aparelho se mova como uma folha, dê solavancos, até que as mãos hábeis do piloto conseguem que avioneta receba o vento de cauda e, então, o voo torna-se agradável. É o momento ansiado em que o meu amigo puxa pela vareta que regula o fluxo de combustível e, movendo a mão direita num gesto que pretende abarcar todo o horizonte, exclama: - Vê como isto é bonito; por favor, não me tragas turistas! Voamos em direcção ao Atlântico, em baixo, o estreito de Magalhães abre-se nas baías e fecha-se nas passagens estreitas. Com o sol que se filtra por entre as nuvens, a água brilha e ressalta as aldeias de pescadores, as pingúineras1, 1 Lugar da costa em que se reúnem os pinguins. (N. do T.) 37 onde milhares de aves vestidas como embaixadores contemplam o horizonte, as vilórias abandonadas com uma história trágica, como Puerto del Hambre, as colónias de leões-marinhos a brincar em cima das rochas, as centenas de restos de embarcações vítimas das tormentas, ou as formações de golfinhos prateados que nadam velozes e na mais perfeita das ordens que se possa imaginar. Claro que é bonito sobrevoar a passagem de água que marca os confins do continente americano e da Terra do Fogo. Uma sensação contraditória de paz violenta perturba o viajante, um desejo de permanência eterna apodera-se-lhe da alma, o desejo de exclamar "espero que isto não mude jamais" morre-lhe na boca, porque toda aquela beleza sempre esteve exposta ao perigo, e agora mais do que nunca. O anúncio de futuras explorações petrolíferas nas águas antárcticas e no próprio continente branco da Antárctica, faz com que os habitantes da Patagónia e da Terra do Fogo receiem, e com justa razão, pelo futuro destas paisagens onde a Natureza testemunha a idade do nosso planeta. Durante o ano de 2006, iniciaram-se os trabalhos para extrair petróleo em Fin del Mundo, quer por meio de plataformas marítimas, quer perfurando o solo de gelo, e nenhuma das companhias petrolíferas, nem uma sequer, realizou um estudo independente de impacte ambiental. - Não me tragas turistas - repete Víctor, enquanto damos voltas no ar à espera da autorização para sobrevoar o espaço aéreo argentino e rumar a Ushuaia. A sua queixa não deixa de ser pertinente, e não é que o meu amigo seja inimigo do turismo. Porém, há uns dois anos, enquanto servia de piloto a alguns fotógrafos alemães que desejavam sobrevoar o glaciar Perito Moreno, em pleno mês de Julho, ou seja, no Inverno austral, reparou que no cimo do glaciar se podiam ver amplas extensões de água, de gelo derretido, que se introduziam pelos flancos do glaciar produzindo desprendimentos de blocos de gelo maiores do que era costume. O desprendimento de blocos de gelo, as quedas no meio de um rugido tão antigo como o planeta, faziam parte da vida natural de algo que se deveria chamar Grande Parque Natural da Patagónia, da Terra do Fogo e da Antárctica, de algo que teria de ser necessariamente património de toda a humanidade, como também o deveriam ser as grandes florestas tropicais, e que hoje se encontram à mercê da voracidade do mercado. - Agora - assinala Víctor - chegam cá milhares de turistas para ver como caem cada vez mais blocos de gelo, como os glaciares desaparecem, e vêm alegremente para atestar a morte destas paisagens. Meu amigo, hoje paga-se para ser testemunha da morte do mundo. De Hushuaia avisam-nos que devemos esperar antes de entrar no espaço aéreo argentino, por isso decidimos regressar sobrevoando a Terra do Fogo, rumo a Porvenir, uma pequena cidade que se situa quase em frente de Punta Arenas, eternamente fustigada pelo vento, e entre cujos méritos 38 39 está o de ter tido a primeira sala de cinema do continente sul-americano. Ainda existe o edifício, onde é possível visitar um pequeno mas excelente museu do cinema. Enquanto voamos, peço a Víctor que me repita o que sentiu no "dia do medo". - Foi mais do que medo, não há palavras para o descrever. Apenas te posso dizer que, de repente, o mundo inteiro rangeu como se se rachasse ao meio. Ocorreu durante o Verão de 2002, no mês de Dezembro. Víctor tinha aceitado pilotar um avião Antonov de Punta Arenas até ao território antárctico, para transportar um grupo de argonautas que pretendia voar em balões Montgolfier e atravessar o mar de Weddell até ao Pólo Sul. A equipa logística tinha voado uns dias antes para preparar uma pista de aterragem no chão de gelo e, dada a perícia do meu amigo, capaz de aterrar qualquer avião num espaço diminuto, pousar aí um Antonov não parecia ser difícil. E assim foi, de facto, mas mal tinham aterrado e começado a descer a carga, foram todos apanhados de surpresa pelo rugido impressionante que encheu a atmosfera, um rugido agónico de um animal de pesadelo, gigantesco, exausto, que desabou sobre o mar de Weddell. Naquele dia, a uns 90 quilómetros a nordeste da improvisada pista de aterragem, a Plataforma de Gelo Larsen B desprendeu-se da península antárctica, convertendo-se num icebergue de 12 500 quilómetros quadrados. Nos últimos cinquenta anos, a temperatura da Antárctica, da Terra do Fogo e do sul da Patagónia subiu 2,5 graus, e este aumento torna-se plenamente visível em todos os glaciares. É o fim dos glaciares. Desde o dia do desprendimento da Larsen B, tanto a Antárctica quanto a Patagónia e a Terra do Fogo encontram-se à mercê de alterações cujas consequências são imprevisíveis. E não se trata somente dos efeitos do câmbio climático indiscutível, mas também da execução de projectos energéticos que não se destacam pela preocupação com o meio ambiente. Uma empresa espanhola planeia a construção de barragens na Patagónia, ou seja, desviar, conter, alterar o curso dos rios que nascem dos degelos cada vez maiores. Um turismo que não considere a fragilidade da região também é responsável pela deterioração ambiental, porque, em menos de dez anos, aumentar cem vezes a navegação pelas águas que delimitam o Glaciar de San Rafael, para que alguns afortunados possam ir de barco pneumático beber um whisky com um pedaço de glaciar no copo, não é uma maneira responsável de promover as belezas da região. A Patagónia, a Terra do Fogo, os confins de Fin del Mundo estão em perigo. Uma visão irracional do progresso e do desenvolvimento sustentado, a que se acrescenta um turismo irresponsável, fazem destes territórios extremos lugares condenados. 40 41 - Que diabo! - diz Víctor, ao sobrevoarmos Bahia Inútil. - Num futuro próximo, os turistas chegarão às imediações do Perito Moreno e lerão: "Aqui havia um glaciar." 42 Chile: uma semana de viagem, 30 de Janeiro de 2009 Não tenho a certeza de conduzir por uma estrada chilena, europeia ou norte-americana. A paisagem está salpicada de cartazes que falam da crise económica originada pelos donos do dinheiro: compre em tempo de crise, não seja idiota; salve-se da crise investindo em vales alimentares, forne sempre haverá no mundo. Crise? Jovens mulheres amáveis oferecem massagens tântricas garantidas. Reconheço que o tema me preocupa e começo também a pensar na crise. Em San Ambrosio de Linares, faço uma paragem num café à beira da estrada: a sussurrante voz de Carla Bruni canta algo sobre um certo Raphael e eu peço um bife com dois ovos estrelados. Pergunto ao empregado o que pensa da crise e ele responde-me que toda a sua confiança está posta em Obama. Quero saber porquê, e a sua resposta é, além de óbvia, desconcertante: - Porque é negro, e os negros sempre viveram em crise. 43 No Chile, os postos de gasolina das auto-estradas são oásis Wi-Fi, e toda a gente que anda com um computador portátil procura um lugar com sombra e aí consulta o seu correio electrónico. Aproximo-me de uma jovem internauta e indago-a também sobre o que pensa da crise. - Não nos afecta, somos um país rico, somos a cópia feliz do Éden - responde, cantarolando o verso do hino nacional que alude à nossa condição de cópia melhorada do Paraíso. Desando imediatamente, para me livrar daquela optimista. 1 de Fevereiro: grilos. Seis da manhã. Terminei de ler um fabuloso romance de Donald Westlake, Butchers Moon. Os grilos ainda cantam no jardim e o sol mal se insinua atrás dos Andes. Penso no velho Don, nos whiskies bebidos num velho bar de Chicago e, anos mais tarde, em Gijón. Bebíamos sempre à saúde de Ross McDonald, que morreu num incêndio na Califórnia ao tentar salvar o seu gato. Agora resto eu para o fazer. Amanhece com sabor a romance negro. Um óptimo motivo para tomar um bom pequeno-almoço e, depois, trabalhar com vontade, mas, antes disso, saio para comprar os jornais e fico a saber que um assassino chileno, um militar orgulhoso por ter assassinado vários opositores da ditadura, sairá em liberdade muito em breve. Que raio faço eu com tudo isto, Don? Sim, amanhece com sabor a romance negro. 2 de Fevereiro: cemitério de livros. A sociedade fica estranha quando nos aproximamos dos sessenta anos: falo de livros que os outros não leram, e os outros falam de livros que não me interessa ler. Mas há situações de excepção: hoje entrei num alfarrabista - e não direi em que cidade, pois as lojas de livros usados são pátrias especiais e necessárias - sem outra intenção que não fosse olhar e reconhecer capas antigas. Numa cesta de livros "leve três e pague dois" encontrei Cavalaria Vermelha, de Isaac Babel. Quando pagava, a empregada, uma rapariga ao redor dos vinte anos, quis saber se era um bom livro. Creio que em menos de uma hora lhe contei a história da revolução bolchevique, a saga da cavalaria vermelha, e o triste e, aliás, lógico fim de um escritor que se antecipou aos acontecimentos, exercendo o mais genuíno direito da literatura: contar a História, não como foi, mas como devia ter sido. Ao terminar, a rapariga estava comovida, e então convideia para me acompanhar à cafetaria vizinha. Ela pediu um sumo de frutas, eu uma cerveja, e aí brindámos por Isaac Babel, enterrado nalgum lugar do desterro siberiano, pelos livros que sem dúvida escreveu e que a estupidez do estalinismo jamais lhe permitiu publicar. 44 45 3 de Fevereiro: a vida está cheia de histórias. Imagino que as coisas aconteceram assim: o bispo chamava-se Somoza e era bastante conhecido pela sua paixão por mulheres casadas. A sua manha de sedutor era muito simples: de confessor passava para os lençóis, e correu tudo muito bem até que se meteu com a mulher do maior latifundiário da região. A vida no Sul é calma, ninguém quer ter nem causar problemas, mas o "viver e deixar viver" tem os seus limites. O latifundiário enganado tinha parentes na cúria de Roma, de tal maneira que, primeiro, chegou ao bispo uma reprimenda do Papa. Ele ignorou-a, e, então, mandaram-no como missionário para um país africano. Antes de partir, parou no centro da praça da povoação e, ali mesmo, amaldiçoou em voz alta todos os seus habitantes. Além disso, profetizou que os quatro cantos da praça arderiam até ficarem reduzidos a cinzas. Primeiro, ardeu o canto sul e do Banco de Talca nem os alicerces restaram; trinta anos mais tarde, ardeu o canto leste e uma bela mansão oitocentista ardeu durante dois dias; depois, foi a vez do canto oeste e a catedral transformou-se numa pira visível das povoações vizinhas. A última esquina, a do norte, ardeu numa noite de 2008, e o tribunal onde se reuniam os documentos necessários para condenar vários narcotraficantes, depredadores de florestas e intrujões que enganam reformados, transformou-se numa fogueira monumental que iluminou os rostos dos habitantes, felizes por se verem livres, por fim, da maldita profecia do bispo Somoza. - Foi assim, mais ou menos, que aconteceu - comenta-me um alegre fotógrafo da praça. Tomo nota no meu Moleskine sem saber muito bem para quê, e o homem acrescenta: - Mas sobre o último incêndio não tenho bem a certeza, há quem diga que os narcotraficantes se aproveitaram da profecia e, sabe como é, rio agitado, ganho de pescadores. - Eu sei, e em qualquer lugar cai a tormenta. Finalmente, apertamos as mãos e eu sigo o meu caminho. Vários dias mais tarde, outras pessoas hão-de oferecer-me versões diferentes da mesma história, mas decido ficar com a do fotógrafo. Seja como for, cada versão que ouço me confirma que toda a gente gosta de contar histórias. 4 de Fevereiro: A Sociedade do Conde de Monte Cristo. Um homem faz cinquenta e oito anos. Foi comandante guerrilheiro nos anos mais duros da luta contra a ditadura de Pinochet. Agora reúne as amigas e amigos no pátio da sua casa, oferece vinho e refrescos aos recém-chegados e acende o fogo de maneira sábia, para que as brasas ardam de modo igual e a carne asse com perfeição. Olho para o meu amigo, que foi um dos homens mais procurados pela tirania. Ele sabe acender um bom fogo. 46 47 Mais tarde, sentamo-nos à mesa, seduzidos pelo encanto de uma das suas netas, que tem sete anos, e, impulsionados por aquela vida tão serena, falamos dos nossos filhos e netos. Mostramos fotos que passam de mão em mão. Primeiro, é servido frango assado, de pele estaladiça, de condimento exacto. Todas e todos a esta mesa, excepto a menina, conheceram a luta, a prisão, a clandestinidade, a perseguição, as torturas - sim, para quê negá-lo -, o exílio, a derrota e a perda de todos aqueles que faltam, mas não falamos disso porque o frango está muito bom e as saladas foram feitas por mão de santa. Depois, o ex-comandante guerrilheiro serve as costeletas de porco assadas, magníficas, cor de ouro, discretamente picantes, convidativas para o bom vinho que bebemos. Todas e todos que aqui estão, excepto a menina, se conhecem desde os treze ou catorze anos e foram militantes da causa mais justa, do sonho mais nobre. - As costeletas comem-se à mão - determina alguém. E, por entre elogios ao assador, contamos histórias dos nossos filhos e netos. Em seguida, chega a carne de vaca, tenra, suculenta, no ponto, mal passada. Todas e todos os que aqui estamos amamo-nos com fúria, agora ainda mais, libertos do peso da arma oculta na cintura, de não sabermos se estaríamos vivos amanhã, a salvo do medo e da incerteza. A menina que nos observa entre divertida e preocupada, finalmente, diz: - Que festa tão esquisita. Porque não dançam nem cantam? De repente, apagam-se as luzes e aparece um bolo com algumas velinhas acesas. O ex-comandante guerrilheiro sopra, apaga-as, aplaudimos, cantamos o Parabéns a Você em espanhol e nos idiomas que aprendemos no exílio. Uma bandeja de frutos abertos coroa o jantar, melancias fragrantes, melões de polpa fresquíssima. Já é tarde para a menina, que se despede e nos beija, e os seus beijos são um prémio por tudo o que fizemos. Há várias bebidas em cima da mesa, aguardente da Colômbia, rum de Cuba, pisco do Peru e um licor de ervas da região dos mapuches. Falamos de hoje, de como vemos a situação política, rimo-nos ao citar os clássicos do marxismo, alguém me pergunta o que estou a escrever e respondo-lhe: um romance que fala de nós. Todas e todos quantos nos encontramos a esta mesa temos cicatrizes visíveis nos corpos e outras quase invisíveis sob a pele. Quando nos despedimos, felizes, satisfeitos, radiantes, abraçamo-nos com força e recomendamos uns aos outros que cuidem de si. Não o dizemos, mas na força dos abraços está a máxima que nos une e nos permite caminhar com dignidade, olhar sem vergonha para os nossos filhos, zelar 48 49 pelo futuro dos netos. Essa máxima diz: nem esquecimento nem perdão. 5 de Fevereiro: livros. Abro a porta e vejo um rapaz vestido quase como um escuteiro, pois só lhe falta o chapéu Baden Powell. Esclarece logo que não vem pedir dinheiro, nem comida, mas livros, porque no seu bairro estão a fazer uma biblioteca. Em seguida, mostra-me vários documentos que o acreditam como bibliovoluntário de uma comunidade pobre de Santiago. Com ele vão Cavalaria Vermelha, de Isaac Babel, um romance de Andrea Camilleri, O Ladrão de Merendas, outro de Alfonso Mateo Sagasta, Ladrones de Tinta, e uns quantos livros meus. Vejo-o a afastar-se seguro e decidido. Não tem mais de quinze anos esse agitador da leitura, esse perigoso combatente da cultura que me recorda a mim próprio quando tinha a sua idade. - Estás a chorar? - indaga a minha companheira. Claro, choro porque nem tudo está perdido - respondo-lhe. 6 de Fevereiro: parques. Gosto dos parques ao cair da tarde, quando o silêncio e o ocaso se unem na última luz que se filtra por entre as árvores. Todos os parques do mundo têm algo de Praga e de Santiago do Chile. Assim deve ser, pois sentei-me neste parque a imaginar um encontro entre dois personagens: um vem de Praga e o outro nunca saiu daqui. Não se conhecem e, no entanto, desconfiam um do outro. Não consigo escrever se não vir bem como são os personagens, se não conhecer em pormenor o lugar onde se encontram, a que cheira o ar, em que direcção corre. Por isso espero neste parque, sei que eles chegarão, tratarão dos seus assuntos e eu poderei, finalmente, escrever o final de uma história. A ficção é sempre um prolongamento da realidade. 50 51 ::::::::--------- A dura e terna fragilidade dos heróis Às vezes, em Santiago, quando eu e alguns dos companheiros que tivemos a honra de ser integrantes do GAP1 nos reunimos à volta de um churrasco, não deixo de pensar na dura e terna fragilidade do heroísmo, e nem preciso de fechar os olhos para imaginar alguns deles, como, por exemplo, Patán, Tupa ou Eladio, a percorrerem a cidade à procura de lugares para comprar a carne, o vinho ou os tomates, cruzando-se com centenas de pessoas cabisbaixas que desconhecem a razão por que aqueles três homens, apesar da passagem dos anos, caminham de cabeça levantada, sem olhar para o chão. Não sabem que aqueles homens são heróis, que combateram junto de Salvador Allende pelo mais nobre dos ideais, que eram apenas um punhado no Palácio de La Moneda, que lutaram até esgotarem as munições, que no combate demonstraram ser infinitamente melhores do 1 GAP (Grupo de Amigos Personales) - Grupo de Amigos Pessoais foi o serviço de segurança pessoal do governo do presidente Salvador Allende. (N. do T.) 53 que os traidores que se entregaram porque Allende ordenou que se não deixassem matar inutilmente, e que para eles não houve tratamento de prisioneiros de guerra nem qualquer convenção humanitária que os amparasse. Lutaram com coragem e honra, e os vencedores apenas conheciam o ódio e o servilismo de cães para com os seus donos, os quais ordenaram o fim da democracia chilena. Nenhum GAP caiu durante o combate, e os que morreram mais tarde estavam desarmados, e tinham sido atados e torturados no regimento Tacna. Com o tratamento dado aos prisioneiros do GAP, o exército chileno desonrou-se para sempre. Esses homens são heróis silenciosos, frágeis e duros, porque são da escola de Allende e com ele partilharam de um postulado básico: defender com dureza a fragilidade democrática. Tudo isto e muito mais senti enquanto assistia à projecção de Héros Fragiles, o belo filme que Emilio Pacull apresentou no festival Les Nuits Atypiques, em Langon, bem perto da casa natal de François Mauriac. Uns dias mais tarde, vi-o em minha casa, entre os meus livros e os meus símbolos, e uma vez mais me comoveu a ternura de um relato em que os heróis crescem, agigantam-se e, por isso mesmo, se torna mais evidente a sua preciosa fragilidade. 54 O filme de Pacull é um caleidoscópio que o realizador agita para, mediante as formas aleatórias dos vidros, oferecer prismas diferentes, embora apontando numa só direcção: sustentar que o heroísmo daqueles que lutaram para tornar realidade o mais belo sonho colectivo, o da Via Chilena para o Socialismo, nasceu no preciso momento em que tomaram partido pelos pobres, pelos deserdados, pelos condenados da terra. São heróis sem outra pátria para além de uma ideia redentora e justa. São heróis que o não pretendiam ser. Éa única maneira de compreender os motivos que levaram Augusto Olivares a permanecer junto de Salvador Allende, a substituir a máquina de escrever por uma arma que mal sabia usar, ao suicídio como ponto final de um artigo que falou da digna possibilidade de viver, mas viver de pé. Augusto, o querido Perro Olivares, nunca teve entre os seus planos ser um herói. A sua arma foi sempre a Olivetti; as suas munições, os artigos que falavam do presente e o tornavam compreensível, e, se teve um uniforme, esse foi o da lealdade aos princípios representados na imensa dimensão política e humana de Allende. Augusto Olivares foi um homem frágil, mas os imperativos daquele sonho justiceiro que o Governo Popular constituiu converteram essa fragilidade em aço. 55 Compreende-se então que a tristeza da sua viúva, da querida companheira Mireya Latorre, seja a tristeza épica de quem perde um ser humano dotado das mais puras virtudes, de um homem que, quando tudo estava perdido e a sombra da traição se expandia por todo o Chile, com a fragilidade de quem sabe que vai morrer mas que também sabe porque vai morrer, e isso transforma a fragilidade em força, decide ficar e defender a decência. Héros Fragiles é certamente um filme de emoções fortes, desde as que enchem de orgulho até às que levam à náusea, como sucede ao ver e ouvir Orlando Sáenz, um dos que conspiraram, sabotaram e chamaram os cães fardados, sem o menor assomo de responsabilidade, culpa, arrependimento ou horror por tudo o que aconteceu no Chile a partir do dia do golpe militar. Dos frágeis heróis do Palácio de La Moneda é pouco o que se sabe, muitos nomes ainda permanecem no anonimato. Alguns saíram para o exílio, vários lutaram na Nicarágua contra o regime de Somoza, outros "desapareceram" depois de serem torturados no regimento Tacna, como Oscar Lagos Rios, o mais jovem dos defensores do palácio presidencial, outros morreram porque se vive e se morre, como Carloncho, recentemente falecido no México, ou Manuel Garrido e Douglas Gallegos, dois detectives da Policia Judiciária que decidiram permanecer junto de Salvador Allende até às últimas consequências. E outros andam nas ruas de Santiago, no meio de gente cabisbaixa que não sabe que compartilha do mesmo ar dos heróis. Héros Fragiles, de uma delicada objectividade, é um documento cinematográfico imprescindível para conhecer o que sucedeu no âmago desse punhado de pessoas decentes que deram tudo, mas que apenas lhes pareceu suficiente. 56 57 57 ::::::::::::: 58 Grandes inventos perdidos A uns escassos 80 quilómetros de Santiago do Chile e muito perto da cordilheira dos Andes, encontra-se Talagante, uma tranquila povoação que permanece imóvel e estática como uma bela fotografia de melhores tempos, com casas baixas de inegável sabor andaluz e uma praça central onde convivem crianças e pássaros que ainda não conhecem o medo. Talagante goza de um certo prestígio pelos seus pastelinhos e tartes confeccionadas por artesãos de pastelaria, sábios na produção do doce de leite, do mel e dos merengues de clara de ovo que se desfazem antes de chegarem à boca. Foi sempre um lugar de passagem, uma grata pausa no caminho rumo à costa, e que, ao deixá-lo para trás, suscitava um único comentário: que simpático, este lugar. Durante muitos anos era visitado somente de dia; ao anoitecer, os viajantes preferiam passar ao largo, pois, mesmo que ninguém o tivesse comprovado, toda a gente falava das grutas de Talagante, supostamente uma série de cavernas secretas onde os 59 pacíficos pasteleiros se transformavam em demónios, duendes de corpos disformes que, depois de se entregarem aos mais esplêndidos jogos sexuais, recebiam de Satanás, o demónio, novas receitas que aumentavam o bem merecido prestígio das tartes e dos pastelinhos do lugar. O demónio ensinava-os a seduzir pelo paladar, a conquistar pecadores através da doçura e da impecável feitura dos milfolhas. Com o decurso do tempo, o velho caminho sinuoso, cheio de curvas perigosas, que conduzia de Santiago à costa, foi substituído por uma moderna auto-estrada, e Talagante deixou de ser essa amável paragem no caminho, a economia dos seus habitantes sofreu uma quebra nos rendimentos e, muito lentamente, foi invadida por hippies, desencantados com a vida urbana, astrólogos de duvidosa eficácia ou revolucionários reformados. Gente pacífica que descobriu um lugar com muito sol para os ossos cansados e bom mel de abelhas para oferecer aos últimos anos um necessário toque de ambrósia. Há dois dias, abandonei a auto-estrada para a costa e entrei em Talagante à procura de uma pessoa de que me tinham falado uns amigos. Um indivíduo que deixou Santiago após uma longa série de tentativas frustradas para patentear inventos que, no seu dizer, podiam mudar o destino da Humanidade ou, pelo menos, fazer do Chile um país realmente engenhoso e feliz. Não foi difícil dar com ele. Estava a apanhar sol recostado num banco da praça e, à pergunta "Você é o inventor?", respondeu mostrando-me um grosso caderno de contas onde escrevia as suas ideias, traçava planos, fórmulas químicas, cálculos sobre a complicada física das coisas. Com sabedoria de pedagogo explicou-me os pormenores de um motor que funcionava a água como único combustível, uma possibilidade de transporte ecológico comprovado segundo ele -, bastante eficaz, excepto num pequeno detalhe em cuja solução pensava: se aquele motor fosse instalado num autocarro com capacidade para transportar cem pessoas, o depósito de combustível, ou seja, de água, ocuparia três quartas partes do veículo, mas - explicou-me ele - esperava inventar muito em breve uma bateria de gelo que permitiria transportar a água num espaço mais reduzido. Sempre fui um entusiasta dos inventos, adoro o engenho humano, de tal modo que lhe pedi que me mostrasse outras das suas invenções. O homem suspirou, folheou o caderno e mostrou-me o invento de que se sentia mais orgulhoso. Como é sabido - começou por dizer -, um dos inventos menos valorizado e nem por isso menos imprescindível é a fralda descartável, quer para crianças, quer para adultos. Esta fralda tornou mais leve a vida das mães, e eu desenhei um modelo inteiramente produzido a partir do papel. É uma fralda reciclável e que recicla sob um ponto de vista aristoté-lico. Todas as ideias apresentadas nos jornais ou em livros transformam-se numa pasta. Com esta preparo suaves e 60 61 finas fatias que vou unindo - uma fralda resistente precisa de umas dez fatias - e, no centro, mais ou menos entre a quinta e a sexta fatia, coloco uma semente de árvore ou de planta ornamental. Assim, deste modo, a fralda desempenha as suas funções, o bebé que as usa faz as suas necessidades, mais ou menos três vezes por dia, a mãe, o pai ou a baby- -sitter, em vez de a atirarem para o lixo, pegam nela de acordo com as instruções simples que vêm escritas na fralda, põem-na num vaso, e, poucos dias depois, a semente germina e é uma árvore em potência, ou um roseiral, ou um abeto de Natal. Mais tarde, planta-o, e, se pensarmos que cada ser humano usa fralda aproximadamente durante três anos, a uma média de três defecações diárias, concluiremos que cada pessoa gera o seu próprio bosque ou plantação de belas e fragrantes flores. - Este invento - prosseguiu - cumpre dois deveres. Para começar, reivindica a acção escatológica, mas o mais importante é que, para além de assegurar efectivamente a presença de massa verde para oxigenar o planeta, produz abundância de madeira para fazer papel, o que significa que o romance, a poesia, a filosofia e o ensaio ficam em dívida para com a função mais primária do ser vivo, ergo, humanizamse. Ouvi-o em rigoroso silêncio, vi os seus desenhos, os seus cálculos. E deixei-o a apanhar sol na praça de Talagante, lugar de passagem, aonde penso regressar para saber mais das suas incompreendidas invenções. 62 :::::::::::::::: Assalto à mão santa Há muitas modalidades de assalto. Às vezes, os ladrões actuam encarapuçados, noutras ocasiões fazem-no de cara descoberta e em elegantes escritórios de Wall Street, ainda que a forma mais comum de assaltar alguém seja munido de uma arma de fogo, navalha ou outro instrumento assustador. Esta maneira de assaltar é vulgarmente conhecida como assalto à mão armada. O assalto à mão santa é uma variante muito mais sofisticada de roubar e requer colaboração institucional, de maneira directa ou indirecta. Há uns dias fui vítima de um assalto à mão santa, e dói-me reconhecer que eu, um indivíduo de um metro e oitenta, quase cem quilos de peso e cinturão preto de karaté, não opus a mínima resistência e ainda ando a lamber as feridas da humilhação sofrida. Estava em Cartagena das índias, uma bela cidade do Caribe colombiano, bela para os turistas brancos e para os colombianos brancos de famílias tão brancas quanto 63 extravagantes, incapazes de ver a cintura de miséria que rodeia a cidade declarada absurdamente Património da Humanidade pela UNESCO. Da humanidade sem pretos, naturalmente. Diz-se que o mau humor predispõe para as catástrofes, e é possível que o meu péssimo humor de então tivesse a ver com o assalto à mão santa, embora o meu mau humor estivesse plenamente justificado: Cartagena das índias inteira andava a correr atrás da infanta Elena, filha dos reis de Espanha, que visitava a cidade. Declaro solenemente que não tenho a menor aversão por essa mulher cujos méritos intelectuais são: a) ser muito alta; b) ser muito alta; c) ser muito alta. Porém, como latino-americano, sou filho da Revolução Francesa e tudo o que cheira a monarquia, a privilégios sustentados por lendas de antanho, dá-me cabo do humor porque sou furiosamente republicano. Como forma de atenuar os efeitos do mau-humor, entrei num mercado de artesanato, e com uma só intenção: comprar uma cama de rede. O mercado estava quase vazio, toda a gente andava atrás dos passos da infanta Elena, de modo que não me foi difícil dar com a cama de rede que pretendia. Era de um vermelho intenso, tecida pelos melhores artesãos de La Guajira, e, após regatear o preço com a vendedeira, descobri que não tinha dinheiro que chegasse no bolso. Perguntei onde havia uma caixa automática, e para lá me dirigi sob um sol impiedoso e uma humidade que se colava à pele. A caixa automática pareceu-me sóbria, não tinha nenhum logotipo ou emblema de qualquer banco, e admito que me caiu bem aquela sobriedade no meio da exuberância caribenha. Introduzi o cartão de crédito, esperei que no visor aparecessem as primeiras instruções, escolhi o espanhol como língua da transacção, digitei o meu código, essa identidade tão democrática que me iguala a Bill Gates, indiquei que desejava retirar dinheiro da minha conta corrente, marquei a quantia de 400 mil pesos colombianos, uns 150 euros, e, finalmente, carreguei na tecla verde para continuar. Normalmente, depois de carregar na tecla verde para continuar, a máquina cospe as notas e o recibo, e devolve o cartão, mas neste caso apareceu no visor a seguinte legenda: "Deseja doar à Santa Igreja Católica: a) 1000 pesos b) 5000 pesos c) 10 000 pesos e d) 0 (zero) pesos." Sim, sou filho da Revolução Francesa, creio na separação drástica entre a Igreja e o Estado, creio na sociedade laica e livrepensadora, de modo que marquei a opção "zero pesos para a Igreja". Então, a caixa automática cuspiu um monte de notas, conteias, somavam 300 mil pesos, depois o meu cartão de crédito e, finalmente, um recibo pela importância de 400 mil pesos. Aí, nesse momento, percebi que me tinham assaltado à mão santa, porquanto no visor apareceu uma nova legenda. "A Santa Igreja Católica agradece o seu donativo de 100 mil pesos e rogará pela sua alma." 64 65 A primeira vez que me assaltaram à mão armada foi em; Nova Iorque, no Bronx. Um grupo do "Latin Power" tirou-me até a vontade de voltar aos Estados Unidos. O segundo assalto à mão armada, sofri-o em São Paulo, e nessa ocasião, fui vítima de um grupo de pivetes, o mais velho não teria mais de doze anos, e, entre os outros vinte anões, havia alguns que ainda tinham os dentes de leite. Senti raiva, fúria, humilhação, mas esqueci rapidamente, pois a possibilidade de ser assaltado à mão armada faz parte da vida, ou da maldita lei de Murphy. Mas ser roubado à mão santa, ser assaltado pela Igreja é algo que, primeiro, deixa uma pessoa perplexa e, depois, sobrevem a triste sensação de se ser um idiota perfeito. Protestei, insultei a caixa automática, proclamei em voz alta o meu ateísmo e, por fim, retirei-me com a pior sensação de derrota da minha vida. Resta-me a vingança dos justos, porque vou cobrar aqueles 100 mil pesos colombianos (uns 30 euros), e heide fazê-lo no Vaticano. Que o saiba Ratzinger: qualquer objecto da Igreja de valor aproximado de 30 euros pertence-me, porque também sou filho do Conde de Monte Cristo e o meu lema é: nem esquecimento nem perdão. 66 :::::::::: O Enclave Às vezes acontecem coisas que não me deixam dormir, que me perturbam a todo o momento, que me impedem de prestar atenção à conversa dos meus amigos, e, quando isto acontece, preciso de me sentar para restabelecer a ordem, não importa onde nem a que horas, preciso de me sentar e restabelecer a ordem. Sofri o último ataque de desordem em La Guajira, no Caribe colombiano, num sítio infernal chamado Riohacha, um lugar recôndito onde é difícil chegar e onde, ao fazê-lo, se descobre um mundo cuja única lei é a ditada pela necessidade de sobreviver. Os meus anfitriões falavam de uma criminalidade aterradora, de um comércio baseado no contrabando de produtos venezuelanos e, como grande atracção turística, mostraram-me as centenas de manchas negras que salpicam a estrada. Manchas deixadas por centenas de carros que, uma vez retirados os seus assentos traseiros, são usados para 67 contrabandear gasolina desde a Venezuela. Por vezes ardem por culpa de um fumador irresponsável, outras em virtude de um simples solavanco no caminho, ou de uma rajada disparada de um veículo da concorrência, e os condutores ficam a esturricar até que alguém se atreve a retirar os restos humanos raspando o asfalto com uma pá. É bom que se diga que em Riohacha não existe um só posto de gasolina legal e a maior parte dos veículos que se vêem ostentam chamativas matrículas com duas cores. São automóveis contrabandeados vindos da Venezuela, em grande parte roubados, e, como forma de os controlar, as autoridades colombianas entregam essas matrículas que lhes permitem circular exclusivamente sob o sol abrasador de La Guajira. Tudo isto é normal num território sem lei, demasiado afastado da elegante Bogotá, e faz parte da paisagem geral de um Caribe condenado a permanecer inalterável, mas, de repente, os meus anfitriões decidem mostrar-me outra realidade e levam-me às instalações mineiras de Cerrejón, a maior mina de carvão a talho aberto do mundo, e a que eles chamam o "Enclave". O caminho melhora notoriamente à medida que nos aproximamos, estrada particular, como é óbvio, e, ao cabo de duas horas de marcha, o Enclave mostra-se como uma radiosa cidade de quacres, de mórmones, de testemunhas de Jeová ou de qualquer agrupamento de homens bons, castos e sãos até ao delírio. No Enclave a criminalidade não existe, reina a paz social, as casas ao estilo de Salt Lake City têm ar ' condicionado, mosquiteiros, há piscinas, campos desporti! vos, ginásios, supermercados, escolas acolhedoras. Enquanto visito o Enclave, dizem-me que antes de se ! iniciar a exploração de um filão de carvão, umas mãos piedosas retiram todos os animais do lugar, incluindo os crocodilos e as serpentes, outras mãos retiram o húmus e, mais tarde, as árvores e as plantas. Tudo isto é levado para um centro de protecção ecológico e, quando termina a extracção do carvão, tudo, animais, árvores e plantas, é transferido da Arca de Noé temporária para o seu lugar de origem, e aqui não aconteceu nada, nada sofreu o menor dano por causa da extracção mineira. Não há greves no Enclave, os mineiros são felizes, dizem-me, embora seja totalmente proibido falar com eles. Todos se amam no Enclave. Lembro-me de perguntar de quem eram aquelas terras ricas em carvão e cujo destino é fundamentalmente a Europa. A minha pergunta gera um silêncio incómodo, até que alguém murmura que não se sabe, mas que os índios Waayu, às vezes, causam problemas, argumentando que habitavam estas terras muito antes da chegada dos conquistadores, problemas sem importância, em qualquer caso. Saí do Enclave a perguntar-me porque não entregam toda a administração da Colômbia a esta empresa modelar, ou até mesmo o continente inteiro, e fazer da América Latina 69 um lugar feliz e sempre com um sorriso à flor dos lábios, mas mal deixei para trás a fronteira que separa o Enclave do resto do continente, vi que os guardas de segurança revistavam os ocupantes de um camião em mau estado detido na beira da estrada. Os seus passageiros eram muito jovens, alegres e traziam instrumentos musicais em que se destacava um acordeão de fole preto. Tratava-se de um grupo de vallenato, a música mais bonita da Colômbia, e acabavam de tocar num festival patrocinado pela empresa mineira responsável pelo Enclave. Os guardas inspeccionavam com desconfiança os instrumentos de percussão, as guitarras, pandeiretas e sintetizadores. Perguntei ao músico mais jovem para onde se dirigiam, mas ele, antes de responder, pendurou o acordeão ao peito, encheu o fole de ar quente, e com o queixo apontou para o horizonte verde da selva. - Vamos para ali, para o coração de La Guajira - disse, e o acordeão deixou escapar uns compassos que me fizeram esquecer para sempre a tosca felicidade do Enclave. 70 :::::::: História de duas tragédias No final de Janeiro, em Bogotá, um indivíduo chamado Harold Vera cruzou as portas de uma clínica dedicada à cirurgia estética. Levava pela mão uma bela jovem de Tolima, Edna Patrícia Espinoza, dezanove anos, longa cabeleira preta e mãe de uma menina de três anos. Era uma "Miss", ou seja, uma rapariguinha pobre com um bom corpo para oferecer no melhor cartaz. Edna Patrícia era Miss Tanga 2008, e nessa mesma clínica já tinha sido operada anteriormente ao nariz, e implantaram-lhe seios desproporcionados que lhe realçavam a blusa. Também em fins de Janeiro, e quando faltava pouco para fazer cinquenta anos, o milionário Andrés Piedrahita, de Bogotá, bebeu lentamente um sumo de frutas tão amargas como a sua sorte: o grupo económico a que presidia, Fairfield Greenwich, perdera 7500 milhões de dólares dos seus clientes em todo o mundo, na fraude organizada por Bernard Madoff, em Wall Street. O grande problema que lhe azedava o sumo 71 era que nenhum dos seus clientes sabia que os fundos confiados à sua custódia se tinham volatilizado. Edna Patricia sentou-se na sala de espera e com acenos da cabeça aquiesceu às instruções de Harold Vera, o seu manager. O homem, vestido com a suprema elegância dos vigaristas do Caribe, explicou-lhe que para ser Miss Tanga por muitos anos precisava de mais uns tantos centímetros no traseiro, pois a tanga, peça feita para fazer sobressair as nádegas, exigia mais carne, sempre mais carne. Após a operação, reunir-se-iam com o presidente do concurso e a jovem saberia que prémios lhe caberiam. Assim, confiante e sorridente, esta entrou na sala de operações para lhe aumentarem os glúteos. Piedrahita deixou o sumo azedo a meio, em seguida levantou-se e meditou durante alguns minutos diante do diploma que o acreditava como formado pela Boston University School, e disse para os seus botões que a vida estava a ameaçar tornar-se dura: não podia festejar o seu aniversário na ilha de Capri, como todos os anos, e muito menos voar no seu Golfstream 200, um avião particular avaliado em 20 milhões de dólares. Os investidores estavam furiosos e era mister não aparentar ter sido prejudicado por Madoff. Convinha esquecer temporariamente a sua mansão em Chelsea, essa bela casa de quatro andares, e tão-pouco devia pensar na Son Simonet, a casa de Palma de Maiorca decorada com obras de Botero, provida de um encantador bar de estilo marroquino onde tão bem se sentia o príncipe Paulo da Grécia, entre outros ilustres convidados. Sim, a vida tornava-se dura para o afectado multimilionário. Edna Patricia estendeu-se de barriga para baixo na mesa de operações, e logo começou a sentir os efeitos da anestesia. E também as mãos do doutor Soler a acariciarlhe as nádegas jovens, ao mesmo tempo que lhes elogiava a beleza. O doutor Soler era um médico militar que nunca se especializara em cirurgia plástica e estética. A jovem adormecida em cima da mesa de operações era apenas Miss Tanga, que, aos dezasseis anos, tinha parido outra futura "Miss", portanto, a falta de experiência não tinha a menor importância. Apesar do sedativo, Edna Patricia sorria, talvez a pensar na colecção de bonecas Barbie, que fazia parte dos prémios recém-conquistados. O médico militar picou, comprovou a insensibilidade da bela adormecida e começou a injectar silicone nos glúteos. Piedrahita dirigiu-se ao salão com vistas maravilhosas sobre Bogotá. Aí, um fiel secretário estava a explicar a um jornalista do diário espanhol El Mundo que este era um sério percalço para o seu patrão, mas que o doutor já estava a pensar nalguma solução, com o apoio de Corina, a sua prendada esposa, de quem o Times de Londres dissera: "Corina é fundamental no trabalho do seu marido, é encantadora, tranquila, faz amigos com facilidade e orienta os esplêndidos jantares que oferecem aos sócios. É uma mulher 72 73 atenta a tudo, desde o papel higiénico decorado com motivos egípcios, e as férias de Inverno junto das suas quatro belas filhas nas melhores estações de esqui europeias até ao iate de 50 metros que mantém atracado em Montecarlo. Um sorriso de Corina bastou para que o seu marido contasse com o apoio de Michael Picciotto, director da Union Bancaire Privée." O doutor Soler não pertencia ao grupo de médicos contratados por aquela clínica e, talvez por isso, mal Edna Patrícia apresentou sintomas de entrar em paragem cardíaca, tirou a máscara, as luvas de borracha, a bata verde, e saiu a toda a pressa do bloco operatório. O resto do pessoal tentou reanimá-la durante meia hora, mas todos os esforços foram em vão. Miss Tanga 2008 morreu com o novo traseiro a meio. Na sala de espera, o seu compungido manager maldizia a sua sorte: Edna Patrícia não poderia fazer a digressão a mostrar o rabo por toda a Colômbia e esfumavam-se os seus oitenta por cento dos lucros. Piedrahita mostrou ao jornalista fotografias da sua mansão de Chelsea, do iate, da casa mediterrânica de Palma de Maiorca, e outras das suas belas filhas a praticar equitação nos prados do Country Club. Logo depois, ordenou ao secretário que entregasse ao jornalista o álbum de imprensa, destacando uma entrevista recente que lhe fizera a revista Caras: "Estudou no colégio anglo-colombiano, licenciouse na English School e foi para os Estados Unidos a fim de conquistar o sonho americano. Soube aproveitar a afabilidade e o carisma para estabelecer contactos, conquistava as pessoas, possuía o talento de conquistar numa questão de minutos. Era genuíno, simples, inteligente e andava sempre impecavelmente vestido. Esta habilidade social abriu-lhe as portas das melhores festas, dos eventos mais importantes da Grande Maçã." - Como deve compreender - disse o secretário -, este contratempo trá-lo muito deprimido, e por isso peço-lhe que as suas perguntas sejam breves e concretas. Edna Patrícia Espinoza, Miss Tanga 2008, regressou a Tolima num caixão por envernizar. O seu manager, apesar das tentativas desesperadas - de acordo com as suas próprias palavras -, não conseguiu que os organizadores pagassem o prémio nem entregassem as prendas. Miss Tanga não cumprira o contrato que a obrigava a mostrar o traseiro por todo o país, e uma rapariga morta, por muito bonita que seja, e Edna Patrícia era-o, simplesmente não vende. Andrés Piedrahita, calado no terraço da sua penthouse de Manhattan, amaldiçoa Bernard Madoff por lhe estragar a festa de aniversário, e olha para as fotos em que aparece ao lado do magnata Alberto Cortina, do príncipe Felipe e da princesa Letizia, de Paulo da Grécia, e suspira como só o podem fazer as vítimas das grandes tragédias. Estas duas tragédias são rigorosamente verdade. A vida é um vale de lágrimas. 75 Meu amigo, O Velho Vinte anos passaram desde que este romance saiu de uma batida e muito viajada máquina de escrever, sim, de uma máquina de escrever, um desses artefactos que já pertencem à arqueologia da literatura. Adoro as máquinas de escrever e não suporto vê-las condenadas à triste condição de trastes. Várias vezes vi uma Underwood, uma Olivetti ou uma Adler, ao lado de velhos candeeiros ou esquentadores, e salvei-as pagando o resgate à máfia do esquecimento. Mas não é sobre máquinas de escrever que quero dizer/escrever (é a mesma coisa) algumas palavras, mas sobre O Velho Que Lia Romances de Amor. Este romance nasceu sem o saber durante uma terrível tempestade amazónica, em 1978. Encontrava-me no Equador, país que foi a minha primeira longa paragem de um exílio iniciado em 1977 e que se prolongaria até 1989. Quando rebentou aquela tormenta, vivia há quatro meses 77 numa aldeia shuar erguida na margem leste do alto Nangaritza, e era como um deles, mas não era um deles. Era como um deles porque gozava de todos os direitos de qualquer membro dessa comunidade de mulheres e homens da selva, porque cumpria escrupulosamente os deveres que me confiavam - cuidar para que a fogueira de três paus estivesse sempre acesa, limpar a horta de iúca, apanhar camarões no rio e manter dentro dos seus limites os animais da selva, que não deviam aproximar-se da aldeia - e, imbuído do respeito elementar de hóspede, procurava compreender os seus costumes. Não era um deles porque, embora nunca tenham mencionado que um dia eu regressaria ao mundo de onde viera, isso constituía uma espécie de acordo tácito. No dia da tormenta tinha ido caçar com um grupo de shuar. Tínhamo-nos dividido em pares e, embora eu nunca me tivesse atrevido a usar uma zarabatana, era bastante hábil na tarefa de preparar os dardos. Era preciso enrolar a ponta em forma de teia de aranha e depois humedecer essa seda com curare, o poderoso veneno que paralisava os músculos do animal caçado. O meu companheiro caçador era um shuar que gozava do prestígio de ser um homem justo e generoso. Éramos compadres, um grau superior à simples amizade ou companheirismo entre caçadores. Foi o meu mestre na selva, tudo o que aprendi foi graças às suas pacientes explicações. Assim, ensinou-me que para andar na selva era necessário fazer parte da selva, que primeiro se assentava o calcanhar e, depois, lentamente, a planta do pé, pois o mínimo ruído de um ramo quebrado activava os mil mecanismos de alarme da Amazónia e a presa escapava-se. Ensinou-me a observar como uma brisa suave fazia mover a folhagem, e a adaptar os meus movimentos ao selvático no seu todo. Chamava-se Nushino. Nunca soube se era o seu verdadeiro nome, mas assim aparece no romance, como o shuar que educou o Velho na arte de viver na frágil e violenta Amazónia. A tormenta rebentou muito antes do que esperávamos, o céu fendeu-se em centenas de relâmpagos, os raios destruíam árvores cujos troncos se quebravam no meio de uma fumarada sulfurosa, e começou a chover com uma intensidade que mal nos deixava respirar. Nushino pôs a zarabatana às costas e começou a correr, e eu fiz o mesmo, pisando onde ele pisava, até que alcançámos uma clareira na selva e, aí, a salvo dos ramos que tombavam, cobrimos a cabeça com o saco de couro que leváramos para transportar os animais pequenos que pensávamos caçar. Esse pequeno refúgio permitia-nos falar enquanto a chuva nos açoitava as costas. Na selva amazónica, uma tempestade apaga em segundos as sendas abertas a machete, os rios crescem alimentados pelos milhares de arroios transformados em correntezas que arrastam troncos, animais surpreendidos, toneladas de lama e de folhagem, e também numa questão de minutos as 78 79 margens baixas cobrem-se de vários metros de água furiosa que arrasta tudo à sua passagem. Nushino quis saber se eu tinha forças para uma corrida longa, pois conhecia um lugar alto onde poderíamos abrigarnos. Respondi-lhe que me sentia bem e desatámos a correr evitando as cheias, acompanhados pelo medo que provoca nos habitantes amazónicos não poder ouvir a linguagem da selva, pois todos os ruídos eram abafados pelo barulho da chuva. Corremos umas três horas, era-me difícil seguir o seu ritmo e vi como abrandava a marcha para que o alcançasse. Em determinados momentos, parava um pouco, enterrava a mão na lama, observava o que tinha retirado e dizia-me que devíamos fazer um desvio para evitar os milhões de formigas vermelhas que, enfurecidas pela destruição do seu formigueiro, desatavam o ódio das suas diminutas mas implacáveis fauces contra tudo o que se pusesse ao seu alcance. E a água caía sem misericórdia, como uma vingança do céu. De repente, vi que Nushino levava as mãos à cara, cobria com elas o nariz e os olhos e cheirava com força. Fiz o mesmo e percebi também o agradável odor a fumo. Vio sorrir e corremos orientados por aquele cheiro. Num alto, mas junto ao rio Yacuambi, havia uma cabana construída sobre palafitas, e por entre a cobertura de folhas de palmeira entrelaçadas escapavam-se umas débeis espirais de fumo. Aproximámo-nos e quando estávamos a poucos metros, Nushino disse-me que ali vivia um velho estranho, branco, que falava muito pouco. Era baixote de estatura, o corpo flácido, tinha o cabelo grisalho e hirsuto das pessoas da serra equatoriana, e uma barba branca rala de vários dias cobria-lhe parte do rosto. Sem palavras, convidou-nos com um gesto para que nos aproximássemos da fogueira de três troncos que ardia no meio da cabana. Nunca mais voltei a sentir um calor tão reconfortante como aquele. Sem palavras também, passou-nos uma garrafa de puro, a aguardente de sessenta e muitos graus obtida pela destilação das sobras da cana-deaçúcar. Em breve anoiteceu, continuava a chover, a escuridão que rodeava a cabana era total, mas estávamos secos e a salvo. O velho acendeu um candeeiro de acetileno e à luz da chamazinha fraca repartiu connosco uns pedaços de iúca cozida e uns camarões saborosíssimos. Depois de comer, tomámos mais uns tragos de puro, o velho partiu em três bocados um cigarro, um daqueles charutos de tabaco silvestre, e começou a conversar com Nushino na língua dos Shuar. Não compreendia o que diziam, de modo que me afastei para fumar e olhar para a escuridão da selva. Pouco depois, Nushino disse-me que podia dormir na rede do velho. Recusei a oferta, alegando que, como ele, me 81 ajeitaria no chão, e então o velho falou-me com o sotaque cerrado dos serranos. Não me lembro do que me disse. Sei apenas que se referiu ao meu cansaço e me apontou a rede. Sou um escritor, mas não encontro palavras para contar o que se sente numa rede, no meio da Amazónia, quando a noite envolve tudo e a chuva cai sem piedade. Nushifio acomodou-se junto da fogueira, e da rede pude ver como o velho levava o candeeiro até um móvel, uma espécie de baú vertical onde guardava os pratos de latão e duas panelas. A parte mais alta do baú chegava-lhe a meio do peito e aí pousou o candeeiro; depois, acercou-se da rede. Junto desta havia uma caixa mais pequena, pregada à parede, e que eu não tinha visto. Não havia mais de cinco ou seis livros enfileirados naquele móvel, o velho tirou um, levouo até ao baú dos pratos, com lentidão cerimonial retirou qualquer coisa de um invólucro de pano, bafejou-a, passou-lhe o pano e olhou através dela. Era uma lupa. O velho abriu o livro, procurou uma página e, de pé, começou a ler. Procurando não fazer barulho, saí da rede e aproximei-me dos livros. Havia uns romances de Pierre Féval e outros de Eduardo Zamacois. Livros velhos, manuseados, húmidos. Romances de amor que eu conhecia das adaptações radiofónicas e que nunca quis ler. Há quatro meses que não abria um livro. Na aldeia shuar, na minha mochila tinha As Veias Abertas da América latina-, de Eduardo Galeano, Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada, de Pablo Neruda, e La Linares, do ; escritor equatoriano Ivan Egúez, mas não lhes tinha posto os olhos durante todo esse tempo, ocupado que estava com aprender a ler a selva. Perguntei-lhe se podia pegar em algum deles e, sem abandonar a leitura, respondeu-me que os livros eram para ler. Ao amanhecer, a tormenta tinha amainado, embora continuasse a chover. Agradecemos-lhe a hospitalidade e empreendemos o regresso em direcção ao Nangaritza. Na mochila levava também um caderno e algumas esferográficas. Nesse caderno comprado em Quito escrevi simplesmente O Velho Que Lia Romances de Amor, para não me esquecer, para que essa noite, estendido na rede enquanto a tempestade açoitava a Amazónia, vivesse para sempre na minha memória. Três meses mais tarde saí da selva, Nushifio e outros dois shuar acompanharam-me até aos limites do seu território. Sempre que me assalta alguma tristeza, sinto a mão do 1 meu compadre a tocar-me no ombro e a dizer-me que posso : voltar quando quiser, pois embora não seja um deles, sou como um deles, e a tristeza desaparece. Um camião carregado de madeiras levou-me até Macas, tinha o cabelo pelos ombros e a barba chegava-me a meio do peito. Com extremo cuidado, desenrolei alguns travelers 82 83 cheques meio desbotados pela humidade, troquei-os, e, meia hora mais tarde, estava numa avioneta que voava rumo a Guaiaquil. Em Guaiaquil, a primeira coisa que fiz foi ir a um barbeiro no Parque Centenário, depois entrei num restaurante e pedi o que mais desejava comer: doze ovos estrelados e uma cerveja fria, muito fria. Sempre quis escrever alguma coisa, não sabia o quê, mas aquele velho que nos deu guarida numa noite de tormenta na selva e repartiu connosco tudo o que tinha, necessariamente, deveria ser o protagonista. Não sabia o que escrever e tão-pouco tinha pressa de o fazer. No exílio, se algo temos, é tempo, muito tempo. De Guaiaquil dirigi-me a Quito e daí à Nicarágua, como combatente da Brigada Internacional Simón Bolívar, a última brigada. Lutei, vi morrer, talvez algumas das minhas balas tenham também ceifado vidas, na guerra mata-se ou morre-se, e, numa ou noutra ocasião entre combates, lembreime do velho, de Nushino, dos Shuar, e soube que um dia escreveria alguma coisa, mas continuava sem saber o quê. Em 1980, cheguei à Europa, aterrei em Hamburgo, a vida prosseguiu, casei-me, tive filhos, fui jornalista, escrevi contos, poemas, artigos, teatro, mais contos, mas em nenhum deles aparecia o velho. Às vezes, olhava para o mapa do território amazónico, procurava a confluência do rio Yacuambi com o Nagaritza, e com o dedo seguia todas as desembocaduras dos rios cada vez maiores que iam dar ao grande Amazonas. Dos Shuar ficou-me o hábito de reunir os meus ao cair da tarde e falarmos do dia, enfeitando-o, tornando-o melhor. A vida prosseguiu. Um dia converge para outro. Esse caudal é tudo o que somos. O velho começou a visitar-me em sonhos, nunca me falou, mas deixava-me cheio de perguntas: O que estás a ler? Porque estás de pé? Quem te deu esses livros? E a lupa, de onde saiu? Porque conheces a língua dos Shuar? Em 1987, um amigo que apreciava os meus contos convidou-me para participar num projecto fascinante. Tratava-se de ser o argumentista de emergência de um filme cujo tema não podia ser mais belo: durante a Segunda Guerra Mundial, um oficial alemão, culto, antinazi ferrenho, amante da música e intérprete de flauta de bisel, conhece um prisioneiro de guerra croata, um músico, pianista, a quem admira. A música gera uma estranha relação entre ambos, tocam juntos sempre que podem, mas um dia o alemão fica a saber que os nazis tinham decidido matar vários prisioneiros e o pianista croata acha-se na lista dos que serão assassinados. Decide ajudá-lo a fugir e, depois, a desertar. Os dois homens despedem-se e combinam que, se sobreviverem, quando chegar a paz, procurarão um pelo 84 85 outro e tocarão juntos uma peça de Mozart para flauta e piano. Trinta anos mais tarde, encontram-se e cumprem o acordo. O filme seria rodado numa bonita ilha da costa croata, Mali Losinj. O grosso da equipa alugou quartos em hotéis, mas eu preferi viver numa casa sem telefone nem electricidade, rodeada de um bosque de coníferas e quase em cima do mar Adriático. Escrevia de noite e de dia rodava-se o meu guião. Tudo correu lindamente até que, a meio das filmagens, o produtor teve um sério contratempo familiar e suspendeu-se a rodagem. Decidi ficar duas semanas em Mali Losinj e terminar o guião. Uma tarde, o céu pôs-se cinzento e vi-o com nuvens muito carregadas. Começou a soprar um vento do sul, quente, os raios caíam muito perto da casa, acendi a lareira, tirei a rede do jardim e pendurei-a bem perto do fogo para desfrutar daquela tormenta com as portas e as janelas abertas. Ouvia chover, de vez em quando bebia um gole de sliwowitz, sentia-me feliz ali, a fumar enquanto a chuva repicava no telhado e caía às enxurradas pelos escoamentos. Então entrou o velho e começou a responder às minhas perguntas. Era como um deles, mas não era um deles. Tal como eu na Argentina, no Uruguai, no Brasil, na Bolívia, no Peru, no Equador, na Colômbia, na Nicarágua, na Alemanha. O velho era um exilado e começou a contar-me o meu próprio exílio. Nós, os exilados, somos como os lobos, para onde vamos juntamo-nos às alcateias que não são as nossas, mas convivemos, caçamos juntos, e, no entanto, a lua convida a afastar-nos para uivar de solidão. Fazemos amigos, criamos universos emocionais para enfeitar a memória imediata no momento inevitável de relatarmos o dia. Assim, contei ao Velho, uma vez, quando começou o meu exílio, entrei num táxi no aeroporto de Buenos Aires, perguntei ao taxista quando custava a corrida até ao centro e o homem pediu-me que fosse mais preciso. Até ao Obelisco, disse-lhe, e ele respondeu que custava uns vinte dólares. Eu não tinha mais do que dez, uma nota imunda e amarrotada era toda a minha fortuna. Aceitou levar-me por aquele preço e, quando estávamos junto da imponente vertical do Obelisco, entreguei-lhe o dinheiro. O taxista meteu a mão numa caixa de charutos, retirou um punhado de notas e deu-mas, enquanto dizia: "Cuida de ti, irmão." Esse taxista é meu amigo, não sei o nome dele e é meu irmão. Aonde quer que eu vá, refiro a sua nobreza. Noutra ocasião, em Islândia, na região das Três Fronteiras, junto ao Amazonas, vi um dentista itinerante tirar todos os dentes, sem anestesia, a um garimpeiro empenhado em ganhar uma aposta sangrenta. Durante uns segundos, os seus olhos cruzaram-se com os meus e percebi que aquele dentista era meu amigo, e 87 será também teu amigo quando contar a tua história, quando escrever esse romance de amor que, espero, hás-de ler de pé na tua cabana junto ao rio. O dia seguinte amanheceu radioso, o aroma do solo húmido impregnava tudo, fiz uma caneca de café, numa mesa debaixo de uma ameixoeira coloquei a minha nobre Olivetti, uma rima de papel, e comecei a escrever o meu pri meiro romance. O romance do meu amigo, o velho que lia romances de amor. 88 O verdadeiro autor de Tarzan Há algo que toda a vida agradecerei às Correntes Descritas, um esplêndido festival literário que se realiza todos os meses de Fevereiro na Póvoa de Varzim: ter-me dado a conhecer estupendas e estupendos escritores de Angola, Moçambique e Cabo Verde. Antes de ter ido à Póvoa pela primeira vez, perdera essa grande literatura, os livros de Germano Almeida, Manuel Rui, Ondjaki e Nelson Saúte. Deste último posso dizer que, em certa ocasião, visitámos juntos uma escola da Póvoa de Varzim e não sabíamos de que falar aos alunos. Para encontrar um tema comecei por dizer que estava muito contente porque a camisa que usava naquele momento tinha sido um presente de Nelson e viera directamente de Angola. Era uma linda camisa que ressumava africanidade, e isto deu uma oportunidade a Nelson, que começou a contar uma aventura na savana africana com ataques de ferozes pigmeus, missionários enlouquecidos por febres apocalípticas, lutas com leões famintos e indignados com a Metro Goldwyn Mayer, combates com elefantes de moral duvidosa, pelejas a murro com gorilas de hábitos sexuais confusos, até que chegou ao sítio onde vendiam as camisas, comprou uma, e regressou no meio de aventuras ainda piores. Ouvi-o tão hipnotizado e perplexo como os alunos daquela escola, e concluí que o autor de Tarzan não se chama Edgar Rice Burroughs, mas Nelson Saúte, esse grande escritor que me compra camisas em Angola. 90 Alquimia da luz, do respeito e do milagre Pela Via Cássia, que une Siena a Roma, cruzando a singular beleza da Toscana, passaram milhões de peregrinos e cada um deles alguma coisa deixou: um olhar cansado sobre a velha terra removida uma e outra vez para ser oxigenada e permitir que o ar a fecunde de abundância, um testemunho de guerreiros cansados em cima das pedras deixadas por outros guerreiros vitoriosos ou derrotados - é sempre o mesmo -, uma vasilha de terracota ainda cheia de suspiros de vinho, uma espada por fim sem fio, restos de livros truncados, de poetas humilhados pela grandeza do indescritível, até que alguém, quem?, quando?, abandonou à beira da estrada o cadeirão para que Daniel Mordzinski o visse e de imediato, mercê da visão festiva que a lente da sua câmara permite, fizesse cora que aquela curva entre Bagni San Filippo e as velhas minas de mercúrio se transformasse num mirante para apreciar a vida com calma. 91 Existe uma relação entre a vida e Daniel Mordzinski que quase não corresponde ao reino deste mundo, porque é impossível aplicar uma lógica ao acto de bater a uma porta na longínqua Patagónia, ver que a abre uma anciã, D. Delia Cossio, e ouvi-la exclamar: "Que bom terem vindo, rapazes, porque estou só e hoje faço noventa e seis anos." Daniel não sabia que aquela anciã estava ali, mas ela esperava por ele como se espera pelos amigos que ainda não conhecemos mas que chegarão, que chegam sempre. E duas horas após estar com ela numa festa sacudida pela mais cruel ventania, o seu rosto sulcado pelas mais belas marcas do trabalho e dos sonhos que, embora desfeitos, nem por isso são menos gloriosos, ficou no ventre da Leica, no território de escura fecundidade que só ele conhece e governa. Certa vez, vi-o fotografar um gaúcho de idade indefinida, de estatura imprecisa, de cor camaleónica à luz da estepe. Seguindo as regras do respeito, da ética que distingue o fotógrafo, o artista, do ladrão de imagens, Daniel Mordzinski fotografou-o com uma câmara Polaroid, e, no mais longo dos silêncios, esperámos que a luz fizesse o seu trabalho, que aparecessem as primeiras manchas, os contornos, até que se plasmou inteira a imagem de um centauro. Aquele homem, aquele cidadão montado, habitante da intempérie, senhor dos ventos, jamais tinha visto a sua própria forma de ser e o que primeiro reconheceu foi o cavalo, até que outro cavaleiro se acercou dele e lhe disse: "És tu, irmão, és tu!" O gaúcho ficou perplexo, e mais ainda Daniel. O primeiro, de emoção, Daniel, de respeito, de modo que guardou as câmaras e quem sabe se não perdeu um Pulitzer, mas ganhou o apreço daqueles homens que o chamaram para junto da fogueira no chão, na qual se douravam uns cordeiros, e, depois de comer, beber, rir, falar do humano e do divino, lhe disseram que se queria tirar fotografias tinha de lhes dar tempo para se arranjarem, porque aos amigos dá-se o melhor que se tem. Numa aldeia tirolesa esperava-o Franz Tahler, um herói nonagenário, sobrevivente de Auschwitz, antifascista de ontem, de hoje e de sempre, e que ganha a vida a gravar lindíssimas miniaturas de metal. Aquele homem certamente pedia fotografias épicas à luz daquilo que com inteira humildade contava: fizera o certo no momento certo. A câmara de Daniel fixou-se nas suas mãos de homem justo, porque nelas estava o essencial da sua história, e no fogão a lenha que aquecia a pequena casa tirolesa, mas que irradiava um calor necessário e generoso. Nunca conheci um fotógrafo tão cortês como Daniel Mordzinski. Possui o estranho dom de se tornar invisível, transparente, quase incorpóreo, até que alguém pergunta: onde está o Daniel? E, então, ele aparece atrás de um sorriso e logo diz "tenho uma ideia", e devolve-nos aos tempos felizes das brincadeiras, e com ele brincamos a beijar um peixe, a sentar-nos numa poltrona no meio da estrada, a 92 93 perder-nos num mar de ovelhas, a subir até às nuvens se nolo pedir, a sustentar tudo o que fomos suspenso num gesto. Daniel Mordzinski é um homem esperado pelas histórias que querem ser fotografadas, pois sabem que a sua câmara possui outra maneira de contar. Nas selvas de Caiena fui uma vez mais testemunha das histórias que o aguardavam, entre as lianas e os caimões, entre a sombra da vegetação infinita e a luz dos hotéis sem outro mobiliário para além de um par de ganchos para pendurar as redes. E, no meio de tudo isso, alguém, uma mulher estranha e solitária que lhe abre a porta da sua casa sem portas. Não faz falta que se diga que é meu amigo, meu irmão, mas eu desfruto do orgulho de o dizer. 94 :-_------_- ... 19 de Julho de 1979 ... Há trinta anos, eu ainda não tinha trinta. O meu património era o coçado uniforme verde-azeitona comprado numa militar store no Panamá, uma espingarda Garand recuperada à guarda nacional de Somoza, um par de carregadores cheios, e, na mochila, o bem mais querido: um exemplar da Antologia Rota, de León Felipe. Há trinta anos, no dia 19 de Julho de 1979, ao lado de um punhado de combatentes da Brigada Internacional Simón Bolívar, encontrava-me em Manágua, e, junto a nós, muitos "compadres" da MILPA, a Milícia Popular Antisomozista, que era liderada pelo comandante Edén Pastora, chefe militar da Frente Sul. No dia anterior, nós, sobreviventes da Brigada, tínhamo-nos reunido numa casa ao quilómetro 12 da estrada para Mayasa, simplesmente para nos abraçarmos, cerrar os dentes ao contarmos os nossos mortos, e decidir que, no dia seguinte, os últimos tiros seriam dados para abrir caminho 95 até Manágua, para que os combatentes da Frente Sandinista entrassem por fim na capital e começasse a sua festa, a sua tentativa de transformar para bem esse belo país de valentes. A Simón Bolívar foi a última Brigada Internacional da história das lutas libertadoras no continente americano. Argentinos, uruguaios, chilenos, peruanos, bolivianos, paraguaios, colombianos, venezuelanos, italianos, um suíço e duas alemãs integraram esse contingente que respondeu à chamada de Hugo Spadafora, e no golfo de Darién, no quartel dos "Macho Monte", a força de elite do general Ornar Torrijos, recebeu as instruções gerais para entrar em combate. A maior parte de nós, sobretudo os latinoamericanos, entrou na Nicarágua para se desforrar das derrotas sofridas nos seus respectivos países. íamos morrer em solo nicaraguano, sabíamos todos que alguma bala teria os nossos nomes gravados, e que a guerra, despida de qualquer absurdo romântico, estava impregnada da maldição de ser um mal necessário. A Brigada Internacional Simón Bolívar lutou na Frente Sul, no Norte - aqueles que entraram por Somoto - e na costa atlântica, ao lado dos combatentes negros de Blue- fields, que se juntaram à Brigada com entusiasmo. Trinta anos passaram desde aquele 19 de Julho de 1979, e o que de melhor acode à minha memória é a imagem de um velho combatente nicaraguano, um "compadre" da MILPA, com quem, muito perto do Teatro Rubén Darío, reparti um frasquito de rum nicaraguano, ao entardecer daquele dia. - Como te sentes, compadre do sul? - perguntoume, enquanto olhávamos para o retrato de Sandino que mãos guerrilheiras erguiam na fachada do teatro. - Sinto-me bem, compadre, e tu? - respondilhe. - Feliz. Sinto que hoje toquei o céu com as mãos - respondeu. Sim, eu também toquei o céu com as mãos naquele 19 de Julho. Trinta anos passaram, nada é igual, e, parodiando Neruda, nós, os de então, já não somos os mesmos. Alguém me convidou para ir à Nicarágua a fim de participar da comemoração. Amo a Nicarágua, mas não gosto que o vice-presidente seja um criminoso, o chefe do Contra que, às ordens de Ronald Reagan, violou todas as convenções de guerra e assassinou, torturou, violou, vexou milhares de nicaraguanos. Mas este velho coração rubro-negro também comemora hoje o 19 de Julho. Assim, coloco ao pescoço o único objecto que possuo desses dias, um lenço da Brigada Internacional Simón Bolívar, em cujo reverso várias companheiras e companheiros escreveram os seus nomes, e ponho-me a passear por Gijón, cantarolando hoy el amanecer dejó de ser una tentación I manana algún dia brillará un nuevo sol I que 96 97 habrá de iluminar toda la tierra I que nos ,legaron los mártires y héroes / con generosos rios de leche y miei..} A Avenida Gaspar Garcia Laviana cruza vários bairros operários de Gijón. Aqui ninguém sabe que hoje é 19 de Julho e que Gaspar, o padre sandinista - comandante Martin, na memória combatente da América Latina -, não chegou a ver aquele entardecer luminoso em que, com as mãos ; negras de pólvora, tocámos o céu com as mãos. E, no entanto, também esteve lá, nos registos que repetiam a infinita lista com os nomes dos que caíram em combate. Muito perto da Avenida Constitución vejo uma placa com o nome de Gaspar: Avenida Gaspar Garcia Laviana. É Verão em Gijón, é domingo em Gijón, as pessoas vão às praias da cidade, para os parques merendar, passear junto ao mar, e é justo que assim seja porque a vida é intensa e bela, e por isso mesmo ninguém se sente incomodado, ofendido ou acha estranho que um homem que em breve chegará aos sessenta anos, erga o punho e diga: "Salve, comandante Martin, foi uma honra lutar a teu lado!" ' Hoje a aurora deixou de ser uma tentação/ amanhã algum dia brilhará um novo sol/ que haverá de iluminar a terra inteira/ que nos legaram os mártires e os heróis/ com generosos rios de leite emel... (N. do T.) 98 Observações sobre a intelectualidade O meu amigo Miguel Rojo, além de ser um tipo estupendo na casa de quem se come o melhor cordeiro de Espanha, é um escritor dotado de um insuperável talento para surpreender a intelectualidade. Certa vez, coube-lhe assistir a um ciclo de conferências em que um grupo de escritores que preferiam definir-se a si mesmos como intelectuais esmiuçava os fortes e belos motivos que a todos tinham conduzido à literatura, para o bem e para o mal, embora eles preferissem dizer "à intelectualidade". Todos sem excepção falavam das formidáveis bibliotecas das suas casas paternas e narravam as suas aventuras de leitores precoces que, antes de irem para a escola, já possuíam um conhecimento bastante profundo dos clássicos - Cervantes, Shakespeare, Molière - a quem chamavam companheiros de infância ou "amigotes". O meu amigo Miguel, que teve uma infância mais ou menos normal numa aldeia asturiana, a tomar banhos de 99 rio, a atirar pedras ao campanário da igreja, a caçar alguma lagartixa ou a olhar para debaixo das saias das raparigas que atravessavam uma velha ponte de pedra, ouviu-os em rigoroso silêncio, e quando lhe tocou a vez de contar como, quando e porque tinha chegado à literatura, suspirou, lançoulhes um olhar surpreendido, enrugou a testa, num exercício facial e muscular que os intelectuais presentes interpretaram como o início de uma viagem às raízes do conhecimento. - Como todos sabem, nasci e cresci numa aldeia começou por dizer -, um sítio de bucólica paz marcado por alvoradas muito frias e tardinhas assinaladas pelas vacas que, pacientes, se retiravam do campo. A casa era partilhada pelos meus pais, os meus irmãos, os meus avós, alguns parentes inimigos de dormir com intempérie, e oito vacas. As pessoas ocupavam o piso superior da casa tipicamente asturiana, e as vacas, a parte de baixo, numa divisão aceite por todos como algo natural. "Mal nos fechávamos em casa, mãos diligentes acendiam um candeeiro a petróleo e, em seguida, cada um se retirava para o canto preferido para se dedicar à leitura. O meu avô era fanático de Ovídio, a minha avó, pelo contrário, manifestava um amor desmesurado pela obra de Hòlderlin, Novalis e outros românticos alemães, o meu pai costumava blasfemar porque depois de ler todos os autores do Século de Ouro considerava desprovidos de interesse os autores modernistas, a minha mãe, afrancesada, opinava que Flaubert era quem estava mais perto da perfeição literária, e os meus parentes, mais dados à literatura picaresca, liam Rinconete y Cortadillo1, O Lazarilho de Tormes, provocando breves altercações quando levantavam a voz desnecessariamente. Os meus irmãos, de seis, sete e oito anos, respectivamente, obstinados, liam os autores do nouveau roman; Nathalie Sarraute, Michel Butor e Alain Robbe-Grillet passavam pelas suas mãos ávidas e ainda besuntadas com os restos da tortilha que tinham jantado, e as vacas eram decididamente admiradoras de Rilke. Assim o davam a entender com os seus mugidos aprovadores quando as ordenhávamos. "Assim transcorriam as horas nocturnas, fora de casa chovia, nevava, uivavam os lobos, e, lá dentro, a família entregava-se ao prazer da leitura num silêncio que muitos vizinhos interpretavam como suspeito. À alba, cada um guardava os seus livros num móvel fechado, alguém perguntava como seria ter camas, e a família entregava-se aos trabalhos do campo, toda, excepto o meu pai, que, calcorreando alegremente os oito quilómetros até ao quartelzinho da Guarda Civil, ia cumprir a rotina repressora do franquismo e da Igreja católica. "No pequeno quartel, além do meu pai, havia outros três guardas civis vestidos rigorosamente de cinzento, com 1 Personagens cervantinos que dão o nome a uma das Novelas Exemplares. (N. doT.) 100 101 os tricórnios reluzentes. Cumprimentavam-se, emborcavam um bom trago de Anis de~l Mono, e, seguidamente, dirigiam-se para o canto da armaria. Aí, no meio de espingardas e pistolas, encontravam-se ordenados por ordem alfabética os livros dos autores que mais os apaixonavam, quase todos eles existencialistas. "Às vezes, um deles saía do quartel e regressava com um prisioneiro acusado de roubar uma vaca e, de imediato, outro guarda civil, feroz leitor de Kierkegaard, pregava-lhe duas bofetadas ao mesmo tempo que o repreendia por não compreender que ele se pudesse sentir atraído por uma vaca e considerá-la única, embora para a vaca ele não passasse de um homem entre milhares, carente de individualidade. Em seguida, outro guarda civil dava outro tabefe ao prisioneiro e explicava-lhe que, de acordo com a correcta interpretação do Dasein de Heidegger, não devia ter permitido que o prendessem, pois a sua culpa existiu apenas no momento em que roubou a vaca, não antes nem depois. O encarregado de lhe dar a terceira bofetada era um guarda civil andaluz, fanático de Camus, que, chamando-o "gémeo de Meursault", quase o convencia de que aquela e todas as bofetadas, na realidade, não lhe doíam porque estavam dirigidas à sua cara mesmo antes de ele existir, e, portanto, nascera com aquela dor. O meu pai, pelo contrário, devoto de Sartre, aplicava-lhe um par de pontapés e depois soltava-o, explicando aos outros que se era certo que havia uma marca bem nítida numa perna da vaca, a individualizar o proprietário, também o era que os homens interpretam os signos à sua maneira. "Geralmente, terminavam os dias de serviço a discutir acaloradamente os limites do finito e do infinito na obra de Hegel. Então, bebiam outro trago de Anis del Mono, penduravam os tricórnios e davam o dia por concluído. O meu amigo Miguel Rojo concluiu a sua intervenção em meio de um denso silêncio da intelectualidade. - A tua aldeia deve ser a Atenas das Astúrias - disse um. - O que quer dizer que o conhecimento rupestre existe - ponderou outro. E o meu amigo Miguel retirou-se a pensar como é fácil fazer felizes os intelectuais. 102 103 Escuta, Chile... morreu Katya Olevskaia A voz de Katya Olevskaia era a voz de um anjo laico que, nas ondas da Rádio Moscovo, nos ofereceu doses de esperança durante os anos mais duros e negros da história do Chile. Katya desapareceu, longe da sua pátria soviética que já não existe, num exílio impregnado de derrota, como todos os exílios, sob um céu bem longe dos nublados crepúsculos moscovitas em que a sua voz se ia acendendo lentamente até alcançar o fulgor daquela saudação tão amada por tantas e tantos de nós, que esperávamos o calorzinho necessário que nos ofertava quando dizia "Escuta, Chile". No meio do medo, enquanto os cães ocupavam as ruas do Chile, alguém ligava um rádio, procurava em onda curta, e, num volume muito baixo, as companheiras e os companheiros juntavam-se à volta do receptor para resistir, porque a Resistência à ditadura forjou-se em tardes frias, em noites demasiado longas, exercendo o dever da clandestinidade primária que consistia em informar-se, em saber quem e 105 quantos tinham morrido ou desaparecido. Mas essa forma de resistência, de clandestinidade a baixo volume, dava-nos também a certeza de não estarmos sozinhos no meio do terror, e a voz de Katya, ao anunciar "Escuta, Chile", era a única esperança que chegava até nós. Esperávamos a sua voz de anjo soviético e laico no Chile e nos países de exílio. Como todos os anjos, Katya foi também um anjo puro e ingénuo. Era como um ser de romance, dos melhores romances de um tempo de que apenas restam recordações, porque a formidável ideia do soviete, da pátria soviética, do país dos operários, camponeses, estudantes e soldados, diluiu-se sem pena nem glória e sem que os crentes fervorosos dessa bela utopia - os anjos como Katya - pudessem fazer alguma coisa para o impedir. Katya era a solidariedade no seu estado mais puro, a entrega total e sem outra razão que não fosse a poesia da luta. Katya era o Poema Pedagógico, de Makarenko, a noiva invisível dos komsomol de Assim Foi Temperado o Aço, o emblema quixotesco do valente soldado Chapaiev, a ternura feroz de A Mãe, de Gorki. Katya era tudo aquilo condenado a desaparecer pela sua própria estatura. Quando se desmoronou a União Soviética e o resto dos países do chamado socialismo real se entregaram à brutalidade mafiosa do capitalismo na sua pior expressão, a fase sem moral da acumulação primária, tudo o que Katya representava foi considerado obsoleto, imoral, condenável, e ela foi testemunha da miséria moral a apoderar-se de tudo aquilo que alguma vez teve um significado cheio de digna humanidade. A sua voz a convidar, "Escuta, Chile", apagou-se, e é possível que não reste nenhuma gravação daqueles programas destinados aos que sofriam e para quem essa voz era a única esperança que chegava do grande mundo. Encontrei-me com ela em Moscovo, pouco antes de ir | para o exílio final em Israel. Demos um passeio por aquela cidade invernosa e vimos velhos tolhidos de frio a vender as suas condecorações de heróis da União Soviética. Nunca me esquecerei de uma anciã que vendia um lote de fotografias da Segunda Guerra Mundial. Eram instantâneos das Rosas de Estalinegrado, uma esquadrilha de mulheres-pilotos que com os seus aviões foram o pesadelo dos nazis. Nas fotos viam-se essas belas raparigas soviéticas, e a anciã que as vendia era uma delas. Katya olhou-me com azul tristeza, eu apertei-lhe a mão e afastámo-nos no mar de derrotados. Katya Olevskaia devia ter recebido a mais elevada gratidão por parte dos chilenos, mas tal não aconteceu. Os seus queridos amigos, Virgínia Vidal, José Miguel Varas, Cristina de Largo, não falharam e devotaram-lhe todo o amor solidário que lhes foi possível. Mas o país, empenhado em esquecer a épica e em construir-se a si próprio sem memória, não correspondeu. 106 107 Katya Olevskaia morreu num país distante, sob outro céu, porque assim se apagam as vozes dos anjos soviéticos e laicos. Escuta, Chile: liga um rádio antigo, procura em onda curta, reúne os que te são queridos num acto necessário de resistência e recordação. O silêncio do éter dir-te-á que a voz doce de Katya desapareceu para sempre. 108 ___------------- Quem é você? Quando digo "eu também sou jornalista", faço-o com muita humildade, porque à minha memória chega uma ampla galeria fotográfica e nela encontram-se os rostos de Juan Pablo Cárdenas, que, por ser um grande jornalista, foi refém pessoal de Pinochet, de Pepe Carrasco, que, por ser um grande jornalista, foi assassinado por Pinochet, de Rodolfo Walsh, que, por ser, além de escritor, um grande jornalista, foi assassinado pela ditadura argentina, de José Luis López de Ia Calle, que, por ser um grande jornalista, foi assassinado pela ETA, e a eles se acrescentam outros ilustres colegas do grupo que fui encontrando pelo caminho, de modo que, ao dizer "eu também sou jornalista", faço-o também com orgulho, mas com um orgulho que não dura muito, pois a profissão encontra-se em franca decadência. Há seis anos coube-me acompanhar Ryszard Kapuscinski, o Mestre dos mestres, quando recebeu o prémio Príncipe das Astúrias de Comunicação. Enquanto passeávamos por 109 Oviedo, Kapuscinski confessou-me o pânico que sentia sempre que era entrevistado. Quis saber se se tratava da síndrome do entrevistador entrevistado ou de um caso de mera timidez, mas Kapuscinski sugeriu que abandonássemos o tema e procurássemos um sítio onde servissem um bom café. E aí estávamos, numa esplanada, quando se aproximou de nós uma rapariga muito jovem, bastante bonita, e se apresentou como jornalista de um canal de televisão. Pediu uma breve entrevista, dois minutos, disse, em suma, é para a televisão, acrescentou, e em seguida sacou de um pequeno espelho e compôs a maquilhagem, enquanto um colega dela assestava a câmara e outro ainda preparava o microfone para o entrevistado. - Quem é o importante? - consultou o técnico. A pergunta interrompeu a tarefa embelezadora da jornalista. Era, sem dúvida, uma boa pergunta, de tal modo que, fiel ao que aprendera na escola de jornalismo, olhou para nós os dois, talvez para deduzir experiência, anos de circo, ou para se lembrar das fotos vistas à pressa no Google, e, finalmente, recorreu ao programa dos prémios, dando-lhe uma olhadela. - Quem é o premiado? - perguntou, e, então, Ryszard Kapuscinski apontou para mim com um dedo acusador. Deixei que me pusessem o microfone, o homem da câmara mostrou os dedos, quatro, três, dois, um, e a jornalista começou a entrevista, breve, em suma, é para a televisão. - Quem é você e porque o premiaram? Uma pergunta dupla merece uma resposta meditada, de modo que me apresentei como um escritor lituano, autor de um romance cujo argumento resumi: um homem sofre muitas traições, vai parar à cadeia, passa vários anos nas piores condições, foge, e como não esquece nem perdoa a quem o ofendeu, consagra a vida à vingança. A jovem jornalista despediu-se, nem por um só momento se preocupou com o olhar atónito de Kapuscinski, e o mais certo é que essa entrevista tenha sido vista por muita gente que tem o direito de ser responsavelmente informada, mas esse direito está em perigo, pois a precariedade em que caiu o jornalismo faz com que ninguém seja responsável pelo que se escreve, diz, ou emite, salvo raras excepções, e com que sejam poucos os jornais feitos por jornalistas que, com absoluto rigor, assistem ao funeral de uma profissão tão bela quanto necessária. Muitas vezes, ao dizer "também sou jornalista", sinto que grito "e também sou um dos últimos moicanos", dos que cheiram a tinta e tabaco, dos que queimam as pestanas a documentar-se e, claro, dos que recebiam um soldo digno, estávamos sindicalizados, e não dependíamos dos miseráveis salários que os bolseiros recebem. Sim. Sei que é uma opinião de veterano, mas de um veterano que ainda ama a sua profissão, precisamente porque conheceu e conhece outros veteranos mais interessados 110 111 na qualidade da informação do que em manter a assepsia das modernas salas de redacção. Há alguns meses, o meu último romance obteve um prémio importante, naturalmente tive de conceder muitas entrevistas, e, digo-o com pena, muitas delas começaram com o "quem é você?", ao que respondi com paciência. "De que trata o seu romance?" é outra das perguntas inevitáveis. Tenho a certeza de que se responder que "o meu romance relata as histórias de um senhor que, de tanto ler, se julgou cavaleiro andante e confundiu os moinhos de vento com gigantes", alguém publicará essa resposta, que, mais do que uma homenagem a Cervantes, é o meu pranto pelo conhecimento desprezado. Também sou jornalista, digo, e sinto-me como Dom Quixote de la Mancha, derrotado no fim, vendo como no pátio da sua casa a ignorância baila feliz junto à fogueira em que ardem os seus livros. 112 Tá Tá diz-se em uruguaio quando se procura afirmar com ênfase, e Tá respondeu Mário Benedetti quando a decência perguntou se havia que arriscar pelos pobres, pelos fracos, pelos condenados da terra, pelos que não tinham direito à alegria, pelos que sonhavam com uma existência justa, por uma palavra "amanhã" plena de sentido. Tá, respondeu Mário Benedetti quando a própria vida perguntou se havia que tomar partido e ser a voz daqueles que apodreciam num presídio tristemente chamado "Liberdade". Lá, entre tantos outros, estiveram quinze anos o dramaturgo Mauricio Rosencof e o poeta Carlos Liscano, mas, durante esses quinze anos, eles foram nomeados todos os dias por Mário Benedetti, e, onde quer que estivesse, as suas primeiras palavras eram para exigir a libertação dos companheiros. Os poetas, amamo-los e admiramo-los, a homens como Mário Benedetti, simplesmente perguntávamos: "E se fôssemos à tasquinha dois do mercado da abundância para nos 113 pormos em dia com a vida?" E o tá da sua resposta era o começo de uma grande festa de recordações, de vinho clarete, de preocupação, porque Mário preocupava-se com todos, e logo que alguém lhe falava daquele "rapaz que continua preso em Lima", os seus olhos prendiam-se nos movimentos de uma menina vendedora de jasmins. Nunca conheci outro homem tão simples, tão generoso, solidário, e que, como diz o poema de César Vallejo, parecia viver em representação de toda a gente. Homens como Mário Benedetti são para serem cantados sem que importe a rima dos seus versos, encontram-se nos bairros populares, nas tasquinhas frequentadas por gente de outras terras, no fragor das lutas mais justas, nos cartazes com erros de ortografia mas correctos nas suas razões, nos estudantes que, atrás das barricadas, pegam na mão das suas namoradas, descobrindo então que não estão sozinhos, e, sem que importe a língua que falam os seus corações, eles batem a ritmo uruguaio, convertem-se na flor da banda oriental, e olham-se nos olhos antes da carga repressiva, para dizer: Si te quiero es porque sos /mi amor mi cómplice y todo I' y enla calle codo a codo I somos mucho más que dos.1 Nunca um Poeta encheu os estádios de futebol como os enchia Mário Benedetti. Nenhum outro homem entrou num bar e, à pergunta sobre o que queria beber, terá respondido: "Um traguito, dos mais humildes." Nenhum outro escritor nos convocou para não perdermos o norte nem a alegria nos piores momentos de dúvidas e desilusões: un torturador no se redime suicidándose, pêro algo es algo.2 Escrevo estas linhas com raiva, porque sei que a vida já não será a mesma com a ausência de Mário Benedetti. Hoje de manhã, muito cedo, tocou o telefone, era outro Mário, o escritor Mário Delgado Aparaín, El Negro, grande amigo de Benedetti, e anunciou-me simplesmente: "O Marito deixou-nos, irmão, estamos aqui a tomar uns mates e a falar de ti, porque o Mário adorava que falássemos de ti." Sei que Benedetti não gostava das homenagens, melhor dizendo, gostava de certas homenagens, como a de responder ao seu convite para tomar uns mates levando umas boas facturas3 para os acompanhar. Às outras homenagens respondia escapulindo-se, mostrando a sua carteira de tímido militante ou exclamando: "Deixem-se de brincadeiras." Enquanto escrevo isto, que não é uma homenagem, sei que Montevideu não será a mesma cidade que eu amo quando lá voltar, sei que em Madrid me faltarão os passeios no Retiro ao lado de um Mário Benedetti maravilhado com os titereiros, sei que o café Rossi, em Roma, ficará com uma cadeira 1 Se te amo é voraue tu és/ o meu amor, o meu cúmplice e tudo/ e na rua lado a 2 iTm tnrtumânr não se redime ao suicidar-se, mas alguma coisa é alguma coisa, vazia e aguentarei sozinho o eterno atraso dos companheiros de Il Manifesto, sei que um vazio infinito abre as suas fauces e somo-me à imensidão de homens e mulheres que choram enquanto abraçam um monte de livros. Mas uma mão de Mário Benedetti abanará o meu ombro e torna-se mister ir para a rua, para defender Ia alegria como una trinchem4. Tá, Mário, Tá\ 4 Para defender a alegria como uma trincheira, verso inicial do poema de Mário Benedetti, "Defensa de la Alegria". (N. do T.) 116 .......... Quando Indiana Jones não chegou à estação de Montparnasse Depois disso passaram já dezassete anos e, naquele tempo, acabava de sair de uma doença que esteve a ponto de a) me mandar fazer tijolos, ou b) de me deixar prostrado numa cadeira de rodas. Quando fui hóspede da cadeia de Temuco, no Chile, fui contagiado com tuberculose, uma doença muito literária, mas como era um indivíduo muito forte, não apresentei qualquer sintoma, até que, vários anos mais tarde, ela se transformou numa tuberculose óssea que ia devorando a minha coluna vertebral. No hospital em que me restabelecia, o meu maior entretenimento era jogar cartas com os meus três filhos nascidos na Alemanha, e quando ficava sozinho na cama, olhava para as luzes do porto e dizia para comigo que a vida continuava a ser muito bela. Gostava de Hamburgo, tinha uma família, e, além disso, escrevera o meu primeiro romance, O Velho Que Lia 117 Romances de Amor, livro que chegara às mãos de uma editora francesa disposta a publicá-lo. Num dia de Primavera deixei o hospital. Caminhava ajudado por duas muletas e mantinha as costas muito direitas graças a um colete de aço que me outorgava o aspecto de um Frankenstein presunçoso. Tinha proibição médica de viajar, de fazer exercícios, de levantar pesos, de me inclinar, e devia ficar sempre por perto do hospital, para o caso de alguma situação de urgência. Nisto, chegou-me uma carta de Anne-Marie Métaillé a convidar-me para comparecer no festival Ettonants Voyageurs, em Saint-Malo, a fim de apresentar a edição francesa do romance. Quando disse ao meu médico, o bom do doutor Schòn-berg, que tinha decidido viajar para Paris e daí até à Bretanha, o diálogo entre médico e paciente converteu-se num rosário de insultos recíprocos que, no entanto, não destruíram a nossa amizade. Durante o voo de Hamburgo para Paris, pensei como seria a minha editora, pois nunca vira uma foto sua e no meu imaginário de homem restabelecido de uma tuberculose, uma editora era, necessariamente, uma senhora gordinha, de óculos e, ainda não sei porquê, com um inconfundível aroma a café. Uma editora, segundo o meu entendimento de então, devia estar sempre sentada atrás de uma pilha de manuscritos e, no caso de uma editora francesa, o meu imaginário indicava que no seu gabinete teria de haver, com certeza, uma fotografia de Hemingway com dedicatória, e, desse modo, com o passar do tempo, ela acabaria por me confessar um romance secreto com o grande escritor. Como todos os escritores - e aquele que o negar é um farsante -, sonhava ver os meus livros traduzidos para francês e publicados em França. Outra das minhas preocupações recorrentes era pensar nos nomes do meu editor, editora, e casa editorial. Entre os meus planos de vida estava negarme sistematicamente a publicar livros em editoriais que tivessem nomes pouco literários, "Edições da Rã", "A Pluma de Sangue", ou coisas do género. A verdade é que o nome de Anne-Marie Métaillé soava-me melodiosa ao ouvido, misterioso, muito literário, e o da editorial, Editions Métaillé, provocava-me um espasmo de satisfação sempre que o pronunciava. Pouco antes de aterrar em Paris, decidira que a minha editora devia ser uma senhora de grande fortuna, que vivia numa bela casa perto do mar e envolta pela bruma. Uma herdeira talvez de algum nobre que sacrificava a sua fortuna no mecenato literário. No hotel encontrei-me com duas pessoas que conhecia de nome: os mexicanos Eraclio Zepeda e José Agustín. Quando me aproximei deles, apoiado nas minhas muletas, tão direito como um poste telegráfico, e me apresentei, reparei que me observavam com alguma perplexidade que não conseguiam disfarçar. 118 119 Com eles bebi o meu primeiro copo de vinho após sete meses sem lhe tocar e, já confiante, perguntei-lhes que raio é que os tinha espantado. Responderam que um sujeito com uma vida tão movimentada como a minha, que tinha sido guerrilheiro, marinheiro e praticara várias outras disciplinas em disputa com a literatura, devia ser parecido com Indiana Jones e não apresentarse com aquele aspecto de veterano prematuramente arruinado. No dia seguinte, compareci ao encontro com Anne- -Marie Métaillé. Tínhamos combinado encontrar-nos directamente na plataforma de onde partia o comboio para a Bretanha. Eu, a andar apoiado nas minhas muletas, procurava uma senhora de indefinível aspecto de editora, e tinha esperança de que se ela também esperasse pelo Indiana Jones, o meu aspecto não a defraudasse. De repente, vi uma mulher muito bonita, de intensos olhos azuis, vestida de uma maneira que me fez sentir bem, porque o seu aspecto apelava à barricada. Vestia um blusão de couro, daqueles que, nos anos setenta, era o mais aconselhável para os combates de rua, pois a sua consistência amortecia as bastonadas da polícia, aguentavam bem a água dos antidistúrbios e resguardavam o corpo nos frios calabouços onde geralmente se acabava. Mas aquela mulher conseguia que o seu blusão parecesse elegante, talvez majestoso, e percebi de imediato que ela era a minha editora, e seria minha editora e amiga pelo resto dos meus anos. Não houve decepção no seu olhar e, se a houve, soube dissimulá-la muito bem, ou talvez não esperasse por Indiana Jones. Recordo-me de que no comboio e, mais tarde, em Saint- -Malo, falámos de tudo, de livros, de outros autores, e, desfrutando da formidável hospitalidade bretã, ela se mostrou e essa é a opinião unânime de todos os latinoamericanos que lá estiveram - uma amiga solidária, fraterna, divertida e conhecedora do que escrevem os nascidos do outro lado do grande charco. Muitos anos passaram, é verdade, mas sempre que alguém me pergunta "quem te publica em França?", faço peito, a meus lábios acode uma voz de cantor de tangos, algo assim como o Polaco Goyeneche, e digo "Editions Métaillé" com satisfação e orgulho, porque é motivo de verdadeiro orgulho fazer parte da escuderia de Anne-Marie. Publicou toda a minha obra, obsequiou-me com a sua amizade e, o que mais lhe agradeço, tem sido implacável na hora tão necessária da crítica. E tudo começou no dia em que Indiana Jones não chegou à estação de Montparnasse. 120 121 Um caramelo de 62 páginas Em 1939, atracou em Valparaíso um barco, o Winnipeg, cheio de exilados espanhóis. Aqueles derrotados da República foram um tesouro de cultura e Pablo Neruda até a camisa vendeu para pagar essa viagem. Entre eles iam os irmãos Arancibia, tipógrafos. Em 1940, puseram em movimento as rotativas de Arancibia Hermanos, e não houve escritor chileno que não tivesse publicado com eles o seu primeiro livro. Eu fui um deles. Aos dezasseis anos tinha uma audácia enorme, a convicção de ser o Maiakovski chileno, e um maço de poemas com um título tão ingénuo como pomposo: Crepusculário da Tristeza. Uma manhã, atrevi-me a visitar a tipografia e fui atendido por um dos irmãos Arancibia. - Com que então, és poeta, tens um livro e queres publicá-lo - disse, sintetizando a minha apresentação de quase dez minutos. 123 Entreguei-lhe o manuscrito, vi-o folhear as páginas, avaliá-lo, e, após um breve silêncio, acrescentou: - Sai um livro de 62 páginas, capas de cartolina a três cores. Deixa-o ficar e regressa dentro de duas semanas. A resposta dele surpreendeu-me e quis saber quanto me ia custar, mas o mais velho dos Arancibia pôs-me um braço por cima dos ombros e acompanhou-me até à porta. - Falaremos do preço quando o livro estiver pronto acrescentou ao despedirse. Não dormi durante aquelas duas semanas. Imaginava os irmãos Arancibia e os operários da tipografia a lerem em voz alta os meus poemas, emocionados até às lágrimas ou a morrer de riso, porque a minha escassa mas intensa experiência dizia-me que os livros de poemas só tinham essas duas possibilidades. Assim passei aquelas duas dramáticas semanas até que, armado de coragem, voltei à tipografia. Não tinha um centavo, naquela altura já ganhava meia dúzia de pesos a escrever guiões de teatro radiofónico, mas pagavam ao fim do mês e, se a memória não me falha, estávamos a 16 ou 17 de Julho de 1966. Além disso, aos dezasseis anos, os meus rendimentos como escritor esvaíamse com as primeiras cervejas, os primeiros cigarros e as primeiras namoradas. Eu era um novato absoluto. Fiz o caminho para a tipografia com lógica leninista chilena, um passo em frente, dois passos atrás, repetindo para mim mesmo que seria melhor esperar até ao fim do mês, que não fazia sentido sofrer daquela maneira, quando, de repente, sorte de poeta, deparei com a minha tia Charo, uma maravilhosa veterana que, até aos vinte anos, me meteu umas notas no bolso, dizendo: "Para caramelos." E fêlo também naquela ocasião. Depois de lhe dar um beijo comovido, contei o dinheiro. Dava para uma bela sanduíche chilena, um chacarero1 ou um bife de lombo e umas de cervejas. Com esse capital cheguei à Arancibia Hermanos. Aí estava o meu livro, o meu primeiro livro. Em cima da secretária do mais velho dos Arancibia havia dois pacotes de vinte exemplares cada um. A capa era vermelha, o título e o meu nome estavam impressos a preto, e, mais abaixo, em corpo mais pequeno e a ranco, aparecia: poesia chilena contemporânea. Não sei quanto tempo fiquei em silêncio, com o livro nas mãos, a acariciá-lo, a ler alguns versos que me pareceram deliciosos e alheios, até que o mais velho dos Arancibia me interrompeu: - Muito bem, filho. Quanto dinheiro tens? Sem a menor vergonha confessei-lhe que muito pouco, mas que no final do mês disporia de algum mais. O mais velho dos Arancibia olhou para mim e proferiu talvez as mesmas frases que repetira a centenas de escritores chilenos. 1 Grande e típica sanduíche chilena, semelhante ao nosso prego, acompanhada de feijão verde e chili. (N. do T.) 124 125 - Chega para levares dois exemplares e dois mais que te entrego a crédito. Os teus livros ficam aqui, à tua espera. Saí da tipografia com os meus quatro exemplares. Já não era um miserável inédito, tinha um livro publicado. Assim, fui à rádio, vendi os primeiros quatro exemplares e regressei à tipografia para buscar mais. Demorei um ano a vender essa edição de duzentos e cinquenta exemplares. Chateei os meus professores, os meus amigos, vendi em feiras de arte sentado atrás de uma pequena mesa de campismo, à saída dos bares boémios de Santiago, levado pela máxima dos irmãos Arancibia: "O teu trabalho tem valor." Repito: não há escritor chileno que não tenha publicado o seu primeiro livro na Arancibia Hermanos, dos dois tipógrafos chegados no Winnipeg. 126 ........... Um cão chamado Edward Há uns meses dei com o meu filho León a rir enquanto ouvia qualquer coisa no iPod. Ria de uma maneira doce, terna, e assentia com movimentos da cabeça, não para acompanhar o ritmo do que ouvia mas para demonstrar que estava de acordo com o que lhe entrava na cabeça. Perguntei-lhe de que se tratava e a resposta dele surpreendeu-me: "É um rap, e conta uma história que parece escrita por ti." O rap não é música que me entusiasme particularmente, mas peguei nos auscultadores e ouvi um cantor de rap alemão que "rapeava" uma história que me encheu de entusiasmo e curiosidade. Era a história de um cão chamado Edward., e para contar o que se segue fiz uma investigação no bairro de Kreuzberg, em Berlim. O cão Edward nasceu num canil da polícia alemã e estava destinado a ser um pastor alemão puro-sangue, mas, ao que parece, outro cão de não muito nobres antecedentes entrou na casota da mãe de Edward, e assim nasceu uma 127 ninhada de sete cachorros algo estranhos, na opinião do encarregado do canil. Um deles era Edward, mas o seu primeiro nome foi outro, mais curto e seco: Kim. Na hora de demonstrar habilidades, o cachorro distinguiu-se pelo seu excelente faro, de tal modo que foi treinado para ser um cão farejador de droga, e, quando fez um ano, já desempenhava funções policiais no aeroporto de Berlim. O cão farejava detidamente as malas, as caixas, os embrulhos, e era infalível a detectar pequenas cargas de cocaína, heroína, marijuana e outras drogas. Desempenhava a sua função de maneira impecável, mas os seus donos descobriram que toda a sua atenção detectora se concentrava nas malas de luxo, nas Samsonite, Burton, Mandarina Duck ou outras marcas de prestígio, e, pelo contrário, não se maçava a farejar as mochilas ou bagagens que evidenciavam a juventude ou a pobreza dos seus proprietários. Enquanto desempenhava a sua função, o cão ficava impassível aos comentários do género "que lindo cão", não olhava para os passageiros vestidos formalmente ou com elegância, mas abanava o rabo de maneira visivelmente amistosa quando se tratava de um punk, de um hippie, de um rocker ou de quem quer que fosse vestido de forma desastrosa. Esta espécie de perda da objectividade profissional levantou suspeitas, e, assim, certo dia, os polícias detiveram um punk que vinha de Amesterdão, tiraram-lhe a bagagem de mão, puseram-na em frente do cão que a farejou sem entusiasmo, e, ao abrila, descobriram um quarto de quilo de marijuana mexicana. O cão, que ainda se chamava Kim, foi destituído, degradado e expulso da polícia alemã. Voltou para o canil desqualificado, não servindo nem para procriar, e acabou na lista de animais à procura de dono na Sociedade Protectora dos Animais. Foi adoptado por um casal que vivia numa casa ajardinada nas cercanias de Wandsee, um lugar refinado, de construções patrícias e Porsches da última geração estacionados diante de cada casa. O cão não gostou daquele ambiente burguês e fugiu. Pouco tempo depois reapareceu em Kreuzberg, o bairro turco, o bairro dos squatters, dos ocupas, que vivem em casas velhas que sobreviveram à guerra e cobiçadas pelos especuladores imobiliários. Converteu-se na mascote de um grupo de punks que lhe puseram o nome de Edward, e aí, sim, começou a fazer gala dos seus formidáveis dotes olfactivos. Entre os punks, Edward destacava-se pelo bom humor, é rigorosamente verdade que deixou que lhe pusessem um piercing na orelha esquerda, e que deambulava com os seus, em nenhum caso donos, mas camaradas, com umas madeixas pintadas de vermelho e um lenço zapatista ao pescoço. Os punks reuniam-se num parque a beber cerveja barata, e aí faziam os seus cigarros de haxixe ou marijuana sob o 128 129 olhar atento de Edward, e quando o cão levantava a cabeça, farejava o ar e latia, era sinal inequívoco de que a polícia estava perto. Edward sentia os bófias pelo faro. Um vendedor de fruta curdo de Kreuzberg contou-me que Edward, o cão punk, como lhe chamava, conseguiu frustrar várias tentativas de desalojamento graças ao seu olfacto. Em cima do telhado de uma das velhas casas ocupadas, farejava o ar de Berlim e avisava com muita antecedência da chegada da polícia. Os cães das grandes cidades normalmente alimentam-se de rações, esses biscoitos duros feitos com restos de outros animais. Edward, por seu lado, vivia feliz engolindo giros de uma taberna grega, dõnner kebab de um restaurante turco, tschebabchichib de uma tenda croata, schaschliks hamburgueses ou tenras wienerwurst de um carniceiro alemão. No Spank, um tugúrio frequentado por velhos músicos de rock e onde ainda havia discos de vinil, contaram-me que Edward adorava cerveja e era capaz de beber vários pratos da pilsener que lhe serviam, no seu canto preferido, sem nunca armar escândalo. Um cliente do Spank acrescentou que Edward emprenhara várias cadelas e tinha uma quantidade de filhos no bairro. Mas todos falavam no passado, Edward fizera isto, fizera aquilo, e por isso comecei a perguntar onde estava o cão ou o que lhe tinha acontecido. Nenhum deles, ninguém me soube dar uma resposta. Cheguei a falar com vários punks que me mostraram fotografias de Edward, mas também não me souberam dizer o que quer que fosse sobre o paradeiro do cão. - Um dia, foi-se embora simplesmente, zás! Porque era um cão livre - disse-me uma punk com inconfundível sotaque berlinense. E agora que estou a escrever estas linhas, ponho os auscultadores e estou de acordo com os versos centrais do rap: "Deus salve o cão Edward, guardião da nossa pequena liberdade." 130 131 Adeus, Turquito Em Agosto de 1977, senti que não tinha terra debaixo dos pés. Tinha chegado a Lima após um acidentado périplo pela Argentina, Uruguai, Brasil, Paraguai, novamente Argentina, Bolívia e, finalmente, Peru. Não podia permanecer em nenhum lado, isso era o exílio, e, nisto, numa rua de Lima, vi o meu velho amigo Chidayo Pérez ao lado de um dos grandes escritores latino-americanos: o equatoriano Jorge Enrique Adoum. Assim que soube que eu era chileno e dos fodidos, o autor de Entre Marx y Una Mujer Desnuda abraçou-me, e, a partir desse gesto, nasceu uma amizade que se prolongou, em Quito, primeiro, e depois nos encontros de Paris, ao abrigo da formidável hospitalidade de Jorge Amado e Zélia, ou nos faxes desbotados pelo tempo. Um dia de Agosto de 1977, num bar limenho, Jorge Enrique Adoum fez várias chamadas telefónicas para o Equador a pedir um visto, até que um funcionário dos Negócios 133 Estrangeiros lhe pediu que, para ganhar tempo, lhe ditasse ele mesmo as características do visado. No dia seguinte, a embaixada equatoriana em Lima entregava-me um salvo-conduto totalmente inusitado, sobretudo por ser emitido por uma ditadura, a do general Rodríguez Lara, El Bombita, que me autorizava a residir no Equador pelo tempo que considerasse necessário. Além do mais, aquele documento ditado por Adoum, adornado com vários selos e assinaturas, convidava as autoridades equatorianas a conceder todo o tipo de facilidades ao licenciado Sepúlveda, para bom fim das suas diligências. A partir daí, a forma de tratamento entre o autor de Los Cuaâernos de Ia Tierra e Informe Personal sobre Ia Situación e eu foi de Doutor Adoum e Licenciado Sepúlveda, mas em Quito, com o calor de uns canelazos1, éramos o Turquito e o Lucho, dois parceiros que percorriam as tasquinhas quitenhas, amanheciam entre as tendas multicoloridas da Avenida 24 de Mayo, e com lágrimas nos olhos cantavam: yo quiero que a mi me entierren como as mis antepasados, en el vientre oscuro y fresco de una vasija de barro2. Naqueles anos, havia em Quito uma quantidade surpreendente de chilenos, argentinos e uruguaios, e segundo 1 Bebida quente feita com aguardente, canela e açúcar. (N. do T.) A mim, quero que me enterrem como aos meus antepassados, no ventre escuro e fresco de uma vasilha de barro. (N. do T.) todos eles, de passagem, enquanto a secção de refugiados das Nações Unidas decidia os seus destinos. A maior parte estava numa situação de limbo legal, as detenções eram frequentes, a temida polícia de migrações, a mando do major Jarrín, aterrorizava com as suas rusgas, e, graças ao meu salvo-conduto, julgo que era dos poucos a salvo de ser extraditado. Sempre que fui apanhado numa rusga, o que sucedeu várias vezes, apresentei o documento devidamente plastificado, e o "passe, por favor, licenciado" dos polícias levava-me a, eufórico, telefonar ao Turquito para o informar que o ditoso papel ainda funcionava. Conto isto porque tenho na minha frente uma foto do Turquito, porque o meu amigo Jorge Enrique Adoum fez-me contar muitas vezes esta história, porque gosto muito dele e com raiva, porque se me foi da vida e já está a repousar com os seus antepassados, no ventre escuro e fresco de uma vasilha de barro. Recordo-me dele no nosso último encontro, há uns anos, na Póvoa de Varzim, em Portugal. íamos no autocarro das Correntes D'Escritas, um maravilhoso encontro literário, e Turquito deslumbrava com os seus dotes sedutores de jovem octogenário, com as suas piadas soviéticas tão maravilhosamente bem contadas e que faziam Rosa Montero chorar de alegria. Os olhos de míope iluminavam-se-lhe ao falar de Neruda, dos seus anos de secretário e amigo do poeta. Turquito tinha 134 135 por hábito viver em nome de muitos e, assim, na hora serena de partilhar um copo bebido com todo o sentimento possível, bebia pequenos tragos à saúde de Neruda, de Roque Dalton, de Otto René Castillo, de Javier Heraud, de Paço Urondo, dos seus companheiros de geração caídos na luta pela dignidade latino-americana. Jorge Enrique Adoum alistou-se em todas as causas justas e arriscou-se por elas na sua condição de intelectual lúcido, de romancista de garra, de poeta enorme e de companheiro imprescindível. Penso nele, olho para a sua fotografia, e a memória leva-me até Quito das casas brancas onde tantos planos fizemos de olhos postos na alba andina, ou quando, sentados na parte mais alta de El Batán3, na casa de Oswaldo Guayasamín, imaginávamos o fim das ditaduras e um continente latino-americano habitado por homens e mulheres cujo gentílico seria a palavra irmãos. Vai fazer-nos falta, o Turquito. Vai fazer-me falta o amigo e companheiro Jorge Enrique Adoum na hora de continuar a sonhar, porque entre as muitas coisas que me ensinou está a coragem dos sonhos partilhados. Mas ele continua a sonhar, nos seus livros e no ventre escuro e fresco de uma vasilha de barro. 3 Bairro negro na cidade de Quito. (N. do T.) 136 A televisão, esse veículo cultural Remexendo em velhos papéis, daqueles que a gente guarda sem saber porquê, encontrei um contrato de trabalho que me fez um canal de televisão de Guaiaquil, em 1978, há mais de trinta anos, e esse documento contratava-me juntamente com o meu amigo Jorge Guerra, o inesquecível Pin Pon, para "desenhar uma programação de alto conteúdo cultural, coerente com o objectivo central da televisão que é ser um veículo cultural". Um veículo é um objecto que pode voar, andar sobre carris, na água, e em estradas a transportar pessoas e coisas, mas também pode ser alguma coisa sem forma definida e que navegue através das ondas. Quem desenha a programação de um canal de televisão acaba por ser uma espécie de engenheiro encarregado de pensar num veículo que siga numa determinada direcção, a saber, para a frente, para trás, para cima, para baixo, para os lados, o que quer dizer que as possibilidades de movimento são muitas e todas muito 137 estimulantes. Nisso pensávamos o meu amigo Jorge Guerra e eu, enquanto viajávamos de Quito para Guaiaquil, nesse país chamado Equador e que constituiu uma paragem nos nossos respectivos exílios. Naquele canal de televisão via-se a "mira" e, a partir do meio-dia, começava a programação até às duas da madrugada. A essa hora, um plano mostrava a bandeira equatoriana, ouvia-se o hino nacional e, quando acabava, voltava a aparecer a mira a encher o ecrã até ao dia seguinte. Isto quer dizer que devíamos preencher catorze horas de programação cultural, e tamanho desafio encheu-nos de entusiasmo enquanto tomávamos o pequeno-almoço com patacones1 de banana e um café no terminal de autocarros. Na sede do canal disseram-nos que devíamos considerar os noticiários, de meia hora cada um, o que nos deixava treze horas para encher de cultura, mas um director lembrounos que entre os programas havia blocos publicitários de quinze minutos cada um, e recomendou-nos que não esquecêssemos as duas horas dedicadas à informação desportiva depois das notícias, nem o espaço espiritual comprado pela Igreja católica, e muito menos A Hora do Senhor, um espaço comprado pela Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias e que também durava uma hora. 1 Fatias de banana-da-terra fritas. (N. do T.) Nem Jorge Guerra nem eu éramos uns génios das matemáticas, mas depois de um rápido cálculo, deduzimos que, na verdade, dispúnhamos de algo parecido com sete horas para preencher de programação cultural. O desafio continuava a ser muito estimulante. Esboçámos, em primeiro lugar, um espaço dedicado às crianças e que seria entre as seis e as sete da tarde. O maravilhoso Pin Pon, que ensinou a lavar os dentes a milhões de crianças chilenas, a distinguir entre a verdade e o engano, a reconhecer as notas musicais, e que das três cores básicas nascia a pluralidade cromática que torna a vida bela, conquistaria as crianças equatorianas. Foi isso que pensámos, e, já cheios de entusiasmo, acrescentámos um programa que se chamaria "Tarde de Cinema", em que diariamente se comentaria um filme latino-americano durante dez minutos antes da sua projecção. Para as tardes de domingo, e porque éramos ambos fanáticos admiradores dos filmes protagonizados por Jean Gabin, Lino Ventura e Alain Delon, concebemos um espaço intitulado "L' écran" (como éramos afrancesados), dedicado ao cinema francês. Finalmente, esboçámos um programa em que se falaria de livros, outro dedicado aos grandes documentários históricos, e a jóia da coroa seria um concurso para guionistas de telenovelas. Tudo aquilo pareceu bem aos directores, pelo menos foi isso que disseram, mas logo nos avisaram de que entre as notícias e os programas das Igrejas havia vários concursos 138 139 de dança, outro de jovens candidatas a Miss Equador, além das séries norte-americanas Bonanza, O Caminho das Estrelas, O Agente da UNCLE, Jeannie é Um Génio, Chaparral e Os Intocáveis. O desafio tornava-se cada vez menor e, no entanto, continuava a ser estimulante, de modo que, para evitar maiores discussões, perguntámos de que tempo dispúnhamos. Um dos directores coçou a cabeça antes de responder e disse que, de facto, a ideia consistia num programa de quinze minutos, no qual se formulariam perguntas com três opções de resposta, duas erradas e uma correcta. O programa poderia chamar-se, por exemplo, "O Que Sabe Você?", contaria com o patrocínio dos electrodomésticos Durán e os concorrentes ganhariam semanalmente uma máquina de barbear eléctrica. As perguntas, de alto conteúdo cultural, deveriam versar sobre temas que as pessoas mais ou menos conhecessem, porque a cultura é para que o público se sinta bem e não lhe complique a vida. Se estivéssemos de acordo, o nosso programa seria transmitido mesmo antes do fecho, à uma e quarenta e cinco da madrugada, sempre e quando não houvesse nenhum jogo importante de futebol. Curiosamente, depois dessa reunião, nem Jorge Guerra nem eu ficámos a odiar a televisão. Regressámos a Quito, noutro canal menos pretensioso nos seus objectivos culturais fizemos um programa de miscelânea, uma espécie de telenovela humorística chamada "Intimidades da Família Chiriboga", que durou muito pouco, pois os personagens insistiam em gozar com o governo. Pouco tempo depois, Jorge Guerra foi para Cuba. Na ilha, o seu personagem Pin Pon fez a delícia de duas gerações de crianças cubanas, e eu segui também o meu caminho. Jorge Guerra regressou ao Chile em 1988, lutou à sua maneira para derrubar a ditadura, Pin Pon, o menino eterno, agitou os bairros, esteve nas barricadas, e voltámos a vernos em 1998, ao calor de uma garrafa de vinho que nos levou a recordar com amor os nossos anos de exílio equatoriano. O meu amigo Jorge Guerra faleceu no Chile, em Fevereiro de 2009, e sinto-o ao meu lado enquanto remexo num velho documento que nos fez sonhar ser os génios da televisão. 140 141 Vidas de cães As duas histórias que se seguem são rigorosamente verdadeiras e têm a ver com cães especiais, cães originais, sem raça definida, cães fura-vidas que dormem em qualquer sítio e são monumentos a uma pequena liberdade de quatro patas. A primeira fala de uma cadela que ocupou as manchetes dos jornais espanhóis. Durante onze anos, o canil municipal, a Sociedade Protectora dos Animais, a Guarda Civil, a polícia autónoma basca e várias dezenas de voluntários de San Sebastián tentaram infrutiferamente apanhar a cadela de cor castanha, orelhas compridas e olhar triste que se movimentava pela zona balnear de La Concha, pela dos bares de tapas e pelo mercado da bela cidade basca. Não tinha nome mas chamavam-lhe La Negra, Não era magra nem gorda, nunca ladrava a quem passava e costumava sentar-se à saída dos bares ou nas esplanadas, à espera prezada e, com alguma sorte, um pedaço de carne. 143 Não pedia nem olhava com expressão faminta. Simplesmente esperava e agradecia a generosidade das pessoas com discretos movimentos do rabo. Uma vez, alguém disse que tinha algo da raça labrador, e, assim, durante onze anos, La Negra divertia-se a correr atrás dos ciclistas quando a Volta à Espanha passava pelo País Basco, ou a marchar à frente nas manifestações contra a violência criminosa da ETA. Em certas ocasiões, os que procuravam caçá-la e levála para lugar seguro quase o conseguiram, mas La Negra escapava sempre dos laços e redes que lhe lançavam, e, quando se via a salvo, ladrava feliz por ser livre, vagabunda e livre. A vida dos cães é breve, envelhecem de repente, ficam lentos, lerdos, perdem o olfacto e a vista. Também assim aconteceu com La Negra, e, uma tarde de Agosto, não conseguiu safar-se da rede que lhe atiraram uns funcionários municipais, mas houve testemunhas da sua captura que ligaram para a câmara municipal para saber o que tinha acontecido a La Negra, e foi tal a insistência que, no dia seguinte, transferiram-na para um canil da Protectora dos Animais. Nunca uma cadela recebeu tantos pedidos de adopção: parecia que todos os habitantes de San Sebastián queriam tomar conta dela, e em razão de tanta popularidade, o seu cativeiro durou apenas dois dias. Assim, desparasitada, lavada e alegre, foi entregue a uma família que não quis mudar os seus hábitos de vida, e, agora, La Negra continua a dar os seus passeios por La Concha, a trotar ao lado dos ciclistas, a brincar com os turistas, e a exibir no pescoço a defesa de uma coleira que a identifica como cadela com morada conhecida. O outro animal, um cão chamado Chiquito, não teve tanta sorte. Há sete anos, Chiquito andava pelo centro de Santa Fé, na Argentina, e teve a má ideia de meter o focinho num saco de plástico que tinha dono, um indivíduo iracundo que, depois de comprar uns quilos de carne para fazer um churrasco, parou para beber umas cervejas numa esplanada e deixou o saco no chão. Chiquito não roubou, nem provou a carne, somente cheirou, mas isto bastou para que o indivíduo lhe desse um par de pontapés. Chiquito defendeu-se e, embora não tivesse conseguido mordê-lo, rasgou-lhe as calças. Chiquito foi capturado pela polícia e o energúmeno das calças rotas exigiu que o matassem. Os polícias de Santa Fé negaram-se a liquidar o cão e, então, o sujeito denunciou a agressão ao tribunal. Houve julgamento. Chiquito foi declarado culpado de ter causado lesões leves ao miserável que o agredira, e passou seis anos preso numa esquadra. Até há pouco, a página "Liberdade para Chiquito" no Facebook mostrava milhares de assinaturas que pediam a sua liberdade ou um julgamento justo. Chiquito morreu na prisão, aos dezoito anos. Os polícias que cuidavam dele afirmam que, até ao último dia, olhava para a rua e suspirava com a tristeza digna dos que sabem perder. 144 145 Tenho dois pastores alemães, Zarko e Laika, e às vezes sento-me com eles no jardim e conto-lhes histórias. Gostaram da história de La Negra, mas a do Chiquito, não sei se lhes contarei algum dia. 146 " Um velho de que não gosto Gosto dos velhos, mas não de todos, e nunca receei a velhice porque a vida me proporcionou formidáveis encontros com velhos. Com homens e mulheres que possuíram ou possuem as suas rugas, as suas cãs, a sua aparente lentidão, com orgulho, alegria, e, agora que faço sessenta anos, preparo-me para ser como eles. Essas mulheres e homens que no rosto ostentam o mapa glorioso de vidas gloriosas são um exemplo para mim, e, por respeito a eles e a mim mesmo, utilizo estas páginas para me referir a um velho patético que representa exactamente o contrário, e é o paradigma do tipo senil, prisioneiro de um destino semelhante ao de Dorian Gray. '• _ O velho desta crónica é um italiano que substituiu a serenidade que os anos normalmente concedem pela libertinagem sem limites. Imagino que algum dia, sem outra intenção que não fosse a censura, terá assistido à representação $ de A Resistível Ascensão de Arturo Ui, de Brecht, e decidiu ** 147 que os espelhos serviam de guias para voltar a encher com próteses o que a vida lhe negara. Começou a falsear a própria estatura física, porque a outra, a moral, é, por sorte, intocável. Um sapateiro encarrega-se de desenhar o seu calçado provido de ocultas plataformas que lhe outorgam uns quatro centímetros acima do nível do mar. Isto conduz também ao trabalho de um alfaiate que deve confeccionarlhe calças para umas pernas que não são as suas, e dotar os seus casacos com umas ombreiras que revelam um homem alto e até forte. O problema que subsiste é o da cabeça, porque não há próteses que aumentem o seu tamanho, e por muito que, em frente ao espelho, ensaie os gestos de Mussolini, o que fica é uma cabeça de velho baixinho, quase carente de pescoço, e metida à força num corpo alheio. A queda do cabelo é uma questão decidida pelos anos, é lei da vida, e todos os implantes a que se submeteu fracassaram porque a erva não cresce em terreno estéril. Assim, e talvez inspirado no famoso sinal que adorna a bela cabeça de Gorbachev, decidiu tatuar uma sombra escura debaixo da escassa guedelha, e o efeito final é o de um velhote que cobre a cabeça com uma boina velha e esfiapada. Uma vez, uma maquilhadora quis retocar as rugas faciais de Sir Laurence Olivier antes de este ir para o palco representar Hamlet. O grande actor impediu-a com gentileza e acrescentou: "Não são rugas, são amadas cicatrizes que as melhores batalhas me deixaram." O italiano a que me refiro, pelo contrário, decidiu ser "o mais belo da Europa", e para tal internou-se numa clínica dermoestética na Suíça. O resultado final é o de um velho chinês com sérias dificuldades para abrir os olhos. Assim, após uma série de fracassos previsíveis num aprendiz de Peter Pan, optou por gritar ao mundo a sua virilidade de latin lover da terceira idade. Pode haver algo mais grotesco do que um velho baixinho mas empinado, meio careca mas com a cabeça pintada, de olhos asiáticos à força de bisturi e dentadura impecável graças a tratamentos que o impedem de fechar a boca? Se a esta visão de pesadelo lhe acrescentarmos uma adolescente, menor de idade, generosamente oferecida pelos pais, que lhe chama candidamente "papi", teremos então um argumento de ópera bufa que, com certeza, faz com que Rossini e Puccini se revolvam no túmulo. Uma série interminável de vellinas, ou seja, de senhoritas de aspecto infantil e discretamente putas, às quais se juntam meretrizes de tarifa business que se fazem chamar escorts, assenhorearam-se da residência oficial do velhadas e, longe de proclamar aos quatro ventos as virtudes amatórias do anfitrião, declaram que se trata de um velhinho simpático a quem devem chamar "papi", e que a sua maior proeza sexual é sentá-las a ver vídeos antigos onde ele canta aborrecidas canções românticas da Itália de Domenico Modugno. O velhote tem uma mansão na Sardenha, deslumbrante pela grande quantidade de kitsch, e que é frequentada por 148 149 grupos de vellinas transportadas em aviões da força aérea italiana, para alegrar outros velhotes que acorrem para dar fé do seu europeísmo. Graças à perícia de um paparazzo, entre raparigas que tomam banho com pouca roupa, vimos urn homem de governo profundamente eurocéptico a exibir uma erecção por conta do erário público italiano, e, no centro de tudo isto, a figura incansável de "Papi", que, no dizer das convidadas, passeia a sua senil arrogância, a sua insolente decrepitude, a sua abjecta decadência, convencido de ser o novo Nero. E como diz a Bíblia: a Deus o que é de Deus, e a César a geriatria. 150 ........... A Pena1 dos Parra Chegou-me de Santiago uma foto sem comentários, porque sobrariam as palavras, os gritos, sobrariam mesmo os gestos de impotência. Essa foto mostrava a velha casa da calle Carmen, 340, no preciso momento em que uma escavadora iniciava a demolição. ; Na fotografia, as portas aparecem fechadas, apagados os pequenos lampiões laterais que outrora iluminaram algo mais do que a noite de Santiago. Esses dois lampiõezinhos eram o sinal que se vislumbrava apesar da névoa do Inverno, apesar da chuva, do frio ou do cansaço das duras jornadas a ganhar a batalha da produção, a alfabetizar, a ensinar a comer peixe, ou a insistir que as crianças deviam beber meio : litro de leite. Aqueles dois lampiõezinhos chamavam para a Pena dos Parra, para o palácio da irmandade ao lado de uma guitarra e de um copo de vinho. Nesse tempo não ,, ' Local onde se reúnem as pessoas para cantar e recitar versos. (N. do T.) 151 precisávamos de mais para nos amarmos, nada mais nos fazia falta para sermos felizes. Nessa casa de paredes de adobe, de aroma chileno, de cor chilena, de calor chileno, vivia o espírito de Violeta, e com ela cantavam Isabel, Ángel, Víctor Jara e tantos outros, tão grande e gloriosa foi a cultura chilena dos anos sessenta e setenta. Nessa casa ouvíamos e cantávamos, conspirávamos, discutíamos até a madrugada nos enviar um aceno de luz que nos devolvia às mil tarefas do Governo Popular. Nessa casa nasceram namoros, concubinatos e casórios, de casais que hoje, ao saberem que a velha casa já não existe, dão as mãos, se contêm e deixam que uma lágrima deslize limpa pelos seus rostos, porque esta é uma perda das que doem, das que deixam cicatrizes na alma. Há alguns anos assisti a um recital de Isabel Parra em Paris. No Teatro Aleph, do Cuervo Castro, não cabia um alfinete, e eu ouvia e olhava para a cantora, para a minha amiga que com o cuatro2 nas mãos originava uma múltipla transformação. Ela era uma vez mais aquela Isabel, aquela Chabela pequenina e bela, de olhos brilhantes e voz acariciante. Eu e muitos dos que lá estavam éramos de novo rapazes que rondávamos os vinte anos e nos aquecíamos com o fogo da sua voz e o vinho servido na Pena dos Parra, a salvo do frio, do perigo, da morte e dos exílios que estavam eminentes. 2 Pequena guitarra. (N. do T.) Em Maio deste ano, Ángel Parra deu um concerto no Casino de Gijón. Na penumbra olhava para o meu amigo, sempre elegante, vestido de preto e com uma écharpe branca, a cantar as canções de todos, essas mesmas canções que no velho casarão da calle Carmen, 340, nos tiravam o cansaço ou nos convidavam a amar mais ainda as nossas companheiras. Ángel é um monumento à dignidade, mas a isso não dá qualquer importância, e quando lhe perguntei como ia a Pena dos Parra, mal deixou entrever que havia problemas. Às vezes, as máquinas rugem como leões que infundem esperança, mas outras grasnam como abutres dotados de poderosos motores. Assim imagino o barulho daquelas máquinas que derrubaram uma das casas mais ilustres de Santiago, uma casa que devia ter sido salva e constituir um monumento às vozes de todos, ser o templo das melhores esperanças de todos. Esse velho casarão flanqueado por dois inofensivos lampiões metálicos foi o ponto de partida de onde nos lançámos para conquistar a dignidade de todas e de todos. Era sem dúvida uma casa perigosa, muito perigosa, subversiva, porque estava cheia de memória. Haverá quem justifique a demolição invocando a idade do edifício. E então? Não se conservam por acaso as aberrantes construções militares? Haverá ainda quem alegue que um edifício de dez andares é mais lucrativo do que uma velha casa com paredes de adobe, e quem diga que isso é 152 153 verdade, pois a cultura, a memória, o passado glorioso dos que se atreveram a mudar a sociedade nunca será lucrativa. Acendem-se os dois pequenos lampiões na minha memória. Um ilumina o rosto de menina eterna da minha amiga Isabel Parra. O outro, a cara bigoduda e circunspecta do meu irmão Ángel Parra. Abraço os dois e amo-os mais que nunca. 154 Este é para ti, Soraya Para os jovens dos países pobres, o futebol, mais do que um belo desporto, é uma oportunidade para sair da miséria e atingir essa meta tão difusa chamada triunfo. Assim aconteceu com Bernardo Cifuentes, um rapaz que aos catorze anos começou a destacar-se como avançado num clube de bairro, o Cerveceros de Asunción, que, em 2001, conquistou o título de campeão dos bairros na capital paraguaia. A empresa cervejeira que patrocinava o clube não investia demasiado: um estádio sem graça onde a iluminação raramente funcionava, as camisolas com o logotipo da fábrica e uma dúzia de lugares reservados para os directores que geralmente ninguém ocupava. Mas um dia, quando faltavam dois jogos para o clube alcançar o título de campeão, um italiano foi ao estádio, ocupou um dos lugares e reparou em Bernardo Cifuentes, que nesse dia marcou dois golos. O italiano era um promotor, agente e representante de muitos futebolistas. O seu trabalho consistia em descobrir 155 talentos e, por isso, percorria países da África e da América Latina, como um mago Merlin capaz de mudar os destinos dos desportistas amadores. Na casota que servia de balneário, aproximou-se do jogador e, depois de o felicitar, perguntou-lhe como se sentiria a jogar numa equipa europeia da segunda divisão. Cifuentes, que fizera recentemente dezoito anos, simplesmente chorou de emoção e, no meio de lágrimas, decidiu que nessa mesma noite, logo que terminassem os festejos da vitória, iria falar com os pais de Soraya para lhes pedir a mão da bela jovem que conseguia dizer "amo-te" em espanhol ou guarani com idêntica sinceridade. A festa foi breve para Cifuentes, e quando chegou a casa da namorada, achou-a esquisita. Falou-lhe da proposta para jogar na Europa, imagina, na Europa!, disse, e quando mencionou que com toda a certeza muito em breve estaria a jogar ao lado de Ronaldo ou Zamorano, reparou que ela estava ausente, que a sua emoção não a contagiava. A confissão também foi breve: ela apaixonara-se por outro rapaz cujo nome preferia não dizer, e pedia-lhe desculpa, muita desculpa. De qualquer modo, desejava-lhe boa sorte no futebol. Os trâmites foram rápidos, o italiano pagou ao clube o que pediram, deu um adiantamento ao jogador e acompanhouo a tirar o passaporte e o visto Schengen para viajar para Itália. Assim, com o coração destroçado, Bernardo Cifuentes, primeiro, começou a treinar e, mais tarde, a jogar numa equipa da segunda divisão de Palermo. Como jogador revelouse desigual, umas vezes era brilhante, um avançado rápido e com visão para se movimentar na área contrária, e outras desaproveitava situações de golo feito. - É a tua última oportunidade - disse-lhe o promotor quando lhe anunciou que tinham acabado de vendê-lo a uma equipa espanhola, ao estremenho Ciudad de Cáceres Fútbol Club, que lutava para subir à segunda divisão. No Cáceres, Cifuentes melhorou notoriamente o seu rendimento e converteu-se no goleador do futebol regional. Os adeptos acompanhavam-no nas corridas esfuziantes quando marcava um golo, e faziam coro com ele quando pronunciava, a atirar beijos para o céu: "Este foi para ti, Soraya!" "Este foi para ti, Soraya." Para os estremenhos era uma simpática maneira de aplaudir um golo, talvez fosse um velho costume paraguaio. Um dia, em 2002, o Cáceres tinha de se deslocar a Marbella para defrontar o Andalucía, outro clube que lutava corajosamente para subir à segunda divisão. Cifuentes ficou contente porque sabia que o guarda-redes do Andalucía também era um jovem paraguaio, um tal Rolando Escobar, que, segundo o informaram, não usava nenhum crucifixo ao pescoço, mas uma pequena foto de Yashin, o Aranha Negra, o melhor guarda-redes da história. 156 157 No minuto 42 do segundo tempo, e quando as duas equipas estavam empatadas a uma bola, o árbitro marcou um penálti a favor do Cáceres e, naturalmente, Cifuentes foi encarregado de o marcar. Então, olhou para o guarda-redes do Andalucía, todo equipado de preto, mas o seu olhar atravessou o corpo do desportista e não viu mais nada senão a bela Soraya, que, sentada mesmo atrás da baliza numa cadeira desdobrável, animava Escobar, o seu homem, gritando-lhe "calma, meu amor, tu até o vento defendes", com toda a doçura do guarani. Enquanto colocava a bola nos onze metros regulamentares, Cifuentes deduziu que todas as cartas que lhe enviara de Itália, em que repetia insistentemente que não podia viver sem ela, não as recebera porque a bela rapariga não vivia no Paraguai, mas em Espanha. Cifuentes recuou cinco passos, correu suavemente, com o pé direito tocou na bola que se levantou e, fazendo uma curva perfeita, entrou pelo exíguo espaço entre o canto superior direito e as mãos do guarda-redes. O público estranhou ao ver o autor do golo a afastar os companheiros eufóricos. Chegou junto do guarda-redes vencido, pegou-lhe na mão enluvada para ajudá-lo a pôr-se de pé, em seguida abraçou-o, e, olhando para a bela rapariga que assistia atónita, gritou: "Este é para ti, Soraya!" No ano seguinte, o Andalucía desapareceu do mapa futebolístico espanhol. Do ano de 2004 até 2006, Bernardo Cifuentes jogou no Hansa Rostock, um clube da segunda divisão alemã. E os alemães ainda se recordam do avançado paraguaio que gritava "este é para ti, Soraya", sempre que marcava um golo. 158