A gata do rio Nilo Lia Neiva Orelha: Cinco personagens à flor do texto Um livro de Lia Neiva constitui sempre um renovado prazer, é sempre a certeza do reencontro com uma linguagem cuidada, colorida e, sobretudo, cheia de possibilidades para a expressão do desejo, do ódio, da ambição, do medo, da culpa, da gula, ou seja, para a transmissão de um microcosmo habitado por personagens diversos: matreiros, desiludidos, vingativos, dissimulados. A bucólica cor local em contraste com o conturbado estado de espírito de Victor Alexandre, tão característico do fazer romântico; a pormenorizada descrição ambiental, marca do realismo; o chamamento aos sentidos - principalmente o olfato e a visão -, que caracteriza o quadro naturalista, e põe em foco o personagem Dalmo; o estilhaçamento da ordenação cronológica, indicador do nosso moderno mundo fragmentado; a riqueza da oralidade, como convém à linguagem pósmoderna; tudo isso, enfim, vai sendo apresentado, episódio a episódio, formando um rico políptico para a apreensão dos diferentes estilos de época na literatura. E se o texto de Lia Neiva possibilita ao leitor o contato com uma linguagem expressiva, no plano do conteúdo promove, ainda, a possibilidade de discussão sobre temas que constituem o próprio significado da existência: o amor, o ódio, os desencontros, a busca do sucesso material, a morte. São cinco contos; são cinco personagens; são cinco "passeios pelos bosques da ficção", para usar um título de Umberto Eco, que aqui cabe muito bem. MARIA ELIZABETH G. DE VASCONCELLOS Doutora em Letras, UFRJ LIA NEIVA, carioca, formada pela Faculdade de Filosofia da PUC-Rio, é professora de inglês por formação e "contadora de histórias" por vocação. Escreve desde 1989 e tem cerca de vinte livros publicados de ficção infanto-juvenil. Bilíngüe, escreve tanto em português quanto em inglês. Seu tema favorito é o realismo fantástico, e é leitora ardorosa de Põe, Ménmée, Maupassant e Henry Miller. Gosta de se encontrar com seus leitores porque são os indicadores dos seus erros e acertos literários. ** © Lia Neiva, 1999 Reservam-se os direitos desta edição à LIVRARIA JOSÉ OLYMPIO EDITORA S.A. Rua da Glória, 344 /4G andar Rio de Janeiro, RJ - República Federativa do Brasil Printed in Brazil l Impresso no Brasil ISBN 85-03-00677-4 Indicação editorial: IZETE MARQUES FARIAS Editoria: SÔNIA CARDOSO Projeto gráfico, diagramação e capa: RioTEXTO Produção: ANTÔNIO HERRANZ Revisão de originais: MARCUS PENCHEL Revisão técnica: MARIA MAGDALENA F. DE OLIVEIRA Revisão de provas: NERYANNE HERMES DO REGO ANGELA NOGUEIRA PESSOA N338g 99-0600 CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ Neiva, Lia - -Conto brasileiro. I. Título. CDD-869.93 CDU-869.0(81)-3 *** Sumário APRESENTAÇÃO VII CONTO ROMÂNTICO Epaminondas 3 CONTO REALISTA Victor Alexandre 29 CONTO NATURALISTA Dalmo 51 CONTO MODERNISTA - Glorinha 71 CONTO PÓS-MODERNISTA Naná 91 *** Apresentação Faz parte do senso comum afirmar que "quem conta um conto, aumenta um ponto". O que dizer, então, de quem, além de aumentar não apenas um mas vários pontos, ainda o faz variando o estilo e o foco narrativo de cada uma das versões? É isto que Lia Neiva realiza neste surpreendente livro. Partindo de um núcleo comum, que encerra uma história de delicioso suspense com final-surpresa, Lia nos proporciona reviver, em cada uma das narrativas que vai tecendo, os mais conhecidos estilos literários. Do Romantismo de José de Alencar ao mais recente Pós-modernismo, ainda tão pouco definido em termos teóricos, a autora "brinca", dialoga, interage com os textos e os leitores, num fascinante exercício de domínio da técnica narrativa. Assim é que, por exemplo, no conto que abre a coletânea, busca-se reproduzir tanto a forma de narrar do Romantismo, com seus volteios lingüísticos, adjetivação abundante e mesmo certo preciosismo da linguagem, quanto a ambientação de meados do século XIX, período de florescimento do referido estilo. É claro que os estilos de época não são entidades historicamente isoladas. A convivência de dois ou mais deles não é fato raro em nossa história literária. A rigor, a divisão das obras em estilos de época obedece muito à instrumentalização didática, no ensino da literatura. Mas as obras de determinadas épocas apresentam traços comuns, tanto estilísticos quanto temáticos, que permitem serem percebidas em conjunto, em correlação com aquele momento histórico em particular. São estes traços comuns que Lia Neiva busca resgatar em seu trabalho. Como obra literária, o livro, pelos recursos de que lança mão, mantém sempre o clima de suspense, acrescentando novos dados aos fatos iniciais, garantindo, inclusive, o espaço para a participação do leitor no desdobramento dos fatos narrados. Como proposta literária, é inovador. Por tudo isso, A gata do rio Nilo é, sem dúvida, uma obra bastante rica e prazerosa. ANA MADALENA FONTOURA DE OLIVEIRA Mestre em Literatura Brasileira, Uerj A gata do rio Nilo Sombreia o formoso semblante uma tinta de melancolia que não lhe é habitual desde certo tempo, e que não obstante dirse-ia o matiz mais próprio das feições delicadas. Há mulheres assim, a quem um perfume de tristeza idealiza. As mais violentas paixões são inspiradas por esses anjos do exílio,(...) Ouviu-se um frolido de sedas, e Aurélia assomou na porta do salão. Trazia nessa noite um vestido de nobreza opala, que assentava-lhe admiravelmente, debuxando como uma luva o formoso busto. corn rutilações da seda que ondeava ao reflexo das luzes, tornavam-se ainda mais suaves as inflexões harmoniosas do talhe sedutor. Como que banhava-se essa estátua voluptuosa, em um gás de leite e fragrância. Seus opulentos cabelos colhidos na nuca por um diadema de opalas, borbotavam em cascatas sobre as alvas espáduas bombeadas, corn uma elegante simplicidade e garbo original que a arte não pode dar, ainda que o imite, e que só a própria natureza incute. JOSÉ DE ALENCAR, Senhora, Rio de Janeiro, Ediouro, 1996, p. 15,44-5. EPAMINONDAS Obedecendo às rédeas, os burros estacaram em frente à quitanda, parando o bonde. O professor apeou-se, atravessou a rua e caminhou para a esquerda em direção ao Liceu e à casa de pasto de Epaminondas. Caminhava absorto, enovelado em terríveis pensamentos e cego à vida ao redor. Nem mesmo apercebia-se dos bem-te-vis que outrora o haviam encantado com seus pios atrevidos. Seu rosto era rígido como máscara, com olhos vazios feito na morte e lábios contraídos e exangues, mostrando a angústia que o possuía. Há cinco anos que por ali não ia e já quase apagadas da memória estavam as lembranças daquele mundo feito de ruas singelas e casas plantadas ao leu, com fachadas despretensiosas e janelas abertas à fresca da tarde, de onde matronas risonhas, debruçadas nos batentes, trocavam receitas de lambiscarias caseiras e gritavam graças e facécias. Lugar cheirando a mato, onde cães e galinhas vadiavam. Distante do coração do centro urbano, nas fímbrias deste, era um recanto emoldurado por colinas graciosas que a luz dourada do sol tingia de verde vibrante e que surgiam recortadas no azul cerúleo, limpo de nuvens, que cobria a capital fluminense, transformando-a numa cidade maravilhosa. Ali, os pulmões respiravam saudáveis e as crianças mantinham as faces rosadas como aquelas dos anjos de altar. Tudo bem diferente do centro da cidade, com suas muitas vielas sombrias e becos tortuosos, cujas casas amontoadas abrigavam uma população que se degradava e humilhava pela pobreza ostensiva; na capital, até os quarteirões da burguesia abastada já mostravam alarmantes sinais de uma modernidade desconfortável com o barulho do vaivém dos cabriolés e das carruagens, e o bulício do comércio desordenado. No Centro, os moradores padeciam com as inconveniências trazidas pelo progresso e viam-se obrigados a conviver com os estranhos costumes estrangeiros que matavam, aos poucos, as gentis maneiras da terra. Mas, naquele instante, as belezas e o sossego daquele arrabalde não importavam ao professor. Fora-se-lhe o prazer da contemplação bucólica, afogado no mar de preocupações em que ele se debatia e onde vogava à deriva como um macabro navio fantasma wagneriano.* Que dolorosa sensação! Sentia-se velho e cansado; pesavam-lhe os pés, que pareciam calçados em botinas de chumbo, e o coração, que batia melancólico e descompassado. * Referência à ópera O navio fantasma, de Richard Wagner, um dos mais legítimos representantes do Romantismo na Alemanha do século passado. Vergava-se como se carregasse o peso do mundo e transpirava o suor pegajoso que poreja do medo. Vivia roído pelo remorso, carregando há cinco anos os infames grilhões de uma culpa atroz; ali estava uma alma miserável sucumbida ao fardo de lembranças terríveis. As sombras violáceas exibidas por sob os olhos mostravam, categóricas, as vigílias que ele fizera atormentado: as noites brancas quando se debatia entre voltar ao estabelecimento de Epaminondas para confrontá-lo e extrair-lhe a verdade sobre o que realmente acontecera naquele almoço funesto, ou continuar longe do aziago local, fonte de todo o seu padecimento. Que artimanha do destino juntara-o a Dalmo e a Epaminondas na Casa de Pasto Azul? Que sorte madrasta os enredara naquela conversa disparatada cujas conseqüências tinham-no levado a uma culpa sem remissão? A princípio, aceitara sofrido a sina ingrata que os fados haviam-lhe imposto; mas, passado algum tempo, assaltara-o a desconfiança de algo ilógico e estranho acontecendo naquele almoço fatídico: Epaminondas demonstrara saber pouco sobre Dalmo, entretanto, o homem era um freqüentador assíduo do Azul, um cliente indiscreto e falador, o tipo de indivíduo que adora fazer confidencias, que não guarda segredos e que desconhece o recato. Por conseguinte, era mister que o comerciante conhecesse mais sobre a vida do reclamista, sua família e emprego, do que dera a entender naquele dia. A ser verdadeira tal suposição, Epaminondas usara de uma manobra ardilosa e ignóbil para induzi-lo, cliente novo e desavisado, ao erro fatal. Portando-se como se de nada soubesse, omitindo-se, ele o conduzira ao abismo da desgraça. Por quê? Que motivos teria o comerciante para agir de modo tão abjeto e vil? Não havia desculpas que justificassem a sua leviandade em querer dispor do destino de um outro alguém. Era um ato monstruoso! Se a imaginação não estivesse a pregar-lhe uma peça, ele, Victor Alexandre, estaria, em parte, absolvido do pecado imenso que há tanto tempo o martirizava, pois transformar-se-ia de vilão em joguete daquele homem cruel. Minimizar-se-ia pois a sua participação no horrendo delito, e abrandar-se-ia, também, a sua culpa. O malfeito não se findava, é verdade, mas ele poderia finalmente encontrar um pouco de consolo. Cinco anos já passados e o horror daquele almoço continuava vívido e presente. Caminhando feito um morto-vivo, o professor não conseguia espantar as dolorosas lembranças que o acompanhavam. Reviu-se, na semana seguinte ao almoço, abatido pela angústia e remorso, a vasculhar os matutinos à cata de notícias sobre o terrível acontecimento. Nenhuma linha encontrara. Dir-se-ia que tudo não passara de um desvario causado por uma imaginação doentia. Quem dera! A verdade era outra: algo hediondo fora perpetrado por inteira responsabilidade sua. Relembrou o medo apavorante de ser chamado a depor para explicar o sucedido, porém só fora interrogado pela própria consciência. Pareceu-lhe sentir, novamente, os arrepios da febre causada pela emoção angustiante e, outra vez, mergulhar nas alucinações pavorosas dos delírios de então. Recordou-se de como, depois que a temperatura baixara, ele, por fraqueza física ou covardia d'alma, desistira de continuar procurando pelas notícias aterradoras e aceitara a sina de viver espicaçado pelo remordimento. Céus!... Não existia a pena romântica vivida pelos heróis dos folhetins, assim como o crime sem castigo era pura utopia. O remorso era o preço mínimo a pagar por sua participação no funesto episódio, já que os delitos, mesmo quando involuntários, não se apagam pela falta de intenção, nem mesmo se resultantes de uma trama macabra tecida, no inferno, por algum anjo do Mal. Agora, depois de tanto sofrimento, havia a esperança de poder exorcizar alguns dos demônios que o supliciavam. Tais eram os pensamentos que acompanhavam o mísero pecador durante a caminhada. Então, uma bola de criança atravessando-se-lhe à frente, despertou-o para a realidade. O professor viu que seus passos sonambúlicos tinham-no conduzido obedientes ao destino. Parou, hesitante, à porta da casa de pasto, sem ímpeto para entrar. Seu espírito vacilou. Talvez, melhor fosse a dúvida do que uma suspeita infundada. Era uma situação deveras esquerda, e o diabo estava a tentá-lo para quebrar-lhe a vontade e mantê-lo acorrentado às suas penas. Meteu-se em brios, ajudado por um anjo do Deus misericordioso, que lhe sussurrou: "Coragem, atravesse o seu Rubicão!"* Falou mais alto a voz dos céus, e Victor Alexandre entrou. Esbarrou nos fregueses que saíam sorridentes do almoço, festejando a fome saciada. Sentiu subir-lhe pela espinha um frio glacial. Controlando-se, voltou os olhos pelo salão e reconheceu velhas lembranças. Ele freqüentara o Azul por apenas três dias, mas as recordações do local estavam como que gravadas a ferro em sua memória. Lembrou-se de sons e de cheiros, que fizeram aflorar o passado de maneira ainda mais pungente e angustiante. Pareceu-lhe, até mesmo, ouvir a fala estrepitosa de Dalmo * "Atravessar o Rubicão" significa tomar uma decisão difícil. A expressão deriva do episódio da travessia do rio Rubicão pelas tropas de César no ano 49 a.C., o que deflagrou uma guerra civil. ferindo-lhe os tímpanos. O mergulho no tempo deu-lhe a sensação de estar vivendo uma daquelas situações fantásticas experimentadas pelos personagens de Verne.* Seu coração acelerou-se apressando-lhe a vida. com o corpo inteiriçado e as mãos crispadas, ele rumou para a mesma mesa onde estivera com o reclamista naquela última vez. Seria um exorcismo completo. Passou ao lado de dois rostos do passado: os boticários da esquina que saboreavam tranqüilamente um café, enquanto conversavam despreocupados, ostentando nas fisionomias a austeridade da profissão. Cobiçou-lhes os semblantes calmos, que estampam a serenidade de quem dorme o sono sem enxofre dos bem-aventurados. 3 Viu os empregados que o haviam servido naqueles três dias. Não foi reconhecido, quer por eles quer pelos boticários. Não era de admirar: transformara-se num pálido reflexo do professor de antes. Perdera o semblante jovial, o antigo porte ereto e as animadas passadas largas; suas pernas, agora, caminhavam miúdo, no passo incerto dos infelizes. Fora-se a têmpera rija dos velhos tempos. Uma barba sempre por fazer mascarava-lhe o rosto, roubando-lhe a boca outrora firme e de expressão bemhumorada. A fronte alta vincara-se em rugas profundas e os ombros curvavam-se, como bem cabe aos réprobos. Era quase impossível reconhecê-lo. Como reagiria a memória de Epaminondas no momento em que o avistasse? Descobriria em breve. Transitar, anônimo, pelo local, era-lhe deveras conveniente, pois permitia-lhe ver e rever sem qualquer interferência, dando-lhe o tempo necessário para recobrar o o sangue-frio e normalizar a respiração. Viu as toalhas de algodão quadriculado de vermelho e branco formando tabuleiros de xadrez que lembravam sangue e paz; reconheceu o balcão de vidro que amortalhava os assados, as frituras e os ovos cozidos; lá estava também a prateleira com as garrafas de conhaque de alcatrão e de licores caseiros; e, sobranceira feito uma bandeira içada, a linda imagem de São Jorge, abençoando a casa. Contemplou as paredes com seus velhos azulejos estampados em matizes de azul, mostrando um jardim japonês com quiosques, flores e graciosas moças de leques e sombrinhas, eternamente passeando ao redor de um lago pintado de azul-docéu. A estampa, que se repetia por toda a casa, dava aos clientes a excitante ilusão de estarem num convescote do outro lado do mundo, deliciando-se em exóticas paragens de bucolismo e mistério. com um pouco de imaginação, poder-se-ia, até, sentir o perfume daquela primavera azulejada. Conseguiu sorrir. Então, a porta da cozinha abriu-se e Epaminondas apareceu. Ei-lo, dedos trançados sobre o ventre e sorriso melífluo a derramar-se dos lábios descaídos. Céus, que sensação!... O professor experimentou uma vertigem dos sentidos, um turbilhonar nas veias, e novamente foi invadido pelo frio de iceberg. Ver o proprietário perturbou-o mais do que ele imaginara, e sua compostura vacilou. com efeito!... Como podia aquele homem exalar tanto à-vontade? E não parecia um dia mais velho!... Continuava roliço e transbordante qual uma inundação, recheado de uma gordura pachorrentamente flácida e libidinosa que se derramava bamboleante na cintura, por baixo do queixo, ao longo dos braços e nas coxas; o homem parecia uma barrica enfatiotada, espremida em um trajo apertado demais, com botões prontos a saltar fora. Trazia os cabelos cortados rente como os dos meninos piolhentos e, apenas, um pouco mais esbranquiçados pelos últimos aniversários. Não modificara o andar bamboleante e lento que lembrava o dos velhos paquidermes em vilegiaturas pelas ensolaradas planícies africanas. Era uma figura bufa de comédia italiana, entrando em cena sorridente, a caminhar equilibrando-se com os braços esparramados e voltejando por entre as mesas a distribuir acenos e mesuras aos fregueses fiéis, exibindo-se tal qual um general às tropas ou um rei à corte. Parou por duas vezes, sussurrando segredos aos clientes favoritos, que retribuíam a deferência com estrepitosas gargalhadas. Victor Alexandre encarou aquele rosto bochechudo de querubim malicioso, com olhos enganadoramente sonolentos que escondiam um quê de malsão, de maxilar fugidio e fraco, e boca flácida com lábios voltados para baixo em expressão de fastio. Era um rosto que lembrava pecados; estranho não tê-lo compreendido antes... O professor sabia que o proprietário do Azul logo iria enxergá-lo. Se não o reconhecesse, Epaminondas viria aliciá-lo, já que não perdia tempo na conquista de um novo freguês. Caso contrário, sabe-se lá o que faria. Menos de um minuto depois, o homem rumou direto ao seu encontro, os passos elefantinos machucando os ladrilhos do chão. - Em que posso servi-lo, meu senhor? - usava a voz na entonação certa: nada da ansiedade que assusta o cliente, nem da fleuma de quem pergunta por perguntar, inibindo a resposta. Era a interrogação correta, significando "eu posso e tenho prazer em oferecer aquilo que o distinto freguês desejar". - Quer ter a bondade de fazer o seu pedido? - Qual é a especialidade da casa? - Victor Alexandre perguntou, como se já não soubesse. Parabenizou-se, secretamente, pelo domínio dos nervos. - Temos dois excelentes pratos: coração de vaca com polpa de lentilhas, e rabo de vaca ensopado com abóbora e talos de taioba. - Deveras? - o professor pareceu refletir. Epaminondas continuou: - São ambos muito bons, posso garantir-lhe; nossa casa é simples, mas a comida é de primeira qualidade, ombreando-se com a dos lugares elegantes do Centro. Qual dos dois o senhor gostaria de experimentar? - O coração, por favor. - Tenho certeza de que não se há de arrepender. Resolvida a questão, o homem levantou o braço, estalando os dedos feito uma espanhola quando marca o ritmo do fandango, e, logo, um empregado magricela acorreu obediente e chispou levando o pedido. Epaminondas, então, ousadamente, sentou-se à mesa de Victor Alexandre sem qualquer cerimônia, em evidente demonstração de que, às majestades, tudo é permitido. Durante a conversa aliciante, o proprietário cavucara a memória, procurando identificar o novo freguês que lhe parecia vagamente familiar. Ou tratar-se-ia apenas de simples impressão? Infelizmente, o tempo é cruel e embaralha as idéias dos mais velhos, dificultando-lhes a identificação e o reconhecimento de coisas e pessoas. Não conseguia dizer-lhe o nome; todavia, era bem nítida a sensação de já tê-lo visto antes. O controle de Victor Alexandre claudicava sob o escrutínio de Epaminondas, e ele tinha vontade de agarrálo para arrancar, sem delongas, a explicação que fora buscar; mas era melhor manter-se calmo porque palavras 10 certas usadas em hora errada, tornam-se desastrosas. Pressionado em momento inadequado, o outro poderia fechar-se em copas, aniquilando a sua esperança de redenção. Confrontá-lo-ia no momento propício; até lá, seria paciente, deixando que os acontecimentos fluíssem de forma natural. Aquele era o instante de manter o sanguefrio e portar-se como um verdadeiro mestre. O empregado trouxe o almoço, criando o hiato necessário para baixar a tensão do professor. Ele provou a especialidade, mas a emoção impediu-o de saboreá-la. Epaminondas encarava-o ansioso. - E então, senhor? Não é de primeira? Victor Alexandre achou melhor concordar com um aceno de cabeça. O proprietário não fez menção de levantar-se e começou a falar, enaltecendo o seu tema predileto: o Azul. Um freguês novo precisava ser fisgado como uma traíra e conquistado sem remissão, e ele era um exímio pescador de clientes. Principiou por gabar-se de ter transformado uma casa de pasto singela num lugar especial de esmerado asseio e com ambiente estritamente familiar, de comida boa e farta, onde pessoas de bem satisfaziam, a preços módicos, o paladar e o estômago. - Construí tudo isso praticamente sozinho, pois sou um homem solitário, largado à própria sorte; minha mulher desapareceu há muitos anos, sumindo sem deixar qualquer bilhete que esclarecesse as razões do ato tresloucado. - Que lástima! - aquelas informações eram bastante descabidas, pensou Victor Alexandre, que não era dado a curiosidades sobre a vida alheia. - O mundo é cheio de percalços, meu senhor, e o destino é uma interrogação. Ao tomar-me um homem 12 casado, e estando a construir um bom negócio, pensei que desfrutaria de um futuro tranqüilo, mas para aquela ingrata criatura a quem tomei como esposa, os votos matrimoniais proferidos ao pé do altar nada significavam, nem tampouco a minha dedicação ou o meu carinho. Ela interferiu nos meus planos e mudou o destino que eu pensava ter. Foi como uma tática de guerra, como um barril de pólvora; a pérfida fez de mim um pobre soldado ferido e atormentado. Muito sofri com o atroz abandono e comi, amargurado, o pão ázimo amassado pelo diabo. Estou, por acaso, a enfará- lo com a história da minha vida, senhor? - Não! Por favor, continue. - Era preciso ter paciência e esperar o momento certo de agir. - Obrigado! Não sou habitualmente dado a confidências e costumo calar meus dissabores mas, de quando em vez, um bom ouvinte... - Não se preocupe! - O sujeito era um farsante, pensou o professor, e aquela conversa, provavelmente, apenas um meio de sensibilizá-lo e fazê-lo voltar ali muitas e muitas vezes. - Como eu dizia, o abandono inesperado quase decretou o fim da minha vida, mas Deus apiedou-se e concedeu-me a graça da salvação através do trabalho, de muito trabalho. Dediquei-me ao Azul com todas as minhas forças, e os céus me recompensaram com a satisfação do sucesso - assegurou com a voz respingada de afetação. Infelizmente, não sou um homem plenamente realizado; ao partir, d. Matilde levou consigo algo de muito precioso que nem a boa fortuna substituiu: o amor. Houve uma pausa compungida, antes que o homem continuasse. - Só esta minha casa impediu-me de cometer um ato desvairado e deu-me motivos para continuar vivendo - 13 calou-se outra vez, como que perdido em recordações extremamente dolorosas. Entretanto, enganar-se-ia quem pensasse que aquela interrupção era fruto da dor. A verdade é que a memória de Epaminondas, estimulada pelas reminiscências, estava a ponto de libertar outras lembranças entesouradas, soltando as amarras que ancoravam o passado nas profundezas da consciência. Um turbilhão de recordações girava arrasador, sorvendo do esquecimento tudo o que lá estivera depositado, criando um redemoinho que engolia o tempo deixado para trás e que, tal qual um repuxo, precisava expelir o que havia arrebanhado. E, dentre os fantasmas que afloravam, tomava corpo uma visão relacionada ao novo freguês: uma idéia desagradável, que surgia em sua mente, enrubescendo suas bochechas de querubim. Rubicundo e apoplético, Epaminondas oscilava entre crer ou descrer em seus olhos. Talvez a sensação de déjà vu fosse um engano dos sentidos e, logo, haveria a satisfação de constatar que o homem era, afinal, um perfeito estranho; ao invés, a identidade do desconhecido saltou-lhe dos confins da memória feito um polichinelo de molas, fustigando-o como um látego pronto a verter sangue. - Senhor professor!... - o proprietário estava completamente aturdido. - Finalmente, reconheceu-me!... Por algum tempo, pensei que jamais o senhor lembrar-se-ia deste antigo freguês! - O que o traz aqui depois de tantos anos? - tartamudeou Epaminondas, no cúmulo do espanto. - Os acontecimentos em casa do sr. Dalmo dos Santos - as palavras estavam repassadas de amargura. - Quero discutir toda aquela sórdida história e saber por que o senhor permitiu que ela acontecesse. 14 - Não sei do que o senhor professor está falando! - Não? Isso nós veremos! Primeiro, quero saber por onde anda aquele irascível reclamista. Recorda-se dele? Que será feito do homem? Encontrei-o pela última vez aqui no Azul, jubiloso e transbordante de satisfação, como o deputado Calisto Elói, do Camilo.* Ele não cabia em si de tão contente, por ter resolvido todos os seus problemas domésticos e alcançado uma felicidade incomparável graças a um meu conselho. - Há muito que não o vejo; apareceu-me aqui algumas vezes e depois sumiu. Eu gostaria de expli... - Cale-se! O senhor terá bastante tempo para justificar-se; antes, porém, deixe- me avivar-lhe as lembranças daqueles dias, para que não se atrapalhe em assunto tão importante. - Avivar-me as lembranças!... Por que razão, benzame Deus? Pareceu ao professor vislumbrar um quê de preocupação no rosto de Epaminondas. - Porque é preciso. Não desejo vê-lo acometido por inconvenientes lapsos de memória. Já lhe disse a que vim. Epaminondas remexeu-se como um peixe fora d'água, pressentindo que aquela conversa iria revolver o fundo do poço e trazer à tona assuntos que era melhor não serem discutidos. Falando baixo e como que mastigando as palavras para tirar-lhes o máximo de efeito, Victor Alexandre começou a relembrança. Epaminondas estava pasmado: o professor repetia, quase tintim por tintim, a conversa que * Referência ao deputado Calisto Elói, personagem principal de A queda de um anjo, romance do escritor português Camilo Castelo Branco, publicado na segunda metade do século XIX. 15 ambos haviam tido com Dalmo durante aquele último almoço. Aonde pretendia o professor chegar? Qual a razão de todo aquele interesse pelo assunto depois de tanto tempo? As palavras do reclamista renasciam nos lábios do outro: "noiva dedicada", "mulher desleixada", "tudo por fazer", "implicando com a gata", "mal- estar", etc, etc!... Que desagradável! Aquilo era caso terminado e não tinha mais importância. Victor Alexandre continuava, imperturbável: - E o senhor atiçou as reclamações de Dalmo a respeito de suas desavenças conjugais, garantindo que a maior tragédia de um homem é casar-se com a mulher errada; deu-lhe ainda mais corda, dizendo que a vida dele era como uma tática de guerra, como um barril de pólvora. Epaminondas deu de ombros. - O senhor professor, por acaso, esqueceu-se de que a esposa do pobre homem nem sequer servia-lhe uma ceia decente quando ele voltava do trabalho e que, não satisfeita com a desconsideração, ainda punha a culpa na gata que era o xodó do marido? Dizia-lhe que a tigrada era uma grande apoquentação e que, por causa de suas traquinagens, via-se obrigada a recolher-se ao leito com terríveis dores de cabeça. Recorda- se? - Lembro-me muito bem do que foi dito e do que não foi dito. - Ora vamos, senhor professor!... - ajuntou o comerciante tamborilando no prato à sua frente, visivelmente desconfortável com o rumo que tomava o diálogo. - Incomoda-o, o meu relato? Gostaria de continuar sem interrupções para evitar fugir do ponto essencial. O importante, neste momento, é a minha desconfiança de que, naquele dia, o senhor omitiu da nossa conversa um detalhe de suma relevância, sr. Epaminondas Pereira. Um detalhe que o torna também responsável pelo acontecido depois - uma nova idéia alvoroçou-o e ele alteou a voz. Pensando bem, talvez, até, o mais responsável de nós dois. Dalmo era seu freguês assíduo e um falastrão compulsivo e fecundo. É, pois, muito natural que o conhecesse em detalhes. O senhor, forçosamente, tinha que saber. Sem dúvida, tinha que saber. - Saber o quê? - Não se faça de tolo!... Tenho certeza de que estou a fazer-me entender muito bem. Enredei-me numa comédia de erros e acho que o senhor nada fez para salvar- me. Muito pelo contrário: o seu silêncio deliberado levou-me à beira da perdição. Por causa dele, tudo aconteceu; sua atitude foi infame e criminosa, mas não pense que vim para levá-lo aos tribunais ou para eximir-me da minha responsabilidade no ocorrido; isso é impossível, porque foi minha a última palavra e o que eu disse, naquele dia, jamais poderá ser apagado. Entretanto, confortar-me-á saber que fui vítima inocente de um ardil desprezível e cruel, engendrado por sua mente doentia. - Não se vem à casa de um homem para ofendê-lo, senhor professor. - A voz era amuada. - Ora, cale-se! Não aumente a sua vilania! Ah, como é estranha a vida! Por que, entre tantas casas de pasto, escolhi justamente esta? E por que não discordei de Dalmo naquela hora? Por que não o interrompi e expus honestamente a minha opinião? -Acalme-se! Recriminações não adiantam. - Era meu dever argumentar contra aquelas sandices; mas não o fiz para evitar uma polêmica igual àquelas que havíamos tido na véspera. Eu, que nem sequer conhecia-lhe a esposa, permiti que ele começasse aquela horrível diatribe contra ela, apenas para não aborrecer-me durante 16 17 o almoço. Esse foi o meu pecado, a minha culpa. Acho que todo o resto deve ser- lhe creditado. Pertence-lhe o papel de vilão. - Questão de ponto de vista, senhor professor!... Mas, voltando a Dalmo: eu, que entendo muito bem as mulheres, posso garantir que ele tinha razão em suas queixas; as caras-metades mudam depois do casamento e podem desgraçar um lar. Fazem-se de santas sofredoras, quando na verdade são diabólicas. Veja o caso de Dalmo: ele havia passado um dia por aqui a fim de mostrar-me a gata que, por sinal, era uma belezinha. A esposa estava junto e... -Ah!... Então o senhor realmente a conhecia! Confirmam-se as minhas suspeitas. Céus! Que infâmia! Que pusilanimidade! Sabia aquilo que eu desconhecia, viu o meu engano e calou-se; percebeu todas as implicações do seu silêncio e, assim mesmo, não interferiu. O senhor é completamente amoral - o professor estava lívido. - Será que não tem um pingo de remorso? - Não! Por que deveria? Naquele dia eu apenas incentivei a quem necessitava de auxílio. Os homens devem unir-se nos momentos de crise; precisam ser solidários. Tive de ajudá-lo ao ver como era infeliz, essa é a realidade. Tivesse eu esclarecido a situação, nada mudaria na existência do coitado. A verdade nem sempre é a melhor opção. Além disso, senhor professor, todos têm culpas a pagar, de um modo ou de outro, e a maneira como se ajustam as contas não faz a menor importância. - Meu Deus! Qual o motivo de tanta crueldade, homem? - O senhor professor está usando a palavra errada; a expressão correta é outra. Mas que me importa, afinal, a sua opinião? O senhor é muito ingênuo e desconhece as armadilhas da sorte; não sabe do que está falando, pois que tem uma existência tranqüila junto a uma família amorosa, muito provavelmente. Não está sentado em algum barril de pólvora. Permita-me contar- lhe algo que abrirá seus olhos para outras realidades da vida: é uma história acontecida há mais de vinte anos. Não tenho por hábito revelá-la, mas o senhor está tão comprometido neste nosso assunto que não faz mal conhecê-la. E, então, por certo, julgar-me-á de maneira diferente, será mais compreensivo. - Nada far-me-á mudar de idéia a seu respeito, nem servirá de desculpa para a sua ignomínia. - Espere até ouvir o que lhe tenho a dizer. Eu mal havia inaugurado o Azul, com o dinheiro recebido por anos de trabalho na casa de pasto de um patrício. Durante muito tempo eu mourejara, carregando pratos e servindo mesas, desconhecendo feriados e dias santos, sem qualquer queixa ou amuo, já que a tal lida dar-me-ia a oportunidade de fazer um certo pé-de-meia e pôr de lado uma quantia de dinheiro para, um dia, estabelecer-me por conta própria e dar à senhora minha esposa uma vida de grandeza. Epaminondas parecia falar de si para si. - Infelizmente, ela não tinha paciência para aguardar o futuro melhor que eu lhe prometia, querendo, enquanto eu mourejava, aproveitar o momento e gastar as economias guardadas no baú. Dizia-se uma jovem com pressa de viver. Em vão eu suplicava-lhe que não fosse tão afoita, que tivesse fé e acreditasse nas minhas certezas. Qual o quê! Ela fez ouvidos moucos e começou a viver a própria vida. Sua beleza foi a sua perdição! D. Matilde era uma morena vistosa e de garridice incomum, com lindos olhos castanhos sombreados por longos cílios brilhantes como seda e talhe perfeito com curvas voluptuosas; os homens viravam-se para vê-la e ela achava que tanta formosura não podia ser sacrificada 18 19 em nome de um futuro longínquo, quando, talvez, suas formas de sílfide já não fossem tão soberbas. Eu não me apercebi quando ela abraçou uma conduta imoral, pois que o trabalho obrigava-me a sair cedo e a voltar tarde; não reparei que dera para vestir-se na moda, com decotes impudentes que revelavam o colo aveludado, e que abusava das águas-de-cheiro; não vi que se ataviava com rendas, brilhos e chapeuzinhos travessos, e que namorava o espelho por demais da conta; não senti que afastava-se dos meus carinhos, ébrio de amor como vivia. A discrição das comadres da vizinhança acobertou-a, já que as mulheres costumam se proteger nessas coisas sórdidas; são todas umas desavergonhadas, cuspindo no prato onde comem. A voz de Epaminondas esganiçou-se de raiva incontida; o homem estava a descontrolar-se mas, de repente, abrandou-se, como que tomado por doces recordações, e retomou suas saudades num tom sussurrante de namorado: -Ah, senhor professor, d. Matilde era uma esplêndida mulher!... Altiva como uma rainha e, se me permite a indiscrição, com um corpo lindamente arredondado nos lugares certos e escavado onde convinha, feito de carne rija e morna, suave ao tato e irresistível aos olhos; nem alta, nem baixa, do tamanho exato do meu amplexo. A tez era perolada como, às vezes, encontram-se em certos mestiços, e tinha nas pulcras faces aquele brilho rosado natural que o carmim não pode imitar. Seu nariz era fidalgo: pequeno e fino, ligeiramente petulante, dando-lhe aquele ar de criança mimada tão do meu agrado. Faltei com a verdade ao atribuir-lhe olhos castanhos; eram, realmente, cor de avelã, daquele matiz raro onde faíscam fagulhas de verde; olhos incríveis, repassados de vivacidade e malícia, 20 meigos e amorosos quando os conheci; gelados quando nos separamos. A criatura era uma perdição com tanta faceirice. Há que relembrar-lhe a boca, senhor professor: uma boca que sabia sorrir e feita de lábios mimosos e atrevidos que, dependendo do humor, podiam estreitar-se numa linha raivosa, prenunciando tempestades; quando isso acontecia, era sábio deixar d. Matilde entregue aos próprios devaneios. Mas seus lábios sabiam ser ternos quando ela o queria. Nos primeiros tempos de nossa união, pareceu-me compartilhamos um delicioso amor matrimonial, temperado, aqui e ali, com deliciosos arrufos. Imaginei minha mulher como a amante que qualquer homem idealiza, a corola perfeita onde buscar o mel; depois, sua afeição ardente arrefeceu sem despertar-me suspeitas: pensei tratar-se, como de costume, da acomodação natural das esposas castas. Não cogitei de outras razões. - O que tem tudo isso a ver com o assunto que me trouxe aqui? - Espere e verá, senhor professor; está tudo interligado. D. Matilde, além da beleza, tinha um temperamento forte e, quando alguma inquietação a afligia, deixava-a aflorar nos resmungos e na impaciência que tanto me deliciavam. Muita vez, julguei vislumbrar um quê de ferocidade em seu olhar, mas não me assustava. Aceitava tudo, feliz por ter aquela exuberante deusa em casa. Quando ela dedicou-me frieza e indiferença, eu a amei igual. Está começando a compreender, senhor professor? - Não! Estou começando a impacientar-me. - Só mais um pouco, por favor! A bem da verdade, foi-me bastante penoso colocar de lado o dinheiro para a compra deste estabelecimento, porque detestava contrariar d. Matilde, mas o fiz na certeza absoluta de vir a ter um futuro rico e poder mimá-la. O que ela obrigou-me a 21 fazer depois foi realmente uma pena, mas não quedou-me escolha - pareceu refletir. - Ela era uma mulher que necessitava de atenção e de agrados constantes e eu mergulhei por demais no trabalho - admitiu pesaroso. - Mas como poderia eu saber? Achava-a invulnerável a qualquer outro afeto que não fosse o meu, só conseguindo vê-la nos meus próprios braços. Este mísero homem não tinha olhos para imprevistos e nem sequer podia imaginá-los. Não percebi quando ela, primeiro, entediou-se e, depois, libertou-se. Não notei como lhe era caro o dinheiro e o pesar que sentia por não poder gastá-lo como desejava, pois mesmo já proprietários, havia dívidas a saldar. Gostaria de ter sabido ler aquela expressão indefinível e aquele olhar sombrio; de ter compreendido a complacente indiferença que se infiltrou entre nós feito um monstro asqueroso. Sem cartas ou bilhetes que me alertassem para o seu comportamento inconveniente, ela arranjou muitas companhias masculinas. Havia, como já disse, um acordo de comadres, provavelmente todas iguais a minha mulher, que, acobertando-a, permitia-lhe viver sua vida de pecados com uma desfaçatez demoníaca; infelizmente, os deslizes não lhe empanavam a beleza e ela foi ficando cada dia mais formosa, perfumando-se e enfeitando-se como nunca antes. Apaixonei-me ainda mais e, como a casa já dava um pequeno lucro, decidi que chegara a hora de mimá-la. O fruto do meu trabalho passou, então, a embelezá-la para os outros homens. - Sr. Epaminondas... O outro ignorou a interrupção e continuou: - Quando o Azul se transformou num local procurado, ela desafiou os bons costumes e, sem qualquer pudor, começou a visitá-lo, aparecendo todas as tardes, arrancando galanteies e suspiros dos jovens e, dos velhos, lúbricos e cúpidos olhares de saudade. De início, eu, tolamente, envaideci-me. Depois, ao cabo de algum tempo, quando ela passou a sentar-se com os fregueses para uns dedos de prosa, o ciúme fustigou-me, dilacerando-me a alma. De nada adiantou pedir-lhe que se mantivesse longe dos admiradores e lembrar-lhe que era uma senhora e minha mulher. Ela ria sem fazer caso. Todos temos os nossos limites, senhor professor. O meu foi quando ela começou a sorrir de modo desabrido para alguns dos clientes que reagiam de maneira ainda mais indecorosa. Dos outros, entrevi olhares maliciosos e ouvi risinhos abafados. Minha dor e humilhação foram imensas, enquanto ruíam os meus belos sonhos. Mas, apesar de todo o sofrimento, de todo o indizível desgosto, da indignação e do desespero, consegui manter, em público, uma grande dignidade. Preservei essa imagem, a todo custo. Em casa, entretanto, desmancheime em súplicas, humilhei-me em pedidos de perdão e soterrei-me em promessas, mas aquele coração tornara-se insensível. Compreendi ter esposado uma loureira. Meu abalo foi motivo de escárnio. Não tardou confessar-me que jamais me tinha amado e disse, também, do asco que os meus beijos lhe causavam; chamou-me de gordo ridículo. Proferiu palavras que me dilaceraram o coração. Nessa hora, verti lágrimas copiosas: primeiro de mágoa, depois de horror. E minhas lágrimas regaram, dia a dia, aquele padecimento que se transformou, finalmente, em ódio feroz; um ódio surdo e insano, que se robustecia a cada novo desprezo ou repulsa. Ela nada percebeu, pois que eu o escondia sob perfeita camuflagem; era como uma tática de guerra, como um barril de pólvora. Deixei que ela pensasse haver-me derrotado, enquanto eu maquinava a batalha final. Compreendi que só uma grande desforra apascentar-me-ia e que nada menor haveria de restituir- 22 23 me a honra perdida. Dei-me conta de que teria que escolher entre o castigo público, que resgatar-me-ia aos olhos do mundo enquanto condenar-me-ia aos olhos da lei, e a punição particular, secreta, segura e livre de suspeitas. Não hesito em dizer que rapidamente decidi-me pela última, convencido de que a satisfação íntima haveria de bastar-me. Providenciei tudo, passo a passo, sem remorsos. Foi fácil. com muita antecedência, comprei estricnina num bairro distante. É um veneno que não causa estranheza, pois que serve para ratos. Guardei-o aqui no Azul, num quarto de tralhas; pelo sim, pelo não, achei melhor esperar algum tempo entre a aquisição e o uso. Enquanto isso, minha mulher continuou a enganar-me com desenvoltura, já que me tinha na conta de um covarde, um marido compassivo ao qual se inflige, sem problemas, qualquer indignidade. Alguns meses depois, uma zombaria mais cruel marcou a data do justiçamento. Achei que chegara a hora da vindita. Servi-lhe a estricnina num refresco de groselha açucarado. D. Matilde tomou-o sem desconfiar. Quando percebeu que algo estava errado, era tarde demais. Debalde contorceu-se num esgar de perplexidade e dor; deu-se conta da minha coragem e isso confortou-me. Teve uma agonia rápida. Enterrei-a no quintal de uma casa vizinha, há muitos anos desocupada. Sepultei-a sem deixar vestígios na terra que a engoliu, mas não consegui apagar os sulcos de ressentimento que a sua leviandade e impudor haviam aberto em meu coração. Sua morte não me resgatou da ira: apenas adormeceu-a. Victor Alexandre não conseguiu esconder o seu horror. - Então foi por isso!... Tudo não passou de um simples ajuste de contas! Meu Deus! O senhor é louco, arvorando-se em justiceiro! 24 Epaminondas parecia não ouvir. - Depois de enterrá-la, disse aos fregueses e amigos que ela fugira sem deixar bilhete. O fato não causou suspeitas, pois sua fuga era esperada para mais dia menos dia. Recebi a solidariedade devida. Portei-me à altura das circunstâncias, demonstrando um desconsolo exemplar. Depois, dediquei-me ao Azul de corpo e alma, conquistando a admiração de todo mundo. Tornei-me um marido que venceu a adversidade com bravura. Foi ótimo! - O senhor é realmente insano! Um maníaco perigoso! O assassino não retrucou. Sorriu e continuou: -Agora chegamos ao que lhe interessa diretamente. É a minha vez de relembrar os fatos. Quero que o senhor entenda tudo bem direitinho para não fazer acusações descabidas. Minha memória é ótima, e eu também sei de cor tudo que foi dito naquele almoço. Depois de muitas queixas, Dalmo falou: "Minha mulher e minha gata detestam-se e ficam às turras o dia inteiro e, quando eu chego em casa exaurido de cansaço, tenho que enfrentar os gritos histéricos de uma e os miados estridentes da outra. Minha mulher culpa a tigrada por tudo e por nada, sabendo que a coitadinha não se pode defender; e diz não cuidar da casa nem preparar a minha ceia porque a gata não lhe permite um minuto de sossego; quer dá-la de presente a uma prima, mas isso eu não consinto. Adoro a tigrada e dou-lhe até tratamento de gente. Prefiro ter o estômago vazio a ficar sem a bichinha; aliás, só não morro de fome porque saio a buscar qualquer coisa na pensão da esquina. Está tudo ótimo para d. Glorinha, que adora os temperos de d. Tetéia; d. Naná tem estômago de ferro e devora o que vier, mas eu estou ficando mal das tripas, com inchaços e dores no ventre. Qualquer dia vou desta para melhor." Foi 25 essa confidência que me deixou revoltado, senhor professor: eu nunca imaginara que a esposa de Dalmo fosse tão terrível. Então, o senhor disse que, às vezes, o homem precisa ser drástico em suas atitudes e explicou-lhe que a única maneira de acabar com os entreveros domésticos seria livrando-se de d. Naná. Um belo discurso que foi de encontro às idéias que já estavam a ferver-me na cabeça. Eu estava resolvido a ajudar o pobre sujeito, mas, convenhamos, a situação era delicada... Eu não queria comprometer-me. Foi a providência que colocou aquelas palavras em sua boca, senhor professor. - Patife! Que monstruosidade! A coitada nada lhe havia feito. Que deturpado senso de justiça!... E eu, homem, por que enredar-me nessa trama sórdida? - Não seja dramático, meu caro senhor! Foi um simples e engraçado acaso. O digno professor, todo compenetrado, ouvindo as reclamações de Dalmo; ouvindo e confundindo. Aliás, eu também cometeria o mesmo engano, se não conhecesse os personagens. - Epaminondas imitou o tom sério de Victor Alexandre: - "Sei que não será fácil, sr. Dalmo, mas acho que deve livrar-se de d. Naná." Estupendo, meu caro professor, realmente estupendo! Que belo golpe de sorte! Sua sugestão isentou-me de qualquer culpa. Afinal, a idéia foi sua, e a minha participação nos acontecimentos tornou-se irrelevante: apenas incentivei o nosso pobre amigo a seguir o seu conselho, contando-lhe sobre a minha experiência com a estricnina. Falei-lhe sobre d. Matilde. Juro não lhe ter dito outra palavra sequer. Não é uma pândega que o senhor haja pensado que d. Naná fosse a gata? Victor Alexandre urrou desesperado e fugiu antes que o horror o transformasse em outro justiceiro. *** 26 Leopoldina tinha então vinte e sete anos. Não era alta, mas passava por ser a mulher mais bem feita de Lisboa. Usava sempre os vestidos muito colados, com uma justeza que acusava, modelava o corpo como uma pelica, sem largueza de roda, apanhados atrás. Dizia-se dela, com os olhos em alvo: 'é uma estátua, é uma Vênus!' Tinha ombros de modelo, duma redondeza descaída e cheia; sentia-se nos seus seios, mesmo através do corpete, o desenho rijo e harmonioso de duas belas metades de limão; a linha dos quadris rica e firme, certos quebrados vibrantes de cintura faziam voltar os olhares acesos dos homens. A cara era um pouco grosseira; as asas do nariz tinham uma dilatação carnuda; na pele, muito fina, dum trigueiro quente e corado, havia sinaizinhos desvanecidos de antigas bexigas. A sua beleza eram os olhos, duma negrura intensa, afogados num fluido, muito quebrados, com grandes pestanas. EÇA DE QUEIROZ, Oprimo Basílio, São Paulo, Scipione, 1994, p. 9-10. VICTOR ALEXANDRE Era uma casa de pasto azulejada do chão ao teto Estreita e comprida feito um corredor, modesta como comércio à volta e com o número suficiente de mesas para acomodar as hordas invasoras da hora do almoço. Epaminondas Pereira, proprietário e gerente, sempre o primeiro a chegar e o último a sair, mantinha empregados e fregueses sob estreita vigilância, na prática do confiar desconfiando; olhava, como diz o povo, padre e missa ao mesmo tempo, evitando que o estabelecimento ficasse no prejuízo, quer por culpa de empregados desatentos, quer por manobras sorrateiras de espertos comensais maus pagadores. Tinha fama de sujeito bonachão, conquanto bajulador e um tanto fuxiquento; um tipo bufo, pouco levado a sério, provavelmente por culpa da cilíndrica figura. Sabia-se que era marido abandonado de mulher desaparecida há mais de dez anos, fugida sem deixar bilhete que sequer explicasse a razão do ato ignóbil. Esposo, primeiro, acabrunhado pelo infortúnio e, depois, estóico, sepultando, no fundo d'alma, a fuga escabrosa da infiel e a desilusão atroz do lar desfeito. Os velhos fregueses, testemunhas do fato, haviam piedosamente surrupiado, da memória e das conversas, o infausto acontecimento, receosos de que o estoicismo do homem fosse coisa simulada, só da boca para fora, e que, na realidade, ainda houvesse brasas de paixão por debaixo das cinzas aparentes. Para evitar constrangimentos ao pobre abandonado e, também, porque telhados de vidro não são assim tão raros, podendo quebrar-se sobre a cabeça de qualquer um, mantinha-se no local uma prudente reserva a respeito de cervos e galhadas. Assim, ali na casa de pasto, o desditoso consorte era citado tão somente como um bem-sucedido comerciante, uma criatura extremamente dedicada aos negócios que parecia viver, apenas, para as suas mesas e cardápios. Gabava-se o homem de haver prosperado graças, em primeiro lugar, a uma absoluta dedicação ao trabalho, uma quase servidão, pode-se dizer, e, em segundo, ao seu natural pendor para o trato com as pessoas. Era ele, de fato, um exímio conhecedor dos truques do ofício, um bacharel nas artimanhas da bajulação e da subserviência, sabendo hora e vez de usá-las para agradar a vaidade de cada um. Os comensais bissextos, contrariamente ao que poder-se-ia pensar, eram tratados a pão-de-ló e recebiam, à guisa de estímulo para um retorno próximo, salamaleques e lisonjas à hora da saída e um rebuçado de guaco ou de altéia sorrateiramente ofertado de modo a não suscitar invejas. Tendo convicções bem assentadas sobre certos assuntos, o comerciante, apesar de não ser dado a rezas e procissões, acreditava que não há existência sem calvário e achava que os freqüentadores da Casa de Pasto Azul que almoçavam desacompanhados eram a cruz da sua vida, o 30 seu Gólgota * particular porque, mastigando solitários e carecendo de uma distração qualquer para compensar o abandono à mesa, ocupavam-se em aumentar, com o indicador da mão disponível, os furos que o uso diário e as lavagens semanais abriam nas toalhas das mesas. Em defesa do patrimônio, ele dera ordens expressas para que os buracos incentivadores do nocivo hábito fossem sutilmente escondidos sob pratos, copos e saleiros. Recurso desgastante e improfícuo, já que os solitários teimosamente empurravam as ardilosas barricadas e voltavam ao distrativo passatempo. Exasperado, Epaminondas rosnava sua frase lapidar: "É como uma tática de guerra, como um barril de pólvora." Ninguém entendia o significado desse desabafo inusitado, mas aceitavam-no com tranqüilidade, pois que não se esperava do proprietário qualquer pronunciamento que abalasse a harmonia universal ou, mesmo, o dia-a-dia da casa. Se os conhecidos não lhe creditavam profundos conhecimentos sobre o que quer que fosse, reconheciam-lhe, em compensação, uma grande qualidade: total isenção de preconceitos. O homem não recusava fregueses, nem mesmo os considerados arraia-miúda que, verdade seja dita, comportavam-se, na casa, com muito decoro, convivendo em boa ordem e guardando, para as ruas, as suas antipatias e rancores; era uma clientela remediada e bem sortida de profissões, da qual só exigia-se o imediato pagamento dos repastos. Epaminondas não acreditava em fiar refeições, temeroso de apoplexias que levassem o devedor desta para melhor, deixando-o a ver navios. Outro atributo assaz apreciado era a não-discriminação de empregados. O homem contratava moços e velhos desde que * Monte de Jerusalém, onde Cristo foi crucificado. Em sentido figurado, significa suplício, sofrimento. 31 hábeis na arte de equilibrar travessas com os braços estendidos, num verdadeiro número de malabarismo circense. Desconhecia-se que qualquer insucesso na proeza, qualquer caco de louça tilintando no chão era deduzido do dinheiro a ser pago ao desastrado, sem perdão ou adiamento da dívida, mesmo que o indigitado alegasse a mais desoladora das razões para fugir ao castigo. Uma questão de moralidade, dizia Epaminondas; uma questão de lógica: o culpado arca com as conseqüências do delito e não pode escapar impune. Tudo muito simples, nada transcendental. - Eu sou um amante da justiça, da lei e da ordem, e curvo-me ao dever de cumpri- las - não hesitava em declarar ao mundo. Outra afirmação peremptória e também acreditada pela clientela era que ali o freguês vinha sempre em primeiro lugar; mal sabia ela que Epaminondas sussurrava aos empregados ser a máxima discutível, o "sempre" não devia ser levado ao pé da letra, e a razão dos clientes só merecia reconhecimento em casos extremos, quando o bom senso e a experiência indicassem que concordar com o queixoso era o melhor a fazer; em outras circunstâncias, era preciso desconversar o assunto e levar o reclamante a mudar de idéia, com fidalguia e tato, para evitar desordens ou burburinhos danosos. Entretanto, apesar desses laivos de hipocrisia, o homem tinha lá o seu apreço pela clientela, fato comprovado à luz de certos cuidados, como a compra de pequenos abanos para os que desejassem aliviar-se dos calores provocados pelos molhos e pelas pimentas. Um empregado, muito antigo e atrevido, costumava segredar aos clientes de sua confiança que, com os tais abanicos, o patrão desejava, apenas, evitar aborrecimentos, já que congestões matam e o de cujos 32 poderia ficar emborcado sobre a mesa, criando uma amofinação total; outra galanteria de Epaminondas fora a colocação de vasos de espada-de-são-jorge e de comigo-ninguém-pode à entrada do estabelecimento, com a dupla finalidade de embelezar o ambiente e de espantar olho gordo; o homem comprara, também, maravilha das maravilhas, um moderno e vistoso balcão de vidro e madeira envernizada que custara uma boa fatia dos lucros. Nele, os clientes modernos e apressados podiam copiar o hábito, seguramente estrangeiro, de fazer sua refeição de pé, colocando os pratos no tampo de vidro. A casa desaconselhava, a este tipo de clientela, a degustação de qualquer coisa que não fosse mastigada em até dez minutos, pois não a queria atravancando a porta. À disposição desta freguesia singular, o balcão exibia acepipes languidamente acamados em folhas de alface. Os clientes extasiavam-se com as iscas de fígado de vaca, com os passarinhos fritos, o torresmo dormido, o pernil assado e os ovos cozidos que se pavoneavam nas cores amarelo e rosa. Gostosuras a serem engolidas com água ou com açucarados refrescos. Se o hábito virasse moda, o consumo de tais comilanças logo compensaria o gasto e geraria cifras na coluna do haver, pensava o comerciante, satisfeito de si. Outra gentileza era uma imagem de São Jorge colocada numa prateleira engalanada com flores e guirlandas de papel crepom. Apesar de o proprietário não lhe prestar reverência, a imagem representava um agrado aos fregueses religiosos que acreditavam estar o santo a velar pela paz da casa comercial, com sua lança em riste pronta para aniquilar os dragões da iniqüidade. Os freqüentadores materialistas podiam sentar-se de costas para a imagem sem apoquentações e almoçar, tranqüilos, livres da sensação de que o céu os vigiava. Epaminondas orgulhava-se 33 do seu distanciamento da Igreja, considerando-se um cidadão de pensamento científico, um positivista como tantas figuras ilustres do Império, iniciado na doutrina de Augusto Comte * por um freguês filósofo, já enterrado. Na parede oposta ao santo, como um contraponto ao sagrado, ele perfilara um batalhão de mundanas garrafas de bebida. Lá estavam, por ordem de importância, conhaques de alcatrão e licores caseiros, feitos com frutas de quintal. Além dos abanos, dos vasos e do balcão, simples minudências, Epaminondas também brindava a clientela com o chamado pão do espírito; achando-se um homem de luzes, via-se na obrigação de oferecer petiscos culturais junto com o cardápio terra-a- terra; tudo numa modesta contribuição ao engrandecimento nacional. O desaparecido filósofo proclamara a excelência do saber e da leitura, e o proprietário da Casa de Pasto Azul prezava aquela abalizada opinião mais do que qualquer outra. Portanto, para os clientes eruditos, havia páginas de almanaque contendo rimas, pensamentos edificantes e fiapos de conhecimentos gerais, coladas com goma arábica em quadrados de papelão pendurados em pontos estratégicos da casa. Uma cópia amarelada do Hino da Independência refulgia em lugar de destaque. Para os fregueses com leitura claudicante, existiam textos mais simples e rápidos, exaltando infusões e mezinhas contra febres e constipações. Vez por outra, ampliava-se a escolha, quando algum vate das redondezas, acometido de mais um sestro literário, exibia seu último poema. Epaminondas havia por * Augusto Comte, filósofo francês, criador do positivismo, conjunto de doutrinas caracterizado sobretudo pela orientação cientiflcista de suas propostas. O positivismo esteve em grande voga no Brasil a partir das últimas décadas do século XIX, influenciando as artes e, mais acentuadamente, a política. 34 bem não recusar escritos, nem permitir críticas à seleção dos mesmos, pois, como pregara o filósofo, "mente ocupada com as letras é mente saudável; ler, ler e ler, eis a questão". Para o comerciante, o bom e o belo moravam no Azul, orgulho da sua vida e razão da sua existência. O movimento da casa sempre seguia um ritual: primeiro, os fregueses, suarentos e amolecidos pelo calor, refrescavam-se com os abanos colocados no balcão; depois, sentavam-se às mesas ainda frouxos e com as pupilas vagando ao leu; aí, o odor dos temperos enxotava a dormência, acendia os olhos, e o apetite desabrochava à simples idéia da comedoria. Como o tempo era exíguo, e os pratos, fartos, falava-se pouco durante as refeições. Além do mais, os fregueses precisavam, ao final, dispor de algum tempo para embalar a preguiça do estômago satisfeito e para cavucar satisfatoriamente os dentes. Naqueles tempos, a hora crítica da fome chegava cedo, fato que fazia correr Epaminondas durante toda a manhã. No momento do apogeu de clientes, ele acendia-se feito um pirilampo e, malgrado os calos doloridos, circulava por entre as mesas na já mencionada ronda vigilante e, no percurso, cumprimentava com deferência as pessoas gastadeiras. Sentia-se um imperador, dir-se-ia dele que agia como um marechal- de-campo inspecionando a tropa. Aquele era o seu momento de maior glória: o instante de colher os merecidos elogios pela diligência dos serviços e pelo conforto oferecido; mas, infelizmente, a Corte Azulina raramente o recompensava com encômios. As espadas-de-são-jorge e os robustos comigo-ninguém-pode viviam em total anonimato, sorte igual à dos abanos heróicos que, no verão, trabalhavam sem parar. Os clientes não possuíam a necessária educação 35 para enxergarem além dos seus pratos, lamentava-se o comerciante. As melhorias não eram apreciadas por aqueles moscas-mortas. Para agradar a clientela, ele trocara, dois anos antes, as antigas toalhas de uma só cor por outras de xadrez vermelho e branco. Delicadeza dispendiosa e comprovadamente dispensável. Ao tempo da fujona, antes desta perder-se e sumir, as lavadeiras eram controladas, e as mesas esbanjavam uma brancura alvar, mas, depois do seu desaparecimento, as nódoas de gordura e o encardido das lavagens descuidadas instalaram-se insidiosos. Finalmente, as velhas toalhas tiveram que ser aposentadas. Um conhecido do ramo de tecidos convencera-o de que o padrão axadrezado, bastante propício ao embaralhamento da vista, confunde os olhos, escondendo sujeiras e outras inconveniências. A troca fora dinheiro jogado pela janela. - É como uma tática de guerra, como barril de pólvora. Foi durante o corre-corre do almoço, numa certa quarta-feira de junho, com o estabelecimento quase à cunha, que Epaminondas viu entrar um rosto novo. Um homem moreno e simpático, de altura meã e aspecto sólido, carregando uma pasta de couro bem lustrada. Tinha rosto largo e nariz levemente amassado, sobrancelhas grossas e suíças bem aparadas. O cabelo era apartado do lado direito, como na forma do costume. Parecia pessoa distinta, mas sem afetação. Possuía, mesmo, um certo ar fidalgo. Epaminondas ia mostrar-lhe uma das poucas mesas disponíveis quando o outro fez sua própria escolha e, numa atitude que o proprietário presumiu ser coisa da moda, encaminhou-se para uma mesa com três cadeiras vazias; ia sentar-se com Dalmo. Tolice do estranho; decisão totalmente errada. A ele, Epaminondas, 36 tanto se lhe dava. Os dois que se arranjassem em caso de atrito. Não era problema seu. - Posso sentar-me à sua mesa? - À vontade, senhor! - respondeu Dalmo. O recém-chegado colocou a pasta marrom na cadeira à sua direita e sentou-se de frente para o homem grande, com feições mal acabadas e trajo descuidado; uma figura desagradável. Quase levantou-se arrependido, porém, avaliações à primeira vista tendem a ser injustas, já que ajuizar pede uma observação profunda e uma análise cuidadosa. Talvez o ser dentro do invólucro fosse melhor do que o seu exterior. Ele estava sendo leviano. Era preciso dar uma oportunidade ao desconhecido de mostrar-se tal qual era na realidade. Educadamente, procurou um assunto de conversa. - Esta é a minha primeira vez aqui. Diga-me, por favor, como lhe sabem os pratos. - Melhores do que os que me servem em casa - a voz era deseducada. - Meu nome é Dalmo; qual é o seu, senhor? - Victor Alexandre. - Que nome chistoso!... De quem foi a peraltice de batizá-lo assim? - Não acho que o meu nome seja tão engraçado. De qualquer forma, foi sugestão de meu pai. Ele era um homem de idéias românticas e quis homenagear os dois escritores.* * Referência a Victor Hugo e Alexandre Dumas, ambos escritores franceses e do período romântico. I 37 - Que escritores? Ah, não importa!... Mas eu ainda acho que os dois nomes não combinam - riu, fazendo caretas como se tivesse dito algo de muito espirituoso. - O senhor é casado? - perguntou sem qualquer cerimônia. - Sou! - que criatura impertinente, pensou o professor. - E tem filhos? - Tenho um menino de oito anos - o professor estimou ardentemente que a conversa não prosseguisse. - Eu também caí nas malhas do matrimônio, mas não tenho filhos. Em casa, quer dizer - deu outra risada -, a patroa não pode. Em compensação, há uns cinco molecotes com a minha cara espalhados por aí. Sabe de uma coisa? Eu realmente não vou com o seu nome; acho melhor encurtá-lo para Ale, sem qualquer ofensa, é claro. O professor quedou-se mudo, e o silêncio foi entendido como concordância. - Qual é a sua ocupação, sr. Ale? - Sou professor num liceu aqui perto. - Logo vi que se tratava de alguém importante. Eu tenho faro, sabe? Ando muito por aí e sei reconhecer os graúdos. Faz parte da minha profissão: sou reclamista de matéria-prima para boticários; levo-lhes magnésia, pó de alume, de ópio, de bórax, extrato de beladona, óleo de camomila, tintura de anis e outros ingredientes para as suas fórmulas curativas. Costumo dizer que carrego, em minha maleta, a saúde nacional. - Muito interessante! O reclamista subiu às nuvens com a atenção dispensada pelo ilustre conhecido e, sem qualquer noção das conveniências sociais, derramou-se entusiasmado numa enxurrada de perguntas e bisbilhotices. Felizmente para o professor, a chegada do proprietário sustou o interroga- 38 tório impertinente. Dalmo, sem consultar Victor Alexandre, pediu para os dois uma especialidade da casa: rabo de vaca ensopado com abóbora e talos de taioba; depois, acrescentou alto, de modo a ser ouvido pelos circundantes: "Trate bem este cavalheiro, sr. Epaminondas, que ele é gente importante." Os ocupantes da mesa vizinha viraram-se curiosos; Victor Alexandre ficou aborrecido, pois detestava chamar a atenção sobre si próprio. Por sorte, o prato era daqueles simples que aparecem rápido e, quando se mastiga, não se fala, pensou. Dalmo teria que calar-se. Ledo engano. Esquecera-se de que toda a regra tem, pelo menos, uma exceção. Aquele reclamista era um exemplo: conseguia fazer as duas coisas com a maior desenvoltura, mastigando a comida e as palavras ao mesmo tempo e temperando tudo com ávidos goles d'água. Contou suas peripécias profissionais e ofereceulhe papeluchos com pós para medicamentos de confiança, baixando um pouco a voz ao mencionar certas moléstias estritamente masculinas. Victor Alexandre, para evitar intimidades, não aceitou nem os pós contra abatimentos, nem os outros. O reclamista insistiu, mas o professor não cedeu. Dalmo considerou-se ofendido e exagerou dizendo-se humilhado com a recusa. Foi um trabalhão pacificá-lo. - Sabe, eu detesto que façam pouco de mim. Meu pai não era homem abastado, e eu me vi obrigado a sair de casa muito cedo sem grandes estudos. Caso contrário, garanto-lhe que também seria um cavalheiro e, quem sabe, até mesmo, o diretor do Liceu onde o professor trabalha. Dalmo falava como um simplório, pensou Victor Alexandre, mas tinha razão numa coisa: a falta de instrução rouba as melhores oportunidades na vida. O homem 39 moderno precisa conhecer o mundo onde vive, precisa ser objetivo e cercar-se de conhecimentos para prosperar. Era lamentável que a sociedade fosse tão injusta a ponto de despojar alguém de um futuro melhor. O professor teve pena do outro e procurou ser gentil. Perguntou-lhe se gostava de desportos. - Claro, senhor professor! Por acaso eu tenho cara de maricas? A boa vontade de Victor Alexandre esfumou-se no ar com o remoque do outro. Era muito difícil conversar com alguém que parecia estar sempre na defensiva e que argumentava com lógica tão desgrenhada. Seu raciocínio era torto e alvoroçado como, infortunadamente, encontram-se em dúzias de pessoas. Criaturas como Dalmo eram, geralmente, o reflexo de uma sociedade clássica e caduca, que as mentes liberais tentavam transformar. Enroscado no passado, ele ignorava os conceitos e as idéias da sua época, fato que lamentavelmente poderia torná-lo um verdadeiro pária. Inopinadamente, o reclamista, sem esperar uma resposta à sua afirmação de masculinidade, disparou uma pergunta que não tinha qualquer relação com a conversa anterior: - O professor gosta de gatos? - Não, não gosto! - Não é verdade! Está brincando!... Gatos são ótimas companhias. - Gosto é coisa muito pessoal, sr. Dalmo. As opiniões, os agrados, as simpatias baseiam-se em critérios subjetivos e individualizam o homem. Aprovar ou não alguma coisa, admirá-la ou não, permitem ao indivíduo expressar sua independência e o seu sentido de liberdade. Eu prezo muito a minha liberdade. 40 - Ora vamos, deixe-se de melindres!... - Não é melindre: é opinião. Por acaso é proibido discordar do senhor? Hoje discute-se até a infalibilidade do papa, quanto mais a sua. - Não sei aonde o senhor professor pretende chegar, mas não blasfeme. Eu fui batizado e... - E eu é que sou cheio de melindres!... Ora, muito bem, sr. Dalmo, esqueçamos o assunto, mas eu reservo-me o direito de desgostar de gatos. - Victor Alexandre estava visivelmente irritado. - Meu caro amigo, o senhor é um sujeito brigão! O professor não respondeu e engoliu sua última garfada de rabo de vaca. Que lástima, pensou, com outros lugares à disposição, escolhi logo este. Dalmo era uma amolação e, para livrar-se dele mais depressa, resolveu dispensar a sobremesa. Pagou a despesa e levantou-se. Dalmo agarrou-o pelo braço, dizendo que iria comer a compota rejeitada, e sugeriu que os dois passassem a almoçar juntos todos os dias. O professor fez ouvidos moucos e podou a conversa sem dar ao outro qualquer esperança. - Tenha uma boa tarde! - disse ao voltar-lhe as costas. O reclamista seguiu-o com o olhar sem conseguir reter um gesto de desgosto e, depois, confidenciou para o copo à sua frente: "Gosto desse cavalheiro; é um tanto complicado, mas eu gosto dele." Victor Alexandre tratou de esquecer-se de Dalmo. Saindo do Azul, ocupou a mente com assuntos mais palpitantes, ruminando um interessante artigo sobre a teoria determinista de Hyppolyte Taine,* que lera na véspera. * A teoria de Hyppolyte Taine, crítico francês do século XIX, que muito influenciaria os autores realistas e, principalmente, naturalistas brasileiros, coloca o homem enquanto produto da "raça, meio e momento", condicionado, em suas atitudes e temperamento, por estes fatores. 41 O resto da tarde, passou-a em companhia de seus alunos, discutindo, de forma simples e objetiva, as maravilhas da experimentação e da observação para a compreensão do mundo moderno. À noite, desfrutou da companhia da mulher e do filho, reconhecendo que, no seu caso, o casamento não era uma instituição falida como tantos intelectuais afirmavam. No dia seguinte, as ocupações mantiveram Dalmo fora das suas lembranças até a hora do almoço. Então, a idéia de outra refeição tumultuada por causa do reclamista arrepiou-o e ele resolveu chegar mais tarde ao Azul, para escapar do indesejável companheiro. Não adiantou. O pressuroso Epaminondas correu ao seu encontro, cumprimentando-o com a exagerada gentileza reservada aos fregueses novos, e deu- lhe a infeliz notícia de que o homem o esperava à mesma mesa. Passou a informação com um significativo revirar de olhos. "Que fazer?", perguntou-se Victor Alexandre. Ignorar a deferência ou conformar-se com um almoço agitado? Não teve o privilégio da escolha: Dalmo, que o espreitava lá do fundo, disparara ao seu encontro. - Acho que o professor não me viu lá atrás. - Como vai, sr. Dalmo? O indivíduo precisa ser realista e saber quando entregar os pontos; por conseguinte, Victor Alexandre deixou-se agarrar e arrastar para o fundo do restaurante, pensando, como os franceses, que uma só vez não cria um hábito. À mesa, escolheu seu lugar cuidadosamente, sentando-se de costas para a maioria dos comensais; não queria testemunhar seus olhares de desagrado às bobagens que Dalmo certamente apregoaria. Mal sentara-se e o reclamista iniciava uma inquirição com perguntas variadas, entremeadas de denúncias estapafúrdias contra as insti- 42 tuições, as pessoas e as coisas. O homem adorava discutir por razões sem importância e parecia só enxergar os próprios interesses; não tinha qualquer preocupação social. Era um tipo irritante. Sem qualquer motivo, Dalmo pensou vislumbrar em seu rosto um sorriso de mofa e tomou-lhe satisfações. Aquele almoço transformava-se num grande aborrecimento, pensou Victor Alexandre, que já se imaginava sofrendo de dispepsia crônica caso os destemperos do outro se repetissem todos os dias. Na defensiva para afastar o pior, o professor passou a dar respostas curtas, daquelas que desencorajam qualquer conversa e que anunciam a disposição de se pôr um ponto final no tema em discussão. Mas Dalmo era de uma persistência implacável, explorando assunto atrás de assunto. Vez por outra, levantava a voz mais do que o necessário, atraindo a atenção da vizinhança. Era uma situação constrangedora. Em determinado momento, Epaminondas, sentindo um cheiro de crise no ar, acorreu, diligente como um bombeiro num incêndio, pronto a zelar pelo bom nome da casa. Jogou água na fervura, apagando as chamas e, num trabalho de rescaldo, providenciou uma troca de assunto. - Que arranhão é este na sua mão, Dalmo? - Foi minha gata ontem à noite - falou com brandura. - Machucou-me sem querer, porque estava muito irritada; minha mulher e ela vivem de birra, fato que deixa a bichinha muito aflita. A tigrada é muito esperta e travessa, fazendo diabruras que a patroa não admite. - Sua voz alterou-se. - Ela jura que a gata quer aborrecê-la e revida tudo com gritos e maus-tratos. Quanto mais ela estrebucha, mais a tigrada faz das suas. Ontem a pobrezinha pulou-me em cima, para livrar-se de uma vassourada, e enfiou-me as unhas sem intenção. Gostaria que as duas se enten- 43 dessem. Afinal, formamos uma família: trato a minha gata como se fosse gente. Era um outro Dalmo falando. Perdera o ar briguento e sulcara a testa em preocupação. O professor interessou-se, achando divertido aquele entrevero entre marido, mulher e gata. -A patroa é muito intolerante e rabugenta; discute por tudo e por nada, e a tigrada não suporta esse tipo de comportamento. É uma gata muito altiva e gosta de tranqüilidade. Epaminondas ficou surpreso com as lamúrias do reclamista. Fora apresentado à esposa de Dalmo, na porta do Azul, quando este levara a gata para que ele a conhecesse; a senhora parecera-lhe uma pessoa tranqüila e bem diferente da fujona. Nunca imaginara que aquele falastrão tivesse problemas domésticos, nem que sua cara- metade fosse tão terrível. Deu logo um abalizado e solidário palpite: - É como um barril de pólvora. Mulheres mudam de comportamento facilmente e podem ficar cheias de nãome-toques. Aliás, não se pode confiar na conduta feminina. Os pobres maridos sofrem o diabo com suas inconveniências. Eu acho que... Dalmo interrompeu-o sem qualquer cerimônia. Era preciso continuar a exposição para aproveitar a simpatia conquistada. - Minha esposa era muito dedicada quando nos casamos. Eu vivia como um rei. Depois, vieram as mudanças; uma aqui, outra ali e acabou-se o meu sossego. Quando levei a gata para casa, foi um deus-nos-acuda. Ela disse que não tinha tempo para cuidar de bicho. Eu adoro gatos. Tive muitos quando era menino. Ganhei a tigrada e não ia passá-la adiante como se ela fosse um cão sarnento. Disse que eu mesmo encarregar-me-ia dela e a bichinha ficou. 44 - E o senhor cumpre o trato de cuidar da gata? perguntou Victor Alexandre, interessado naquela faceta da personalidade de Dalmo. - Lógico, mesmo quando retorno exausto, depois de andar o dia inteiro de botica em botica. - Isto é como uma tática de guerra, como um barril de pólvora - aparteou Epaminondas, muito atento à conversa. - Pois é! Um chefe de família precisa de conforto e tranqüilidade. Quer um jantar gostoso, a cadeira favorita para descansar os ossos e meditar em paz, silêncio para dormir. Mas d. Glorinha e d. Naná ficam implicando uma com a outra, deixando-me louco. Isso lá é maneira de se tratar um homem? Victor Alexandre deu corda ao queixoso. Melhor ouvilo naquela diatribe do que distorcendo tudo o que lhe era dito. com ele, o melhor era não polemizar. - O senhor está certo; um sujeito responsável merece um bom descanso depois de um dia de trabalho. - É como diz, senhor professor. Ainda bem que nos entendemos. Epaminondas também deu o seu apoio, discursando sobre a infelicidade dos homens que escolhem as mulheres erradas para casarem-se. Dalmo ouvia embevecido. - Eu tento manter a calma e contornar os lundus, mas às vezes não é possível ser paciente e compreensivo. Vejam d. Glorinha, por exemplo: ela possui manias como qualquer um e, no fundo, não tem culpa se tomar conta de casa é uma tarefa desgastante. D. Naná, por sua vez, é geniosa e gosta das coisas a seu modo. Acabam sempre brigando. A hora da ceia é um padecimento: gritaria das duas e comida insossa e fria. Muitas noites eu saio a buscar 45 alguma coisa de comer, lá com a d. Tetéia, senhora distinta que fornece refeições. Está tudo bem para d. Glorinha, que adora comida de pensão; d. Naná tem um estômago de ferro e devora o que vier. Eu vou acabar tendo um nó nas tripas. A patroa diz que é tudo culpa minha, que eu sou um patife. Diga-me, professor Ale: eu sou um patife? Victor Alexandre não sabia de que modo responder para evitar polêmicas como a da véspera. Estava muito propenso a concordar com d. Glorinha e poderia, até, argumentar a seu favor, mas arriscar-se-ia a atrair a ira de Dalmo; assim, optou por descartar-se da pergunta e respondeu com um conselho: - Às vezes, o certo é extirpar o mal pela raiz. Tomar uma atitude drástica. O senhor disse que d. Glorinha e d. Naná vivem às turras, criando-lhe muitos problemas. Pois bem, sei que não será fácil, mas acho que devia livrar-se de d. Naná. Dos males, o menor. - O senhor acha mesmo? - Um professor sabe o que diz - sentenciou Epaminondas. Uma chuvarada de ensopar os ossos e fazer cachorro beber água em pé acamou Victor Alexandre, que não apareceu no Azul por quatro dias. No quinto, ele reapareceu. Mal entrou, descobriu Dalmo alvoroçado e enfeitado como um pavão. O reclamista, assim que o viu, agitou freneticamente os braços como pás de moinho em dia de ventania. Era impossível ignorá-lo. - Como vai, sr. Dalmo? - Eu vou bem, mas o senhor professor parece mal: está muito abatido. 46 - Passei os últimos dias de cama com febre alta e inflamação de garganta. - Isso é mal! - exclamou o outro, compungido. Depois, seu rosto iluminou-se. Abriu a maleta e despejou alguns papeluchos na toalha axadrezada. - Raiz de altéia triturada. É um santo remédio para infecções de garganta. Ótimo para gargarejos! Não recuse. Hoje é a minha vez de prestar-lhe um favor. Nisso, Epaminondas apareceu. Materializou-se feito um morto assanhado e sentou- se satisfeito. - Prazer em vê-lo, senhor professor. Dalmo já lhe deu a boa notícia? - Eu ia contar-lhe quando você chegou - os dois trocaram um olhar cúmplice. - Professor Ale, minha vida está salva: segui o seu conselho e livrei-me de d. Naná. Coloquei estricnina em seu leite; foi menos fácil do que eu supunha. No primeiro momento, ao escutar sua sugestão, fiquei surpreso e confuso, mas, depois, Epaminondas insistiu que o conselho era muito bom e que não deveria ser desprezado. Um professor conhece a vida, ele disse. Como eu não soubesse de que modo livrar-me dela, o nosso amigo deu-me a idéia do veneno e, para deixar-me tranqüilo quanto ao resultado, fez-me uma confidência cabeluda sobre a própria esposa. É um sujeito batuta esse Epaminondas. Eu ainda meio zonzo e ele dando risada, falando que a situação era como uma tática de guerra e como um barril de pólvora. O senhor professor precisa ver: minha casa está uma tranqüilidade. De noite, visto meu pijama, calço os meus chinelos e boto d. Glorinha no colo. A gata adora ficar enroscada nos meus joelhos. Agora, são duas as fujonas. *** 47 Leónie, com as suas roupas exageradas e barulhentas de cocote à francesa, levantava rumor quando lá ia e punha expressões de assombro em todas as caras. O seu vestido de seda cor de aço, enfeitado de encarnado sangue de boi, curto, petulante, mostrando uns sapatinhos à moda com um salto de quatro dedos de altura; as suas luvas de vinte botões que lhe chegavam até aos sovacos; a sua sombrinha vermelha, sumida numa nuvem de rendas cor-de-rosa e com grande cabo cheio de arabescos extravagantes; o seu pantafaçudo chapéu de imensas abas forradas de veludo escarlate, com um pássaro inteiro grudado à copa; as suas jóias caprichosas, cintilantes de pedras finas; os seus lábios pintados de carmim; suas pálpebras tingidas de violeta; o seu cabelo artificialmente louro; tudo isso (...) ALUÍSIO AZEVEDO, O cortiço, Rio de Janeiro, Ediouro, 1996, 30. ed., p. 70. DALMO Dalmo dos Santos, reclamista e vendedor de extratos, ácidos, pós, carbonatos e afins, para lojas, boticários e médicos, brasileiro, maior, casado, pilantra e transgressor. Sujeito sempre maldormido, suarento e catingoso, de unhas sujas e trajo amarfanhado. De índole mesquinha, é desprovido de qualquer compromisso com os sentimentos mais elevados do homem. Filho de imigrantes do Velho Mundo, um rebento entre muitos, foi menino birrento e egoísta, incapaz de repartir o que quer que fosse, escondendo brinquedos e balas com a avareza de um banqueiro. Preferia privar-se a dividir. Avaro com as coisas, mas pródigo com palavras, falava mais do que o necessário, discutindo por tudo e por nada, sempre procurando ostentar sua retórica mal-acabada. Grosseiro, comia de boca aberta, rolando a comida salivada para cima e para baixo, de bochecha a bochecha. Era dado a flatulências malcheirosas, coisa que absolutamente não o encabulava, e revidava as caretas dos circundantes dizendo: "os incomodados que se mudem". Achava-se um sujeito das Arábias. Estróina e exibido, desde criança exigia aprovação irrestrita aos seus mais medíocres desempenhos e atividades. Criatura vulgar, contador de anedotas eivadas de obscenidades e dando-se muito bem com a escória do bairro, era naturalmente discriminado pelas famílias decentes, principalmente por aquelas com moças casadoiras. Fora uma criança volumosa, maior do que os seus pares, que concretizava suas vontades através do jeito belicoso e da voz precocemente grossa e áspera. Rapazote, não tinha noção das conveniências sociais e cavucava o nariz em público sem qualquer cerimônia. Costumava dizer o que lhe dava na telha, criando situações constrangedoras das quais nem se apercebia. Incapaz de assimilar novos hábitos, fez-se homem com as mesmas características desagradáveis de rapaz. Abandonou o lar paterno muito jovem e, sem medo do futuro, lançou-se à vida, desabusado e com bastante pressa. Passou por várias ocupações, sem jamais achar que estivessem à sua altura, nunca admitindo sua incapacidade para desempenhá-las. Os colegas de trabalho consideravam-no um bruto, mas só falavam à socapa por razões que o leitor bem pode imaginar. Ninguém de bons costumes queria-o como amigo, e ele gastava as noites e os feriados em pândegas pelas tascas e lupanares, sempre em companhia de vadios tão desalinhados quanto ele. Morava em um sórdido quarteirão do Centro, dividindo um quarto bolorento em casa de cômodos, numa rua decrépita onde amontoavam-se pardieiros encardidos; rua madrugadora que acordava ainda no escuro, rendida às conversas estridentes de janela a janela, aos pregões dos ambulantes, aos ruídos dos burrinhos-sem-rabo rodando nos paralelepípedos do calçamento, aos gritos das crianças e ao choro dos bebês; rua amortalhada no cheiro 52 acre da miséria urbana, muito pior do que aquela outra que, nos arrabaldes, disfarça-se no meio de flores e de canteiros. O cortiço de Dalmo era o sobrado mais dilapidado e pulguento da rua, e seu dormitório, no andar de cima, vivia infestado de percevejos e baratas. A preciosidade do cômodo era uma janela donde enxergava-se um beco que terminava no largo preferido da chinfrineira. Lá, nas noites de sábado, ebriosos seresteiros dedilhavam velhos violões, tirando acompanhamentos dolentes para os seus queixosos versos de pé quebrado, enquanto rufiões e damas de má reputação trocavam graçolas e carícias. A viela era o caminho de Dalmo rumo aos antros onde se reunia a caterva e, ao cruzar o largo na hora da seresta, o estróina atormentava os cantadores com facécias e provocações. Nas manhãs de domingo, ele escancarava a janela e curava a carraspana com bicarbonato e ar; depois, postava-se no parapeito com os sovacos cabeludos à mostra, exibindo-se às moçoilas numa encardida e indecente camisa de cava pronunciada. Não fosse o notório caso com a irmã do fuzileiro, ele poderia ter continuado no pardieiro a vida inteira e passado ao largo da casa de pasto de Epaminondas, mas engraçou-se com a moça, e o naval, exímio levantador de halteres e campeão da modalidade no quartel, chamou-o às falas; e só não chegaram às vias de fato porque Dalmo prometeu reparar o malfeito o mais rápido possível, apenas o tempo de correrem os banhos, garantira. Entretanto, a idéia do velhaco era arrepiar carreira naquela mesma noite, já que não tinha a intenção de cumprir o prometido, porque homem algum casa-se com criatura daquela laia. Por outro lado, qualquer confronto sangrento com o fuzileiro 53 seria uma temeridade e o melhor a fazer era pôr sebo nas canelas. Escafedeu-se alta madrugada, com os sapatos na mão, pisando macio com as meias furadas, livrando-se ao mesmo tempo do desafeto e do aluguel atrasado. Refugiou-se num bairro acanhado, porém livre das amofinações do Centro. Lugar sem paralelepípedos e ainda iluminado a lampiões de azeite, onde o bonde chegava quatro vezes ao dia e as comadres pegavam a fresca na calçada, enquanto a pirralhada pulava amarelinha e empinava pandorgas. Tomou um quarto em casa de família, contando pagá-lo com os ganhos do carteado, e achou-se suficientemente escondido da sanha do fuzileiro. O senhorio, velho bilontra que fazia das suas pelas costas da digníssima esposa, senhora austera e de parcas palavras, identificou-se prontamente com aquele inquilino finório que adivinhava ser vinho de sua mesma pipa e protegeu-o como a um cúmplice, indicando-lhe os locais de farra grossa e as casas das mais competentes marafonas. Sem perda de tempo, Dalmo agrupou-se aos boêmios locais, esqueceu-se do fuzileiro e das tascas antigas, integrando-se à nova realidade que prenunciava um futuro bem do seu agrado. Para não se indispor com a senhoria, matrona de rezas e ladainhas, ele moderou alguns maus hábitos, chegando até a soltar os habituais traques no quintal, na tentativa de não empestear a casa com seus gases malcheirosos. Mesmo assim, a velhota tinha lá suas reservas quanto aos modos do moço, mas não se encontrava em condições financeiras de escolher residentes, preferindo fazer ouvidos de mercador às mazelas do chulo pensionista. Assim, Dalmo abancou-se satisfeito. O trato combinado entre as partes era o pagamento do quarto a cada quinze dias. No primeiro mês, ele honrou 54 o compromisso, bafejado pela sorte nas casas de tavolagem, mas, às vésperas do terceiro acerto de contas, encontrou-se de algibeira vazia e sem vontade de escapulir no meio da noite, mesmo porque, d. Neném chaveava portas e janelas, escaldada que estava pelo comportamento sorrateiro de um inquilino anterior. Na contingência, abandonado por reis e curingas e depois de inútil argumentação com a senhoria intransigente, Dalmo viu-se obrigado a procurar emprego. Um emprego de preferência a um trabalho, pois que sabia muito bem da diferença e não tinha a mínima intenção de deixar-se trancar em algum cubículo abafado às voltas com números, estoques ou tabelas. Sem padrinhos para encontrar o primeiro em alguma repartição pública, onde pendurasse o paletó e fosse tratar da vida, teve que se conformar com o segundo, já que os pigarros de desagrado de d. Neném tornavam-se cada vez mais acintosos e também, verdade seja dita, porque não se cai na vadiagem com a algibeira leve de tostões. Há sempre fatores determinantes na história de cada um. Na vida de Dalmo, o mais significativo foi o tino para negócios de um determinado cidadão, proprietário de uma farmácia no Centro, que manufaturava e vendia medicamentos, bem como fornecia pós e extratos para boticários menos inventivos. Na ânsia de bem servir e de enriquecer, o homem tivera a progressista idéia de contratar reclamistas que vendessem seus produtos pela cidade afora. Dalmo, numa penúria próxima à indigência, leu o reclame de "procura-se" e candidatou-se ao posto. Sua palração compulsiva servia na medida para tal função, e ele foi admitido apesar das unhas sujas e do farto bodum. Visitar possíveis compradores e aliciá-los com amostras grátis e com brindes de almanaques e de folhinhas de 55 calendários, caía-lhe como uma luva. Sua notória falta de cerimônia abria portas e demolia recusas, e ele rapidamente adaptou-se à rotina. A vida pelas ruas, afastado dos escritórios e longe dos olhares fiscalizadores de chefes e de informantes, foi-lhe uma bênção. Pela primeira vez, ele gostou daquilo que fazia e logo se harmonizou com seus óxidos e fosfatos. Não que se lhe abrandasse o temperamento com a nova responsabilidade; ele continuou explosivo e briguento, preservando todos os antigos defeitos, aperfeiçoando-os até, e adquirindo outros nos quais jamais pensara; enquadrou-se perfeitamente bem à mediocridade do seu dia-a-dia, freqüentando lugares encardidos e bebendo pingas duvidosas. O fato que desestabilizou essa vida harmoniosa foi a morte do velho bilontra. O farrista acabou, de modo imprevisto e constrangedor, depois de uma esbómia e, para maior raiva da viúva, na companhia de Dalmo. O feito azedou de vez o relacionamento inquilino-senhoria e esta, acobertada pela nova condição civil que lhe granjeava todas as simpatias e, também, de posse de um razoável pé-de-meia que o falecido mantivera escondido numa caixa de sapatos, deu-se ares de arrogância e destravou a língua em violento palavrório contra o vendedor. Assim, na missa de sétimo dia, no momento mesmo dos pêsames, Dalmo tomou ciência do seu despejo inapelável e sem delongas. Para não ficar no olho da rua, foi obrigado a mudar-se em vinte e quatro horas. Estava aí, pois, o determinismo fatídico. Mal acomodado no quarto seguinte e sem os privilégios de café da manhã e janta, Dalmo resolveu casar-se para remediar o transtorno. Onde come um, comem dois e, além do mais, uma esposa econômica poderia até espicharlhe a módica remuneração. Escolheu como prometida uma 56 donzela que conhecera no bonde e que, num fim de tarde chuvosa, cerimoniosamente repartira com ele seu minúsculo e velho guarda-chuva. O gesto era indicativo de pessoa prestativa e pronta a servir, alguém tal como lhe convinha, mesmo se desprovida de requebros e de faceirices. Ouvira-lhe a fala mansa, reparara-lhe o jeito caseiro, os olhos meigos e decidira-se. Esperou-a no ponto do bonde no dia seguinte, sentaram-se lado a lado e saltaram juntos. A moça, cujo medo de ficar para titia a levava a confundir sapos com príncipes, deixou-se enganar por aquele saparrão- rei. A fanfarronice de Dalmo passou por espírito brincalhão; os modos rudes e a inhaca, por masculinidade, e o pendor por discussões sequer foi notado. Tiveram um noivado curto e sem arroubos, ela tentando adivinhar-lhe os desejos para satisfazê-los prazerosa, e ele sentindo-se como um verdadeiro monarca. O casamento, com a igreja quase vazia de convidados e com minguada chuva de arroz lançada por Rita, uma grande amiga da noiva, foi desenxabido e rápido. Passaram a lua-de-mel em casa, com o mimado consorte refestelando-se de chinelos e felicitando-se pela acertada escolha. Seguiram-se seis meses de bonança, depois uma perigosa calmaria e, finalmente, a borrasca. O mau tempo chegara na calada, sem grandes ventos que o anunciassem; nasceu dos pequenos arrufos diários, nutriu-se de bate-bocas e instalou-se insidioso e letal. Estragou-se a convivência, deteriorada sem remissão por queixas, ressentimentos e ofensas. A mulher compreendeu que fora lograda naquele acasalamento, mas não teve competência para modificar a situação e foi-se deixando ficar, limitando-se a revidar os ataques com as armas que possuía, fustigando o inimigo na mesa e na cama. Tornou-se fria e desmazelada, temperando seus dias com resignação e mágoas e aprendendo, depressa, a administrar seu infortúnio. 57 Dalmo, por sua vez, saía cedo e voltava tarde, só depois de cair na farra; comia irritado a insossa ceia à sua espera e distraía o mau humor sentando-se ao portão. Por sorte, descobrira, num bairro próximo, a Casa de Pasto Azul, que servia pratos dentro das suas posses. Ali, empanturrava o estômago para enfrentar as agruras da janta sem gosto, quando, mais por pirraça do que por fome, ele criava confusões que deleitavam a vizinhança. Às vezes, batia a porta e saía intempestivo para a pensão de d. Tetéia, à procura de uma gororoba do seu agrado. Sabia que estaria perdido sem os almoços do Azul e achava a casa uma beleza; gabava-lhe a boa comida e a bebida menos batizada do que nas espeluncas que freqüentava. Um lugar onde ele se regalava e era tratado com apreço, apesar de não ser um cliente gastador. Entretanto, compensava as modestas despesas sabujando o proprietário, sr. Epaminondas Pereira. O trabalho de vendedor aguçara-lhe a capacidade de avaliação e ele percebera, desde logo, que o português tinha um fraco pelos fregueses bajuladores, e não lhe custava satisfazer a vaidade do homem. Elogiava-lhe a estatura e fazia-se de cego em relação à barriga saliente e à papada em cascata, sendo por isso recompensado com porções mais generosas de compotas. Há meses ele freqüentava o Azul, tempo mais do que suficiente para conhecer-lhe as intrigas e os segredos. Sabia do passado triste do português, abandonado pela mulher que fugira sem deixar bilhete, depois de tê-lo seguidamente enfeitado com grandiosos chifres. Era uma história antiga, jamais mencionada por empregados ou clientes, e da qual se inteirara pela bêbada indiscrição de um freqüentador que presenciara o acontecido. Epaminondas escondia bravamente as suas dores e quem o visse circulando por entre as mesas a cumprimentar a clientela, 58 jamais imaginaria sorte tão desditosa. O homem era um bamba; um bamba engraçado que adorava dizer: "É como uma tática de guerra; como um barril de pólvora." Falava o dito por dá cá aquela palha, sem explicar-lhe o sentido. Também, que importância tinha? No Azul, Dalmo conheceu um cavalheiro: Victor Alexandre Matoso, professor num liceu ali perto. O mestre, quando lá estivera pela primeira vez, encaminhara-se direto para a sua mesa, pedira licença e sentara-se com muita educação. Depois, dissera em voz baixa: - Esta é a primeira vez que aqui venho. Como é a comida? - Melhor do que a da minha casa. Servem uma ótima rabada com taioba e abóbora; Vou pedi-la para nós dois. Seguira-se a apresentação de praxe: - O meu nome é Dalmo, qual é o seu? A resposta provocara-lhe muitas risadas porque Victor e Alexandre, em sua opinião, eram dois nomes que não combinavam. Deselegantemente, informou ao professor que ia darlhe um apelido: Ale. Depois desandara a fazer perguntas, bisbilhotando a vida do outro. Quis saber seu estado civil, se tinha filhos, onde morava e para quem trabalhava. - Dou aulas de História num liceu aqui perto - respondeu o professor numa irritação que passou despercebida. - Que história você ensina: a da Carochinha, ou de Trancoso? - Dalmo achou-se deveras espirituoso e surpreendeu-se ao ver o professor aborrecer-se com o gracejo. Há muita gente sem senso de humor, pensou. Mesmo assim, fez outras perguntas, pois detestava comer calado. Quando sua mulher reclamava que ele falava de boca cheia, respondia que mastigava com os dentes e falava com a garganta. Contou a Victor Alexandre a implicância da esposa. 59 - O professor não concorda que muita educação e finura é coisa para moças ou tipos adamados, e não para alguém de tanta responsabilidade como este seu amigo? Não houve resposta. O silêncio não desconcertou o vendedor, que iniciou imediatamente uma dissertação sobre a masculinidade em geral e a sua em particular. Depois, abruptamente, inquiriu: - O senhor gosta de gatos? Victor Alexandre exasperou-se com a pergunta sem contexto. - Não, não gosto! - resposta curta e exclamativa, na esperança de mudar o rumo da conversa disparatada. Dalmo, entretanto, não cedia com facilidade e costumava ir até o fim nas suas diatribes, sem saber quando parar. - O senhor está brincando comigo, não está, professor Ale? Eu adoro gatos, são ótimas companhias. Tenho uma tigrada que é uma gracinha. Seguiu-se um pequeno mas veemente entrevero sobre gostar ou não de gatos. Acostumado como estava a diários e inconseqüentes bate-bocas, o vendedor pasmou-se com a reação do outro, achando-a muito sem propósito. - O professor é um sujeito brigão!... Victor Alexandre engolia a refeição com a rapidez de um raio, procurando abreviar ao máximo aquele almoço desastroso. Dalmo era pegajoso e grosseiro, uma calamidade, tal como a fome e a peste. O sujeito era bubônico. Imediatamente após a última garfada, o professor levantou-se, despedindo-se: - Boa tarde, sr. Dalmo! - Espere um pouco, mestre... Victor Alexandre nem se voltou. 60 "Há pessoas que não sabem aproveitar os bons momentos da vida", pensou o vendedor. Aquele homem era um deles. Por que viver tão apressado? Ele, Dalmo, não se amofinava à toa; só perdia as estribeiras em casa e com carradas de razão. O professor ia acabar azoretado caso não se modificasse. Precisava alertá-lo sobre a gravidade do problema quando almoçassem juntos no dia seguinte. Depois, sem algo melhor que fazer, debruçou-se sobre um homem da mesa vizinha e despejou-lhe, no ouvido, uma anedota picante. A seguir, dedicou a Victor Alexandre um último pensamento: "Gosto desse professor; ofende-se à toa, mas eu gosto dele." Dalmo chegou em casa irritado com o dia ingrato: apenas uma pessoa mostrara-se interessada nos seus remédios; as outras riram das suas histórias, mas fizeram ouvidos moucos quanto aos pedidos de compras. Fora um tempo perdido. Ele entrou batendo a porta, trombudo como um elefante. Mal dirigiu-se à mulher. A gata tigrada, que espiava a sala do alto do guarda-louças, miou satisfeita e pulou para o seu colo. - Estou vendo que você está com saudades minhas, gatinha linda! - falou em voz macia feito seda, arrastada e tatibitate. - Eu também senti a sua falta. - Pare com os dengos e vá lavar a poeira da rua, Dalmo! - Calma, mulher! Pendure o mau humor no cabide e prepare a minha janta. - Que janta? A sua querida tigrada não me deu sossego para nada: primeiro, quebrou a minha jarra de estimação, aquela de flores que Rita me deu no casamento; depois, virou a garrafa de leite e lambuzou todo o chão. Pensa que acabou? Pois sim! Comeu o ensopado que era justamente o seu jantar e empoleirou-se no 61 guarda-louças, miando sem descanso. Essa gata é uma peste! Dalmo não se conformou com a falta do jantar naquela noite e, para deixar seu desprazer bem claro, começou mais uma briga, uma discussão feia com recriminações e infâmias; a altercação degenerou em violência física, com safanões e tabefes. O homem rilhou os dentes e investiu como um cachorro bravo. A mulher arquejou sem entregar os pontos, enfrentando a sova com extraordinária valentia. Chegou mesmo a unhá-lo. Engalfinharam-se até esgotarem o fôlego e depois derrearam-se exaustos, cada qual no seu canto, ela com o lábio sangrando e um olho roxo, ele de camisa rasgada e peito unhado, surpreso com a reação encontrada. Olharam-se ferozes, desembaraçados de qualquer remorso e ainda raivosos, mas cansados demais para prosseguirem. Depois, ela foi para o quarto e ele, para o banheiro. A água do chuveiro e algumas observações obscenas acalmaram-lhe o sangue. Já com o cérebro clareado, ele raciocinou sobre o acontecido: a mulher o enfrentara de igual para igual, quando geralmente apanhava calada e encolhida, refugiando-se depois silenciosamente na cama, vomitando bílis e medo, sem forças ou vocabulário para fazer-lhe frente. Desavergonhada!... Onde fora parar a sua tão apregoada educação? Debaixo da poeira da casa? Cretina! Ela que se arranjasse; ele ia sair e divertir-se. Acordou no dia seguinte com a boca amarga e os olhos injetados. Resmungou qualquer coisa, acariciou a tigrada e saiu intempestivo para tomar uma média com pão num boteco qualquer. Visitou dois consultórios médicos e três boticas naquela manhã. Fez negócios nos cinco lugares. Contou muitas anedotas e ouviu algumas; gracejou com as moças 62 que passavam e marcou encontro com uma morena de truz, espevitada e elegante. Quando o estômago roncou, ele foi para o Azul. Tinha um encontro com o professor. A casa estava cheia e ele ficou numa mesa no fundo, atento ao entra-e-sai para não perder a chegada do mestre. Viu-o assim que apareceu e imediatamente levantou-se, agitando os braços para chamar-lhe a atenção. Notou que Epaminondas estava a indicar-lhe a sua mesa e ficou satisfeito quando Victor Alexandre rumou em sua direção. - Como vai passando, professor Ale? Acho que não me viu escondido aqui atrás. - bom dia, sr. Dalmo! - Está pronto para outra boa conversa, mestre? Que foi, o gato comeu sua língua? Já sei! A mudez é fome. Mas espere até ver o que temos hoje: peito de vitela com mariscos; coisa para encher-se a pança! Pinçou Victor Alexandre pelo braço e fê-lo sentar-se. - O professor leu sobre o crime do Campo de Santana? A velha estrangulada? - Não gosto de violência e prefiro um bom livro ao sensacionalismo sangrento que os diários teimam em publicar. As pobres vítimas são vilipendiadas e... - Vítima coisa nenhuma, a danada da velha era uma megera - interrompeu Dalmo com maus modos, iniciando uma peroração contra o mundo e atraindo olhares de desaprovação dos vizinhos. Depois, discutiu com Victor Alexandre por algo de somenos importância e só foi contido pela chegada oportuna de Epaminondas. O proprietário, para garantir o bom nome do estabelecimento, apressou-se em pôr panos quentes na contenda, temeroso de que o exaltado vendedor passasse das medidas, tumultuando o salão. Disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça: 63 - Que arranhão é este na sua mão, Dalmo? - Foi a minha gata ontem à noite; ela ficou muito agitada porque minha esposa e eu tivemos uma discussão terrível. A bichinha é muito sensível e arranhou-me sem querer. Mas é uma machucadura leve; muito pior está o meu peito unhado pela patroa. Gastei quase um vidro de mercurocromo. Vendo que conseguira o interesse de Victor Alexandre, Dalmo continuou a todo o vapor, desfiando seus problemas familiares sem omitir detalhes. Abriu o livro e contou a história de fio a pavio. Não poupou a mulher. Insistiu na sua intolerância, principalmente com a pobre da tigrada, tão pequenininha e indefesa. - Lá em casa, tudo é por culpa da tigrada, porque ela fez isso ou fez aquilo. A patroa não a tolera. Vive acamada por causa da bichinha, ela diz. A gatinha é uma boa desculpa para ficar deitada sem ter que ocupar-se com os trabalhos domésticos. - É como uma tática de guerra, como um barril de pólvora - filosofou Epaminondas. Dalmo não fez caso do estranho aparte e começou uma dissertação sobre a infelicidade dos homens que se casam e descobrem, depois da troca de alianças, que as noivas-fadas são, na realidade, bruxas desalmadas. Epaminondas concordava, deliciado e jubiloso. O vendedor, muito satisfeito com a receptividade do discurso, retomou o assunto esposa e gata, finalizando de maneira dramática: - Um homem trabalhador não pode viver num inferno como esse. Victor Alexandre mantivera-se calado, achando prudente guardar suas opiniões para si próprio, já que desconhecia a realidade e sabia, muito bem, que não se deve raciocinar de maneira simplista, atentando apenas para a 64 aparência dos fatos; ninguém age simplesmente por agir, por opção ou vontade descomprometida das circunstâncias. Tudo o que se faz é determinado por uma série de fatores que não podem ser ignorados e que são relevantes para um julgamento justo. A esposa de Dalmo era daquele jeito por causa do marido desagradável, da gata irritante, do precário ambiente doméstico, do seu meio social, da educação etc, etc. Qualquer pessoa, exposta aos mesmos fatores e nas mesmas circunstâncias, agiria feito ela; até o próprio Dalmo. Mas o homem desconhecia isso e não seria ele, Victor Alexandre, a iniciá-lo na doutrina.* Estaria, aí, outro motivo de intermináveis discussões e mal-entendidos. - O professor acha que um homem pode viver num tormento como esse? - Eu? -Victor Alexandre procurou ganhar tempo antes de responder; queria uma fala inócua que não lhe trouxesse problemas. - Eu acho que um homem merece o seu descanso depois de um longo dia de trabalho, porém... Dalmo adorou aquela opinião e atalhou rápido. - Descanso é coisa que eu não tenho. Ando feito um condenado, suo como um cretino e, quando chego em casa, encontro d. Naná e d. Glorinha às turras fazendo a maior arruaça. "Onde está o meu jantar?", pergunto. "Não fiz por culpa da gata", a patroa responde. Lá vou eu buscar comida na pensão da d. Tetéia. D. Glorinha adora a comida da velhota e come muito satisfeita; d. Naná parece um avestruz e devora o que aparece. Eu é que sofro com a banha ordinária. vou arrebentar e sangrar como um porco, botando as tripas para fora. É um verdadeiro inferno. O que é que eu devo fazer, professor Ale? * A doutrina de Taine, já referida. 65 Victor Alexandre viu a ansiedade estampada no rosto de Dalmo e teve uma certa pena do sujeito que, afinal, também era fruto das circunstâncias. Qualquer julgamento sobre aquele assunto era muito difícil. Viu o olhar súplice do vendedor e, a despeito da antipatia que ele lhe inspirava, resolveu ser tolerante e dar-lhe um conselho que seria bom para os três implicados no caso, ao mesmo tempo que poria uma pá de cal naquela diatribe desagradável e evitaria mais confusões durante o resto do almoço. Pigarreou e, escolhendo cuidadosamente as palavras para não melindrar o outro, falou numa voz pausada e mansa: - Quando a situação é crítica, o ser humano precisa ser objetivo e tomar a resolução mais adequada para contorná-la, mesmo à custa de grandes sacrifícios. Se d. Glorinha e d. Naná não se entendem e infernizam a sua vida, o bom senso manda que você se livre de d. Naná; é a melhor maneira de arranjar as coisas. Sem ela, tudo ficará tranqüilo. - Muito bem falado, professor! - aparteou Epaminondas, abrindo o rosto num sorriso. A expressão atônita de Dalmo mostrou a sua enorme surpresa. - O professor realmente acha isso? É esta a solução para os meus problemas? Victor Alexandre resfriou-se e não apareceu no Azul por alguns dias, preferindo almoçar mais próximo do liceu para poupar-se da caminhada. Quando retornou, foi imediatamente descoberto por Dalmo, que se levantou e fez frenéticos sinais para chamar-lhe a atenção. Nem preci- 66 sava: trajado feito um janota provinciano, o vendedor atraía todos os olhares. Foi impossível fingir que não o via. Acenou-lhe, sentando-se junto aporta. O outro fez-lhe mais sinais, indicando que estava à sua espera. Victor Alexandre levantou-se de má vontade e dirigiu-se à mesa de Dalmo. Foi euforicamente saudado e recebido como um filho pródigo, abraçado e quase beijado. O vendedor parecia um cachorro feliz pulando em volta do dono. Sua ausência de três dias não justificava tantas saudades e arroubos, pensou o professor. Reparando no abatimento e na voz fanhosa do recém-chegado, Dalmo brindou-o com amostras grátis contra gripes e tosses, dizendo-lhe que não admitiria recusas; sentia-se em dívida para com o mestre, e os remédios eram um pálido agradecimento. Epaminondas, que se juntara a eles, perguntou com voz cúmplice: - Dalmo já lhe deu as boas novas? - Do que é que vocês estão falando? Dalmo fez um ar misterioso e, numa voz baixa e discreta que não combinava com ele, confidenciou: - Meu caro professor, o senhor não sabe o bem que me fez. Segui o seu conselho tal e qual. Livrei-me de d. Naná. "Então era isso", pensou o professor. A euforia de Dalmo tinha a ver com a ordem estabelecida em sua casa. - Fico muito feliz, Dalmo. Você fez muito bem. O vendedor riu satisfeito. - Se não fosse pela sua sugestão!... Epaminondas também ajudou, revelando-me um segredo e tanto. Eu tive um pouco de receio em seguir seu conselho, mas ele disse que eu devia ouvi-lo, porque professores são homens inteligentes; falou que diante de tantos aborrecimentos e descalabros, o melhor a fazer era realmente livrar-me dela. Não havia outra escolha. Então, sugeriu que eu pusesse estricnina em seu leite. 67 O coração do professor apertou-se. Dalmo era um desalmado: havia matado a gata, em vez de passá-la adiante. - E sua esposa, não disse nada? - perguntou, compungido. - Ela não teve tempo: bebeu o leite de um só gole, igualzinho à esposa do Epaminondas. Victor Alexandre estava aturdido. - Então, d. Glorinha é... - A minha gata, claro! O professor precisa ir lá em casa. A tigrada enrosca-se nos meus joelhos e ficamos os dois na maior tranqüilidade, graças ao seu bom conselho, meu amigo. *** A filha mais nova, de quem vou falar, e que tinha o nome esquisito de Emmeline pronunciado Emlin - tinha quinze anos quando tratei da mãe. Olhos de lebre, uma boca que se abria a cada instante, e anéis de cabelos castanhos repuxados para trás da fonte espantada e cheia de protuberâncias. Magra, caminhava de cabeça um pouco pendida para a frente e movimentando de tal forma as pernas e os pés compridos - um dos quais voltado para dentro parecia querer encarar o outro - que o seu modo de andar tinha algo de pesado e rústico. (...) (...) E Emlin vivia sempre desalinhada e mal calçada. Um lado do vestido curto em demasia caía sempre mais do que o outro; as meias tinham sempre pelo menos um buraco, e os seus chapéus - chapéus esquisitos - parecia estar prestes a desferir vôo. (...) Tinha sempre aquele ar de cão perdido (...) JOHN GALSWORTHY, "A criança do pesadelo", in Mar de histórias, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 3. ed., 1988, p. 200-201. 68 GLORINHA Há acontecências na vida que, de tão incríveis, não parecem parte daquilo que convencionamos chamar "realidade", e ficam mais plausíveis se olhadas como enredos orquestrados para teatros e refletores. A história que vamos contar, embora verdadeira, inclui-se na categoria dos relatos insólitos, estando, portanto, bem próxima dos delírios dos palcos, merecendo assim prólogo, cenas, atos e entreatos. Não se desespere o leitor com as alternâncias e os entremeios ao longo da narrativa; a intenção é esclarecer certos detalhes para que os acontecimentos fiquem mais cristalinos. Deixo-lhe, outrossim, a decisão de categorizar a encenação como bem lhe aprouver, seja como farsa, drama ou comédia, pois que os implicados no enredo têm opiniões contraditórias a respeito. O elenco é pequeno: um gato, uma grande-sacerdotisa, um dono de restaurante, um professor, um vendedor de produtos farmacêuticos e sua mulher. A trama se desenvolve em duas épocas: no ano 1052 a. C. e nos meados deste nosso século XX, precisamente na década de 40. A ação se alterna entre dois lugares. A saber: o vale dos Reis, no Egito, e a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Os cenários retratam o templo da Deusa Gato, em Bubatis, no vale do Nilo, e o deserto em frente à Esfinge; o restaurante de Epaminondas Pereira, num subúrbio do Rio, e a casa de Dalmo dos Santos, o vendedor de remédios, em outro subúrbio vizinho. O ponto central da trama é um certo acontecimento em casa de Dalmo e a narrativa se propõe mostrar que as causas determinantes do fato são muito mais complexas do que pensam as pessoas nele envolvidas. Bubatis, Egito, 1052 a.C. No templo repleto, a grande-sacerdotisa da deusa Bastet iniciou a última parte da cerimônia de embalsamamento do velho Tefmut morto. Sagrado e misterioso, cheio de magias, o ritual era gordo de silêncio e sem claridades que exibissem o fazer da mulher ao pé do altar. A assistência mais que adivinhava. Os olhos meio cegos pela penumbra só enxergavam o brilhar faiscante dos metais junto ao braseiro. Braseiro onde a grande-sacerdotisa despejava suas ânforas com bálsamos perfumados para lisonjear a divindade-gato e olorizar a múmia do último Tefmut, o gato venerado, símbolo sagrado da grandeza de Bastet. Os líquidos encalorados pelo fogo vaporavam; subiam enevoados e tombavam do teto, gotejando na câmara anoitecida. A umidade era pegajosa e grudenta. A sacerdotisa não sentia a incomodidade. Absorta na tarefa de adular a deusa de cabeça de gato e o seu desencarnado animal sagrado, ela estava imune a qualquer estorvo. Nem o braço arranhado pelas garras afiadas do novo Tefmut, que a tudo espiava, conseguia distrair sua atenção. O la- 72 tejar da carne inflamada era amortecido pelas batidas convictas do seu coração adorador. O gato tigrado, já entronizado em suas novas funções, sentado ereto na rica almofada, era jovem demais para o ofício que lhe cabia e estava inquieto. Arranhara a grande-sacerdotisa mais por receio que por brabeza. A cerimônia o confundia. Não assimilara ainda o seu lugar naquilo tudo. O ritual exalava um cheiro que o novo Tefmut nunca havia sentido antes nem voltaria a sentir depois: o odor desconcertante da morte. Quando um velho Tefmut partia, era logo substituído por um sucessor que se tornava então a personificação terrestre da deusa. Os felinos escolhidos gozavam de amplos privilégios e reinavam no templo enquanto esperavam a sua vez de serem entronizados e presidirem os cultos ao lado da imagem de ouro da divindade. Ninguém em Bubatis os negligenciava; todos os mimavam com sorrisos e brinquedos e eles, orgulhosos de sua importância, exibiam-na no andar imponente e no olhar frio e desdenhoso. Sabendo que um dia seriam a extensão de Bastet no mundo dos homens e sua representação mortal, eles se deixavam mansamente idolatrar. Mas o novo Tefmut era jovem demais para saber. Ainda não havia inalado o perfume do incenso. Logo compreenderia que o amuleto incrustado na coifa do faraó era a representação do seu olho, o olho do sol, o olho fertilizador, o olho de Bastet, o olho de todos os Tefmuts que o precederam e o daqueles que o sucederiam. E então saberia. Teria plena consciência da sua magnitude. Antes de tal entendimento só havia inquietação. E, naquele momento, a sacerdotisa acolitada por sombras terminava o rito sagrado de despedida do Tefmut morto, colocando-lhe a máscara mortuária pintada à sua semelhança. Eviscerado e lavado em óleo de cedro, ressecado 73 com natrão e amortalhado em faixas de linho umedecidas com resina perfumada, acomodado em três sarcófagos, ele estava pronto para encabeçar o cortejo até a tumba aberta na areia dourada do vale, quase à sombra da Grande Pirâmide. Lá, sua múmia ficaria para sempre como o símbolo categórico da sua eterna grandeza. O Tefmut é uma figura essencial no desenrolar da tal acontecência em casa de Dalmo, mas este desconhece o fato. Jamais pensaria que algo ou alguém de um passado tão remoto pudesse estar ligado ao seu agora. Ele tem os olhos cegos para os grandes mistérios, conhece pouco sobre a vida e ainda menos sobre os meandros da morte. Nada sabe do inconsciente coletivo que abraça o mundo e que é o somatório de todos os pensamentos, conquistas, derrotas, alegrias e dores de todos os seres, mesmo dos que já partiram; inconsciente que inspira os homens e que muda os fatos; inconsciente onde gravitam partículas do ser que antigamente foi um Tefmut tigrado. Dalmo não sabe disso e não dá, ao gato sagrado, o crédito a que ele faz jus por sua indispensável participação nas mencionadas acontecências. PRIMEIRO ATO Restaurante de Epaminondas, Rio de Janeiro, Brasil, 194... Primeiro encontro de Victor Alexandre e Dalmo - Posso? - perguntou o recém-chegado, puxando uma cadeira. Falava manso, tresandando finura e educação. Elite, sem dúvida. Dalmo quis desgostar do homem, mas enredou-se na figura limpa e escovada, destoante da sua. Sentiu uma admiração invejosa que respondeu antes dele: "A cadeira é sua." 74 - Obrigado! Nunca estive aqui antes. Que tal é a comida? - Gororoba bem melhor que a da minha casa. Qual é o seu nome? O meu é Dalmo. - Eu sou Victor Alexandre. - Poxa! Que nome esquisito. Coitado de você. O professor fez que não ouviu. Continuou mastigando e conversando, falando só com os lábios. Emoção zero. - vou chamar você de Ale, porque Victor Alexandre é ruim pra chuchu. Me diz uma coisa, você é casado? - Sou. Tenho um garoto de oito anos. - Eu também sou casado. Me pegaram. Mulher adora casar. Mas não multipliquei. Não em casa. Culpa da patroa. Na rua tenho uns cinco rebentos espalhados. Agora quero saber de você. Me diz o que você faz na vida. - Dou aulas num colégio aqui perto. Sabichão, o cara!... Importante. Dava pra notar. Cheirava a sabonete bom. - Eu sou representante de um laboratório farmacêutico. Ando pra cima e pra baixo o dia todo, no sol e na chuva. Não tenho boa vida como você, que trabalha sentado só usando o gogó. Não estou desmerecendo o amigão!... O bordão do texto, Dalmo inventou na hora. - Sabe, amigão... não, amigão... com certeza, amigão. Não deu para reparar que Victor Alexandre se aborrecia com toda aquela conversa e com a intimidade do apelido. Nem para adivinhar que ele detestava interrogatórios pessoais assim de supetão e sem resguardo. Nem para perceber que o professor se desagradava dele. Nem para sentir que ele, Dalmo, exibia sua deseducação habitual em respostas estapafúrdias. - Você gosta de futebol, Dalmo? 75 - Claro! Por acaso tenho cara de maricas? - Calma! Foi só uma pergunta. - E você, gosta de gato? - quis saber Dalmo, despreocupado com a lógica da conversa. - Não! Não gosto. - Tá brincando, amigão! Eu adoro. Tenho uma tigrada. Linda! Ganhei de um freguês. Era tão pequenininha que ficava na palma da minha mão. Eu sou louco por ela; é parte da família. O professor respondeu que as pessoas têm gostos diferentes e que cada um tem o direito de achar, agir e pensar como quiser. Bestices, imaginou Dalmo. Reagiu esquentado. - Não começa com sermão, Ale. Eu sou vendedor, mas não sou ignorante! - Não é sermão, Dalmo. É a minha opinião. Você não acredita em diferenças de opinião? Será que todo mundo é obrigado a concordar com você? O vendedor achou melhor pôr um pouco d'água na fervura. Não queria brigar com o professor. - Poxa, amigão, você é um sujeito brabo! Mas eu gosto de você assim mesmo. Não devia, mas gosto. Amanhã nós vamos almoçar juntos outra vez. Não vai querer a compota? Tá incluída no preço. Não quer? Então, passa ela pra cá. Victor Alexandre se levantou. - Boa tarde, Dalmo. Preciso ir. Dou aula em dez minutos. -Te vejo amanhã, amigão! -Sujeito alinhado... É meio complicado, mas é simpático. Bubaüs, Egito, 1052 a.C. O cortejo de inumação cruzou o rio em barcos com vinte e quatro remadores e depois, feito uma cobra do 76 deserto, serpeou para o sul em direção ao local do sepultamento. Deslocava-se em cadência morna, como convém aos séquitos fúnebres. O Tefmut mumificado iria muito em breve iniciar sua jornada para o mundo das sombras, e a procissão que o conduzia refletia todo o prestígio que ele tivera na terra. Era solene e rica. A grandesacerdotisa vestia branco e se adornava com gemas preciosas. Rubis e esmeraldas. Tinha os cabelos presos e os grandes olhos amendoados contornados de negro. As pálpebras tingidas de azul, como acontecia nas cerimônias importantes. Cobrira as unhas com outras de ouro polido que faiscavam quando as mãos se moviam. Porém só a aparência era sobranceira. Na verdade, a mulher fraquejava sob o sol poderoso e dessombreado que castigava a terra. Seu braço inchara por causa do arranhão, e um vergão violáceo marcava-o do ombro ao cotovelo. Alguma coisa viva e maligna pulsava naquela carne maltratada que doía. Ela fazia um grande esforço para manter a dignidade do cargo. Sentia-se extremamente mal e cada passo no cortejo era um sacrifício. Caminhava na frente do Tefmut embalsamado, abrindo-lhe caminho. Logo atrás do pequeno sarcófago de ouro, abrigado sob um rico baldaquim, estava o novo Tefmut num andor carregado por quatro acólitos do templo. Um grupo de sacerdotes vestidos de dourado entoava invocações à deusa-gato. Depois seguiam os cidadãos importantes de Bubatis. Fechava o cortejo a guarda do templo de Bastet. Ao passar pelas grandes pirâmides, o novo Tefmut viu a Esfinge deitada na areia, o misterioso arcano do deserto que aterrorizava até os mais intrépidos guerreiros e que desafiaria a imaginação dos homens pelos séculos afora. Era a primeira vez que a mirava; era a primeira vez que deixava o templo. Os pêlos do gato tigrado se eriçaram. Ele 77 experimentou um temor inexplicável ante a gigantesca figura. Quem ou o que seria? Não a reconheceu entre os seus pesadelos. Em compensação, sentiu o influxo que dela emanava. A criatura não exalava o cheiro dos humanos. Não exalava cheiro algum. Mas emitia algo desestabilizador. Viu seu rosto enigmático e seu olhar imóvel. A expressão estática e o corpo descomunal de quatro patas. O colosso apequenava os seres importantes e parecia conhecer todos os segredos e todas as respostas da vida. Viu o frêmito que percorreu o cortejo. Sentiu o odor do medo que se desprendeu dos homens. Ouviu seus sussurros chamando-a de a "Mãe do Terror". A grande-sacerdotisa a reverenciou. Fez-lhe a corte. O Tefmut não acreditou. Foi tomado por um terror indefinível. Pulou do andor almofadado e procurou fugir para bem longe. Afundou na macieza da areia. Seus movimentos descorrespondiam à sua vontade. As patas se enterravam no fofo do chão, atrasando-o. A escapada fez-se lenta. O séquito estarrecido parou. A grande-sacerdotisa enfureceu-se. O inusitado feria o ritual. Era preciso trazer o Tefmut de volta mas não podia ordenar que o fizessem. Os gatos sagrados só podiam ser tocados pelas suas próprias mãos. Era sua prerrogativa. Seguiu atrás dele o mais depressa que pôde. O esforço agitou sua infecção e comeu-lhe o fôlego. O enjôo subiu-lhe à garganta e o suor molhou-lhe a túnica. A cólera desdobrou-se em fúria e ela o alcançou. O Tefmut, histérico pelo pânico, miava descontrolado. A grande-sacerdotisa o agarrou. Ele reagiu por instinto e cravou suas garras no braço ferido. A dor foi fulgurante. Peremptória. Decisiva. Avassaladora. Possessiva. Obliterante. Os olhos da mulher se agoniaram vidrentos. E levada pelo momento ela descumpriu as normas. Antes de mergulhar na escuridão, ordenou: - Guarda, castre o gato! 78 Para que a história vá ganhando clareza e para que o leitor fique mais confortável neste enredo intrincado, é de bom alvitre arrumar um pouco a cronologia dos fatos. É hora do prólogo, isto é, do que aconteceu antes do encontro de Dalmo e Victor Alexandre no restaurante de Epaminondas, denominado aqui de Primeiro Ato; depois, virão o Segundo Ato e quantos outros mais forem necessários para esclarecer a trama. Tudo entremeado com as ocorrências do Egito e com algumas interferências pessoais deste narrador. Prólogo Almoçar no Azul era coisa de todos os dias de Dalmo. O restaurante de Epaminondas, Epa para o vendedor, ficava na encruzilhada dos seus caminhos. Era um lugar onde cada qual comia a seu modo, sem os aborrecimentos de exibir finuras. O vendedor só desgostava do proprietário, apesar de tratá-lo muito bem por conveniência. Na sua opinião, ele era um sujeito baboso, empavonado e metediço. Gordurento. Um tonel de calças. Tinha o andar incerto dos gordos transbordantes, caminhando hirto como um boneco de corda e oscilante feito um pêndulo. O homenzinho adorava ziguezaguear por entre as mesas, bajulando os fregueses enricados e recebendo os paparicos dos mais descarados. Quando as coisas não eram do seu agrado, trombeteava descerimoniosamente: "Isto é como uma tática de guerra; parece um barril de pólvora." Fosse lá o que isso fosse, ruminava Dalmo. Esquisitices de marido abandonado. Marido de mulher fugida, desaparecida sem deixar bilhete. Há muitos anos. Provavelmente zarpara com algum marinheiro esguio. Se o chifrudo tinha ainda os cornos doloridos, era um segredo de estado. O homem não comentava. Para ele, Dalmo, não existia galhada que o tempo não cortasse. Era uma poda 79 natural. O largado acabava por compreender que trocara infidelidade por liberdade. Liberdade para ler em silêncio as piadas do jornal, para jantar na hora em que tivesse vontade, para sentar em sua poltrona favorita e ouvir no rádio os seus programas prediletos. Para gozar o sossego. Nenhum homem devia chorar por esposa fujona. Azeda a liberdade conquistada. Neste ponto, o Epa era perfeito: não lacrimejava pela infiel. Era preciso reconhecer-lhe aquela qualidade. Fora isso, o homenzinho era um xarope. Mas seu restaurante era muito conveniente. Quase que a história não vai além do primeiro ato porque um dos personagens decidiu não retornar ao palco: Victor Alexandre, que faz ouvidos moucos à frase deDalmo - "te vejo amanhã, amigão"e se atrasa de propósito para não almoçar com o vendedor uma segunda vez. Mas Dalmo não permitiu que a cortina do palco se fechasse. Prossigamos então! SEGUNDO ATO Restaurante de Epaminondas, Rio, Brasil, 194... Segundo Encontro de Victor Alexandre e Dalmo Victor Alexandre pretendera um almoço mais tranqüilo do que o da véspera, mas não conseguiu o seu intento. Fisgado pelo insistente vendedor, viu-se arrastado para uma mesa nos fundos. Cedeu ao sítio por questão de educação, mas seu sangue fervia. Lá se ia o sossego! Dalmo, o desagradável, não perdeu tempo e logo iniciou uma descabida retórica contra todo o universo, chamando a atenção da vizinhança. Victor Alexandre foi salvo por Epaminondas que, atraído pela situação constrangedora, mudou diplomaticamente o assunto, dizendo, sem saber, a primeira fala importante da trama: 80 - Que arranhão é este na sua mão, Dalmo? A resposta foi igualmente importante. - Foi a minha gata ontem à noite; a tigrada estava muito irritada. Ela e minha mulher não se dão muito bem e eu levei as sobras. Animado, Dalmo fez um discurso contra a sua desesperadora situação familiar. Lamuriento, desfiou suas desditas: trabalho ingrato; vida difícil; dinheiro curto; mulher ranzinza; casa empoeirada; jantar frio; rádio repartido; jornal amassado; lamentações; gritos; reclamações. Um dilúvio de queixas. Epaminondas, que se havia sentado com Dalmo e Victor Alexandre, ouvia a lengalenga com muita atenção. Meteu sua colher na conversa: - É tudo uma tática de guerra; estamos sobre um barril de pólvora. Dalmo, eu não sabia que a sua mulher é uma jararaca. Ótima deixa para o vendedor continuar: - Mas é! Às vezes tenho vontade de sumir. Todos os meus problemas são por culpa dela. A patroa reclama de tudo, principalmente da pobre da gata. Diz que a tigrada não lhe dá sossego, que pula de um lado pra outro, que quebra coisas e que mia sem parar. Ela diz que fica exausta com toda a confusão. E aí não cozinha, não lava e não passa. Isso lá é vida para um homem trabalhador? Glorinha e Naná estão me dando uma úlcera. Você acha que a culpa é da gata, amigão? -Bem... Dalmo não esperou a resposta. - Pra mim, não é! A patroa está muito nervosa e dá os seus chiliques todo dia. Que droga de vida! O Epa aqui é que é feliz, porque não tem mulher pra chatear. Victor Alexandre brincou: 81 - Às vezes é preciso ter arte. - Eu sei disso, amigão! Eu sou malandro, mas malandragem não adianta lá em casa. O ambiente é carregado demais. Não há jeito de acomodação. Eu entendo a Glorinha. Sei que as coisas não são fáceis pra ela. Ninguém gosta de dificuldades. Ela tem lá o seu modo de ser e não tem culpa se uma dona de casa tem muita coisa pra fazer. E, além disso, mulher fica toda nervosa numa certa idade. Epaminondas concordou e fez discurso contra tais melindres femininos. Sentenciou categórico: - Mulher que se preza não pode ter faniquitos. Tem que ser que nem soldado: ficar sempre a postos, cumprindo o seu dever. - É isso aí, Epa! - exultou o vendedor. - Pra complicar as coisas, Naná tem um gênio danado. Eta temperamento! As duas acabam sempre brigando. Depois dos bafafás, eu levo a pior. Há dias que não tem jantar e tenho que sair e trazer qualquer gororoba. Tudo bem pra Glorinha, que não se importa; acho que ela até prefere. O estômago de Naná é de ferro e ela traça o que vier; não rejeita nem queijo rançoso. Mas eu estou ficando com úlcera. Qualquer dia vou sangrar feito um porco. Arrebento e morro. Não tem remédio que dê jeito. O sujeito parou de falar e encarou a platéia, aguardando aplausos. Victor Alexandre coçou a bochecha num gesto de reflexão. Queria ficar calado, mas sentiu que o outro esperava um aparte, uma demonstração de apoio masculino. Entretanto, um dos seus princípios era não se intrometer na vida de estranhos. De mais a mais, qualquer interferência poderia ser perigosa: Dalmo adorava uma discussão, coisa para a qual ele não estava disposto. Por outro lado, nem todas as mulheres eram como a sua Helena, e talvez Glorinha fosse realmente uma encren- 82 queira, sempre disposta a criar problemas. Talvez Dalmo merecesse uma ajuda. Como? Mandá-lo abandonar a mulher? Não! A gata era a resposta. - No seu lugar eu me livraria de Naná. - Bravo, professor! Assim é que se fala - disse Epaminondas, abrindo a cara num sorriso. -Acho que é uma ótima idéia. Uma vez que tinha começado, o professor continuou: - Sem ela, as coisas irão melhorar. Os atritos vão terminar porque uma andorinha só não faz verão. Dalmo encarou Victor Alexandre com surpresa. Aliás, com extrema surpresa. - Você acha, amigão? Acha isso mesmo? ENTREATO Casa de Dalmo, Rio, Brasil, 194... A mulher de Dalmo vivia atormentada pela falta de tudo. De mimos. De carinho. De dinheiro. De tempo. De sossego. De esperança. De comodidades. De sorrisos. Sobravam-lhe correria, angústia, dificuldades, dívidas, reclamações. Nos grandes presentes da vida ela não pensava. Queria as miudezas, as quinquilharias para as quais os privilegiados não ligam. Queria preencher os vazios do coração. Queria vozes de crianças suas e só ouvia os miados de uma gata histérica que parecia contente em atormentá-la. Queria um marido pelo menos compreensivo, e o diabo lhe dera um homem intolerante e brigão, grosseiro e suarento, cheirando forte nas axilas, nos pés e nas roupas. Que só sabia ser gentil com a gata tigrada. com esta se desmanchava. Falava tatibitate, cheio de dengos. Ela se olhava no espelho do guarda-roupa e só via estragos. Olhava em volta, achava aborrecimentos. Dizem que toda a regra tem obrigatoriamente uma exceção; não 83 era de admirar, portanto, que o seu dia-a-dia exasperante fosse uma vez modificado. Acontecera numa tarde, alguns meses antes e, por estranho que fosse, na mesma semana em que a gata chegara. Rita viera visitá-la. Amiga dos tempos de solteira. A única que lhe sobrara. Fizera carreira trabalhando fora e era segunda ajudante de modista afamada. Trouxera do ateliê um vestido longo e branco para terminar em casa. Uma lindura fofa quase sem feitio que caía reta feito camisola. Tinha até nome: túnica. De brincadeira, Rita a fizera vesti-la. Sua pele não estava habituada com panos macios e reagiu formigando de prazer. A amiga enfeitou-a com berloques. O espelho do guarda-roupa exibiu uma princesa. Ela fez pose. Rita comandava: Barriga pra dentro, ombros pra trás, queixo pra cima!" Ela obedecia satisfeita. De pura animação, prendeu os cabelos pretos em coque na nuca. E desfilou pela casa. Uma rainha, uma deusa, uma grande-sacerdotisa. Não reparou no modo como a tigrada a olhou. Se tivesse, seu sangue gelaria. Nossa história está quase no fim. O refletor principal ilumina a tigrada e deixa Dalmo em segundo plano. Mas ele continua atuando, sem desconfiar que daqui em diante é um simples coadjuvante. ENTREATO N2 2 Casa de Dalmo, Rio, Brasil, 194... A tigrada era recém-nascida quando Dalmo a levou para casa e a colocou na mesa da sala. Estava assustada e friorenta. Miou sua aflição de modo desesperado. Num crescendo, sem parar. O homem, então, foi carinhoso; falou manso, alisou seu dorso eriçado. A mulher quis na mesma hora livrar-se dela. Vai ser uma apoquentação, 84 comentou. Tirou-a da mesa num gesto brusco. Foi imprudente. Machucou-a. A tigrada teve medo. O homem fez valer sua macheza. A gata ficou. Mas a situação piorou: os dias eram cheios de miados, gritos, maus-tratos, travessuras; uma amolação atrás da outra. Todos os dias. Sem feriado. Em pouco tempo a tigrada compreendeu a diferença entre amigo e inimigo. E também como viver naquela casa quando seu benfeitor não estava. Fez um plano de sobrevivência: desaparecer debaixo do sofá durante a ausência dele. O exílio voluntário diminuiu a hostilidade da inimiga. A tática funcionou por três dias. No quarto, tudo fugiu ao controle. Chegou uma mulher chamada Rita. A inimiga cobriu-se de alegria. Suavizou a voz. A gata espiou, atraída pelos risos. Alegrou-se também. As mulheres não paravam de falar. A tigrada quis participar da trégua e desespremeu-se de debaixo do sofá. Ajeitou-se num canto. Ficou compartilhando. Viu a desconhecida espalhar um pouco da cor do céu em volta dos olhos da inimiga. E pôr coisas em cima dela. Coisas que brilhavam como raios. Coisas vermelhas, verdes e douradas. A inimiga descascou-se da roupa de sempre e meteu- se numa outra que ia até o chão. Branca. A pintura no rosto... a roupa... os brilhos... E, então, algo estranho aconteceu: o quarto da inimiga transformou-se ante os olhos da tigrada. O assoalho foi engolido por um chão macio e escaldante que afundava sob as suas patas; as paredes sumiram e só havia céu e sol por toda parte. Seu coração bateu em falso e o pensamento explodiu em lembranças. Lembranças fragmentadas que invadiam sua curta memória. Coisas que ela ignorava e que a cutucavam, pungentes, trazendo medo. Lembranças aterradoras que ela não compreendia. A inimiga estava em todas elas. Ela era a mesma e era outra. Uma outra assustadora e poderosa. A gata tremeu. Por quê? O que estava 85 acontecendo? Onde estavam? O ar ficou pesado e era muito difícil respirar. E, então, a tigrada se viu: lá estava ela, pequenina e indefesa, correndo e correndo. E viu mais, viu muito mais. Coisas que pareciam vir de longe, de muito longe. Estranho! Era tudo muito novo e muito velho. Ela, tigrada, era muito nova e muito velha, mais velha do que a sua vida. E, num frêmito aterrorizante, viu o colosso deitado, inerte e desafiador, dominando estático tudo e todos à sua volta. "Mãe do Terror", sussurrava uma voz sem rosto. A tigrada sentiu um pavor insano que escancarou sua mente, expondo e rotulando todas as lembranças. O templo... o deserto... a procissão... o Tefmut... Ela era o Tefmut! E sentiu uma dor lancinante. Dor que cortava. Que arrancava. Que brotava das suas entranhas. Que martirizava o seu corpo. Dor antiga que renasceu e embaçou os seus olhos. E, no meio daquela agonia, o presente voltou, trazendo o sofá, o chão, as paredes, o quarto inteiro. A tigrada viu a mulher de branco que rodopiava e compreendeu. Ela não era uma inimiga nova; era a outra: a criatura terrível que a mutilara e que, de alguma forma, varara a noite dos tempos e estava a atormentá-la novamente. Mas agora as coisas seriam diferentes. O Tefmut se vingaria da grande-sacerdotisa. De que modo? Quando a tigrada ajustasse contas com a inimiga de hoje. Aquela era a última vez que se escondia. Em breve, teria a satisfação da desforra. Utilizar-se-ia do seu benfeitor. Ele traria o ferro e o fogo da punição; ele cobraria o débito, que vinha do outro tempo. O Tefmut seria vingado. A tigrada também. Aquela casa não era um mar de tranqüilidade, seria fácil trazer o caos. Disso, ela se encarregaria. Faria cair a borrasca avassaladora, que criaria náufragos que lutariam para sobreviver; ela apostava no homem. Então, todo o mal acabaria e seria feita justiça. Depois era gozar a bonança e aproveitar a calmaria. 86 Pronta, a tigrada avaliou todas as brechas e as fraquezas daquele casamento; preparou o cerco e desferiu o ataque. - A gata não me deu sossego. - E por isso não tem jantar? - Ela miou o dia inteiro, sem parar um minuto. - E então você não saiu do quarto. - Ela quebrou a minha jarra de estimação. - E portanto você ficou histérica. Foi um assédio perfeito. Em pouco tempo o homem se exasperou até o limite; a mulher frustrou-se. Ela empilhou queixas; ele cultivou rancores. Ela afogou-se em mágoas; ele, em desagrados. Situação extremada e sem conserto. Náufragos à deriva. Tudo pronto para o ato final. A tigrada se rejubilou. TERCEIRO ATO Restaurante de Epaminondas, Rio, Brasil, 194... Terceiro e último encontro entre Victor Alexandre e Dalmo Dalmo, Victor Alexandre e Epaminondas se encontraram no Azul alguns dias depois. O vendedor estava radiante, feliz como um lagarto ao sol. - Amigão, você acertou na mosca. Livrei-me de Naná, como você mandou. Coloquei estricnina no leite. O veneno foi idéia do Epa. Ele garantiu que era tiro e queda. O sujeito foi um amigão. Chegou até a me contar um segredo cabeludo, só pra me dar coragem. Depois, insistiu que eu tinha que seguir o conselho de alguém que é professor e sabe das coisas. E sabe mesmo. Minha casa ficou um paraíso. O sossego realmente vale ouro. Pensando bem, não foi difícil acabar com a Naná. Glorinha 87 ficou um amor: não pula mais pelos móveis e deita quietinha no meu colo, ronronando satisfeita. Tudo está sob controle: virei marido de mulher fujona. - Não!... *** Quando vi tia Lucinda entrar fardada, levantei-me mas não tive forças de correr para beijá-la como fazia sempre, a tia tinha virado um soldado e a gente não beija soldado. Pode o tempo passar e passar e passar e acho que nunca mais vou esquecer a farda de brím cinza-chumbo da minha tia. Era de estatura mediana, mais magra do que gorda e por isso caía-lhe bem o dólmã de botões pretos sem brilho, cinto de couro preto com o quepe dobrado e enfiado no cinto. A saia-calça engomada e reta era um pouco mais clara do que o dólmã e cobria-lhe os joelhos chegando até a fronteira das meias de algodão cinza, tipo colegial. Sapatos pretos de amarrar, sem salto. E o cabelo, mas o que fez a tia do seu belo penteado de pajem-medieval que descia meio ondulado até quase os ombros?... O cabelo agora estava cortado bem curtinho e aplastrado com gomalina. LYGIA FAGUNDES TELLES, As horas nuas, Rocco, Rio de Janeiro, 4. ed., 1999, p. 206-207. 88 NANÁ As moscas dançavam pelo quarto e as mais ousadas aterrissavam no pé da cama e se agrupavam como que trocando idéias. Uma delas, mais atirada do que as outras, pousou na testa da mulher, passeou na sua face esquerda e fez alpinismo pelo seu nariz. A mulher mais que adivinhou o passeio do que realmente o sentiu. Tentou espantar a intrusa, mas não conseguiu, porque seu braço direito estava emperrado. Procurou mover o outro e o resultado foi o mesmo. O inseto passeador pressentiu sua malévola intenção e voou rápido para a parede. Então, a mulher passou a se preocupar com outra coisa: a imobilidade estranha que a entrevava. Qual o motivo daquela paralisia? Falta de movimentos não é um bom sinal. O que poderia ter acontecido? Ela sentiu as mãos frias; melhor dizendo, suas mãos estavam geladas. Um frio nocivo que a entorpecia como se ela estivesse deitada ao relento numa noite de inverno. Precisava aquecer-se para esquentar o sangue e fazer derreter aquela friúra que a emperrava. Tentou mexer as pernas, procurando sair da cama. Não pôde. Por alguma droga de razão, seu corpo não obedecia ao cérebro. Ela estava entorpecida por fora e - coisa muito esquisita - por dentro também. Sentia, ainda, uma espécie de moleza, uma falta de energia como nunca tinha sentido antes. Mas estranhamente não estava em pânico; nem tinha medo; estava apenas confusa, experimentando algo novo, uma sensação única que a tornava mais só do que nunca, algo como estar isolada de tudo e de todos e perdida para sempre no frio enregelante. Seu corpo estava endurecido, mas sua mente corria livre, pulando de pensamento em pensamento, dando-lhe a impressão de estar a ponto de aprender os mistérios e segredos da vida e poder, a qualquer momento, decifrar os enigmas do universo. Procurou avaliar aquela extraordinária situação. Não sentia dor, nem palpitações, nem vertigens; aliás, a única coisa que sentia era aquele congelamento invasor. Nada mais. Que nome tinha aquela doença? O que significavam aqueles sintomas? Seria uma moléstia grave ou um malestar passageiro? Ir ou não ao médico? Meu Deus, como são caros os exames e as chapas!... E, o pior: os doutores não sabem mais curar sem pedir um montão deles. E ela teria que madrugar para pegar um número baixo no ambulatório. Mundo desgraçado que obriga o povo a pensar duas vezes antes de se consultar para viver. E ela era povo. Mulher de vendedor de produtos farmacêuticos é povíssimo. Quem sabe aquela Maldade esquisita não passava sozinha sem necessidade de gastos extras? Sobrevivera a problemas maiores. Pobre é feito de material resistente que não rasga, não encolhe e não desbota com facilidade. É preciso muito para derrubá-lo. Aquele congelamento não iria acabar com ela. Era melhor esperar e ver no que dava. Apesar das aparências, ela era uma mulher forte. Já fora um mingau, mas aprendera a ser de pedra, aprendera 92 de estalo não faz muito tempo. Não era mais aquela recémcasada submissa que o marido grosseirão maltratava. Ele a enganara direitinho. Mas ela não ia deixar barato. Todos têm a sua cruz e a dela era Dalmo: marido suarento e bruto que só se importava com a desgraçada da gata, aquele bicho pestilento, que ele tratava como gente e que parecia ter vindo ao mundo só para atormentála. Ela havia se tornado uma especialista em sofrimento, com certificado e louvor. E aquele era o seu único diploma, porque não tinha boa cabeça para os estudos. Nem terminara o ginásio. O colégio era fraco e os professores não ligavam pra alunos atrasados feito ela. A diretora achava que três repetições na mesma série eram suficientes e, depois, mandava os reprovados arranjarem emprego e seguirem a vida. Sua mãe parira uma filha obediente e bem-mandada, e não tinha sido um fim de mundo obedecer à diretora. Até achara bom. E tudo deu no que deu: gastou sua mocidade trabalhando duro e ganhando pouco em emprego vagabundo e nunca teve oportunidade de melhorar de vida. Só depois é que veio a raiva de ter saído tão cedo da escola. Se tivesse insistido um pouco mais com os livros, sua vida teria tido outra história e seu destino seria bem diferente. Nem teria olhado pró Dalmo, mesmo que ele passasse pela sua porta. Será que ela podia garantir que ele não passaria? Talvez sim, talvez não. Esse negócio de destino traçado é coisa muito complicada. Uns dizem que ele nasce com a gente; outros falam que cada pessoa faz o seu próprio caminho. De qualquer maneira, não adianta chorar sobre o leite derramado. O negócio é andar pra frente. Por falar em leite, ela pensou, que bicho mordeu Dalmo ontem à noite pra ele me trazer um copo de leite morno com açúcar? O homem não é dessas coisas!... Não me faz nenhum agrado. Há muitos anos que não me dá 93 um presente. E o mais engraçado, é que ele tinha insistido pra ela beber tudo, dizendo que era pra espantar a friagem que ela pegara na volta da padaria. Tá aí!... Achara a razão da Maldade: tinha ficado ensopada de chuva. É por isso que se sentia tão esquisita: estava resfriada. Antes assim, porque resfriado não é coisa grave e cura com comprimido. E, já que o mal era esse, trataria de espantar a moleza e desenferrujar os ossos. Estava mais que na hora de sair da cama. Tentou. Esforçou-se. Não conseguiu. Seu resfriado era realmente brabo. Melhor ficar deitada. Por sinal, a cama estava ótima. Seu velho colchão nem parecia o mesmo: ela não sentia aquele afundamento que torturava a sua coluna. Parecia que ela estava pousada de leve na cama, sem peso no corpo. Era bom! Continuava emperrada, mas a sensação de solidão tinha ido embora; agora, ela sentia uma espécie de paz. Fez força pra se lembrar quando fora a última vez que se sentira tão leve. Bota tempo nisso!... Sua vida era muito cansativa e sem sossego, sempre atrapalhada pela falta de dinheiro, pelas brigas com Dalmo e por uma grande tristeza na alma. E, ainda por cima, havia a gata tigrada dele. Meu Deus, que aporrinhação! Depois da chegada daquele bicho nojento, sua vida tinha piorado muito. Todo dia era preciso limpar as suas sujeiras, ouvir os seus miados, varrer os seus pêlos e agüentar os seus pulos. Aquela gata era o bicho mais tinhoso que ela conhecia e parecia gostar muito de atazaná-la. Dalmo não enxergava nada disso e achava a tigrada uma beleza, dizendo que ela é que era a implicante e a culpada da casa ter virado uma zona. Falava que ela era uma desmazelada e aproveitava qualquer discussão pra lhe dar uns tapas. Mas, na última briga, ela também batera. Já agüentara muito do marido e havia tomado uma decisão. Mas aquele copo de leite morno tinha mexido 94 com ela. Agora estava achando que era melhor não se precipitar. Iria tomar providências assim que se levantasse. E também queria conhecer o tal professor que almoçara com Dalmo lá no restaurante. O marido ficara muito impressionado com ele, dizendo que era muito educado e fino. Antes assim, porque o tal de Epaminondas era um horror. Ela só o tinha visto uma vez, mas não simpatizara com ele. Sujeito gordo e esquisito, com cara de sonso e de miolo mole. Disse umas coisas sem sentido sobre guerra e barril de não-sei-o-quê. As pessoas gordas são sempre simpáticas, mas alguma coisa naquela banha esparramada lhe dava uma impressão ruim. O homem não tinha um bom astral e não era uma boa influência. Ela não entendia a graça que Dalmo achava nele. Besteira! Bem que ela sabia a razão: o marido era um puxa-saco e só gostava de gente escrachada que risse das suas piadas indecentes. O único amigo distinto era o professor; tomara que ele continuasse a almoçar com Dalmo e pusesse algum juízo na cabeça dele. com Epaminondas ela não podia contar. Uma vez, ela e Dalmo brigaram por causa dele. Só porque ela havia perguntado se ele era casado. Dalmo berrara que a mulher de Epaminondas fugira na maior safadeza, sem deixar nenhum bilhete e que o infeliz tinha sofrido muito por causa da descarada. Ninguém no restaurante tinha coragem de falar no assunto pra não magoar o coitado. Coitado coisa nenhuma! Talvez a fujona tivesse boas razões pra sumir sem deixar rastro mas, agora, se ela fosse a outra, fugia deixando um bilhete malcriado daqueles de "vai à...". Lembrou-se do leite morno e sentiu a raiva diminuir. E se o marido estivesse melhorando de gênio por causa do professor? E se ele parasse de achar que a gata era uma santa? E se ele virasse um outro homem? Talvez, o copo de leite já fosse coisa do professor. 95 Engraçado como um gesto à toa pode fazer tanta diferença. Realmente, era melhor não se precipitar. Se Dalmo mudasse, ela ia se esforçar pra melhorar; faria trocas: um leite morno por um jantar bem-feito, uma gentileza por outra, um sorriso por um abraço. Ela sabia que em seu coração, debaixo das amarguras, havia espaço pra todos os carinhos que as mágoas tinham engavetado. E, a bem da verdade, ela também andava bastante mal-humorada nos últimos tempos; mas era tudo culpa da gata. A tigrada sabia que tinha as costas quentes e abusava. Que horas seriam? Dalmo não ia gostar de encontrá-la deitada. Ia haver confusão: "Você é uma relaxada; eu devia estar louco quando me casei contigo", ele ia gritar. "Trabalho o dia inteiro no sol e na chuva e, quando volto, não vejo uma panela no fogo. Será que vou ter que sair pra buscar uma pizza? Essa droga de comida está abrindo um túnel no meu estômago. Qualquer dia, estrebucho no chão, vagabunda!" Mas talvez ela estivesse enganada, e ele ficasse preocupado com o seu mal-estar. Era preciso não se esquecer da delicadeza da véspera. De qualquer maneira, ele hoje que se danasse; ela estava muito mole pra fazer caso. Além da friagem, havia dentro dela uma sensação de "não me importo" que afastava os problemas e a colocava a salvo de tudo. Nem o enxame de moscas ao pé da cama a incomodava mais. Resolveu ficar deitada numa boa. Seus ouvidos e sua vista estavam atrapalhados, parecendo que ela havia enfiado a cabeça num aquário e não podia mais ver e ouvir direito. Os sons e as coisas estavam ficando cada vez mais confusos. Tinha que pedir um remédio ao marido. Um sono mortal baixava, tentando apagá-la, mas ela não queria dormir. Preferia continuar acordada, apesar da agonia que começava a envolvê-la; agonia de se sentir 96 mergulhada no vazio, num grande nada. Nunca experimentara coisa igual. Tinha que ocupar o pensamento pra distrair as idéias e não imaginar bobagens. Mas pensar no quê? Ruminar sua mesmice não ia adiantar; aí ia afundar de vez. Melhor catar alguma alegria no fundo da memória. A tigrada, entretanto, não lhe deu tempo: surgiu das sombras do quarto e, rápida feito uma bala, pulou pra cima da cômoda, quebrando, na aterrissagem, seu vidro de águade-colônia. Droga! Lá vinha ela pronta pra atormentá-la. Logo, logo ia miar até vê-la morrer de raiva ou, como já acontecera, até fazê-la chorar de desespero. Mas a gata limitou-se a encará-la do alto da cômoda. O bicho suspendeu o dorso, ajeitou o rabo num ponto de interrogação e ficou imóvel, espiando. Havia algo de estranho naquele olhar. A danada devia estar preparando alguma surpresa desagradável. De repente, teve a impressão de que a tigrada estava sorrindo lá de cima. Não sabia que gatos sorriam. Dalmo não acreditaria se ela contasse e gritaria que ela estava inventando coisas, dando asas à sua mania de perseguição. A gata espreguiçou-se e sentou. Parecia feliz. Do jeito que ficava quando se enroscava no colo de Dalmo pra ser acarinhada. Seus olhos verdes falseavam; eram como dois faróis brilhando na penumbra do quarto. Isso ela podia perceber, mesmo com a vista fraca. Teve certeza de que aquela gata a odiava. Que sonolência!... Ela não ia ficar acordada por muito mais tempo; estava quase fechando os olhos. Pensou no marido outra vez. No marido e no professor; um dia teria de lhe agradecer. Sorte que gente como Dalmo acaba fazendo tudo que as pessoas importantes aconselham. Ainda bem! O professor Alexandre era a sua salvação. Ainda mergulhada no devaneio, ela ouviu a voz de Dalmo. O marido parecia sussurrar, ou seria aquele hor- 97 rível resinado que fazia as palavras parecerem murmúrios distantes? "Chegou a hora", ela pensou, "estou pronta pra o que der e vier." A porta do quarto se abriu e o marido apareceu no seu campo de visão. Vinha com o gordo do restaurante; os dois pararam ao lado da cama. Dalmo inclinou-se, olhando-a de perto. Não explodiu raivoso nem lhe fez um agrado; apenas olhou-a de modo estranho. Parecia contente. Epaminondas também a espiou. Que cara-de-pau! Nunca vira tanta intimidade. Coisa chata! Ela ali deitada de camisola... - É bom não esperar mais; se endurecer, vai ficar complicado. - Certo! Vamos fazer tudo enquanto ainda tá escuro. A vizinha da frente acorda muito cedo. Que diabo de conversa era aquela? Fazer o quê? Endurecer o quê? Por que não falavam com ela? Nem parecia que ela estava ali. Quis pedir o comprimido, mas não conseguiu formar as palavras. - Você tem alguma mala em casa? Tem que ser das grandes. - Grande não tenho. Porra, Epa! Por que você não me falou nisso antes? - Claro que falei, homem! Contei tudinho. Mandei você comprar um bom cadeado pra trancar a fechadura. Você tá pirado!... Estamos numa tática de guerra, num barril de pólvora. Fazer uma coisa desta pela metade é suicídio. Eu me dei bem porque fiz tudo certo. Agora vamos ter que improvisar. - Desculpe! É que eu to nervoso. Tenho a impressão que ela tá me olhando. - Então feche os olhos dela, merda! É costume. - Feche você, que já tem prática. 98 Epaminondas obedeceu. A mulher mergulhou numa escuridão total. A friúra aumentou de modo assustador. Um pensamento terrível começava a se formar em sua mente. - Me ajude, Epa, to tremendo que nem geléia. Esta mulher me aporrinhava, mas eu nunca pensei em fazer isto. Foi uma coisa difícil! Nunca pensei que tivesse coragem. Foi o professor que botou a idéia na minha cabeça. Você ouviu quando ele disse: "Se livre de Naná que tudo vai melhorar na tua casa." Que sangue-frio!... Por que é que você tá rindo? - Você é um panaca, Dalmo. Não percebeu o sentido da frase. O homem pensou que Naná era a tigrada. Glorinha é nome de gente. O cara cometeu um puto engano. Ele só queria que você sumisse com a gata. - Ora, vejam só! Mas agora tá feito, pronto. Foi melhor assim. - Claro que foi! É por isso que fiquei de bico calado e deixei ele se enrolar. Só pra te ajudar. Sou seu amigo e te contei aquele baita segredo da Matilde pra te dar mais força. Você é a única pessoa que conhece, cara. - Foi bom você ter me contado o segredo da tua mulher e me ensinado a fazer igual. Você é born, cara! Eu nunca desconfiei de nada e até pensei que você tivesse sofrido muito com o tal sumiço. -Aquela sem-vergonha teve o que mereceu. Eu odeio mulher que não presta, feito a minha e a tua. -Você é um amigão. Mas... e se o professor perguntar? Se desconfiar de alguma coisa? O que é que eu vou dizer? - Se ele tocar no assunto, você diz que fez exatamente o que ele mandou. Dê um susto no cara. Faz ele ver que ele foi o mandante. O professor é inteligente e não vai querer ser implicado num crime. Vai calar o bico. E, se ele 99 não te dedurar, quem é que vai? Depois, você vai fazer como eu fiz: vai dizer pra todo mundo que a tua mulher sumiu sem deixar bilhete. Todo mundo vai acreditar. Não pensa mais no assunto, homem! - Será que ela... - Fica frio, cara! Estricnina no leite é rápido. Garanto que a Naná nem sabe que morreu. Céus, então era isso! Ela estava morta. Assassinada. Enganara-se com o leite morno!... A terrível verdade afrouxou o cordão que ainda a prendia ao mundo dos vivos mas, antes de se desprender, ela teve tempo pra lamentar que o marido não tivesse tomado o sal de frutas com arsênico que ela havia preparado dois dias antes e deixado no armário do banheiro; logo, porém, ele ia tomá-lo por causa da azia. Findou-se com essa doce certeza. Não viu Glorinha pular pró ombro de Dalmo e ronronar satisfeita. *** 100 Este livro foi composto em editoração eletrônica com fotolitos digitais por RIOTEXTO TECNOLOGIA E PROCESSAMENTO LTDA. Rua Almirante Tamandaré, 66/Grupo 439 - Rio de Janeiro, RJ e impresso nas oficinas da EDITORA GRÁFICA SERRANA LTDA. Rua General Rondon, 1.500 - Petrópolis, RJ para a LIVRARIA JOSÉ OLYMPIO EDITORA S.A. em maio de 1998