Gina SRA. LEANDRO DUPRÉ 2ª. EDIÇÃO 1945 EDITORA BRASILIENSE PRIMEIRA PARTE Sen tada na beira da calçada, os pés na água barrent a que corria, a boneca de pano apertada no braço direito, Gina esperava a mãe que se despedia da s vizinhas, lá no fundo do cortiço. A irmã mais , velha amarrava a caçarola e a frigideira num c anto da carrocinha, onde ia a mudança. A criança da da rua rodeava a carroça e as duas meninas, alvoroçadas com a partida da família do professo r, o homem que bebia vinho todos os dias ao jant ar. Ele já havia saído para o Liceu de Artes e O fícios, onde ensinava escultura; de sobrecasac a preta, chapéu coco, baixo e magro, uma barbich a em ponta sobre o peito. Era calmo, tranqüilo, e falava pouco; mal conhecia os vizinhos. Algu mas mulheres saíram à janela das suas casas baix as, outras ficaram no portão, gordas e falantes; uma delas com as mãos sobre o ventre, olhava o filho que engatinhava na calçada, entre cascas de banana e sujeira. A mãe de Gina veio do fund o, acompanhada por algumas vizinhas: - Venha da r uma prosa de vez em quando, dona Julica. Não s e esqueça da gente. Só dona Raimunda não aparec eu para se despedir. Cortara relações com dona Julica por causa de uma panela. Fechou a casa e prendeu os filhos lá dentro; não queria que eles acompanhassem "aquela amaldiçoada" até o port ão. A carrocinha principiou a rodar, a caminho da rua S. Caetano, onde haviam alugado dois quar tos. As despedidas então começaram; oculta pela criançada, à sua volta, Gina conversava; dizia que o pai, o professor, alugara dois quartos gr andes e ela teria daí em diante uma cama para el a só. A irmã dormiria em outra e teriam um qua rto para elas; não era como ali, onde dormiam to dos juntos e escorria água das paredes. Ela nunc a se importara, mas a mãe passava o dia enxugand o as paredes e xingando a água, até que o prof essor resolvera procurar outra casa para morarem . De repente, ouviu-se uma voz estridente: - Gi na! Ela calçou depressa os sapatos furados, lev antou-se com a bonequinha apertada contra o peit o e acompanhou a mãe e a irmã que já estavam na esquina. Nem se despediu da criançada; correu para alcançá-las; seus sapatinhos não tinham sol a e ela sentia nos pés toda umidade da calçada, molhada da chuva, que caíra durante a manhã. L ogo alcançaram a carroça da mudança, na esquina da rua S. Caetano; andavam muito depressa, a mãe tinha que fazer o almoço. Gina caminhava ao se u lado, pensando na casa nova; o pai dissera que os quartos eram bonitos, tudo muito limpo e as famílias eram distintas; o amigo Giacomo, o serr alheiro, arranjara esse lugar. Foram andando sem parar e passaram diante da carroça, viraram a rua Antiga Amélia, lá estava a casa. Era grand e, amarelada, com três janelas na frente e um po rtão de ferro ao lado. Em cima moravam os dono s e alguns pensionistas que deviam ser ricos; em baixo havia quartos grandes e pequenos, dando p ara um corredor cimentado; cada quarto tinha u ma abertura na parede que servia de janela; algu ns inquilinos pregavam cortinas feitas de roupas velhas nessas aberturas, outros pregavam jornal . O professor alugara dois quartos no porão; u m deles dava para o corredor cimentado. A mãe e a irmã foram logo colocando as trouxas de roupa no chão, enquanto Gina, com a boneca nos braço s, lançava à volta um olhar desiludido. O chão d esse primeiro quarto era cimentado e Gina começo u a sentir frio, encolhida num canto. A mãe gr itou-lhe: - Anda, vai ver se a carroça vem vind o. Gina foi espiar no portão; a carroça rodava no principio da rua e o carroceiro vinha pela ca lçada, fumando cachimbo e olhando os números das casas; Gina fez-lhe sinal levantando os braci nhos. Num instante a carroça foi descarregada e o carroceiro levou para dentro as duas camas de ferro, os colchões, a lata de querosene que se rvia de fogão, algumas panelas e outras trouxas de roupa. Sem perder tempo, dona Julica colocou a lata de querosene sobre dois pedaços de pau, t irou uns carvões de um saco de papel, colocou- os na lata, pôs fogo e começou a assoprar; logo a chama se elevou e ela despejou água numa panel a para o macarrão. Em seguida, para pagar o ca rroceiro, tirou o dinheiro que estava amarrado n a ponta de um lenço, no bolso do casaco. Pagou o homem que esperava fora e entrou apressadamente ; os dois quartos recendiam a sarro de cachimb o. Sacudiu a ponta do avental no ar para acabar com aquele cheiro e gritou para as duas meninas que viessem auxiliá-la; Gina deixou a bonequin ha sentada no chão, num lugar onde ninguém pudes se pisá-la e foi ajudar a irmã a abrir o saco de roupas e estender as camas. A dos pais foi arma da no quarto de dentro e lá puseram também uma pequena cômoda onde guardavam a roupa; a das me ninas ficou no segundo quarto, com o fogão e a m esa que servia para comer. Ao meio dia, quando o professor Pasquale chegou para almoçar, estava tudo pronto; Gina tirou a boneca do canto e sen tou-se perto da porta com o prato de macarrão no colo e a boneca de trapo ao lado; depois que acabou de comer, começou a fingir que estava dan do comida à boneca; enchia a colher de molho e e ncostava na cara da bruxa, cuja boca era feita de linha vermelha; achara-a numa lata de lixo n um dia de chuva; nunca mais se separara dela. Es tava suja, feia e maltrapilha, mas para Gina e ra linda. Enquanto dava almoço à boneca, viu um gato que se aproximava miando, o rabo esticado e os olhos amarelados, cheio de risquinhos pretos . Estava com fome; Gina empurrou o prato fundo para perto do gato que lambeu tudo num instante . Depois foi auxiliar a mãe a lavar os pratos e a panela; quando o pai saiu de novo para o Lic eu, à uma hora, a chuva havia recomeçado a cair, uma chuvinha fina e persistente. O professor le vantou a gola da sobrecasaca surrada, colocou o chapéu-coco na cabeça e pegando o velho guarda -chuva, saiu pelo portão. Ao passar por Gina, ac ariciou-lhe a cabeça num gesto carinhoso: - Eh! Gigina! Gigina! Todos os quartos do porão esta vam alugados; era um vir de pessoas o dia todo p elo corredor cimentado. Nessa mesma tarde, depoi s de por tudo em ordem e de ter colocado um tr apo escuro na abertura que servia de janela, a m ãe de Gina puxou conversa com as vizinhas. Havia dona Umbelina, a preta que vendia pastéis, mãe do Cosme e que morava no quarto da frente; don a Assunta, casada com um vendedor de jornais e m ãe de duas crianças pequenas; dona Cidóca, a lav adeira de roupas finas. Todas as crianças rode aram logo Gina e a irmã; queriam saber de onde v inham, o que o pai fazia, quanto tempo iam ficar ali, o nome da boneca... Havia duas meninas da idade de Gina, filhas de dona Cidóca; estudava m no Grupo Escolar da Avenida Tiradentes. Quando souberam que Gina não sabia ler, fizeram, cara de dó; apontaram-na com o dedo: - Ela não sabe ler. Ela não sabe ler. Gina sentiu o rosto em f ogo. Naquela mesma noite, pediu ao pai que a mat riculasse no Grupo Escolar Prudente de Morais, n a Avenida Tiradentes; o pai prometeu que um di a havia de levá-la, quando tivesse tempo. Bebera m vinho ao jantar; houvesse o que houvesse, havi a sempre vinho e queijo à mesa do professor Pasq uale. Despejou um pouquinho no copo de Gina e no copo de Zelinda, a enteada. Zelinda era filha de dona Julica, pois quando esta se casara com o professor de escultura, era viúva e tinha Ze linda que estava agora com quatorze anos. O prof essor também era viúvo e tinha filhos homens do primeiro matrimônio; era vinte e cinco anos mais velho que dona Julica e o casal só tinha Gina que estava com oito anos. Foram deitar cedo, l ogo após o jantar. Gina dormia na mesma cama de Zelinda, com a cabeça ao lado contrario; brigava m muito e Zelinda não a suportava. Acordava muit as vezes com os pés de Gina sobre seu estômago ou encostados no seu rosto; empurrava-os com fo rça e dizia um nome feio. Uma noite empurrou-os tão brutalmente que Gina caiu e se machucou; o pai prometeu no dia seguinte dar-lhe uma cama n ova, só para ela, e a mãe deu razão a Zelinda co mo fazia sempre. Mas o tempo foi passando e nu nca sobrava dinheiro, para a cama nova de Gina; por isso continuava a brigar quase todas as noit es. Um vento carregado de umidade entrava pela abertura da parede; Gina sentiu frio e aconchego u-se mais à irmã para se aquecer; Zelinda empurr ou-a. Gina encolheu-se mais na caminha estreit a; ouviu os miados do gato passando pelo corredo r. As filhas de dona Cidóca haviam dito que o ga to não era de ninguém, era do cortiço inteiro; um dava-lhe um pouco de comida, outro um pedaço de pão velho, outro os restos da panela. E quan do ninguém dava comida e o gato sentia fome, ia procurar qualquer coisa na lata de lixo dos ri cos, que ficava no portão todas as manhãs, e com ia até restos de banana, se encontrasse. Gina pe nsou que devia ser engraçado ver o gato comend o bananas e prometeu a si mesma dá-las ao gato n o dia seguinte, e também perguntar o nome dele, pois se esquecera disso. O vento frio levantava o trapo escuro e invadia o quarto todo; de rep ente, dona Julica levantou-se e acendeu uma vela , depois pegou uma porção de roupa suja que ia l avar no dia seguinte e tapou a abertura. O ven to cessou dentro do quarto. O gato passou miando outra vez pelo corredor. Dona Julica voltou ao quarto e apagou a vela. Ouvia-se o ressonar tran qüilo do professor de escultura. Os olhinhos d e Gina foram se fechando devagar, um calor gosto so começou a invadi-la e pensando no gato, na ca ma nova que iria ganhar, no Grupo onde ia apre nder a ler, na bonequinha de trapo que dormia ab raçada a si, adormeceu. Alguns dias se passaram . Zelinda saía logo depois do almoço e ia para o atelier de dona Adélia, onde aprendia costura. Gina ficava brincando com os filhos de dona As sunta no portão. Muitas vezes o amigo Giacomo en trava e ficava lá dentro conversando com a mãe; Gina tinha ordem de não entrar enquanto Giacomo estivesse lá; um dia estava chovendo e ela bat eu na porta para que a mãe abrisse, pois estava armando chuva lá fora. Dona Julica abriu a porta e Gina viu o amigo Giacomo deitado na cama do pai, fumando e esperando o café que a mãe estav a preparando na lata de querosene. Mais tarde, depois que Giacomo foi embora, Dona Julica chamo u Gina para um canto e deu-lhe uma sova, dizendo que ela era uma desaforada, uma desobediente, p ois não devia entrar quando houvesse visitas. Gina soluçou durante horas inteiras sentada no c hão cimentado; de vez em quando a mãe gritava: - Cala essa boca! E já! Ela sufocava os soluços no vestidinho rasgado e sujo. Depois desse dia , quando a mãe tinha visitas, podia chover que G ina não batia na porta; ficava encolhida num can to, esperando a chuva passar e olhando a água qu e formava poças no cimento esburacado. Muitas vezes o Cosme, filho da dona Umbelina, que fazi a pastéis, dava um para Gina; ela comia bem deva gar e ficava triste quando terminava, a boca se enchia de água com vontade de comer outro. Qua ndo Cosme passava para ir à venda, chamava-a: - Gigina, vamos na venda? Ela ia. Cosme era um m oleque de nove anos, preto como carvão, tinha ol hos e dentes que brilhavam de tão brancos. Usava calças rasgadas, sempre sujas, e uma camisa l istada; andava assobiando, as mãos nos bolsos, e dava pontapés em tudo que encontrava. Gina gost ava dele; Cosme parava de assobiar para cuspir; cuspia longe, de lado, e o cuspe saía zunindo da boca dele. Perguntava com orgulho: - Você é capaz de cuspir assim? Gina experimentava. Para va, enchia a boca de saliva e esperava para ganh ar forças; a cabeça para trás e depois para a fr ente num movimento rápido, mas o cuspe não ia longe, ficava ali mesmo aos pés dela; Cosme dava uma gargalhada, depois sacudia os ombros e dizi a com desprezo: - Mulher não sabe cuspir. E co ntinuava a andar, Cosme com as mãos nos bolsos e assobiando. Na venda, ele batia a moeda sobre o balcão e dizia bem alto, com voz autoritária, p ara o vendeiro: - Dois mil réis de farinha de t rigo. Da melhor. Era para os pastéis de dona Umb elina. Gina via o homem pesar a farinha, embrulh ar num papel pardo e entregar ao Cosme. Este a dquiria um ar importante, de quem se julga super ior, mas de repente ficava humilde, os olhos com pridos nas balas que estavam dentro de um vidro grosso; as balas melavam contra o vidro. Gina olhava também, a boca cheia de saliva; o vendeir o tirava a tampa do vidro, mergulhava a mão gord a e peluda lá dentro, tirava duas balas cor de rosa e dava uma para cada um. Numa atitude de a doração, Gina colocava a bala sobre a língua e d ava um estalo, como via Cosme fazer; agradeciam e saíam a caminho da casa. Cosme não assobiava mais, nem cuspia, chupava a bala devagar, sabor eando-a. Ensinava Gina a dizer nomes feios e a c hutar as cascas de frutas que encontravam nas calçadas; cada pontapé que davam, diziam: - Vá. .. E riam gargalhadas longas, intermináveis. Ca da um inventava uma palavra nova para colocar de pois do vá, e as variações eram muitas. Aquele q ue inventava palavras mais feias era o mais es perto e o mais importante da rua. Gina sabia uma bela coleção. Quando as filhas da lavadeira de roupas finas passavam e viam Gina sentada no po rtão com a boneca ao lado, riam e caçoavam dela. Iam ao Grupo Escolar; levavam livros, caderno s e um embrulho de jornal com o lanche. Uma dela s, a mais velha, provocava-a. Colocava os livros no chão, encostados no portão, depois enfiava o s polegares nas orelhas e sacudia as mãos fing indo orelhas de burro; Gina ficava vermelha de r aiva; levantava-se para dar na menina, mas ela j á havia carregado os livros e já correra, enqu anto a irmã dava gargalhadas: - Olhe a burra! E la não sabe ler! Gina pediu ao pai que a levass e ao Grupo, queria aprender, queria saber. O pro fessor Pasquale riu-se, coçou a barba escura e d isse misturando italiano com português: - Piu t arde, piu tarde, tu sei ancora troppo bambina. Um dia Gina não suportou mais as caçoadas das fi lhas de dona Cidóca. Esperou que todos saíssem e como a mãe também havia ido à cidade, deixou a boneca em cima da cama e foi em direção ao Gru po Escolar Prudente de Morais. Hesitou um pouco quando viu o grande edifício com as janelas aber tas para a claridade; depois resolveu e subiu timidamente os primeiros degraus. Um homem velho apareceu em cima da escada e perguntou o que qu eria; ela tornou a hesitar, disse que precisava falar com o diretor do Grupo, tinha um recado do pai para dar. O porteiro perguntou: E quem é seu pai? Gina abriu mais os olhos: - Meu pai? É o professor Pasquale do Liceu. Sentia certo o rgulho do pai, por isso falou com ênfase, a cabe ça bem levantada. O porteiro olhou-a, esperou um pouco e disse: - Venha então comigo. O coraçã o de Gina começou a bater forte quando entrou co m o porteiro. Enquanto caminhava, olhou de sosla io para os sapatos furados com buracos na frente ; para o vestido encardido com manchas de gord ura e remendado de um lado; no lugar do remendo, a fazenda estava esgarçada e via-se através del a, a camisa grossa de algodãozinho. Num instan te, pôs a mão esquerda sobre o remendo e viu que até as mãos estavam encardidas. Que horror! Nem lavara as mãos para falar com o Diretor. Como s e atrevera? Arrependeu-se e quis voltar, mas q ue pensaria o velho que ia na frente, se ela fug isse? Tudo isso por causa das filhas de dona Cid óca que caçoavam dela. O velho era capaz de co rrer atrás dela e gritar e iria parar na cadeia. Lembrou-se da filha mais velha de dona Cidóca c om os polegares dentro das orelhas, abanando as mãos: "Burra!" "Burra". Subiu uma longa escada , entrou num corredor largo e viu o velho parar em frente a uma cortina verde, onde havia grande s letras douradas; ficou aflita quando viu o v elho sumir por trás da cortina; não teve tempo p ara pensar e já o velho estava outra vez diante dela, fazendo sinal para que entrasse. Uma ponta da cortina foi suspensa e Gina entrou; teve m edo que o sapato do pé direito saísse, pois esta va largo, parecia um chinelinho. Deu uns passos sentindo o chão macio e fofo, apertou o lugar do remendo para que o Diretor não visse a camisa grossa e parou diante de uma mesa larga. Só nes se instante levantou a cabeça; atrás dessa mes a cheia de livros, tinteiro com bolas e papeis, e outras coisas que ela não conhecia, estava um homem sentado, escrevendo. Gina olhou-o. Usava ó culos no nariz, como o pai, e tinha bigode. Co meçou a tremer enquanto olhava o bigode preto do homem de óculos. Afinal, o que diria si ele lhe fizesse perguntas? Por que viera até ali, soz inha? Se ao menos. tivesse trazido consigo um do s filhinhos de dona Assunta... Continuou fixando o bigode e de repente o bigode se moveu e uma v oz perguntou enquanto a cabeça do homem se lev antava: - Então menina o que quer? E dois olho s escuros fixaram Gina por trás dos vidros dos ó culos; Gina baixou a cabeça e olhou os sapatos f urados; viu as pontas dos dedos sujos e ficou ve rmelha; lembrou-se das mãos encardidas e quis escondê-las nas costas. E o remendo do lado esqu erdo? Pôs a mão esquerda sobre a parte esgarçada do vestido e a direita atrás das costas. A vo z perguntou outra vez num tom impaciente: - Que r falar comigo? O que deseja? É aluna do Grupo? Gina resolveu falar; sua voz tremia; respondeu a ultima pergunta: - Não, senhor. Vim me matric ular hoje. - Não há vagas. Houve um breve sile ncio. Ela ficou imóvel como se não tivesse ouvid o. O diretor repetiu: - Não há vagas. Ela pare cia refletir. De repente teve uma idéia: - Meu pai é o professor Pasquale, do Liceu; ele me man dou para o senhor me matricular. - Como é o seu nome? - Gina. Georgina. Sou filha do professor Pasquale do Liceu. Eu preciso aprender a ler. - Vou fazer oito anos, tenho sete e meio. As fil has de dona Assunta vivem caçoando de mim porque eu não sei ler. Preciso aprender. O diretor fi cou parado olhando para Gina. Havia tal intensid ade de expressão nos olhos dela que ele ficou im pressionado. Perguntou: - Qual o recado que seu pai me mandou? Nem se lembrava mais. Ficou ver melha e respondeu: - Ele mandou pedir para o se nhor me matricular. Ele não tem tempo de vir por que é muito ocupado. Trabalha até de noite. - N ão há vagas. Porque não veio no princípio do ano ? Volte mais tarde, talvez depois das férias de Junho. Ela continuou imóvel no mesmo lugar. Tev e vontade de chorar. Então não arranjaria lugar depois de tamanho sacrifício? Olhou firme para o diretor: Eu quero aprender a ler. Quero muito ... - Você não tem mãe? - Tenho sim, senhor. - Por que sua mãe não veio falar comigo? - Ela também não tem tempo. Tem que cozinhar, lavar ro upa e fazer compras. Hoje foi fazer compras na c idade. Minha irmã está aprendendo costura; ela d eixou o terceiro ano para costurar. Só eu quer o aprender, quero muito. Será que o senhor não a rranja um lugar para mim? Seus olhos encheram-s e de lagrimas. Seria ela mesma que havia falado assim? Como se atrevera? Ele iria expulsá-la com certeza. Durante uns instantes ele fitou Gina; viu-lhe os andrajos, a mãozinha suja tapando o buraco do vestido, os cabelos despenteados sobre a testa. Teve a intuição de que naquela criat urinha havia uma incalculável força de vontade, havia ali uma personalidade. Teve pena e sorriu: - Então você quer mesmo aprender a ler? - Que ro sim, senhor. - Seu pai é professor de escult ura do liceu de Artes e Ofícios? - É sim, senho r. Ele mesmo. O diretor ficou pensativo brincan do com a caneta; não fora em vão que estudara ps icologia. Ali havia força, resolução, confiança, intrepidez: fatores de inigualável valor. Dei xou a caneta e fixou a menina: - Diga para seu pai vir falar comigo amanhã. Ou então sua mãe. D epois veremos o que se pode fazer; quero ver se matriculo você no primeiro ano. Gina não acredi tou, ou não entendeu bem; continuou parada diant e da mesa larga, sem saber o que fazer, tão inte nsa era sua emoção. Viu a mão do diretor fazer u m gesto como que a despedindo. Olhou o bigode outra vez, parecia que o bigode estava sorrindo. Ouviu a voz dele: - Está bem. Pode ir. Seu pai que venha amanhã falar comigo. Sem dizer nada, Gina voltou-se para o lado da cortina verde, in clinou-se quase até o chão para passar debaixo d ela e viu-se no corredor largo outra vez. Depois a escada. Desceu apressadamente, atravessou o corredor debaixo, passou pelo velho que estava sentado perto da porta enrolando um cigarro de p alha, desceu mais uns degraus e viu-se afinal na rua. Sem tomar fôlego, atravessou a Avenida T iradentes, desceu correndo a rua S. Caetano e ch egou em casa quando a mãe entrava. Vermelha e cansada da corrida, disse-lhe: - Mamãe, falei c om o diretor do Grupo. Ele vai me arranjar um lu gar. Vou aprender a ler. Colocando uns carvões na lata de querosene para cozinhar o macarrão, d ona Julica perguntou: - O que está dizendo, Gin a? Onde foi? - Falei com o diretor agorinha mes mo. Ele me disse que vai arranjar um lugar no pr imeiro ano. Mas papai precisa ir falar com ele, ou então a senhora. Amanhã sem falta. Dona Ju lica endireitou o busto e olhou para ela; falou quase gritando: - O quê? Você foi falar com o d iretor? E foi assim desse jeito? Suja como uma m endiga? Não tem vergonha? Gina recuou uns passo s e falou com medo: - Mas, mamãe, eu pedi para papai, mas papai não pôde ir. A senhora não tem tempo, então fui sozinha. - Pois então tome, su a burra; Só serve para envergonhar a gente. Saia daqui. Deu dois tapas na cabeça dela. Encolhid a, com os dois braços tapando a cabeça no lugar onde a mãe havia batido, Gina foi sentar-se no c anto, onde estava a boneca de trapo e baixando o rosto sobre a boneca chorou um choro triste, angustiado. Seis meses depois, Gina lia correta mente e escrevia. Mandou uma carta para sua avó que morava em Campinas. O pai deu-lhe uma bola d e borracha e a mãe um par de sapatos. Só Zelin da ficou com raiva e começou a brigar com ela to dos os dias; reclamava porque Gina não lavava os pés para dormir ou porque se mexia durante o so no e a acordava, reclamava porque Gina gostava da boneca de pano e ameaçava-a dizendo que um d ia jogaria aquela porcaria no lixo. Só em ouvir essa ameaça, Gina chorava aos gritos, desesper ada. Mais tarde, ficou conhecendo uma menina, fi lha dos ricos que moravam em cima; essa menina t inha muitos livros. Gina começou a ler; leu tudo que encontrou. Tinha apenas oito anos quando leu a coleção de Júlio Verne, emprestada pela me nina dos ricos, como dizia ela. Compreendeu que a vida tinha mais do que bonecas e gatos para enfeitá-la; tinha livros também. Passaram quase um ano no porão da rua Antiga Amélia; no invern o seguinte, nos dias muito frios, a água começou a cair pelas paredes e dona Julica voltou às an tigas reclamações. Passava o dia enxugando as paredes e quando o professor estava em casa, dis cutiam por causa da água. Dona Julica ficava às vezes tão zangada que não fazia o almoço; quan do o marido chegava ao meio dia, não havia o que comer, coçava então a barbicha com ar desanimad o, olhava o seu rosto ameaçador e dizia calmo: - Non li arrabiare, Dona Julica, se mangia quell o che cose, Gina ia comprar mortadela e pão na e squina; comiam os dois sentados lado a lado na p orta e davam as migalhas para o gato que passa va miando, o rabo esticado. O amigo Giacomo ia s empre visitá-los; propôs um dia morarem todos ju ntos nuns cômodos da rua S. Caetano, com janelas dando para a rua. Ele ajudaria a pagar as des pesas. Dona Julica exultou e Gina sentiu-se feli z. Nessa mesma semana mudaram-se para lá; embaix o era uma venda e a família do professor insta lou-se em cima com o amigo Giacomo. Gina ficava à janela todas as tardes, vendo o movimento da rua S. Caetano. As noites de sábado eram barulhe ntas na venda; ela ouvia gritos de homens, batid as de mãos cerradas no balcão de madeira e tin ir de copos, uns contra os outros. Muitas vezes ouvia gritos mais fortes e uma noite, já era qua se de madrugada, ouviu a policia entrar e leva r um bêbado. Acordou assustada e teve vontade de espiar o bêbado mas, foi retida pelo medo. Os d omingos eram divertidos. O pai trazia massa do Liceu e fazia figurinhas para Gina; das suas mã os cheias de veias, mãos que pareciam mágicas, i am saindo figuras de crianças, de anjos, de bich os. Gina aplaudia batendo palmas. Às vezes, el e desmanchava tudo para fazer outras, e Gina gua rdava cuidadosamente depois no seu quarto, num l ugar onde a irmã não visse, se não jogaria tud o fora, aos gritos. Um domingo, Gina acompanhou o pai ao Liceu; quando voltou para casa, antes dele, não encontrou a mãe; queria mostrar-lhe o dinheiro que havia ganho de um professor amigo do pai. Não encontrando ninguém, ia descer para comprar doces na venda, quando ouviu vozes no q uarto de Giacomo. Então o amigo Giacomo estava e m casa, mostraria o dinheiro a ele. Empurrou d evagar a porta e espiou para dentro do quarto; t ornou a fechar imediatamente e saiu correndo, tr emendo de susto. Vira a mãe e Giacomo deitados na cama. À hora do almoço, enquanto comia, viu Giacomo olhá-la por cima do copo de vinho. Teve medo. Fingiu que não viu e baixou a cabeça sobr e o prato outra vez. O pai estava alegre e con versador; tomou o grande pão escuro encostou-o a o peito; cortou grossas fatias que distribuiu na mesa, depois cortou o queijo e encheu os copos de vinho. Seus olhos espertos corriam de cá pa ra lá, enquanto contava casos do Liceu. Gina esp iava a mãe; dona Julica parecia distraída e não olhou para o lado dela uma vez sequer; enchia os pratos de nhoque e passava aos outros. O amig o Giacomo espetava o garfo em cada nhoque, passa va no molho muitas vezes e levava-o à boca; o mo lho escorreu-lhe uma vez pela barba; ele limpo u rapidamente com a manga da camisa e continuou a comer, despreocupado e alegre. Gina tornou-se uma das primeiras alunas da classe; no fim do a no, após oito meses apenas de estudos, passou pa ra o segundo ano. Quando voltava das aulas, fica va brincando na rua com as crianças dos vizinh os; brincavam de "amarelinha" na calçada. Gina p ulava com um pé só nos quadrados riscados a carv ão e quando alguém passava, tinha que se desvi ar das crianças. Mas quando os meninos brincavam com bolinhas de vidro, Gina ficava de cócoras o lhando; às vezes dizia qualquer coisa e os menin os riam dizendo: "Isto não é brinquedo pra voc ê. Dá o fora". Às vezes encontrava Cosme ou a " menina dos ricos"; Cosme contava quantos pastéis vendera aos soldados da Avenida Tiradentes e mo strava-lhe o dinheiro fazendo as moedas tilint arem no côncavo da mão. Depois oferecia-lhe um p astel, A menina emprestava-lhe novos livros que ela lia em algumas horas apenas, sofregamente. Não gostava da casa. Todos os dias ouvia brigas e discussões; se não era entre o pai e a mãe, er a entre a mãe e o amigo Giacomo, quando estavam sozinhos. Diziam palavrões um para o outro e q uando Giacomo estava cambaleando e com os olhos faiscantes, ameaçava de matar dona Julica com a faca de cortar pão. Nesse dia Gina, teve muito medo e à hora do jantar, enquanto o professor c ortava o grande pão contra o peito, Gina tirou o s olhos da faca: tinha dentes como uma serra, er a comprida e fina na ponta. Depois olhou a mãe ; imaginou então em que lugar o amigo Giacomo es petaria a faca pontuda: no peito ou na barriga? Zelinda detestava a irmã. Quando voltava da ofi cina de costura, ficava conversando na esquina c om o namorado, obrigava-a a dizer que não vira n ada, caso a mãe perguntasse. Dona Julica não q ueria que ela namorasse aquele moreno antipático . E Gina mentia, mas seu rosto ficava vermelho e ela parecia sufocar. Se hesitava às vezes em me ntir, Zelinda dava-lhe beliscões e os braços e as pernas de Gina estavam sempre arroxeados; se se queixava a dona Julica, esta dizia: - Não m e amole. Vá trabalhar. Um dia, quando Gina cheg ou do Grupo, encontrou a mãe empacotando roupas; ficou admirada e perguntou se ia viajar. Inclin ada sobre o saco de roupa, Com rugas na testa e gotas de suor escorrendo pelo rosto, dona Juli ca disse que estava se preparando para irem a Ca mpinas visitar a avó que estava doente. Gina per guntou: - Eu também vou? - Então? Quer ficar a qui para viver na rua. Anda. Gina pensou nos est udos que iria deixar, nas aulas que perderia, ag ora que ia passar para o terceiro ano, mas como desobedecer à mãe? Começou a auxiliá-la. À tar de, quando o professor Pasquale veio jantar, don a Julica contou que ia com as filhas a Campinas visitar a mãe doente; recebera uma carta. O pr ofessor nada disse. Levantou os ombros num gesto resignado e encostou o pão contra o peito para cortá-lo; depois comeu o macarrão, bebeu o vin ho e foi se deitar. Na manhã seguinte, logo depo is que o professor foi para o Liceu, dona Julica e as duas meninas pegaram o saco de roupa e for am para a estação da Luz, mas em vez de entrar em na estação, passaram direito e desceram a rua Prates. Admirada, Gina olhou a mãe e nada pergu ntou; andaram mais de meia hora, afinal chegar am à rua Areal, no Bom Retiro; a mãe parou na fr ente de uma casinha com duas janelas e uma porta no meio. Uma porção de crianças brincavam na ca lçada e no meio da rua; jogavam bola, corriam e gritavam numa grande algazarra. D. Julica bate u e a porta se abriu. Quem estava ali diante del as, sorridente e alegre? O amigo Giacomo. Gina compreendeu imediatamente. Não havia carta de C ampinas, nem a avó estava doente, nada disso. D. Julica tinha apenas abandonado o professor Pasq uale; dali em diante iriam morar com o Giacomo . Entraram cheias de curiosidade e a casa tinha uma sala, dois quartinhos e a cozinha. Pegado à cozinha, havia outro quartinho, onde dormia um amigo de Giacomo, o Santoro, mas que só vinha à noite para casa. Enquanto olhavam tudo, Giacomo passava o braço na cintura de dona Julica que s e esquivava e sorria satisfeita. Começaram a a rrumar as roupas e as panelas. Giacomo, em manga s de camisa, auxiliava a colocar as coisas nos l ugares. Pregou uma folhinha colorida na parede da sala, depois deu uns passos para trás para v er o efeito: a folhinha representava quatro cria nças brincando na areia, coradas e risonhas. Na salinha, havia uma mesa tosca e quatro cadeira s. Dona Julica ia e vinha, preparando o almoço; quando passava perto do amigo Giacomo, este a se gurava pela cintura: - Giulia, mia Giulia... E la olhava para ver onde estavam as meninas e sus surrava qualquer coisa que o fazia rir. Gina fin gia nada ver. Tirou a boneca de trapo do fundo d o saco e foi sentar-se à porta da rua para olh ar a criançada brincar. A mãe chamou-a: - Gigin a. Depois explicou em voz baixa: - Você não po de ficar na porta da rua; podem descobrir que es tamos aqui e o excomungado do teu pai vem nos bu scar. Depois acrescentou: - Se perguntarem teu nome, você é Iracema. Ouviu bem? Zelinda é Líd ia e meu nome é Maria. Entendeu? Zelinda também entendeu? Não fique aí fora. Gina arriscou: - Então não posso ir ao Grupo? Eu queria continuar .... - Cala a boca. Zelinda também não vai na costura. Ninguém sai de casa. No mês que vem, o Giacomo vai nos levar para uma casa perto da cid ade, uma casa maior que esta. Vais ver. A vid a era muito estranha na rua do Areal; não podiam sair, não podiam falar com ninguém. O amigo Gia como trazia vinho todas as tardes e bebiam muito . O Santoro também jantava com eles algumas ve zes e quando Zelinda passava perto dele, Santoro puxava-a pelo braço ou beliscava-lhe o queixo. Um dia Gina viu Zelinda no colo de Santoro e f icou muito admirada; Santoro era um velho, tinha cabelos brancos. Dona Julica dizia que ele era sem vergonha. Velho ordinário. Aos domingos, dep ois do almoço, dona Julica e Giacomo iam dormi r; Gina e Zelinda sentavam-se então nos degraus da escada que dava para a rua; era um lugar escu ro e pela porta entreaberta, ficavam olhando q uem passava na rua. Apostavam. "Agora é um menin o". "Não é. É homem.” "Mulher." "Velho." "Acerte i, burra." "Burra é você". Brigavam. Quando San toro entrava e as via ali, dava uma risada e con vidava-as para irem ao quarto dele, conversar. U m dia Zelinda foi e no dia seguinte, quando dona Julica soube, deu-lhe uma sova muito grande. Zelinda gritava: - Eu não fiz nada. Não fiz nad a. Só conversei. Juro. Soluçando, entrou depois no quarto onde Gina estava vestindo a boneca de trapo; apontou-lhe o dedo indicador, o rosto em fúria: - Foi você que contou pra mamãe. Foi vo cê. Gina levantou-se, assustada: - Eu? Eu não, Zelinda. Eu não disse nada. Juro que não disse nada. Eu. Os socos de Zelinda interromperam-lhe a frase; deu-lhe no rosto na cabeça, nos ombros . Gina saiu correndo do quarto e foi para o fund o do quintal, onde ficou o resto do dia, com a bonequinha entre os braços. Só à noite, quando o amigo Giacomo veio da rua, foi buscá-la e, par a a agradar mandou-a comprar doces na venda. San toro passou uma semana sem aparecer. Dona Juli ca e Giacomo continuavam a discutir e a brigar; quando ele bebia, dizia que havia de matar dona Julica com a faca de pão. Gina vigiava a faca de pão. Via a lâmina que nem serra, acabando em ponta. Tinha medo. Uma tarde, uns quatro meses depois de estarem morando na rua do Areal, a dis cussão entre os dois foi mais forte e dona Julic a disse que ia embora. Estavam jantando e já h aviam bebido muito vinho. Quando Giacomo ouviu-a dizer isso, ficou vermelho de raiva e foi busca r a faca na cozinha. Zelinda e Gina ficaram bran cas de medo e correram para a porta dá rua; do na Julica gritou que ficassem trancadas no quart o, não queria que ninguém saísse. Quando o amigo Giacomo entrou cambaleando na sala, a faca co mprida na mão, os olhos vermelhos e injetados, d ona Julica segurou uma cadeira e levantou-a no a r, ameaçando atirá-la na cabeça do Giacomo. Ele hesitou, depois começou a persegui-la à volta da mesinha; sempre segurando a cadeira acima da cabeça, ela se afastava e se desviava, enquanto as duas meninas tremiam e gritavam num canto d a sala, perto da porta do quarto. Dona Julica nã o tirava os olhos dele; e ele rangia os dentes d e raiva porque não podia alcançá-la. Pareciam du as feras; Foi nesse instante que ouviram batid as na porta da rua ficaram todos parados, imóvei s. Dona Julica mostrou maior calma; sem tirar os olhos de Giacomo, gritou para as meninas: - Abram a porta. É o Santoro. Zelinda correu e ab riu; Santoro entrou, sacudindo as roupas molhada s; lá fora estava chovendo. Admirado, perguntou o que havia; então, o Giacomo, atirou longe a faca e caiu de joelhos diante de dona Julica, ch orando e implorando: - Giulia, mia Giulia... E la sacudiu, a cabeça desgrenhada e voltou as cos tas a Giacomo. Nessa mesma noite, chamou as duas filhas para dormirem no quarto com ela; não dei xou Giacomo entrar. E no dia seguinte bem cedo , logo que os homens deixaram a casa, ela cobriu -se com um chalé de lã preta, chamou as duas men inas e saram. Seus olhos estavam secos e arden tes. Chovia ainda e a rua do Areal era só lama e poças de água suja. Foram andando. Chegaram em frente ao Liceu de Artes e Ofícios; dona Julica mandou Zelinda perguntar o endereço do profess or Pasquale. Enquanto moraram no Bom Retiro, hav iam sabido que o professor se mudara. Ninguém co nhecia Zelinda no Liceu; ela disse na portaria que seu nome era Lídia, era parente de uma sobr inha do Signor Pasquale. Contou que a família qu eria vir de Campinas e não sabia o novo endereço do professor. Dona Julica e Gina esperavam no portão do Jardim da Luz. Quando Zelinda voltou com o endereço escrito num papelzinho, dona Juli ca começou a falar que o professor era muito b om, muito sossegado e que se arrependia de ter i do morar com Giacomo. Enquanto iam voltando para casa, chorou de arrependimento dizendo que o ve lho Pasquale nunca batera nela, nem quando beb ia um pouco mais, coitado, e o amigo Giacomo era um bandido. Seu corpo estava cheio de manchas r oxas; ali mesmo na rua, levantou a ponta da sa ia e mostrou às duas meninas a perna toda marcad a. Não queria mais saber dele; eram dois bandido s, Santoro e Giacomo. Chegaram em casa, molhada s e friorentas. Antes mesmo de trocar de roupa, dona Julica sentou-se na mesinha da sala, onde e stavam ainda as xícaras sujas de café e escrev eu ao marido. Disse que devido à moléstia da mãe , passara todo o tempo em Campinas, mas estaria de volta muito breve com as duas meninas. Gigina estava forte e bonita, a viagem fizera-lhe be m. Pôs data atrasada e mandou Zelinda colocar a carta numa caixa de ferro, na rua dos Italianos. Passaram o dia todo preparando a mudança e à t ardinha, antes do amigo Giacomo voltar para casa , saíram com sacos de roupa e panelas e foram so b a chuva para o novo endereço do professor, l á para o lado da Praça João Mendes. Havia uma po rção de casas iguais no primeiro quarteirão da p raça; lá estava o número indicado no endereço. Já era escuro, quase noite; havia uma luz na sa la da frente. Dona Julica parou e olhou para a l uz. Murmurou: - Imagine a surpresa do velho. S ubiram alguns degraus e ela bateu com a ponta do s dedos; o velho Pasquale abriu a porta e ficou surpreendido, a boca aberta, olhando as três dia nte dele. Depois gritou, levantando os braços para cima: - Gigina! Eh! Gigina! Dona Julica a braçou-o olhando à volta, perguntou: - Não rece beu minha carta? Escrevi em Campinas contando qu e vinha. - Não. Nada recebera. Ele estava janta ndo na cozinha. Cortava rodelas de lingüiça crua e comia com pão e cebolas. Bebia. Bebia vinho, D. Julica olhava tudo agradavelmente surpreend ida. Havia fartura. O velho Pasquale mandou que sentassem e comessem; e com a boca cheia, contou que o filho Pepino estava com ele, aquele que t rabalhava no circo, o Pepino. Então dona Julic a fechou a cara; não gostava desses filhos do pr imeiro matrimônio. Mas o professor explicou; enq uanto mastigava, contou que o Pepino estava co m ele só enquanto. o circo estivesse em S. Paulo , depois iria novamente para o interior; quem sa be para mais longe, Minas, Paraná. Ela se acalmo u e, enquanto comia, contou fatos ocorridos em Campinas durante o tempo que estivera lá; falou longamente sobre a moléstia da mãe e explicou p orque não haviam voltado antes. O professor sa cudia a cabeça e mastigava com ruído, depois beb ia vinho e estalava a língua. Gina sentiu-se fe liz essa noite; estava ao lado do pai e depois h avia o circo do irmão. Iria ao circo uma noite. As duas meninas dormiram no chão para deixar o colchão para Pepino, quando voltasse do circo. E le só chegou de madrugada quando a chuva começar a a cair. E no dia seguinte à uma hora ainda d ormia, enrolado no cobertor vermelho, a luz do d ia batendo-lhe em cheio sobre o rosto esbranquiç ado de pintura. Dona Julica foi acordá-lo: Pep ino! Acorda, Pepino! Venha almoçar. Ele abriu os olhos, espantado. Levantou-se de mau humor, foi se lavar na torneira do tanque e voltou, ainda se enxugando para a cozinha. As orelhas estava m vermelhas e a água corria-lhe ainda pelos cabe los. Sentou-se à mesa queixando-se da pouca freq üência do circo devido ao mau tempo. Achou Gin a crescida e bonita. Depois do almoço, tirou um cigarro do bolso e começou a conversar; gostava de falar. Todos ficaram escutando-o sobre a vid a que levava. Contou que o circo percorrera vá rias cidades do interior e voltava agora de Ampa ro, onde tiveram prejuízo. Chovera durante três meses e o circo não podia trabalhar com chuva. C hoveu tanto que o capim cresceu dentro do circ o "desta altura" e Pepino mostrava a cintura. Nã o havia dinheiro, não havia comida. De manhã bem cedo, a cozinheira fazia uma lata de querosen e de café e os artistas passavam o dia bebendo-o , às vezes com um pedaço de pão, mas não comiam todos os dias, senão o dinheiro não sobrava para a viagem de volta. Tinham fome e não podiam d ormir; e quanto mais sentiam fome, mais a chuva caía, barulhenta e alegre como a rir daquela mis éria grande. Batia na lona esburacada e cheia de remendos, caía por lodos os lados, salpicava a cara dos homens e das mulheres que, acocorados à volta da lata de querosene, esperando a chuva passar; mas ela não passava. Dia e noite caía , forte e barulhenta; às vezes em pingos grossos e às vezes em salpicos leves e claros, para fin gir que estava cansada e ia parar de cair. Mas quando os homens e as mulheres levantavam-se e iam espiar lá fora, pisando sobre o capim enchar cado, os corações cheios de esperança, ela torna va a cair, barulhenta e alegre, como a rir daq uela situação triste. O tempo passava e a misér ia crescia com a chuva; as mulheres enterravam a s cabeças entre as mãos e ficavam molhadas e fri orentas esperando que o tempo melhorasse; os h omens com as barbas crescidas e olhares amorteci dos, blasfemavam à volta da lata de querosene e fumavam, fumavam sem parar. Chuva! Chuva a canta r lá fora e a fome a chorar li dentro, aquela fome que aumentava, que crescia e fazia as cabeç as se esconderem, desanimadas, entre as mãos cri spadas. E no dia seguinte, a mesma coisa; o me smo céu escuro e carregado, as mesmas nuvens neg ras tapando o sol, o capim crescendo no picadeir o, verde e ondulado, e a fome, a desesperança cr escendo nos corações. Três longos meses se pa ssaram assim. Um dia um raio de sol espantou a c huva e o dia clareou; as nuvens negras foram emb ora e só ficaram nuvens brancas como bandos de carneirinhos a percorrer um campo azul. Os home ns do circo desfizeram a carranca e as mulheres começaram a cantar; cortaram o capim, armaram o circo e o programa foi organizado; lá estavam os nomes de todos os artistas, o do Juvêncio e o da mulher do Juvêncio, a Rosalina, que estava e sperando criança. Quando Juvêncio viu o nome d a mulher no programa, correu e falou ao diretor: Rosalina não podia trabalhar no trapézio, - est ava grávida de seis meses. O diretor tirou o ci garro da boca, cuspiu longe e disse que ela trab alharia só naquela noite; o programa já estava f eito e trazia o nome dela; não podia tirar. Rosa lina precisava trabalhar. Juvêncio foi embora com o coração apertado; a chuva caíra durante ta nto tempo e o bebê estava para chegar. Como Rosa lina poderia trabalhar? E à noite, o circo esta va cheio. Todo o mundo foi assistir ao espetácul o; quando Rosalina apareceu e sorriu para o públ ico, os artistas estremeceram; ela poderia tra balhar naquele estado? E ela trabalhou. Jogou-se no ar de um trapézio a outro e atirou beijos ao publico que aplaudiu. Juvêncio respirou fundo. Que grande artista era Rosalina! Os companheir os se entreolharam sorrindo: A Rosalina ia bem! Era preciso o nome dela no cartaz. Não havia din heiro e a miséria era tão grande que se não ti vessem um lucro com esse primeiro espetáculo, qu e seria do circo? Rosalina precisava trabalhar. E no último instante, ninguém sabe como foi; a banda de música. estava tocando uma valsa muito triste: "O vendedor de pássaros". Rosalina sorri u para todos os lados e atirou-se no ar; suas mãos não alcançaram o outro trapézio, ninguém sa be como foi, seu corpo pesado volteou no ar e ca iu no chão, todo esparramado. Um grito só saiu de todas as bocas, a música parou, os artistas correram: estava morta. Só suas mãozinhas muito brancas e leves fizeram ainda um movimento no ar como dois pássaros feridos. Mais nada. Mas os que estavam perto, ouviram um grito de criança quando o corpo de Rosalina bateu no chão; disser am que a criancinha dera um grito de dor. Mais nada. Só isso. Pepino parou de falar. Dona Jul ica sacudiu a cabeça, silenciosa e Gina não comp reendeu bem, mas não perguntou. Imaginou onde es taria o filho de Rosalina e à noite, com os olho s muito abertos, ouviu na sombra, os ais da cr iancinha. Todas as tardes, quando Pepino saía p ara os ensaios, Gina ficava olhando-o e admirand o seu corpo elástico e esbelto. Era bonito, o Pe pino. Uma tarde ele arranjou entradas para toda a família. Foi inesquecível para Gina. Viu o ir mão suspenso no espaço, Seguro, apenas pelos pés e seu corpo fino vestido de malha branca ia e vinha no ar em piruetas estonteantes. Com as mã os úmidas de suor e o coração aos pulos, Gina nã o perdia um movimento sequer; sentiu nesse dia uma admiração sem limites pelo irmão. Mas não se passou muito tempo e o circo seguiu para Sant os. Lá se foi Pepino outra vez e Gina passou mui tas noites sonhando com ele; via seu corpo branc o balançando no espaço e depois pairando como se tivesse asas. E Pepino dizia-lhe adeus com as duas mãos e atirava-lhe beijos. Depois viu Rosa lina com a criancinha nos braços; volteavam no ar como duas folhas perdidas, dessas que caem d as árvores nas tardes sombrias e vão rolando, ca indo, voando e se arrastando, abandonadas e amar elas, sem ter para onde ir. Acordava então su ando frio, o coração batendo, descompassado. II Durante al gum tempo residiram nessa casa, perto da Praça J oão Mendes. Gina conseguiu matricular-se no Grup o Escolar da Liberdade e Zelinda entrou para out ra oficina de costura. Sempre que podia, Zeli nda maltratava a irmã, era má, invejosa e mesqui nha. Não podia ver a irmã brincando ou fazendo a s lições, vinha sorrateiramente com um ar inocen te, um sorriso nos lábios e começava: - Você pensa mesmo que é minha irmã? Uma ova! Você foi encontrada por mamãe numa estrada de ferro. Esp erava. Gina sentia o sangue afoguear-lhe as face s; baixava a cabeça. Zelinda então ficava furios a por não obter resposta e continuava, sarcástic a: - Se não acredita pergunte pra mamãe. Foi en tre Campinas e Jundiaí; o trem ia andando e nós olhamos pela janelinha, íamos visitar vovó em Ca mpinas. De repente o trem parou perto de uma e staçãozinha para tomar água. Você sabe que os tr ens bebem água? E enquanto o trem estava bebendo água, vimos uma criança suja, feia, horrível, engatinhando na beira da estrada... Gina senti a-se sufocar. E se fosse verdade? Zelinda falava com tantos detalhes, devia ser verdade. Sentia vontade de chorar. Quem sabe era por isso que a mãe só gostava de Zelinda. A irmã percebia-lhe a emoção e continuava: - Os cabelos nem pareci am cabelos, estavam imundos e emaranhados; não t inha quase roupas, parecia um bicho. Gina gritav a, revoltada, os olhos em fogo: - Mentira! Zel inda riu-se às gargalhadas: - Mentira? Pergunte pra mamãe. Quando ela viu aquela criança, desce u do trem e viu uns homens ali por perto rachand o lenha. Perguntou: Sabem de quem é esta criança ? Não. Ninguém sabia. Então ela pegou você, enr olou num xale que ia levando pra vovó e trouxe a quela imundície para o trem. De dó. Gina começa va a chorar. Protestava: - Mentira. Não acredit o. É mentira. - É verdade. Mamãe, não é verdade que Gina foi encontrada na estrada perto de Cam pinas? Dona Julica, distraída levando os pratos na cozinha ou costurando perto da janela, respo ndia com indiferença: -É. A cabecinha de Gina pendia para a frente, sobre o caderno onde fazia as lições; seu rosto se contraía de dor. Zelind a dizia, triunfante: - Eu não disse? Estava mai s suja que um cachorro da rua, desses que vivem fuçando nas latas de lixo. Ninguém sabe de onde você veio, ninguém sabe. Mamãe criou você de d ó. Gina chorava cada vez mais e levantava para dar em Zelinda. Esta, mais forte, empurrava-a. A mãe gritava: - Cale a boca. Zelinda deixava a sala e ia se enfeitar para passear na calçada; quando passava perto de Gina, puxava-lhe os cabe los: - Trouxa! Quando o professor estava em ca sa, Zelinda não fazia isso. E quando ele voltava e via Gina chorando, queria saber o que se pass ava. Ela contava entre soluços o que a Irmã ha via dito; o pai consolava-a dizendo que tudo era mentira, brincadeira, não acreditasse. Zelinda era astuciosa e má. Quanto tinha de feia, tinha de má. Não acreditasse. Gina enxugava os olhos e continuava a fazer as lições. O professor dir igia-se a dona Julica: - Per che tu lasci Zelin da maltratare la piccina? Per che? Dona Julica sacudia os ombros e não respondia. Ele ficava za ngado e falava alto; seus gritos repercutiam na rua. De repente, dona Julica perdia a paciência e gritava também. Discutiam durante muito temp o. Gina fechava os cadernos, guardava tudo na pr ateleira da cozinha e corria para o quintal. Cha mava as crianças da vizinha, pulava o muro mei o desmoronado e iam brincar de esconde-esconde. Passava-se algum tempo assim. Na primeira oport unidade, Zelinda atormentava a irmã outra vez, f alava sobre o encontro da criança que parecia bi cho. E Gina chorava até o pai vir consolá-la. Um dia quando ela voltou da escola, encontrou a casa desorganizada; o pai tivera um ataque no Li ceu e viera carregado para casa. Estava na cam a, muito mal. O médico havia dito que era um ata que cerebral e que necessitava muito cuidado. Du rante os primeiros dias, viu o pai de longe, da porta do quarto; ele estava sempre com os olho s fechados, a barba esbranquiçada sobre o peito, a respiração irregular. O médico vinha vê-lo um a vez por dia. Dona Julica suspirava e lamenta va-se, aborrecida, toda despenteada. Vinham algu mas visitas, amigas do Liceu, mas o professor nã o as via; sempre de olhos fechados, imóvel sobre o leito. Só na segunda semana, começou a melho rar e a sentar na cama. Então perguntou por Gina e ela conversou com ele; sentou-se na beira da cama e falou sobre as lições, a professora, so bre os próximos exames. Passaram mal depois da doença do professor Pasquale; tiveram que fazer uma refeição só por dia para que o dinheiro sobr asse para pagar o médico e a farmácia; dona Ju lica reclamava todas as noites quando iam se dei tar, depois de ter jantado uma sopa rala. O prof essor recomeçou a trabalhar; um ano depois, teve o segundo ataque. Não tinha saído ainda para o Liceu; estava se aprontando e no momento em qu e dava o laço na gravata, caiu estendido no chão . Dona Julica mandou chamar a Assistência, dis se que não precisava médico porque ela sabia com o havia de tratá-lo. Durante muitos dias, ele fi cou no quarto escuro, sem falar; só se ouviam se us gemidos de vez em quando. Às vezes, quando Gina chegava do Grupo Escolar, às quatro e meia, encontrava a mãe com, visitas; um dia reconhece u a voz do amigo Giacomo. Enquanto o pai gemia no quarto escuro, ela recebia as visitas no qua rto das filhas, fechada a chave. Gina ouvia as r isadas do homem e a voz da mãe que falava alto, sem se importar com o que se passava lá fora. O pai gemia no quarto escuro. O amigo Giacomo qu ando a via brincando na calçada, dava-lhe uma mo edinha; os outros também. Gina entrava furtiva mente e ia na ponta dos pés até à cozinha; lá, e ntre os cadernos e livros, numa das prateleiras, ela escondia as moedinhas que os homens davam. Durante algumas semanas foi assim. Depois o p rofessor voltou a trabalhar no Liceu; mas Gina n otou alguma diferença no pai. O professor Pasqua le já não era o mesmo; estava esquisito, indifer ente, não falava mais com ela e um dia em que Zelinda bateu-lhe, o pai não a defendeu como das outras vezes; sorriu até, o olhar distante como se não entendesse o que se passava perto dele . Um dia, afinal, surgiu a verdade: o professor Pasquale estava ficando louco. Levaram-no para u m hospício. Gina chorou muito nessa noite, a cab eça escondida sob o travesseiro para que ningu ém ouvisse; lembrava do olhar do pai nos últimos dias; era um olhar estranho que mesmo que pousa sse sobre ela, não a fixava; parecia passar po r cima da sua cabeça ou atravessar o seu corpo e ir longe, muito longe, onde ela não alcançava. Sem o pai em casa, tudo foi se modificando: as visitas chegavam de dia e de noite, Gina vivia n a rua. Às vezes ia para as casas dos vizinhos, o u ficava brincando na calçada com outras crian ças. Quando a mãe não fazia nada para o jantar, ela procurava um pedaço de pão pelos cantos da c ozinha e comia-o com cebola ou torresmos que a mãe deixava sempre no fundo da panela sobre o f ogão. Comprava às vezes um doce com o dinheiro q ue ajuntava; ia à venda da praça e escolhia um d aqueles doces coloridos que havia numa vitrina lá dentro. Pensava muito antes de escolher; que ria um grande, que rendesse. Um domingo, a mãe ordenou que se aprontasse, pois iriam ao hospíci o visitar o professor. Gina lavou com água e sab ão os sapatos furados na sola, esfregou a cabeça , tomou banho no tanque perto da escada da coz inha e saiu com a mãe depois do almoço. Tomaram um trem e depois de uma hora desceram numa estaç ão pequena cheia de gente. Andaram a pé por um a estrada empoeirada, onde muitas pessoas caminh avam .em direção ao hospício. De quando em quand o, um automóvel passava levantando poeira vermel ha: os arbustos e o capim da beira da estrada, estavam também vermelhos de pó. O sol brilhava implacável sobre as cabeças; dona Julica cobriu- se com um jornal para defender-se do calor. No portão do hospício tiveram que esperar um pouco , depois entraram, atravessaram um jardim e subi ram uma escada de pedra. Do terraço que rodeava o edifício, viram um pátio cheio de homens ves tidos com uniforme pardo; uns estavam sentados n os bancos, outros passeavam de um lado a outro, poucos conversavam. Tinham as cabeças raspadas e alguns olharam as visitas com indiferença. At ravés da grade de ferro do terraço, Gina ficou o lhando e procurando o pai, enquanto a mãe conver sava com um homem que devia ser o diretor. De súbito, divisou o pai que vinha vindo devagar, c om a roupa parda, as mãos atrás das costas; sua barba estava completamente branca, tinha um ar abatido e desanimado. O coração de Gina começou a bater forte. Coitado! pensou. Estava diferent e, olhava para o chão com um olhar obstinado. O diretor chamou-o; ele levantou a cabeça e seus olhos fixaram-se em dona Julica; ela sorriu e f ez sinal com a mão. A fisionomia do professor nã o se modificou, continuou, impassível como se não visse ninguém. Depois seu olhar fixou Gina; então, muito lentamente, seu rosto foi se transf ormando. Primeiro foram os lábios; abriram e tor naram a se fechar sem pronunciar som algum; de pois o olhar foi se fixando, foi adquirindo um b rilho estranho enquanto suas mãos moveram-se e s eus dedos; crisparam-se; todo o corpo do profe ssor parecia vibrar sob uma violenta emoção. Gin a tremia, o rosto inclinado para o pátio, olhand o o pai e sorrindo, sorrindo como se quisesse falar: "Papai sou Gigina; sou eu, papai". E de r epente um grito rouco saiu dos lábios do pai, um grito de agonia, de alivio, de dor: - Gigina! Como se nesse grito estivesse contida toda a to rtura de sua alma. Houve um momento de expectati va. Dona Julica recuou dando um gemido; o direto r deu ordens a um enfermeiro para que trouxess e o professor Pasquale. Entraram todos numa sala pequena ao lado do gabinete do diretor, dona Ju lica estava nervosa; tirou o lenço da bolsa de couro preto (presente do amigo Giacomo) e começ ou a passá-lo nos olhos e na testa. Falava apres sadamente com o diretor, dizendo que o marido já -estava bom, pois reconhecera a filha tão dep ressa: o diretor sacudia a cabeça dizendo que o professor iria ficar curado, mas ainda não podia deixar o hospício. Tivesse paciência e espera sse uns meses mais, até Junho talvez. D. Julica assustou-se: - Tanto tempo ainda? Coitado do Pa squale. Foi quando o professor entrou na pequen a sala, rodeado por dois enfermeiros de uniforme branco. O diretor adiantou-se e falou com ele, perguntou-lhe se estava melhor e se já estava preparado para ver a mulher e a filha; ele sorri u para o diretor, um sorriso morto sem expressão ; depois deu uns passos trôpegos até o meio da s aleta. Olhou um por um; Gina quase não o recon heceu. Seria esse seu pai? Tão velho, alquebrado , a boca torta e puxada para cima, um ar tão tri ste. Nem parecia aquele homem alegre que canta va "Santa Lúcia" nas manhãs de domingo, enquanto se vestia. O olhar do professor passou por dona Julica, imperturbável; fixou Gina outra vez; el a tornou a sorrir e deu um passo à frente: - P apai. Mas o olhar do professor passou também por ela, um olhar ausente como se não a conhecesse e voltou-se para o diretor. Dona Julica começo u a chorar enquanto Gina olhava sem compreender; tornou a dizer: Papai! E estendeu os braços; o professor Pasquale recuou como que temendo que a filha o tocasse e procurou a porta para sair; os dois enfermeiros levaram-no para fora. Os pa ssos ressoaram no corredor enquanto dona Julica chorava alto e o diretor explicava que isso er a muito comum e que ele estava melhor, pois, num momento de lucidez, reconhecera a filha. Imóvel de um lado, Gina escutava e olhava; depois ac ompanhou a mãe e voltaram para a estação pela es trada empoeirada, cheia de sol. Só quando estava no trem, de volta a S. Paulo, Gina lembrou-se d e que não entregara o presente que havia levad o ao pai. Como ele gostava muito de queijo, guar dara durante várias semanas, as moedinhas que os amigos de dona Julica depositavam na sua mão quando saíam, e comprara um pedaço de queijo, en rolara num jornal para dar ao pai sem que a mãe percebesse. Vendo agora o embrulho na mão, abriu -o e começou a mastigar o pedaço de queijo, en quanto olhava a paisagem que passava rapidamente diante dos seus olhos. Via através dos campos, das árvores, das casas que iam ficando para tr ás, a imagem triste do professor com a barba com prida toda branca, os olhos mortos como se não e nxergassem, arrastando os pés na saleta do diret or. Depois lembrou-se que quase todos tinham a cara lisa, sem barba, sem bigode; o pai tinha a barba e não haviam raspado os cabelos dele. Pen sou: "Também ele não é qualquer um. É professo r do Liceu, e professor de escultura. Por isso.” Lembrou-se do grito que ele dera: Gigina! quand o ainda estava no pátio. E das lagrimas de dona Julica e das palavras do médico; o diretor era médico. Tudo foi ficando para trás como a paisa gem que parecia correr ao lado dela; pensou como seria bom se tivesse um cavalo negro e galopa sse ao lado do trem para ver quem chegaria prime iro. Ela havia de fazer o cavalo galopar tanto q ue passaria adiante do trem: seria negro, negrís simo. Pêlo brilhante, luzidio, orelhas espetad as para cima, crina comprida que parecesse voar no galope, lindo e valente; pularia aquela cerca , o rio. O rio não seria nada para ele. Seria como sopro? Puf!... já estariam do outro lado. V oaria por cima da ponte, espantaria aquelas gali nhas no terreiro, passaria através daquelas fl orestas (árvores não seriam nada para seu cavalo ) daria um pulo naquele barranco, passaria na fr ente daquela casa, passaria todo o mundo e chega ria antes do trem na estação. Ganharia a corri da. Acabou de comer o queijo, amassou o pedaço d e jornal e arremessou-o pela janelinha. Dona Jul ica nem perguntou onde ela encontrara o queijo , pois estava entretida conversando com um homem que encontrara na estrada. Gina debruçou-se par a ver onde iria parar o jornal amarrotado; viu q ue havia dado de encontro a um poste, depois c aiu numa poça d’água. Imaginou que aquela água e mpoçada não seria nada para seu cavalo. Foi quan do percebeu o trem entrando na estação de S. P aulo. Dona Julica acabava de passar pó de arroz e depois deu o endereço para o homem conhecido. Passou tinta vermelha nos lábios; nem parecia qu e havia chorado. Desceu do trem rindo muito pa ra o homem, porque escorregara na escadinha e o homem, segurara-lhe o braço. Ainda olhou para tr ás para dizer adeus a ele. Depois apressou-se: - Vamos, Gina. É tarde. Quase um ano depois, o professor voltou para casa. D. Julica que esta va esperando, recebeu-o com uma macarronada e um a garrafa de Chianti. Gina estava com onze anos nessa ocasião; foi a única que se sentiu realm ente feliz com a volta do pai. Ele continuou a t rabalhar no Liceu; já estava com a cabeça branca , andava devagar e falava lentamente, procuran do as palavras. Em casa era chamado “o velho”. Um dia ele voltou mais cedo porque não estava pa ssando bem no Liceu, e encontrou dona Julica com um homem no quarto das filhas. Brigaram durante toda a tarde; quando Gina chegou, ainda briga vam. Nessa noite, o professor saiu para dar uma volta como fazia sempre e não voltou mais para a casa. Às onze horas, quando dona Julica fecho u as janelas e a porta, Gigina perguntou: Papai ainda não voltou? Dona Julica sacudiu os ombros e não respondeu. Nem no dia seguinte, nem duran te muito tempo, tiveram noticias do professor Pa squale. Às escondidas, Gina procurava. Foi ao Liceu, lá disseram-lhe que o professor não mais aparecera nas aulas de escultura, estava doente da cabeça. Com o tempo, Gina foi se esquecendo dele; no fim desse ano, quando já havia tirado o diploma no Grupo Escolar, Pepino voltou a S. Pa ulo acompanhando o circo, foi visitá-las uma n oite, e prometeu levá-las ao espetáculo. Gina ba teu palmas de satisfação, depois lembrou-se de c ontar que o pai havia desaparecido, ninguém sabi a dele. Pepino prometeu descobrir-lhe o parade iro. Um sábado à tarde, Pepino apareceu com ent radas para dona Julica, Zelinda e Gina. Todos fo ram ao circo, armado no caminho do Ipiranga e de longe, Gina viu as luzes através da lona que o vento sacudia de vez em quando. A banda tocava um dobrado alegre; lá dentro, Gina sentiu-se de slumbrada; uma multidão aplaudia os artistas; e havia dois palhaços que viravam cambalhotas, u m deles tinha um grande sol pintado nas costas. Gina pensou: engraçadíssimo. Riu e aplaudiu. Com o era divertido! Comia amendoim, e batia palma s para tudo o que via; seus olhos brilhavam de e xcitação. Maravilhoso. Queria ser artista de cir co, pediria a Pepino. E nunca Pepino trabalhou tão bem como nessa noite; seu corpo fino e bran co fazia piruetas no ar e parecia voar de um tra pézio a outro. Toda a gente batia palmas entusiá sticas e Gina sentiu-se orgulhosa do irmão. Er a o melhor artista. No dia seguinte, um domingo , ele apareceu à hora do almoço. Levou um quilo de lingüiça para dona Julica fritar e uns pastéi s de anchovas. Almoçaram tomando cerveja e ouv indo as histórias de Pepino: contou que numa cid ade do interior, o Bentóca morrera, o negrinho q ue não era de ninguém. Zelinda perguntou com a b oca cheia: Como não era de ninguém? Pepino enx ugou, com as costas da mão, a boca molhada de es puma de cerveja: - O Bentóca apareceu não se sa be de onde; não tinha pai, nem mãe, não tinha ni nguém no mundo. O diretor ensinava-o a andar em cima do cavalo; o negrinho tinha um medo louco , mas debaixo de muita chicotada, ia aprendendo. Gina franziu a testa: - Ele apanhava, Pepino? - Então! Para aprender, todos têm que apanhar. Eu também apanhei. Um dia ele ficou magrinho, m agrinho e começou a tossir. Ninguém se importava . Quem ia se importar com um negrinho sem dono ? E o diretor, plaf! plaf! chicote no Bentóca. A prende, negro! Mastigou um grande pedaço de lin güiça com pão e continuou: - Fomos indo de cida de em cidade. O negrinho tossindo e emagrecendo. Um dia vi ele escarrando sangue e contei ao dir etor: "Creio que ele está tuberculoso". O direto r franziu a testa, pensou um pouquinho e virou as costas. Gina mexeu-se na cadeira: - Ele nã o se importou? Pepino parou de comer: - Bem. N ão chamou mais o Bentóca para andar no cavalo, m as também não tratou do negrinho. O diabo estava cada vez pior; ninguém queria chegar perto dele , de medo da doença. Afinal quando chegamos em Guará, o negrinho não podia nem ficar de pé. Es tava agonizando. A voz nem saía mais, de tão bai xa. Todos os artistas ficaram numa casa alugad a em Guará e cada um tomou o melhor quarto. Mas o Bentóca, estava deitado sobre uns trapos, em c ima do cimento. Olhou à volta da mesa e repetiu : - Em cima do cimento frio como o diabo. Então chamei um companheiro, tiramos uma porta do bat ente e pusemos no chão para servir de cama para o negro. Aí ele agonizou três dias e morreu. A mulher do meu companheiro dava café para ele de hora em hora; ele tomava umas colherinhas que n em criança. Na véspera de morrer, ele me chamou e pediu uma galinha com molho pardo. Sonhava d urante anos de vontade de comer uma galinha com molho pardo. Dona Julica interrompeu com uma ri sada: - Que engraçado! Deram a galinha para o n egrinho? Pepino parou um pouquinho: - Fizemos uma "vaca": cada um deu um pouco. Um deu quinhen tos réis, outro deu dez tostões, até juntar tudo . O diretor não deu nada, disse que era besteir a do negro. Compramos uma galinha e a mulher do meu companheiro de trapézio preparou a bicha co m molho pardo. Levamos ao Bentóca. Fez uma paus a para provocar a curiosidade e encheu o copo de cerveja. Começou a beber pausadamente. Zelinda não se conteve: - Bentóca comeu? - Não. Já tin ha morrido. Não estava bem morto ainda, mas não pôde provar a galinha, acho que nem percebeu nad a. Foi tarde demais. Houve um silencio. De repe nte Zelinda começou a rir. Dona Julica gritou: - O que viu? Por que ri assim? Boba alegre! Ela riu mais: - Estou lembrando da galinha com mol ho pardo. Que azar do Bentóca. O que ele perdeu. Podia ter adiado a morte só por um dia... um di a só... Dona Julica riu também, depois falou: - Você está tocada pela cerveja. Bebeu demais. E la subiu; Pepino, ponha o resto dessa garrafa no meu copo, faça o favor. Os outros riram. Havia m tomado muita cerveja; Zelinda tinha os olhos ú midos; Dona Julica dava gargalhadas e batia nas costas do Pepino para ele contar mais histórias. Pepino contou que suas finanças haviam melhor ado, agora tinha porcentagem nos lucros do circo ; pretendia um dia ser o proprietário. No meio d a conversa, Gina perguntou de repente: - Pepi no, e quem comeu a galinha? - Que galinha? - A do Bentóca... Pepino deu ma palmada com força no joelho direito: - Ainda está pensando no Ben tóca, Gigina? Ah! Ah! Ah! Quem havia de comer? N ós todos comemos, não iríamos jogar fora só porq ue ele morreu. Não é todo o dia que se tem gal inha com molho pardo. Estalou os lábios. Dona J ulica deu uma gargalhada; olhou as garrafas vazi as sobre a mesa; Pepino disse que ia comprar mai s cerveja. Quando voltou Gina lembrou o pai qu e continuava desaparecido; dona Julica tirou um lenço cor de rosa de dentro do decote e começou a se lamentar dizendo que viviam mal e que era u ma tristeza não terem noticias do marido. Bem ou mal, sempre Pasquale ajudava nas despesas. Co itado! Pepino despejou mais cerveja no copo de d ona Julica dizendo que o pai havia de aparecer e ele até já tinha um indício; não contaria ain da, mas sabia mais ou menos onde ele estava. Beb endo mais cerveja, dona Julica perguntou quem er a a artista que trabalhava com Pepino no circo ; piscou e deu-lhe outra palmada nas costas; dep ois pediu mais histórias. Uma semana depois, Pe pino apareceu antes do espetáculo do circo, dize ndo que não trabalharia essa noite porque encont rara o pai, mas ele havia morrido. Dona Julica levou as mãos à cabeça: - O que está dizendo? Não entendo nada. Encontrou Pasquale e ele morre u? De que morreu? Quando? Pedindo calma, Pepino sentou-se e contou o que sucedera. Todos ficara m escutando; Gina tinha os olhos secos, parece q ue tinha areia dentro. Descobrira o pai no Braz , morava com uma família italiana; ninguém sabe como ele havia ido parar lá, fazia algum serviço para essa família. Ele achava que o pai não e stava bom da cabeça quando saiu de casa. Havia d eixado o Liceu há muito tempo. Pepino quis conve ncer o professor a voltar para casa, queria faze r uma surpresa para dona Julica e para Gina, p or isso não contara nada. E como estivera muito ocupado no circo, passara uma semana sem ver o p ai. Na véspera, fora visitá-lo e encontrara-o agonizando; apanhara uma pneumonia dias antes, q uando tomara chuva, e nessa mesma madrugada, for a preciso chamar a Assistência, pois o velho gem ia sem poder dormir, seu peito sibilava como u m apito de trem. Agora estava morto. Quando ele chegara à tarde para uma visita, antes do espetá culo da noite, encontrara o professor muito ma l, nem reconhecia ninguém, nem falava. E de repe nte morreu. Pepino acabou de falar e ficou olhan do o chão, um olhar um pouco apalermado. Dona Ju lica foi lá para dentro sem dizer nada, pôs um xale preto nas costas e chamou Gina. Saíram. Qu ando já estavam a uma certa distância, Gina lemb rou-se que devia calçar seus sapatos novos, po is aqueles estavam tão furados que o dedo grande aparecia, mas a mãe não deixou, disse que fosse assim mesmo, pois para visitar o pai morto, sap atos velhos serviam. Tomaram o bonde do Braz; durante todo o tempo, Pepino foi se queixando: n ão tinha dinheiro para o enterro; o pouco que ec onomizara, estava guardando para o seu casamen to, pretendia se casar um ano mais tarde. Pergun tou se dona Julica não tinha economias; ela diss e que não. Sua voz ficou irritada; o que ele est ava pensando? Sustentar uma casa com duas filh as mocinhas que precisavam de roupas, de calçado s, de alimentos, era horrível. Há quanto tempo o professor não entrava com um vintém para as d espesas? Zelinda trabalhava na oficina e o pouco que ganhava, era para o bonde e para os trapos que vestia. Gina só gastava e comia; Ela é que tinha que trabalhar na costura dia e noite; às vezes trabalhava até meia noite para ter o que c omer no dia seguinte. Voltou o rosto do outro la do. O bonde avançava barulhentamente pela aven ida afora. Pepino tirou o chapéu e coçou a cabeç a; lamentou-se outra vez. O dinheiro que custara tanto a ganhar, o dinheiro era dele, não dava ninguém. Fez uma carranca. Dona Julica explodiu : - Mas é teu pai, Pepino, é teu pai! Desceram do bonde discutindo; Gina pensava como encontra ria o pai. Na casa onde o professor morava, havi a loja de calçados na frente e a família morava nos fundos. Algumas crianças estavam brincando na calçada ao lado de uma velha e uma mulher go rda com uma criança pequena nos braços. Pareciam estar tomando a fresca ali fora. Um homem que devia ser o dono da casa, guiou-os para os fund os; atravessaram um pátio cimentado, passaram pe rto de um tanque cheio de roupas e garrafas e ch egaram à porta de um quartinho. O homem mandou que entrassem. Dona Julica entrou na frente, se guida de Gina e Pepino. Viram então o professor deitado sobre uma tábua apoiada sobre caixões de gasolina. Duas velas brilhavam na cabeceira; uma delas estava quase derretida, no chão havia montes de espermacete. Gina olhou um pouco assus tada para o rosto do pai. Estava quase irrecon hecível; sua barba branca toda emaranhada caía-l he sobre o peito; os poucos cabelos brancos não estavam penteados, seu rosto parecia de cera, os olhos levemente entreabertos fixavam a parede da frente. A boca também não estava fechada. Gi na procurou nas feições imóveis, o sorriso alegr e, o olhar malicioso quando brincava com ela, mas a rigidez do cadáver fazia-o quase um descon hecido. Uma lagrima brilhou nos olhos de Gina en quanto dona Julica começou a chorar alto e tir ou o lenço cor de rosa do fundo do decote. Pepin o ficou embaraçado, muito quieto, o chapéu na mã o. O homem deixou-os. Então dona Julica começou a se lamentar, fungando e passando o. lenço pe los olhos e pelo nariz. Gina olhava fixamente o rosto do pai; viu uma mosca passeando pelos lábi os do professor e espantou-a com a mão. Teve v ontade de alisar-lhe os cabelos brancos, mas não ousou. Viu-lhe as mãos cruzadas sobre o lençol, aquelas mãos que faziam coisas tão bonitas, aqu elas mãos que faziam carinhas de anjos tão per feitas. Reparou que à volta das unhas havia círc ulos escuros. Era um lençol que cobria o corpo d o pai. Onde estavam suas roupas? O paletó? A c alça? Então iam enterrá-lo envolto num lençol co mo um mendigo? Não era possível. Sentiu uma revo lta tão grande que teve ímpetos de gritar: "Ladr ões, tiraram as roupas de meu pai. Ladrões.” Sem saber ainda que fazer, ficou olhando. Depois chamou Pepino para um lado e falou baixinho. Pr eocupado com as despesas do enterro, Pepino não respondeu, fez um gesto vago e continuou a olh ar para o chão. Gina deixou o quartinho, atraves sou o pátio e entrou na casa do proprietário da sapataria. Umas quatro crianças tomavam café, sentadas à volta da mesa enquanto a velha mastig ava um pedaço de broa com a boca sem dentes e a mulher do sapateiro servia as crianças. Parada à porta da sala, Gina perguntou de repente: - Onde estão as roupas de meu pai? Como ninguém r espondesse, ela continuou: - Onde estão as roup as? O paletó? A calça? O chapéu? A velha parou de mastigar e olhou-a estranhamente como se perg untasse: "O que quer essa menina?" A mulher cont inuou a servir o café e o homem apareceu na outr a porta abotoando os suspensórios. Gina não te ve medo; tomou um ar resoluto e levantou a voz, ameaçando: - Onde estão as roupas de papai? Se não entregarem a roupa de meu pai, vou dar parte à policia. Papai tinha roupas muito boas. Vou d ar parte à policia e vou chamar meu irmão. O homem ficou parado com as calças meio desabotoad as; começou a dizer que o velho apareceu lá quas e sem roupa, eles é que haviam dado tudo, ela qu e calasse a boca ou eles iriam pô-la para fora . Gina falou mais alto; disse que de qualquer mo do, o pai não poderia ter aparecido na casa dele s enrolado em lençóis e ela queria as roupas. Bateu o pé no chão num gesto resoluto; percebeu Pepino atrás dela e lançou um olhar ameaçador pa ra o dono da casa. O homem sacudiu os ombros e r esmungou; olhou a mulher que sem dizer nada, d eixou a cafeteira sobre a mesa e entrou num quar to; logo mais voltou com um embrulho que jogou a os pés de Gina com desprezo. Pepino pegou o em brulho e quis brigar com o homem, mas Gina segur ou-o pelo braço. Pepino resmungou: ladrões. Qua ndo voltaram com o embrulho, o quartinho estava quase às escuras; as velas haviam se apagado e d ona Julica estava cochilando. Pepino acendeu as velas novamente, ouviram de lá as imprecações e as ameaças dos donos da casa; diziam que as ro upas deviam ser deles porque o velho só comera e dera prejuízo, não trabalhara nada. Um vagabu ndo. Pepino fez um movimento para ir dar naquela gente, Gina segurou-o outra vez pelo braço. Ves tiram o pai: as calças, a camisa, a sobrecasaca. Passaram-lhe um pano úmido sobre o rosto, ond e as moscas pousavam a todo instante e pentearam -lhe os raros cabelos e a barba. Pepino saiu par a comprar mais velas e voltou com um embrulho sob o braço; era pão e salame que eles comeram d e madrugada, num canto do quarto, enquanto dona Julica cochilava sentada no chão com as costas c ontra a parede. O defunto repousava entre quat ro velas e o vento fresco que vinha do pátio, re novava o ar abafado e agitava molemente as chama s. No dia seguinte cedo, o professor Pasquale f oi enterrado no cemitério do Araçá; Pepino foi a visar o Liceu. Todos os amigos compareceram para acompanhar até o ultimo instante o grande art ista, o escultor que fazia milagres com um pedaç o de massa entre seus dedos mágicos e esculpia f iguras maravilhosas em madeira. III Mudaram de residência na mesma semana; dona Julica alugo u um quarto ligado a um pequeno pátio onde coloc ou o fogão de lata de querosene e ali foram resi dir, ela e as duas filhas, na rua Livre. Gina fez logo amizade com a filha de uma professora que morava em frente e que, em pouco tempo, perc ebeu a vontade que Gina tinha de aprender, como queria que a filha também estudasse, começou e ntão a dar lições às duas meninas: história, geo grafia, matemática. Gina aprendia com assombrosa facilidade. Tinha também extraordinária vocaç ão para música; uma tarde em que passava pela Av enida Luis Antonio, parou para ouvir uma musica muito bonita que cantavam numa casa: "Ave Maria" de Gounod. Nessa mesma noite, cantou toda a m usica em casa, diante da mãe estupefata. Mas a miséria começou a bater na casa da rua Livre. Ze linda declarou que não queria mais aprender cost ura, não nascera para isso. Queria arranjar um e mprego de vendedora; tinha uma amiga que vendi a linhas e botões numa loja da rua Santa Efigeni a e ela queria um emprego assim. Gina também com eçou a procurar trabalho. A amizade com a prof essora e a filha durou pouco; a vizinhança começ ou a murmurar sobre as visitas que dona Julica r ecebia. A professora resolveu mudar-se e não dei xou endereço a Gina, apesar de ter prometido. Zelinda namorava um rapaz que residia na rua Li berdade; um dia convidou-o para entrar e tomar u m café feito pela mãe. Ele entrou e ficou conhec endo Gina, nunca mais se interessou por Zelind a. Chamava-se Osório. Gina tinha apenas doze ano s nessa época e já era bonita, bonita de chamar atenção. Cabelos pretos e ondulados, a tez del icada e rosada, olhos enormes, um pouco amorteci dos como se tivessem febre. O corpo fino e perfe ito, as mãos longas e brancas. Osório começou a freqüentar a casa de dona Julica quase todos os dias; trabalhava como vendedor numa casa de cou ros do largo da Sé e estudava à noite; dizia que queria ser jornalista e escritor. Quando vinh a dar uma prosa na rua Livre, trazia um salame e nrolado em papel prateado e dona Julica cortava- o em rodelas finas e distribuía entre as três. Era o jantar que, disfarçadamente comiam ali me smo com pão e bananas, diante de Osório. Ele per cebeu que elas não tinham quase o que comer, e então prometeu arranjar empregos para Zelinda e Gina. Mas o tempo passou e os empregos estavam cada vez mais raros. Por mais que procurassem, n ada encontravam. Zelinda começou a odiar Gina, dizia que ela lhe tomara o namorado; se não foss e a irmã, Osório casar-se-ia com ela. Gina sacud ia os ombros com displicência e não dava impor tância às palavras da outra. Saía todos os dias à procura de colocação e quando voltava para cas a, cansada e desiludida, encontrava Osório conve rsando com dona Julica e Zelinda. Comiam junto s, sentados na cama. A fumaça que vinha do pátio , onde as vizinhas cozinhavam seus jantares, enc hia o pequeno quarto, misturada com cheiro de cebolas, gordura e coisas fritas. Havia também a gritaria das crianças; corriam em algazarra, br igavam, diziam palavrões. Às vezes eram brigas e ntre casais; havia ruído de pancadaria e grito s de mulheres. Gina então tapava os ouvidos e ti nha pressa que Osório saísse, para que ela pudes se se deitar e descansar. Tomava banho no tanq ue onde todas lavavam suas roupas; era um banho rápido e medroso quando tudo ainda estava escuro , tinha medo de.ser surpreendida. Um dia, apres entou-se à Cia. Telefônica e conseguiu uma coloc ação; apesar de sua idade não ser suficiente par a trabalhar na Companhia foi aceita porque menti u afirmando que já fizera quinze anos. Zelinda também empregou-se na mesma Companhia, mas trab alhavam em horas diferentes; cada uma começou ga nhando 30$000 por mês. Gina suspirou aliviada. Ia, enfim, ganhar algum dinheiro. Trabalhava co m coragem. Tinha que sair tão cedo de casa que n o inverno precisava vestir-se com luz acesa. Mas a luz fora cortada por falta de pagamento; en tão dona Julica queimava jornais velhos que enco ntrava na Praça João Mendes, fazia uma tocha com eles e ficava segurando acima da cabeça para que Gina se vestisse. Em cinco minutos, estava p ronta; saía às vezes sem café e à hora do almoço , voltava faminta e friorenta, encontrava a mãe fazendo uma sopa magra, onde molhavam o pão pa ra fazê-la render. Quando os primeiros ordenados das filhas entraram em casa, dona Julica sentiu -se novamente feliz; comprou alguma roupa de q ue precisava e convidou Osório para almoçar com elas aos domingos. Fazia então uma macarronada c om pedaços de carne e molho farto; comiam com ap etite, como no tempo no velho Pasquale. Depois do almoço, Osório costumava convidar Gina para darem uma volta pela cidade; passeavam até tarde nos parques e jardins; às vezes no centro da cidade para ver as vitrinas. Paravam e ficavam o lhando. Gina suspirava diante de tanta coisa bon ita e inacessível. Osório dizia que havia de ser rico um dia e daria a ela tudo o que quisesse . Sorriam e continuavam a andar vagarosamente, s em destino. Comiam amendoim torrado, sentados no banco dos jardins. Osório contava os artigos que escrevia para os jornais, tinha esperança de ser jornalista. Queria ser escritor, havia de e screver livros, queria ser um homem de letras. Por enquanto trabalhava vendendo couros, mas um dia seria diferente. Voltavam à noitinha tomava m café que dona Julica fazia na lata de querosen e. No quarto cheio de fumaça e de cheiro de co isas fritas, eles conversavam ouvindo os gritos das crianças e os ralhos das mulheres. Depois Os ório se despedia prometendo voltar no domingo seguinte; dona Julica dizia que ia dar uma "volt inha" pela Praça. Zelinda ia conversar no portão com outro namorado que havia arranjado. Gina de itava-se o adormecia para levantar no dia segu inte quando todos ainda dormiam. Gina começou a fazer amizades na Companhia Telefônica; conhece u uma porção de moças que sabiam conversar, cont avam casos que a principio ela não compreendia e davam gargalhadas quando ela corava. Era dive rtido. Quando saía com a Pascoalina, iam juntas passear na cidade; Pascoalina ensinava-lhe como se deve arranjar namorado, como se deve aprove itar a vida. E Gina ria, ria. Como a Pascoalina era engraçada! Pascoalina tinha sempre dinheiro ; oferecia um sorvete a Gina nos dias de calor e , no inverno oferecia-lhe chocolate quente num b ar que havia perto da Companhia. Gina saboreav a a bebida com prazer nunca havia tomado nada tã o delicioso, e agradecia a Pascoalina, emocionad a. A amiga dava-lhe palmadinhas nas costas: - Não tem que agradecer, Gigina! Eu ganho um dinhe irinho extra! Ambas riam com gosto. Um dia, qua ndo estavam trabalhando, Pascoalina mandou-a ouv ir uma conversa curiosa pelo fone, Gina ouviu um a voz de homem falando com uma mulher. Escutou , interessada; - Quando então? Amanhã? - Não s ei... Vamos ver... - Por que "vamos ver"? Diga amanhã meu amor. Estou com tantas saudades... - Amanhã é perigoso. - Por quê? Vamos, amor. Ten ho tanta coisa para contar... - O que é? Conte agora. - Agora não posso. Lá eu conto, no nosso ninho. Sonhei com você... - O sonho foi bom? - Delicioso. Diga que vai amanhã... - Está bem. Eu vou, mas... - Adoro você. Então à hora do c ostume. Amanhã. Um beijo. Gina ouviu um som pro longado de beijo. Começou a rir e olhar para Pas coalina. A outra piscou: - Isso é sempre assim, Gigina. Quase todos os dias. Eu me divirto um colosso. Gina ficou pensativa. Nunca ouvira pal avras tão agradáveis, tão carinhosas, tão doces. Havia de ser bom a gente ouvir uma voz assim, t ão terna. Perguntou: - Quem será? Pascoalina voltou-se, admirada: Quem? Os gajos do telefone ? Dois diabos que fazem coisas proibidas. Dois dias depois, Gina ouviu as mesmas vozes conversa ndo marcando novos encontros. Resolveu intervir. Quando o homem pediu ligação, ela intrometeu-se na conversa deles. O homem assustou-se: “Tem alguém escutando nossa conversa. Amanhã eu telef ono”, desligou. Gina nada contou às companheiras , mas divertiu se muito; sentiu prazer em assu star os dois. No dia seguinte fez a mesma coisa. Deu apartes no meio da conversa, ouviu um desaf oro. Respondeu com outro e uma risada. Chamou um a das companheiras e contou toda a história, N o dia seguinte esperaram a hora com ansiedade; e stavam nervosas. Pascoalina não viera nesse dia era uma pena. Ficaram esperando e de repente o uviram o pedido de ligação e a voz do homem, um pouco ressabiada: É você? A voz feminina respond eu: - Sou, sim. Como vai? Houve um silêncio. P arece que os dois estavam receosos de uma interr upção; de súbito ele perguntou, medroso, a voz b em baixa: - Hoje? Gina e a amiga puseram a mão na boca para rir. Antes da voz feminina respond esse, Gina falou: hoje não, vou tomar banho. Ela falou alto, divertida. Admirada da outra não acompanhar a brincadeira, levantou, a cabeça. Di ante delas, estava a chefe das telefonistas, a m esma que a havia admitido na Companhia. Estava s éria, furiosa, fitando as duas meninas com olh ares coléricos. Nessa mesma tarde foram expulsas e Gina ficou sem trabalho. Voltou para casa mu ito desanimada e contou que perdera o emprego. F oi então que Zelinda exultou; enquanto Gina fica va em casa, sem ganhar nada, ela voltou à Compan hia e continuou a trabalhar. Osório tornou-se mais assíduo na casa de dona Julica; quando perc ebia que antes do fim do mês não havia mais dinh eiro e ninguém vendia fiado, dava cinco mil ré is para dona Julica ir se arranjando até Zelinda trazer o ordenado. Gina começou a procurar empr ego outra vez, mas agora era mais difícil encont rar algum trabalho, pois fora expulsa de uma C ompanhia. Osório dizia que se ganhasse mais um pouco, ajudaria a todos, mas o dinheiro não dava para tudo, tinha que estudar à noite e precisav a de livros. O que pudesse dar, daria de boa v ontade. Uma tarde, convidou Gina para dar uma v olta e durante o passeio pelo Jardim da Luz, per guntou se ela faria o que ele pedisse. Gina olho u-o: - Por que não? Tudo o que você quiser, eu faço. Você tem sido tão bom para nós, tem dado dinheiro pra ma mãe, tem levado coisas para noss o jantar, tem procurado emprego para mim. Como n ão? Fechou os olhos ao lembrar da penúria do qu artinho da rua Livre. Afinal Osório havia feito tudo para suavizar aquela miséria. Ele parou na margem do lago e segurou com força a mão de Gi na. Olhou para os peixinhos vermelhos que nadava m entre nenúfares verdes. Olhou-a, o rosto bem p ertinho do rosto dela. Perguntou com a voz um pouco diferente: - Gina, Gigina, você faz o que eu pedir? Faz? Ela sorriu, divertida: - Faço. Ele puxou-a mais para perto e sentiu o corpo tr êmulo de Gina junto ao seu. O sol já ia sumindo e um vento frio começou a passar através das pla ntas do Jardim da Luz; a água do lago se encre spava toda quando o vento passava. O jardim esta va quase deserto devido ao frio. Gina sentiu um arrepio; sua mão, vermelha e gelada, estava en tre as mãos quentes de Osório. Ficou olhando os peixes. Ele perguntou baixinho, sempre apertando a mão dela: - Jura? - Juro. - Então venha co migo. Puxou-a pela mão. Ela acompanhou-o entre curiosa e trêmula. Seu coração batia tão depress a que pareceu-lhe que ia perder a respiração. At ravessaram a estação da Luz e foram andando pe las ruas da vizinhança. As luzes se acenderam to das, de repente. Osório pediu que ela esperasse um pouco na esquina; ele voltaria logo. Não de morou muito tempo e apareceu com uma expressão f eliz na fisionomia, os olhos alegres de excitaçã o. Nervosamente, segurou-a pelo braço: - Vamos, Gigina. Chegaram em frente a uma porta onde ha via apenas uma tabuleta: "Alugam-se quartos". En traram, ele sempre na frente; não viram ninguém. Gina viu-se num quarto, onde havia uma cama e uma cadeira; sobre uma pequena mesa uma lâmpada com luz fraquinha. Osório apagou a luz e abraçou -a fortemente; Gina deixou-se abraçar. Era iss o que Osório queria? Coitado! Fora sempre tão bo m, faria a vontade dele. Sentiu os beijos de Osó rio sobre seu rosto, seu pescoço, sua boca. Le mbrou-se da conversa que ouvira no telefone entr e os dois "diabos", como Pascoalina dissera. Por que diabos? Era tão bom deixar-se abraçar, beij ar. Lembrou-se da água do lago, ficava toda cr espa quando o vento passava; decerto era frio. E la também estava com frio e tremendo. Sentia a r espiração de Osório junto ao seu rosto, e seus beijos cálidos, perturbadores. Abraçou-se a ele . Mal ouvia o vento que continuava a soprar pela s ruas, vindo do Jardim da Luz. Lembrou-se dos p eixinhos do lago e do rosto radiante de Osório quando ela disse: "Juro.” A miséria foi aument ando no quartinho da rua Livre. Há muitos anos, dona Julica não recebia mais as visitas misteri osas que se fechavam no quarto com ela e cochich avam e davam risadinhas. Estava envelhecida, fei a, quase sem dentes, não atraía mais ninguém; passava ainda vermelho nas faces e vermelhos nos lábios, penteava os cabelos com esmero, usava b lusas decotadas, onde escondia, no decote, o l enço cor de rosa e depois de cobrir-se com o que tinha de melhor, ia dar uma volta pela Praça Jo ão Mendes. Procurava conversar com uns e outro s, ria-se quando ouvia piadas; ou gracejos, e re bolando seu corpo magro, voltava sozinha para o quartinho da rua Livre, desanimada e miserável. Seu rosto enrugado e murcho não tinha mais o v iço da mocidade, como no tempo do professor Pasq uale e quanto mais as rugas aumentavam nas suas faces, mais aumentavam também as miséria e o d esalento. Em vão, Gina continuava a procurar tr abalho; aceitaria qualquer coisa, só não queria ser copeira em casa de família. Isso não. Um di a dona Julica lembrou-se de visitar os padrinhos ; eram ricos e importantes, residiam na rua Duqu e de Caxias. Como não lembrara antes? Chamou as filhas; explicou que talvez o padrinho, ex-sen ador, arranjasse um emprego para Gina, era um ho mem importante, antigo amigo de sua família, em Campinas. Resolveram ir num domingo à tarde. N esse dia, dona Julica não pintou as faces e os l ábios; ficou pálida e tristonha. Pediu emprestad o um casaquinho escuro de uma das vizinhas, uma mulata que fazia cocadas, e foram para a rua D uque de Caxias, depois de terem pensado bem sobr e o que iriam dizer. Contariam toda a verdade. Na casa do ex-senador, ficaram sentadas num terr aço ao lado, esperando que as mandassem entrar, mas ninguém mandou. Esperaram durante uns vinte minutos; viram canarinhos em gaiolas, flores n as trepadeiras, goivos nos canteiros ao lado da casa. Falavam pouco e baixinho. Ouviam vozes que vinham lá de dentro, entremeados com risos e tinir de copos. Com certeza estavam almoçando, n em lembraram que os ricos almoçam tarde. De rep ente a madrinha apareceu acompanhada por uma fil ha moça e duas crianças que traziam grandes peda ços de bolo nas mãos e comiam devagar, olhando c om indiferença para as visitas. Gina e Zelinda olharam o bolo gulosamente; parecia delicioso, coberto com creme. Gina sentiu a boca encher-se de saliva e virou o rosto para não ver mais. A madrinha lembrou-se de repente, interrompendo a , conversa com dona Julica e dirigindo-se à cria nça mais velha: - Vá dizer lá dentro que tragam bolos e café para as visitas. Ande, Francisco. Gina e Zelinda olharam Francisco com ar suplica nte; Gina até esboçou um sorriso. Iriam comer da quele bolo? Ah! Meu Deus! Inclinando a cabeça pa ra trás a fim de não perder o creme que se est ava desprendendo do pedaço de bolo, Francisco co meu as ultimas migalhas e sumiu correndo lá para os fundos do terraço. Gina seguiu-o com os ol hos, interessada e esperançosa. O menino entrou na casa por uma porta lateral. Ansiosamente, fic ou esperando; via um pratinho nas suas mãos e so bre ele um grande pedaço daquela maravilha ama relada; decerto o creme era de chocolate porque era escuro, quase preto. Comeria devagar para nã o mostrar que estava faminta, faminta de tudo que era bom e gostoso; com certeza nunca esquece ria aquela fatia deliciosa. A mãe respondia às p erguntas da madrinha, falavam de pessoas conheci das de Campinas. Ouviu uma voz grossa, lá dent ro; "O desenvolvimento econômico do Brasil..." O utra voz grossa falou: "As eleições provocaram s empre pontos de divergência entre..." Gina pen sou: "Por que será que o bolo está demorando tan to? A criada está cortando..." "As assembléias.. ." "Está pondo nos pratos, um pedaço para cada v isita..." "Aqueles que assinaram o manifesto.. ." "Os três pratos estão sobre a bandeja grande. Agora vem trazer, vem vindo, vem vindo...” Gin a prestou atenção no que a madrinha estava falan do; queixou-se de dona Julica ter passado tantos anos sem procurá-la. Por que não a visitava de vez em quando? Dona Julica com voz repassada d e dor, começou a desfiar o rosário de misérias; contou primeiro a morte do Pasquale. Como o dest ino fora cruel! Eles que viviam tão felizes, t ão unidos, sem nunca se separarem, e de repente a morte os separa brutalmente, deixando-a desesp erada com aquelas duas meninas... Gina lembrou-s e da morte do pai, as moscas passeando sobre o rosto e a barba do professor e a mãe cochilando com as costas contra a parede. Contou depois a corrida atrás dos empregos para as filhas, as dificuldades, as lutas, a falta de roupas para s e apresentarem decentemente nos empregos. A madr inha ouvia com condescendência mas impaciente, p orque a todo o instante consultava as horas nu m relógio pulseira cravejado de brilhantes. A fi lha moça havia se levantado, fora lá dentro fala r ao telefone, voltara outra vez e sorrira par a Gina e Zelinda enquanto ouviam o relato de don a Julica. Houve um movimento de portas, ouviram vozes, Gina pensou que era a bandeja com o bolo que vinha, era o padrinho, homem rico, ex-senad or, que entrou na sala, acompanhado de uma sen hora e um senhor que decerto haviam também almoç ado lá, comido o bolo com creme. Olhando novamen te o relógio, a madrinha apresentou dona Julica ao marido e ao casal que entrara; contou que q ueriam um emprego para a filha mais moça, Georgi na. E sorriu para Gina. O padrinho ouviu distrai damente alisando os bigodes grisalhos. De súbi to, quando a madrinha estava terminando e o ex-s enador parecia ter prestado atenção, ele se leva ntou num impulso rápido e aproximou-se de uma da s gaiolas dos canários. Ficou nas pontas dos p és e espiou para dentro; todos seguiam os movime ntos do ex-senador. Ele voltou-se para a madrinh a, um ar contrariado: - Como é que deixaram o c anário sem alface hoje? Eu já disse que precisa alface todos os dias para o canarinho. Leontina! Onde está Leontina? A mocinha levantou-se e fo i chamar Leontina na porta da sala. Uma criada a pareceu e o padrinho interpelou-a com energia: - Onde está a alface para o canarinho? Todos es tavam interessados na alface. A madrinha voltou- se para dona Julica: - Ele adora os canários. M as veremos o que podemos fazer. Talvez a gente p ossa arranjar alguma colocação para sua menina. A senhora que entrara com o dono da casa, falo u para a madrinha: - Esta menina está boa para tomar conta das crianças de Eulália. Você não ac ha? E olhou Gina sorrindo. A madrinha perguntou : - Que idade tem? Quer ser pajem das crianças de minha sobrinha? A filha mocinha que não disse ra nada, respondeu depressa: - Ora, mamãe, ela tem aptidões para um emprego melhor do que tomar conta de crianças. Quem sabe papai pode arranja r algum lugar numa Companhia? Ou num escritório? Tornaram a prestar atenção na criada que troux era alface; o ex-senador em pessoa colocou uma f olha na gaiola do canário; fez um gesto com a bo ca como se estivesse assobiando, os bigodes qu ase roçando as grades da gaiola. Como se se lemb rasse de súbito, voltou-se para a esposa, o reló gio entre as mãos: - Não são horas de ir? Três e meia. Peça licença... Dona Julica fez um movi mento para se levantar e desculpou-se, mas a mad rinha levantou-se mais depressa e pedindo que es perasse um instante, foi lá dentro. "Agora vem o bolo, ela foi buscar o bolo," pensou Gina. E cravou os olhos na porta. A madrinha apareceu co m um pacote que colocou delicadamente nas mãos d e dona Julica; ela e as filhas que já estavam de pé para sair, despediram-se agradecendo muito . Quando desciam a escada de mármore, a madrinha recomendou com carinho: - O que eu puder fazer para as meninas, eu faço. Pode ficar certa. Man darei chamá-la logo que houver alguma coisa. Na rua, durante o percurso de volta, Gina e Zelind a quiseram saber o que havia no pacotinho. Seria o bolo inteiro? Antes de abrir, apalparam-no, c heiraram-no, querendo adivinhar o conteúdo. Af inal dona Julica abriu-o com curiosidade; havia uma blusa velha de tricô, uma saia de linho desb otada e um envelope com uma nota de cinco mil réis. Gina apertou os lábios sem dizer nada, Zel inda disse um nome feio. Dona Julica lembrou-se de repente que não deixara o endereço; de que fo rma a madrinha avisaria se arranjasse alguma c olocação? Nem perguntara onde elas moravam. Fez um movimento pra voltar, mas Gina segurou-a pelo braço: - O que? Voltar para dar o endereço àqu ela gente? Não senhora. Estavam loucos para nos verem pelas costas, nem perguntaram onde nós mo rávamos, querem que eu seja pajem das crianças d a Eulália... Nada disso. Prefiro procurar empr ego sozinha... até morrer. Mamãe, nem nos deram um pedaço de bolo... Sentiu a boca cheia de sal iva. Zelinda pediu a nota de cinco mil réis, ent rou na primeira confeitaria que encontrou e comp rou doces. Começou a mastigar e ofereceu um à mãe e à irmã. Gina tornou a falar: - Eles não q uerem saber, de nós, mamãe. Eu estava louca para comer aquele bolo. Bandidos. Imitou a voz do e x-senador: - Leontina! O canarinho precisa de a lface. Alface todos os dias, ouviu, Leontina? R iu-se e continuou com a boca cheia: - Deixe aqu ela gente, mamãe. E nós que não comemos alface h á quantos anos? Nem sei. E aquele bolo, meu Deus ! Pestes! Chegaram à rua Livre e encontraram O sório esperando-as com um pacote de lingüiça nas mãos. Dona Julica ficou satisfeita; foi convida ndo Osório para entrar, tirou logo o casaquinh o emprestado, arregaçou as mangas e foi fritar a lingüiça. O cheiro encheu o quarto; Osório, sen tado na cama ao lado de Gina, tirou do bolso um papel e mostrou-lhe; era um artigo que escreve ra para um jornal, não sabia ainda se seria acei to. Enquanto ela lia, em voz baixa, ele olhava- a fascinado; desde um domingo antes em que havia m estado juntos perto da estação da Luz, juntos e sozinhos num quarto, ele não aparecera mais. Pensara nela a semana inteira, sem coragem de a parecer; agora estavam juntos novamente, esperan do o jantar que dona Julica preparava. Começaram a comer, ouvindo os gritos das crianças que b rincavam no pátio; Osório olhava para Gina; ela comia pão com lingüiça sofregamente, sem tirar o s olhos do artigo que colocara sobre o travess eiro. Terminaria de ler depois. Dona Julica enqu anto comia contava a Osório a visita que haviam feito ao ex-senador; mastigava e falava ao mes mo tempo. Quando Dona Julica levantou-se para fa zer café, Osório pegou a mão de Gina, apertou-a e perguntou quando estariam juntos novamente soz inhos... Seu olhar tinha qualquer coisa de vid rado, de amortecido... Devorava-a com os olhos. Perguntou baixinho: - Quando? Ela levantou os ombros num gesto displicente; ele tornou a pergu ntar: - Quando, Gigina, por favor... responda. Quando Dona Julica foi para o pátio a chamado d e uma vizinha e Zelinda deixou o quartinho, Osór io apertou Gina entre os braços e começou a beij á-la. - Ela empurrou-o: - Não faça assim... - Por que, Gigina? Não gosta de mim? Ela não teve tempo de responder; Dona Julica entrou e pegand o a cafeteira fumegante entre as mãos, foi servi -los. Osório tinha uma expressão tão desesperada no olhar, que Gina teve pena; sorriu para ele e começou a tomar café aos golinhos, assoprando a caneca antes de cada gole. IV Gina pedia jornais emprestados; e m casa cortava os anúncios de empregos: "Precisa -se de moças..." "Precisa-se de meninas..."; ela se apresentava. Assim arranjou vários; um del es para oferecer produtos de beleza em todos os bairros, de porta em porta. Era um suplício. Toc ava a campainha de uma casa e ficava esperando; nas mãos, um embrulho cheio de potes e latinha s. A porta se abria e ela começava, rápida: - T enho aqui uns produtos muito bons. É um creme es pecial para a pele; ela fica macia que é uma bel eza. - Não interessa. E a porta se fechava com força. Mais adiante, a mesma coisa. As criadas estavam todas ensinadas: - A patroa não quer na da... Às vezes nem sabiam o que ela estava ofer ecendo, já faziam sinal com a mão ou com a cabeç a dizendo que não; a porta se fechava. Gina reso lveu falar ainda mais depressa para ver se dav a tempo de interessar a compradora; ficava com o potinho de creme nas mãos e assim que a porta s e abria, ela apresentava-o e dizia rapidamente: - Faça-o-favor-de-experimentar-esta-maravilha. É um creme-especial-que-vai-deixar-sua-pele-maci a-e-sem-manchas. - Veja... - Obrigada. Não quer o nada. "Esta ao menos foi delicada, disse "obr igada", antes de fechar a porta.” Uma gritou da janela, lá em cima, enquanto batia o tapete do quarto: - Tenho mais que fazer. Gina respondeu: - Eu também tenho. A mulher que já havia se r etirado da janela, tornou a aparecer e a voz gri tou, estridente: - Sua malcriada. Aprenda a ser delicada e deixe desaforos. Gina respondeu: - Quem fez desaforo foi a senhora, eu não disse n ada. - Vá embora e não me aborreça. - Se eu q uiser, não vou. - Ah! Não vai? Eu chamo a polic ia e já. Saia da frente da minha casa. - Não sa io. - Não sai? Espere um pouco que eu mostro se sai ou não, desaforada. Gina berrou com toda f orça: - Bruxa velha! E saiu correndo com o pac ote na mão. Quando chegou na esquina, diminuiu o passo e olhou para trás; a vizinhança estava em alvoroço e a mulher, no portão da casa, falav a e gesticulava. Gina correu mais e tomou o bond e que ia passando. Nunca mais voltou àquele bair ro. No fim de vinte e cinco dias de trabalho, de pois de ter gasto o par de sapatos, tomado chu va e se cansado horrivelmente, vendeu cinco pote s de creme e ganhou dois mil réis. Nessa tarde o fabricante de cremes que já era velho e tinha bigodes cortados bem rentes, disse que ela não precisava trabalhar tanto; com aquele rostinho, ganharia muito mais sem trabalhar. E antes que G ina deixasse o escritório, passou-lhe a mão, v elha e áspera pelo rosto, ela saiu correndo e nã o voltou mais para vender produtos de beleza. N um outro escritório em que se apresentou, cujo a núncio dizia: "Precisa-se de vendedoras moças e de boa aparência", Gina foi recebida por um home m simpático que sorria docemente; estava numa saleta pequena, onde havia uma escrivaninha gran de, prateleiras com papéis, várias cadeiras e um a mesa pequena perto da porta e sobre ela uma máquina de fazer café. Sobre a escrivaninha, vár ios retratos de crianças e de uma mulher ainda m oça, de fisionomia serena. O homem, que tinha os cabelos grisalhos e aparência distinta, expli cou o serviço a Gina; ganharia uma boa comissão e, se fosse esperta, ganharia bom dinheiro. Ela ficou satisfeita e diante do sorriso doce e si mpático, prometeu fazer o possível; apresentou-s e nesse mesmo dia em diversos escritórios e ofer eceu ações da Companhia; vendeu várias nessa tar de e nos dias seguintes. Uma semana depois, q uando Gina voltou com o resultado da venda das a ções, o homem simpático ficou satisfeito e ofere ceu-lhe café feito por ele mesmo sobre a mesinha perto da porta. Ela ficou encantada. Tomar ca fé com o chefe? Era esplêndido. Nesse mesmo dia contaria a dona Julica. Aceitou, um pouco admira da, e sentou-se perto da escrivaninha; olhou a fotografia das crianças. O homem sorriu docemen te diante do retrato dos filhos e falou sobre el es enquanto ia de um lado a outro, preparando o café. Gina ouviu o barulhinho da água fervendo ; cuidadosamente, ele fechou a porta para que o vento que vinha do corredor, não esfriasse o caf é. Gina pensou: "Esse homem é bom, tem dó de m im e me oferece café; tem o retrato da mulher e dos filhos sobre a escrivaninha, esse é correto. Ainda não vi um homem bom assim. Se ele soube sse como eu gosto de café! Ainda mais assim quen tinho, feito na hora. Homem bom! E tem um sorris o tão simpático!” Ele ofereceu-lhe uma xícara q ue ela, de pé, começou a beber um pouco desorien tada. Na frente dela, o homem também bebeu, olha ndo-a e sorrindo meigamente. Quando terminou, tomou-lhe a xícara das mãos, colocou-a sobre a m esa e segurou o braço dela, num gesto delicado e simples, como uma criança brincando com outra c riança. Gina deu uns passos para trás, um pouc o assustada, mas ele sorriu e perguntou: - Não precisa ter medo de mim, não faço nada. Gina pro curou sorrir e olhou a porta, depois olhou o hom em, o coração batendo forte. Ele percebeu e para acalmá-la, começou a falar sobre negócios; pa ra adquirir confiança, falou sobre o movimento d a Companhia no interior, sobre a comissão que se ria aumentada. E ofereceu mais café; Gina não aceitou, disse que precisava sair e dirigiu-se p ara a porta. Ele foi mais esperto, ficou na fren te, para não deixá-la sair, e disse a Gina que e la não precisava trabalhar tanto. Para que ess a vida estúpida? Se havia vidas muito mais leves e cheias de encantos? Quando Gina, indignada, e stendeu os dois braços para empurrá-lo e abrir a porta, ele procurou enlaçá-la; seu doce sorri so havia desaparecido, sua fisionomia estava car regada, feia, parecia outro homem. Gina gritou com toda a força: - Abra a porta. Abra a porta . Ele tornou a avançar, mas ela deu-lhe um tapa no rosto; antes que pudesse reagir, Gina abriu a porta e saiu correndo pelo corredor, chorando de raiva. Perdeu o emprego. Voltou para casa, d esesperada, pois esse emprego fora o melhor de t odos. Contou à mãe o sucedido, dona Julica riu-s e. Os sapatos de Gina estavam velhos e deformado s; ela dobrava jornais velhos para forrar a so la, mas nada adiantava; sentia através dos jorna is rasgados, as asperezas das ruas, o calor das calçadas e a umidade da chuva. Um dia encontro u uma caixa de papelão numa lata de lixo; tirou- a e levou-a para casa; cortou-a com o formato da sola do pé e colocou dentro do sapato. Para f icar mais garantido, colocou duas folhas de pape lão e calçou os sapatos; ficaram apertados, mas não se importou. Saiu à rua e andou a tarde toda procurando emprego; passou pelo largo da Sé, onde Osório trabalhava. Ele estava à porta da ca sa de couros e fez sinal de que precisava falar- lhe. Quando Gina se aproximou, ele disse que e stava arranjando um emprego ótimo para ela: vend edora de cabides. A comissão seria boa e todo o mundo precisava de cabides. Gina sorriu, esperan çosa; depois queixou-se dos pés que doíam horr ivelmente. Disfarçando, ele tirou do bolso da ca lça, uma nota de dois mil réis, bem amassadinha e deu a ela, dizendo que era o único dinheiro que podia dispor. Gina não quis aceitar, mas ele insistiu, era para dona Julica. Depois pergunto u se ela não queria dar uma volta pelo Jardim da Luz, domingo à tarde; distraída, pensando no que iria comer com aquele dinheiro, ela responde u que talvez pudesse ir. E despedindo-se de Osór io, dirigiu-se para uma esquina onde vendiam p astéis quentes e café. Pediu dois e comeu-os num instante, pediu mais dois e um café na xícara g rande. Depois lembrou-se da mãe e resolveu dar o resto do dinheiro para ela jantar, pois há mu ito tempo só tinham uma refeição por dia. À noit e, tomavam água com açúcar preto por ser mais ba rato e iam dormir com fome. Quando voltou para casa e tirou os sapatos, seus pés doloridos tin ham bolhas enormes; devido ao papelão, eles fica ram comprimidos e cheios de bolhas. Teve que ban há-los em salmoura e passou dois dias sem pode r calçá-los. Dona Julica ficou furiosa e disse nomes feios. Zelinda continuava na Companhia Tel efônica; contou um dia que Pascoalina ia deixar o emprego para se casar. O noivo era rico e al ugara uma casa com jardim na Barra Funda; Gina r esolveu procurá-la e expor-lhe a situação. No fi m dessa semana, Osório apareceu, radiante: arran jara o emprego para Gina. Ele mesmo levou-a à casa de móveis do seu Isaac e apresentou-a; o do no tinha um filho sardento de cabelos vermelhos e dentes muito grandes que se chamava Teodoro; Teodoro olhou para Gina e sorriu. Ela não sorri u, não gostou da cara do moço. Reparou nas mãos dele; eram grandes e pareciam aranhas, pegajosas e moles. Nessa mesma hora, deram-lhe cabides para oferecer de casa em casa; Gina despediu-se de Osório e tomou o bonde para Higienópolis, co m oito cabides no braço. Não vendeu nada nessa tarde, todo o mundo já tinha cabides. Voltou mu ito triste para a casa do seu Isaac, mas Teodoro consolou-a dizendo que no dia seguinte, ela ven deria tudo. No outro dia, bem cedo, ela já est ava na rua com os cabides no braço; para não per der tempo com o almoço, a mãe deu-lhe um pedaço de pão e uma banana para comer no caminho. Tom ou o bonde de Vila Mariana; duas horas depois, v endeu o primeiro cabide; logo depois outro. Entu siasmada, sentou-se num muro meio desmoronado e devorou o pão e a banana. Depois vendeu mais d ois e quando já ia voltando para a casa do seu I saac viu uma mulher na porta vigiando o filho; a o passar, perguntou-lhe si queria um cabide; " eram fortes, bons e perfeitos, uns para paletós de homem, outros para vestidos de senhoras." Ant es que terminasse de falar, a mulher disse: "Me dá dois que estou precisando.” Gina teve Ímpe tos de beijá-la; acariciou a cabeça da criança e nquanto a mulher ia buscar o dinheiro lá dentro. Quando entrou na loja do seu Isaac, tinha apena s dois cabides no braço. Teodoro pagou-lhe a c omissão e perguntou se não queria que a acompanh asse até à esquina; já era noite. Ela disse que não, estava acostumada a andar sozinha a qualq uer hora da noite, mas Teodoro insistiu e acompa nhou-a até quase a rua Livre. Gina achou-o mais simpático nesse dia. Começou a ajuntar dinheiro para comprar alguma roupa e, quem Sabe, um par de sapatos. Ia precisar também de um casaquinho de lã; o frio já se fazia sentir, pois era Jun ho e no céu pardacento as nuvens passavam com le ntidão, como a querer avisar que se aprontassem, o inverno vinha vindo atrás delas. Gina olhou á sua volta, admirada. Fazia frio e ela não tinh a nada, nem um agasalho para se cobrir. Os pássa ros com as penas arrepiadas, encolhiam-se nos ga lhos, as cabecinhas escondidas sob as asas; as rosas tombavam murchas, e só ficavam os galhos e os espinhos para resistir ao frio. Os jardins foram perdendo aos poucos o colorido e todas a s plantas como que se encolheram, amedrontadas. O vento que vinha lá dos lados de Santo Amaro, e ra frio e irreverente; se encontrava uma janela aberta, entrava sem cerimônia e jogava os papé is no chão, sacudia as cortinas fora das janelas , batia as portas, punha arrepios nos braços das crianças. Nas ruas, procuravam arrancar o cha péu das cabeças dos homens que se inclinavam seg urando-o com as duas mãos; espiava debaixo da sa ia das mulheres e quanto mais elas corriam e s eguravam as saias mais ele se divertia. Depois p assava assobiando e virava a esquina; fazia piru etas nos cantos das ruas; ajuntava papéis sujos e folhas secas, rodopiava, rodopiava com eles no ar e depois ia arremessá-los longe, bem espar sos, para dar trabalho aos varredores. As nuven s passavam apressadas no céu pardacento, como qu e fugindo, e o vento dava uivos anunciando o inv erno. E Gina parava diante das vitrinas e ficav a olhando os casacos, de lã; calculava quanto di nheiro precisaria para comprar um casaco como aq ueles; com bolsos grandes onde afundaria as mã os geladas e vermelhas; a gola alta e espessa de fenderia seu pescoço do vento frio; como havia d e ser bom. O dinheiro dos cabides ia aumentando ; só numa tarde, no Braz, vendeu oito; seu Isaac disse que era assim mesmo e esfregava, uma cont ra a outra, as mãos gananciosas e murchas. No fim desse primeiro mês, era sábado, Teodoro pedi u-lhe que voltasse à tarde na loja; havia um tra balho extra. Gina quis perguntar ao seu Isaac se ele viria também, mas ele já havia deixado a loja. Quando ela voltou, encontrou Teodoro debr uçado sobre a mesa do pai trabalhando; vendo-a e ntrar, levantou-se e mandou-a copiar umas fatura s. Ela pensou: "Que tolice a minha. Estava com medo dele à toa; está tão cheio de serviço que nem olhou pra mim". Sem dizer nada, começou a f azer o trabalho. Meia hora depois, Teodoro fecho u a porta da frente dizendo que estava fazendo f rio; tornou a sentar-se em frente da escrivaninh a e começou a escrever. Às quatro e meia, diss e a ela que esperasse; voltou logo depois com um a garrafa de cerveja, dois copos e dois sanduích es grandes de salsichas. Gina agradeceu e come çou a comer, ali mesmo ao lado da mesa; admirou- se do ar sério e distraído de Teodoro, parecia p reocupado com algum negócio importante. Quando ele acabou de comer e beber, aproximou-se da mes a dela e, sem dizer nada, segurou-a pelos dois b raços inclinou-se para beijá-la. Gina viu o rost o sardento bem perto do seu, os cabelos vermel hos, os dentes enormes e amarelados. Num impulso rápido, recuou e estendeu o braço; uma bofetada estalou no rosto do rapaz. Teodoro levou a mã o direita à face que havia sido batida; ficou ve rmelho de cólera e avançou para Gina que parara, sem saber o que fazer, tão inesperado fora o at aque. Num pulo, ele conseguiu segurar-lhe o br aço; fungou no rosto dela, os olhos dilatados de raiva e desejo: - Agora você me paga. Ela lut ou; colocou os punhos fechados no peito dele e e mpurrou-o com força, mas Teodoro era forte. Com uma das mãos, segurou os braços dela, o outro br aço rodeou-lhe a cintura; ela sentiu na sua fa ce o hálito de cerveja, ele procurava dobrar-lhe o corpo com toda a força, e ela percebeu que el e ia derrubá-la; conseguiu curvar-se e encosta r o rosto no dela, um rosto flácido e úmido. Ela então deu um grito, um grito agudo, forte, estr idente. Assustado, ele largou-lhe os braços para tapar-lhe a boca; Gina mordeu-lhe a mão, cega de raiva. Ele retirou a mão e rodeou-lhe a cint ura novamente, antes que ela pudesse fugir; aper tou-a tanto que ela não podia respirar, o rost o amassado contra o peito dele. As respirações e stavam confundidas, ofegantes; ela se esforçava para fugir, ele apertava-a cada vez mais. Gina s entiu os seus lábios sobre a testa; o contato foi tão horripilante e desagradável que ela deu outro grito, agudíssimo. Teodoro afrouxou o abra ço e nesse instante, ela conseguiu fugir. Rápi da, pulou e correu para a porta da rua; na press a de abri-la, arranhou as mãos, que sangravam. S entiu novamente o hálito quente de Teodoro no seu pescoço; ele quase a alcançou e quando viu q ue ela já estava na calçada, gritou, ameaçando: - Víbora, tu hás de me pagar. Um homem que ia passando na calçada fronteira, parou para ver o que havia; Gina respirou o ar frio da tarde e co meçou a caminhar rapidamente para casa, ouviu ai nda o barulho da porta fechada por Teodoro. N ão voltou mais à casa do seu Isaac; contou tudo à mãe que a chamou de idiota e cretina. Hipócrit a também. Zelinda contou que Pascoalina estava casada e perguntara por ela; aparecera bem vesti da no escritório da Companhia para despedir-se d as colegas. Estava com uma saia azul marinho, de lã, e uma blusa vermelha, de seda. Do que mai s Zelinda havia gostado fora dos sapatos de Pasc oalina: pretos novos, brilhantes. Descrevendo ou tros detalhes, disse que todas haviam ficado c om inveja. Ela morava na casinha da Barra Funda, onde esperava as visitas das colegas; o marido era muito bom e ela era muito feliz. Ah! Zelin da esquecera de contar que Pascoalina tinha um b roche de ouro pregado na blusa de seda; recebera do marido no dia do casamento. Zelinda bebeu água e comentou: - Há gente que tem uma sorte n este mundo: Gina prestou atenção no broche de ou ro: - Então Pascoalina está rica... Pensou mai s uma vez em visitar Pascoalina na casa nova que tinha um jardim na frente. Continuou a procura r emprego; o dinheiro dos cabides não dera nem p ara comprar uma blusa, dera apenas para não pass arem muita fome. Cortou novo anúncio do jornal e se apresentou; pediam uma moça séria. Ela foi . Era uma casa de doces, Gina tinha que oferecer o produto que vinha num pacotinho; explicava qu e deviam despejar água fervendo no conteúdo e o pudim estava pronto. Cada pacotinho custava oi tocentos reis e ela ganharia 100 reis de comissã o; precisava andar e vender muito para ganhar al gum dinheiro. Começou a percorrer os bairros c om um embrulho nas mãos; tocava a campainha das casas e quando aparecia alguém, explicava. Duvid avam. As mulheres perguntavam, desconfiadas: - Então é só despejar água fervendo? - É sim senh ora. - E o açúcar? O leite? - Já tem açúcar e leite aí dentro. É' um produto garantido. A mul her ria, incrédula: - Então o leite está aqui, neste pózinho? E isto dá um pudim? Vá vender pra algum trouxa, eu é que não vou na onda... - Eu juro que é pudim. Faça o favor de comprar um e experimentar. - Não, vá vender pra outro. Não q uero experimentar. A porta se fechava. Gina con tinua a andar e a oferecer. Cansada e faminta. Algumas pessoas quando a viam com um pacote nas mãos, um ar suplicante, gritavam das janelas: "N ão quero nada." Antes que Gina falasse alguma palavra. No fim de uma semana havia ganho mil e pouco de comissão. Na volta para casa, parou dia nte de um restaurante, onde havia vitrinas cheia s de frangos, pedaços sangrentos de carne, pra tos com couve flor, outros com maionese, enfeita dos com azeitonas grandes e pretas. Peixes com a s guelras abertas, olhos vidrados, o rabo bril hando como prata. Gina encostou o rosto no vidro da vitrina e ficou olhando; seus olhos fixaram- se no prato de maionese; viu o molho amarelo mis turado com pedaços de peixe, outro molho averm elhado (decerto era de tomates) fazendo desenhos por cima e as azeitonas graúdas enfeitando aqui e ali. A saliva cresceu-lhe na boca; teve uma vontade desesperada de comer aquela comida com desenhos coloridos. Parada diante da vitrina, o nariz encostado no vidro, começou a pensar se aq ueles mil e duzentos dariam para comer um peda ço, apenas um pedaço do que havia naquele prato. Espiou para dentro do restaurante; as mesas est avam quase vazias porque ainda era cedo, uma o u outra pessoa jantava. E se ela entrasse e pedi sse um pedaço? Olhou seus sapatos; estavam sujos e furados; os dedos já começavam a espiar para fora; seu vestido amarrotado e velho estava ta mbém muito feio para ela se apresentar ali. Seus olhos ficaram parados novamente no prato de mai onese e sua boca tornou a encher-se de saliva. Resolveu entrar. Um homem de paletó listrado in terpelou-a logo à entrada: - O que quer, menina ? Gina emudeceu. Corou. Depois criou coragem e disse: - Queria um pouco do que está naquele pr ato ali. Timidamente apontou a vitrina. O homem foi dizendo depressa: - Não vendemos. Vá saind o. Ela apresentou os níqueis na palma da mão: - Eu tenho dinheiro, eu pago... O homem riu-se quando viu os níqueis e empurrou-a pelo ombro: - Já disse que não vendemos. Dá o fora. Na rua, ela não olhou para trás. Chorando de fome e de vergonha, foi para casa. No quarto da rua Livre, ninguém; ficou no escuro porque não havia luz, cortada outra vez por falta de pagamento. Tate ando, procurou alguma coisa para matar a fome; e ncontrou uma banana podre e um pedaço de pão dur o e velho. Comeu-os assim mesmo. Depois; lembr ou-se que tinha um pacotinho de pudim que havia sobrado. E se fizesse o pudim e comesse? Quem sa be mataria a fome? Não hesitou. Pôs meio litro d e água na panela para ferver, despejou o pó e experimentou com a ponta do dedo; era delicioso. Tirou do fogo e comeu-o assim mesmo, ainda quen te; impossível esperar esfriar, a fome era dem asiada. Enquanto comia, lembrou-se que tinha de pagar oitocentos reis pelo pacotinho no dia segu inte e ficaria sem dinheiro, mas ao menos dormir ia com o estômago cheio. Comeu tudo, sem deixa r nada para a mãe e a irmã. Depois deitou e dorm iu; mal percebeu quando as duas chegaram da rua e se deitaram. Acordou de madrugada com um mal estar terrível e vontade de vomitar. Levantou-s e cambaleando, a cabeça pesada e dolorida, foi v omitar no pátio onde havia o tanque das inqüilin as lavarem roupa. Voltou para o quarto sentind o arrepios de frio e dor de cabeça. Deitou-se e não pôde dormir. No dia seguinte, dona Julica fi cou furiosa quando soube de tudo; avançou para ela com os cabelos desgrenhados e sua mão pesad a caiu mais de uma vez sobre a cabeça dolorida d a filha que chorava e se encolhia na cama: - Es ta desgraçada é a minha ruína, por causa dela so fremos desse jeito. Se trabalhasse como Zelinda, viveríamos melhor, mas não trabalha. Vive na ru a namorando o dia inteiro como uma sem vergonh a. Diz que procura trabalho, mas é mentira, só g astando sapato. Sirigaita. E pá! outro tapa na cabeça dela. - Quem vê esta peste sair de manhã cedo, pensa que vai mesmo trabalhar, mas qual o quê. É bater perna só, dinheiro mesmo nada. Zel inda sim, trabalha direito, já está ganhando m ais, é uma boa filha. Mas tu puxou teu pai, é um a safada sem vergonha. Pá! Outro tapa na cabeça inclinada de Gina. - Mas tu me paga. Qualquer dia vamos embora e tu que se arranje. Não podemo s sustentar vadias. Ela sai de manhã com os sapa tos furados desse jeito e volta com os sapatos mais furados ainda, sem dinheiro nem para comer . Desgraçada! Outro tapa. Os tapas eram em inte rvalos. Parece que dona Julica lembrava de repen te que estava com fome e lá vinha o braço que de scarregava a fome sobre a cabeça de Gina. Zeli nda assistiu a tudo sorrindo; depois acabou de s e aprontar e foi depressa para o emprego, sem in tervir na cólera da mãe. Durante muito tempo, Gi na ficou deitada, a cabeça escondida no traves seiro encardido, imóvel e dolorida, enquanto don a Julica ainda resmungando preparava um café fra co para tomarem sem açúcar. V Osório chegou à hora do almoço; estivera fora de S. Paulo e só nesse dia soubera que Gin a deixara de vender cabides por causa de Teodoro . Queria que ela voltasse; falaria com o própr io Isaac e daria uma lição ao rapaz. Gina disse que não, preferia continuar a vender pacotinhos de doces do que sofrer as perseguições do Teodor o. Osório havia levado um pouco de toucinho qu e dona Julica estava fritando para comerem com p ão; o quartinho encheu-se de fumaça e de cheiro de toucinho frito. Mais animada, Gina levantou -se e foi lavar o rosto na água fria do tanque; tinha ainda a cabeça dolorida e quando a água qu ase gelada correu-lhe pelo rosto, sentiu-se me lhor. Voltou ao quartinho onde havia calor; num canto, a mãe conversava com Osório e preparava o almoço; ele estava sentado num caixote de gasol ina, que servia de cadeira. Haviam fechado a ú nica janela por causa do frio; o dia estava escu ro e preparando chuva. Os sapatos de Gina estava m tão velhos que, ao calçá-los, os dedos dos p és ficaram para fora; Osório prometeu levá-los d epois do almoço a um sapateiro e pediu a Gina qu e esperasse, voltariam novos. Mastigando toucinh o com pão e cebola crua, Gina sorriu para Osór io e prometeu esperar. Zelinda chegou logo depoi s com um pão doce sob o braço; foi quase um banq uete aquele almoço. Osório levou os sapatos pa ra consertar e prometeu passar na doceira e paga r o doce que Gina havia comido; Zelinda voltou a o emprego e dona Julica foi dar umas voltas pela cidade. Gina começou a lavar os pratos sujos e a frigideira; depois lavou a única xícara que também servia, para beber água. Arrumou as duas camas e deitou-se numa delas, aconchegando as cobertas até o pescoço. Tremia de frio. Às qua tro horas, Osório chegou com os sapatos conserta dos; trouxe umas balas para Gina., Encontrando-a sozinha, deu umas voltas pelo quarto, tomou um pouco d’água, em seguida tirou os sapatos e de itou-se ao lado dela dizendo que estava com muit o frio. Conversaram durante algum tempo, depois ficaram silenciosos; Gina sentiu um grande bem estar e teve vontade de dormir sentindo o calor de Osório ao seu lado. Fechou os olhos e ficou imóvel. Lá fora, no pátio, as mulheres lavavam r oupas, apesar do frio; uma criança chorava, um chorinho triste e cansado de quem tem fome. Ouv ia-se a água correr no tanque, as vozes das mulh eres, o choro da criancinha. Lentamente, a mão de Osório passou pelo corpo de Gina; ela abriu os olhos num sobressalto. - Não, Osório, mamãe chega de repente... Ele voltou-se para ela, rost o contra rosto: - Vamos nos casar, Gigina... E la tentou levantar-se; teve medo dele, mas Osóri o apertou-a mais e beijou-a longamente nos cabel os, no pescoço na boca. Ela sussurrava: - Mamãe vem vindo, mamãe, vem vindo... Ele beijou-a ma is, os olhos alucinados. À criancinha chorava ma is alto e as mulheres tagarelavam perto do tanqu e. Osório pediu que se casasse com ele; sua voz estava rouca e trêmula; disse que estava trabal hando muito para melhorar no emprego e pretendia alugar uma casinha com dois cômodos; então se casariam. Já escrevia para um jornal todas as s emanas e seus artigos eram apreciados; ganharia muito e seriam felizes. Gina não dizia nada, o uvia e sorria. Às cinco horas Osório deixou-a; foi então que Gina tomou uma resolução; iria pro curar um emprego de copeira, ao menos teria casa e comida. Quando dona Julica chegou, vermelha de frio, as mãos encarquilhadas sob o chalé pre to, ela falou: O quê? Minha filha copeira? Não s enhora. Você esquece que somos de boa família? M inha gente é gente de nome em Campinas e ficar ia revoltada em saber que você, filha de Julica Torres, limpa chão em S. Paulo. Não. Isso nunca. É preciso ter dignidade apesar de tudo, é pre ciso ter altivez, orgulho. Lembre-se de que tem um nome a guardar. - Mas esse nome não me dá o que comer, mamãe... - Cale a boca. Bem mostra q ue é filha de seu pai, homem do povo. Gina come çou a chorar: - Coitado de papai. Não podemos v iver assim-, sem ter o que comer. Não seja idio ta. Procure trabalho que você encontra. É porque não sabe procurar. Não vê Zelinda? Zelinda sim, sempre foi uma boa filha. E tomando a única xí cara que estava sobre o caixão de gasolina, foi ao tanque, resmungando sempre, encheu-a de água e bebeu. O quarto estava quase escuro. Dona Juli ca encheu o a panela de água e colocou-a sobre a lata de querosene; pôs dentro alguns ossos qu e havia trazido e soprou o carvão. A chamazinha azul subiu e começou a lamber o fundo da panel a; ela continuou a falar: - Nada do ser criada dos outros. Quando os parentes de Campinas soube rem, o que irão dizer? Que irão dizer? Que eu ca í tão baixo que até minha filha é copeira dos outros. Lavando o chão, servindo mesa, não quero . Nós temos nome. Gina lembrou: Eu troco de nom e, ninguém precisa saber. Não quero. Já disse. No escuro, a voz de dona Julica tinha um som rou co e ríspido; ouvia-se o barulho da água fervend o na panela e a única luz era a das brasas que chiavam sob a lata. Dona Julica continuou a fal ar, sentada no caixote de gasolina: - Minha mãe era de família importante, família rica. Eu me lembro da casa dos seus pais, era enorme com gra ndes terraços à volta toda. Muitos escravos. Fam ília de nome. Levantou-se para pôr uns restos de carne na água fervendo, algumas batatas e co uve. Provou. Sacudiu a colher comprida na direçã o onde estava a filha: - Você procurando bem, e ncontra emprego. Não vê Zelinda? Zelinda entrou ; dona Julica censurou: - Veio tarde, hein? Ond e andou? Zelinda estava aborrecida. Queixou-se do tempo, não pudera ainda comprar um agasalho e sentia frio. Às apalpadelas pelo quarto escuro, procurou a xícara que estava sobre o caixote e foi tomar água no tanque; tropeçou nos sapatos de Gina e resmungou um nome feio. Depois contou à mãe que estivera em casa de uma colega que mo rava ali perto, por isso viera tarde; a mãe pi ngou um pouco de caldo na palma da mão e provou estalando a língua. Não respondeu, estava preocu pada com a sopa. Ficaram em silêncio algum tem po, depois Zelinda disse, voltando-se para a cam a, onde Gina estava estendida: - Pascoalina man dou um recado para você. Quer que você apareça l á para ver a casinha dela. Eu e mais duas colega s vamos no domingo. Novo silêncio. Zelinda perg untou: - Você vai? - Vou. - Podemos ir juntas . O silêncio reinou de novo. Zelinda aproximou- se da janelinha e levantou o pano que a mãe preg ara na vidraça: - Ih! O céu está cheinho de est relas. Dona Julica suspirou: - Mas está fazendo frio... Mexeu a panela. Tornou a por o caldo n a palma da mão e provou com outro estalinho da l íngua. Colocou na panela uns pedaços de toucinho que Osório trouxera para o almoço, colocou un s restos de pão doce e mexeu outra vez. Tornou a provar. Zelinda voltou-se da janela: - Mamãe, eu não agüento este frio. Preciso comprar nem qu e seja um casaquinho curto, mas preciso. Não pos so trabalhar assim, sem nada para me agasalhar, mas se eu comprar o casaquinho, não podemos pa gar o aluguel do quarto. Como há de ser? Morro de frio,.. Despejando a sopa nos pratos fundos desbeiçados, dona Julica resmungou: - Tudo por causa desta vadia. Gina se encolheu como se tiv esse sentido uma chicotada. Dona Julica e Zelind a começaram a tomar a sopa; ouvia-se o mexer das colheres nos pratos e o ruído como se chupass em. De repente dona Julica disse a Gina: - Ven ha tomar sopa. - Não quero sopa. - Pois então não queira. Tornaram a despejar mais sopa nos p ratos e tomaram tudo. Imediatamente dona Julica apagou as brasas para economizar e o quarto fico u em completa escuridão. Depositaram os pratos no chão, atrás do caixote de gasolina, para ser em lavados no dia seguinte, à luz do dia. Zelind a tirou o único vestido e deitou-se ao lado de G ina que se encolheu mais no canto. Dona Julica ainda andou pelo quartinho, tateando para não b ater em nada; viu se não entrava ar frio pela ja nela, foi lá fora e voltou tiritando, deitou-s e mesmo vestida para não sentir muito frio e cob riu a cabeça com o xale preto dando um longo sus piro. No quarto estreito e fechado, havia um che iro de gordura e de suor. Ouviu-se a voz de Ze linda: - Como é, mamãe, compro o casaquinho? D ona Julica mexeu-se na cama próxima: - Você não pode esperar um pouco, Zelinda? Se não pagarmos o aluguel e ficarmos sem o quarto, como há de s er? Houve um breve silêncio, depois Gina falou do cantinho perto da parede: - Zelinda pode com prar o casaquinho, eu arranjo o dinheiro para o aluguel. Dona Julica riu com ironia: ouviu-se o riso abafado pelo xale preto. Depois disse: Se rá que está com idéias de ser copeira? Não admit o. Zelinda perguntou: Como è que você arranja o dinheiro? Já tem outro emprego? - Já. Juro que arranjo o dinheiro, pode deixar por minha conta. Dona Julica riu-se outra vez: - Mentira dela, Zelinda, não acredite. Ninguém mais falou. Don a Julica começou a ressonar e logo Zelinda també m. Só Gina ficou ainda acordada, pensando que nã o podia continuar assim, precisava agir. Lembrou -se de Pascoalina que dissera uma vez: - Quan do você resolver não ser trouxa, me procure. Re solveu procurar a amiga. No céu pardacento, as n uvens passavam apressadas como se fossem persegu idas pelo inverno que corria atrás delas, enquan to o vento que vinha do lado de Santo Amaro, a ssobiava nas esquinas, entre os galhos das arvor es e fazia as últimas rosas tombarem desfolhadas . No dia seguinte cedo, Gina dirigiu-se para a rua Garibaldi, na Barra Funda; foi à casa de Pas coalina. Bateu no portãozinho de ferro e uma cri ada negra abriu a porta; quando Pascoalina ouv iu a voz dela mandou que entrasse para o quarto, ainda estava deitada. Gina observou a casa da a miga; era pequena, com duas janelas apenas de frente, mas bem mobiliada e limpa. Na salinha de jantar, havia uma gaiola com um pintassilgo; so bre um sofá, três almofadas bordadas; uma de vel udo preto com flores vermelhas, duas de seda, uma rosa e outra azul. Pascoalina estava envolvi da num roupão colorido, os cabelos soltos caídos nas costas; contou que já tomara café e deita ra outra vez porque não tinha o que fazer; estav a com frio. Gina olhou suas próprias mãos inchad as e arroxeadas; depois olhou as mãos da amiga; eram brancas e tratadas, com longas unhas poli das. Pascoalina não parava de falar; perguntava pelas colegas antigas, falava na Companhia onde trabalhara durante anos, falava da casa dizend o que estava muito satisfeita com a nova vida. G ina sorria: - Mas eu não trabalho mais na Compa nhia, Pascoalina... As colegas... - Ah! é verd ade, mas que tal minha casa? - Muito bonita. C onvidou-a para irem à sala de jantar e enquanto Gina sentou-se no sofá entre as almofadas de sed a, Pascoalina tirou a gaiola do pintassilgo da p arede, colocou-a sobre a janela que dava para o quintalzinho e começou a limpá-la dizendo que ela própria gostava de tratar do passarinho. Qu ando a criada passou pela sala de jantar com a v assoura e um pano de pó, Pascoalina disse: - Be nedita, traga um café bem quente com pão e mante iga. Acabou de limpar a gaiola, sempre conversa ndo; às vezes assobiava com o passarinho; voltou -se sorrindo: - Ele me conhece, Gina... - Conh ece? - Então! Hein, lindo? Não conhece sua dona ? A Pascoalina? Gina começou a rir; era sempre aquela Pascoalina risonha e alegre, sempre brinc ando. A amiga foi à cozinha, trouxe uma folha de alface, arrumou tudo, colocou a gaiola no pre go do lado de fora da janela e convidou Gina par a ver o banheiro. Nunca vira nada tão bom e tão bonito; apalpou os aparelhos, as paredes, invejo u a sorte de Pascoalina. Voltaram à sala de ja ntar para tomar café; Gina tomou-o com prazer e, mais reconfortada, começou a falar na vida de m isérias que estava levando ao lado da mãe e da irmã. Não suportava mais. Falou sobre os empreg os que perdera, sobre o dinheiro que não dava ne m para comer, quanto mais para comprar roupas e calçados. Falou sobre Osório que queria casar- se com ela, mas também tinha pouco dinheiro, não dava para casar, não podia sustentá-la. Com a x ícara vazia diante dela, Pascoalina escutava e m silêncio, depois empurrou a cafeteira para per to de Gina: - Tome mais café com pão. Gina tom ou outra xícara e comeu outra fatia de pão com b astante manteiga. Como era bom estar ali ao lado da amiga; era reconfortante, agradável e amena aquela sala, aquele café, aquele pão com mante iga. Mastigava devagar, como se tivesse dó de pa rar de comer; sentiu cansaço de repente. Pascoa lina perguntou, abrupta, debruçando-se sobre a m esa: - Escute, Gigina, você já esteve com algum homem? Gina não corou; levantou os olhos para a amiga e respondeu mastigando: - Estive com Osó rio duas vezes já; passeamos no Jardim da Luz, d epois fomos para um quarto de hotel... Depois... Pascoalina levantou-se, um ar revoltado: - En tão você é uma boba. Por que sofrer desse jeito se você pode ganhar uma fortuna com essa cara e esse corpo? Deixe de ser trouxa! Gina não respo ndeu; baixou a cabeça sobre a xícara. Pascoalina continuou: - Eu tenho um amigo muito simpático , vou apresentar você a ele. Vai ver, tudo se ar ranja. Gina levantou a cabeça, assustada: - E o que dirá seu marido, Pascoalina? Pascoalina ri u, seu corpo todo sacudiu-se de riso: - Meu mar ido? Eu não tenho marido, boba. Gina olhou à vo lta, estarrecida, como se dissesse: "E isto tudo aqui?" Pascoalina tornou a rir: - Meu amante é que me dá tudo isto... - Mas na Companhia... - Sim. Na Companhia eu disse que ia me casar par a não provocar escândalo. Casar coisa nenhuma. P ara que? Casamento é burrada. Gina esboçou um sorriso e ficou olhando o rosto radiante da amig a; perguntou: - E ele vem almoçar aqui? quero d izer, seu... - Às vezes, mas hoje não. Vem jant ar de vez em quando. Mas todas as tardes ele me visita e às vezes também dorme. É casado. - Cas ado? - É sim, mas não gosta da mulher. Você que r ver minhas roupas? Venha no quarto. No quarto de dormir, Pascoalina abriu um guarda roupa, cu ja porta era um grande espelho e mostrou seus ve stidos, seus casacos; depois abriu uma gaveta e mostrou suas camisolas de seda e renda. Gina a bria a boca, muda de admiração, nunca vira nada tão lindo, tão rico. Tirou os casacos do guarda roupa e passou as mãos na lã macia; Pascoalina vestiu um deles e revirou-se diante dela. - Es te é para os dias bem frios, este para dias regu lares... Gina apalpava as sedas, estonteada; es tava muda de espanto. Pascoalina levantou de rep ente uma cortina de cretone cheio de ramagens e mostrou a sapateira com orgulho: - Veja, Gigina .-.. Gina contou cinco pares de sapatos enfilei rados um ao lado do outro: branco, preto, marrom , vermelho e roxo. Havia sapatos roxos de veludo ! Perguntou gaguejando: - E ele dá tudo isso a você? Pascoalina deu uma gargalhada: - Então? Dá tudo isso e mais ainda. De repente mudou de tom e perguntou abruptamente: - Escute uma cois a; você gosta de Osório? Quer casar-se com ele? Gina refletiu um pouco: - Não. Ele é que gosta de mim e falou em casar. Pra mim é a mesma cois a, quero dizer, tinha vontade de casar só para n ão passar fome. Mas tenho dó dele porque leva dinheiro para nós e comida algumas vezes. Pasco alina tirou o roupão colorido e procurou um vest ido de lã no guarda roupa: - Então, está tudo a rranjado; se você não gosta dele, melhor. Vamos sair. - Sair? Assim? Pascoalina perguntou: - Você não tem um vestido melhor que este? Um par de sapatos? - Não. Tudo o que tenho é este aqui . Corou fortemente. Pascoalina encorajou-a: Nã o faz mal. Eu empresto um vestido para você. Dep ois do almoço vamos dar umas voltas pela cidade. Mostrou o guarda roupa: Olhe este aqui, Gigina . É de lãzinha azul, hoje está muito frio. Exper imente. Gina tirou o vestido velho e remendado, vestiu o da amiga; estava um pouco largo. Pasco alina aconselhou: Espera aí, eu aperto a cintura , quer ver? Olhe, não fica melhor assim? Prend e-se um alfinete de gancho por dentro, ninguém v ê. Gina admirou-se; o vestido ficara bem e dera -lhe uma aparência de mais velha, mas ao mesmo t empo, embelezara-a. Pascoalina apertou o cinto: - Agora está bem. Veja. Vamos dar um jeito na c ara. Lavar. Gina, já entusiasmada, correu para o banheiro e esfregou o pescoço, o rosto, as ore lhas com sabonete perfumado; depois cheirou as p róprias mãos para sentir o perfume. Voltou cor rendo: - Pronto. Pascoalina passou rouge, pó d e arroz no rosto da amiga: - Olhe agora. Gina levou um susto. Seria ela mesma? Não era possíve l. O que estava vendo era uma imagem maravilhosa . Sorriu para o espelho encantada; não podia tir ar os olhos daquela imagem que não parecia a s ua, tão linda era. Pascoalina falou: - Agora o s sapatos. Mas estas meias não servem, Gigina. V amos ver um par de meias para você.. Escolheu a s meias e os sapatos; os sapatos ficaram grandes , mas Gina disse que estavam bons assim mesmo. D epois do almoço, foram para a cidade. Num aparta mento da Avenida São João, Pascoalina apresent ou Gina à dona da casa; era uma senhora gorda e amável que tinha as mãos flácidas e polpudas. Re cebeu Pascoalina com gentileza, mandou servir cerveja para as visitas. Quando falava, tinha o hábito de juntar os cinco dedos da mão direita j unto aos lábios; fazia um muxoxo e piscava um ol ho para dizer, mostrando Gina: - É muito boni ta, vai fazer sucesso. Pascoalina foi lá para de ntro, disse que não demorava. Gina ficou só na s ala pequena, cheia de revistas, jornais e retrat os de família nas paredes. A dona da casa conv ersava enquanto tomavam cerveja; mostrou o retra to do marido, dos filhos, dos sobrinhos. Um dos filhos morrera de desastre numa estrada de fer ro, ela suspirou e parou de falar quando lembrou do desastre, depois fungou e tomou mais cerveja . Passou então as costas da mão pelos olhos pequ eninos e sumidos entre as pálpebras Gina não p ercebeu se eram lagrimas. Chamaram a dona da ca sa e ela ficou só; havia uma luz vermelha sobre a mesa do canto. Apesar de ser dia claro, deixar am a luz acesa na saleta; ela fixou a luz e te ve uma sonolência. Seria a cerveja? Ou o almoço? Há quanto tempo não almoçava assim? Depois esta va vivendo num mundo tão diferente do seu que nã o sabia o que ia acontecer. Com os olhos fech ados, recostou a cabeça para trás e ficou imóvel ; ouviu vozes lá dentro; riam e conversavam. Out ra pessoa falava no telefone: - Não pode então? - Quando? - Está muito bem amanhã. Ouviu Pas coalina entrar na saleta e conversar em voz baix a com a dona da casa; depois despediram-se. Só q uando ela viu a luz do sol batendo nas casas e u ma porção de gente passando pela Avenida, perc ebeu onde estava e apertou com força o braço da amiga. Tomaram sorvete num bar ali perto. No mom ento de se despedirem, Pascoalina recomendou: - Ficou combinado para amanhã sem falta às duas horas, hein? Leve este dinheirinho, para você s e arranjar... - Já dera uns passos quando volto u: - Espera aí, Gigina. Você tem uma camisa bon ita? Gina corou. A amiga fez um gesto condescend ente: - Não faz mal, eu te empresto amanhã. No dia seguinte, à tarde, voltou para a casa com u ma nota de duzentos mil réis apertada na mão dir eita. Toda a cidade estava iluminada e os automó veis passavam buzinando. Nunca se sentira tão segura de si, de sua felicidade. Isso sim, era f elicidade. Tinha dinheiro para se vestir, para s e cobrir do frio, para matar a fome, aquela fo me nunca saciada. Olegário alisava-lhe as mãos g rossas e ásperas ao despedir-se; e no momento de sair, dera a nota de duzentos mil réis. Chamava -se Olegário; dissera que era rico e podia dar -lhe muitas coisas bonitas. Nunca fora tão feliz , encontrara afinal apoio e dinheiro; conversava m longamente e ele prometera alugar uma casa p equena só para ela, uma casa cheia de coisas bon itas; almofadas de seda, pintassilgos em gaiolas , guarda roupa com casacos e vestidos. Um banhei ro como aquele de Pascoalina, onde ela pudesse mergulhar o corpo inteiro e passar o sabonete p erfumado bem devagar, como uma carícia. Que feli cidade! Nunca vira tanto dinheiro. De repente uma onda de calor subiu-lhe ao rosto ao lembrar as coisas boas que compraria com aquele dinheiro . Pascoalina era bondosa, não quisera que ela de volvesse a camisa; e era uma bela, com ronda n a gola; sentia ainda a maciez da seda contra seu corpo. O vestido de lã azul devolveria quando t ivesse outro; nem que Pascoalina não quisesse, tinha que aceitar. Desceu a Avenida São João. P arou numa loja pequena, onde havia apenas uma po rtinha e entrou; escolheu um casaquinho de lã az ul marinho. Vestiu. Sentiu um calor agradável cobrir-lhe as costas e o peito. Pagou os trinta mil réis que o homem barbudo pedira e saiu depre ssa, feliz por ter o casaco azul e os grandes bolsos, onde mergulhou as mãos frias. Dirigiu-se para casa. Ao entrar no quartinho da rua Livre , já eram seis e meia, estava escuro. Com ela, e ntrou uma onda de perfume no pobre quarto; encon trou a mãe sentada na cama, encolhida de frio, sem ter nada para fazer o jantar. Nada. Com um gesto de suprema satisfação, Gina tirou do bolso do casaco, uma nota de cem mil réis e apresento u à mãe. Na escassa luz que entrava pela única janelinha, dona Julica viu o dinheiro; abriu mu ito os olhos e estendeu as mãos ávidas, com medo que fosse um sonho e se desvanecesse. Seus de dos descarnados seguraram a nota; imediatamente levou-a perto dos olhos para ver se era realidad e, se era dinheiro mesmo. Gina deu uma risadinha alegre. - Vá comprar as coisas que precisa, ma mãe. Eu não disse que arranjaria o dinheiro? Se m dizer nada, dona Julica colocou o xale preto s obre os ombros e apertando a nota contra o peito , saiu apressada. Meia hora depois, voltou com p acotes enormes e pesados: carne, peixe, pão, f rutas e queijo. Fritou o peixe e a fumaça encheu o quartinho; sem se incomodar, dona Julica anda va de um lado a outro, alegre e cantarolando. Acendeu uma vela que também comprara, derramou u m pouco de espermacete sobre o caixote e grudou a vela em cima. Cortou o pão e o queijo em fatia s finas no quartinho agora iluminado; tirou do embrulho um pacotinho de chá para tomar depois do jantar; finalmente tirou uma garrafa de vinho tinto e sorriu para Gina. Deitada na cama, as mãos atrás da cabeça, Gina seguia com olhos aleg res os preparativos de dona Julica. Quando Zelin da entrou, a mãe disse apenas: - Olhe o que Gig ina trouxe hoje. À luz da vela, Zelinda examino u o vestido de Gina, admirou o casaco azul, fico u um tempo sem dizer nada, de repente explodiu c om lágrimas nos olhos: - Você tem uma sorte ass im. Eu não consegui nada até hoje, nem comprar u m casaco miserável. Por que você tem sorte e eu não? Antes que ela continuasse, Gina pôs-lhe na mão uma nota de cinqüenta mil réis com toda gen erosidade: - Não se queixe, Zelinda. Amanhã voc ê compra um igual ao meu. A primeira coisa que v ocê faz, ouviu? Logo de manhã bem cedo. Zelinda calou-se e pegou a nota; guardou-a no seio e fo i tirar o vestido para não estragar. Enrolou-se numa colcha velha e ficou esperando o jantar; de pois disse: - Sempre fui sua amiga, Gigina. Ain da bem que você reconhece. Gina apertou os lábi os e não respondeu. Cearam lautamente nessa noit e. Tomaram vinho; a única xícara correu de mão e m mão até a garrafa ficar vazia. Dona Julica c ontou fatos passados e lembrou-se da bondade do Pasquale; sempre fora assim como Gina: bom e gen eroso. Dava sempre o que tinha, nunca negava. Ho mem bom estava ali. E depois um artista. Até d e um miolo de pão fazia figuras perfeitas. Sim. Perfeitas. Arrotou alto e repetiu, a cabeça pend ida para um lado: - Um verdadeiro artista. Tom aram chá quente antes de dormir. Dona Julica elo giou a beleza de Gina, disse que nunca pensara q ue ela fosse ficar assim tão bonita, não parecia . Lembrou-se de que também fora assim aos deze sseis anos. Em Campinas costumavam chamá-la: A f lor de maracujá. Riu-se baixinho ao lembrar. Nun ca pudera esquecer. Quantos homens ficaram apa ixonados por ela? Nem se lembrava, mas fora muit o amada. A cabeça pendia cada vez mais para o la do. Contou que não tivera fortunas porque não qu isera, mas tivera amores. Sim, amores. E a vid a sem amor o que vale? Se não tivesse resolvido casar-se com o professor, teria muito mais. Esta resolução perdera; ao dizer isso, arrependeu- se e corrigiu: - Coitado. Já morreu. Deus que o perdoe. Sofri por causa dele. Deu um arroto fo rte e levantou-se; apagou as brasas, colocou o f ogareiro no pátio para o quarto não ficar abafad o, soprou a vela e deitou-se dando um gemido de satisfação, pensou durante algum tempo o que c ompraria com aquele dinheiro que sobrara das com pras, precisava de tanta coisa; também Gigina ar ranjaria outras notas como aquela Por que não? Adormeceu sorrindo. Placidamente Zelin da dormiu também pensando no casaquinho que comp raria no dia seguinte bem cedo. Gostava de roxo, compraria um casaco roxo; se não tivesse dessa cor, compraria um amarelo. Eram suas cores pre diletas, sempre fora extravagante. Gostava de tu do que chamasse atenção. Tinha desgosto de não ser bonita como Gina. Ah! Se fosse bonita assim. .. Só Gina ficou mais tempo acordada; pensava n a nova vida que iniciara, pensava no moço chamad o Olegário, na casa que ele prometera, nos prese ntes que receberia. Teria tudo que desejasse. Que bom! Antes de dormir, teve um pensamento est ranho; levantou a cabeça impulsionada pela força desse pensamento: a mãe não perguntara onde e la arranjara tanto dinheiro; nem a irmã. Era esq uisito. Também era natural. Saber para que? Viu a vela se derretendo sobre o caixote de gasolin a. Haviam esquecido a vela acesa; tudo fora tão surpreendente... o dinheiro, o jantar, as record ações da mãe, o vinho, o casaco novo, tudo... Haviam esquecido a vela acesa. Pulando por cima da irmã adormecida, Gina levantou-se para apagar a vela. Deitou-se outra vez. Lá fora estava f rio, sentia o ar entrando por baixo da porta, um ar frio e úmido. Saber para que? SEGUNDA PARTE VI Sentada à cabeceira da mesa, Gina conve rsava com os convidados; pratos variados cobriam a toalha rendada; risoto de camarões, peru, sal adas, vinhos e por último champanhe. Ela gosta va de ver a mesa coberta de pratos finos e gosta va também de abundância. Não se esquecia daquela vez que fora enxotada da porta de um restaurant e porque tinha fome e queria comprar dez tostõ es de maionese; agora comia maionese todas as se manas. Estava rica. Olegário, sentado do outro l ado da mesa, sorria para ela; dera-lhe nesse d ia uma pulseira de ouro com brilhantes; ela puse ra-a no estojo e este passava de mão em mão entr e comentários de admiração. Gina festejava seu décimo-sétimo aniversário. Sua casa na rua da Liberdade; uma casa pequena, onde nada faltava. Olegário era generoso e o dinheiro sobrava nos p rimeiros tempos nas mãos dela; comprava vestidos , casacos, sapatos, roupas brancas, tinha muit o mais que Pascoalina. Os convidados nessa noit e eram três amigos de Olegário e três amigas de Gina; bebiam mais do que comiam, por isso estava m alegres e entusiasmados com o jantar. A fuma ça dos cigarros subia pela cabeça dos convidados , enroscava-se no lustre faiscante e diluía-se d epois na cor azulada do teto. No breve silêncio que se fez quando veio a primeira garrafa de c hampanhe, uma das amigas de Gina começou a conta r sua própria história; sua voz era um pouco rou ca e gaguejava de vez em quando, o que provoca va risos. Ouviram a princípio com certo interess e, mas depois as interrupções foram tantas que t udo terminou em risadas prolongadas. Ela então e ntornou o copo de vinho na mesa; os outros con vivas estenderam os braços, umedeceram as pontas dos dedos no vinho da toalha e passaram pela te sta, outros passaram atrás da orelha, para dar sorte. De mão em mão, o estojo voltou para Gina ; tirou então a pulseira de dentro e o convidado mais próximo prendeu-a delicadamente no seu bra ço. Riam sem motivo, queriam dar expansão à al egria que os contagiava. Depois do jantar, fora m para a sala da frente, onde havia um piano; se u gosto pela música se aperfeiçoara; em dois ano s aprendera a tocar e a cantar. Sua voz era fi rme, agradável e, dava as notas mais altas sem e sforço. Pediram-lhe uma canção que ela cantou so rrindo, a pulseira faiscando em seu braço esquer do, ao menor movimento. Pediram outra e outra ainda; todos conservavam as taças ao alcance das mãos e de vez em quando, tomavam champanhe em g randes goles. Quando Gina parou de tocar, uma das amigas, Linda, começou a dançar no meio da s ala imitando as dançarinas árabes; estava bêbada . Seu corpo se retorcia para a frente para trás, seus braços enroscavam-se como serpentes acim a da cabeça e procurava cantar dando gritos agud os que mais pareciam uivos de chacais. Riam per didamente. De repente, a dançarina caiu sentada no colo de um dos homens, a cabeça para trás, co mo desmaiada; o homem carregou-a e deitou-a sobr e um sofá, onde ela ficou imóvel, olhos fechad os, como se dormisse. As risadas continuaram at é tarde; as criadas de Gina já haviam se retirad o quando os convivas resolveram ir à cozinha pre parar um café sem açúcar para Linda que ainda dormia, a cabeça pendida para um lado, a boca ab erta, como que babando. Entre cantos e risos, fi zeram uma infusão forte que veio para a sala, me io derramando sobre a bandeja. Beberam, e um d eles levantou a cabeça de Linda enquanto outro p unha-lhe entre os lábios uma colherinha de café que ela cuspia fazendo caretas. Beberam mais c hampanhe. Gina cantou outra vez e todos acompanh aram. Linda acordou dizendo que ia dançar a danç a da serpente; mas ao ficar de pé, cambaleou e t eria caído se não a tivessem amparado. Eram tr ês da manhã quando deixaram a casa de Gina; cans ada, ela apagou ás luzes e subiu as escadas sem pensar em mais nada. Apenas tirou o vestido e jogou-se na cama. No dia seguinte, às três hora s da tarde, ainda estava deitada. Acordada, fico u recapitulando sua vida naqueles dois anos. Nem sabia se era feliz, não havia tempo para pens ar. Sustentava a mãe e a irmã; Zelinda estava c asada e já tinha uma filha. Dera um mal passo co m o empregado da padaria que vendia pãezinhos do ces cobertos com açúcar cristalizado. O result ado dos pãezinhos doces foi que ela ficou grávid a e o empregado, que se chamava Zeca, não pensav a em se casar. Mais tanto Zelinda chorou e se lamentou mostrando o ventre crescido que Zeca nu m rasgo de nobreza, resolveu-se. Zelinda não sou be que ele tomara tal resolução ao perceber que Gina era rica e pagava uma casa, onde Dona Jul ica morava com Zelinda, além da casa, pagava tod as as despesas. Então Zeca casou-se com Zelinda e um mês depois a criança nasceu. Zeca, porém, tornou-se vadio depois do casamento; achou que v ender pãezinhos doces numa padaria era ofício mu ito inferior à sua competência. Começou a procur ar emprego melhor e enquanto não aparecia nada , vadiava em casa brincando com a filha ou briga ndo com a mulher. Gina pagava tudo. Pagava tamb ém os vestidos de dona Julica que só vestia seda ; no último inverno até mandara fazer um, de vel udo verde garrafa, que deixara a vizinhança rala da de inveja, como ela contara. Colocara denta dura completa, engordara e agora ria-se por qual quer motivo, demonstrando abundância e alegria. Gina levantou-se, vestiu um roupão de seda cor de rosa e foi para a biblioteca, pois agora tamb ém tinha uma. Dera-Ihe a mania de ler, então com prara livros e mais livros. Mandara fazer esta ntes apropriadas e lá estavam os volumes enfilei rados nas prateleiras, encadernados em couro, ve rde e vermelho. Enquanto a criada arrumava o qu arto, tomou um café com torradas num canto da bi blioteca; acendeu um cigarro e ficou olhando os livros. Não tivera tempo de ler todos ainda, m as naqueles últimos dois anos aprendera muito. T omara professor de canto e piano que Olegário pa gava; aprendia francês com sua amiga Lolô e aind a tinha tempo para se dedicar à leitura. Era i nteligente e essa ânsia de saber havia aprimorad o seu espírito. A pobre Gigina que andava com os sapatos furados e as mãos grossas vendendo ca bides, doces ou outras bugigangas, faminta e fei a, se esvaíra no tempo, ninguém mais se lembrava dela e muito menos a própria Gina. Agora era um a mulher do mundo. Bonita, inteligente e meio culta. O que mais admiravam nela eram os olhos grandes e luminosos, depois a fileira de dentes iguais e branquíssimos. As duas pegaram a estat ueta e reviraram de todos os lados. Na mesa do c há, Gina perguntou pelo cunhado. Zelinda fez uma careta: - Vai bem, mas não há meio de arranjar um emprego que preste. Todos que aparecem são t ão ordinários, não é mesmo, mamãe? Dona Julica, comendo um pedaço de bolo, não confirmou, apena s piscou para Gina às escondidas de Zelinda. Est a continuou: - Não é por ser meu marido, mas el e tem aptidões para arranjar uma boa colocação. É correto, honesto e trabalhador. Trincou um bi scoito e mudou de assunto; começou a falar na cr iança que já estava com um ano. Contou as graças da filha e falou sobre um vestido que vira ness e dia numa vitrina. Gina pensou que era um ves tido para a criança, Zelinda protestou: - Não. Para gente grande. Deve servir para mim, talvez precise alargar na cintura. Estou um pouco gorda . Bem que eu precisava de um vestidinho assim.. . Suspirou. Dona Julica pediu à criada que trou xesse a garrafa de vinho do Porto que ficara na biblioteca. Depois do chá, recomeçou a tomar gol inhos de vinho. Zelinda continuou: - Lembra d o nosso tempo na rua Livre, Gigina? Como o tempo passa, não? Ah! Aqueles tempos foram danados... Gina perguntou: - Quanto custa o vestido que você viu na vitrina? Zelinda sorriu carinhosame nte e estendeu o braço para apertar a mão de Gin a sobre a mesa: - Será que minha irmã vai me da r o vestido? Ah! Gigina, que bondade! Você é um anjo... E mudando de tom: - Custa cento e vint e mil reis; para você que ganha pulseira de cont os de reis, não é nada... Não é, mamãe? Gina so rriu e subiu a escada dizendo que esperasse; vol tou com uma nota na mão. Zelinda falou: - També m fomos sempre tão amigas... Brigávamos às vezes , isso é certo, não Gigina? Mas qual a irmã que não briga com a outra? Quantas vezes auxiliei vo cê nos estudos? E quando mamãe se zangava, não te defendi sempre? Você era a irmãzinha mais moç a e eu sua defensora, lembra? Gina confirmou se m responder, com a cabeça. Sabia que a irmã era assim; gabava-se de coisas que nunca fizera, gab ava-se de ter sido boa, estudiosa e ajuizada; e Gina sabia que nunca fora boa, nunca estudara e nunca tivera juízo. Conhecia-a muito bem e às vezes ficava olhando Zelinda, quando esta falava sobre a filha: - Tem me dado um trabalhão, a G racinha. Passei várias noites sem dormir por cau sa da febre que teve com sarampo e nem saía de c asa durante esses dias. Fiquei presa durante d uas semanas, não foi, mamãe? Dona Julica confir mava. Nunca dizia que não para Zelinda, por mais absurdas que fossem suas mentiras. Mas; Gina sa bia que não era verdade. Sabia que Zelinda seria incapaz de sacrificar mais de uma noite pela filha doente, sabia que não deixaria um dia de s air, e sabia que acima da filha e de todos os ou tros, Zelinda se amava a si própria. Era mais fácil, Zeca, o marido, ficar com a criança do qu e a própria mãe. Mas como todas as pessoas que t êm esse temperamento, era autoritária e geniosa, não admitia réplicas ou contradições, de modo que todo o mundo baixava a cabeça diante das su as mentiras e aceitavam-nas como verdade. Gina t inha certeza de que Zelinda saía diariamente, bem vestida e perfumada e ia à cidade com amigas para um chá ou para visitas inadiáveis. A crian ça ficava com uma menina inexperiente ou com o pai, quando este estava em casa à espera de emp rego. Quando Zelinda chegava da rua, trazia bala s para a menina e enchia-a de beijos: - Queridi nha da mamãe, não me esqueci de você, anjinho. Alguém maltratou você? Conte pra mamãe. Olhe o q ue eu trouxe pra minha filhinha. E enchia a cri ança de doces; a pobrezinha tinha desarranjo int estinal todas as semanas e Zelinda se lamentava: - Não sei o que ela tem. Vive doentinha, creio que o organismo de Gracinha é fraco mesmo. Olhe que a gente tem tanto cuidado, ela tem tudo o q ue há de melhor e vive doente dos intestinos. Pobre da minha filhinha. E tornava a sair e tor nava a trazer balinhas e chocolates. Às vezes Gr acinha tinha febre e chamavam o médico; Gina pag ava tudo. Um dia dona Julica ousou falar: - Eu penso que o que faz mal para Gracinha são os doc es que você traz da cidade. Zelinda levantou os braços num gesto de protesto: - O que? A senho ra tem coragem de falar nisso? Tem coragem? Umas balinhas feitas de água com açúcar podem fazer mal? E eu trago tão pouco. Ela gosta tanto... Nã o. A senhora está enganada. Não pode fazer mal algum; depois, se trago essas coisinhas é porque quero bem minha filha, minha anjinha. Achava qu e enchendo a criança de doces, demonstrava seu grande afeto de mãe amorosa. Abraçava com força a menina; esta choramingava de dor de barriga e procurava fugir dos braços da mãe; preferia u ns braços que a apertassem menos e a amassem mai s. Gina sabia de- tudo isso. Sabia que Zelinda era mentirosa, falsa e invejosa; então para faze r diminuir aquela inveja e evitar o mais possíve l a raiva e a falsidade da irmã, dava-Ihe pres entes, do contrário não teria paz. Na mesa do c há, Zelinda dobrou a nota dada por Gina e guardo u-a na carteira; dona Julica tomava vinho, senta da diante da mesa. De repente, Zelinda lembrou-s e: - Gigina, deixa eu levar um pouco desses bis coitos para minha filha. Estão tão gostosos... Enquanto Gina embrulhava os biscoitos, Zelinda f alava: - Gracinha está um amor. Qualquer dia eu trago ela aqui para você ver. Já quer escolher vestidos. Imagine! O pai outro dia comprou uns s apatinhos cor de rosa para ela pois não quer o utro sapato. Só quer o cor de rosa. Já sabe esco lher, a garotinha. Ela promete. De repente, pis cou para Gina chamando-a para fora da sala; deix aram a mãe sozinha diante da garrafa de vinho. N o vestíbulo, Zelinda segurou o braço da irmã e s ussurrou: - Gigina, eu também vim aqui hoje par a fazer um pedido. Apareceu um emprego para Zeca , mas é preciso que ele faça um depósito de dinh eiro. Chama fiança, sabes? Ele tem que deposita r pelo menos cinco contos num Banco se quiser pe gar esse lugar. Lembrei de Olegário, será que vo cê não pode falar com ele? Será apenas um emprés timo, depois Zeca paga. Gina sentiu um aperto na garganta; as mãos ficaram úmidas. Como iria pedir tanto dinheiro? Teria coragem para isso? S acudiu a cabeça vagamente, sem afirmar, sem ne gar. Zelinda continuou em voz baixa: - Eu não q uero falar perto de mamãe porque ela não acredit a que Zeca arranje emprego, sabes? Diz que Zeca não procura. Mas ele procura tanto, Gina. É porq ue não tem sorte de encontrar uma colocação fi rme. Qualquer dia eu brigo com mamãe, já estou f icando enfezada. Deu para implicar com o Zeca po rque ele está sempre em casa. Ela não falou na da para você? - Não. - Pois deu pra falar até pras vizinhas. Uma caceteação. Parou um pouquinh o e perguntou: - Será que você arranja o dinhei ro? Fala com Olegário... Gina resolveu ser franc a: - Não sei Zelinda, é muito dinheiro, nunca p edi tanto... Ele dá o que quer, nunca exige nada . Você sabe... Zelinda deu uma risadinha astuci osa: - Então você está bancando a trouxa... Poi s exija o que quiser que está no seu direito. E digo mais: você podia até ameaçá-lo de um escând alo, contar à mulher dele por exemplo, ele dar ia tudo o que você quisesse... Gina recuou, esp antada: - Oh! Zelinda... - Ué! Por que não? De ixe de ser boba, de ter escrúpulos, trouxa. Peça e exija. Está no seu direito. Os olhos faiscar am como se tivessem raios; deu uma palmadinha na s costas da irmã. Dona Julica falou da sala de j antar: - Onde é que vocês estão? Ih! Estou vend o tudo rodar, acho que bebi muito vinho, quase u ma garrafa, Gigina, por que você me deixou beber tanto vinho? Cantarolou. Zelinda murmurou, eno jada: - Está bêbada. Então fale com Olegário; v ocê sabe, é importante que Zeca pegue esse empre go. Beijou a irmã e chamou a mãe para irem embo ra. Carinhosamente, dona Julica beijou a filha e entrou no automóvel que Gina mandou vir. No por tão, Zelinda ainda piscou para a irmã como que m diz: "Não se esqueça do meu pedido.” Gina ent rou em casa, pensativa. Que fazer? Ainda havia m ais: Osório, o velho amigo Osório visitava-a alg umas vezes; uns meses antes fizera um pedido: pe dira a Gina para auxiliá-lo nos estudos de Dir eito. Continuava a trabalhar durante o dia e à n oite, estudava, mas como tinha que sustentar mãe e irmãs, sua vida era penosa. Penalizada, Gin a começou a auxiliar Osório. No primeiro mês dep ois desse pedido, ele havia dito que cem mil réi s não chegavam para as despesas; no segundo mês, pedira mais cinqüenta mil réis porque já esta va matriculado e precisava de livros. Agora, na véspera do seu aniversário, viera buscar duzento s mil réis porque com menos não seria possível pagar as despesas. Mas também Gigina era rica, podia ajudar o velho amigo. Assim estava ela com prometida a custear os estudos de Osório até for mar-se em Direito. Que fazer? Jantou sozinha, cheia de preocupações. Lembrou-se que podia ven der aquela pulseira e dar o dinheiro a Zelinda; arranjaria uma pulseira falsa para substituir aq uela, os homens não reparam nessas coisas. Lem brou-se de pedir a Olegário. Mas como? Que diria ? Pedir dinheiro para a irmã sem juízo e o cunha do vadio? Que pensaria Olegário. Não. Tinha qu e encontrar uma solução. Passou parte da noite s em dormir. Amava Olegário? Não. Era-lhe apenas g rata por tê-la tirado da miséria, mas não o amav a. Com a mão na consciência, refletiu e mediu seus sentimentos. Nessa noite tornou então uma resolução; resolveu executá-la no dia seguinte. Abriu a gaveta do móvel, onde guardava suas jóia s e seus segredos, tomou um cartão entre os de dos e ficou revirando-o, depois leu-o devagar; e ra de um homem riquíssimo. Mandara-lhe um dia um as rosas amarelas e esse cartão escondido entre elas, convidando-a para jantar. Recusara. Ele telefonara uma tarde, dizendo-lhe que quando qui sesse jantar com ele ou quando precisasse dele, telefonasse. Gina ficou de pé no meio do quart o, revirando o cartão e lembrando das palavras d ele; resolveu então telefonar. Ficou combinado u m jantar para alguns dias depois. Ela sabia que Olegário iria ao Rio levar a mulher para consu ltar um especialista do coração. No terceiro di a, enquanto se aprontava para sair, perguntou a si própria se não estava cometendo uma traição, mas sua consciência disse que não. Só sabia que precisava ganhar mais dinheiro para auxiliar a família e Osório que queria ser advogado. Tinha apenas uma idéia em mente. Eles precisavam dela e ela não podia faltar. Um automóvel grande e negro foi buscá-la. Gina entrou. O interior do c arro ficou todo perfumado. Um homem de aparência simpática recebeu-a com um sorriso; depois to mou entre as suas mãos as mãos dela e beijou-as sem nada dizer. A principio, só aceitava esses convites quando Olegário viajava, depois começou a ir a teatros e ceias, mesmo sabendo que Olegá rio estava em S. Paulo. Ganhou presentes sem c onta. Tinha o cuidado de ocultar tudo do amigo. Ganhou uma pulseira de brilhantes que vendeu log o depois substituindo-a por uma falsa e deu o di nheiro para o marido de Zelinda se colocar. Ze ca se empregou e dona Julica contou a Gina muito em segredo que Zelinda dissera que ela era avar enta; é verdade que ela pedira cinco contos, m as pensara que Gina desse mais, pelo menos dez. Podia ter sido mais generosa. Era tão fácil para ela! Ganhava tanto! Num outro dia, Gina ganhou um casaco de peles; era difícil de esconder; en tão, nos dias das visitas de Olegário, o casaco de peles ia para o quarto da cozinheira e a cr iadinha, quando servia a mesa, punha a mão na bo ca para rir. Olegário perguntava: - O que Gabri ela tem? Está rindo à toa. Gina disfarçava: - Decerto está rindo porque a cozinheira levou um tombo hoje no quintal. Bobagens. E assim Gina t ornou-se também mentirosa. Mentia todos os dias para enganar Olegário. Quando saía com o homem r iquíssimo, levava nos ombros o casaco de peles; e por onde passava deixava um pouco do seu per fume pairando no ar. Freqüentava teatros e lugar es onde se dançava. Ceava de madrugada. Ficou co nhecendo outros homens e foi aceitando outros convites. Assim foi passando de mão em mão como uma bela flor. Então Olegário descobriu tudo; na madrugada cinzenta de um dia de inverno, quan do Gina subiu a escada da sua casa arrastando o casaco de peles preguiçosamente, encontrou Ole gário em cima do hall, pálido como um morto. Olh ou-o sem dizer nada e quis alcançar a porta do q uarto, mas ele segurou-a pelo braço e ela sentiu como se fossem tenazes de ferro magoando-lhe a carne. Ele gritou-lhe ao ouvido, um grito dese sperado de ciúme e revolta: - Onde esteve? Diga onde esteve! Com quem andou? Seu hálito cheira va a whisky, havia bebido; Gina cerrou os lábios e tentou escapar, mas ele apertou-lhe o braço c om tanta força que ela gemeu. Então resolveu con tar tudo. Para que continuar a mentir? Contin uar a ocultar a verdade? A enganar? Falou tudo ali mesmo, à luz pálida da madrugada; contou que a família pedia, pedia, pedia dinheiro. Ela sus tentava a mãe, a irmã, o cunhado, a sobrinha, o amigo Osório que estudava Direito. E todos lev avam boa vida, andavam bem vestidos, passeavam, tinham casa confortável, mesa farta. Diziam, rin do e pilheriando: "Ora, a Gigina ganha fortuna s, Gigina pode." Com o que ele dava, não podia s ustentar todos. Então... Não terminou. Sobre sua face esquerda, caiu a mão pesada de Olegário: - Sua. Gina suportou o insulto. Sabia que mer ecia isso e ainda mais. Não chorou. Muito pálida , correu e fechou-se no quarto. Olegário começou a bater na porta fechada e a gritar: - Miser ável. Abra esta porta, se não arrebento tudo. T irei você da lama das sarjetas e você me faz iss o? Infame! Traidora. Abra essa porta. As criad as vieram, assustadas, espiar o que estava se pa ssando. Com uma touca roxa na cabeça, a cozinhei ra ficou no vestíbulo em baixo, escutando; seu r osto negro e reluzente confundia-se com o roxo da touca. A criadinha Gabriela veio na ponta do s pés, um xale negro sobre a camisola, os olhos arregalados de medo. Perguntou com os lábios, sem falar: "O que foi?" A cozinheira fez-lhe sin al de que o barulho estava feio, lá em cima. Ole gário prometia arrombar a porta; batia, com as m ãos fechadas contra ela, ameaçava, gritava. Al gumas janelas das casas vizinhas começaram a se abrir e rostos brancos à luz cinzenta da manhã, surgiram interrogadores. De repente, Gina abriu a porta. A cozinheira e a criadinha ouviram a p orta se abrir. Houve um grande silêncio; a cozin heira levou as mãos à cabeça com medo do que i a acontecer, mas nada aconteceu. A voz de Gina s e elevou; uma voz de timbre calmo e sereno; pedi u a Olegário que fosse embora; voltasse quando e stivesse mais tranqüilo e quando tivesse pensa do melhor. A verdade era aquela que ela havia co ntado; refletisse e voltasse para conversarem de pois. Pediu-lhe que fosse embora, mas Olegário estava desesperado; começou a falar muito depre ssa, não podia viver sem ela, não podia... Sua v oz era rouca e suplicante. As lágrimas interromp eram-lhe as palavras. Quando a cozinheira ouvi u os soluços de Olegário, sorriu e, fazendo um s inal a Gabriela, convidou-a para se retirarem, p ois tudo estava acabado. Nas pontas dos pés vo ltaram ao quarto próximo à cozinha. Não valia a pena dormir, eram quase cinco horas. Deitaram-se e começaram a comentar a vida atormentada de Gi na; a cozinheira levantava o punho fechado par a cima: - Tudo explora ela, querem tirar tudo d a coitada. Nunca vi uma coisa assim, também não pode ser. Gabriela bocejava confirmando. Lembra ram de fazer um café e levar ao quarto dos patrõ es, bem que estavam precisando. Quando Gabriela levou o café e ia bater no quarto, viu a porta aberta e Gina deitada num divã encostada à pared e; viu também numa das suas faces, uma grande ma ncha escura. Ao seu lado havia um vidro de alg odão; Gina, segurava uma compressa sobre a face. Havia chorado. Seus olhos estavam molhados de l agrimas. O quarto estava em desordem; havia ro upas espalhadas pela cama e pelas cadeiras, a po rta do guarda roupa estava aberta, cabides no ch ão e sobre as cadeiras. Quando Gabriela colocou a bandeja de café sobre uma banqueta e aproxim ou-se do divã, ela e Gina ouviram os passos de O legário que descia a escada apressadamente, depo is ouviram a porta da rua bater com estrépito. Ele se fora. Gina fez um gesto desanimado e sus pirou. Olegário levara a roupa que guardava em c asa dela, colocara tudo dentro da maleta de co uro marrom e saíra às pressas. Não pretendia vol tar. Tudo terminara entre eles. Nos primeiros d ias, Gina não aceitou convite algum, tratou do o lho pisado. No fim da semana, Pascoalina aparece u uma noite, fora de horas, os olhos vermelhos d e chorar; foi pedir a Gina que a hospedasse du rante uns dias pois não sabia o que fazer de si, sentia-se profundamente infeliz. Abraçava-se ao pescoço da amiga e chorava: - Ele me abandonou , Gigina. Didi me abandonou. Gina sentiu o calo r das lágrimas de Pascoalina sobre seu ombro. Ma ndou preparar o quarto de vestir para a amiga do rmir e todas as noites, Pascoalina chorava e con tava a Gina toda sua história. Ela falava mist urando palavras feias na narrativa e Gina escuta va pacientemente. Uma noite, oito dias depois, Gina recomeçou a sair; quando voltou às duas hor as da manhã, encontrou sobre a mesa do vestíbulo , um bilhete da mãe: O irmão Pepino havia caíd o do trapézio e morrido nessa tarde, no circo. O enterro seria no dia seguinte às dez horas, não havia dinheiro era preciso que ela mandasse. G ina foi para o quarto com o bilhete na mão; havi a se esquecido de que o circo estava em S. Paulo há mais de uma semana, lá para os lados da Moóc a. Recebera um recado de Pepino; mandara dizer por dona Julica que iria visitá-la qualquer dia e levaria uma frisa de presente. Ela esquecera e agora ele morrera. Pepino morrera. Lembrou-se do corpo fino do irmão vestido com uma malha c olante, balançando-se no ar; lembrou-se das revi ravoltas que aquele corpo fino fazia lá em cima e como seu coração batia apressado com medo qu e ele caísse. Lembrou-se do pai quando a levava pela mão para ver Pepino trabalhar; quando desc iam do bonde, ouviam de longe a banda tocando, v iam as luzes que brilhavam lá dentro e a multi dão que se comprimia para comprar bilhetes, e to do aquele vai-vem, os gritos dos vendedores de a mendoim, de doces, pastéis, e ela apertava com f orça a mão do pai, tinha medo de se perder no meio daquele esplendor. Guardou na memória a mús ica do circo; tocavam sempre a mesma e quando Pe pino trabalhava era uma valsa: "O vendedor de pássaros." Os músicos usavam jaquetas vermelhas desbotadas com cordões dourados sobre os ombros. E Pepino saltava de um trapézio a outro com uma agilidade felina; ela sentia as mãos úmidas c omo se estivessem molhadas na água; era aflição. E quando Pepino fazia duas voltas no ar antes d e alcançar o outro trapézio, a banda tocava em surdina; ela olhava para os músicos para disfar çar sua emoção; eles tinham o olhar fixo em Pepi no e o "Vendedor de pássaros" quase que parava, o seu compasso. Só quando os tambores tocavam anunciando o fim do trabalho ela respirava com a lívio e olhava então o irmão. Ele estava lá em c ima, agradecendo para todos os lados e sorrind o; às vezes enviava um beijo para o lado dela. E la aplaudia também, as mãozinhas molhadas de suo r, feliz por ver Pepino ainda com vida. Depois vinha a mulher que andava sobre a bola; era uma bola grande, pintada de várias cores e a moça de saiote curto coberto de vidrinhos que cintilava m contra a luz, equilibrava-se, e a bola corri a de um lado a outro no picadeiro, enquanto a mu ltidão aplaudia com entusiasmo. E a menina que a ndava sobre o arame lá no alto? O arame balouç ava-se e os pezinhos da menina deslizavam sobre ele, os braços abertos, o saiote brilhante, as p ernas finas. Às vezes levava uma sombrinha color ida sobre a cabeça; a sombrinha revirava e vol teava no espaço como uma flor ao vento. E havia m rapazes que saltavam sobre um cavalo branco e forte, as ancas largas, as crinas compridas. Ele s faziam piruetas em cima do cavalo, subiam e de sciam sem ele parar, um subia no ombro do outr o e equilibravam-se sobre a anca enquanto o cava lo dava voltas e voltas, a cabeça baixa, as crin as sedosas a caírem-lhe sobre a testa. Depois desse número, Pepino aparecia outra vez para tr abalhar com o palhaço; vinha com o rosto pintado de branco, o nariz vermelho como um pimentão; f azia graça, dava cambalhotas, levava palmadas do palhaço. Gina ria-se, ria-se. Sabia que era Pepino pela voz; achava graça em tudo o que ele dizia, retorcia-se de rir quando ouvia as piadas do irmão. O palhaço tinha uma roupa de seda, muito larga, onde havia caras pintadas e quando ele se voltava, toda a gente dava gargalhadas po rque havia uma cara muito grande pintada; no seu traseiro. Como era engraçado! Pepino e o palh aço deixavam o picadeiro e as palmas e as risada s estouravam de todos os lados. Pepino era um gr ande artista. Os olhos de Gina encheram-se de l ágrimas. Como era engraçado! Lembrava-se da últi ma vez que o vira trabalhar; o professor Pasqual e já havia morrido e ela fora com a mãe e Zeli nda, assistir ao último espetáculo em S. Paulo; o circo partiria no dia seguinte para o interior . Quando começaram a representar a pantomima, c omeçou a chuva. A princípio, ninguém deu importâ ncia; era uma chuvinha à toa, fraquinha, mas aum entou e começou a cair dentro do circo. O circ o era velho e a lona que o cobria estava furada em muitos lugares. Gina sentiu um pingo d’água e scorrer-lhe pelo pescoço, mas não disse nada, com medo que a mãe quisesse ir embora. Sentiu ou tro pingo e outro; muita gente começou a mudar d e lugar, a reclamar, a ir embora. Mas ela não qu eria sair, Pepino estava representando; tinha o rosto triste enquanto falava, sua voz era supl icante como se chorasse. Era um artista, o Pepin o. Foi a última vez que o viu. Ficou de desped ir-se delas no dia seguinte, e não apareceu mais . Soube mais tarde que ele havia se casado com u ma das artistas do circo. E depois não teve mais notícias. Já ia longe esse tempo. Deitou-se para dormir; viu ainda na imaginação o corpo elá stico do irmão saltando de um trapézio a outro, naquela grande altura. Sentiu as mãos úmidas com o se estivesse ainda no circo e os olhos ficar am cheios de lágrimas. Pobre Pepino. Acordou às seis horas com o ruído da campainha do telefone. Era dona Julica; disse a Gina que se aprontas se, pois passaria por lá a fim de irem ver Pepin o; fez uma pausa e acrescentou: - Por causa do Pasquale, compreendes? Foi um bom homem... Pasc oalina apareceu na porta do quarto de vestir, to da despenteada, dizendo que iria também; esperar a Gina até uma hora para contar o sucedido, depo is dormira, não sabe como. Em poucos minutos e stavam prontas. Dona Julica passou de táxi e for am para a Moóca; o enterro sairia do próprio cir co, conforme pedido de Pepino. Ao passar por um a casa de flores, mandaram parar o automóvel e c ompraram rosas e cravos; o carro ficou salpicado de água que caíra das flores e um leve perfume de rosas dominou o cheiro de couro e cigarros. Era uma manhã de Julho e toda a gente passava e ncapotada e encolhida por causa do vento frio; a s mãos nos bolsos, os rostos avermelhados. De longe, avistaram a lona do circo, remendada em vários lugares; eram remendos grandes feitos de lona mais escura. Quando o táxi parou e elas de sceram sobraçando grandes ramos de flores, a pro ximidade do circo ficou cheia de gente que parec ia ter brotado da terra; uma mulher com um ven tre enorme, sussurrou para outra: - La sorella. .. Um homem falou do outro lado: - É milionári a. O dono do circo apareceu para recebê-las; co ntou rapidamente que durante o ensaio da tarde a nterior, Pepino havia caído do trapézio; estava inventando um número sensacional. A altura não era grande e ele não morreria, se não sofresse do coração. O médico dissera que ele morreria do coração qualquer dia, e de fato morreu, não d a queda. Dona Julica perguntou: - Mas ele não s e tratava? Não tomava remédios? A mulher do don o do circo apareceu atrás do marido; respondeu: - Tratava, tomava remédios, mas o médico não qu eria que ele saltasse do trapézio, disse que se continuasse a fazer acrobacia, morreria. Um out ro que os rodeou, terminou: - E morreu mesmo. Gina teve vontade de perguntar por que ele ainda trabalhava no trapézio se estava sofrendo do co ração, depois lembrou-se que decerto era para ga nhar mais dinheiro e sustentar a família. Perg untou: - Deixou família? Deixou mulher e dois filhos pequenos. O dono convidou-as para entrar ; Gina chamou-o de lado e recomendou que fizesse tudo da melhor maneira possível, ela pagaria. P ascoalina tinha o rosto contraído como se foss e chorar. No meio do picadeiro, estava o caixão sobre um tablado de madeira; ao lado, estava uma mulher inconsolável e duas crianças e que també m choravam. À volta do tablado, havia uma porç ão de homens e mulheres, quase todos artistas qu e tinham sido companheiros do morto. Abraçaram a viúva; Gina achou-a parecida com a menina de pernas finas que trabalhava no arame; depois sou be que era ela mesma, apenas mais velha, um pouc o gorda, esperando outro filho. As duas crianças teriam seis e oito anos, eram magras e pálida s. Gina ficou olhando estupidamente o caixão; Pa scoalina começou a chorar alto; tirava o lenço e passava nos olhos num grande abatimento, apes ar de não ter conhecido Pepino. Os que chegaram depois, deram pêsames a Pascoalina pensando que ela fosse a irmã; a viúva e as crianças choraram fortemente quando viram Pascoalina chorar. Do na Julica tirou um lenço de seda cor de rosa da bolsa de couro e enxugou os olhos; de repente gu ardou o lenço outra vez e o fecho dá bolsa fez tóc! no silêncio do picadeiro. Tornou a abrir a bolsa logo depois porque estava novamente em p ranto e a bolsa tornou a fazer tóc! Todas as cab eças voltaram-se para o lado de dona Julica. Imp erturbável, ela continuou a tirar e a guardar o lenço a todo o instante. Entrou mais gente e todo o picadeiro ficou cheio; trouxeram cadeiras para perto do tablado e quase todos ficaram sen tados, esperando a hora do enterro. Alguns levan taram-se para ir fumar, outros conversavam con tando a história de outras mortes como aquela. O macaquinho começou a dar guinchos lá dentro e a lguém foi aquietá-lo. Os três cães latiram inq uietos. Tudo já estava determinado e Gina já ha via dado ao dono do circo, todo o dinheiro que t razia na carteira; ficara de dar mais depois. M eia hora antes do enterro, a banda de música apa receu fardada e colocou-se à entrada do picadeir o, como a avisar que o espetáculo ia ter início. Gina olhou-os; eram aqueles mesmos homens que usavam as fardas vermelhas desbotadas, com cord ões dourados sobre os ombros. No silêncio que se fez, ouviu-se a banda tocar a Valsa de Pepino ; "O vendedor de pássaros". Tocou de uma maneira tão triste que Gina começou a chorar, mas seu d esejo era chorar aos gritos, como uma criança de sconsolada. Começaram depois as despedidas; to dos os artistas desfilaram diante do caixão para se despedirem de Pepino; uns inclinavam-se e be ijavam a testa do morto, outros passavam simpl esmente: os meninos do trapézio, a menina que an dava sobre a bola, o palhaço, os equilibristas, os que faziam piruetas a cavalo, a família do do no do circo, os que representavam a pantomima, os empregados e finalmente o cavalo branco, o m acaquinho e os cachorros. A banda tocava em sur dina, sempre a mesma valsa. Fizeram os animais p arar ao lado do caixão; o cavalo roçou a cabeça no caixão, as crinas sobre os olhos, como se c ompreendesse. - Por que fazem isso? Uma mulher falou ao lado dela: - Pepino disse antes de mo rrer que a vontade dele era despedir-se de um po r um, de todos os companheiros; a senhora sabe, pode-se dizer que ele nasceu no circo... Pascoa lina perguntou: - Mas ele falou antes de morrer ? - Como não? Conversou com quase todos e recom endou muitas coisas para a mulher e os filhos. E le me disse... Ele me disse... E a mulher começ ou a chorar sem terminar a frase. Vieram os cães amestrados conduzidos por um dos tratadores; le vavam capinhas vermelhas sobre o dorso, como o m acaquinho. Pararam ao lado do caixão e ficaram em silencio aspirando o ar; de repente um deles levantou o focinho para cima e deu um uivo prol ongado como se fosse um gemido. O tratador inc linou-se e falou-lhe qualquer coisa ao ouvido; o cão levantou as patas dianteiras e ficou de pé procurando ver o rosto de Pepino, depois deu um gemido baixinho e olhou à volta como à procura de alguém. O tratador sentiu-se orgulhoso; volt ou-se para os que estavam ao lado: - O Feitiço sabe o que aconteceu, veja como ele procura. E chamou: - Feitiço! Pirata! Vamos embora. Nosso amigo morreu... Pascoalina soluçou e segurou Gi na por um braço: - Ah! Gigina, até os animais g ostavam dele. Veja um pouco... O macaquinho pas sou segurando a mão do domador; sua mãozinha neg ra e murcha desaparecia nas mãos grandes do home m; passou arrastando o rabo e dando saltinhos, d e casaca encarnada. Os olhos vivos percorriam a cena de um lado a outro; antes de desaparecer, deu um guincho estridente. Gina chorava com a cabeça inclinada. A mulher de Pepino levantou-se e beijou longamente o marido; as crianças també m. Foi quando a banda cessou de tocar e um sacer dote acompanhado por um coroinha, entrou para recomendar o corpo. Rezou e espargiu água benta sobre o caixão; as gotinhas d’água alcançaram al gumas pessoas que se benzeram contristadas. Al guns homens aproximaram-se e levaram o caixão; a banda tocou uma marcha fúnebre diante de uma mu ltidão que esperava na rua da Moóca; só cessou d e tocar quando o automóvel que levava Pepino, desapareceu numa esquina. Todos se dispersaram aos poucos; Gina entrou novamente no circo e foi perguntar à viúva se tinha onde ir, se tinha fa mília. Chorando muito, ela disse que tinha uma tia que morava em Barretos e não via há muito t empo, não tinha mais ninguém. Fez um, gesto vago com as mãos como quem não sabe que fazer de si. Gina convidou-a então para ir para a casa del a pelo menos até a criança nascer. Uma das amiga s que estava ali perto, aproximou-se e tomou not a do endereço, prometendo levar a mulher de Pe pino e as crianças logo que pudesse. Deixasse po r conta dela, providenciaria. Gina quis deixar algum dinheiro, mas não tinha mais nada na carte ira, então pediu a Pascoalina que emprestasse al guma coisa; Pascoalina deu cinqüenta mil réis. D espediram-se e entraram no táxi; quando este c omeçou a rodar, Pascoalina deu um suspiro fundo e recostou-se, inclinando a cabeça para trás; ti nha os olhos inchados de tanto chorar. Dona Jul ica estava impressionada, empurrou o chapéu para a testa e deu um gemido; Gina estava hirta olha ndo para a frente.- De repente, Pascoalina pergu ntou passando a mão pelos olhos: - Me diga um a coisa, Gigina, a vida vale alguma coisa? Gina encolheu-se sentindo frio; sem voltar-se, respon deu: - Nada. Não vale nada, Pascoalina. - Tamb ém acho. O que adianta a gente brigar? Nada. A gente morre mesmo como o pobre Pepino. Acabou-se . Porca vida! Disse um palavrão. Nesse instante o táxi parou de súbito para evitar um bonde que vinha em sentido contrário. As três foram atira das com força no fundo do carro, umas sobre as outras. Dona Julica fez uma careta e endireitou o chapéu que havia caído de lado. Pascoalina ba teu a cabeça no fundo do carro, levantou-se um pouco para ver o que havia e gritou: - Nossa S enhora da Boa Morte, o que houve? E vendo que nã o havia nada, acrescentou: - Porca miséria! Ou tro palavrão. E de súbito, as três começaram a r ir; riram desesperadamente, com alívio, com sati sfação, com alegria, como se aquilo fosse a cois a mais engraçada da mundo. Dois dias depois, a viúva de Pepino chegou com os dois filhos, um cachorro, duas malas e uma porção de pacotes e e mbrulhos à casa de Gina. Foi preciso comprar cam as que foram colocadas no quarto dos fundos, e m cima, onde Gina guardava malas e objetos pouco usados. A viúva tinha sempre os olhos vermelhos e falava incessantemente no marido, quando ha via alguém para escutar. As crianças pálidas e m agrinhas carregavam o cachorro no colo, este tam bém era triste, tinha o pêlo curto e marrom, g randes orelhas caídas e olhos de desamparado. As crianças não saíam de perto da mãe, olhando tud o com admiração. Nesse mesmo dia, Gina ouviu Pa scoalina falar duas vezes ao telefone; e à noite , quando voltou para casa depois de ter jantado na cidade, encontrou um bilhete da amiga sobre a mesa do quarto; agradecida a hospedagem e diz ia que resolvera fazer as pazes com Didi, a vida é curta para se viver brigando. Gina riu e pic ou o bilhete em pedacinhos; tivera uma boa notic ia nesse dia: na próxima semana iria mudar-se pa ra uma bela casa na Avenida Brigadeiro Luís Anto nio, teria um automóvel e chauffeur. Ganharia mais dinheiro também. Era preciso muito dinheiro agora, pois as despesas aumentariam com a famíl ia de Pepino que tinha de sustentar. Na nova casa, para onde se mudaram, havia dois belos qua rtos em cima da garage e lá ficou instalada a fa mília do irmão. Gina compreendeu então o que er a ser realmente rica; a casa da rua Liberdade er a insignificante e feia ao lado dessa que possuí a agora, com grande jardim, salão, quartos gra ndes e bons banheiros. Comprou mais vestidos, po ssuía tudo o que havia de melhor e mais bonito n a cidade, foi disputada, ganhou jóias de valor. Muitas vezes, ao despertar, seus olhos pousava m sobre a mesa da cabeceira, onde ela sabia que ia encontrar um estojo; antes de abrir, adivinha va: um anel, uma pulseira, um colar? Nunca err ava. O padrão de vida de dona Julica subiu tamb ém com a riqueza da filha; começou a fazer estaç ão de águas, passava o inverno no Rio, vestia ro upas finas e gastava um dinheirão em automóvel . Zelinda começou a viver no luxo, tinha tudo o que queria; um dia disse uma frase para a irmã, frase que Gina nunca pôde esquecer. Gina mostrav a os vestidos novos que comprara; Zelinda olho u, apalpou às sedas, examinou e, voltando-se par a Gina disse: - Que engraçado, Gina. Você com e sse luxo todo, com vestidos caríssimos e no enta nto não pode entrar em toda a parte enquanto eu com um vestido de saco, posso. Deu uma risadinh a aguda. Gina cerrou os lábios e não respondeu. Não decorreu muito tempo, Zelinda separou-se do marido. Percebera que Zeca tinha uma amante lá p elos lados do Braz; chamou um detetive para de scobrir o que havia na vida do Zeca, pois ele an dava arredio e nem com a filha se importava. Uma semana depois, o detetive voltou e contou com ares misteriosos que o Zeca tinha um quarto por conta dele numa pensão cara. Nesse quarto, ele se encontrava com a outra. Zelinda quis fazer e scândalo e surpreendê-los em flagrante, mas dona Julica pediu que não fizesse isso, pelo amor de Deus. Nesse dia Zelinda teve uma discussão vi olenta com Zeca; quando ele chegou para jantar, ela disse tudo até o endereço do quarto. Ele fic ou apatetado, olhando a mulher; não negou, nem confirmou. Diante de tanta indiferença, ela ava nçou para ele, furiosa; quando ele procurou defe nder-se ela mordeu-lhe a mão. Ele reagiu e emp urrou-a com força; ela bateu numa cadeira da sal a de jantar e quase caiu; mais furiosa ainda, de u um soco com tal ímpeto no estômago do Zeca que ele cambaleou. Zelinda aproveitou-se disso e caiu de tapas e pontapés em cima do marido. Ele novamente se defendeu e empurrou-a; desta vez el a caiu sentada no chão, do outro lado da sala. Dona Julica gritava dum lado, tentando segurar o braço da filha, mas esta era forte e se desven cilhava facilmente; as duas criadas que haviam e ntrado atraídas pelo barulho, não sabiam que f azer e Gracinha, nos braços da pajem, dava grito s agudos. Quando Zelinda se levantou e tornou a avançar contra o Zeca toda desgrenhada, a blus a rasgada, os olhos vermelhos de cólera, dona Ju lica e as duas criadas puseram-se na frente do Z eca para defendê-lo; isso foi tão inesperado que Zelinda parou indecisa. E nada pôde fazer. El e passou as mãos pelos cabelos, endireitou a gra vata e com passos apressados, dirigiu-se para o quarto. Ouviram então o ruído de gavetas abrin do e fechando, portas de armário que se batiam p assos de um lado a outro, de quem tem muita pres sa. Enquanto isso, davam água com açúcar a Zelin da e a Gracinha para se acalmarem. Minutos dep ois, quando Zeca apareceu com uma mala nas mãos, na porta da sala, Zelinda fez um movimento para se levantar, mas as três mulheres puseram-se na frente dela. Zeca pôde deixar a casa tranquil amente; não muito tranquilamente porque ouviu de longe, os gritos roucos de Zelinda: - Vadio! S aia já desta casa, seu vagabundo. Vá agora suste ntar tua bruxa, quero ver com o que! Anda! Arran ja dinheiro agora, bandido! Sua boca espumava d e ódio. Gracinha nos braços da avó recomeçou a c horar dando gemidos como um cãozinho. Zeca foi diretamente à casa de Gina para contar tudo; Gin a estava no salão dando aula de canto. Quando o professor saiu, Zeca desabafou: "Impossível vive r com Zelinda. Tem um gênio violento, desleixa a filha, é má dona de casa. Só o que quer é viv er na cidade com as amigas, bem vestida e perfum ada... vadiando.... A pobre Gracinha fica nas mãos das criadas e tem sempre dor de barriga por que come as porcarias que a mãe traz da cidade. E se não tem dor de barriga, tem dor de ouvidos ou qualquer dor... A mãe só sabe voltar à noit e e encher a criança de doces. Uma lástima. Não suporto mais, o melhor é mesmo a separação. E ai nda fala mal de você, Gina... Diz que você é m al agradecida, ingrata... Diz que você não se le mbra que foi ela que ensinou você a ler e a escr ever, diz que defendia você quando do a mãe quer ia bater. E tudo o que ganhava, dividia com vo cê.. Ele continuou diante do silêncio de Gina; contou que estava bem no emprego para o qual Gi na pagara fiança um ano antes e perguntou se Gin a o auxiliaria ainda, caso ele precisasse. Gin a prometeu e Zeca deixou a casa mais aliviado. F oi para a pensão do Braz. Quando Gina estava se preparando para sair, Zelinda chegou com dona J ulica; vinha ainda com as feições transtornadas pela cólera, os olhos fascinantes de ódio. Disse horrores do Zeca; fazendo gestos nervosos com as mãos gordas e brancas, onde brilhavam pedras falsas, falou: - Sempre foi péssimo marido, Gi gina... Sempre. Desde o princípio do nosso casam ento, foi ruim. Nunca me iludi a respeito dele; e afinal o que ele era antes do casamento? Vend edor de pão numa padaria de bairro! Ficou import ante depois de casado. Aí ficou gente. Teve boas roupas, casa confortável, boa mesa. E deve tudo a quem? Se não casasse comigo, teria tudo iss o? Engoliu seco e continuou: - Quero dizer, de ve tudo a você, Gigina, deve tudo a você. E às v ezes ainda critica a vida que leva. Não é mesmo, mamãe? Dona Julica, entretida em comer bombons que encontrou num prato de cristal, confirmou, distraída. Zelinda tornou a falar: - Miserável. Ele há de me pagar. Pagará tudo o que me fez. T udo. E dirigindo-se à mesa, onde havia uma garr afa de licor, perguntou mudando de tom: - É de cacau, Gigina? Vou tomar um pouquinho. Estou pre cisando. Quer um trago, mamãe? Calçando as luva s brancas de pelica, Gina ouviu as queixas da ir mã, olhando o relógio de vez em quando. Zelinda, olhou o cálice de licor contra a luz: - Não fa ça cerimônia, Gigina... Se tem que sair, pode sa ir, pode ir. Só o que eu quero é tratar do desqu ite amanhã mesmo. Vou falar com o advogado, não quero nem ver mais aquele miserável. Parou um pouco indecisa: - Não sei em quanto ficarão as despesas; será muito caro? Bebeu um gole de lic or; Gina olhou o relógio outra vez: - Desquite? - Você me ajuda nas despesas, não Gigina? Não sei em quanto ficará. - Naturalmente que ajudo, mas não pense nisso ainda... Olhe, se querem ap roveitar o automóvel, vamos. Vou à cidade. Vamos mamãe? Dona Julica e Zelinda levaram os cálice s aos lábios e beberam todo o licor. Acompanhara m Gina e tomaram o automóvel. Durante todo o per curso, Zelinda falou mal do Zeca; agradeceu a Gina o auxilio prometido. Gina avisou: - Não fa ça as coisas precipitadamente. Por que falar em desquite já? Espere um pouco. - Então você pens a que vou fazer as pazes com o bandido? Despedi ram-se. Nessa madrugada, quando Gina voltou para casa, cansada e aborrecida, tomou um lápis e pa pel e começou a fazer as contas; as despesas era m enormes. Se não tomasse cuidado, o dinheiro não daria; ainda mais com o desquite de Zelinda. Deixou cair o lápis e o papel no tapete e adorm eceu sobre o divã, apreensiva e infeliz. O di retor do circo onde Pepino trabalhava, foi um di a falar com Gina; propôs que os filhos de Pepino voltassem ao circo, pois com a aprendizagem que já tinham, seriam grandes artistas no futuro. O menino estava aprendendo, a equilibrar-se sob re o cavalo e a menina trabalhava no trapézio, c omo o pai. Gina chamou a cunhada e explicou a proposta; quando as crianças ouviram, exultaram. Pediram à mãe para voltarem ao circo, não se ac ostumavam longe dele; tinham saudades daquele me io e daquela gente, nunca haviam vivido outra vida, nem conhecido outras pessoas. Gina ficou pensativa olhando para as duas crianças, às quai s ela havia proporcionado uma vida melhor; havia dado roupas e brinquedos, procurara por todos o s meios, dar-lhes instrução e alegria. Ei-los preferindo abandonar tudo e voltar ao circo, dei xar o palacete com seus jardins, a mesa com suas iguarias, a instrução e o futuro garantido pa ra uma vida incerta: pular sobre um cavalo ou gi rar perigosamente no ar entre um trapézio e outr o. A viúva, também pensativa, olhava as crianças . Resolveu voltar depois de ter a criança; fic ou então combinado que Gina auxiliaria no que fo sse preciso, com roupas e dinheiro, e o diretor faria um contrato para que as crianças trabalh assem sob sua direção. Nessa tarde, Gina viu de uma das janelas, os dois sobrinhos no jardim so bre um gramado que se estendia ao lado esquerdo da casa vizinha. Um virava cambalhotas e outro fazia o cachorro ficar sentado sobre as patas t raseiras e equilibrar uma flor sobre o focinho. Gina sorriu, divertida. Eram crianças de circo e nunca seriam outra coisa; tinham na alma, no sangue e no coração o amor pelo circo, herdado d o pai. Quando nasceu a criancinha no hospital, Gina foi visitar a cunhada e ficou resolvido que batizaria o novo sobrinho. Teria o nome do pai, Pepino. Um mês depois, Gina fez o batizado e d eu uma festa; convidou as amigas da cunhada e a casa se encheu de gente do circo. O diretor comp areceu com a família e também os artistas amig os de Pepino. As crianças viravam cambalhotas n o gramado e os artistas fizeram sorte no salão, equilibrando copos na ponta dos dedos e fazendo desaparecer pratos de doces num piscar de olho s. Dona Julica divertia-se bebendo vinho espuman te e olhando as proezas, mas Zelinda ficou enciu mada. Falou à mãe, num canto da sala, enquanto o s outros olhavam: - Admiro como Gigina teve c oragem de receber essa gente aqui; são todos caf ajestes e mal educados. Já derramaram vinho no t apete do salão e surrupiaram um prato de canud os. Se Gigina não abrir os olhos, vão surrupiar outras coisas, isso sim... Dona Julica sacudiu os ombros com indiferença: - O que tem, Zelinda ? Deixe se divertirem um pouco... Olhe, aquele é o palhaço... Zelinda resmungou: - O que mais admiro é Gigina dizer que gosta tanto de Gracin ha e no entanto nunca fez uma festa aqui para el a. E faz pra essa gente de circo, que ela mal co nhece... Diga uma coisa, mamãe, ela queria ass im tanto bem a Pepino? Nesse momento um dos art istas havia pedido um lenço e estava no meio da sala fazendo sair outros lenços desse primeiro. Os outros aplaudiram com entusiasmo. Dona Juli ca não ouviu a pergunta de Zelinda; bebeu mais v inho e sorriu. Com um olhar de desprezo para o m ágico dos lenços, Zelinda voltou-se para a mãe: - Ela queria tanto bem assim o Pepino? Estou fa lando com a senhora. Como ela agüenta essa genta lha no salão? Dona Julica impacientou-se: - O que você está dizendo? Quem queria bem Pepino? Gigina? Naturalmente queria. Veja o que ele está fazendo agora: pediu um chapéu e disse que vai fazer sair um passarinho lá de dentro. Quero só ver onde está o passarinho. Olhe, Zelinda... Mas Zelinda não olhou. Saiu furiosa da sala, rev oltada com a mãe que não dera atenção às suas pa lavras e com Gigina que aturava aquilo tudo para agradar uma cunhada que mal conhecia. No hal l, encontrou quatro crianças; duas eram visitas. Acompanhavam o cachorro que se dirigia para o s alão caminhando nas patas traseiras e equilibran do um doce em cima do focinho. Zelinda olhou c om ódio e saiu batendo com força a porta da rua. VII O professor d e canto de Gina, um maestro eminente, gostava de reunir artistas para vê-la cantar. E Gina, que sempre estudava muito, foi se aperfeiçoando. Uma vez por mês pelo menos, ela reunia em seu sal ão cantores, pianistas e intelectuais. E quando um artista célebre passava por S. Paulo, era log o convidado para os salões da Avenida Luiz Ant ónio. Todos admiravam profundamente Gina: sua be leza, sua inteligência, seu gosto pela música. T ornou-se a mulher mais disputada da época; os jantares que oferecia eram famosos; famosos pelo s pratos especiais, pela alegria que reinava sem pre e pelos vinhos. Seus cigarros eram escolhido s e tinham numa das pontas seu nome em letras douradas: Gina. Uma noite ofereceu um jantar ao maestro de uma Companhia Lírica que estava dand o espetáculos no Teatro Municipal de S. Paulo; c onvidou doze pessoas e encomendou um jantar es pecial. Enfeitou a casa para a festa: flores, lu zes, a mesa coberta de rendas e cristais reluzen tes, e no salão, o piano aberto, iluminado apena s pelas velas de dois candelabros. Pascoalina e Didi foram os primeiros a chegar; era uma noi te quente de Novembro e o ar parado ameaçava tem pestade. Pascoalina estava com um vestido de cet im azul muito justo e muito decotado nas costa s; Didi vinha com ar misterioso de menino desobe diente. Entraram pela cozinha, receosos de encon trarem visitas no hall; sob o braço direito de Didi, havia duas garrafas de vinho que ele depo sitou com carinho sobre o mármore da pia da copa . Nesse instante Gina entrou na copa; estava com vestido de renda branco, vaporoso e leve. Nos braços e no colo, as jóias cintilavam; Pascoali na segurou-a pelo braço: - Veja o que Didi trou xe para você. É vinho calabrês que você gosta ta nto. Cheire! Tomou a garrafa de sobre a pia e e ncostou-a ao nariz de Gina; esta recuou rindo e exclamando: - O vinho calabrês? Oh! Didi onde v ocê arranjou essa preciosidade? E pôs as mãos c heias de anéis sobre o ombro de Didi: - Muito o brigada. Ele quis falar, mas Pascoalina interro mpeu: - Quando for beber o vinho, não se esqueç a de jogar o azeite fora; o azeite que está em c ima do vinho... no gargalo... E diante da expre ssão admirada de Gina, pediu: , - Explique, Didi . Ele tomou uma das garrafas e levantou-a à alt ura da cabeça mostrando a Gina: - Está vendo es ta cor mais clara aqui no pescoço da garrafa? P ascoalina gritou: - Gargalo, Didi. Gina respond eu: - Estou vendo sim. - Quando você quiser to mar o vinho, abra a garrafa e jogue fora isto aq ui. É o azeite que eles põem para preservar o vi nho de se estragar. Gina reclamou: - Mas então vou desperdiçar o vinho? - Nada disso, Gigina. Você vira a garrafa rapidamente assim na pia, o lhe e endireite outra vez. Só o tempo de cair o azeite. - É só o tempo da garrafa dar uma cuspi da, falou Pascoalina. - Já sei, vou guardar as duas garrafas para beber quando estivermos sozin hos. Tomando as duas garrafas, Gina foi guardá- las numa prateleira da despensa. Pascoalina come çou a tirar azeitonas que a criada colocara num prato grande e chato para levar ao salão. - É das que eu gosto, Didi. Prove. - Não quero ago ra, Pascoela. - Mas eu quero que você prove. E não me chame de Pascoela, já disse. Colocou uma azeitona na boca de Didi e perguntou a Gina ond e estava o aperitivo, queria tomar um cálice. Di di aconselhou-a a não beber antes de comer algum a coisa, já havia bebido em casa. Pascoalina r iu-se alto e bateu-Ihe nas costas: - Eh! Velho, está com medo que eu fique bêbada? E o que tem que eu fique? Pode assustar o maestro italiano q ue vem aqui? Gina que fora à cozinha inspeciona r tudo pela ultima vez, entrou na copa novamente . Pascoalina gritou: - Didi está com medo que e u beba demais. Temos peixe, Gigina? E levantou o nariz para cima. - Temos camarões, Pascoalina, vamos lá para dentro. - Você já agradeceu o vi nho a Didi? - Naturalmente. Você não viu? - Ma s não o beijou. - Ora, Pascoalina, vamos para a sala. - Beije Didi. Beije, Gigina. Eu dou lice nça. Gina percebeu que ela estava embriagada; a ntes que ela insistisse mais, deu um leve beijo na face de Didi. Riram e encaminharam-se para o hall. Zelinda vinha entrando nesse instante, t irou a capa de peles e todos puderam ver então s uas espáduas morenas cheias de carne, seu busto grande, seus braços gordos. Revirou-se diante do espelho, mostrando o vestido verde berrante: - Estou bem? Todos confirmaram dizendo que sim . Vinham do salão levíssimos acordes de piano; e ra Dr. Epaminondas, um intelectual, velho amigo de Gina que na intimidade chamavam de Nondas. Tocava piano. Era alto e moreno e suas faces mag ras conservavam uma beleza interior muito pronun ciada; nem os cabelos brancos, nem a velhice hav iam-lhe levado a beleza dos traços; percebia-s e que fora um belo homem. E quando sorria, reviv ia a mocidade, seu sorriso era de jovem. Levanto u-se ao ver Gina entrar e foi encontrar-se com ela; inclinou-se e beijou-lhe as duas mãos. Est ava irrepreensível, de smoking. Logo chegaram ou tros convidados e começaram a bebericar; a criad a havia colocado uma bandeja grande na mesa de vidro do centro e eles mesmo se serviam; bebiam e comiam cebolinhas e batatas fritas enquanto f alavam animadamente. Parece que todos tinham n ovidades a contar. Dr. Nondas tomou um pouco de bebida, tornou a encher o cálice, depois colocou -o sobre o piano; sentou-se e tocou uma valsa muito levemente. Zelinda e Pascoalina discutiam vestidos; Lolô, a amiga de Gina que lhe dava liç ões de francês, contava-Ihe qualquer coisa e ela ria-se enquanto Lolô exagerava a história par a torná-la mais engraçada; fazia gestos, levava as mãos à garganta como se sufocasse, tossia, re virava os olhos. Paul, que viera com Lolô, apr oximou-se vagarosamente, queria ouvir também. Lo lô parou de falar quando o viu aproximar-se, e p egando uma cebolinha, trincou-a piscando disfarç adamente a Gina. Paul perguntou sobre que esta vam falando; Gina disse que Lolô estava contando a história de um filme que havia assistido, eng raçadíssimo. Paul queria saber o nome do filme e Lolô começou a inventar, mentindo e exagerand o, foi quando Gina viu seu professor de pé na en trada do salão, ao lado do maestro italiano e de outras pessoas que estavam mais atrás. Ela f oi ao encontro dos novos convidados; além do mae stro, vinha a soprano da Companhia Lírica, uma o utra atriz que fazia papéis secundários, e um ra paz alto e alourado, secretário do maestro. Os que já estavam no salão, ficaram em silêncio en quanto Gina fazia as apresentações. A criada tro uxe mais bebidas e novos pratos com pepinos ad ocicados e cebolinhas; solenemente, o maestro le vantou o cálice a altura dos olhos, saudou Gina em italiano e inclinou-se; depois bebeu e deposi tou o cálice com cuidado sobre o espelho azula do da mesa. E de repente, todos começaram a fala r como se tivessem muita coisa a contar uns aos outros; falavam sobre os espetáculos da Compan hia, sobre a temporada de Buenos Aires, sobre mú sica. O maestro não tinha ainda cinqüenta anos; era moreno e tinha um ar distinto, parecia trist e. Não era feio e quando falava ou sorria, tor nava-se simpático e atraente. Compreendia vagame nte português e preferia falar francês ou italia no. Começou a comer cebolinhas e a contar a Gi na o sucesso dos últimos espetáculos no Rio. A s oprano estava ao lado de Didi; era bonita e eleg ante; à volta do seu pescoço, havia um colar de pérolas muito bonito. Um pouco ao lado, Zelind a tentava descobrir se o colar era falso ou verd adeiro; perguntou ao Dr. Nondas; ele, sentado no banco do piano, disse que não entendia de jói as. A soprano provou um pedaço de pepino adocic ado, comeu outro pedaço e perguntou a Didi como se preparava; Didi apressou-se em oferecer-lhe m ais e perguntar a Gina como se preparava aquil o. Gina deixou de ouvir o maestro e explicou a D idi que precisava deixar o pepino de molho no aç úcar para tomar aquele gosto e fez um gesto co mo que despedindo-o; Didi voltou para perto da s oprano e explicou que o pepino ficava de molho n o açúcar por isso tomava esse gosto delicioso. E ofereceu um cálice de vinho extra bem gelado que ela aceitou; Pascoalina que conversava com o secretario, seguiu Didi com os olhos e piscou, chamando-o. Ele fingiu que não viu e explicou detalhadamente à soprano como eram preparados os pepinos. Fez gestos explicando como se cortava, como se colocava numa vasilha em açúcar dentro, explicou com detalhes e inventou. A soprano tomou notas num livrinho que tirou da bolsa de m içangas; escreveu em cima: Pepinos doces. Nesse instante, avisaram que o jantar estava servido; o maestro inclinou-se para Gina e ofereceu-lhe o braço num gesto elegante. Tomando o braço do m aestro, Gina olhou os outros convidados, pedin do que a seguissem. Entraram na sala de jantar e procuram seus lugares à mesa; havia em cada lu gar um cartão, onde estavam pintados dois pombin hos se beijando entre flores e logo abaixo o n ome do convidado. Sentaram-se e começaram a tro car algumas .palavras sobre o calor, as flores d a mesa, a toalha de renda. Um trovão reboou long e. Todos se olharam, apreensivos; Lolô deu uma risadinha nervosa, tinha medo de trovões. Para disfarçar, Gina perguntou ao alto, voltando-se para a direita: - Maestro, quando volta a Milão ? Com o garfo dourado, o maestro espetou um ped aço de abacaxi, antes de responder: - De hoje a um mês, estaremos em Milão. E engoliu o pedaço de fruta. Houve exclamações na mesa diante da r esposta do maestro; Pascoalina disse que tinha i nveja de quem ia para a Europa. Olhou significat ivamente para Didi que desviou o olhar e obser vou a salada diante dele. Gina lera numa revist a estrangeira que durante o verão a sopa ao jant ar devia ser substituída por uma salada de fruta s bem gelada. E seguindo esse conselho, mandara picar as frutas e salpicar de gelo moído. Zeli nda, ao lado do Dr. Nondas cochichou que estavam começando o jantar pelo fim, apenas haviam esqu ecido o café (nunca deixava passar a ocasião d e criticar Gina, seus atos e suas atitudes). Dis se que o jantar finalizaria com um prato de sopa de aspargos, bem quente. E riu-se com prazer; Dr. Nondas sorriu, depois disse que seria inter essante, que o maestro italiano iria contar na s ua terra que os brasileiros são muito extravagan tes e tomam sopa como sobremesa. Que sucesso. Zelinda riu alto. Pascoalina e Lolô queriam sabe r por que estavam rindo. Diante de Pascoalina, h avia um pratinho de frisos dourados, cheio de azeitonas negras que nadavam num azeite amarelo; com as unhas muito compridas e polidas, ela com eçou a escolher as azeitonas maiores e a mastiga r; depois explicou que todas as vezes que jant ava em casa de Gigina, a criada já sabia e trazi a azeitonas especiais de que ela mais gostava no mundo; vinham de uma aldeia de Portugal. As u nhas de Pascoalina pareciam pequenas chamas irre quietas. A soprano perguntou o nome da aldeia e disse que também gostava de azeitonas, Do outro lado da mesa, Pascoalina disse que a aldeia ch amava-se Nossa Senhora da Hora, o que fez alguns acharem graça; e não ofereceu azeitonas à sopra no. Zelinda disse que ela devia se chamar - a dama das azeitonas; Pascoalina não gostou. A out ra atriz que fazia papéis secundários e era amig a da soprano, estava ao lado de Dr. Nondas; co meçou a falar que era a primeira vez que vinha a o Brasil e tivera surpresas incríveis, nunca pen sara encontrar tanto progresso. Dr. Nondas pergu ntou se ela tivera medo de encontrar cobras pe las ruas e tigres sentados nas esquinas esperand o os estrangeiros. Todos começaram a rir; ela pe rguntou por que os estrangeiros; ele disse, so rrindo: - Novidade. Carne fresca. O maestro pr estou atenção ao que Dr. Nondas havia dito; Dr. Nondas continuou dizendo que geralmente os estra ngeiros fazem essa idéia do Brasil; ele tivera u m amigo que ao desembarcar em Santos, munira-s e de carabina e cartucheira à volta da cintura p ara se defender dos índios ferozes, das cobras, dos tigres traiçoeiros. Todos riram e o maestr o italiano contou que vira cobras sim, mas no In stituto Butantã e que o Brasil ainda era desconh ecido na Itália. A soprano sentiu um arrepio ao lembrar das cobras que vira no Butantã; depois falou sobre a beleza do Rio de Janeiro; entusia smada, parou de comer para contar que havia vist o no Rio, coisas encantadas: praias, montanhas , a cidade com seus prédios belíssimos. A atriz que fazia papéis secundários falou no progresso de S. Paulo, comparou a cidade a uma grande colm éia e os milhares de operários que se dirigiam às fabricas pareciam abelhas. Dr. Nondas disse que a comparação estava muito adequada e a image m era bonita, a atriz sorriu, lisonjeada, e to mou um gole de vinho. Então cada um dos visitan tes deu sua própria impressão sobre, o Brasil e a conversa generalizou-se. Com os camarões, foi servido um vinho branco; num certo momento, to das as conversas cessaram de repente como se tiv essem combinado e só se ouviu a voz da soprano q ue conversava com Didi. Este havia perguntado: - Como é seu nome? Com voz suave, ela respondeu : - Pérola. Olharam para a direção deles como se se interessassem pelo que estavam falando e P ascoalina fitou Didi furiosamente. Um clarão ráp ido apareceu através das venezianas e outro tr ovão reboou no horizonte. As criadas enchiam os copos de vinho e quando acabavam de dar volta à mesa, os copos estavam vazios. Gina fazia sinal para que despejassem mais vinho nos copos; o maestro contava uma longa história para Gina, e Lolô que estava do outro lado da mesa, explicava aos vizinhos como estudara música. Gina ouviu o Dr. Nondas dirigir-se à soprano e chama-la do na Pérola, com cerimônia; os que estavam perto c omeçaram a rir e ela pediu que dissesse - Pérola - simplesmente. Zelinda, animada com o vinho q ue bebera, contava ao secretário do maestro quan to fora infeliz no casamento; depois contou que tinha uma filha única que era uma maravilha, p erguntasse a Gigina; todas as mães são corujas, mas a filha dela era diferente, perguntasse a Gi gina. O secretário queria saber o que era coruja , Dr. Nondas explicou. Ele sacudiu a cabeça diz endo que compreendera perfeitamente. Zelinda con tinuou a falar sobre a filha; chamava-se Graça, mas para os íntimos, era Gracinha. O secretário repetiu com, dificuldade: - Gra-ci-nha. Os b raços gordos de Zelinda descansavam sobre a mesa ; distraída, ela brincava com os talheres (não c omera o primeiro prato por causa do regime para emagrecer) e no decote exagerado do vestido ve rde, percebia-se os seios enormes querendo salta r fora do decote. O secretário ouviu com atenção o que ela contava e alisava os bigodes curtos aloirados; de vez em quando, seus olhos pousava m sobre o decote. Tomava vinho. Sorria. Distrai damente o maestro tirava um lenço perfumado do b olso do smoking e passava-o pela testa, onde as gotinhas de suor tornavam a aparecer. Os braços de Zelinda também brilhavam de suor. Gina deu ordem para que abrissem as janelas completament e; um vento quente correu pela sala toda, mas os clarões eram muitos, seguidos um do outro e tod os encolheram-se como se tivessem medo. As ven ezianas foram fechadas novamente. Zelinda, distr aída e satisfeita por ter encontrado no secretár io um ouvinte atento e delicado, continuava a contar a história do seu casamento e de vez em q uando passava o guardanapo nos braços, para enxu gá-los. O professor de Gina conversava em voz ba ixa com Pascoalina e esta não tirava os olhos de Didi que estava cada vez mais encantado por P érola. Então para se distrair, fumava. Foi serv ido peru e champanhe. O professor chamou a atenç ão do maestro e da soprano de que eles iriam com er um prato bem brasileiro. Todos os olhos fixar am-se na grande travessa que uma das criadas a presentou diante da soprano; perguntas e respost as, cruzavam-se sobre a mesa; queriam saber quai s os outros pratos caracteristicamente brasile iros. De repente a chuva caiu com intensidade e ruído; ouviram-se as gotas grossas baterem contr a as venezianas e caírem no jardim. Foi um alívi o; começaram a falar todos ao mesmo tempo: -. Agora sim, vai refrescar... - Quer saber outro prato brasileiro? Tutu de feijão! - O que é is so? - Que engraçado! Ela está perguntando o que é isso? - O peru com farofa é muito gostoso... - Como se diz? Fa-ro-fa! - E minha filha Grac inha ficou comigo. - Que quer que eu diga? Ca-r o no-me che il mio cór festi primo ramentar. - Bonito! O que quer dizer? - "Caro nome" do Rigo leto. Depois tem outro pedaço: II foi lultimo su spira... Caro nome tuo sara... - Todos os estra ngeiros têm uma idéia errada; depois que vêm aqu i - E se fôssemos a Milão? Era o maestro que f azia a pergunta a Gina. Ela ficou com o garfo no ar e olhou, perplexa, para o maestro. Perguntou : - Milano? - Sim. Milano. Pois não disse que quer estudar canto? Venha comigo. Sem responder , Gina começou a mastigar sem saber o que estava comendo. De repente, olhou o maestro e disse be m alto: - Vamos, maestro. Então ele levantou a taça de champanhe e pediu silêncio; fez um brin de a Gina dizendo que ao lado dele estava uma gr ande artista; iria estudar em Milão sob sua dire ção e quem sabe não iria encantar o mundo com sua voz maravilhosa? O professor já havia dito o tesouro que havia naquela garganta. Todos grita ram ao mesmo tempo saudando Gina; ela agradece u e fez um brinde ao maestro chamando-o "mio car o maestro". As taças batiam umas contra as outra s num tinir de cristais; todos sentiam-se entusi asmados, alegres, leves como o ar fresco que e ntrava pelas janelas abertas. Aspiravam o ar com volúpia. A chuva caía copiosamente e a atmosfer a tornou-se respirável, como que aliviada. A soprano saudou Didi em italiano; Pascoalina bate u sua taça na do professor de Gina e fez um muxo xo para Didi que, nesse instante saudava Lolô. D r. Nondas desejou muitas felicidades à atriz q ue fazia papéis secundários; esta levantou a taç a e bateu de leve na do Dr. Nondas agradecendo e dizendo: Viva o Brasil! O secretário disse em voz alta dirigindo-se a Zelinda; - À felicidad e de Gra-ci-nha! Zelinda bateu na taça do secre tário e tentou sorrir agradecendo, mas todos vir am lágrimas no rosto de Zelinda. Ela levou o gua rdanapo aos olhos e enxugou-os rapidamente; o secretário passou-lhe o lenço, num gesto discret o. Gina percebeu que ela estava embriagada, só c horava quando se excedia na bebida; tornava-se e ntão sentimental, boa, encantadora, delicada. Viu-a pedindo mais champanhe à criada que passav a. Levantou os ombros num gesto displicente: "Qu e importa? Só importa agora minha ida à Itália ! Estudar canto em Milão! Foi sempre meu sonho d ourado. Nunca contei a ninguém porque não valia a pena, mas acaricio essa idéia há tantos anos.. .” Sorrindo para si mesma, num enlevo, levantou a taça à altura dos olhos e fez um brinde à cid ade de Milão, depois bebeu toda a champanhe e jo gou a taça com força no chão pensando: "À moda russa." O tapete impediu que a taça se quebrass e; todos riram. Ela ficou de pé rapidamente, peg ou-a do chão, correu à janela e atirou-a no ja rdim; ouviram o ruído de vidros quebrados contra o cimento, juntamente com o ruído da chuva. Vol tou ao seu lugar e pediu outra taça à criada; to dos falavam com entusiasmo. Gina olhou à volta da mesa e pensou consigo: "Estarei bêbada també m? Sim. Estou bêbada com a idéia de estudar cant o em Milão. Oh! Milão!” Voltaram ao salão. A ch uva ainda caía impetuosamente e o céu estava car regado, mas o ar estava fresco e agradável. As p ortas de vidro que davam para o terraço foram abertas e um vento de chuva e de umidade, cheira ndo a terra molhada, invadiu a casa toda. Fizera m grupos no salão e as conversas continuavam ani madas. Uma das criadas entrou logo depois traz endo uma grande bandeja com taças, a outra troux e dois baldes de metal contendo gelo picado; via -se apenas os gargalos que sobressaíam na bran cura do gelo. Continuaram a beber. O maestro it aliano dirigiu-se ao piano e tocou durante algum tempo; uns escutavam com atenção, outros conver savam em voz baixa. Depois ele pediu à soprano que cantasse a ária da Tosca; inclinada sobre o braço de Didi, Pérola disse que cantaria mais t arde, quando diminuísse o ruído da chuva. Contin uou a conversar com Didi como se estivesse con tando um segredo, confidencialmente. Pascoalina olhava furiosa, mas Didi fingia não perceber; ri a-se ao ouvir a história de Pérola e fazia-lhe perguntas. Pascoalina então aproximou-se do sec retário e com um ar gaiato, fez-lhe perguntas; d epois ficou ouvindo o que o secretário contava a Zelinda e riu-se dando grandes gargalhadas co mo se estivesse se divertindo muito, mas percebi a-se que sua risada soava falsamente, era só par a provocar Didi. A atriz que fazia papéis secun dários não se afastava do Dr. Nondas e de Paul; depois pediu com voz suplicante ao Dr. Nondas qu e declamasse uns versos brasileiros, ela estav a tão sentimental essa noite; tão saudosa de qua lquer coisa que não sabia explicar, talvez da su a infância longínqua numa cidadezinha italiana, talvez dos pais. E seus olhos umedeceram-se. D r. Nondas levou-a para um canto afastado do salã o, sentaram-se ao lado do outro; Paul ficou de p é a uma certa distância. Dr. Nondas começou a declamar uns versos de Bilac, bem devagar, para ela entender; logo mais houve um silêncio súbito no salão e os que estavam próximos, ouviram a v oz grave de Dr. Nondas recitando: "E paramos d e súbito na estrada da vida... Longos anos, pres a à minha a tua mão...” Hesitou quando viu que olhavam para ele; Gina pediu: - Continue, poeta ... Ele recitou calmamente até o fim; houve apl ausos e os que não tinham ouvido o princípio, pe diram que repetisse. A atriz, a cabeça inclinada para o lado dele, suspirava de emoção; tinha os olhos úmidos como se chorasse. Sua mão pequen a e magra, levava a todo o momento a taça aos lá bios; percebia-se que estava comovida. Dr. Nonda s repetiu os versos, depois o maestro italiano pediu música e a soprano cantou um trecho do Ba rbeiro de Sevilha, acompanhada pelo professor de Gina. Pediram então a Gina que cantasse também ; ela hesitou, ainda não sentia-se firme, sua vo z estava ainda em estudos, depois resolveu canta r "Ideale" de Tosti. Quando terminou, todos elo giaram-na e o maestro italiano olhando-a com olh os ternos, juntou os cinco dedos da mão direita e fez um gesto para exprimir o que sentira: - B ela você! Rica você! Gina sentou-se um pouco ex citada; começou a abanar-se com uma das músicas; sentia-se feliz e percebeu que cantara muito be m, com muito sentimento. Seus olhos sorriam de encantamento. Zelinda foi com o secretário sen tar-se num recanto do terraço; puxaram uma mesin ha para perto deles; colocaram os cigarros e as taças sobre a mesinha e ficaram assim durante muito tempo olhando a chuva que caía mansamente, o jardim encharcado de água e uma ou outra mari posa que vinha esvoaçar contra a lâmpada do terr aço. Não falavam quase; a fumaça dos seus ciga rros perdiam-se no ar; ouviam o que se passava n o salão, mas como se tudo estivesse muito longe, muito remoto. De repente, a cabeça de Zelinda caiu sobre o ombro do secretário e ele inclinou -se também para o lado dela; ficaram assim muito tempo e os cigarros queimaram-se sozinhos entre os dedos esquecidos. Ouviram a soprano cantar "Una você poço fa" acompanhada pelo maestro. Ze linda pensou com os olhos fechados: "A diaba da mulher canta bem. Será que o maestro vai levar mesmo Gina para Europa? Que sorte! Gigina sempr e teve sorte, sempre. Bonita, inteligente, tem t udo. E eu? Nunca tive nada, quase nada. Este h omem decerto pensa que estou gostando dele. Qual ! Minha cabeça é que está cansada, talvez eu est eja um pouco tonta. Só um pouquinho. Está tão bo m aqui! Se Gina for para Milão, vou com ela. V ou sim. Deixo Gracinha com mamãe e vou. Desaforo . Só eu nunca tive um convite assim... O que ser á que vão cantar agora? O secretário está gost ando da minha companhia, nem se mexe. Nem sei o nome dele, creio que vou perguntar. Não. Depois. .. Agora está bom assim, sem a gente falar nada. Nada.” Pascoalina chegou-se a uma das portas d o terraço, olhou-os e voltou ao salão, piscando para Gina. Dr. Nondas sussurrava para a atriz qu e fazia papéis secundários; Pascoalina foi sen tar-se ao lado de Paul e começou a falar mal de Didi: - É sempre assim. Veja um pouco. Qualquer mulher o atrai; fica logo apaixonado. Me diga u ma coisa, o que tem essa soprano melhor do que e u? A voz? Mas ele nunca se importou com canto, Paul, nunca deu importância a essas coisas! É u m embusteiro. O que eu tenho sofrido! Veja a car a dele agora... Não tira os olhos da mulher, e ssa Pérola de uma figa! Isso é pérola secundária , não é fina. É pérola vagabunda sem valor, é fa lsa. Não é nem cultivada... Paul sorriu e amass ou o cigarro contra o cinzeiro. Ela continuou: - Eu já estou acostumada, sabe? Didi sempre foi assim. Sempre! Nunca me iludi com esse homem, q ualquer mulher o atrai e fico logo babando... Go sta de novidade sabe? Amanhã se aparecer outra p or aqui, ele vai atrás da outra. Doença, sabe? Desgraçado! Levou a piteira aos lábios e tirou uma grande fumaça. Olhou à volta um olhar cansad o, aborrecido. Eram quatro horas da manhã quand o deixaram a casa de Gina. A chuva havia cessado de cair, o ar estava leve e todos respiravam co m satisfação. Despediram-se. Pascoalina foi di scutindo com Didi; entraram no automóvel de mau humor, trocando frases duras; Pascoalina ameaçou -o de deixá-lo. Didi não respondeu. Só Zelinda ficou. Estava tão embriagada que não pôde levant ar-se ficou no sofá do hall, recostada; sua cabe ça estava mergulhada numa almofada de seda que a lguém bondosamente lhe colocara sob a cabeça. Quando Gina voltou, depois de ter acompanhado o s convidados, chamou uma das criadas e levaram Z elinda lá para cima; ela resmungava querendo rea gir; despiram-na e deitaram-na num divã. Cansa da, Gina foi para o quarto. Tinha a cabeça um po uco confusa, tudo se misturava em seus pensament os; antes de deitar-se, banhou o rosto com águ a fria, passou água de Colônia na nuca, na testa , deitou-se. Tentou dormir, mas não conseguiu. S eu pensamento voava para Milão. Iria enfim reali zar seu sonho. Quem não tem um sonho na vida? Estudar música. Cantar. Milão. Às duas da tarde do dia seguinte, quando Gina acordou e pediu ca fé, a criada contou que Zelinda acordara ao meio -dia com muita dor de cabeça; tomara um copo d’á gua e fora embora. O primeiro pensamento de Gi na foi para a viagem; estava resolvida a ir para a Itália com o maestro. Pensou em visitar a mãe nessa tarde mesmo e contar-lhe a resolução. Quando entrou em casa de dona Julica, uma hora d epois, percebeu o ambiente carregado; com certez a Zelinda já falara sobre a viagem. Dona Julica recebeu-a censurando com amargura, quando esta va zangada, tratava as filhas por "tu". - Então vais nos deixar, Gigina? Não acreditei no que Z elinda me contou. Olhou de lado para Gina, os o lhos semicerrados, como a perscrutá-la; Gina sen tou-se numa cadeira e olhou a mãe. Dona Julica c ontinuou: - Tu pretendes mesmo ir? Hein? Será p ossível? Gina escolheu um cigarro de uma caixa que estava sobre a mesa: - Por que não, mamãe? Eu não disse sempre à senhora que queria estudar música? Então vou deixar fugir esta oportunidad e? Levou o cigarro aos lábios e acendeu-o. Houv e um silêncio e Gina pressentiu a cólera que se acumulava sobre ela; de repente Dona Julica leva ntou-se e foi fechar uma janela, parecia quere r dar vazão à sua impaciência. Voltou-se com a b oca cerrada, os olhos coléricos: - E nós, Gigin a? E nós? Como vamos viver? Bem sabes que depend emos de ti. Tudo o que temos, tudo o que comemos , estas roupas que vestimos, vêm de ti. Como ire mos viver? Já pensaste nisso, criatura? Sento u-se outra vez, fungando. Como Gina continuasse em silêncio, tornou a falar: - Esse maestro est á brincando contigo. Como vais viver lá? Ele vai te sustentar? Ele vai pagar teu luxo? Não sejas boba. Calmamente Gina tirou o cigarro da boca: - Mamãe, eu seria incapaz de abandonar a senho ra, Zelinda, Gracinha. Deixo todas muito bem. Se eu for, mamãe, quem sabe, não irei; quem sabe o maestro me falou num momento de entusiasmo, c om a taça de champanhe nas mãos; não se preocupe pelo lado pecuniário, a senhora ficará amparada . Pensa que só gastei nesses anos todos? Guard ei também alguma coisa. Depois tenho boas jóias, tenho o automóvel, tudo isso é dinheiro... - D inheiro? Mas não sabes que quando se quer vender alguma coisa, ninguém dá o que vale? Não. Não p osso acreditar que nos abandones, principalmente a mim, tua mãe. Que idéia ir estudar canto tã o longe, quando poderias estudar aqui mesmo. Poi s não tens tão bom professor? Fez uma pausa e co ntinuou: - E o que pretendes com esses estudos? Vamos dizer que aprendas canto. Muito bem. E en tão? Que pretendes fazer? Ir para o teatro? - P retendo cantar no teatro. - Então estás louca. Pensas que o teatro dá muito dinheiro? Hein? És a primeira mulher de S. Paulo, és a mais bonita, a mais rica, a mais querida, como queres deixar tudo isso para ires com esse maestro italiano para um país desconhecido? Perdeste o juízo? - Mas, mamãe, eu não disse sempre à senhora que m eu sonho dourado era estudar música? Toda a gent e tem um sonho dourado, o meu era esse. Agora ap arece essa chance', como eu vou deixá-la? Impo ssível. - Mas estás estudando música... Sempre estudaste. Já vens com essa história de sonhos d ourados. Pareces uma idiota. Zelinda entrou nes se instante; Gina percebeu que ela havia escutad o atrás da porta, como era seu costume. Sem fala r com ninguém, escolheu um cigarro da caixinha, acendeu-o e sentou-se com displicência dando u m suspiro. Gina olhou a irmã e a mãe; dona Julic a tinha o rosto contraído e as rugas cobriam-lhe a testa. Perguntou levantando a cabeça: - Ao menos me diga uma coisa. Esse maestro é rico? - Dizem que é muito rico. A fisionomia de dona Julica serenou levemente; sorriu para Gina, um s orriso malicioso, como quem vai dizer uma brinca deira, mas uma brincadeira que pode se tornar uma doce realidade. - Então dizes a ele que não podes deixar tua mãe e tua irmã, pois sempre vi veste com elas, e leva-nos contigo. Gina compre endeu o que ela pretendia. Olhou-a perplexa: - Mas, mamãe, não posso dizer isso. Como vou dizer uma coisa dessas? Ele pensará que estou louca. Levar a família inteira? O rosto de dona Julica transformou-se outra vez; sua voz estava embarg ada pela cólera; retrucou: - Então achas que tu a velha mãe, tua irmã, tua sobrinha que é uma me nina inocente e não dá trabalho algum, é uma fam ília inteira? Hein? E assim que pagas os sacrifí cios que fiz por ti? Todos aqueles anos de tra balho e luta, de misérias mesmo, agüentando o ve lho que era teu pai, os trabalhos que tive para criar-te e educar-te, não significam nada? Nad a para ti? Às vezes que me humilhei no trabalho pesado, eu que nunca trabalhei quando era soltei ra e nem quando fui casada com o pai de Zelinda, tudo isso não foi nada? É assim que me pagas? Sua tez estava transtornada; sacudiu o dedo in dicador na direção de Gina: - Fique sabendo que só fiz serviço pesado quando fui casada com teu pai... Antes não... Minhas mãos eram como seda. Corno seda. Olhou as mãos como para provar que estava dizendo a verdade, depois continuou com voz fina como se imitasse alguma outra pessoa: - O professor Pasquale! O escultor Pasquale! Pro fessor do Liceu! Bonita vida ele me deu, o profe ssor Pasquale! Morei em porões sujos onde o ven to e a chuva entravam por um buraco da parede qu e chamavam de janela, comi mal, quase não tinha o que vestir e tudo isso eu agüentei por ti, p or ti! Olhou Gina com uma expressão encolerizad a e ao mesmo tempo suplicante e continuou a fala r: - Durante semanas inteiras, passei comendo p ão com cebola; só aos domingos comia salame, sal ame ordinário, de segunda; agüentei essa vida de misérias com o Pasquale só por ti, para não f azer escândalo, porque se me separasse dele, min ha família ficaria escandalizada, pois é uma boa família, e uma das melhores de Campinas. Nunca dei esse desgosto à minha mãe, nunca. Enquanto ela viveu, nunca lhe dei desgosto algum. Agora tu, tu... queres me deixar... deixar tua velha m ãe na miséria para seguir a carreira da arte.. Arte! Queres por acaso morrer de fome? És feit a da mesma massa que teu pai. Tens nas veias o m esmo sangue. Miséria! Tudo pela arte! Tudo pela arte! Abandonar tua vida de riquezas pela arte ! És uma idiota! Levantou-se colérica e foi fec har uma das portas; depois resolveu abri-la outr a vez e gritou para a criada que trouxesse um po uco de água, estava com sede. Arrependeu-se de ter pedido água e chamou outra vez a criada, di zendo que trouxesse o refresco que estava na gel adeira. A tarde estava quente. Abriu a veneziana que dava para o quintal e falou com a neta, G racinha, que brincava no gramado com uma criança da vizinha. Zelinda dirigiu-se a Gina com a voz repassada de inveja: - Está resolvida a ir emb ora com o maestro? - Estou. - E se ele te aban dona e te deixa sozinha lá? - Venho embora. - E dinheiro para vir embora? - Eu não me aperto. Sempre que eu quis tive dinheiro. Sempre que eu quis não é verdade? Desde aquele dia que eu dis se a você que podia comprar o casaquinho, que eu pagaria, lembra-se? Nunca faltei, até hoje. Zelinda não respondeu. Dona Julica voltou-se da janela; parecia mais calma. Falou com expressão calma: - Então tens algum dinheiro guardado, he in? Pois leva-nos com esse dinheiro... Não é, Ze linda? - Mas, mamãe, vou reservar esse dinheiro para voltar se eu não for feliz por lá, não pos so levá-las. As despesas serão enormes. Impossív el. Fez uma pausa e tirou outro cigarro: - Esc ute, mamãe. Escute, Zelinda. Não pensem que vou abandoná-las. Deixo tudo bem organizado com meu advogado e receberão dinheiro todos os meses com o se eu estivesse aqui. Compreendem? Se eu pud esse, levaria todas, seria tão bom... Mas não po sso. E prometo: se eu for feliz lá, mandarei bus cá-las. Ah! Não me esquecerei de mandar buscá- las se tudo correr bem... Enquanto que aqui, tud o continuará na mesma. Por que não posso então f azer o que eu quero? Tentar a carreira? Com o au xilio do maestro, estudarei e me dedicarei; se no fim de algum tempo não conseguir nada, volta rei e acabou-se, não pensarei mais nisso. Se tu do correr bem, mandarei buscá-las. Quem sabe daq ui a dois anos não está aqui uma grande cantora? Por que não? Imaginem eu cantando no Municipal de S. Paulo e do Rio: - Caro nome che il mio c ór... Festi primo ramentar.. Gina cantarolou ol hando para as duas: - Então? Ficarão orgulhosas de mim, tenho a certeza... E o dinheiro que vo u ganhar? Mais calma, dona Julica olhou-a; teve uma idéia e perguntou: - E se resolves ficar m ais tempo lá, mais tempo do que pretendes ficar e teu dinheiro se acaba aqui? Como viveremos? G ina teve vontade de rir a essa idéia; respondeu, resoluta; - Quando eu prometo, cumpro. Nunca d eixei de cumprir minha palavra. Pode ficar tranq üila que não faltará nada. Sei cumprir o que pro meto. Houve um rápido silêncio. Dona Julica sus pirou e perguntou: - Então preferes ser artista ? - Ora, mamãe então pensa que vou levar a vida inteira esta vida que estou vivendo? Tudo tem u m fim... VIII Em Milão, Gina ficou conhece ndo artistas, músicos, maestros e autores. O mae stro Campobasso que a levara para lá, instalou-a num bonito apartamento: Piazzale Caiasso; e o apartamento de Gina tornou-se o centro de todos os artistas e intelectuais de Milão em princípi os de 1912. Começou a receber lições de canto c om o professor Natale e uma vez por semana ia ao Conservatório Musicale na Via dela Passione ouv ir música fina e bons cantores. Sua paixão pel a música desenvolveu-se então em toda sua plenit ude. Tornou-se amiga de Bianchina que não tinha família em Milão; também estudava canto com Nata le e residia num pequeno apartamento nas proxi midades da praça dei Duomo. Saíam juntas muitas vezes a caminho do Conservatório; Bianchina tin ha voz de contralto e Gina de soprano ligeiro. No princípio desse ano, em Fevereiro, logo depoi s de inaugurada a estação teatral no Scala, havi a grande movimento na cidade; parece que os ital ianos das outras cidades e os forasteiros de t odas as partes do mundo estavam visitando Milão. Os hotéis, os restaurantes, as ruas tinham movi mento desusado. Gina recebia visitas todas as tardes, depois das lições; tornou-se logo conhec ida pela sua beleza e pelo seu talento. Já falav a regularmente o italiano - aprendera com Bianch ina desde que chegara. Sua beleza apenas desab rochada, pois contava nessa época dezoito anos, enternecia. As tardes, eram dedicadas aos admira dores que iam visitá-la e levavam-lhe flores e contavam as ultimas novidades da temporada. Os artistas que cantavam no Scala nesse ano, também compareciam às reuniões de Gina. As conversas e ram variadas e animadas. O maestro Campobasso, riquíssimo e sem família, pois era viúvo e tinh a duas filhas casadas que residiam em Roma, freq üentava diariamente o apartamento e orgulhava- se de Gina. Chamava-a "mia figlia dileta"; levav a-a ao teatro todas as noites numa frisa especia l, onde Gina ficava sempre acompanhada por dois ou três admiradores e de onde assistia ao espe táculo magnífico; a orquestra, era dirigida pelo próprio Campobasso. Quando ele agradecia as pal mas entusiásticas, disfarçadamente olhava para a frisa de Gina e sorria-lhe, mas ela pensava: "Quem sabe um dia cantarei neste palco.” Todos os olhares convergiam para ela, principalmente q uando se levantava nos intervalos e ficava de pé no fundo da frisa ou saía para os corredores; a dmiravam sua elegância, seus vestidos, suas jó ias. Diziam uns para os outros, entre duas fumaç as: "A última amiga de Campobasso, uma brasileir a.” Quando distraidamente, sua mão delicada e b ranca apoiava-se sobre o veludo vermelho da fris a, os que estavam nas proximidades olhavam curio sos para a mão bem feita e os ricos anéis. Em pouco tempo, tornou-se a mulher da moda, a mais bela mulher de Milão. Depois da temporada teatra l, continuou as lições de canto e a receber vi sitas todas as tardes. Bianchina admirava-a mais que qualquer outra pessoa; era uma amiga dedica da e bondosa. Muitas vezes, às noites, quando nã o havia visitas, ficavam as duas sentadas dian te da lareira, conversando sobre fatos passados e remotos, sobre as famílias distantes. Bianchin a contava que pertencia a uma família pobre de Magliano; família de camponeses. Contava com ge stos bruscos e voz alta; o pai chamava-se Pietro , era bom homem, mas não trabalhava, vivia beben do. A mãe trabalhava dia e noite para sustenta r os cinco filhos; ela era a mais velha. Já tinh a vinte e seis anos. E Bianchina sorria ao lembr ar da família distante e estendia as mãos para a lareira, a fim de aquecê-las; ouvia-se o crep itar do fogo e a voz áspera de Bianchina. Contav a que a mãe lavava roupa para fora e quem cozinh ava para a família, era ela, desde os nove ano s. Bianchina batia no peito: "Eu, Bianchina." Tr abalhava na cozinha ou no tanque. Possuíam um pe daço de terra, uma casinha uma vaca e uma cabr a. Vendiam tudo o que podiam: leite, verduras, o vos. É verdade, possuíam também meia dúzia de ga linhas. Comiam o que a terra produzia e todas as noites o pai e a mãe brigavam porque o pai vi nha embriagado para casa. Mas Bianchina tinha um a mania: cantava. Podia chover ou haver sol, pod ia estar trabalhando na cozinha, na horta, no tanque, podia ouvir o pai discutir com a mãe, ou as crianças chorarem, Bianchina cantava. Então toda a aldeia começou a dizer que Bianchina ia s er cantora, cantora de ópera; e um tio que tin ha posses e gostava muito de música... (neste po nto Bianchina baixava a voz e punha a mão no can to da boca para ninguém ouvir) diziam até que o tio tinha uma amiga cantora, o que dava muito desgosto à tia, esse tio enfim pagava-lhe as des pesas. Quando ela deixou a aldeia, toda a gente foi acompanhá-la à estação; levaram-lhe flores , coelhos, galinhas de presente. Orgulhavam-se d e Bianchina ter nascido em Magliano e esperavam que um dia ela cantasse no Scala; nesse dia, q ue seria grandioso, a aldeia compareceria em pes o para festejá-la. Há dois anos e meio ela estud ava em Milão e só uma vez fora visitar a família , numas férias de verão. Contou que encontrara o pai embriagado e a mãe lavando roupa; os dois irmãos mais velhos estavam empregados, outro me nor guardava o rebanho do Signore Giacinto na beira do rio. Os mais velhos auxiliavam a mãe; e la ficara tão contente em ver a filha que até ch orara, depois oferecera-lhe chá com mel. Havia ali uma criação de abelhas e como o açúcar esta va difícil, adoçavam tudo com mel. E Bianchina p assara uns dias na aldeia e fora muito visitada; todos queriam saber de seus estudos. Mas ela não pretendia voltar a casa dos pais; achara tud o tão pobre e a aldeia tão atrasada que não volt ara mais. Tinha pena da mãe e esforçava-se par a mandar-lhe todos os anos pela Páscoa e pelo Na tal, presentes para ela e os irmãos, mas não vol taria. O dinheiro que o tio rico mandava não era grande coisa, mas tinha um amigo, o Nunzio, q ue a auxiliava e com quem se divertia nas noites de sábado. Nunzio residia em Milão e era de fam ília distinta, tinha, sorte de ter encontrado esse amigo. Gina ouvia confirmando com a cabeça tudo o que Bianchina contava. Passou o inverno e chegou o verão. Nessas férias, o maestro Campo basso levou Gina para uma excursão à Suíça. Na v olta, reiniciou novamente os estudos. De vez em quando, recebia cartas da mãe e da irmã; em to das elas, lia-se palavras de censura pela demora tão prolongada. "Como é que Gigina tinha coraçã o para se divertir tanto assim, quando elas, a s pobres não tinham nada e viviam tão mal? Não p odiam compreender como Gigina mudara tanto, pois não haviam sido sempre tão amigas? Ou quem sa be ia mandar buscá-las? Gigina não tinha saudade s? Nem da sobrinha, a Gracinha, que já estava co m três anos e era um encanto? Nem ao menos, pode ria dizer quando voltaria? Elas achavam tanta falta em Gigina!” Gina rasgava a carta em pedac inhos bem miúdos e com um leve sorriso, atirava os papeizinhos através da janela do seu apartame nto num gesto infantil; gostava de fazer isso em dias de vento; via os pedacinhos de papel fic arem pairando no ar, depois seguia-os com o olha r divertido: alguns pousavam sobre os telhados m ais baixos, outros desapareciam como por encan to e outros ainda se confundiam com os pombos qu e voavam baixo, levando nas asas cintilações de azul e prata. Mais de um ano se passou. Chegou novamente o inverno e depois outra primavera. Gi na continuava a estudar com o professor Natale e este sempre se entusiasmava pela aluna, mas o maestro Campobasso já não se interessava tanto pela "figlia dileta." Viajava durante meses inte iros; dizia que ia a Viena, Roma, outras vezes a Paris. Gina soube então por Bianchina que ele sempre fora assim, gostava apenas da novidade e seu entusiasmo era ardente como um vulcão; depo is arrefecia. Essa paixão pela novidade não du rava mais que um ano, mas com Gina já durava um ano e meio e ele não a abandonara ainda. Gina ri u-se quando soube mas no íntimo, sentiu certa in quietude; não sabia quando terminaria seus est udos e receava o futuro. Todos os artistas que passavam por Milão, visitavam-na; seu apartament o era sempre alegre e o ponto de reunião do mund o musical da cidade. Ela às vezes saía com Bia nchina; a beleza de Gina sempre atraía a atenção , fosse onde fosse. Tinha também outras amigas; visitava muitas vezes Carmela e Cristina Spina q ue possuíam um atelier de costura na via Dante . Muitas vezes, Nunzio, o amigo de Bianchina, c onvidava-a para dançar no Sempiocino. O ambient e era agradável, sombrio, quase silencioso; só a música suave e o ruído das conversas perturbava m o silêncio da sala. As luzes eram veladas. Hav ia um piano ao lado e um violino que tocavam p ara dançar; poucas mesas e muita animação. Depo is das horas ininterruptas de estudo de canto, G ina sentia-se bem no ambiente um pouco sombrio. Sempre havia amigos de Nunzio; ele então aprese ntava-a, sentavam-se na mesa ao lado dela e conv ersavam. Conheciam toda a cidade e cada pessoa q ue aparecia na porta de entrada tinha sua hist ória comentada; às vezes, esmiuçada, analisada. Comiam grandes bifes com cebolas, saladas de tom ates, bebiam cerveja. Nunzio perguntava mastig ando: - Quem não tem uma história? Bianchina ri a-se: - Eu! - Tens também tua pequena história . - Virgem Mãe! Só porque vim de uma aldeia, es tudo canto em Milão com Natale, tenho um amigo c hamado Nunzio que me traz ao Sempiocino para com er bifes com cebolas... Achas que isso é uma h istória? Ele tomava um gole de cerveja: - É um a história. Não é Gigina? Gina confirmava distr aída: - Sim, é uma pequena história. Historiazi nha, como se .diz em minha terra. Um conto para crianças. - Como se diz? Historiazinha? Que gra ça! Nunzio continuava: - Todas as vidas são hi stórias. A tua, Bianchina, é também interessante . Vieste de Magliano, mas enquanto moravas lá, q uanta coisa não te sucedeu? Passaste miséria, comeste couves com toucinho durante semanas inte iras, viste teu pai e tua mãe em conflitos treme ndos por causa da bebida, e apesar de tudo isso cantaste... cantaste como se o mundo fosse bel o e teus pais fossem uns santos e tivesses aspar gos para comer em vez de couves. Cantaste apesar de tudo! Então nasceu em ti a idéia de cantar para o mundo, de fazer tua bela voz ser ouvida p ara alegrar tanta tristeza, para enfeitar a feal dade da vida. Deixar a aldeia, onde tudo era e streito e onde de manhã bem cedo toda a gente sa be quem dormiu bem e quem não dormiu, sabe quem tem dor de cabeça e quem bebeu uma pinga. Não! T eu espírito criou asas e abandonaste tua terra para cantar para o mundo. Eis a tua historieta! Cantar! Cantar! Que belo! Bianchina começou a r ir: - Cantarei algum dia para o mundo? - Sim. Naturalmente. Voltou-se para Gina: - Conta Gigi na. Conta tua história. Deve ser linda! - É ver dade, nunca contaste tua vida. Conta! Gina falo u sobre o pai que havia sido escultor, era do su l da Itália, contou como havia vivido em S. Paul o, como começara a cantar, como fora trazida a M ilão por Campobasso. Terminou: - Minha histór ia é curta, não há nada para enfeitar. - E quer es ser cantora? - Sim. Uma vez uma cigana leu m inha sorte em S. Paulo. Disse que minha vida ia sempre subir, subir... Como hei de subir a não s er pela arte? Deve ser o canto que me levará a os palcos do mundo... Parou um pouco, os olhos fixos na porta de entrada: - Olha, aquela mulhe r deve ter uma história. Vejam que tipo! Os olh ares cravaram-se na porta; uma mulher, alta e mo rena acabava de entrar. Estava bem vestida e era elegante. Toda a toalete era preta, e tinha à v olta do pescoço um colar de pérolas. Nunzio so rriu: - Como? Não conheces a Maria da Esperança ? Bianchina admirou-se: - Não conheces Maria d a Esperança? Chamava-se Maria Manzoni, hoje é Ma ria Esperança. Nunzio lembrou-se: - Agora sei, ela esteve fora de Milão. Ouvi dizer que foi vi sitar os filhos, por isso Gigina não a viu ainda . - E tem história? - Uma bela e triste histór ia de amor! - Logo vi! Adivinhei. Conta! - Esp ere. Quem vai contar é o Túlio que vem entrando e a conhece muito bem. E Nunzio levantou-se par a chamar o amigo que parara perto de uma mesa. T úlio aproximou-se, cumprimentou Gina e Bianchina . Nunzio ofereceu-lhe bebida e pediu a história de Maria Esperança. Túlio sorriu: - Querem qu e conte a história dela? Mas é uma história tão conhecida... tão vulgar... - Bianchina protesto u; - Como? Achas vulgar uma mulher esperar um h omem durante três anos? Fielmente? Em que século estás? Esqueceste por acaso? Gina animou-se: - Conta, Túlio. - Há quatro anos ela apareceu e m Milão com ele; viveram juntos aqui durante sei s meses. Depois ele foi embora e ela ficou esper ando. É só. Por isso mudaram o nome dela para Maria Esperança. Espera sempre. Nunzio começou a falar: - Não é assim tão simples, Gigina. Ela abandonou o marido e os filhos por causa dele.. . - Ele quem afinal? perguntou Gina. - O amant e. - Sim. O amante. Apareceram aqui apaixonados loucamente um pelo outro. Seis meses, oito mese s assim, depois ele foi viajar dizendo a ela que esperasse e nunca mais voltou. - E ela esper a até hoje? - Fielmente. Nunca aceita os galant eios de homem algum. Bianchina riu: - É uma her oína! Gina ficou interessada: - Mas não é possí vel. Não teve mais noticias dele? - Nada. Indag ou durante um ano inteiro por todos os meios pos síveis, ninguém soube informar. Uns dizem que el e morreu, ninguém sabe. Outros dizem que ele vol tou para a esposa. Era casado. Dizem que ela p rocurou ver os filhos mais de uma vez, mas eles negam-se a falar com a mãe, não querem saber mai s dela. - Coitada! É um drama! - E Túlio disse que era vulgar! Olharam para a mesa de Maria d a Esperança; com um chapéu preto caindo sobre os olhos, mal lhe viram o rosto meio oculto na som bra. Fumava uma longa piteira dourada e tinha uma atitude sonhadora. Um dos companheiros da me sa convidou-a para dançar; ela levantou-se vagar osamente, largou a piteira sobre o cinzeiro e fo i dançar a valsa que o violino parecia gemer a companhado pelo piano. Varias cabeças voltaram-s e para acompanhar com os olhos o corpo esguio e elegante de Maria Esperança. Gina suspirou: - Coitada! E como ela vive? Tem dinheiro? - Trab alha num escritório importante. É muito instruíd a, não quer deixar Milão porque ele disse que o esperasse aqui. Bianchina perguntou, excitada: - Não é formidável, Gigina? Nesse momento entr ou na sala o pintor Henderson e a companheira; e ra um inglês alto e magro, as mãos nos bolsos, u m cachimbo entre os lábios. A moça era pequena e graciosa, tinha um ar infantil como se surpre endesse de tudo que via. Ria sempre e mostrava s eus dentinhos brancos que Túlio chamava de dente s de rato; ela achava graça. Sentaram-se à mes a de Nunzio; Henderson pediu logo whisky com sod a e bastante gelo; Túlio convidou Gina para danç ar. Havia muitos pares dançando nessa ocasião. Nunzio perguntou distraidamente: - Então viste a exposição? Os quadros de Fava? - Vi e gostei . E tu? - Não. Henderson tirou o cachimbo da b oca e fixou Nunzio; tinha um olhar claro e límpi do, como o de uma criança; em toda sua fisionomi a, uma vontade inflexível que destoava do olha r límpido; um poder de persuasão como se procura sse por todos os meios convencer o interlocutor. Falou com firmeza: - Pois acho-o ótimo. Um dos melhores da Itália contemporânea. Viste a expos ição, não? Viste o quadro em que ele pintou uma parte de Nápoles? Pois bem. Reparaste de que f orma ele explica que a cidade está situada numa elevação? Viste por acaso a linha do horizonte m arcada como fazem os outros? Hein? Nunzio sacud iu a cabeça negativamente. Henderson animou-se: - Pois aí é que está o grande pintor, meu caro. Nos detalhes, apenas nos detalhes. Espera, se e u fosse fazer aquele quadro, que faria? Colocari a a linha demarcatória do horizonte para o lei go perceber que a cidade se eleva para a colina. Ele não pôs nada, absolutamente nada, e todo o mundo pode ver que a cidade está inclinada. Po r quê? - Não gosto das cores, são muito vivas. - Como? É uma das mais belas coisas naquele qua dro. Escuta, Nunzio... Gina e Túlio sentaram-se à mesa novamente. Henderson levou o cachimbo à b oca e esperou. Bianchina curvou-se para Gina: - Escuta, o violinista vai tocar o "canário". F icou de pé. Houve um silencio súbito na sala. T úlio começou a falar em voz baixa; estava na cab eceira da mesa, entre Bianchina e Gina: - Escut em, sei uma história mais bonita do que a de Mar ia da Esperança... Bianchina curvou-se mais: - Conta, conta - Há muitos, muito anos antes, qua ndo um navio levava três meses para fazer a trav essia Europa-América... Bianchina interrompeu: - Graças a Deus não vivi nessa época. Morria na viagem. Depois? - Pois bem. Um navio russo che gou à Califórnia e um tenente do Czar apaixonou- se pela moça mais bonita da cidade... A companh eira do pintor inclinou-se também para ouvir: - Que belo! - Ficaram noivos. Mas vocês sabem, u m oficial russo não podia se casar sem ordem do Imperador; então depois de festejarem o noivado com toda a pompa e grandes festas, ele voltou para a Rússia a fim de pedir licença ao Czar... Bebeu um gole da bebida que havia na frente del e; os outros da mesa interessaram-se também pela história. O violinista tocava o "canário" e mui tos tinham as cabeças inclinadas, pensativas. - Vinte e seis anos se passaram... E ela espero u o noivo que nunca mais voltou. - Morreu? - O que aconteceu? Túlio sorriu diante da curiosid ade que despertara: - O navio naufragou, quero dizer, desapareceu. Naquele tempo, havia dramas assim: Um navio desaparecia sem deixar vestígios . Naturalmente todos morreram e o noivo também . Ela não soube de nada... Ficou esperando... es perando... e envelheceu esperando o noivo que nu nca voltou. Só muitos anos depois, contaram-lhe, mas ela não acreditou, dizia que um dia ele h avia de voltar. Foi pedida em casamento muitas v ezes porque era muito bonita e de uma grande fam ília, mas não aceitou, conservou-se fiel à mem ória do noivo. Dizem que foi a criatura mais fes tejada da cidade; morreu com setenta e tantos an os e toda a gente a venerava. Bianchina suspiro u: - Lindo! Bateram palmas ao violinista. O pia no começou a tocar um tango. Gina falou: - Hoje não existem mulheres assim. Ah! Vamos dançar es te tango. Chama-se "Nora." Eu gosto muito. A co mpanheira do pintor replicou: - Como não há mul heres assim? E Maria Esperança? - Maria Esperan ça é um caso. Esperou até agora, mas vinte e sei s anos, quero dizer a vida toda? Duvido! Qualque r dia ela muda de idéia. - Aposto que não. Hen derson explicava a Nunzio: - A técnica da pintu ra moderna é essa que acabei de explicar, assegu ro que não é fácil... Houve um silêncio na mesa . Gina dançava com Túlio; sua elegância chamava a atenção. Bianchina dançava com Nunzio; suas fa ces estavam unidas e Bianchina conservava os o lhos fechados, como se dormisse. Quando se reuni ram outra vez à volta da mesa, Nunzio falou a He nderson: - Mas a técnica em geral não é essa qu e acabaste de explicar... Túlio avisou, olhando a porta de entrada: - Olhe o "comunista". Um homem simpático, ainda moço, passou pela mesa de les e cumprimentou fazendo um gesto amistoso com a mão. Tinha belos dentes e estava vestido com certa negligência. Gina perguntou, curiosa: - Esse é o chefe anarquista de Milão? Queria conh ecê-lo... Nunzio falou em voz baixa: - Não se sabe ao certo, parece que é um dos chefes. Eles se dizem outra coisa. - Então por que o chamam de "anarquista"? Ninguém respondeu. Túlio diss e: - Ele está olhando muito para cá. Olhe, Gigi na, ele vem tirar você para dançar. Gina sacudi u os ombros. O "anarquista" havia se aproximado; apertou a mão do pintor e da companheira. Convi daram-no para sentar; ele perguntou a Gina: - Q uer dançar? Tinha o rosto moreno e olhos ardent es que fixavam as pessoas de perto como se quise ssem penetrá-las. Bianchina dizia que os olhos d ele despendiam faíscas. Gina sentiu-se analisa da, levantou-se e foi dançar com o "anarquista"; ele apertava-a e olhava-a de perto. Ela se incl inava de lado, um pouco atemorizada; ouvira dize r tanta coisa dele. Mas, para aparentar que o não temia, perguntou pelo "partido” ele afastou- a um pouco para vê-la de frente e sorriu. - Que r fazer parte dele? Gina titubeou: - Não sei. Q uem sabe! - Conheço as pessoas ao primeiro cont ato. Nunca serás do partido. - Oh! Por quê? É u ma ideologia muito elevada para mim? - Não. Não é elevada para ti, mas é uma ideologia e as mul heres em geral não gostam dessas teorias. Ela i nsistiu: - Então? Não poderei entender? Ele co meçou a falar como se falasse a uma criança: - Nós estamos numa fase que se chama teórica, comp reendes? Isso não interessa a mulheres. É a fase da doutrina, somente da doutrina. Quando chegar a fase pratica, então, talvez... - Acho que você está enganado. As mulheres sabem doutrinar muito bem. - Talvez crianças, não homens... Gi na pediu: - Fale alguma coisa sobre isso. Quero tanto compreender ... Os olhos do "anarquista" pareciam despedir chamas: - Para que compreend er? E apertou-a mais. A música era lenta e repe tida; todo mundo dançava. Quando a música parou e pediram bis, ele puxou Gina por um braço, para uma mesa solitária, no fundo da sala; as mãos dele eram grandes e ossudas. Pediu bebidas ao g arçom e perguntou a Gina de repente: - O que qu eres saber? Como vivemos? O que fazemos? Se mata mos alguém? Ela perturbou-se: - Não propriamen te isso. Por exemplo, por que se tornou anarquis ta? Algum desengano? Teve alguma razão? O sorri so dele era amargo: - Muitas razões, mas escute ... Teu nome é Gina, não é? Eu passo o dia todo falando, discutindo, mastigando o mesmo assunto. .. A noite, quero descansar a cabeça com outra s coisas. Coisas mais alegres, como tu... Gina percebeu que ele não queria falar e fingiu-se tr istonha; ele observava-a. Inclinou-se para perto dela: - Escute, estamos numa fase de palavróri o. Só palavras... Não chegou ainda a hora da açã o. Mas creio uma coisa, vivemos numa fase de mui ta importância, porque é a fase inicial de um movimento que abalará o mundo... Mudou de tom: - És muito criança para compreenderes... E col ocou a mão ossuda sobre a mão fina de Gina: - É s muito bela também... Ela protestou e puxou a mão: - Não. Não sou criança. Escute, chefe, vir á então uma revolução? - Não sou chefe algum. V irá sim uma revolução. - Quando? Ele fez um ge sto evasivo e não respondeu. O garçom colocara a bebida sobre a mesa. Ela tomou um gole e falou: - Por que me trouxe a esta mesa? Não foi para me explicar? Para falar? Fale então. Ele sorriu como uma criança descoberta em falta: - Quero conversar contigo. Ver-te de perto. Ouvir tua vo z. Gina alterou-se: - Escute, chefe, você e se u partido podem conseguir muita coisa no mundo, mas nunca com revolução. Tudo o que é conseguido com a força e a opressão, não é duradouro. A revolução só provoca ódios, desordens e não cons egue triunfar por completo... Fez uma pausa e t erminou: - Pode conseguir triunfar, mas será um triunfo passageiro, não duradouro. Nunca. - Co mo falas bem! Ela fingiu não ouvir e olhou a sal a. . O piano e o violino tocavam uma valsa. Ele pediu: - Continue... Ela não respondeu, então ele convidou-a para dançar. Perguntou: - Onde a prendeste essas teorias? E seu braço rodeou a c intura de Gina. - Isso não se aprende. É intuit ivo. - Gosto de ti. És de uma franqueza a toda a prova. Admirável. Amas ou não. Queres ou não. Dizes ou não. Não hesitas nunca; és como eu. Fos te sempre assim? - Sempre. - Também não aprend este? É intuitivo? - É. Mas nem sempre é aconse lhável. Às vezes é contra nós. - O que? A franq ueza? - Sim. Nem sempre se pode ser franco. - Tens razão. Dançaram o resto da valsa em silênc io; Gina sentia o olhar perscrutador do "anarqui sta" sobre seu rosto; ele era um pouco mais alto que ela e observava-a enquanto dançavam. Volt aram depois à mesa de Nunzio; Henderson ainda di scutia pintura e sua companheira ouvia, extasiad a. Já havia bebido vários copos de whisky e fala va cada vez mais alto, mais convicto de suas o piniões. De vez em quando ria; tinha um riso gut ural e estranho; também seu riso estava em desac ordo com os límpidos olhos azuis. O "anarquist a" sentado ao lado de Gina, falava sobre o carát er de certas pessoas; gabava-se de conhecer as p essoas ao primeiro contato: conhecia o caráter tímido, o ousado, o impulsivo, o que se encolhe como um caramujo no momento de ação. De repente perguntou a Bianchina que o escutava, as mãos c ruzadas sobre a mesa: - Podes me dizer qual é o traço predominante do teu caráter? - A bondade , apressou-se em dizer Gina. Bianchina hesitava : - Não. Não sei. Não posso saber. - É a avare za, disse Nunzio que ouvira do outro lado da mes a. Riram-se todos e Bianchina replicou, um ar z angado: - Bonito, hein? E o teu? Ele respondeu , entusiasmado, mostrando os inúmeros copos sobr e a mesa: - O meu? A liberalidade... O "anarqu ista" interveio, falando seriamente e olhando Bi anchina: - É a timidez. Henderson olhou o reló gio: - Bravos. Ela é mesmo tímida. Um dia pedi- lhe um beijo e ela corou até o pescoço. Riram. Henderson levantou-se: - Amigos, hoje é um novo dia e teremos novos trabalhos. Quase três horas ! Não é verdade, Bianchina? - É verdade que são três horas, mas nunca me pediste um beijo. É me ntira. - Pois peço agora! - Levantaram-se para sair. As ruas Milão estavam desertas e um vento frio passava, rápido, zunindo em surdina. O "an arquista" beijou a mão de Gina e pediu licença para visitá-la. Ela consentiu. Nunzio levou Gin a e Bianchina no automóvel dele; as estrelas bri lhavam no céu azul cobalto. Já em caminho, Nunzi o falou: - O Henderson a esta hora está tomando notas do céu para o próximo quadro... Bianchin a bocejou: - Mas o céu está mesmo estupendo. Te nho aula amanhã às dez horas. Que preguiça! - P reguiça? E eu que tenho de estudar pelo menos du as horas? O professor Natale fica uma fera quand o não estudo. Fez uma pausa e acrescentou: - M as o "anarquista", é um homem esquisito mesmo! Foi a primavera desse ano em Milão que ficou gra vada para sempre no coração de Gina. O maestro C ampobasso ofereceu um jantar em sua residência n o Sempione, seguido de uma hora de arte para q ue os artistas e músicos pudessem ouvir sua alun a cantar pela primeira vez. O maestro vivia qua se só com os criados na sua bela residência; no salão principal, havia dois pianos de cauda; nos outros salões, alguns quadros e obras de arte. Bustos de grandes músicos enfeitavam o hall. G ina já conhecia a casa, pois jantara muitas veze s a sós com o maestro. A noite do banquete esta va suave e muito clara, o céu salpicado de estre las. Todas as portas do salão davam para um terr aço enorme ao lado da casa nesse terraço, fora m se reunindo os convidados até o momento de ire m para a mesa. Eram vinte pessoas. Gina trazia u m vestido preto e levava jóias de rubis; os sapa tinhos eram também rubi e na cintura havia uma fita da mesma cor. Estava encantadora. Apesar d e quase todas as mulheres usarem cabelos comprid os então, ela usava-os quase curtos, presos na nuca por um pequeno enfeite também vermelho. Pa recia mais jovem ainda do que era, com seu rosto cor de lírio, seus olhos enormes e escuros. À volta de duas mesinhas de ferro, os convidados e stavam reunidos tomando aperitivos; alguns traja vam casaca, outros smoking. Havia oito mulheres: cantoras, pianistas e atrizes. Todos pareciam alegres; falavam ao mesmo tempo trocando impres sões diversas sobre inúmeros assuntos. Quase à hora do jantar, quando Gina se achava num canto do terraço conversando com o ator de uma companh ia francesa de passagem por Milão, ouviu a voz d e um retardatário desculpando-se por ter chega do atrasado. Ela voltou-se e viu um rapaz alto e magro conversando com o maestro; ele também a v iu e nesse momento o dono da casa segurou-o pe lo braço e levou-o para perto de Gina: - Gina, eis aqui um patrício. Que surpresa, hein, Gina? - Brasileiro? O rapaz riu-se com alegria: - S im. Brasileiro. Gina estava cada vez mais admir ada: - Oh! Que surpresa! E conhecia o maestro? - Campobasso? Conheço-o há muito tempo, desde o Rio de Janeiro. Mas a minha surpresa ainda é ma ior, nunca pensei encontrar aqui uma brasileira. .. Os dois ficaram sós um na frente do outro. Olharam-se. Gina perguntou: - E está viajando? Ou reside aqui? - Não. Minha família está agora em Viena. Há seis meses que viajamos; meu pai é brasileiro e minha mãe é de origem italiana. De Roma. - Ah! Pretendem voltar logo ao Brasil? - Daqui a uns meses, não sei ainda. E a senhora? Está morando em Milão? - De passagem apenas. E studo canto aqui. - Ah! É cantora? - Não ainda . Pretendo ser. Ela riu-se; disfarçadamente obs ervou-o; ele tinha uma palidez impressionante e ao mesmo tempo qualquer coisa que atraía; Gina n ão soube dizer se era o olhar, o modo de sorri r, de falar; era uma atração irresistível. Olhav a para ela, surpreendido e alegre: - Como é bom falar nossa língua! Não sente prazer? - Muito! Estou encantada. Ela ia continuar a falar, mas o dono da casa aproximou-se e tomando-a pelo bra ço, convidou-os para a sala de jantar; fez então ao recém-chegado imperceptível sinal de que d epois conversariam. O salão de jantar da casa d o maestro tinha painéis de carvalho quase até o teto, era sóbrio e bonito; todo o mobiliário era escuro. Somente a mesa cintilava de cristais e flores na brancura da toalha ; era o único pon to claro no ambiente sombrio. A luz de doze vela s iluminava a mesa. Gina ficou à direita do maes tro; logo que se instalou, procurou com os olh os o rapaz brasileiro; nesse instante o maestro estava indicando o lugar dele; ouviu-o chamando- o de Frederico. No momento que se sentou, Fred erico olhou-a e sorriu como se dissesse: "Que pe na. Não podemos conversar.” Foi servida uma sop a de tartarugas do Adriático. As conversas anima ram-se e subiram de tom; cada convidado tinha um caso a contar. Falavam e riam em toda a extensã o da mesa; Gina viu Frederico conversando anim adamente com uma atriz muito bonita que tomava a ulas com o professor Natale. Era uma vienense; f alava mal o italiano e misturava de vez em qua ndo palavras francesas. Gina quis ouvir o que di ziam, mas não conseguiu, só percebeu que o rapaz respondia em francês. Em certo momento (já ha viam servido vinho branco com o primeiro prato) os dois levantaram os copos e tocaram um ao outr o, num brinde silencioso; Gina sentiu certa tris teza que não soube a que atribuir. Era como um aperto de coração. Fingindo-se muito interessad a na conversa ao lado e dando um ou outro aparte , seguia todos os movimentos de Frederico e es forçava-se por ouvir o que ele falava com a atri z vienense. Observou-o enquanto respondia ao viz inho: - Sou de S. Paulo. Brasil. Conhece? Ouvi u a resposta do vizinho pensando em Frederico: " É extremamente simpático; aquela palidez exagera da dá-lhe certo encanto. Casado não pode ser; fa lou nas viagens com o pai e a mãe.” - Sim sen hor. S. Paulo tem uns setecentos mil habitantes mais ou menos. - "Vai ver que é rico. Bonito nã o é, mas tem qualquer coisa... O que será?” Nes se instante, seu vizinho de frente, um barítono que estivera ausente de Milão na última temporad a e não pudera cantar no Scala, perguntou-lhe a opinião sobre o barítono que o substituíra; he sitando um pouco, Gina respondeu que sua própria opinião era insignificante, o que provocou prot estos na vizinhança, mas segundo a opinião de pessoas competentes, ele não havia cantado muito bem. O barítono sorriu, encantado, e começou a explicar porque o colega fracassara. Um dos conv ivas que estava do outro lado da mesa, referiu -se ao barítono ausente dizendo: - Una voce tro ppo spinta. Houve protestos. Uns disseram que a chavam a voz dele como se fosse presa: "In gola" , o que provocou novos protestos. Gina disse que ouvira dizer que a Clara, a bela Clara que to do o mundo elogiava, tinha "Una voce de pecara", o que fez alguns rirem. Depois disso, toda a m esa se movimentou e comentou "la stagione scalig era" que já se aproximava. Nesse momento, Gina v iu o sorriso de Frederico em sua direção; ela também sorriu para ele e sentiu grande alegria, sem poder explicar a causa. Começaram em seguid a a planejar as viagens que pretendiam fazer dur ante o verão. "O que ele pensará de mim? Pensará a mesma coisa que eu penso dele? Gostará da min ha pessoa? Perguntaram-lhe onde passaria as fé rias; distraidamente, ela respondeu que talvez f osse a Monte Catini. Alguns falaram sobre as van tagens de uma estação de águas para quem tem v ida ativa e árdua nas cidades grandes. No momen to de fazer o brinde, Gina e o maestro foram os primeiros a serem saudados, em seguida o baríton o, a pianista, outros cantores e finalmente troc aram-se brindes em todas as direções. Após o j antar, foram para o salão e para o terraço; todo s fumaram, menos Gina e a outra cantora: estavam proibidas para que a voz não ficasse prejudic ada. Gina aproximou-se do piano e preparou as m úsicas; ouviu então uma voz quente atrás dela: - Que felicidade encontrá-la. aqui! Estava ansio so para falar português! Ela voltou-se sorrindo para Frederico: - Há quanto tempo mesmo está v iajando? - Seis meses. - E quando pretende vol tar ao Brasil? Ele hesitou; depois olhou-a nos olhos: - Não sei bem. Às vezes tenho,vontade de voltar, às vezes quero ficar. Nem sei. E você? Permita que chame de você? - Naturalmente. Pret endo voltar o ano que vem, depois de terminar me us estudos aqui. - Pretende dar concertos? Ou p refere cantar no teatro? - Pretendo tudo. Por i sso estou aqui, me aperfeiçoando Como é o seu no me mesmo? - Frederico. Alguns me chamam de Fred . Sorriram um para o outro. Antes que ele pergu ntasse o nome dela, disse: - O meu é Georgina, mas me chamam de Gina. Ou Gigina. - Eu já sabia . Ouvi o maestro chamá-la... - Gosta de ouvir c antar? - Muito. Sempre gostei de música. Aprend i piano durante uns quatro anos. Minha mãe é pia nista. - Ah! É? Então sabe tocar? - Não. Deixe i de tocar. Quero dizer, toco ainda um pouco, ma s só músicas leves, ligeiras. Não toco perto de ninguém. - É tão egoísta assim? - Não. É porqu e toco mal e só eu posso ouvir. Como é bom falar brasileiro! Riram. Ele perguntou: - Não acha bom? - Muito. Eu também estava saudosa de falar minha língua. Sentia uma saudade... - Saudade! Que palavra bonita! Nesse instante, o dono da casa aproximou-se e pediu a Gina que cantasse; o rapaz afastou-se e foi ficar de pé numa das por tas do terraço. Acendeu um cigarro e ficou olh ando-a de longe. Ela ficou de pé ao lado do pian o; houve um sussurro por todo o salão, depois si lêncio. O maestro Campobasso preparou-se para ac ompanhá-la; como nunca tivesse cantado diante de tantos músicos e entendedores de música, Gina teve um momento de medo a principio; mas depois dos primeiros acordes, sentiu tal segurança c omo se dominasse o auditório e cantou com toda a alma o "Ideale" de Tosti. Palmas vibrantes romp eram no salão quando ela terminou; pediram que c antasse mais; cantou um trecho do "Barbeiro de Sevilha." As opiniões eram todas favoráveis a e la; mas todos achavam que precisava de um pouco mais de estudos, uns dois anos talvez; outros achavam que precisava mais quatro anos de canto. Em seguida a soprano cantou "Caro nome"; depoi s outras cantaram trechos de "Lúcia de Lamérmoor " e Gina voltou a cantar "Quem sabe" de Carlos G omes, um verdadeiro sucesso. As horas passara m rapidamente; o dono da casa mandou servir cham panhe aos convidados. Nos intervalos da música, as conversas eram quase sempre sobre o mesmo tem a: música e concertistas. Contavam-se casos, c itavam-se anedotas sobre os grandes interpretes. Às duas horas da manhã, terminou a reunião; um pouco antes, o barítono cantou uma ária e Gina cantou uma canção francesa para finalizar. Saír am todos ao mesmo tempo. Frederico ofereceu-se p ara levar Gina e a atriz vienense que sentara na mesa ao seu lado. Gina aceitou e tomaram juntos um automóvel. Frederico deixou a atriz vienen se em primeiro lugar, o que fez Gina exultar-se; depois levou-a e deixou-a à porta do apartament o. No instante de se separarem, perguntou-lhe se queria almoçar com ele no dia seguinte; ela a ceitou e ele ficou de ir buscá-la à uma hora. De spediram-se. Quando Gina entrou no quarto e ati rou a capa de peles sobre o divã, dirigiu-se log o ao espelho. Ficou satisfeita com seu rosto ess a noite; suspirou e começou a deixar cair as j óias uma por uma sobre o vidro da penteadeira. C omparou-se com a atrizinha vienense; pensou no r osto da outra; tinha o nariz arrebitado, o que a fazia bonita, em compensação os dentes de bai xo, acavalados, apareciam quando ela ria. E era muito magra. Gina sorriu, contente. "Fred!" Come çou a despir-se pensando que nunca encontrara um homem tão simpático e atraente como Frederico . "Pensará o mesmo de mim? Como é agradável vive r!” IX No dia se guinte, quando Frederico chegou, ela estava nerv osa, esperando-o; sentia seu coração bater como se sua vida dependesse daquele encontro. Almoçar am no restaurante Cova; jantaram juntos também nessa noite. E não se separaram mais. Fizeram todos os passeios juntos. Muitas vezes, à noite, jantavam com Bianchina e Nunzio, depois saíam d e automóvel com os amigos. Tomavam a direção de Florença e. enquanto o automóvel deslizava pel a estrada silenciosa, conversavam ou cantavam. B ianchina cantava trechos conhecidos e os outros acompanhavam em voz baixa. Gina inclinava a ca beça sobre o ombro de Frederico e beijavam-se ap aixonadamente; um tinha medo de perder o outro e só esse pensamento, fazia-os sofrer. Estreitame nte abraçados, no fundo do carro, sussurravam entre carícias; Nunzio gritava alegremente: - E stão muito silenciosos. O que estarão fazendo? É preciso cantar. Cantavam então acompanhando Bi anchina em voz tão estridente que os pássaros qu e por acaso dormiam na beira da estrada acordava m assustados, e o automóvel corria entre risad as e beijos. Voltavam muitas vezes quando a madr ugada dourava o céu azul. Separavam-se. No dia s eguinte, Gina dava mal a aula de canto; estava c ansada e o pensamento fixo em Fred. Uma tarde , um mês depois, enquanto procurava cantar acomp anhada pelo professor Natale, pensava: "Será que ele já se levantou? Onde iremos hoje? Gomo é bo m amar! Nunca amei, mas agora é diferente. Di- fe-ren-te!” Cantava as notas pensando: "Di-fe-r en-te". O professor Natale olhou-a admirado: - Que tens, Gigina? Hoje não estás bem? Que aconte ceu? Ela sorriu desajeitadamente: - Nada, prof essor. Esforçou-se para dar melhor a lição, mas sentia-se empolgada; era como se estivesse pair ando no espaço, num mundo diferente, num mundo q ue não conhecera até então. Sorria para si mes ma olhando as mãos, o teclado, o chão, nada. Olh ava o professor e procurava ficar firme; logo ma is seu pensamento estava longe outra vez: certo compasso significava amo. Então repetia uma po rção de vezes na imaginação: "Amo! Amo! Amo! O q ue é mesmo amar? Amar é isto que estou sentindo. Vem o compasso amo: Todas as vezes que o prof essor repetir este compasso, quer dizer: amo. Qu ero ver quantas vezes eu amo hoje. Aí vem o comp asso: amo. Nunca pensei que amasse. Nunca. Diz ia: amor é para os bobos, sentimentais, não sou nada disso. Bianchina disse que eu paguei a líng ua. Paguei a língua! Será que todo o mundo ama c omo eu? O homem que passa na rua de bicicleta vendendo flores? A mulher que vende lingüiças na venda da esquina? A moça que bate na máquina o dia inteiro? E ele? Será que me ama? O tal com passo vem já. O compasso do amor. Amo! Amo! Amo! . Se Natale soubesse!” O professor sacudiu a ca beça, desanimado. Levantou-se enquanto Gina cont inuou cantando sem acompanhamento; na imaginação repetia: amo. Ele passeou pela sala; parou em frente a uma das janelas; levantou a cortina e espiou a rua. Percebia-se que estava nervoso; vo ltou para perto do piano e ficou observando o ro sto de Gina; ela parara de cantar e olhava o t eclado atentamente. Ele pensou que o rosto de Gi na era bonito demais, não podia nunca ser cantor a. Era muito perfeita. Gina recomeçou a cantar o trecho que repetia o compasso: Amo. Amo. Amo. O professor Natale impacientou-se: - Por que r epete tanto este compasso? Per ché? Onde está su a cabeça, Gigina? Atenção! E bateu uma das mãos sobre o piano que deu uma nota falsa, vinda lá do fundo de suas entranhas metálicas, com um gem ido. O vaso com flores tremeu como se fosse cair ; tornou a passear pela sala: - Impossível. N unca deu uma lição tão mal como hoje. Impossíve l. Repita tudo outra vez. Gina recomeçou. Não q ueria afastar, seu pensamento da lição, mas não conseguia; quando chegou, ao compasso que havia apelidado de amo seu pensamento voou para Freder ico e falou: Amo. Amo. Amo. Nessa tarde o pro fessor Natale foi se queixar ao maestro Campobas so disse que Gina não era a mesma aluna aplicada e estudiosa. Dava mal as lições, não prestava a tenção aos conselhos dele e ele não sabia a qu e atribuir. O maestro replicou que talvez ela es tivesse cansada: iam chegar as férias de verão e ele a mandaria para Monte Catini afim de desc ansar uma temporada. A vida de estudos na cidade cansa qualquer aluno, terminou o maestro. Cheg aram as férias. Gina recusou-se ir com o maestro para Monte Catini; houve séria discussão entre eles. Ela disse que iria para outro lugar; mas n ão com ele. O maestro ficou indignado e ameaço u Gina de abandoná-la; abandoná-la para sempre, não se importar mais com ela, nem com lições de canto, nem com coisa alguma. Fizesse o que qui sesse e não o procurasse mais. Gina alterou a vo z dizendo-se farta da proteção dele, da autorida de dele, de tudo. No íntimo, pensou: "Do seu ete rno hálito de cebola e alho." Queria fazer o q ue bem entendesse, estava cansada de obedecer: " É preciso estudar oito horas por dia." "Não pode beber." "Não pode passear." "Não pode deitar tarde." "Não pode fumar." Estava cansada. Cansad íssima. Ele gritou: - Mas tudo isso é para teu bem, criatura! Não queres estudar canto? Ou está s louca? Gina teve vontade de gritar mais: "Est ou louca sim. Louca." E fazendo um gesto com a mão como se cortasse qualquer coisa no ar, falou fortemente: - Chega! O maestro falou mais for te: - Pois chega! Vá para onde quiser e não me apareça mais! Cruzou os braços sobre o peito e continuou olhando-a de frente, como a esperar qu e ela se arrependesse. Diante do silêncio de Gin a, continuou: - És uma ingrata. Fiz tudo por ti . Tudo. Trouxe-te daquela terra para dar-te uma educação musical bem firme, sólida, pois não tin has nenhuma e com o que me pagas? Com a desobe diência, com a ingratidão, com o desprezo. Como se não me devesses nada, nada... Ela levantou a cabeça com altivez: - Maestro, não precisa me lançar em rosto o que eu devo. Se o senhor fosse um "gentleman" nunca me diria isso. Não se diz a um vencido que ele é vencido. Não se diz a um doente de câncer: és um canceroso. Não se diz a um negro: és negro. Nem a um doente: não tens c ura. Há coisas que um homem educado nunca diz, maestro. Não há necessidade. E por que dizer: " aquela terra"? É a minha Pátria, o Brasil! Não é "aquela terra", é o Brasil! Uma cor avermelhad a inundou as faces pálidas do maestro Campobasso ; sua voz tremeu quando respondeu: - Não estou ofendendo sua terra, seu País. Estou só dizendo que és uma ingrata e isso não podes negar. Negas acaso? Eu já devia estar acostumado a isso; a i ngratidão é muito comum neste mundo. Pensei qu e fosses diferente, mas não és. Acabou-se. Volt ou as costas e batendo os pés no chão como a des abafar sua indignação, deixou o apartamento sem mais uma palavra. Nessa tarde, Gina preparou as malas, empacotou tudo o que tinha e mandou par a o apartamento de Bianchina; depois resolveria o que fazer. Bianchina assustou-se quando a viu chegar. Gina contou que rompera com o maestro e precisava falar com Fred. Bianchina sacudiu a cabeça, com um ar desolado: - E tuas aulas de c anto, Gigina? Tua arte? Tua voz? Gina fez um ges to evasivo: - Depois, Bianchina, depois eu pens o nisso. Preciso telefonar a Fred. Deixou as ma las com a amiga e desceu as escadas para telefon ar novamente, pois telefonara do seu próprio apa rtamento e não encontrara Fred. Sentia-se nervos a e indecisa. Como Bianchina não tinha telefon e, foi ao bar que havia embaixo do prédio; estav a cheio de fregueses. Eram cinco horas da tarde; havia homens tomando aperitivos, outros jogan do dados em volta de mesas de ferro; o dono esta va em mangas de camisa, tendo à mostra os braços gordos e roliços, cheios de pêlos. Enxugava os copos com uma toalha encardida. Quando Gina pe diu para falar ao telefone, ele não respondeu, a penas fez um gesto com a cabeça mostrando o apar elho e continuou no seu serviço, atrás do balc ão. Todos os olhares fixaram-se nela; alguns int erromperam o jogo para observá-la; outros sorrir am e piscaram. Gina conseguiu falar com Fred; ha via chegado ao hotel naquele momento e estava se preparando para tomar um banho; depois iria b uscá-la no apartamento. Ela deu apressadamente o endereço da amiga e pediu-lhe que viesse, vie sse logo, precisava falar. Pagou ao homem do bar e deixou a sala sem olhar para ninguém. Estava mais calma. Subiu correndo as escadas. No apart amento minúsculo de Bianchina tudo ficara em des ordem depois da sua chegada. Bianchina estava na cozinha preparando chá. Cantava. Quando a viu aparecer à porta da sala com um avental azul à volta da cintura; tinha também uma fita azul ama rrando-lhe os cabelos. Foi falando enquanto prep arava a bandeja para colocar o bule e as xícar as de chá: - Olhe, Gigina. Não tenho duas camas , mas tenho esse sofá-cama que é bem cômodo. Vai s dormir aí. Para teus vestidos, há um lugar no meu guarda roupa, nem que seja para apertar um pouco. Essas malas grandes ficarão no depósito, falarei com o zelador. Estou muito contente de estares aqui, só penso nas tuas aulas. Então o m aestro Campobasso ficou danado, hein? Que se d ane. Com certeza ele já sabe de tudo, digo, a tu a história com Frederico, por isso ficou tão fur ioso. Abrindo uma das malas de mão e tirando os objetos mais necessários Gina respondeu: - Se ele soubesse, me diria tudo na cara, tenho certe za. Penso que não sabe. Esses últimos tempos, p assou fora da cidade não se lembra? - Não falta quem conte... Olhe, estas coisas de toalete vo u deixar no banheiro. Quero arrumar tudo depress a porque daqui a pouco .Fred está aí. - Falou c om ele? - Falei. Vou tomar um banho, espere um pouco. Bianchina que havia voltado à cozinha, g ritou através da porta aberta: - Espere o chá. Está pronto. - Eu tomo banho em dois minutos. V enho já. - Fiz torradas também, daquelas que vo cê gosta. Ouviu-se o ruído da água correndo e a voz de Gina cantarolando: - Bian-chi-na, és um anjo! La chanson de l'amour! Bianchina começou a rir: - O que? Estás maluca? - Penso que sim . Se Fred chegar, recebe-o. - Não. Deixo-o espe rando na porta. Não recebo. E Bianchina começou a rir, um risinho fino e agudo; quanto mais lemb rava de suas próprias palavras, mais ria. Deixar Fred esperando na porta... Arrumou as torrada s e as xícaras sobre a pequena bandeja de charão forrada com uma toalhinha branca, derramou a ág ua fervendo sobre o chá, tapou o bule e escuto u. De dentro do quarto de banho, vinha o ruído d a água e a voz de Gina cantado: "II fui Tultimo suspiro..." Bianchina respondeu da salinha de jantar: "Caro nome tuo será...” Quando Fred che gou, meia hora depois, as duas contaram tudo a e le, entre goles de chá frio. Fazia calor; vinha um vento cálido lá de fora e sacudia a cortina b ranca de etamine que enfeitava a única janela da sala. Fred ficou pensativo. O chá esfriou com pletamente na sua xícara. Depois perguntou: - E os estudos de Gina? Ela não pode perder essa op ortunidade. Agora que está aqui, precisa continu ar. Olhou à volta: - E piano? Precisamos arran jar um piano para Gina continuar a tomar lições com o professor Natale. Ou com algum outro. Gin a sacudiu a cabeça: - Não, Fred. Já estudei bas tante e creio que é suficiente o que sei. Sufici ente para continuar a estudar em S. Paulo; lá ta mbém há bons professores... Não contou que no í ntimo tinha medo de perder Fred, um medo desespe rado, alucinante. Pretendia voltar ao Brasil com ele. Jantaram juntos, Bianchina telefonou para Nunzio e foram os quatro à Piazza dei Duomo, nu m restaurante modesto, onde havia reservados no andar de cima. Depois do jantar, foram passear no automóvel de Nunzio; em seguida foram dançar no Sempiocino; festejaram então a liberdade de G ina e dançaram até quatro horas da manhã. Gin a passou mais de um mês no apartamento de Bianch ina; Fred foi para Viena encontrar-se com os pai s e combinar a volta ao Brasil. Vieram as féria s de verão; toda a cidade parecia movimentar-se para as praias ou para as montanhas. Bianchina r esolveu não sair para fazer economias e Gina fic ou esperando Fred voltar. Nunzio deixara a cid ade com a família, fora a uma estação de águas. As duas ficaram sozinhas no apartamento; o calo r tornou-se abrasador. De manhã, depois do café, faziam a limpeza; depois Bianchina estudava can to. Gina ouvia; tinha a impressão de que a voz de Bianchina subia, e descia uma montanha muito alta. Só de combinação por causa do calor, os c abelos amarrados com uma fita azul, ela estudava andando de um lado para outro, os braços magr os cruzados sobre o peito; Ah! Ah! Ah! Ah! Chega va ao agudo e Gina pensava: "Está no alto da mon tanha.” Bianchina demorava-se lá em cima repeti ndo os agudos para treinar a garganta: Ah! Ah! A h! Ah! "Agora vai descer a montanha. Começou a d escida." E Bianchina ia do agudo ao grave vaga rosamente: Ah! Ah !Ah! Durante horas inteiras. S ó de combinação também, deitada sobre o sofá que à noite servia de leito, Gina pensava: "Como fui abandonar assim minha carreira? Pois sacrifi quei tudo por ela, vim aqui estudar, agora deixe i tudo? Por quê? Creio que nunca serei cantora. Nunca. Que pena. Bianchina sim, ama a arte. Nu nca a abandonará. Por homem nenhum ela deixaria esses "ahs"; e eu deixei tudo por Fred. Podia co ntinuar com as aulas e com Fred. Que saudade q ue eu tenho. Mas como poderia continuar com o ma estro? Não se pode conciliar tudo.” E sua garga nta movia-se como se de fato cantasse: "Agora vo u cantar a Tosca... Agora a última aula do profe ssor Natale.” E cantava, cantava. Um dia recebe u um cartão de Frederico, da Áustria; depois rec ebeu outro do sul da França. Dizia: "Que felicid ade se estivesses aqui comigo, meu amor. Eu se ria um homem realmente venturoso.” Ela beijou o cartão e guardou-o num lugar fácil; de vez em q uando ia revê-lo; ficava absorta olhando uma pai sagem de Cannes onde havia um hotel no fundo, de pois o mar muito azul e gaivotas voando baixo; quase no horizonte, um barquinho à vela, muito branco. À hora do almoço, Gina preparava um pra to de frios e legumes; enfeitava com fatias de t omate e rodelas de ovo cozido formando flores e pensava: "De repente ele chega. Quem sabe hoje . Agora. E vai almoçar este prato preparado por mim. Vai perguntar primeiro: "Quem enfeitou tão bem este prato? Foi você, Gina? Sim senhora. Est á bonito. Parabéns.” E prestava atenção todas as vezes que ouvia a campainha; mas passou-se m ais de um mês e Frederico não chegou. Gina foi f icando triste. Por que ele não vinha? Ele prom etera que viria em Agosto e já estavam em Setemb ro. Cinco ou seis de Setembro? Não queria saber. Por onde andaria? Por. que não escrevia mais? S ó aqueles dois cartões! Nunzio chegara da esta ção de águas e aparecia sempre, Gina dizia que i a dar uma volta e saía para deixá-los sós. No d ia quinze de Setembro, numa tarde em que ela hav ia chorado porque não recebia notícias de Freder ico, ouviu o toque da campainha. Estava com um v estidinho leve de fustão e sapatos sem meias. Bianchina, na cozinha, preparava um assado para o jantar; Nunzio dissera que viria às sete horas . A vizinha do apartamento não tinha geladeira , então pedia quase todos os dias a Bianchina qu e guardasse o leite na geladeira dela para o men ino; podia se estragar por causa do calor. E tod as as tardes, àquela hora, vinha buscar o leit e para fazer a mamadeira da criança. Gina ia abr ir a porta quando Bianchina gritou: - É o leite . Gina voltou à cozinha, tomou a vasilha e diri giu-se para a porta. Quando abriu, viu Frederico diante dela, risonho, uma expressão de felicida de na fisionomia. Gina deu um gritinho: - Ah! Fred! E desviou a vasilha para um lado, pois Fr ederico abraçou-a fortemente; Bianchina apareceu à porta da sala; estava vermelha e suada, uma c olher na mão. Pegou a ponta do avental azul e começou a passar no rosto para enxugá-lo enquant o olhava a cena. Gina e Fred estavam fortemente abraçados; a leiteira estava meio entornada na mão direita de Gina. A amiga correu para segurá -la e gritou: - Olhe o leite, Gigina. Vais ento rnar o leite da vizinha! Riu quando tomou a vas ilha e depositou-a sobre a mesa; depois colocou as duas mãos na cintura e olhou para os dois, qu e continuavam abraçados como se estivessem soz inhos no mundo. Depois dos primeiros momentos d e expansão, Fred recostou-se no sofá ao lado de Gina e começou a contar o que havia feito e de q ue forma havia conversado com os pais a fim de convencê-los da viagem que pretendia fazer. E d isse olhando-a: - E você vai comigo, Gina. Ela abriu muito os olhos e exclamou como uma crianç a deslumbrada, juntando as duas mãos: - Fred! S erá possível? Para onde? - Egito. Bianchina qu e havia deixado a sala e fora espiar o assado no forno, estava de pé outra vez na porta. Pergunt ou, com a colher numa das mãos, enquanto que, co m a outra, aparava as gotas de gordura: - Egi to? Quem vai para o Egito? Eu? Sono io? Gina re spondeu em vez de Fred. levantando-se e batendo palmas de alegria: - Egito! Vamos ao Egito, Bia nchina! Vou ver os faraós. Não é lá que há faraó s? Fred riu-se, quase comovido. X Uma semana depois, deixaram Milão, pass aram um dia em Roma e embarcaram para Nápoles. N o mesmo dia da chegada a Nápoles, às sete horas da noite, tomaram um vapor para Palermo. Paler mo estava envolta em garoa e nevoeiro; tomaram a estrada de ferro e viajaram durante doze horas até chegar a Syracusa. Em Syracusa um luxuoso vapor, "Esperia", levou-os ao Egito. Nas faces d e ambos havia felicidade e ternura. Passaram por Alexandria e foram até Cairo. Viajaram pelo Nil o, visitaram as pirâmides e a esfinge; passear am em camelos no deserto escaldante, andaram a p é à volta das pirâmides para sentir o calor da a reia queimar os sapatos. Embarcaram depois para Jerusalém, onde chegaram às nove e meia de uma manhã fria e escura. Visitaram os Santos Sepulcr os, depois percorreram as ruas da cidade, subind o e descendo escadas. Foram a Belém. Pararam d iante do túmulo de David. Acompanharam a romaria dos hebreus que todas as sextas-feiras rezam e se lamentam diante dos muros que outrora servi am de defesa à cidade, que não mais lhes pertenc em. Foi um espetáculo surpreendente; os hebreus rezavam com calma, depois as rezas foram se tra nsformando num lamento desesperado e inquietante ; debateram-se, gritaram, levantaram os braços e seus lamentos foram ouvidos longe, enquanto b atiam as cabeças contra o velho muro. Pediam em altos brados ao Messias que fizesse o milagre de lhes devolver a cidade que lhes pertencera. H omens com barbas longas e brancas, outros com ol hos profundos e negros, outros ainda mostrando a través dos mantos a magreza extrema, as mãos c urvas como garras cruzadas no alto das cabeças, lábios lívidos e murmurantes. Mulheres envoltas em mantos de cor, choravam e batiam a cabeça n os muros; outras tinham as cabeças descobertas e puxavam os cabelos num gesto contínuo e teimoso , enquanto lágrimas corriam pelas suas faces ema grecidas. Gina sentiu-se impressionada e de rep ente percebeu também que estava chorando. Aperto u o braço de Fred: - Coitados! Não há um meio d e evitar isso, Fred? Como sofrem os coitados! F red levantou os ombros num gesto desanimado: - Decerto não há meio, Gina, senão não estariam aq ui. Ela enxugou os olhos: - Então vamos embora , do contrário também bato a cabeça no muro. Vi sitaram o túmulo de Salomão. Foram ao mar Morto e ficaram olhando a água tépida, onde os peixes não podem viver. Passearam de bote pelo rio Jord ão; depois almoçaram numa das margens, tendo à volta deles, cabras, patos, cães, burricos, pom bos, um porco branco que, famintos, pareciam ped ir um pouco de comida. Deram miolo de pão, ped aços de carne, ossos de frangos aos animais esfo meados. Já tinham terminado o almoço e antes de partir, disfarçadamente, Gina tomou um pão intei ro e repartiu entre as cabras, os cães e os bu rricos. Embarcaram de novo. Ela estava silencio sa; pensava naqueles animais que pareciam ter se mpre fome: "Hoje demos tudo o que podíamos, mas amanhã? O que irão comer? Olhando as margens d o Jordão por onde o bote deslizava, pensava na f ome dos animais. "Quanta gente não passa fome aq ui? Quantas crianças não terão o que comer?" P ara distrair-se olhou Fred; ele conversava com u m dos homens do barco. Gina lembrou: - Fred, pe rgunte ao homem se vêm turistas sempre aqui. Fr ederico fez a pergunta em inglês; o homem respon deu qualquer coisa e Fred traduziu: "Todos os di as." Gina sentiu-se mais alegre a este pensament o: "Então os animais têm comida todos os dias. ” E começou a cantarolar baixinho, olhando Fred . No dia seguinte foram a Jericó e a Jafa que a charam encantadora, habitada por hebreus sob o d omínio inglês. Numa tarde, tomaram o vapor para Trieste; desembarcaram em Brindisi, depois for am para Veneza; Passaram uns dias rápidos em Ven eza, onde o tempo era pouco para ver tudo e emba rcaram para Milão. Gina começou se preparar par a a volta ao Brasil; voltaria no mesmo vapor em que ia Fred com a família. Transbordava de felic idade. Despediu-se de inúmeros amigos; escreveu um cartão ao professor Natale agradecendo as li ções. Escreveu também ao maestro Campobasso; que ria provar sua gratidão. Nunzio organizou um ja ntar de despedida no Sempioncino. Foi alegre e d ivertido; mais de vinte pessoas sentaram-se à vo lta da mesa para jantar com Gina pela ultima v ez. O "anarquista" apareceu com o olhar ardente e flores numa caixinha; estendeu a mão perguntan do: - Então vais mesmo nos deixar? E não voltas mais? Seus olhos ardentes e negros pareciam qu eimar o rosto suave de Gina. Dançaram juntos mui tas vezes, apesar do olhar inquieto de Fred que os observava. O "anarquista" estava inconsoláv el; conversava pouco e bebia muito olhando para ela. Por toda a parte falava-se em guerra; pare cia inevitável. Numa manhã alegre de Maio, Gina abraçou Bianchina que chorava; Carmela, Cristina , Nunzio e Bianchina foram à estação; trocaram endereços, recomendaram muitas vezes: "Escreva mesmo. Não se esqueça." E seguravam a mão de Gin a. "Quando pretendes voltar?" E de súbito, como em todas as despedidas, não acharam mais o que dizer uns aos outros; ficaram olhando e sorrind o; em silêncio. Só Bianchina chorava. Gina e Fre d estavam à janela do trem. Gina tinha os olho s avermelhados e debruçava-se para Bianchina que tinha um lencinho de renda entre as mãos; o len cinho estava úmido. Nunzio afirmava que não ha veria guerra. Gina dizia: - Não chores, Bianchi na. Voltarei um dia, depois da guerra. - Mas qu ando? Quando? Não haverá guerra. Quem disse? - Não sei. Toda a gente diz. Um dia voltarei... - Una voce mi dice che non tornerai piu. - Una v oce? Que voce? - Una voce... Apertou a mão de Gina fortemente. E o trem partiu de repente. No meio dos adeuses e dos apertos de mão, Gina e Fr ed deixaram a cidade, onde se haviam conhecido e sido felizes. Foram diretamente a Gênova, ond e tomariam o navio que os levaria ao Brasil. Qua ndo estavam chegando a Gênova, Fred despediu-se dela: - Não nos conhecemos mais, Gigina. Não se esqueça disso. Todas as vezes que eu tiver opor tunidade, falarei com você a bordo, procurarei v ocê em sua cabine, mas cuidado... Meu pai é mui to rigoroso para certas coisas. Gina concordou, tristonha. Antes do trem parar na estação separ aram-se com um breve beijo. Foram cada um para u m hotel; no dia seguinte, Gina dirigiu-se ao cai s, onde estava atracado o "Giulio Cesare." Sua s malas já estavam a bordo; começou a subir as e scadas quando viu Fred ao lado de sua família, n um dos tombadilhos. Estavam os pais e várias m oças, duas eram irmãs de Fred. Gina passou como se não os visse, mas não pôde deixar de olhar di sfarçadamente para o lado deles; Fred estava rin do e conversando.com uma moça clara e de olhos verdes; com o braço estendido, a moça mostrava- lhe uma parte da cidade. Gina passou, mas Fred nem sequer voltou-se; ela sorriu consigo mesma, um sorriso amargo e doloroso. Durante toda a vi agem, foi assim; viam-se de longe ou às escondid as, rapidamente. Fred que, em Milão era tão natu ral, espontâneo, simples, tornou-se medroso, som brio sempre assustado, sempre se esquivando. G ina ficava às vezes horas inteiras num canto do salão, observando a família de Fred; era uma fam ília austera composta dos pais, duas irmãs e u m menino. As moças tinham duas amigas inseparáve is; as famílias haviam viajado juntas e continua vam sempre em grupo conversador e alegre. Gina tinha medo da mãe de Frederico; era uma senhora alta e magra, cabelos grisalhos, rosto levemente moreno onde se notavam logo uns olhos escuros q ue pareciam olhos de jovem. Vestia-se bem, sem pre de escuro e com muita distinção; vivia ao la do das filhas e acompanhava-as nos jogos e nas d anças à noite. Durante o dia, Fred estava sempr e ao lado da família; as duas moças amigas das i rmãs não o deixavam também; convidavam-no para j ogar, para dançar, para andar à volta do deck depois do jantar. As refeições, sentavam-se à me sa; a mãe das moças raramente deixava a cabine à hora do jantar. Gina percebeu que a moça clara de olhos verdes gostava de Fred; ele disfarçava e fingia-se distraído quando via Gina observand o-o de longe. O irmãozinho de Fred, um menino de dez anos, conversava às vezes com ela, assim como conversava com quase todas as pessoas a bor do. Um dia em que ele estava sozinho no deck, Gi na convidou-o para jogar; o menino não hesitou ; foi sorrindo buscar o jogo e começaram. Uma me ia hora depois, Gina viu a mãe de Fred que vinha vindo para perto deles; ensaiou um sorriso tí mido como a 154 desculpar-se de estar jogando co m o menino; ela não correspondeu e antes mesmo q ue se aproximasse mais, gritou colérica: - Venh a, Dêcinho. O menino aturdido, deixou o jogo e acompanhou a mãe que se dirigiu apressada para a escadinha, desaparecendo; o menino foi atrás de la e nunca mais falou com Gina quando a encont rava, fingia que não a via. As irmãs e as amigas de Fred evitavam-na; se estava num canto do dec k, elas iam para outro canto; às vezes cochichav am e mostravam-na umas às outras com ar de des prezo. Uma delas chamou o criado um dia apressad amente para mudar a cadeira de lugar, só por que Gina distraidamente se aproximara dela. As h oras foram longas para Gina; conversava com algu mas pessoas e passava quase o tempo todo lendo, sentada numa cadeira de lona. Quando o vapor atr acou no Rio de Janeiro, lembrou-se de telefona r à mãe e à irmã avisando-as da sua chegada, mas resolveu não o fazer; preferia desembarcar sozi nha em Santos e desaparecer o mais depressa po ssível. Lembrava que a mãe e a irmã não tinham aparência distinta e Zelinda vestia-se às vezes com roupas de cores berrantes; sentiria vergonha se Fred visse sua família, ainda mais em comp aração com a dele que era tão diferente. Enquan to o navio viajava para Santos, lembrou de casos em que um rapaz de boa família casava-se com um a moça igual a ela. Começou a lembrar onde soube ra de casos assim. Em romances? Mas romances n ão são a vida, são coisas da imaginação. Por mai s que se esforçasse não pôde recordar onde soube ra de um caso semelhante; só se lembrou da his tória da Dama das Camélias que lera quando mocin ha. Entristeceu. Um pouco antes do vapor atraca r, na azáfama da chegada, Fred procurou-a na cab ine para despedir-se; combinaram então o próximo encontro em S. Paulo, no dia seguinte. Ela des embarcou e sozinha, tomou o trem para S. Paulo; dirigiu-se para o Hotel d'"Oeste" no largo São B ento, onde pediu um quarto. Instalou-se e à noit e, foi procurar a mãe e a irmã; residiam à rua Rego Freitas. Gina só encontrou a mãe e a filha de Zelinda que estava com três anos. Zelinda e o marido tinham ido ao cinema. A mãe recebeu-a com certa desconfiança. - Por que não avisou s ua chegada? Assim iríamos a Santos. Zelinda sonh ou uma noite destas que você estava para chegar. Como foi de viagem? Zelinda e Zeca foram ao c inema. O que conta da viagem? Boa? - Zelinda e Zeca? A mãe hesitou, depois começou a rir: - N ão sabe que fizeram as pazes? Faz seis meses que ele voltou pedindo perdão e Zelinda perdoou. Po r causa de Gracinha, sabe? Estamos vivendo todos juntos outra vez. Não acha Gracinha crescida ? Muita gente acha ela parecida com você. Lembra da Pascoalina? Sempre vem aqui, querendo saber quando você estaria de volta. Conta alguma coi sa. Gina abraçou a menina que a olhava com admi ração. Dona Julica queria saber como iam os est udos de canto, se já podia dar concertos, se os concertos davam grande lucro. Gina contou a via gem, os estudos, os passeios, os amigos que deix ara. Falou sobre Bianchina, Nunzio e o "anarquis ta”. Contou que estava hospedada no Hotel d'"Oe ste". Dona Julica fixou-a: - Não vai ter uma ca sa, Gigina? É desagradável viver sempre em hotéi s. Lembra da casa que você tinha na Av. Luiz Ant onio? Creio que vai ter uma casa assim agora, não? Aquilo sim era casa, com boa cozinheira, c riados, automóvel... Gina ficou pensativa e dis se que mais tarde resolveria; mal acabara de des embarcar. Percebeu que a mãe estava aborrecida c omo se algum fato a contrariasse; não manifestou alegria, nem entusiasmo pela sua chegada. A ú nica que parecia contente era a menina; foi busc ar o cachorrinho para mostrar à tia dizendo que havia ganho do pai no Natal do ano passado. O cachorrinho chamava-se Charuto; sabia sentar e d ar boa noite com a patinha. Gina brincou com o c achorro e pôs Gracinha no colo; era hora de do rmir. Continuou a conversar com dona Julica. Às onze horas e pouco da noite, Zelinda e Zeca cheg aram do cinema; ficaram surpreendidos quando vir am Gina sentada num canto da sala de jantar e Gracinha dormindo no colo dela. Com a chegada ru idosa dos pais e com as exclamações do encontro, a menina acordou; quando quiseram levá-la par a a cama, aconchegou-se melhor no colo da tia di zendo que queria dormir ali. Conversaram até mei a noite; dona Julica foi fazer café. Gina tomou- o, saboreando: - Oh! Café do Brasil, feito por mamãe. Não há coisa melhor! A conversa continuo u, animada. No momento de deixar a casa, Gina le vantou-se e levou a menina para a cama, lá em ci ma. Gracinha tornou a acordar, olhou para ela, sorriu e contou que o Charuto uivava todas as v ezes que ouvia o realejo da rua tocar. Gina diss e: - Ah! Como o Charuto é engraçado! Decerto el e não gosta do realejo. Agora você vai dormir be m direitinho. Vamos. Zelinda começou a despir a menina; vestiu a camisola branca com preguinhas no peito. Mostrou a perfeição do trabalho a Gin a dizendo que dona Julica havia feito. Gracinh a perguntou: - Quando você vem agora? - Qualqu er dia eu volto. - Venha amanhã. - Está bom. D urma. Amanhã eu volto. A menina bocejou ruidosa mente e beijou Gina: - Tia Gigina, sabe como é que Charuto faz? - Como.é? - Uh! Uh! Uh! E lev anta o focinho para cima. Uh Uh! - Está bem. Ag ora durma. Feche os olhos e durma. Bem direitinh o. - Você vem amanha para ver Charuto uivar? - Venho. Cobriram Gracinha, apagaram a luz e dei xaram o quarto. Despediram-se. Quando Gina entro u no hotel, procurou na portaria algum recado, a lgum telefonema, algum cartão de Fred. Nada. P iscando porque estava cochilando e havia acordad o de repente, o porteiro sorriu para ela: - Nad a não, senhora. Se tivesse alguma coisa, estava aqui. É aqui que eles colocam os recados. E Fre d prometera. Deitou-se e não conseguiu dormir. S ó de madrugada, quando a claridade do dia começo u a passar através das venezianas, ela adormeceu , o rosto molhado de lágrimas. A vida de Gina transformou-se novamente. Foi morar na Aclimaçã o, numa casa modesta; tomava lições de canto trê s vezes por semana, estudava muito e amava Frede rico. Dona Julica e Zelinda ficaram revoltadas ; chamavam-na de tola, pouco inteligente, temper amento doentio. Diziam que Gina possuía um senti mentalismo de indolente. Era apática. Onde se viu sacrificar-se assim por causa de Fred? Algum dia dar-lhe-ia seu nome, casar-se-ia com ela? N unca. Estava se sacrificando inutilmente, estupi damente. Era bela, moça, tinha todas as qualid ades para triunfar, até talento para música, e n o entanto fechava-se naquela vida de burguesa ig norante, tocando piano e pensando em Fred. Só um temperamento doentio como o dela seria capaz de tal dedicação por nada, pois o que lucrava? U ma mísera casa e um piano. E se ela fosse livre? Teria tudo como já tivera uma vez. Tudo. Pas sou-se um ano. Gina continuou a viver retraidame nte, dedicando-se apenas a Fred. Sofria muitas v ezes, pois havia semanas que ele mal aparecia, n unca a levava a lugares muito freqüentados, ti nha sempre medo que descobrissem o segredo. Ela não contava a ninguém que no fundo do seu coraçã o guardava a secreta esperança de casar-se com ele. No segundo ano percebeu uma leve mudança em Frederico; observava-o quando vinha visitá-la . Parecia o mesmo aparentemente, mas não era. Ha via qualquer coisa entre eles. Um dia Fred con tou que os pais queriam casá-lo com uma menina m uito amiga de sua família; Gina perguntou se era a mesma que viajara com eles da Europa para o Brasil. - Uma clara de olhos verdes? Fred con firmou. A menina era amiga das irmãs e procurava -o muito; o pai já havia falado uma porção de ve zes que ele devia casar-se, a mãe também. Estava numa situação desagradável; não sabia como es quivar-se. Gina lembrava-se da moça; via-a apont ando a Fred uma parte de Gênova, naquele dia do embarque. Perguntou um pouco trêmula: - E você, Fred? O que vai resolver? Ele inclinou-se e de u um beijo rápido na face de Gina: - Se algum d ia me casar, meu bem, será com você. Ela não re spondeu; se falasse, ele perceberia sua emoção. Estavam sentados um ao lado do outro no terraço da casa. A noite caía devagar e o ruído do trâns ito mal chegava até eles num som abafado. Enq uanto imaginava em ser algum dia esposa de Fred, pensava na mãe e na irmã; continuava a auxiliá- las; dava algum dinheiro, dava roupas, vestia a sobrinha. O cunhado ganhava pouco. Muitas veze s Zelinda ia à casa da Aclimação e queixava-se d o marido; Gina ouvia as queixas acerbas da irmã, percebia que eram mais contra ela do que cont ra Zeca, pois se Zelinda sofria, se não tinha tu do o que queria ou de que precisava, era por cau sa de Gina que não dava; Gina que podia dar tudo , como dava antes da ida a Milão. Ela sabia qu e a mãe e a irmã comentavam a viagem de Gina com o um erro imperdoável; deixara tudo para seguir o maestro Campobasso e estudar. O que lucrara? Estudos de canto. E o que lhe adiantavam os est udos se não dava concertos? Não dava concertos, nem nunca daria, não estudara o suficiente para ser concertista; abandonara a arte por Fred. O que ganhara então? Fred. Mas quem era Fred? Não dava a bela vida a que Gina estava habituada, p rendia-a em casa estudando canto. Para que? Am or? Oh! O amor! Quando começou o terceiro ano d e união entre Gina e Fred, este apareceu um dia pálido de cólera na casa da Aclimação. Foi logo depois do almoço. Gina assustou-se: - Que foi? Aconteceu alguma coisa? Ele contou então a disc ussão tremenda que tivera com o pai à hora do al moço; o pai descobrira tudo, não se sabe como e chegara a insultá-lo; ele não negara. Confessara a verdade terminando por dizer que se casaria com ela, estava tratando disso. Uma verdadeira catástrofe. O pai mandara chamar a mãe e quando esta soube das intenções do filho, tivera uma espécie de desmaio, de que sofria às vezes. Caír a no sofá com falta de ar e tiveram que chamar u m medico; uma das irmãs dissera: - Você ainda m ata mamãe. Todos estavam inconsoláveis e a mãe na cama, desesperada. Gina e Fred passaram a ta rde confortando-se mutuamente; sentaram-se no te rraço; Gina inclinou a cabeça sobre o ombro de F rederico. Não disse que estava com medo. Tinha a sensação de que nuvens negras se acumulavam n o céu azul, nuvens tempestuosas e ameaçadoras. Q ue fazer? Dirigir-se a quem? Pediu a Fred que ti vesse calma e esperasse. Quem sabe apareceria uma solução inesperada? Fred sorriu, cético. Não acreditava em milagres. Ou eles se casariam ou ele se separaria da família. Não havia outra s olução. E recostando a cabeça sobre o ombro de Gina, chorou. No dia seguinte, ela foi procurar Pascoalina, a velha amiga que a visitava todas as semanas. Contou tudo. Pascoalina ouviu-a em s ilencio, fumando um cigarro; depois, em vez de consolá-la começou a citar casos idênticos em q ue os rapazes acabavam sempre casando-se com que m os pais queriam. E as companheiras de tantos a nos... Oh! Que fosse para onde fosse... Pascoa lina fez um gesto com a mão: - São assim mesmo. .. Todos iguais. Gina começou a sentir amargura pela vida e por todas as pessoas que se aproxim avam dela; aquele sentimento de felicidade e ter nura desaparecera. Agora só sentia ansiedade, ansiedade e desilusão. E descobriu, decepcionada , que essa infelicidade que sofria, esse sentime nto de falsidade provinham de Fred. Continuaram a jantar juntos todos os dias, a sair juntos, a ficar um ao lado do outro, sentados no terraço estreito que dava para a rua quieta. Viam as lu zes das casas e das ruas, ouviam o rumor surdo dos bondes que passavam longe, continuaram a fi car em silêncio como costumavam, mas ela percebe u que isso se acabaria. Teve intuição. A serenid ade que gozavam era só aparente; era como se f osse uma máscara que os dois colocavam para se i ludirem mutuamente, mas. Gina sabia que sob essa máscara não havia mais serenidade, nem espera nças. Viviam inquietos. Era como se o fogo estiv esse se anunciando dentre cinzas aparentemente f rias; e esse fogo, tinha certeza, seria implacáv el e destruidor. Observava Fred sem que ele pe rcebesse; sentia no olhar, no abraço, nas palavr as que ele pronunciava qualquer coisa diferente, como se o elo da corrente estivesse quebrado, ou frouxo e não os ligasse mais. Toda aquela se gurança em que julgara viver, ruía por terra de repente, impelida por uma força oculta; sentiu o impulso que os separava e percebeu de onde pr ovinha, mas nada pôde fazer. Ficou parada, inert e, como uma pessoa assustada que ouve um barulho e não sabe de onde vem o perigo, sentindo sob re si todo o peso da desgraça. Durante uns dias , ficou só. Fred fora viajar. Uma tarde quente, estava na sala preparando-se para estudar, quand o a empregada anunciou uma visita; Gina disse qu e a fizesse entrar, sem imaginar quem seria o visitante. Levantou-se e viu um senhor de idade parado na porta, um ar austero, uma fisionomia f echada. No primeiro instante pensou: Onde já v i este homem? Eu o conheço. De onde? Sentiu um m al estar como se só aquela presença perturbasse seu equilíbrio. E de repente, sentiu um frio per correr-lhe o corpo todo: era o pai de Fred. Le mbrou-se da viagem e daquela travessia desagradá vel. Convidou-o a sentar-se, ainda perturbada, e tomou o chapéu que ele conservava entre as mã os, desajeitadamente. Ele apenas cumprimentou e sentou-se; olhou à volta toda, pigarreou e fixou -a; era um olhar penetrante e malicioso, parecia atravessar o corpo de lado a lado. Os olhos e ram pequeninos e vivos, desses olhos que vêm tud o dissimuladamente. Gina imaginou a aranha atrai ndo a mosca; suas mãos ficaram úmidas e frias. Houve um silêncio prenunciador de tempestade, d epois o velho perguntou: - A senhora vive com m eu filho há muito tempo? Gina tentou sorrir qua ndo pensou: "É como a "dama das camélias", a "da ma das camélias".” Ele vem impor a separação. A "dama...” - Sim senhor. Há dois anos e meio. S entiu um zumbido nos ouvidos, e ao mesmo tempo c erto alívio. "Foi bom o velho perguntar assim a queima roupa, foi um alívio. O pior passou; depo is que se toca num assunto assim francamente, com tanta calma e cinismo, é porque não há mais cerimônias e tudo vai dar certo. Foi bom até.... Velho insuportável.” O homem colocou uma das m ãos sobre a perna direita e pigarreou de novo; G ina observou a mão; era pálida, cheia, cor de ce ra. Os olhos dele percorreram a sala como a av aliar o que havia de valor ali, quanto o filho d espendia com aquela mulher; fixaram-se no piano. A voz se fez ouvir, cortante, fingindo firmeza: - Pois, minha senhora, vamos diretamente ao fi m; não gosto de rodeios: a senhora precisa deixa r o meu filho. Tudo tremeu diante dela; viu a m ão cor de cera dando voltas no ar, viu a sala gi rar e até o piano parecia ter mudado de lugar. F ez um esforço para se manter firme e suas mãos apertaram o braço da poltrona; percebeu a fazen da esgarçada nesse lugar e lembrou-se de que Fre d falara qualquer coisa a respeito: "Precisamos mandar trocar o pano da poltrona", ou "fazenda ordinária". Fora isso. Fora isso que Fred disse ra. Automaticamente seus dedos apalparam o lugar esgarçado uma porção de vezes. Olhou o velho e reuniu toda sua coragem para responder; precis ava falar qualquer coisa, não podia ficar assim. .. parada. - Mas Fred... Frederico e eu nos que remos, muito há bastante tempo; ele disse que va mos nos casar. Viu o rosto do homem transfigura r-se; ficou pálido e moveu os lábios sem falar. A mão estava tremendo; levantou-a no ar como se fosse batê-la, quase gritou: - Ele disse isso? Ele disse que vai casar com a senhora? Ele... S ua voz estava engasgada, parou um pouco e contin uou: - Pois sim. Ele pode se casar com a senhor a porque não há força humana que possa impedir u m rapaz de fazer loucuras, mas nunca perdoarei. Nem eu nem minha mulher havemos de perdoá-lo. E digo mais: vou deserdá-lo... Tirou um lenço d o bolso e passou sobre a testa rapidamente, em g estos bruscos: - Sim. Vou deserdá-lo. Estava, p revendo isto. Adivinhei. Falava frases curtas, os olhos em Gina. Continuou: - A educação que e le recebeu não devia permitir que levasse essa v ida. Não o considero mais como filho. É um filho ingrato e sem coração. Os conselhos, as advertê ncias, a boa vontade, tudo têm sido inútil, in útil; não ouviu meus conselhos, nem se importou com as lágrimas da mãe. Olhou-a como se quisess e ter certeza de que ela escutava: - A senhora não sabe como temos vivido lá em casa; não sabe o que temos sofrido por sua causa. Mas precisa s aber. Precisa. A senhora foi a desgraça de Frede rico, foi a infelicidade maior que ele teve na vida, na nossa vida também, pois isso nos arras tou. A senhora deve ser inteligente e compreende r porque estou falando assim. A senhora que co nhece o mundo e seus preconceitos, não acha uma loucura o que Frederico está fazendo? O que ele pretende fazer? Pense um pouco nas conseqüências , veja a nossa família, não é possível isso. E u dou quanto a senhora quiser, mas depende da se nhora evitar essa desgraça, essa loucura. Dou qu anto pedir. Gina apertou os lábios e fixou o ve lho de frente; seus olhos brilharam de cólera: - O senhor considera uma desgraça ele casar-se c omigo? É a isso que o senhor está se referindo? Mas eu nunca pensei em casar-me com ele, ele é q ue me falou nisso. Eu nunca esperei que ele se casasse comigo, não pense o senhor que eu quis me casar com Frederico... A mão do velho volteo u no ar; a voz era rouca e terrível quando inter rompeu Gina: - Se ele se casar consigo, nunca o perdoarei. Respirou o ar como se estivesse se afogando e tornou a falar: - Mesmo que eu estej a agonizando, mesmo que eu esteja nos meus últim os momento de vida e Frederico mandar dizer que quer falar comigo, não o perdoarei, não o recebe rei. Os portões da minha casa estarão fechados para ele. Fechados. Não o reconheço como filho. .. Nunca o perdoarei. Ficou de pé na saleta, a mão estendida para Gina como a amaldiçoá-la: - A senhora não compreende que está fazendo a infe licidade dele? Não compreende que esta ligação é a desgraça da nossa vida, a desonra da nossa ve lhice? Ele não poderá viver sem nosso auxílio, sem nosso apoio. Faltando esse apoio, ele fraca ssará. E é a si que ele vai acusar, é a si que e le vai dizer: Por tua culpa! Por tua culpa! E o dedo do velho continuava apontando-lhe o rost o: - Porque tudo passa, minha senhora. Este amo r que a senhora pensa que é eterno, passara tamb ém. Ele será infeliz, sofrerá, ele a abandonará. Esse é o seu fim, ficará abandonada. Fez uma pausa diante do silêncio estupefato de Gina e de u uns passos pela sala. Foi até uma das janelas, parecia que a cólera ia se amainando. Voltou-se : - Há quatro anos esse rapaz era noivo de uma menina das nossas relações, uma menina boa e dis tinta. Depois que conheceu a senhora, tudo termi nou entre eles. Desmanchou o noivado. Começou a faltar ao trabalho, vive uma vida diferente da nossa, vive à parte, não se importa mais com so ciedade, com família. Uma vida amalucada. E tudo isso por quê? Por sua causa. A senhora é a ca usadora de todo esse mal. A menina que era noiva de Frederico está doente em Campos de Jordão; o desgosto foi muito grande e ela enfraqueceu. Eu e minha mulher não temos sossego. Sofremos. T udo por quê? Por sua causa. Somente por sua caus a. Tirou o lenço do bolso e passou novamente p ela testa suada. Seus olhos pareciam úmidos de p ranto. Gina baixou o olhar: "Não, não pode ser. Sinto-me sufocar. O velho não chora. Eu a causa de todo esse mal? Dessa infelicidade tão grand e? Mas eu não sabia, Frederico nunca me contou q ue era noivo... Nunca me contou que eu sou a cau sa de tudo. Como eu poderia adivinhar? Coitada da moça! O que farei agora? O que direi a este homem? Frederico me falou só uma vez.. Falou só uma vez... Depois nunca mais. Mas se ele for emb ora, o que será de mim? Para onde vou viver? C antar? Sim. Vou cantar." Lembrou-se do cachorrin ho da sobrinha que uivava quando ouvia o realejo tocar na rua. "Vou cantar para viver." Sua vo z estava trêmula quando falou: - Mas eu não ten ho culpa; nem sabia que ele era noivo, nunca me contou. O velho exaltou-se novamente: - Como n ão é sua culpa? Como assim? Tudo depende da senh ora exclusivamente. Vá viajar, deixe S. Paulo po r algum tempo, diga a ele que quer viver outra v ida e não esta; depende unicamente da senhora. Houve uma pausa longa. Ele tornou a tirar o le nço e passar sobre a testa, sobre o rosto todo. Guardou o lenço e olhou o chão numa atitude obst inada e melancólica.. Por uns instantes ningué m falou. Depois ela disse com voz um pouco tremu la: - Está bem. Vou ver o que posso fazer, mas creia o senhor que durante esse tempo que vivi c om Frederico, fui boa, leal, honesta. Tão honest a... (ia dizer como sua filha ou sua mulher).. . como uma mulher honesta e casada que só vive p ara o marido e os filhos. Nem Frederico, nem o s enhor, nem ninguém no mundo podem dizer que fa ltei a algum dever... Amei Frederico e ainda o a mo, senão não levaria esta vida que o senhor est á vendo, vida simples modesta, vida de gente pob re, quero dizer, casal pobre, que vive um para o outro... Eu conheço a vida e compreendo o que o senhor deseja. Sei também que não há amor ete rno, tudo passa e desaparece como nós mesmos, e sigo seu conselho. Mal se ouviu quando ela pe rguntou: - Que quer que eu faça? Pela primeira vez os olhos do velho pareciam humanos; olhou-a e falou rapidamente antes que se arrependesse: - Quero que deixe imediatamente S. Paulo. Pagar ei sua viagem. Deixe a cidade o mais depressa po ssível. E o homem pôs a mão no bolso para tirar a carteira. "É horrível isso. Como cedi assim t ão depressa? O que dirá Fred? Então vou fazer a vontade deste homem? Não posso, não posso...” - Então eu vou me embora. Vou para o Rio de Jan eiro. Os movimentos dele eram apressados, nervo sos, mas sua voz havia mudado; estava calmo, sen hor de si: - Vejo que é inteligente e boa. Prom ete deixar a cidade? - Sim. Vou me embora daqui . - Está bem. Pago sua viagem e dou mais alguma coisa, mas não posso dar muito. Lá fora a senho ra não ficaria inativa... Foi como se tivesse r ecebido uma bofetada; olhou para ele. A cólera t ransfigurou-a. O que? O velho agora insultava-a? Porque falara desse modo, se fora correta e c edera tão depressa? Por quê? Velho desprezível e miserável. Tivera pena porque vira lágrimas nos olhos dele e agora ele a insultava. Levantou-se . Ficou de pé na frente dele e falou firmement e: - O senhor é um homem mesquinho e bruto. Sim . É um bruto. Fique com seu dinheiro, não precis o dele. Por que pensa que vivi todos estes anos ao lado de Frederico? Para ter luxo? Para viver a grande vida á qual o senhor se referiu? Nada disso. Porque o amava, fique sabendo. Vivi uma v ida modesta e pobre; não tive vestidos, não ti ve jóias, não tive automóvel, não tive dinheiro. Só tive amor, mas não se vive do amor como não se vive das brisas. Mas eu amava Frederico e dur ante o tempo que o amei, fui tão digna, tão ho nesta como sua filha. (Tivera coragem para falar agora.) Por que vem então me ofender? Por quê? Pois eu não concordei em deixar S. Paulo e seg uir seu conselho abandonando seu filho? Por que me insulta? Sua voz ia se elevando cada vez mai s. Indeciso, a carteira na mão, o velho não sabi a o que fazer. Ela percebeu o gesto dele e apont ou a porta da rua: - Guarde seu dinheiro, já di sse. E deixe esta casa que por enquanto é minha casa. Não preciso do seu dinheiro, nem do senhor . Frederico já tinha me avisado que a gente de le é assim: mesquinha. É por isso que ele se sen te infeliz lá. Vá embora desta casa. O homem vol tou-se rubro de cólera. Levantou a mão como se f osse esbofeteá-la, mas baixou-a outra vez. Fez um gesto brusco guardando a carteira e dirigiu- se para a porta. Na passagem, pegou o chapéu que estava sobre a cadeira, passou pela porta da rua que estava aberta, atravessou o jardim e des apareceu. Gina ficou imóvel durante algum tempo , sentada numa cadeira da saleta; de repente ouv iu os passos da criada que vinha lá de dentro; r apidamente dirigiu-se ao piano e abriu-o; fing iu que estava procurando uma música. Respondeu a o que a criada perguntou sobre o jantar e quando esta deixou a sala, sentou-se na banqueta e can tou em voz baixa "Ideale" de Tosti, cega pelas lágrimas. No dia seguinte, Gina deixou esta ca rta para ser entregue a Frederico: “Fred. Sempr e acreditei numa coisa: no destino das criaturas . Ele é como ferro em brasa que nos marca ao nas cer. É uma força poderosa que cada um carrega co nsigo; e o caminho está traçado de antemão. Q uando nos conhecemos em Milão, acreditei que nos sas vidas se ligassem para sempre. Por quê? Por você? Por mim? Não sei por que, na verdade. Mas hoje os laços estão desfeitos, a corrente se q uebrou. Nada pode existir entre nós. Ver um hom em colérico entrar na minha casa, apontar o dedo para meu rosto e dizer: "A senhora é a desgraça da nossa família. Será uma desgraça se meu filh o casar-se consigo.” Você acha que eu posso s uportar essa idéia de ser a desgraça de alguém? Não de uma só pessoa, mas de uma família inteira ? Não. Continue onde está, nas alturas onde se mpre esteve; siga seu caminho que é bem diferent e do meu, ouça os sábios conselhos de seu pai, v eja as lágrimas que correm dos olhos de sua mãe. Eu continuarei onde sempre estive, no caminho pantanoso. Não tenha pena de mim e nem diga: "C oitada!" Não sou coitada de ninguém e nem estou sofrendo. Acho que seu pai tem razão. Como pos so eu ousar empanar o brilho dos seus brasões? Fred, você conhece uma flor que dá na beira dos rios, nos "lugares pantanosos”? É uma bonita flo r, mas se você colocá-la num vaso de cristal com água pura, ela não agradece, empalidece e mor re em poucas horas. Não se acostuma nos salões f echados, onde as rosas e as flores dos jardins b rilham e perduram. Fred, eu sou como a flor dos charcos. Se me casasse com você, levaria comigo um pouco da lama do lugar onde nasci e sua famí lia me odiaria. Eu creio que não suportaria os salões perfumados onde vivem as outras mulheres , esses salões onde você está acostumado a viver . Não. Morreria de tédio ou abandonaria você, da ndo à sua família um desgosto irremediável. S eu pai tem razão. Se eu me casasse com você, não poderia levar comigo as três qualidades que sua família exige, e sem as quais, acha que não pod e haver felicidade: nascimento, dinheiro, nome . Não tenho nada, Fred.. Aquele dia em que dese mbarcamos em Santos, não quis dizer a você que n ão avisei minha gente para não vê-la tão miseráv el no meio das outras gentes que estavam lá, a sua também. Desde o tempo em que passei fome, adquiri uma filosofia chinesa para o irremediáve l. Amamo-nos. e fomos felizes; ficou a lembranç a. Isso ninguém nos tira e basta. Sempre pensei que o fim seria esse, mas dizem que a esperança é a ultima flor que morre no coração humano e eu a conservei até o dia em que seu pai me disse aquelas palavras cruéis. Não me procure, Fred, seria inútil. Não tenha ódio em mim, nem piedad e. Afirmo a você que não estou sofrendo. Vou ca ntar como as cigarras e esquecerei.. Lembrarei a lgumas vezes dos nossos sonhos, com certeza, e d o quanto fomos felizes. Veja bem que escrevi "a lgumas vezes" e não sempre. Adeus e felicidades . GIGINA. Quando Frederico chegou de viagem di as depois e foi procurá-la, encontrou a criada n uma casa vazia, com a carta na mão. XI No dia em que resol veu desaparecer da vida de Frederico, passou tod a a noite sem dormir e mentalmente preparou a ca rta; no dia seguinte, às seis horas da manhã, escreveu-a. Depois juntou todas suas economias, determinou quais os móveis e as roupas que teria m de ir para a casa de dona Julica, e foi procur ar Pascoalina. Quando desceu do táxi, às oito da manhã, à porta da casa da amiga, não sabia ai nda o que iria fazer. A criada que a recebeu avi sou que Pascoalina ainda estava dormindo; Gina disse que esperaria na sala de jantar. A criada levou-lhe as malas lá para dentro e colocou-as na porta da copa, depois perguntou com solicitud e se queria café; Gina agradeceu, já havia tom ado, não queria nada. Sentou-se no sofá entre as duas almofadas de seda e esperou; viu a criada passar várias vezes com a vassoura e o pano de pó sob o braço; todas as vezes que olhava para Gina, sorria. Às dez horas perguntou-lhe se quer ia ler o jornal, nem se lembrara de oferecê-lo. Gina aceitou. Às onze horas cansada de estar s ó, levantou-se e foi à cozinha pedir um copo d’á gua; depois lembrou-se de telefonar à mãe. Pergu ntou lhe se os móveis haviam chegado. Dona Jul ica admirou-se e levantou a voz: - Que móveis? Compraste algum móvel? Gina impacientou-se: - Uns móveis que mandei para aí. Guarde na garage e não se incomode comigo, depois explicarei tudo . Vou viajar. Desligou e voltou para a sala de jantar; espiou a gaiola com o pintassilgo; havia dois agora. A criada apareceu, tornou a sorrir e explicou que a fêmea tinha botado dois ovos. - Quer ver os ovinhos? São pequeninos assim... Nesse instante, ouviu a voz de Pascoalina; abr iu-se uma porta lá em cima e Pascoalina gritou: - Café, Ângela! Depois um bocejo ruidoso. Gina subiu a escada apressadamente; encontrou a amig a na porta do quarto, despenteada, pálida e enve lhecida. Olhou admirada para Gina: - O que é is so? A esta hora? Gina respondeu, desorientada: - Não é muito cedo. Fugi simplesmente. - Hein? Fugiu? De quem? De Fred? Ele te bateu? Gina ia confirmar, mas ao ouvir a ultima pergunta, grito u: - Fugi porque o pai dele foi lá em casa e fe z um barulho danado. Pascoalina riu: - Briguin ha de namorados? Oh! Como é romântico! - Não é romântico. Fugi para sempre. Rompemos definitiva mente. Ele não sabe ainda, está viajando,.. - M as por quê? Que é que houve? Meu Deus!, Não ente ndo nada. - Por causa dele... A família me odei a. Pascoalina dirigiu-se ao banheiro: - Venha cá; eu vou escovar os dentes e você me conta. N ão sei tomar café com este gosto de corrimão de escada na boca. Conte tudo. Deixou a porta do b anheiro aberta; despejou dentifrício cor de rosa num copo, encheu-o de água e pegou a escova de dentes falando sempre: - Mas, escute, brigaram? Ele disse alguma coisa? Conte tudo, Gigina, vo cê está com uma cara... Ah! Ele está viajando, e ntão não brigaram, mas conte... Encostada no ba tente, Gina contou: - O pai de Fred foi lá em c asa e me desfeiteou, disse as últimas. Não agüen to mais; fugi e não quero saber dele nunca mais. Pascoalina escovava os dentes furiosamente; re smungou espumando: - Velho miserável. O que tin ha ele de ir lá? E depois? Inclinou a cabeça pa ra trás e gargarejou. Gina tornou a falar: - Vo cê sabe, a gente vai agüentando, mas chega um di a que não agüenta mais... Eu sabia que a família de Fred me odiava, mas agora é diferente, foi p ior. O velho foi fazer barulho lá em casa. Pa scoalina olhou para ela, com a boca ainda cheia de espuma: - Mas agüentando o que? Ele te batia ? Gina ofendeu-se e tomou uma atitude desespera da: - Não Pascoalina. Agüentando a oposição da família; há muito tempo eu sei disso, ele mesmo me contou. E agora o pai foi lá em casa e disse que eu sou a desgraça da família.... Pascoali na bochechou com ruído; voltou-se: -Desgraça de quem? Gina gritou: - Da família. Família inte ira dele. - E o que você tem com isso? Com o pa i dele? Com a família dele? Não dá confiança, tr ouxa. Gina não respondeu; ficou olhando o rosto largo da amiga que de pé, na frente dela, enxug ava-o. Pensou consigo: "Pascoalina é boa, mas n ão compreende certas coisas. Se eu pedisse a cam isa, por exemplo, compreenderia." Pascoalina ba teu-lhe no ombro: - Vamos, vamos tomar café. D esceram. Sentadas num canto da mesa da sala de j antar, uma na frente da outra, conversaram enqua nto Pascoalina tomava café. Quando Gina parou de falar, ela perguntou enxugando a boca com cui dado: - Então é por isso? Não seja idiota. Dê o fora nessa gente toda e vá embora com Fred. Sum am-se daqui. Vá morar no Rio, em Belo Horizonte, em Pequim, em qualquer lugar... - Mas ele tr abalha com o pai, não pode deixar S. Paulo. O pa i vai deserdá-lo se ele não me deixar. Vai amald içoá-lo. Pascoalina catava pedacinhos de pão de sobre a toalha e levava-os á boca, mastigando. muitas vezes com os dentes da frente: - Então, bolas! Que quer que eu faça, se não me aceita os conselhos? - Quero ficar escondida aqui em sua casa até resolver minha vida; não quero que nin guém saiba, nem minha gente e muito menos Fred. Eu pago, não quero ser pesada a ninguém. E voc ê vai jurar que, se encontrar Fred, não dirá nad a. Jure. - Juro. Lá em cima tem um quarto vazio , se quiser tome conta dele. Ângela! Arrume o qu arto pra dona Gigina. Onde está sua mala? Mas se você falar outra vez em pagar, eu te ponho pr a fora. - Minhas coisas estão aí na copa; meus vestidos e minhas jóias. Alguns móveis que troux e da Europa, mandei pra casa de mamãe. Pascoali na sacudiu os ombros; - Faça o que quiser... Ma s não seja muito burra. Piscou para Gina: - Te m muita gente que fala em você até hoje. Assim.. . olhe (juntou os cinco dedos da mão direita). S e você quiser, pode ganhar um dinheirão. Gina n ão respondeu. Ouviu a criada subir com as malas e foi auxiliá-la; estenderam a cama e arrumaram os objetos principais. Pascoalina disse que ia a lmoçar na cidade; à uma hora, despediu-se e sa iu. Durante algum tempo, Gina ficou sentada dia nte da janela, pensando. Estava outra vez com a vida sem rumo. Iria trabalhar, fazer alguma cois a. Lembrou-se de aprender datilografia, aprend eria em três ou quatro meses, depois se empregar ia. Arranjaria um emprego decente; tantas moças faziam isso. Trabalharia. A criada apareceu perg untando se ela queria almoçar; respondeu que a ceitaria qualquer coisa. Desceu com a criada e s entou-se à mesa da cozinha; comeu arroz, batatas e um bife; goiabada com queijo e café. A cria da contou que Pascoalina raramente almoçava; jan tava quase sempre; mas às vezes também não, pois ficava na cidade até tarde. Perguntou se ela qu eria mais alguma coisa e se jantaria lá, Gina disse que preferia uma xícara de café com leite ao jantar; Ângela protestou: - Não senhora. Tem os sopa e assado todos os dias, venha ou não ven ha dona Pascoalina. Subiu a escada dizendo que ia terminar o arranjo das coisas; entrou no quar to estreito, sentou-se na cama e sentiu-se de re pente, cansadíssima. Lembrou-se de que quase n ão dormira na noite anterior; recostou-se no tra vesseiro para descansar e dormiu até seis horas. Acordou um pouco assustada e recordou-se de tud o outra vez; sentou-se na cama, pensando em qu e iria fazer. Ouviu uma porta bater e os passos de Pascoalina subindo à escada; acendeu a luz e abriu a porta. A amiga apareceu diante dela, a s faces vermelhas como se tivesse bebido muito: - Escute, Gigina, você continua com suas idéias ? Vamos passear de automóvel. Temos uns amigos e sperando aí no portão. Vim buscar meu casaco, va mos... Gina olhou-a escandalizada: - Já disse que não, Pascoalina... Não quero sair, não quero que ninguém saiba que estou aqui. Pedi a você e você jurou. - Está bem. Está bem. Ninguém sabe . O que pensa que eu sou? Linguaruda? Fez um ro sto amuado e correu para o quarto, gritando: - Faça o que quiser, mas também não seja idiota. A posto que você vai se arrepender um dia. Oh! Se vai. Gina deu uns passos atrás dela: - Você ju rou, Pascoalina. - Eu sei não precisa lembrar. Mesmo que. eu beba, sei cumprir meu dever... Vou trocar de vestido e levar o casaco, pode ser qu e faça frio. Penso que vamos até Santos.., Lá lá ri lá... lálárilá. Minutos depois, Pascoalin a tornou a passar; trocara de vestido e levava u m casaco sobre os ombros. Falou para Gina. - Ol he, pombinha, Ângela vai te dar jantar, ouviu? Fique aí rezando bem direitinho. Até logo. Depo is que Pascoalina saiu, Gina voltou para o quart o, alisou as cobertas, tirou uns objetos da mala pequena e pôs sobre a mesa de toalete: "Este, F red me deu em Milão, quando nos conhecemos... Isto foi a bordo; e este perfume onde foi mesmo? Ah! Ele trouxe do Rio uma vez, agora me lembro. " Colecionou tudo em cima da mesa e ficou olha ndo; depois penteou os cabelos. A criada subiu e perguntou se queria que arrumasse a mesa na sal a de jantar; Gina protestou: - Não, não, eu jan to na cozinha mesmo. - Então quando quiser; tá pronto. Ela desceu e sorriu para a criada; havi a mais duas pessoas na cozinha. Ângela explicou que uma era amiga, outra era irmã mais moça; tra balhavam numa fábrica de meias e passavam lá t odas as tardes para auxiliá-la. Gina pensou que decerto jantavam à custa da amiga. Sentia-se tím ida e infeliz, comendo sob os olhares das três m ulheres. Tomou a sopa, a cabeça baixa, sem fal ar; depois comeu um pedaço de carne assada com s alada de agrião. Ângela confessou que adorava ag rião; admirou-se de Gina comer tão pouco. Deix ou a cozinha; foi para a sala e sentou-se no sof á; estendeu as pernas e ficou pensando. Depois l embrou-se de que não tinha mais cigarros; pediu a uma das moças que fosse comprar. Fumou diant e da janela aberta que dava para o jardinzinho. Andou pela casa toda; foi até a sala de jantar, ao terraço, espiou os pintassilgos, voltou à s ala da frente; ouviu o som das vozes animadas na cozinha e o ruído dos talheres sobre os pratos. Jantavam alegremente despreocupadas. E ela qu e iria fazer? Espiou as horas: oito e meia. Dece rto Pascoalina nem jantara ainda. Subiu devagar, contando os degraus. Acendeu a luz do quarto, d eitou-se e fumou outro cigarro: "Amanha vou co meçar vida nova. Amanhã cedo, enquanto Pascoalin a estiver dormindo, vou procurar uma escola de d atilografia. Amanhã às oito horas.” Às dez hora s, resolveu dormir. Deitou-se e apagou a luz. Um a hora depois, tornou a acender e espiou as hora s. "Pascoalina não volta tão cedo para casa; não tenho sono. Onde estará Fred? Terá voltado?” Tornou a ficar no escuro. Lembrou-se do dia em que conhecera Fred em Milão na casa do maestro C ampobasso. "Ficava em Sempione, lembro-me tão be m, perto do Castelo Sforzesco. Fui com Fred vi sitar o Castelo. Fred disse: Imagine só se a gen te vivesse naquela época? E eu respondi: Seria m uito interessante. Eu com aquele vestido verme lho... Ele deu risada e disse: Eu sentado naquel a cadeira... Eu com este sapato de veludo... Eu com esta espada na cintura ... Eu... Fred era tã o engraçado.” Cada um dizia uma coisa; Gina riu -se ao recordar. Dormiu mais tarde e acordou às quatro horas, assustada. Acendeu a luz estranhan do o quarto, depois fumou um cigarro. Fumou ou tro. Abriu a janela e atirou os cigarros meio qu eimados no jardim. Olhou o céu, o casario todo m ergulhado na escuridão; deitou-se outra vez, mas não conseguiu dormir. Começou a pensar em Bia nchina; recebera uma carta da amiga seis meses a ntes; contava que ia cantar num teatro de Turim; nem se lembrava se respondera essa carta. Lem brou-se do "Conservatório Musicale" e as duas ca minhando pela "Via Delia Passione": as aulas, os professores, as gargantas repetindo "Ahs!" uma porção de vezes. Às sete horas, tornou a dorm ir e às oito menos um quarto, deu um pulo fora d a cama como se tivesse perdido a hora. Vestiu-se rapidamente, desceu, tomou café e ia sair qua ndo se lembrou de procurar o endereço da escola de datilografia. Tomou a lista telefônica, escre veu o endereço numa ponta de jornal e saiu, apre ssada. Matriculou-se e começou a aprender no me smo dia. Usava o chapéu caído sobre os olhos e o s vestidos mais modestos que possuía, para não s er reconhecida; resolveu também usar óculos. A ndava depressa, a cabeça baixa; voltava para a c asa da amiga, depois de duas horas de aula, arru mava o próprio quarto e ia ler revistas que co mprava todos os dias. Pascoalina perguntava à ho ra do almoço ou do jantar: - Não mudou de idéia , pombinha? - Não. A amiga sacudia os ombros e olhava-a com ar de pouco caso; Gina percebeu qu e a outra compadecia-se dela, mas, ao mesmo temp o, desprezava-a. Na primeira semana, à tarde, o telefone tocou; era dona Julica perguntando se não tinha noticias de Gina; queixou-se de que a filha parecia doida; largara casa, Fred, tudo e desaparecera. Onde estaria? Com o fone na mão , Pascoalina piscou para Gina e respondeu: - El a me disse que ia para o Rio de Janeiro, dona Ju lica. Não sei mais nada; penso que volta logo. - Foi fazer o que? - Negócios... -E nos abando na desse jeito? Criatura ingrata, sem c oração. Falou mal da filha durante algum tempo. Nessa ta rde, Gina foi vender um dos seus anéis; Pascoali na daria o dinheiro a dona Julica, dizendo que recebera do Rio. Mas nessa tarde, enquanto Gina estava fora, negociando a venda da jóia, Fred d esceu do automóvel em frente à casa de Pascoal ina e bateu com força no portãozinho; Pascoalina recebeu o rapaz desesperado. Ele subiu os degra us da escada do terraço de dois em dois, entrou pela sala a dentro e apertou o braço de Pascoa lina que estava pronta para sair. - Para onde e la foi, Pascoalina? Você deve saber, para onde? Tinha olheiras, os cabelos despenteados caíam-l he sobre a testa; toda sua aparência era neglige nte e seu olhar aflito. A palidez acentuara-se; os lábios pareciam brancos. Pascoalina fitou-o com calma procurando não dar a perceber que sab ia tudo; fez um gesto compungido: - Ela me tele fonou que ia para o Rio de Janeiro, Fred, e me f alou de uma visita que seu pai fez a ela. Desgos tou-se muito e resolveu fugir, ir embora, sumir de sua vida. Creio que foi por causa dessa vis ita. Fred amassou o chapéu entre as mãos nervos as: - Mas por que, Pascoalina? Eu sei da visita do velho, mas não tenho culpa, ela sabe que não tenho culpa. Ela sabe que nos queremos muito, a pesar de tudo. Eu não fiz nada, nada. Pascoal ina colocou uma das mãos sobre o ombro do rapaz: - Escute aqui, vamos sentar primeiro. Venha cá no sofá; dá aqui o seu chapéu. Deixe primeiro v er um pouco de vinho para tomarmos, espere um in stante. - Foi lá para dentro e ordenou a Ângela que ficasse no portão esperando; se visse dona Gigina, avisasse-a da visita e lhe dissesse que esperasse em qualquer lugar; e Pascoalina fez um gesto mostrando a esquina: - Olhe, ali na ve nda do seu Manoel. Tirou dois cálices do armári o e uma garrafa de Moscatel; levou para a sala e encontrou Fred com a cabeça entre as mãos, em a titude de desalento: - Não fique assim, Fred. T udo há de dar certo, tenho uma secreta esperança . Beba isso. Beberam dois cálices cada um; entã o ele tirou a carta de Gina de dentro do bolso d o paletó; alisou-a um pouco, pois estava todo am arfanhada e deu a Pascoalina para que a lesse. Ela leu-a fingindo muita atenção; Fred tirou um cigarro da carteira e ofereceu-lhe outro. Pergu ntou: - Então? Pascoalina sacudiu a cabeça, de sanimada; tirou uma baforada e olhou Fred; o vin ho havia-lhe posto manchas rosadas na pele, mas os olhos estavam febris, encovados. Tornou a p erguntar: - Então, Pascoalina? Que achas? - Ac ho que devemos ter calma, Fred. Havemos de encon trá-la, ou ela mesma há de se cansar e voltar. E la sempre teve a cabeça dura, duríssima, é verda de, mas ela há de raciocinar e ter juízo outra vez. A fisionomia dele animou-se a essas palav ras; contou: - Eu estava de viagem e não sabia de nada. O velho me fez uma traição indo lá na m inha ausência. Quando volto, encontro tudo vazio , a besta daquela criada com uma carta na mão. Diz que não sabia nada, nem para onde Gigina fo i, nem o que ela disse, nada. É possível isso? S ó diz que Gigina chamou um táxi, pôs as malas de ntro e mandou tocar, mas a idiota não sabe par a onde, não ouviu nada. Ela embarcou com certeza e, pelo horário, foi para o Rio. Ninguém me tir a da cabeça que ela embarcou no rápido das set e horas para o Rio. Enfim deixou S. Paulo, porqu e se ela ficasse aqui, eu descobriria. Pascoali na apertou os lábios. - Seu pai fez muito mal, Fred. Estragou tudo. Não precisava ir ofendê-la daquela forma; foi isso que doeu. Gigina é sens ível, eu a conheço bem, conheço-a há quase vinte anos. Ele ficou de pé e falou nervosamente: - Mas como eu poderia adivinhar que o velho ia fa zer isso? Tive que deixar S. Paulo por uns dias, mas quantas vezes viajei e encontrei tudo bem n a volta! Quase morri, Pascoalina; depois de ta ntos anos... Há duas noites que não durmo. Você sabe, o velho ficou danado porque eu falei em ca samento; antes casasse na surdina, ninguém fal aria. Agora... Não tenho culpa se o velho fez i sso, não tenho culpa. Passeou pela sala de um l ado para outro, as mãos nos bolsos: - O que me aconselha? Procurá-la no Rio de Janeiro? Pascoa lina hesitou um momento: - Ela me telefonou que ia para o Rio, mas... como hei de saber? Teria mesmo seguido para lá? Fred estava debruçado ao lado dela, todo trêmulo: - Que disse ela? Repi ta tudo, Pascoalina, por favor. Ela disse que v oltaria? Pascoalina começou a falar pensando qu e se Fred subisse a escada e entrasse na segunda porta à direita, encontraria os chinelinhos ver des de Gigina ao lado da cama, o roupão verde claro dependurado atrás da porta, as roupas, o p ente, os perfumes, os grampos, o cheiro de Gigin a... - Tome outro cálice de vinho. - Não. Obri gado. - Ora, Fred, bem que precisamos disto. Be ba. Tomaram novamente; ele então começou a fala r sobre o amor que tinha por Gina; não poderia v iver sem ela, era capaz de se matar se não a enc ontrasse. Pascoalina apertou-lhe um braço. - Não diga isso, por favor. Ele levantou-se num í mpeto: - Sou capaz de me matar, fazer uma loucu ra, afirmo-te, Pascoalina. Juro. Quase enlouqueç o quando me lembro que ela foi embora. Sentou-s e outra vez no sofá ao lado dela e inclinando a cabeça para a frente, escondeu o rosto entre as mãos e chorou. Os olhos de Pascoalina encheram-s e de lágrimas; falou com a voz traspassada de ternura: - Tenha coragem, Fred. Peço a você que tenha coragem. Como eu sinto isso que está acon tecendo; eu que sou tão amiga de vocês dois que acompanho tudo desde o princípio. Lembra-se, F red, quando chegaram da Itália? Fui visitá-la... E Gigina me disse ao ouvido: Esse é pra toda a vida, Pascoela. Esse era você; lembro-me tão bem . Abraçou-o pelos ombros e chorou com ele; fica ram assim uns instantes; depois ela afastou-se e deu-lhe um tapinha no braço : - Também com ess a oposição da família, é triste mesmo, Seu pai, sua mãe, suas irmãs, seu irmão, sua noiva. Tudo isso mortificou-a. Ele levantou a cabeça, indig nado; havia sinais de lágrimas em suas faces: - Mentira. Não sou noivo; mentira do velho. Fica ram um instante em silêncio; de repente ele enca rou Pascoalina: - Como é que você sabe tudo iss o? Estiveram juntas? Pascoalina sentiu-se corar ; gaguejou: - Pelo telefone, Fred. Tudo foi pel o telefone, antes de Gigina sumir. Nem a vi mais ... - Contou tudo isso por telefone? Levantou- se para jogar fora o cigarro. Ela continuou: - Levou uma boa meia hora falando comigo; contou t udo, tudo. Depois não soube mais nada, disse que ia embarcar naquela noite... - Noite? Ela não foi pelo rápido? Onde passaria o dia? - Não. Di sse que ia embarcar naquele dia; me enganei. Com certeza foi naquela hora mesmo. - Falou com vo cê de manhã? - Falou. - Para onde será que ela foi? Não deixou um sinal? - Nada. Disse apenas que me escreveria. Ele recomeçou a passear pel a sala: - Se ela mandar o endereço ou se você t iver alguma notícia dela, me avisará? - Natural mente. Você será a primeira pessoa a saber. - E ntão eu já vou; embarco hoje à noite para o Rio. Vou contratar uma agência para me auxiliar a en contrá-la; hei de encontrá-la, custe o que custa r. Tem aí algum retratinho de Gigina? Parecia mais calmo, na certeza de encontrá-la. Pascoali na pensou durante algum tempo e foi lá para dent ro: - Creio que tenho um, espere um pouco. Vol tou com um instantâneo minúsculo onde parecia o rosto das duas: ela e Gina, risonhas, os braços entrelaçados. Fred aproximou-se da janela e fix ou o instantâneo durante algum tempo: - Está pe queno, mas serve. Posso levar? Colocou o retrat o cuidadosamente na carteira; estendeu a mão a P ascoalina: - Obrigado por tudo e até breve. - Até breve e seja feliz. Ele desceu a escada do jardim e antes de entrar no automóvel, fez um ge sto amistoso. Ela gritou-lhe: - Coragem! Ângel a passeava na calçada de um lado a outro; ele de bruçou-se na janelinha do carro: - Quer aprovei tar? Vou à cidade. - Obrigada. Estou esperando uma amiga. O carro partiu. Em vez de sair, Pas coalina esperou pela amiga. Quinze minutos depoi s, Gina entrou com as feições animadas, mostrand o o dinheiro que recebera com a venda do anel. Pascoalina contou tudo; sentia-se revoltada com a calma da amiga: - Isso não pode continuar as sim, Gigina. Tenho dó do rapaz; dá pena vê-lo. M ordi os punhos de raiva de mim mesma, por enganá -lo desse jeito. - Então você vai morder os pun hos a vida toda porque ele nunca mais me verá. Levantou a voz: - Que quer que eu faça? Como co ntinuar a viver com ele? Com esse ódio sobre min ha cabeça? E viver assim até quando? Um dia ele me abandona e casa-se com alguma moça... E eu fico sozinha. Não. Preciso refazer minha vida de sde já. Recomeçar de novo. Será para a felicidad e dele, eu te juro, Pascoalina. Há muita distânc ia entre nós dois. Pascoalina continuava indig nada : - Eu mentindo desse jeito... Você podend o entrar de um momento para outro... Ele chorand o nesse sofá. É insuportável a situação... Você nessa calma animal. - Eu vou então para uma pen são onde ninguém me conheça. Não se incomode tan to assim. - Não seja burra. Agora vem com a man ia de escrever a máquina. Fique aí onde está, nã o estou mandando-a embora, faça como entender, m as passei apuros hoje por sua causa. Oh! Se pa ssei. Acendeu outro cigarro e continuou: - Por que esses ares de donzela ofendida? Se Fred apa recer aqui outra vez, não sei o que fazer. Franc amente... Gina saiu da sala resolvida a mudar-s e. Por intermédio da amiga, mandou o dinheiro do anel para a mãe e dois dias depois deixou a cas a de Pascoalina; foi para uma pensão modesta n o Largo do Cambucy. Contou que viera do interior para estudar e alugou um quarto pequeno que dav a para uma área escura. Não deixou endereço a Pa scoalina. Vendeu seus vestidos e casacos mais finos; ficou com pouca roupa e algumas jóias que trazia embrulhadas dentro da sua bolsa de couro preto. Um mês depois, telefonou para a amiga; Pascoalina estava furiosa. Fred ia lá todas as s emanas atrás de noticias; fora ao Rio duas vezes , estivera duas vezes em Santos, procurando. D ona Julica estava desesperada, sem dinheiro; só perguntava: "Para onde teria ido aquela maluca?" Estava devendo no empório, açougue, médico. A m enina estivera doente e não haviam pago nem fa rmácia, nem médico. O Osório também aparecera em casa de Pascoalina; contou que estava devendo m ais de um conto de réis, pois Gina cessara de repente de dar a mesada e ele ficara atrapalhado . Como viver assim? Pascoalina implorou: - Você precisa aparecer, Gigina. Até quando vai viver assim como um bicho do mato? Precisa aparecer, v iver. Isso não é vida. Gina prometeu tomar pro vidências e desligou o telefone; foi para o quar tinho, deitou-se e ficou pensando. Que fazer? T irou os óculos e enxugou os olhos. Estava adiant ada em datilografia, mas ainda não poderia procu rar emprego; e na tarde anterior, haviam-lhe dit o que o máximo que poderia ganhar era 100$00. Talvez 120. Como sustentar toda aquela gente que dependia dela, com tão pouco dinheiro? Lembrou- se do seu irmão Pepino e das misérias que ele passara no circo. Uma vez Pepino contou a histór ia de um cavalo que pegou fogo. "O circo foi par a Ribeirão Preto fazer uma temporada. Na noite d a estréia, estava uma enchente danada, o filho do diretor ia aparecer montado no cavalo e tinh a de atravessar um circulo de fogo. No momento e m que ia entrar no picadeiro a iluminação era a querosene) o cavalo bateu num lampião e o quer osene esparramou na garupa do animal e nas roupa s do moço. Então, quando os dois entraram, o pov o tremeu de entusiasmo, o cavalo era que nem t ocha correndo; pulou e passou pelo círculo mais de uma vez, depois foi lá para dentro e o direto r jogou a casaca em cima dele para apagar o fo go. O moço ficou doente, mas sarou; o cavalo mor reu das queimaduras. O povo não gostou do circo porque queria o cavalo de fogo todas as noites e o cavalo não apareceu mais. O povo gritava: " Queremos o cavalo de fogo! Queremos o cavalo de fogo!" A temporada fracassou e Pepino voltou mai s pobre ainda. Gina pensou: Coitado! Uma outra vez, (Pepino contava fazendo muitos gestos) hav ia dois palhaços irmãos que trabalhavam juntos t odas as noites. E uma noite, oh! uma noite, o circo estava cheio assim e todo o mundo queria o uvir as piadas dos palhaços. Eles eram tão engra çados... Então veio o primeiro e começou a fazer graça. Sempre era assim; no momento em que di zia esta frase: "Tenho um irmão muito burro cham ado Zebedeu", entrava o outro irmão e diziam coi sas estupendas, um para o outro. Pois bem, nes sa noite de que estou falando, oh! nessa noite, o primeiro entrou e falou, falou, falou, depois disse a frase que era a senha para o outro entra r. Nada. O outro não apareceu. Ele olhou para os lados e viu o diretor fazer sinal, os emprega dos fazerem sinal, os colegas fazerem sinal para ele parar de falar, mas ele não entendeu e nã o parou. Pensou que o irmão estava pregando uma peça e continuou a contar piadas sozinho e a diz er a frase: "Meu irmão Zebedeu é muito burro..." Enfim ele teve uma saída: "Vou ver o que acon teceu com o burro do Zebedeu". Não te digo nada. Que noite! Encontrou o irmão morto, estendido n o camarim. No momento em que ele estava pronto para entrar em cena, com a cara toda pintada, b umba! - caiu com um colapso. Morto. O mais engra çado você não sabe. O primeiro pintou a cara c om a boca até aqui para o povo rir e agora estav a chorando: "Meu irmão! Meu irmão está morto, me u Deus!" Mas a cara estava rindo, coitado! E tod os tinham vontade de rir quando olhavam para a cara dele. Depois ele limpou a pintura do rosto do morto, sempre chorando com aquela boca que r ia, de uma orelha a outra. Oh! Palhaço engraça do! Até chorando ele fazia rir!” De repente, Gi na lembrou: "E se eu fosse cantar? Poderia ganha r dinheiro cantando. Não. Minha voz ainda não es tá firme. E depois cantar aonde? Nalgum teatro o rdinário? Se Pepino fosse vivo, talvez me pude sse auxiliar.” As manhãs de segunda feira, eram animadas na pensão; todos contavam onde haviam estado na véspera, o que tinham visto, os passei os feitos. Havia a contramestra de uma casa de modas, cuja família residia no interior; havia o professor de matemática, de óculos, sempre mui to, sério; havia o caixeiro-viajante, fazedor de graça. Tomavam café na mesma mesinha todas as manhãs, servidos por uma negrinha que a contram estra chamava em voz baixa de "fedorenta." O pro fessor de matemática gostava de conversar com Gina; sabia que estava sozinha em S. Paulo e sua família residia no interior e que Gina procurar ia emprego depois de tirar diploma na escola de datilografia. Passava o lenço nas lentes dos ó culos e falava pausadamente: - Olhe, dona Georg ina, talvez eu arranje o emprego de que lhe fale i outro dia. Ontem estive com a pessoa indicada. Não gostava de citar nomes, nunca. Gina ouvia- o dizer: "Fulano", ou "pessoa indicada"; às veze s quando estava muito animado, dizia "beltrano". Gina levantava a cabeça da xícara do café: - Muito obrigada, seu Rezende. Essa pessoa vai pre cisar mesmo de datilógrafa? - Vai. Penso que é negocio arranjado. A contramestra fazia uma car eta e dizia baixinho: - A manteiga está ruim ho je outra vez. Intragável. Nem acredito quando m inha família mudar para S. Paulo. Nem acredito mesmo. O caixeiro-viajante piscava para Gina: - Então terá manteiga sem ser rançosa, hein, don a Semiramis? E se fossemos ser pensionistas de d ona Semiramis? - Quem sabe. Nem sei como agüent o isto. Reclamava sempre. O professor de matemát ica voltava ao assunto; queria se fazer valer: - Não foi muito fácil convencê-lo, dona Georgina . Ele tem um pedido antes do meu. - Quem, profe ssor? - A pessoa indicada, a de que lhe falei. - Ah! Sim. Será que o senhor arranja assim mesm o? - Quase certeza; em todo o caso, farei o pos sível. Passou um bom dia ontem, dona Georgina? - Passei sim, senhor. Visitei umas amigas na Pen ha; moram numa chácara muito bonita. A mais velh a é casada, e tem uma filhinha encantadora. Tom ava um grande, gole de café; tinha vergonha de c ontar que passara o dia sentada num banco da Pra ça de República. O viajante perguntava: - E seu Teodoro vai mesmo nos deixar? Ouvi dizer ontem. ..” A contramestre sabia tudo: - Vai, sim. Ele mesmo me contou na semana passada; a mulher vem de Barretos morar aqui. O viajante suspirava: - Mais um que deixa esta linda mansão. Gina diz ia: - E eu que pensava que ele era solteiro. D ona Semiramis corava um pouquinho; havia namorad o seu Teodoro durante os primeiros tempos, pois ele não contara que era casado. Só contou quando a casa estava alugada para esperar a família, uma casa na Barra Funda. O professor sorria: - Casado e com uma turma de filhos. O caixeiro- viajante replicava: - Turma não, seu Rezende. A penas quatro. Pode me passar o pão, dona Georgin a? Que bom quando estivermos morando em casa de dona Semiramis. - Em vésperas do quinto. - É? - Ele mesmo me contou. Por que acha que deve se r bom morar em minha casa? - Ainda pergunta? Ah ! dona Semiramis, teremos boa manteiga e nada de "fedorentas", tenho certeza... Riam. O profess or de matemática tirava o relógio grande do bols o do colete: - Sabe as horas, minha gente? Vint e para as oito; tenho uma aula de geometria plan a às oito em ponto. Todos levantavam-se, apress ados. Gina também saía: - Então, até logo. - A té logo. Quando voltava, subia para o quartinho frio, onde não havia sol no inverno. Tirava o ch apéu e os óculos e ficava pensando. Estaria cert a? Ficaria bem abandonar assim a família? Vei o a primavera. Os jardins ficaram floridos e o a r era bom de se respirar. Quando ela abria a ven eziana quebrada, bem cedo, sentia um cheiro de f lores que vinha dos jardins vizinhos. Depois o verão. Nessa época, o quartinho ficava uma for nalha; Gina pensava: "Por que não é o contrário, meu Deus?" Acordava banhada em suor durante a n oite e às vezes não dormia mais; sentia de man hã o cheiro de repolho cozido que vinha dos quin tais vizinhos. Foi procurar o emprego indicado pelo professor de matemática, mas não foi aceita , não tinha prática. Seu Rezende ficou tristonho e prometeu procurar um outro. Gina continuou a praticar mais de duas horas por dia numa maqui na que seu Rezende arranjou de um amigo. Telefon ou novamente para Pascoalina num dia muito quent e de Janeiro. A amiga disse-lhe nomes feios pe lo telefone, perguntou até quando a loucura cont inuaria; o marido de Zelinda fora operado no Ins tituto Paulista, dona Julica estava desesperad a; a família devia "a raiz dos cabelos". Um horr or. Por que não aparecia? Onde estava? Fred esta va viajando atrás dela, procurando, procurando s empre. Nesse mesmo dia, vendeu as últimas jóias e mandou o dinheiro para a família e para Osóri o; prometeu procurar Pascoalina muito breve. Vol tou desanimada para o quartinho; começou então a procurar emprego. Um escritório precisava de datilógrafas; foi lá e ofereceram-lhe 100$00; nu m outro o homem que a recebeu riu-se junto ao ro sto dela. Perguntou-lhe porque vivia assim pro curando trabalho, se podia viver de outra forma, mais fácil, mais alegre, com aqueles olhos... L embrou-se do tempo em que vendia pó de pudim. Veio o outono. Com os sapatos velhos e gastos, Gina pisou sobre as folhas amarelas dos plátanos ; viu as árvores perderem as folhas e o vento ar rastá-las para lugares desconhecidos. Sentou-s e no banco das praças publicas e passou horas in teiras pensando. Conheceu velhos sonolentos e fi lósofos e conversou com eles, sentada no mesmo banco; uns tinham cabelos longos sobre a gola d o paletó, outros usavam botinas de elástico, as meias dobradas sobre elas e enquanto conversavam balançavam a perna mostrando um pedaço de car ne velha, encardida e peluda, entre as meias e a s calças. Passavam amas solenes empurrando carr inhos de bebês rosados; mulheres chorosas diziam em voz baixa que ainda não haviam almoçado e pe diam auxílio. Quase ninguém dava; a maioria er a mais pobre que elas. Rapazes desempregados e b arbudos sentavam-se nas pontas dos bancos e liam jornais na seção de "Precisa-se". Alguns levant avam-se cheios de pressa e iam embora decorand o mentalmente o endereço ou dobrando o jornal so b o braço. Gina, o chapéu sobre os olhos, de ócu los, o rosto sem pintura, pobremente vestida, dava impressão de ter mais idade. Sacudia a cabe ça ouvindo os velhos falarem sobre a guerra que aniquilara o mundo. Um deles contava todas as ve zes a mesma coisa; um belga que fizera a guerr a e viera ao Brasil, vira um obus arrancar a cab eça de um alemão na batalha do Marne. A cabeça v oara pelos ares, e o velho fazia um gesto com a mão como se cortasse uma planta, e o corpo do homem ainda ficara de pé balançando pra lá e pra cá um bom minuto, até cair também. Ela sacudia a cabeça horrorizada e o velho ria diante do ho rror de Gina, um riso idiota, a boca murcha e en rugada. Terminava: "A guerra é a guerra.” Outro contava as desavenças familiares; com uma perna sobre a outra, balançando sem parar, falava sob re os filhos, a mulher, a nora, o genro, as brig as, as discussões, a pobreza. Gina tornava a s acudir a cabeça penalizada e indecisa sobre o qu e diria àquele pobre velho. Todos eram sujos e c aspentos, tinham as roupas manchadas, as mãos trêmulas e encarquilhadas. Olhavam-na com simpat ia e como ela era silenciosa e gostava de ouvir contavam suas vidas e suas misérias, depois cusp iam longe, um cuspo amarelo e cheio de tabaco e balançavam as pernas magras, olhando para a fr ente como quem não vê. Um dia, quando ela volta va para a pensão e subia a escada, o professor d e matemática abriu a porta do quarto e perguntou solícito: - Nada ainda, dona Georgina? - Nada , professor. Mas hoje tive uma esperança; uma da s minhas amigas, uma que mora na Penha, o senhor sabe, prometeu arranjar com um cunhado, irmão d o marido. Vim agora mesmo de lá; vamos ver, qu em sabe agora tenho sorte. Depois recebi carta d e mamãe dizendo que não devo me apressar, tem te mpo. Coitada de mamãe! Sempre pensando nos fil hos, sempre se sacrificando por nós. - As mães são assim mesmo, dona Georgina; são anjos que ze lam por nós. Ela entrava, fechava a porta e dei tava-se de costas, pensando. O que fazer? Não ti nha mais jóias para vender, não tinha mais nada. Poderia resistir muito tempo ainda? E depois aquela solidão, aquela solidão que pesava, como uma rocha. Ouviu a chuva cair na área e sentiu o cheiro da terra molhada que vinha de longe; dep ois o primeiro arrepio, o frio ia voltar. Susp irou. No começo do inverno, resolveu procurar P ascoalina; foi uma tarde à casa da amiga, depois de ter telefonado. Sentia-se como uma pessoa pr estes a desmaiar, a morrer. Pascoalina recebeu com uma risada irônica e um piscar de olhos: - Ah! Então está arrependida, hein? Que tal a hon estidade, pombinha? Pesa muito? Fred vai exultar , me telefona de dois em dois dias. Gina revolt ou-se e respondeu que não viera para isso; viera apenas se despedir porque ia trabalhar em Santo s, arranjara afinal um emprego. Disse a primeira idéia que lhe veio à cabeça, repentinamente.. . Pascoalina ficou de boca aberta, um pouco atar antada; Gina deixou a amiga antes que ela contin uasse a falar, mas no momento em que fechava o portão, ouviu Pascoalina gritar, zangada: - Lo uca! Idiota! Ao menos não deixe tua família na m iséria! Desnaturada! Gina voltou para o quartin ho da pensão. Era um sábado e os pensionistas es tavam alvoroçados; o domingo prometia ser belíss imo e todos contavam seus próprios planos. O p rofessor de matemática iria a Santo Amaro à casa de uma família amiga; a contramestra tomaria pa rte num piquenique na Cantareira; o caixeiro-via jante almoçaria na chácara de um amigo e senti a a boca cheia d’água quando descrevia o churras co que iria saborear. Todos saíram. Olharam para Gina e perguntaram sobre seus planos; resolut amente ela sorriu contando que iria passar o dia em Santos com umas primas. Foi um alvoroço. - Todos vão sair.. Que domingo esplêndido vai ser esse. Dona Georgina é quem vai aproveitar mais! Na madrugada seguinte, Gina levantou-se antes d os outros e deixou a pensão. Comprou uma passage m de segunda classe para Santos e sentou-se num banco da estação esperando o trem das seis hor as. Fez a viagem sem falar com ninguém; tomou um café no alto da Serra. Em Santos, foi de bonde para a praia; durante duas horas esteve sentada num banco olhando o mar. Procurou conversar co m umas moças que corriam e brincavam na frente d ela. Riu e disse com timidez: - O dia está tão bonito. A água está muito fria? - Não, responde u uma. das moças. Está muito agradável. Por que não toma banho? - Não tenho maiô. Vim só passea r; adoro o mar. Sorriu: - São daqui mesmo de Sa ntos? - Não. Viemos hoje de S. Paulo só para pa ssar o dia. Joga a bola pra cá, Dina. E a moça correu atrás das companheiras numa grande algaz arra. Gina comprou pão e salame e comeu sentada na areia, sozinha. Como suportar a solidão. Nem podia compreender. Foi para S. Vicente e lá, s entada numa pedra, recebendo nas faces o vento m orno do mar, pensou no que iria fazer. Não encon trava empregos bons. Como auxiliar a mãe, a ir mã, Osório, todos? Não sabia. Voltou para a esta ção; ainda era cedo, mas nada havia a fazer. Com prou uma revista e resolveu embarcar; chegou a S . Paulo e teve vergonha de voltar logo para a pensão. Ficou vagando pelo jardim da Luz até ano itecer. Quando subiu para seu quartinho, fingiu que estava muito cansada e deitou-se sem quere r tomar lanche. Depois que já estava deitada e o uviu as vozes dos que falavam e riam lá em baixo , na sala de jantar, lembrou-se de que ainda est ava de óculos; tirou-os, cobriu a cabeça com o lençol e chorou durante muito tempo. Na manhã seguinte, desceu risonha, a fisionomia feliz. A contramestra foi a primeira a fazer perguntas à mesa do café: - Então? Que tal o banho de mar? - Esplêndido. Muito agradável; a água nem estav a fria... Uma gostosura... Jogamos bola na praia ... O dia estava uma beleza. O professor de mat emática tirou os óculos para limpá-los no guarda napo; serviu-se de café: - Dona Semiramis pode me passar o pão? E suas primas, dona Georgina? R esidem em Santos? - Sim senhor. Sabe a segunda rua logo depois do Gonzaga? Uma rua estreitinha. ... Coçou a testa e continuou: - Nunca me lemb ro do nome daquela rua, parece incrível. E tenho ido lá tantas vezes... pois é lá que moram minh as primas, seu Rezende. Uma casa no fim da rua, bem lá no fim. O viajante perguntou com a boc a cheia: - Muita gente na praia? Hum! O pão é o mesmo que sola de sapato de vendeiro... Gina r iu e respondeu: - A praia estava cheinha, gente por todos os lados; já estou com saudades do di a de ontem. Por que sapato de vendeiro? - Porqu e tem gosto de tudo, menos de pão. Pois o churra sco estava uma delicia; umas vinte pessoas. Come mos na chácara debaixo das árvores. Esplêndido. Gina mentiu: - E eu comi um cuscuz de camarão; estava delicioso. Nunca vi fazer cuscuz tão bem como minha tia. Ela é perita. Dona Semiramis p erguntou passando manteiga no pão: - É irmã de sua mãe? - Não. É irmã de minha avó; minha tia avó. A manteiga hoje não está tão ruim, não acha m? Dona Semiramis que era maldosa e sarcástica porque nada dava certo na sua vida observou: - Você veio muito cedo, Georgina. Por que não apro veitou mais e não veio no último trem? Gina riu : - Pois disseram que não havia mais trens para passageiros, só para soldados. Então vim no das cinco, mas senti bem. Fez o cálculo rapidamente tentando lembrar a que horas entrara na pensã o. O professor interessou-se sobre o trem de sol dados. - Do exército? - Voluntários. Penso que foram fazer manobras; a estação estava repleta. O viajante queria também saber: - E para onde foram, dona Georgina? - Isto não sei, ninguém sabia. Uma das primas que me acompanhou à estaçã o, bem que perguntou, mas nada disseram. O prof essor tirou o relógio do bolso: - Quero lhe lem brar, dona Georgina, que o emprego de que lhe fa lei, o daquele beltrano importante, talvez se re solva por estes dias. - Oh! Seu Rezende, muito obrigada. - E devo avisar que são oito menos vi nte. Às oito em ponto tenho uma aula de geometri a no espaço. Levantaram-se. Gina dizendo-se um pouco atrasada, despediu-se e saiu quase corrend o. Na cidade, começou a andar devagar, pensando onde poderia ir. Não freqüentava mais as aulas de datilografia porque não tinha dinheiro para pagar; e já estava começando a dever o quarto da pensão. Passou pelo largo Santa Efigenia e reso lveu entrar na igreja; vozes cantavam acompanh adas pelo órgão; era uma música conhecida mas nã o pôde lembrar-se no momento. Sentou-se no últim o banco e ficou ouvindo, embevecida. Pensou: " Uma religião que tem músicas tão bonitas para ac ompanhá-la, deve ser uma boa religião.” Quando toda a gente deixou a igreja e apenas o sacristã o ficou apagando as velas, levantou-se também e saiu. Nove horas ainda. Lembrou-se de visitar o pai no Cemitério do Araçá; já várias vezes vis itara o professor Pasquale. Tomou o bonde para l á, aproximou-se do túmulo e começou a arrancar e rvas más dentre as plantas que ela mesma plant ara. O sol estava quente, e apesar de ser mês de Junho, fazia calor. Sentou-se depois ao lado do túmulo e ficou durante algumas horas esperando o tempo passar. Voltou para a pensão à hora do almoço fingindo-se cansada de tanto andar à proc ura de emprego. Dizia que nas horas vagas vendia apólices para uma Companhia cujo presidente e ra amigo de sua família. Não suportou mais temp o aquela vida; sentiu-se desesperar. No fim da s emana, apresentou-se diante de Pascoalina, cansa da, triste e mais pobre ainda. Miserável mesmo. Soube que Fred tivera pneumonia e saíra de S. Paulo; fora para uma fazenda. Declarou à Pascoa lina que iria com ela naquela noite à cidade; de sta vez a amiga não riu; apenas comentou: - Jus tamente agora que Fred está doente. Coitado. Que azar! E depois que sarar vai de mudança para o Rio porque pensa que você está escondida por lá. Pobre rapaz! Festejaram ruidosamente a volta d e Gigina à vida boêmia, da cidade; durante algun s meses ela viveu essa vida, até que um dia apar eceu um novo caminho diante dela; e esse foi o último, o definitivo, o melhor de todos. TERCEIRA PARTE XII Foi numa tarde de Setembro, em 1930, que Gina conheceu Dr. Fernando. Viram-se pela primeira ve z num lugar alegre e barulhento, entre pessoas q ue falavam ruidosamente e riam muito. Ouvia-se o tinir de copos, sons de música, pedidos que o s garçons transmitiam em voz alta por uma janeli nha da parede: - Dois cafés com creme! - Um co nhaque! - Uma media com pão quente, um vinho do porto! - Três cafés simples! Os dois eram os únicos que falavam pouco e observavam a alegria dos outros e o movimento de vai-vem de toda aque la gente. Foi isso que os aproximou no primeiro instante. Conversaram ligeiramente sobre as pe ssoas que entravam, sobre os que bebiam demais, sobre a música que ouviam; ele, então, convidou- a para irem a um lugar silencioso onde pudesse m estar à vontade. Sentaram-se diante da última mesa de um café da Avenida S. João, um café onde as mesinhas eram cobertas de pano xadrez, não h avia música, nem ruído de vozes. Conversaram. Os últimos fregueses já haviam se retirado e os dois ainda conversavam, esquecidos de tudo. Garç ons bocejavam encostados no balcão, os guardan apos sob os braços, esperando que os retardatári os fossem embora. O dono do café, de pé perto da porta, esperava que os ponteiros marcassem um a hora para descer a porta de ferro; outros para adiantarem o serviço, colocavam as cadeiras sob re as mesas já nuas, fazendo um barulhão. E eles conversavam, admirados por terem encontrado r eciprocamente alguém com as mesmas idéias que el es próprios. No dia seguinte, encontraram-se nov amente no mesmo lugar, depois no outro dia e n os outros também. Ambos tinham a impressão de qu e eram infelizes, que eram como que abandonados a si mesmos e não tivessem ninguém por eles. Sen tiam-se sozinhos. Foi então que Gina se uniu a Dr. Fernando, peia simpatia e pelo desgosto que a oprimia; ambos procuraram nesse encontro, esq uecer suas próprias vicissitudes. Era um homem alto e moreno, quinze anos mais velho do que el a. Advogado, nunca exercera a profissão; possuía , entre S. Paulo e Paraná, uma grande fazenda de criação. Fora infeliz no casamento e estava s eparado da esposa há algum tempo; tinha um casal de filhos que vivia com ela no Rio e o visitava uma vez por ano. Passava a maior parte do tem po na fazenda; algumas vezes ia a S. Paulo, ou a o Rio a negócios ou para ver a família. Achava a vida vazia e sem interesse. Quando conheceu Gin a, contou tudo de repente, como se aquela foss e a companheira que seu coração esperara tantos anos; desfiou diante dela as desilusões e incert ezas, o que nunca fizera antes, nem ao seu mai or amigo. Convidou-a então para irem juntos à A rgentina; precisava visitar fazendas de criação, comprar algum gado e estudar assuntos referente s ao negócio. E pela primeira vez na vida, Gin a sentiu paz, uma paz serena, leve, profunda, in igualável. Sentiu que o amava pela confiança qu e ele depositava nela e ele amou-a pelo que ela era: boa, delicada, gentil, carinhosa. Contou-lh e tudo o que havia passado e sofrido, contou a história de Frederico, sem esconder detalhes. Em Montevidéu, onde pretendiam passar dois meses , Gina teve uma surpresa inesperada: estava gráv ida. Foi então que Dr. Fernando propôs-lhe casam ento. Ela aceitou. Mandaram buscar os papéis; durante esse ínterim, ele teve que esperar uns m eses por causa dos negócios; e foi nessa cidade que se casaram, numa tarde azul de Maio. Gina c horou. Debruçada sobre o ombro de Dr. Fernando, chorou todas as lágrimas guardadas desde que hav ia se separado de Fred. Não chorou de tristeza, nem de saudade, nem de arrependimento; foi um pranto calmo e feliz de alívio, de alegria, de f elicidade. A partir daquele dia, seu caminho ser ia diferente, bem diferente dos que havia palm ilhado até então; era como um sonho, uma nuvem q ue pairava acima da compreensão, da incerteza, d a realidade. Sentia uma segurança e um repouso q ue até então desconhecera, tinha um companheir o que caminharia ao seu lado, ouviria suas queix as, enxugaria suas lágrimas. Com ele poderia con tar de olhos fechados; não era como Fred que, com toda sua expansão e impetuosidade, tinha ent re ele e seu amor, a família a tradição, o nome, os preconceitos. Dr. Fernando era bom, sincero, superior, compreensivo. E além de tudo, conhe cia o mundo. Conhecia a vida de Gina contada por ela mesma; sabia que ela trazia os olhos a poei ra dos caminhos que havia trilhado, e sabia qu e cada caminho deixara vestígios. O caminho da m iséria deixara a poeira escura e pegajosa das am arguras e da fome; o caminho da falsa riqueza e do falso amor, deixara a poeira impalpável das humilhações e desilusões. Mas nada a havia cont aminado; sobre os caminhos ásperos e cheios de p edras passara incólume. Ele sabia que a criatu ra que nasce com o coração puro, terá sempre pur eza no coração, mesmo que tenha caminhado sobre lama e mesmo que tenha nascido no pântano. E a quela que nasce com o coração impuro, mesmo que tenha nascido num berço de ouro, e que os seus a ntepassados lhe tenham legado um nome honrado e carregado de brasões, mesmo que tenha nome, fo rtuna e nascimento, será sempre impura porque a impureza está nos corações. De Buenos Aires, Gi na passou um telegrama para a mãe contando que s e casara e dois meses depois chegou a S. Paulo c om o marido. Em 1934, Gina tinha dois filhos, H elena e Fernandinho. Criava-os com muita facilid ade, na fazenda Pinheiral. Ia a S. Paulo apenas uma vez por ano; passava uns dias comprando ro upas e para isso trazia uma lista grande; visita va a mãe e a irmã, ia a teatros e concertos, con versava com a velha amiga Pascoalina e embarcava de novo para Pinheiral, levando pacotes de ro upas, brinquedos para os filhos, presentes para o marido e os empregados. Mais de uma vez, levar a a mãe consigo para passar uma temporada na f azenda, mas dona Julica parecia não gostar muito e por um pretexto qualquer, voltava a S. Paulo. Queixava-se da viagem muito longa, estranhava o silêncio da fazenda apenas cortado pelos mugi dos dos bois, dizia que isso lhe dava insônia, q ueixava-se de tudo. Gina nada dizia, mas sabia q ue a mãe não se demorava lá porque só gostava de Zelinda, a filha mais velha. Desde menina ach ara estranha aquela preferência; agora compreend ia-a ainda menos, pois, para ela, seus filhos eram iguais e não saberia dizer, se alguém pergu ntasse, se amava Helena mais que Fernandinho ou ao contrário. Eram seus filhos e ambos igualment e amados. Procurava ser boa para os enteados; o menino, Eduardo, estava já com dezesseis anos e a menina com quatorze; todos os anos, iam à faz enda, nas férias de Dezembro. Gina saía a cava lo com eles, aconselhava-os nos estudos, davam j untos longos passeios a pé. Raramente ela ia à c idade mais próxima a Pinheiral, onde Dr. Fernand o tinha amigos, e quando ia fazer compras ou d ar um passeio hospedava-se em casa do Juiz de Di reito ou na do vigário, padre Ernesto, muito ami go do marido. As principais famílias da cidade discutiam às vezes para saber quem hospedaria do na Georgina; sempre dona Sinhá, a senhora do Jui z ou o padre Ernesto saiam vencedores, pois ti nham casas maiores e mais confortáveis. Dona Sin há recebia Gina com sorrisos amáveis: - Dona Ge orgina, temos aqui um bolo que fiz, especialment e para a senhora. Vamos primeiro tirar o chapéu. .. Os anos passam para todos. Vão levando dentr o de si as alegrias, os ódios, as desconfianças, os dissabores. E com eles, também o brilho da m ocidade. A idade madura vem chegando devagar, com passos lentos, mas inexoráveis. Para Gina ta mbém eles passaram; já estava com mais de trinta anos e parecia ter vivido uma eternidade; o p assado ficara para trás e estava tão distante qu e ela fazia um esforço às vezes para lembrar-se da primeira parte da sua vida; era como se ela p assasse rapidamente por uma estrada larga e vi sse rios, lagos, montanhas, planícies ficarem pa ra trás e desaparecerem dos seus olhos. A seren idade que sentia às vezes era tão perfeita que a torturava; tinha impressão de que muito breve t eria um fim. Sempre que via o marido apear-se à porta dá fazenda e entrar em casa, cansado dep ois do trabalho, tinha ímpetos de atirar-se nos braços dele e apertá-lo contra si fortemente. Co mo o amava! Tudo o que se passara antes e ela julgara amor, fora ilusão, apenas ilusão. Amor e ra o que sentia agora pelo marido, um amor que n ada podia destruir, nem a separação, nem mesmo a morte, pois se ele morresse antes dela contin uaria a amá-lo nos seus filhos, até sua própria morte. Esse era o verdadeiro amor que seu coraçã o ansiara sempre; não o amor falso que depende dos preconceitos, do dinheiro, da família ou da sociedade. Mas um amor afeição que paira acima de tudo e tem a força poderosa das coisas irreme diáveis. Em fins de 1936, sua filha Helena esta va com três anos de idade e Fernandinho com ano e meio. Numa quente manhã de Novembro, havia gr ande agitação na fazenda Pinheiral. A mãe de Dr. Fernando, dona Belmira, chegara quinze dias ant es para passar uma temporada como fazia todos os anos. Era uma senhora austera e reservada; q uando conheceu Gina no Rio de Janeiro, depois do casamento, tratou-a muito bem e sentiu-se feliz por ver o filho casado. Mas não compreendia p or que Gina quase não falava na mãe e na irmã, n em no falecido pai. Para saber alguma coisa da f amília da nora, precisava arrancar-lhe as palavr as. Achava estranho, mas não comentava. E um dia, quando dona Belmira estava lá, Gina recebeu uma carta de Zelinda anunciando sua chegada em Pinheiral com a mãe e Gracinha. Gina contrariou- se; quis telegrafar à irmã que não viesse porq ue a sogra estava lá e a casa cheia, mas Dr. Fer nando aconselhou-a a não telegrafar, pois sua mã e queria tanto conhecer a família de Gina, ago ra apresentava-se a oportunidade. Gina suspirou: - Mas, Fernando, Zelinda é tão irreverente, vo cê não a conhece bem. E mandou preparar os quar tos; era a primeira vez que a irmã a visitava; q ueria que tivesse boa impressão. Chegou afinal o dia. Desde cedo a casa estava em alvoroço. O t rem em que viriam chegaria às duas horas da tard e. Logo depois do almoço, enquanto dona Belmira fazia a sesta, Gina aprontou-se para acompanha r o marido à estação; levaria só Helena. Tomara m o automóvel e seguiram; enquanto esperavam, co nversavam com o chefe da estação e o telegrafist a; o trem vinha com atraso de meia hora. Helena estava impaciente e perguntava a todo o moment o por vovó Julica; pensava nos presentes que rec eberia. Quando o trem parou com um ranger de fe rragens, como que cansado de viagem tão longa, G ina avistou logo o rosto da irmã espiando atravé s de uma janelinha. Acenou e sorriu para ela; as viajantes desceram com malas e pacotes entre exclamações e abraços. O chefe da estação e o te legrafista foram logo se chegando, querendo conh ecer a família de dona Georgina. Dr. Fernando apresentou-os ligeiramente e entraram no automóv el que seguiu para Pinheiral; vinham cansadas e suarentas, queixosas da viagem. Zelinda estava com um vestido listado de amarelo e azul, um ch apéu cor de gema de ovo; perguntou se na fazenda havia banheiros. Observando o vestido esquisito da irmã, Gina respondeu que sim, havia todo o conforto. Zelinda olhou para Gina; achou-a gord a, a pele estragada e escura. Gina riu. Antes do automóvel entrar no jardim da frente da casa, avistou a sogra, corretamente vestida de preto, os cabelos grisalhos lisos e presos atrás, pron ta para receber as visitas, tendo Fernandinho todo de branco ao seu lado. Furtivamente, Gina olhou os cabelos da mãe; sob o chapéu, percebeu os cabelos cortados rentes, "á l'homme." Suspiro u desanimada. Gracinha que já estava com quatorz e anos, perguntou, rindo: - Aquele é Fernandi nho? Veja, mamãe, como é engraçadinho. Desceram do automóvel e Dr. Fernando fez as apresentaçõe s; foram logo subindo os degraus que davam para o terraço da frente. Dona Julica mostrou a Zelin da, as paineiras que rodeavam o jardim; Zelind a, em vez de olhar, gritou para um dos cães poli ciais que havia se aproximado: - Sai cachorro. Não gosto de cachorros. Gina deu ordem para que o prendessem. Perguntou à sobrinha: - E o Char uto? Que fim levou? - O Charuto morreu de velho . Mamãe bem que gostava dele. - Qual o que! Do na Belmira, muito cerimoniosamente, perguntou so bre a viagem; Zelinda tirou logo o chapéu e sent ou-se numa cadeira de lona, estendendo as pernas : - Uf! Que calor! E pegando o chapéu, atirou- o à filha que o apanhou no ar: - Toma, Gracinha . Seus cabelos estavam oxigenados e suas unhas p areciam roxas; num relance, Gina observou tudo. Toda a pessoa da irmã era artificial e chocante; tornou a falar sobre a gordura de Gina: - Nã o dou muito tempo, você estará uma velha. Tenha cuidado. Gina sorriu: - Mas eu já sou uma velh a. Não quer entrar para tomar banho? Vamos nos r efrescar e depois teremos o lanche. Entraram ac ompanhados das crianças; Gina fazia um esforço e norme para aparecer natural e não observar os mo dos vulgares da mãe e da irmã. Mostrou-lhe os qu artos. Num instante, Zelinda tirou toda a roup a e com um roupão sobre o corpo, dirigiu-se ao q uarto de banho. Ouviu-se o ruído da água do chuv eiro. Gina começou a auxiliar a mãe e abrir a mala de mão e colocar os objetos sobre a mesa de toalete. De repente, falou em voz um pouco baix a: - Mamãe, dona Belmira, minha sogra, vai perg untar à senhora muitas coisas referentes à nossa família. É muito curiosa por questões de nome. Eu contei que era dos Camargo de Piracicaba... Hum! Que água de Colônia gostosa. É de Zelinda? Dona Julica que estava escovando o vestido, vo ltou-se para Gina: - É. Pois nós somos mesmo do s Camargo. O que a velha tem com isso? - Nada, mamãe. Estou só prevenindo a senhora para quando ela perguntar. À toa... Dona Julica falou sobr e a viagem; estava cansadíssima; começou a pente ar os cabelos queixando-se do pó. Fazia gestos b ruscos. Zelinda voltou do banheiro, os cabelos úmidos pregados no pescoço e na testa: - O ban ho estava ótimo. Como é que conseguem estas cois as neste sertão? - Não é tão sertão assim. Você pintou os cabelos? - Estavam ficando muito bra ncos. Pintei para tapear. Onde está Gracinha? Qu e menina! Em vez de trocar um vestido leve ou to rnar um banho, ficou já lá fora. Está num assa nhamento! Você sabe, ela nunca viu fazenda algum a... Enquanto falava, passava o pente nos cabel os curtos. Dona Julica perguntou, tirando umas r oupas da mala: - Então a velha é aristocrata? O que ela tem com nossa vida? Zelinda voltou-se, o pente no ar: - Que velha? Essa aí? Como é me smo o nome? - Dona Belmira. Não. Eu estava só c ontando à ma mãe que ela vai querer saber sobre nossa família. Ela gosta dessas coisas. Eu já di sse que somos da família Camargo, mas ela vai perguntar à mamãe também. Gina procurava dar um tom despreocupado às palavras. Gracinha entrou, encantada com o que vira: - Vi um bezerrinho d este tamanho, mamãe. Helena disse que daqui a po uco eu vou ver ele mamar. Mamar na vaca. A mãe gritou: - Vá tomar banho primeiro. Anda. Onde q ueria que ele mamasse? Tem muito tempo para ver essas coisas. Gracinha correu para o banheiro f alando sempre: - Podia mamar na mamadeira. E vo u andar a cavalo também. Tem um cavalinho branco , Helena disse... Fechou a porta do banheiro. R apidamente, Zelinda começou a vestir-se; olhou a irmã: - Olhe, Gigina vamos ensinar essa velha. Mamãe vai dizer que é sobrinha do Conde de Tole do e eu digo que sou casada com o visconde de Zé carão e o Zécarão é sobrinho-neto da duquesa d e Goiás. Gina quis rir, mas ficou séria. Mudou de assunto: - E falar nisso, como vai o Zeca? - Vai indo bem. Sempre muito burro. Fez uma paus a: - E seu marido? Que tal? Gina já estava arr ependida de ter facilitado a vinda da irmã e da mãe; há tanto tempo perdera o contato com elas q ue esquecera o quanto suas maneiras eram vulgare s. Respondeu, hesitante: - Fernando é muito b om. É uma pérola. Vamos para a sala? Você devem estar com fome. Tem queijo feito em casa, coalha da, requeijão, bolos, tudo da roça. Zelinda fal ou sorrindo, enquanto calçava as meias de seda: - Fernando é um pedaço, isso sim. Fez um gesto como se lembrasse de repente de alguma coisa: - Ah! Gigina, sabe quem encontrei outro dia, cas ado e com uma filha? - Quem? - Osório. Está fo rmado em Direito, jornalista, muito importante, pelo menos no caminho da importância e casado. P erguntou de você. Vestiu o vestido e apertou o cinto: - Viu como emagreci? Mas deixe eu contar como foi que encontrei Osório. Encontrei com el e na rua Direita. Penso que ele me viu, mas fing iu, sabe? Fingiu que não viu e ia passando, ma s eu segurei o braço dele assim: "Então! Está tã o importante que não conhece mais os pobres"? El e ficou desapontado: Ah! Zelinda, como vai você? E dona Julica? Eu disse que tudo ia bem. Aí p erguntou de você. Disse que você está muito bem casada e muito rica. Ele ficou pensativo, depoi s começamos a lembrar aquele tempo da rua Livre. Tempos danados. Demos risadas quando lembramo s. Afinal, Gigina, você sustentou aquele diabo durante o tempo que ele estudou; se não fosse vo cê, não tinha nada, e no entanto, ele nem se imp orta com a gente. Que ingrato! Até falei para mamãe. Ingrato! Gina tentou rir: - Não. Ele é assim mesmo, Zelinda. É despreocupado, tem um g ênio boêmio, mas é muito bom. Ele também nos aux iliou tanto... Vamos para a sala. Aquele passad o voltava, aquele passado que ela queria enterra r para sempre. Por que lembrar? Fez um esforço p ara afastar todo pensamento que a perturbasse, q ue a fizesse sofrer. Saiu do quarto dizendo qu e as esperaria na sala de jantar. As crianças e stavam encantadas com as visitas. Zelinda e dona Julica entraram na sala distribuindo carrinhos, brinquedos, uma grande boneca para Helena. Sent aram-se à volta da mesa. Enquanto tomavam café , coalhada e comiam bolos, falavam da viagem; so bre a mesa, havia mimos-de-Vênus, vermelhos como fogo. Através das janelas abertas, viam o cam po, depois a planície cheia de ondulações, onde vacas pastavam tranqüilas; do outro lado, a mata cerrada, quase inacessível. Comiam com apetite . Num canto da sala, Helena admirava a boneca; n em quis comer. Inclinava-a para a frente e para trás e sorria quando a boneca falava: Ma-mã, num a vozinha tremida. Depois abraçou-a com carinh o num gesto cuidadoso; Fernandinho aproximou-se e pediu para carregá-la um pouco; estendeu os br aços pedindo: Dá... Dá... Mas Helena recusou e para livrar-se do irmãozinho, mudou de lugar e foi para o terraço, sempre abraçada à boneca. Na passagem, pediu a Gina: - Mamãe, Fernandinho t á querendo minha boneca... Vinha um ar morno pe las janelas. Zelinda levantou-se e deixou a sala ; voltou logo depois fumando um cigarro na ponta de uma piteira comprida; Gina, em sobressalto, percebeu o olhar reprovador da sogra. Para dis farçar, começou a falar com o filho. Dr. Fernand o deixou a sala dizendo que tinha um serviço par a ver. Gracinha que havia comido com apetite, levantou-se também e saiu para o terraço, curios a por ver tudo. Dona Julica tornou a mostrar as paineiras à filha; de pé, no terraço, tirando grandes baforadas do cigarro, Zelinda olhou as p aineiras e não respondeu, fez um gesto indiferen te. Fumava ostensivamente perto de dona Belmira como numa provocação como querendo saber o que a velha estava pensando. Gina convidou-as para darem uma volta pelo pomar, atrás da casa; foram andando vagarosamente enquanto a tarde caía s obre o sertão. Naquela noite, após o jantar, Gi na cantou para os hóspedes; cantou trechos do "B arbeiro de Sevilha", depois a "Casinha Pequenina ", depois "Caro nome"". Se alguém passasse àqu ela hora pelas terras da fazenda Pinheiral, fica ria surpreendido ouvindo o som de um piano e uma doce voz de mulher a se elevar no silêncio. Era como se fadas boas andassem pelo mundo e proc urassem os lugares ermos para derramar magias de sons nos corações dos viajantes solitários. Em Pinheiral, as manhãs eram destinadas aos passei os a cavalo, ou a ver o banho do gado, ou a pesc ar à beira do rio que atravessava a mata do lado esquerdo ou ainda a tomar banho na cascatinha que havia além, onde o rio fazia uma curva e de spencava nas pedras. Dona Belmira quase não saía do terraço; ficava costurando para os netos, no canto que dava para a porteira, os óculos sob re o nariz, atenta e diligente. Zelinda dizia q ue ela ficava nesse lugar para ser a primeira a ver quem vinha da cidade; era curiosa a velha. G racinha estava aprendendo a andar a cavalo; o ca valo era manso, mas ela tinha medo, dava grito s e se agarrava às crinas do animal, provocando risadas. Dona Julica ia ao galinheiro recolher o vos frescos; era seu primeiro cuidado todas as manhãs. Levava uma cestinha no braço e voltava com ela cheia, mostrando-a a todos; depois entra va na cozinha e preparava dois ovos quentes e le vava a Zelinda que dormia até tarde. Quase sem pre, Gina acompanhava o marido ao serviço; iam v er as plantações e o gado. Deixavam as crianças com Eugenia, a empregada de confiança, e iam a cavalo, atravessavam o rio e saíam do outro lad o, onde começava a plantação de amoreiras. Às s ete e meia, dona Julica vinha da cozinha com a b andeja e dirigia-se ao quarto da filha; entrava no quarto escuro e colocava a bandeja sobre a me sinha; dizia em voz baixa para não assustá-la: - Zelinda, quase oito horas. Olhe os ovos quen tes. Zelinda fazia um movimento e continuava co m os olhos fechados. - Zelinda, tome os ovos, f ilha. Eu trouxe agora mesmo do galinheiro. Estão fresquinhos. A filha respondia com voz sonolen ta: - Não quero ovos hoje. Dona Julica redobra va de agrados: - Como não, minha filha? Pois vo cê veio aqui para se fortalecer, estava fraca em S. Paulo, emagrecendo tanto. Veja que ovos gra ndes e bonitos, parecem ovos de pata. - Não dig a que são ovos de pata, aí que não tomo mesmo. - Por quê? É a mesma coisa que ovos de galinha. Experimenta só. Já tem sal dentro. - Por que vi r me acordar só por causa dos ovos? Tomo depois. - Agora que é bom, Zelinda, tomar bem cedo. E, que horas pensa que são? Oito horas! Vamos, dep ois você dorme outra vez. Zelinda começava a se espreguiçar, levantava os braços para cima, faz ia caretas, bocejava várias vezes, afinal sentav a-se na cama e com a bandeja sobre os joelhos, tomava com a colherinha, os ovos quentes. Carin hosamente, dona Julica ficava assistindo de pé, de um lado; abria um pouquinho a janela para a c laridade entrar. Falava: - Está um dia lindo. G igina e Fernando saíram a cavalo, diz que foram ver o gado. Estão combinando uma pescaria para q uando voltarem. As crianças estão passeando no pomar com Gracinha. - E a velha? - Está costu rando como sempre, no terraço. Você não quer se levantar para tomar banho na cascata? - Não. Qu ero dormir. Não gosto de banho frio. - Então du rma. Eu fecho a janela e recomendo que não façam barulho para você dormir sossegada. Fechava a janela, tirava a bandeja do colo de Zelinda e sa ía nas pontas dos pés. Zelinda deitava outra vez , bocejava, acomodava-se para dormir. Às vezes d izia: - Olhe, qualquer dia sou capaz de ir toma r banho na cascata só para passar de maiô diante da velha, sem toalha nenhuma, nua ao sol. Dona Julica deixava o quarto e sorria; fechava a por ta cuidadosamente. Após o almoço em que todos t omavam parte, dispersavam-se outra vez. Uns iam dormir, outros ficavam cochilando nas redes do t erraço. Zelinda, sentada na cama, lustrava as unhas. Dona Julica de pé, perto da janela, falou -Ihe um dia com voz monótona: - Não sei como é que você deixa. De repente ela pode cair e se ma chucar muito, pode até quebrar uma costela ou um braço. Ficava quieta e olhava Zelinda, esperan do uma resposta; como se não ouvisse, Zelinda co ntinuava a lustrar as unhas; de vez em quando, a ssobiava. - Não compreendo como é que você não se importa. Se Gracinha soubesse andar a cavalo, eu não diria nada; mas não sabe, de repente cai . É perigoso. Olhava a filha outra vez. Zelinda parava de assobiar para responder: - Não cai, mamãe. Todo o mundo aprende a andar a cavalo. E se cair, paciência. Dona Julica se irritava dia nte de tanta indiferença. Continuava: - Quando você e Gigina eram pequenas, tive sempre tanto c uidado. Não sei como você pode ser assim, não li ga para um perigo em que Gracinha pode se machuc ar e machucar muito. Zelinda deixava de lustr ar as unhas e bocejava tapando a boca com a mão direita; depois continuava outra vez, entretida na ocupação. Dona Julica continuava: - Olhe, se i de um caso que se passou com um menino; queria muito aprender a andar a cavalo, deixaram e ele caiu e quebrou duas costelas. Não tem graça nen huma se acontecer uma coisa assim para Gracinh a, ainda mais neste sertão. Houve um silencio. Dona Julica perto da janela, olhava o jardim e o pombal ao lado. Com o calor, tudo estava recolh ido e quieto. Nenhuma pomba, nenhum sinal de vid a. A voz de censura tornava: - Sempre fui tão cuidadosa com vocês duas, não sei como podem se r assim. Zelinda parou de assobiar e olhou a mã e: - A senhora cuidou mesmo muito de nós... Ha via uma leve ironia na voz, mas não se sabia ver dadeiramente se estava brincando ou não. Baixou a cabeça e olhou as unhas a uma certa distância, estendendo o braço, um sorriso nos lábios. Do na Julica observou-a, um ar zangado, a fisionomi a alterada: - O que? O que você disse? - Nada, mamãe. Só disse que a senhora sempre cuidou mui to de nós. Desta vez a voz era séria; ela não s orriu. Dona Julica ficou satisfeita e voltou ao assunto: - Mas não deixe Gracinha andar a caval o. É perigoso. Zelinda fez um gesto de impaciên cia, levantou-se e foi chamar a filha que estava com as crianças e Eugenia no quarto próximo. Gr acinha estava sentada numa cadeirinha de palha ; Helena e Fernandinho estavam sentados no chão. Eugenia costurava perto da janela. Ouvia-se a v oz de Gracinha. - Esta chama-se: A menina dos c abelos de ouro. - Conte, conte, gritou Helena. - Era uma vez uma menina muito bonita que tinha os cabelos de ouro. Eugenia perguntou: - De o uro mesmo? - De ouro mesmo. Verdadeiro. Ela mor ava com a avó no fundo de uma floresta... Em ve z de entrar, Zelinda ficou escutando atrás da po rta; de quando em quando, Helena fazia uma pergu nta: - Por que a avó bateu nela? - Porque ela gostava do príncipe e a avó não queria. - Por q uê? - Porque não. O príncipe queria levar ela e mbora. .. Então arranjou um cavalo branco e rou bou a menina dos cabelos de ouro. Helena sorriu , deliciada. Perguntou: - O cavalo é como o meu ? Branco? - Igualzinho. Então, sabe?... onde é mesmo que eu estava? Zelinda entrou no quarto; Gracinha continuou a contar: - Ah! Depois casou com ela e foram muito felizes. O príncipe mando u fazer uma estátua igual a ela, e pôs na entrad a do palácio... Helena interrompeu: - O que é estátua? - Uma estátua. De mármore, fazem do ta manho da gente, igualzinho a gente, só falta fal ar.. Só que os cabelos dela não eram, mais de ou ro... - Por quê? - Porque a avó pôs feitiço no s cabelos dela. Ficaram castanhos. - O que é fe itiço? - Gracinha perturbou-se um pouco: - Bob agem. Zelinda ouviu o fim da história e chamou Gracinha; quando Gracinha entrou no quarto de do na Julica, ela explicou: - Olhe, Gracinha não q uero que você anda a cavalo. É perigoso, pode ca ir e quebrar um braço ou uma perna. Estamos long e de tudo. - Mas, mamãe... - Não quero, já dis se. , Gracinha começou a chorar; dona Julica olh ou a neta. Parecia satisfeita; - Não é por nada , mas se você cair e se quebrar, como há de ser? O que seu pai vai dizer? Que não zelamos por vo cê. Gracinha chorou mais: - Agora que estava a prendendo a andar... - E deixe de lamúrias. Vá brincar... Recomeçou a lustrar as unhas. Gracin ha deixou o quarto falando: "burra, burra, burra ..." uma porção de vezes. Helena que estava no c orredor, esperando-a para ouvir outra história , perguntou: - Quem é burra? - Mamãe e vovó. A s duas. Helena ficou admirada e não respondeu; ficou olhando Gracinha como um ser extraordinári o. Nessa tarde, tiveram as primeiras visitas da cidade; o Juiz de direito e dona Sinhá. Convers aram na sala, entre copos de limonada e geléia d e mocotó. Zelinda que já estava cansada da faz enda e pensando em voltar a S. Paulo, animou-se com as visitas; apareceu com um vestido vermelho sem mangas, os cabelos oxigenados muito cresp os à volta da cabeça e conversou com animação; m ostrava-se desembaraçada diante de dona Sinhá. D epois da segunda xícara.de café, foi buscar a pi teira e colocou um cigarro na ponta; tirou uma grande fumaça e olhou a esposa do Juiz; dona Si nhá e dona Belmira ficaram sem assunto de repent e e olharam para o chão, distraídas. Quando as visitas estavam se preparando para entrar no aut omóvel, Zelinda viu Gracinha montando a cavalo à s escondidas, atrás da casa. Ficou furiosa. - E la vai ver a sova que vai tomar. Pensa que porqu e está aqui, diante das visitas, não apanha? Ela vai ver. Entrou em casa indignada e foi se que ixar a Gina. Acalmaram-na. Quando Gracinha entro u, medrosa, e foi tomar banho de chuveiro, encon trou a mãe: Indecisa, olhou-a. Distraída, Zeli nda perguntou: - Você não viu minha escova de c abelos, Gracinha? Não encontro em parte alguma. Não se lembrava mais da desobediência da filha. Era assim. Um temperamento irrequieto mas incon seqüente. No dia seguinte, o padre Ernesto apar eceu na fazenda para uma breve visita à família de dona Georgina. Estavam todos no terraço quand o ele chegou de automóvel; Dr. Fernando fez as apresentações. Zelinda estendeu-lhe a mão de un has vermelhas dizendo sem cerimônia: - Então pa dre, como vai? Gina percebeu o olhar horrorizad o da sogra sobre o Dr. Fernando como quem diz: “ Você permite essas coisas?" Dr. Fernando tinha u m leve sorriso nos lábios e o padre Ernesto se ntou-se numa cadeira de palha; era um velho de s essenta e poucos anos, a cabeleira branca, a fis ionomia alegre e inteligente. Perguntou cerimoni osamente dirigindo-se a Gina: - Está contente , dona Georgina? Ao lado de sua mãezinha, da irm ã, da sobrinha. Ah! Esta é Maria da Graça? Como vai, Gracinha? Gina respondeu que estava muito contente, era pena não poderem vir mais vezes po r ano; a irmã, por exemplo, era a primeira vez q ue vinha a Pinheiral. O padre olhou para o lad o de Zelinda que estava com as pernas cruzadas, muito negligentemente sentada numa cadeira de br aço, a saia arregaçada, os joelhos à mostra; bal ançava uma das pernas e sorria: - Quem manda ela morar tão longe, não é mesmo, padre? Vieram morar aqui neste sertão longe de tudo. O trem le va não sei quanto tempo para chegar, um trem suj o, um calor insuportável. Eu suava por todos o s poros durante a viagem, o vestido grudou no co rpo, cheguei quase derretida, louca por um banho . Deu uma risada. Padre Ernesto perguntou suave mente: - A senhora e a senhora sua mãe não tive ram ocasião de visitar ainda nossa cidade? Pois não é tão ruim e não é também sertão. A senhora não imagina, o que é sertão. Voltou-se para os donos da casa: - Dona Georgina, quando for à m issa domingo, mostre a nossa cidadezinha à senho ra sua mãe e sua irmã. - Meu nome é Zelinda, pa dre. Padre Ernesto perturbou-se levemente. - S im, senhora, dona Zelinda. - Nem sei há quantos anos não vou à missa. Aqui a gente vai à missa então? Deve ser .engraçado. Houve um silêncio d esagradável. Gina olhou a irmã com ar aborrecido . Dona Belmira olhou para o chão do terraço e Ze linda continuou a balançar a perna, sorrindo. Falou num tom provocante: - Mas não faz mal, pa dre. Desta vez eu vou à missa, só por sua causa. É o senhor que vai dizer a missa? - Sim, senho ra. - Pois então eu vou. Quando o padre é simpá tico, eu gosto de ir à missa. Gina viu rubor no rosto do padre Ernesto; sentiu-se desagradavelm ente constrangida ao ouvir as palavras irreveren tes da irmã; para mudar de assunto, perguntou da ndo às palavras um tom alegre: - Afinal, padr e Ernesto, a turminha que o senhor estava prepar ando para a primeira comunhão já está preparada? O padre sentiu-se satisfeito por falar em assu nto tão ameno. - Quase pronta, dona Georgina, q uase pronta. Creio, que daqui a um mês, poderemo s fazer a festinha. Dona Belmira perguntou se e ram muitas crianças; ele respondeu que eram quat orze entre meninos e meninas; falou ao dono da c asa: - Falar nisso, Dr. Fernando, não me esquec i da sua promessa. Vou precisar do seu automóvel nesse dia. - Pois não, padre Ernesto. Está às ordens. - Ah! dona Georgina, lembra-se do filho de dona Benvinda? Um menino travesso, um verdad eiro moleque que vivia brincando na rua e dizend o nomes feios? Gina ficou um pouco hesitante: - Não sei, não me lembro... Dr. Fernando auxili ou-a: - Aquela mulher que faz pé-de-moleque, Ge orgina, a que mora atrás da igreja... - Ah! Sei . Agora me lembro. Eu não sabia o nome dela, cha mava: "A mulher do pé-de-moleque". Agora sei que m é. - Sim, senhora. Depois de muita luta, cons egui que o filho, o Bentinho, viesse fazer parte da turma da primeira comunhão... E sorriu triu nfante. Dr. Fernando perguntou se padre Ernesto preferia café ou limonada; Gina levantou-se para dar ordens dizendo que tomariam lanche lá dentr o, na mesa. No outro extremo do terraço, Graci nha brincava de "dona de casa" com Helena e Fern andinho. De vez em quando, ouvia-se uma frase di ta por Gracinha: - Agora você é a dona da casa e eu venho fazer uma visita. Meu filho é Fernand inho e sua filha é a boneca. Vou bater na porta: Tóc, tóc, tóc. A vozinha de Helena falava: - Quem é? Ah! É dona Gracinha? Faça o favor de ent rar. Como vai seu filhinho? Sarou bem? - Graças a Deus sarou da tosse comprida. Teve uma tosse horrível na semana passada; eu e meu marido não podíamos dormir. E sua filhinha? Está melhor? - Eu tenho duas, dona Gracinha. A mais velha está na escola, mas está com sarampo. Veja um pouco o rostinho dela como está vermelho. Gracinha cu rvava-se para olhar a boneca no colo de Helena. Todos sorriam ao ouvir a conversa das crianças; elas percebiam que os "grandes" estavam olhando; paravam e ficavam perturbadas, esperando que as deixassem tranqüilas. Zelinda comentou: - Gr acinha é mesmo uma criança. Já está com quatorze anos feitos e brinca com Helena que só tem três . Fico admirada! Padre Ernesto interveio: - De ixe que se prolongue a idade da inocência, minha senhora. É a idade mais feliz da vida. Dona Jul ica perguntou: - Padre Ernesto é daqui mesmo? - Não, senhora. Venho de muito longe; minha famí lia é de Piracicaba. Dona Julica se animou: - Eu tenho parentes em Piracicaba. - De que famíl ia, minha senhora? - Da família Camargo. O padr e sorriu: - Que coincidência. Tenho uns parente s na família Camargo. Eu me lembro de ter ouvido minha mãe falar nisso muitas vezes. Zelinda sa cudiu a mão direita na direção do padre: - Vai ver que somos parentes, padre. Tem graça... Pare nte de uma herege... - Quem sabe, dona Zelinda, quem sabe. Gina voltou ao terraço e convidou o s hóspedes para entrar; a mesa estava pronta. Dr . Fernando convidou o padre a passar à frente: - Tenha a bondade, padre Ernesto, vamos entrar.. . Sentaram-se à volta da mesa, ainda falando so bre o parentesco; Zelinda dirigiu-se à Gina e pi scou, maliciosa: - Gigina, sabe que somos paren tes do padre Ernesto? - É mesmo? Seria interess ante descobrir isso. Padre Ernesto prefere café, coalhada ou geléia de mocotó? Dona Julica inte rrompeu: A geléia está uma especialidade, padre Ernesto. Não sei se porque gosto de geléia, que ro que todos aceitem geléia. O padre agradeceu: - Muito obrigado. Deve estar muito boa como tud o em casa de dona Georgina, mas prefiro café. Du rante o dia, só costumo tomar uma xicrinha de ca fé forte. E o café de Pinheiral é muito bom, t em fama. Dona Belmira perguntou a dona Julica: - A senhora é da família Pires de Camargo? Gin a sobressaltou-se; olhou a mãe. Dona Julica engo liu uma colherada de geléia: - Não, senhora. Eu sou Camargo só. Minha mãe era Antunes e meu pai era Camargo. Conheci meu avô, ele se chamava Pe dro Belizário Nunes de Camargo. Nunes era da mãe dele. - De Campinas? - Meu avô tinha uma fa zenda em Campinas. Ocupada em falar com a filha que tinha entrado para pedir um pedaço de bolo, Zelinda não prestou atenção à conversa. - Agor a vá brincar, chispa! Não gosto de criança na me sa. Gracinha voltou ao terraço comendo o bolo; ouviu-se a voz dela brincando outra vez: - Acei ta um pedacinho de bolo, dona Helena? Seu filhin ho também aceita? Não faça cerimônia, é de araru ta, muito bom. Tomando um gole de café, padre E rnesto acrescentou: - Que idade feliz! A gente quando tem essa idade, não sabe o que tem. Deus abençoe as criancinhas! Dona Belmira aproveitou a pausa e voltou ao assunto dirigindo-se a Dona Julica: - Não era em Piracicaba que seu avô ti nha fazenda? Eu entendi a senhora dizer Piracica ba outro dia. Dona Julica ficou um tanto indeci sa: - Eu falei Piracicaba? Zelinda falou com ve emência: - Mamãe, a senhora sempre nos contou q ue nosso avô paterno tinha fazenda em Piracicaba e o avô materno em Campinas. Não lembra, Gigina ? - Lembro sim. - E quantos escravos a senhora contou que ele tinha, mamãe? - Quem? - O avô, mamãe. Seu pai. - Ah! Tinha uns cem escravos. - Muito mais, a senhora falou trezentos outro d ia. Não foi, Gigina? - Nem me lembro mais. Gin a percebeu que ela estava mentindo; como Gina nã o a acompanhasse na mentira, Zelinda explodiu: - Arre! Que memória a sua, parece que cada dia e stá pior. Fernando, dê um remédio para sua mulhe r, não perder a memória de uma vez. Dr. Fernand o prometeu ver um remédio; aborreceu-se e pergun tou ao padre: - Está melhor o nosso amigo Ribas ? - Um pouquinho melhor. Um pouquinho. Esta noi te, a febre baixou um pouco. Também está prepara do, Dr. Fernando. Está pronto para a viagem. Ze linda perguntou, fingindo não entender: - Que v iagem, padre? - A última viagem, dona Zelinda. A viagem da qual não se volta. Houve um silênci o na mesa. O padre tornou a falar: - Já se conf essou e tomou a extrema unção. Está preparado. Zelinda provocou, rindo: - E para onde ele vai, padre? Para o céu? - Quem pode saber, minha se nhora? Quem pode adivinhar os desígnios de Deus? - Mas se ele está preparado, vai para o céu co m certeza, senão não adiantava nada disso. Não a cha, Gigina? Gina começou a sentir-se mal; olho u Zelinda com um sorriso indulgente, mas no ínti mo fervia de raiva. Padre Ernesto respondeu: - Quem sabe ele vai para o céu. Nada podemos saber . E se adivinhássemos, nossas vidas talvez foss em diferentes... Ela interrompeu: - Minha vida seria a mesma, eu não mudaria nada. - Deus a a bençoe, dona Zelinda, Deus a abençoe. É tão raro ver uma pessoa feliz como a senhora; tão feliz que se pudesse recomeçar desde o principio, vive ria a mesma vida, passaria pelos mesmos caminh os. Nem todos são felizes assim. Que felicidade para a senhora, pensar assim. Ela perturbou-se um pouco e inclinou-se para trás, na cadeira: - Não me queixo mesmo. Não posso dizer que sou in feliz. Só que às vezes, tenho vontade de fumar. Com licença, padre. Riu-se e levantou-se, dirig indo-se a uma mesinha ao lado; tirou um cigano d a caixa e colocou-o na piteira; de onde estava, perguntou: Fuma padre? - Não, senhora, muito ob rigado. - É proibido fumar? - Não aprecio o ci garro, dona Zelinda. - Pois é muito bom e faz e squecer as mágoas... - Mas a senhora não tem má goas. Ela voltou para a mesa e olhou fixamente o padre. Tirou uma baforada de fumaça: - Eu não disse que não tenho mágoas. Disse que viveria a mesma vida, se pudesse. Dr. Fernando interromp eu: - Então é incoerente. Se você quer viver a mesma vida, quer dizer que é feliz. Agora vem di zer que tem mágoas... Dona Belmira respondeu: - E quem não as tem neste mundo? Dona Julica su spirou e começou a comer uma broinha de fubá. Gi na levantou-se para ver os filhos no terraço. Pa dre Ernesto e Dr. Fernando ficaram conversando a inda uns minutos; depois levantaram-se e o pad re despediu-se de todos. Quando entrou no automó vel, Dr. Fernando cochichou: - Não repare na mi nha cunhada; é assim meio irreverente, meio alou cada, mas é muito boa pessoa. Padre Ernesto fez um gesto complacente: - Oh! Meu caro amigo, eu conheço as criaturas. Meus longos anos de confe ssionário, deram-me alguma experiência do mundo. Há pessoas que para se evadir de um estado d’ alma, de um desgosto, de uma tortura que lhes pe sa ou de um sentimento de inferioridade, são ass im: altivas, altaneiras, irreverentes, arrogante s mesmo, pretendendo ser conhecedoras do mundo e principalmente superiores aos outros. Mas não enganam os observadores: acima de tudo são infe lizes, profundamente infelizes e é dessas pess oas que devemos ter pena. Vivem em conflitos con sigo mesmas, vivem, se torturando. Têm esses mod os altivos e essa maneira arrogante para ocultar os sentimentos, mas no fundo, sofrem, são inf elizes. Dr. Fernando sorriu: - Está bem, padre Ernesto. Fico contente em saber que o senhor co mpreende. Segurando o velho guarda-chuva do qua l não se separava e tirando um grande lenço azul do fundo do bolso da batina, o padre continuou: - Tudo é exterioridade, Dr. Fernando. No fundo são boas criaturas de Deus. Coitadas! Assoou-s e ruidosamente e acenou a mão para o amigo: - A té à vista, caro amigo. Até por lá! O automóvel partiu. No quarto, a sós Gina censurou a irmã: -Você afinal, precisa respeitar nossos amigos. O nde se viu falar desse jeito com padre Ernesto? O que ele havia de pensar? Zelinda franziu a tes ta: - Ora, Gigina, não seja estúpida. Desrespei tei o homem? Falei alguma coisa errada? Estou aq ui há uma semana e não disse um nome feio, nem " safado". - Tinha graça você falar perto das cri anças. Fique quieta por favor. - Também você mu dou tanto que não me acostumei ainda. Antigament e eram jantares com champanhe, homens simpáticos , divertidíssimos, e depois tudo variado, baríto nos, maestros, secretários de maestro... Deu uma gargalhada e continuou: - Uma sarabanda dan ada. Não havia tempo de enjoar de nada, tudo era variado e alegre. Agora é só padre, primeira co munhão, irmandade não sei de que, extrema unção, o diabo. Ando desnorteada com tudo isso, mas não se incomode que não perturbo mais seu padre Ernesto. Também vou me embora logo, não fico aqu i... Gina apertou os lábios e não respondeu. De ixou o quarto e dirigiu-se para o seu; Dr. Ferna ndo estava se preparando para tomar banho. - Qu e dia quente, hein, Georgina? Notou o rosto cont rariado da esposa: - Que há? Aconteceu alguma c oisa? - Zelinda. Ela me aborrece com aqueles mo dos livres e antipáticos. Parece que quer se mos trar. Viu o modo como ela conversou com padre Er nesto? Sem respeito algum, até convidando-o pa ra fumar. É o cumulo! O marido riu: - Não leve a sério, Georgina. Não diga nada pra ela. É a pr imeira vez que vem aqui, deixe a coitada. E padr e Ernesto conhece as almas, disse que ela é mais digna de pena que qualquer outra pessoa. - E le disse isso? Mas eu fui no quarto falar com el a... - Não. Não diga mais nada. Deixe. Há criat uras assim, não se incomode por causa dela. E p assando por Gina, beijou-a com ternura, antes de ir ao banheiro. Ficando só no quarto, ela sento u-se diante do espelho e começou a pentear-se. O uviu as vozes das crianças que ainda brincavam no terraço: - Espere, agora você é o médico qu e vem ver meu filhinho. Eu falo com o doutor: "E le está com uma pontinha de febre, veja como est á vermelhinho. O que devemos dar, doutor?” Gi na sorriu. Pensou como o padre Ernesto: "Como as crianças são felizes, tão longe das atribulaçõe s. Deus as abençoe!” XIII No domingo segui nte, foram todos à cidade assistir à missa das d ez. Às nove horas, Gina entrou no quarto da mãe para ver se ela e Zelinda estavam prontas; dona Julica estava com um vestido de seda preta, de pé, abotoando o vestido de Zelinda; era um vest ido branco de mangas curtíssimas. Gina observou cortesmente: - Se eu fosse você, não ia com es se vestido... Vá com o azul marinho de bolinhas, é tão bonito... - Está fazendo calor e o azul marinho é muito fechado; - Por isso mesmo, Zeli nda. Ninguém vai à missa aqui sem ser com mangas compridas ou então assim pelos cotovelos. E Gi na mostrou seu vestido marrom com mangas pelos c otovelos. Zelinda levantou a cabeça e encarou a irmã: - Ora esta, seu padre Ernesto manda na ge nte? Nunca vi uma coisa dessas! Um padre mandar na manga do vestido da gente. Que vá mandar nas beatas e nas carolas, em mim é que não manda. Vou como quiser. Gina foi ficando aflita: - Vo cê não conhece as cidadezinhas do interior, Zeli nda. Todo o mundo repara, fala, ainda mais que você veio de S. Paulo. Se fosse com o vestido az ul marinho, era muito mais distinto. Zelinda fa lou com ironia: - É? Agora a senhora só quer ge nte distinta ao seu lado. Esqueceu os velhos tem pos da rua Livre, hein? Gina sentiu-se sufocar; olhou a mãe como a pedir auxílio. Dona Julica h avia chegado à janela e avisou: - Fernando já e stá pondo as crianças no automóvel. Está na hora . Diante da espelho, Zelinda passava batom nos lábios; depois tornou passar pó de arroz; sacudi u a esponja no ar e o pó perfumado espalhou-se p elo quarto. Gina aconselhou: - Seja cordata, Ze linda. Mamãe já tem vindo aqui e sabe como o pov o é reparador. Não é mesmo, mamãe? Dona Julica voltou-se: - Toda a cidade do interior é assim mesmo. É melhor você seguir o conselho de Gina. Troque de vestido. Zelinda olhou revoltada para a mãe, os olhos coléricos: - A senhora também? Pois então não vou. Que vão para o diabo a cida de, o padre e todo o mundo. Não vou. Pronto. E desabotoou o vestido com raiva. Nesse instante o uviu-se a buzina do Ford. Dr. Fernando estava ch amando. Zelinda tirou o vestido num ímpeto raivo so e disse à irmã enquanto tirava do cabide o vestido de usar em casa: - Não vou. Desaforo qu ererem mandar na gente. Desaforo. Antes que ela vestisse o velho, Gina entregou-lhe o azul mari nho de bolinhas: - Ora, Zelinda, seja camarada. Vista este e vamos embora. Se você não for, o q ue irei dizer aos conhecidos que perguntarem? - Diga que fui para a China. Morri. Diga que caí do cavalo e quebrei vinte costelas. Diga que est ou com dor de barriga. Pronto. Estava de combina ção. Passou o pente nos cabelos arrepiados. Gi na percebeu que ela estava mais calma; falou: - Vamos. Você vai conhecer todos nossos amigos; o delegado, o médico, Dr. Pinheiro, vários fazend eiros... Vista... Este vestido, afinal, é um dos mais bonitos. Vai fazer furor na cidade. Zel inda deixou que Gina a vestisse; enfiou as manga s e perguntou: - Nessa turma toda, há alguém in teressante? Gina percebeu que ela estava curios a; ouviu-se outra buzinada. Dirigiu-se à janela e falou ao marido: - Dois minutos só, Fernando. Já vamos. Olhou a irmã que estava outra vez di ante do espelho: - Há varias pessoas interessan tes e inteligentes. Você vai gostar. Auxiliou a irmã nos últimos preparativos e deixaram o quar to. A cidade estava movimentada; no largo da Ma triz havia muitos automóveis e outros ainda iam chegando e trazendo gente para a missa. Nas ruas principais, o comércio funcionava; as lojas e stavam abertas e muitas pessoas faziam compras. Nas portas das barbearias, das lojas, dos armazé ns, havia cavalos que esperavam pacientemente enquanto os donos faziam compras para a semana t oda. Os que moravam longe, nos sítios, nas roças , vinham a cavalo para a cidade. Os sinos da ma triz tocavam anunciando a hora da última missa; a igreja estava cheia, mas para Dr. Fernando e a família, sempre havia lugares. Algumas senhoras conhecidas de Gina mandaram as crianças ficar em de pé e cederam os lugares para a família do Dr. Fernando; havia uma separação onde ficavam o s homens; era uma grade de madeira quase no fi m da igreja. Um portãozinho também de madeira se parava as senhoras e as crianças dos homens; est es não tinham licença de ir além da grade e fica vam atrás, de pé ou sentados nos bancos que ha via para eles. Fora ordem de um padre muito rigo roso que dirigira a paróquia durante anos; e nen hum outro tivera a coragem de modificar esse h ábito. Começou a missa solene. Toda a assistênc ia seguiu, em concentração, as orações. Zelinda começou a ouvir o que o órgão e o violino tocava m: "Reverie" de Schuman. Olhou para os lados o bservando as fisionomias vizinhas, distraiu-se d epois ouvindo o padre Ernesto falar. Quando ter minou a missa, todo o povo saiu para o largo e m uitas pessoas que se conheciam ficaram em grupos , conversando. A família de Dr. Fernando foi log o rodeada; cumprimentavam, desculpavam-se por não terem ainda visitado a irmã e a mãe de dona Georgina, perguntavam sobre as crianças. Dona Si nhá convidou-os para irem um instantinho à cas a dela, era ali perto, logo atrás do largo. Acei taram o convite e foram andando a pé e conversan do; a casa do Juiz era uma das maiores da cidade : de um lado havia uma trepadeira roxa carrega da de flores. Entraram comentando as flores e a dmirando o colorido, pena era não ter perfume. A s filhas do Juiz, duas meninas de dez e doze ano s, convidaram Gracinha para brincar no jardim. Sentaram num banco tosco de madeira que havia s ob umas árvores e ficaram conversando muito seri amente, como se fossem moças. Os outros sentara m-se no terraço; automóveis passavam buzinando, homens a cavalo tinham pressa de voltar ao sítio , e levavam na garupa sacos brancos cheios de ma ntimento. Moças a pé, em grupo de quatro ou ci nco, conversavam e riam com os rapazes que encon travam. Comentavam antecipadamente a festa que h averia à noite no clube. Muito cerimonioso, o J uiz inclinou-se diante de Gina: - O que prefere , dona Georgina, um vinhozinho do Porto ou café? Ou talvez uma limonada? Gina aceitou limonada. Zelinda preferiu vinho do Porto. Enquanto tomav a, pensou, olhando para Gina: "Como está diferen te. Nem bebe vinho, prefere limonada. O marido a transformou completamente. Ou foi ela mesma q ue se transformou? Nada disso. Foi o amor. Ela a ma Fernando. Por isso pode agüentar esta vida.” Dr. Fernando conversava com o Juiz e outro amig o num canto do terraço; comentavam a morte do Ri bas. O Juiz disse: - Teve uma bonita morte. Não sofreu para morrer; quando a mulher aproximou-s e e falou, estava morto. - Mas sofreu muito, an tes. Há mais de um mês estava de cama. - Sim, m as podia ter uma morte penosa com falta de ar, e tc. Não. Morreu como um passarinho. - Deve ser bom morrer assim. Está excelente este vinho. Que marca é? O. Juiz sorriu satisfeito: - Ferreir inha. - Logo vi. É diferente dos outros. O Jui z foi buscar a garrafa e mostrou. Do outro lado, dona Sinhá contava de que forma curara os pinto s de "bouba". Explicava a Gina corno devia fazer , o que devia pôr na água e como evitar que os outros tivessem a moléstia. Depois perguntou a Zelinda quantos filhos tinha; ela apontou Gracin ha que estava sentada no banco com as duas men inas. - Graças a Deus só tenho essa. É uma garo ta levada. Se tivesse duas assim ficava louca. Dona Sinhá olhou Gracinha: - Parece tão boa me nina. Pois eu tenho essas duas e mais dois rapaz es que estão passeando por aí. Quatro. Dona Bel mira reclamou: - A senhora se esqueceu da recei ta de biscoito de polvilho que prometeu a Georgi na? Eu não me esqueci, dona Sinhá. Ela se descu lpou: - A senhora acredita que ia me esquecendo mesmo? Mas vou buscar já. Está copiada. Levan tou-se e dona Belmira protestou: - Não tem pres sa, dona Sinhá. Fica para depois. Ela falou da p orta: - Um instantinho só. Posso me esquecer ou tra vez. Trouxe a receita e antes de entregá-la, leu alto para dona Belmira entender bem. Zelind a bocejou olhando a rua. Dona Sinhá terminou: - Tem gente que põe duas claras. Eu costumo por quatro. Fica mais bonito e mais gostoso. Gina disse: - Ah! Isso fica mesmo. Sempre ponho quat ro também. Dona Sinhá sorriu: - Dona Georgina é da minha opinião. Quatro. Dr. Fernando levant ou-se: - Vamos indo? Então quando aparecem em P inheiral? Vão jantar qualquer dia, não é, Georgi na? Despediram-se. Ficaram no portão enquanto D r. Fernando voltou ao largo da Matriz e foi busc ar o automóvel. Partiram. Zelinda perguntou logo : - Que é do pessoal interessante que você diss e que tinha, Gigina? - São aqueles mesmo que cu mprimentamos na porta da igreja. Ficaram de apar ecer hoje, à tarde na fazenda. Quando chegaram a Pinheiral e desceram do automóvel, Zelinda sus surrou para a irmã: - Essa é a caipirada que vo cê disse que é interessante? Passo! Vou voltar para S. Paulo amanhã mesmo. Só falam em biscoito , bouba de pinto e não sei que mais... Gina com eçou a, subir a escadinha do terraço; Zelinda ia atrás: - Admiro uma coisa, Gigina. Como é que você agüenta isto anos e anos? Gina olhou-a adm irada: - Isto o que? - Esta vida, esta gente, biscoito, bouba, etc... esta solidão, tudo... E fez um gesto mostrando longe. Gina voltou-se pa ra a irmã e parou um pouquinho: - Como é que eu agüento? Mas eu não agüento, eu gosto disso tud o, Zelinda. Estou aqui porque gosto. E entrou n a sala. Todos já tinham se retirado para os quar tos a fim de trocar de roupa para o almoço. Zeli nda explodiu: - Gosta? Você gosta disso tudo? M eu Deus! Então sou burra ou bonde elétrico, não entendo você, criatura. No corredor que dava pa ra seu quarto, Gina respondeu alto sem se voltar : - Nem eu. Nessa mesma tarde, várias visitas chegaram a Pinheiral; dois fazendeiros vizinhos, um dos médicos da cidade e Dr. Pinheiro. Algun s ficaram sentados no terraço, outros no jardim; a tarde estava linda. As senhoras fizeram um gr upo à parte; todas curiosas por conhecer a mãe e a irmã de dona Georgina. Zelinda auxiliava a irmã a servir refrescos e café; estava excitada, sabendo-se alvo de todos os olhares. Com o vest ido branco de mangas curtíssimas, os braços ch eios e queimados de sol, os cabelos encaracolado s à volta da cabeça, era diferente de todas. Us ava sempre vestidos mais curtos e quando Gina ol hava e dizia: "Zelinda, seu vestido está curto d emais: ela fingia-se zangada: "É a burra daquela costureira, Gigina. Quantas vezes já disse a ela que não faça curto assim. Vou devolver este vestido para ela arranjar. Que mulher estúpida! Sempre erra com meus vestidos." Mas não devolv ia nada e quando encomendava outro, vinha curto também. Gina advertia algumas vezes: "Gente chiq ue não usa curto assim." Ela respondia: "Pois eu sei, Gigina, é aquela costureira, mas eu vou encompridar, você vai ver.” E apesar do desejo que tinha de ser chique, tinha o desejo ainda ma ior de mostrar as pernas e continuava a vestir-s e do mesmo modo. Julgava-se entendida em todos os assuntos; se ouvia os homens falarem sobre po lítica, ficava esperando a primeira oportunidade para dar sua opinião; havia então um silêncio compreensivo na roda dos homens. Se algum respo ndia delicadamente, ela se animava e continuava a falar; mas, em geral, ninguém dizia nada porqu e seus argumentos eram sempre tolos e ela volt ava-se de novo para as senhoras. Se uma pessoa contava um caso de um desastre de automóvel, Zel inda também contava dois ou três semelhantes. Se outra pessoa falava sobre doença de criança, el a contava de uma vizinha cujo filho tivera a m esma moléstia, por mais estranho que fosse. Nada era novo para ela. Conhecia todos os assuntos e discorria sobre tudo. Se alguém falava sobre um filme muito interessante a que assistira, Zel inda contava também a história de outro semelhan te, porem ainda melhor do que aquele descrito an tes. Se outra pessoa dizia ter apreciado certo prato muito bom, uma especialidade feita com ma rreco, Zelinda contestava e dizia que feito com pato ainda era melhor. Assim era tudo; livros, viagens, comida, vestidos e política. Julgava e ntender de tudo mais do que qualquer outra pesso a. E quando a senhora do Dr. Pinheiro falou naq uela tarde sobre uma viagem que fizera aos Estad os Unidos, Zelinda não pode contestar imediatame nte; mordeu os lábios e ficou escutando com ar despeitado. Mas quando a senhora terminou, ela voltou-se e disse que uma sua amiga fizera uma v iagem tão interessante ou mais ainda do que a contada por dona Odete Pinheiro, pois alem de ve r as cataratas do Niágara, viajara também pelo d eserto da Califórnia. Houve então um silêncio à volta e começaram a tomar refrescos; a senhora de um dos fazendeiros elogiou a beleza da tarde: - Há muito tempo não tínhamos uma tarde assim, dona Georgina. Lembra-se da última vez que esti vemos aqui? - Como chovia! - Tarde boa para um piquenique! Não tem uma nuvem no céu. Está tão azul... Zelinda dirigiu-se à irmã: - Gigina, va mos organizar um piquenique aqui? Deve ser tão d ivertido. Na cascata. Gina concordou e as outra s também aprovaram a idéia. Zelinda levantou-se e dirigiu-se ao cunhado: - Fernando, estamos or ganizando um piquenique na cascata. Que tal? - Bela idéia! Todos aprovaram. Dr.Fernando sugeriu : - Então faremos um churrasco, será mais diver tido. - Melhor ainda. Quando teremos o churrasc o? Houve troca de idéia; alguém sugeriu: - Sába do que vem. - Então será sábado próximo. Está r esolvido. As senhoras combinaram o que haviam d e trazer; Gina protestou, dizendo que arranjaria tudo, ninguém precisava trazer nada. Mas Odete Pinheiro continuou insistindo nos doces: - Tr ago um prato de cocadinhas. Uma traria bons-boc ados, outra balas de chocolate e doce de batata roxa com coco, outra amarelinhas e outra ainda, pamonhas. Despediram-se depois de tudo combinad o. Zelinda falou nisso durante todo o jantar, ex citada como se tivesse quinze anos. Mais tarde d isse a Gina que achara alguns homens simpático s, mas as senhoras eram todas iguais: insípidas e caipiras. Gina procurou defender as amigas: - Você não teve tempo ainda de conhecê-las bem, Z elinda. São preparadas e boazinhas, principalmen te Odete Pinheiro. E não são caipiras nem um pou co, viajam muito. Ela fez um muxoxo: - Mas don a Sinhá só fala em geléias; uma outra também que estava com um vestido verde claro de risquinhos ... - Dona Carmen. - Creio que é. Só falou na catapora que o filho teve na semana passada. - Falou em catapora porque o assunto era doenças; mas sabe falar de outros assuntos e muito bem. Zelinda fez um ar de pouco caso: - Está bem. Vo u dormir que é melhor. Estava a sós com Gina e antes de despedir-se, levantou-se, bocejou e dis se: - São todas umas idiotinhas assanhadas, uma s burguesinhas. Portaram-se bem porque não têm r emédio. Não podem. Águas paradas... Mas se pudes sem... Gina ficou vermelha de raiva: - Não dig a bobagens. E você o que é? Grande dama? Ela já estava perto da porta que dava para o quarto. Voltou-se: - Eu? Sou o que sempre fui, uma senh ora casada com uma mentalidade mais avançada do que essa burguesia toda. Sempre fui uma senhora de respeito, sempre tive a cabeça levantada, se mpre fui alguém... Fez uma pausa e perguntou co m maldade, a voz sarcástica: - E você o que foi ? Fechou a porta. Gina sentiu-se sufocar de rai va; era interessante como sendo Zelinda sua meia irmã, a conhecia tão pouco. Só conhecia o lado mau e egoísta da irmã, desde pequena descobrir a essas qualidades: maldade, inveja, egoísmo. Nu nca outras. Para Gina fora sempre assim: agressi va e má. Parece que seu desejo era bater nela, maltratá-la, fazê-la sofrer, ofendê-la. Quando falava com Gina, parecia agredi-la; dizia frases ofensivas e maldosas. É verdade que não parecia boa para ninguém; nem para a mãe nem para a f ilha, nem para o marido. O seu lema era: eu. Sem pre eu. Começou a percorrer,. as portas e janel as, como fazia sempre, para ver se estavam fecha das. "Como Zelinda era invejosa. Eterna invejosa ." Apagou o lampião da sala de jantar; dirigiu -se ao quarto das crianças, olhou para ver se tu do estava em ordem e foi para o seu quarto, onde Dr. Fernando já estava deitado. Gostava de conv ersar com o marido a sós e comentar os fatos d o dia. Adorava-o e ao seu lado esquecia os pesar es, as atribulações, as pequenas alegrias e cont rariedades de mãe e de dona de casa. Colocou a vela sobre a camiseira e olhou o marido; encont rava na sua presença paz e segurança. - Ah! Fer nando, não tive tempo ainda de contar a você o q ue descobri hoje. Uma coisa esplêndida! - O que foi? - Imagine que mamãe rouba cerveja da adeg a! Tinham um lugar fresco em baixo da casa, ond e guardavam caixas de vinho e cerveja. Ele admi rou-se; - Sua mãe? Como? Ela riu e sentou-se n a cama ao lado dele: - Depois que as visitas fo ram embora, fui procurar no jardim o boneco de F ernandinho, aquele polichinelo, sabe? Pois junt o à moita onde encontrei o boneco, estava uma ga rrafa de cerveja vazia. Quase perguntei às criad as como é que aquela garrafa estava ali, mas lem brei que mamãe sempre gostou de cerveja, então fiquei quieta. Fui depois à adega e olhei; pois faltam umas dez garrafas e nós não temos tomado cerveja. Descobri depois as garrafas vazias n um canto. Quem mais se não mamãe pode fazer isso ? Por isso é que ela desaparece durante o dia e fica horas sozinha no quarto bebendo a cervejinh a. Os dois riram. Dr. Fernando lembrou: - Entã o precisamos pôr cerveja na mesa todos os dias. Se ela gosta tanto... - Não, Fernando. Na mesa ela não gosta porque tem que dar aos outros e nã o bebe à vontade. Ela gosta é de beber no quarto , uma garrafa inteira, sozinha. - E como é que ela descobriu a chave da adega? - Decerto viu o nde eu coloco sempre, no prego atrás da janela. O que eu sei é que a velha não se aperta, está t omando sua cervejinha, como em S. Paulo. O mari do teve pena: - Coitada. Deixe agora a adega ab erta, Georgina. Finja que esqueceu de fechar, a ssim fica mais fácil para ela. Gina riu: - Ela è capaz de acabar com tudo... - Será? Começou a despir-se e continuou a conversar: - Não pos so com Zelinda. Viu o jeito dela hoje? Discutind o até política com seus amigos! Quer saber tudo e é uma ignorante. - Ora, ninguém leva a sério. Acham graça. - E o modo que ela se veste, Fern ando? Sempre foi assim: exagerada em tudo. E que r ser elegante! Tirou a camisola de sob o trave sseiro: - Ah! Agora me lembro! Você precisava o uvir o que Helena estava dizendo hoje para Dr. P inheiro. Dr. Pinheiro ficou espantado. - O que foi? - Dr. Pinheiro estava brincando com ela, d e repente disse: "Você vai se casar com Jucá, vo cê já prometeu." Ela então olhou bem para ele, m uito séria e respondeu: "Dr. Pinheiro, dona Od ete já me disse que vou casar com seu filho, mas eu não posso agora. Agora quero casar com papai ." Foi só risada, pena você não ter ouvido. Dr . Fernando sorriu: - Ela ainda está na idade de casar com papai e com mamãe. Gina enfiou a cam isola pela cabeça: - Está quente, não? Vamos ve r se no dia do piquenique, o tempo melhora. Toma ra que faça um dia bonito como hoje, mas mais fr esco. Tirou os sapatos e as meias; deitou-se ao lado do marido e assoprou a vela; de repente le mbrou-se: - Estou achando Fernandinho um pouco magro. Acho que é calor. Não come quase. - Eu t ambém reparei que ele não jantou. É melhor pedir um remédio ao Dr. Pinheiro. - Um fortificante? - Acho melhor fortificante. - Mas Zelinda é u m caso sério. Sempre assim, parece amalucada. Nu nca se importou muito com a filha; quem criou Gr acinha foi mamãe e Zeca. Ela é só passear e dize r asneiras. Nunca vi. Vai à cidade amanhã? - Vou. Ouviu o pessoal contar da família do Ribas? - Não. - A coitada da mulher não ficou com qu ase nada. Dívidas até o pescoço. - Coitada. E c omo vai se arranjar com dois filhos? - Não sei. Diz que vai para casa de uns parentes fazendeir os até ver o que há de fazer. - Coitada. Se eu fosse amiga dela, convidava-a para passar uns te mpos aqui. Precisamos dar um jeito. - Pois você pode convidá-la. - Será que posso? Amanhã vou pensar nisso. Estou com sono hoje. - Eu também. É o calor. E a cerveja que dona Julica toma? - Ê formidável, não? ; - Não sabia que ela gosta va tanto assim. - Gosta, sim. Então amanhã quan do for à cidade, peça o fortificante para as cri anças. Não se esqueça. No dia seguinte, logo ap ós o almoço, Gina viu dona Julica sair, dar uma volta pelo jardim e dirigir-se para a adega; per cebeu quando ela voltou com qualquer coisa emb rulhada sob o xale e viu-a ir para o quarto. Nã o pôde deixar de rir; dona Julica era como uma c riança que faz uma travessura, deixa sinais evid entes, depois aparece com um rostinho cheio de i nocência; e se perguntarem, não viu nada, não sabe de nada. Como era possível uma pessoa dessa idade, portar-se como uma criança? Então não pe rcebia que uma travessura assim não pode passa r desapercebida? O dia do piquenique amanheceu bonito e claro, um pouco quente. Às dez horas ch egaram a Pinheiral, os primeiros automóveis cond uzindo visitantes; os convites haviam se esten dido para muitas famílias, de modo que o terraço da casa ficou logo cheio de gente. Alguns fazen deiros vizinhos chegaram a cavalo e algumas senh oras e moças apareceram de culote e botas de m ontar; Zelinda mordeu os lábios de inveja; imagi nou o quanto ficaria elegante com roupas assim, infelizmente não tinha. "Poderia ter pedido em prestado a de Gigina, mas talvez não servisse, G igina era mais alta que ela, mas poderia ter exp erimentado, ainda mais que Gina engordara, não e ra elegante como anos atrás.” Espalhados pelo jardim e terraço, os convidados conversavam, an tes de se dirigir ao lugar do piquenique; falava m com animação. Os últimos a chegar foram o padr e Ernesto e a família de Dr. Pinheiro; Zelinda cochichou no ouvido de dona Julica: - Não sabi a que o padre também vinha se divertir; ele vai dar azar. A mãe achou graça. Às onze horas, entr aram nos automóveis, outros montaram a cavalo e partiram para a cascata que ficava alguns quil ômetros longe da casa. Lá, os empregados da faz enda, já haviam matado o boi para o churrasco e preparavam os espetos e o fogo. Todos agruparam- se para olhar a cascata; a água caía de uma al tura enorme, entre pedras e plantas, formando um lago escuro embaixo. O lugar era frio; muitas p essoas começaram a dizer que estavam com arrepio s e encolhiam-se friorentas. Outros preparavam as varas de pescar; outros entraram pela mata a dentro, à procura de orquídeas e plantas raras. Gina recomendou a Eugenia que não se afastasse muito com as crianças; Zelinda começou a pular de uma pedra a outra, a fim de se aproximar mais da cascata e refrescar-se com as gotinhas d’á gua; levou um escorregão e quase caiu; deu grito s estridentes e chamou a atenção de todos que es tavam perto. Dona Julica ralhou: - Você vai cai r e se machucar, minha filha. Sente numa pedra. Ela deu mais uns passos com cuidado e foi senta r-se perto do padre Ernesto; serenamente, ele ac ompanhava o curso d’água. De repente, ela pergun tou: - Padre, eu ouvi seu sermão no domingo. É verdade que Cristo mandou parar a tempestade? - É verdade. Ele era Cristo. - Mas, padre, o sen hor não viu. Pode ser uma lenda. - Eu não vi, d ona Zelinda, mas outros viram antes de mim; vira m e contaram. Assim as noticias vão rolando pelo mundo de boca em boca. E assim chegou até nós. Ouviu-se o ruído da água bater contra as pedras ; mais longe o som abafado das conversas, depois uma voz disse: "Desta vez pesquei. Quer ver?” Zelinda olhou para o padre Ernesto: - Pois escu te uma coisa. Eu só acredito naquilo que vejo. O mais não creio. Podem vir me dizer isto ou aqui lo, que Fulano fez isto, que Sicrano fez aquilo, eu não acredito. Não vi. Padre Ernesto levan tou a cabeça e fixou Zelinda: - A senhora não v ê às vezes os atos, mas tem que acreditar neles, pois vê as conseqüências desses atos. Por exemp lo, acredita na bondade? - Na bondade? - Sim, na bondade. - Acredito. Minha mãe é boa, Gigina é boa, o senhor deve ser bom, pelo menos tem ob rigação. Portanto, acredito. Ele sorriu: - Mas a senhora não vê a bondade e ela existe. A senh ora vê as conseqüências da bondade, de um ato bo m, generoso. Ela riu e pegou uma plantinha que estava à beira d’água: - Ora, padre Ernesto, nã o se pode comparar um sentimento com um fato, um episódio. Bondade, ódio, amor, tudo isso são se ntimentos e a gente acredita porque tem provas de que eles existem. Agora esse caso de Cristo mandar parar a tempestade e dizer: "Homens de po uca fé... etc." é difícil a gente acreditar porq ue não viu o ato material. Entende? - Mas exi stem as provas, dona Zelinda, assim como existem provas de amor e de ódio. As provas ficaram. A senhora acredita na bondade ou no ódio porque te m provas; Cristo também deixou provas da sua p assagem pelo mundo, provas impagáveis. Todos os atos que praticou, de bondade, de indulgência, d e perdão, foram provas, foram testemunhos que deixou. E os milagres então? Também não acredita ? Ela esmagou a plantinha entre os dedos e chei rou: - Ah! Hoje é difícil a gente acreditar em milagres. Olhe, padre, se Cristo voltasse ao mu ndo, ninguém acreditaria. Então se aparecesse um homem qualquer, mal vestido, andando entre pe scadores e gente humilde e dissesse Eu sou Crist o. Quem ia acreditar? - Como não? Padre Ernesto se animou: - E se na sua frente, esse homem fi zesse parar a tempestade? Se ele tomasse um pão e de repente uma centena de pães saísse de suas mãos, não acreditaria? E se ele curasse um lep roso, não acreditaria? Ela baixou a cabeça. - D iriam logo que era um fato sobrenatural, tapeaçã o ou a ciência provaria que não era milagre. O padre sacudiu a cabeça e olhou a cascata com olh ar melancólico: - Ah! Dona Zelinda, o pior cego é aquele que não quer ver. - Mas eu quero ver, padre. Eu quero. Ele sorriu com indulgência: - Não parece. Só acredita naquilo que vê. Muitas vezes não vemos um fato, mas vemos as conseqüên cias dele. Não se vê o perdão, mas ele existe. C omo Cristo com seus milagres, com seus atos de bondade, de perdão, deixou provas irrefutáveis de que existiu. Ela começou a rir, a mão dentro d’água: - Tudo é brincadeira, padre. Estou bri ncando com o senhor. Falei isso só para provocá- lo. Gosto de provocar certas pessoas. Que planti nha cheirosa, já viu? Ele suspirou e olhou a ca scata novamente: - A natureza humana é insondáv el. - Por que insondável? Acho que não tem nada de mais. Ouviu-se a voz de Gina chamando a fil ha: "Assim você fica toda molhada, meu bem. Venh a cá. Ainda bem que eu trouxe outro vestido para trocar. Cuidado. Não vá cair!" Mais além, don a Belmira e dona Julica, auxiliadas por mais dua s senhoras, abriam os pacotes que haviam trazido , sobre uma mesa improvisada na grama. Dr. Ferna ndo, ajoelhado no chão, colocava garrafas de c erveja e de limonada num lugar fresco à beira do lago, para refrescar. Gina tirou o vestido de H elena e vestiu outro. Dona Odete aproximou-se e sentou-se na pedra ao lado de Zelinda: - Estã o com muita fome? O churrasco está quase pronto. Já é meio-dia. Zelinda aborreceu-se com a inte rrupção; não respondeu e voltando-se para o padr e Ernesto, perguntou: - Por que é insondável, p adre? Tem provas também? Ele riu: - Centenas. Dona Odete também deve ter e a senhora também. E explicou a dona Odete o motivo da palestra; el a ficou pensativa, depois disse: - Padre Ernest o tem razão. As pessoas às vezes cometem atos qu e a gente não compreende, para os quais não há e xplicação certa, lógica plausível. Conte algum c aso, padre Ernesto. O senhor deve saber muitos . Ele sorriu e não respondeu, perceberam que nã o queria falar. Dona Odete continuou: - Eu me l embro de um fato que minha mãe contava sempre, u m fato tão complicado, tão complexo, tão inexpli cável que para ele nunca encontrei resposta. E p rova quanto é insondável o coração humano e mu itas vezes a própria pessoa não sabe o que sente no coração. Zelinda enxugou a mão apressadamen te no lenço, interessada na história: - Pode co ntar? - Posso. Na cidadezinha onde meus pais re sidiam, no fim da linha Sorocabana, deu-se o cas o que vou contar, há muitos, muitos anos. Minha avó sempre foi muito religiosa e fazia parte d e várias irmandades; nessa época, ela era presid ente da irmandade do Coração de Jesus. Reunia as zeladoras uma vez por semana na igreja e tratav a de assuntos referentes à irmandade. Ora, há várias semanas que corria um boato muito esquisi to, prenunciador de escândalos, pela cidade: diz iam que a senhora do Juiz de direito namorava um fazendeiro casado e pai de vários filhos. Ess a senhora tinha também quatro filhos, era muito religiosa e fazia parte também dessa irmandade. Sabem o que são esses boatos em cidades pequen as; crescem dia a dia com a maior facilidade e n inguém sabe de onde partiu. Só se falou nisso du rante uma semana inteira. Minha avó continuou a reunir as zeladoras como se não soubesse de na da; no íntimo, decerto não acreditava. Pois bem! Um dia, depois da reunião na igreja, minha avó estava sozinha, preparando-se para sair quando viu a senhora do Juiz entrar e dirigir-se a ela . Essa senhora não tinha assistido à reunião, só chegou à igreja depois que todas haviam saído . Perguntou assim pra vovó: "Dona Chiquinha, a s enhora tem ouvido falar mal de mim, não tem? Tem ouvido falar o que estão falando por aí?" Vov ó ficou sem jeito e ela continuou: "Tudo é calún ia, dona Chiquinha, tudo é calúnia. Sou inocente . Tudo que falam de mim, é mentira. Peço à senho ra que não acredite. Foi por isso que vim hoje falar com a senhora. Todos sabem quanto a senho ra é criteriosa, e eu faço questão que saiba que tudo é mentira. Não sei por que me caluniam a ssim, não sei por quê. Pretendo continuar a freq üentar as reuniões da irmandade e creia na minha palavra, na minha sinceridade. Estou sendo horr ivelmente caluniada, peço que creia em mim." M inha avó, morrendo de pena dela, disse que acred itava nessas palavras e ficasse sossegada, pois a defenderia da calúnia sempre que pudesse. A moça ainda falou mais coisas, chorou e protestou sua inocência. Vovó consolou-a como pôde, depoi s se separaram. Essa noite, vovó contou a histór ia para vovô e eles discutiram; vovô disse que a moça era uma grande mentirosa. Vovó defendeu- a energicamente dizendo que a verdade havia de b rilhar novamente e eles todos haviam de ver a calúnia que pesava sobre a inocente. Para encurt ar a história, no dia seguinte, vejam bem, no di a seguinte, no primeiro trem que deixava a cidad e, às cinco horas da manhã, a mulher fugiu com o fazendeiro, abandonando marido e filhos e nin guém nunca mais soube dela. Disseram que tinham fugido para o Acre, mas ninguém sabe ao certo. Tanto o juiz de Direito, como a mulher do fazen deiro não deram um passo a fim de procurá-los. A gora pergunto eu: Por que essa mulher que com ce rteza já tinha premeditado a fuga, foi falar c om vovó e pedir que acreditasse na inocência del a e que tudo era mentira? Por quê? Nunca pude co mpreender. Dr. Pinheiro e Dr. Fernando disputav am para ver quem pescava mais peixinhos. Gina co meçou a preparar uma frigideira para fritá-los. Padre Ernesto ficou silencioso olhando a água. Zelinda arriscou: - Já sei. Quando ela falou c om sua avó, não pensava ainda em fugir. Pensava em ser boa e honesta. Odete Pinheiro retorquiu: - Como? Então uma fuga tão sensacional pode se r resolvida em poucas horas? Num tempo em que nã o havia telefones, nem combinações rápidas? Ela já tinha pensado em tudo, abandonou o marido e quatro filhos. Foi horrível. - Então por que f oi falar com sua avó? - Quem pode saber? Até ho je não achei a explicação. Por isso o padre Erne sto falou sobre o quanto é insondável a natureza humana. Quem pode ler nos corações? O padre so rriu e acenou para Dr. Fernando que estava chama ndo-o; o churrasco estava pronto. Falou lentamen te: - Não sei. Há muito tempo desisti de pensar nesses problemas. Problemas humanos. São indeci fráveis para mim. Agora pergunto a dona Zelinda : "Como podemos acreditar nessa fuga se nós não vimos?” Dona Odete Pinheiro que já estava de pé , olhou estranhamente para o padre Ernesto: - M inha avó contava a historia, padre Ernesto, toda a cidade soube e comentou durante anos inteiros ; o senhor não acredita então? - Acredito. Acre dito em tudo o que contou. Quero saber se dona Z elinda acredita, pois ela tem um hábito muito es tranho, dona Odete, só acredita naquilo que vê. Zelinda levantou-se auxiliada por Odete Pinheir o; com o vestido pelos joelhos, começou a pular de pedra em pedra. Riu-se e falou: - Brincadeir a, padre. Já disse que tudo é brincadeira, gosto de brincar. Voltou-se para dona Odete: - Já s ei, dona Odete, ela falou para sua avó para pode r ser defendida quando a atacassem. Dona Odete p arou: - Mas como minha avó podia defendê-la se ela foi pelo pior caminho? - Bolas; então não s ei. Vamos comer churrasco. Desisto de compreende r. Sentaram-se no chão, à volta da mesa improvi sada; entre risadas e frases alegres, começaram a comer e a beber. Um pouco mais longe, as crian ças mostravam o que haviam encontrado na mata. Sentadas, esperavam que as servissem. De repent e, Zelinda falou; com um pedaço sangrento de car ne no prato de papelão, olhou o padre: - Olhe, eu esperava tudo num piquenique, mas conversar s obre o que conversamos, nunca! Todos riram e al guns quiseram saber o assunto: - Que foi que fa laram? - Sobre que assunto? - As profundezas d o coração humano. Do que ele é capaz de fazer. Dr. Pinheiro riu-se: - Ah! Isso é assunto para um livro. Zelinda replicou: - Para um livro, s im, mas para um piquenique? Pipocas! Todos se e ntreolharam e sorriram; a irmã de Dona Georgina era muito engraçada, mas tão diferente dela, tão diferente. .. Nem pareciam irmãs... No domingo seguinte após o piquenique, Gina foi convidada para cantar na igreja durante a missa das dez ho ras. Zelinda admirou-se: - Você também canta na igreja? Não sabia. Gina corou: - É a primeira vez que padre Ernesto me pede para cantar. Por que não hei de ir? Zelinda levantou os ombros n um gesto de pouco caso; resmungou: - Só faltava isso! Cantar na igreja! Está uma verdadeira bea ta. Gina resolveu cantar a "Ave Maria" de Gouno d. O domingo amanhecera chuvoso e feio; quando e stavam se aprontando, Zelinda disse que não iria e quando todos já estavam no automóvel, ela a pareceu, apressada, um casaco cinzento sobre o v estido de listas amarelas, na cabeça o chapéu co r de gema de ovo. No momento de entrarem na cida de, a chuva diminuiu, mas havia água barrenta escorrendo nas sarjetas e das árvores caíam gros sas gotas. O sol apareceu palidamente e Gracinha gritou: -"O casamento da raposa! A raposa está casando. Sol e chuva! Dirigiram-se imediatamen te para a igreja que estava repleta. Correra pel a cidade que dona Georgina iria cantar e toda a gente queria ouvi-la. Durante toda a missa, ouv iu-se a voz maravilhosa de Gina; era uma voz for te, cheia e harmoniosa. Pôs toda sua alma na mús ica, pois o canto era para ela uma das razões de viver. O povo que enchia a igrejinha ouviu, e mocionado. À saída da missa, foram cumprimentá-l a: - Que voz! Que encanto dona Georgina! - Eu fiquei até arrepiada! - Mas é uma maravilha! - Nunca se dedicou ao canto? O Juiz de direito q ue entendia de música, disse, enlevado, os olhos para o alto: - Mas é voz de teatro! Voz de sop rano e que voz! Se fosse cantar numa Companhia L írica, faria um sucesso nunca visto! Outro diss e: - Entendo pouco de música, mas posso conside rá-la uma cantora excepcional. Se fosse cantar n o teatro, sua carreira seria brilhantíssima! De um lado, um tanto esquecida, Zelinda mordia os lábios de inveja ao ouvir os elogios feitos à ir mã; abria e fechava a bolsa de couro num gesto a utomático e nervosa. Pensava: "Sempre foi assi m. Sempre. Ela em primeiro lugar, eu em segundo. Em beleza, em talento, em elegância, em tudo. D epois ainda encontra um marido bom que a adora e vem morar nesta cidade vagabunda onde é queri da por todos. Simplesmente querida. Por quê? Por que tudo para ela e nada para mim? Tenho ódio q uando penso nisso. Tenho ódio.” Sorriu para d ona Sinhá que se dirigiu a ela nesse momento: - Sua irmã tem uma voz privilegiada. Meu marido q ue entende muito de música, sempre freqüentou Lí rico, disse que a voz dela é admirável. A senhor a também canta? - Não, senhora. Encanto. Dona Sinhá não compreendeu logo e sorriu, contrafeita , depois bateu de leve no ombro de Zelinda: - S empre brincando, não, dona Zelinda? - Não me ch ame de Dona, diga Zelinda só. Dona Sinhá não re spondeu. Dirigiram-se para a casa do padre Ernes to que ofereceu um chocolate aos amigos. Quinze dias depois, dona Julica, Zelinda e Gracinha vo ltaram para S. Paulo; foram acompanhadas até o ú ltimo instante pelas principais famílias da cida de. Na estação, rodeavam-nas e pediam que volt assem logo que pudessem, pois ali deixavam verda deiros amigos. Uns levaram flores, outros doces, outros pamonhas para comer na viagem. Os prot estos de amizade e de "Não se esqueça da gente" foram repetidos até o último momento; já no trem , depois de colocar os pacotes e as flores nos l ugares certos, ainda ouviam, debruçadas nas ja nelas, as últimas recomendações: - Voltem em Ju nho, nas férias de Gracinha. - Não se esqueça d e mandar o endereço da costureira que a senhora prometeu, dona Zelinda. - Esperamos breve notic ias suas, dona Julica. - Dona Julica não vá se esquecer da receita de pé-de-moleque. Zelinda p ediu que suspendessem Helena; queria beijá-la pe la última vez. Gracinha estava chorando, Zelinda comentou: - Não chore, boba. Nós voltamos. - Adeus. Adeus. Obrigada pelas pamonhas. - Pelas flores também. Pelos doces, por tudo. - Adeus, Gigina, até por lá. Fernando, adeus. Quando fez a promessa de voltar no próximo ano, Zelinda es tava certa de cumpri-la, mas não podia adivinhar os caprichos da sorte, pois nunca mais voltou a Pinheiral. XIV Seis meses depois, Gina te ve outra menina, Ana Luiza. Nesse ano, a mãe esc reveu que não podia ir visitá-la porque estava c om reumatismo e a viagem era muito longa. No m ês seguinte, Zelinda escreveu uma carta queixand o-se; dizia que estava sofrendo do coração. A mã e, o marido e o médico não queriam que ela soube sse, mas descobrira por acaso e sentia-se mal. Emagrecera muito e talvez fosse preciso uma ope ração. Não tinha vida para muito tempo. Queixava -se de sufocação no peito, principalmente do l ado esquerdo; achava que era um tumor no seio, a pesar de ninguém falar, sofria. Pretendia fazer uma estação de águas para ver se melhorava, pois o médico recomendara e pedia a Gina "pela gra ndes amizades que nos uniu sempre, pois nem toda s as meias irmãs vivem unidas como nós, desde pe quenas, peço que me mande algum dinheiro para a viagem.” Gina mostrou a carta ao marido; reso lveram pagar a estação de águas para dona Julica também e mandaram o dinheiro; com a pressa de s eguirem viagem, ninguém lembrou de agradecer; mais tarde, Zelinda lembrou-se e disse: - També m o que é isso para eles? São tão ricos, tem aqu ela fazenda tão grande com aquele mundo de gado que podiam dar até mais. Isso é uma migalha para eles. Zelinda voltou quase carregada da estaçã o de águas; sentiu-se pior de repente e teve um colapso. Dona Julica levou-a imediatamente para S. Paulo e quando o médico a viu, pediu mais d ois colegas para uma conferência e varias radiog rafias. Declararam então a verdade à mãe e ao m arido; Zelinda estava mal, deveria ser operada q uanto antes. Gina recebeu o telegrama quase à ho ra do jantar; resolveu seguir no dia seguinte no primeiro trem. As crianças ficariam com Dr. F ernando; Ana Luiza já não mamava, tomava sopa de legumes na xícara. Passou a noite sem dormir pe nsando na irmã; no dia seguinte de madrugada b eijou os filhos e seguiu para a estação, o coraç ão apertado de saudades das crianças. Antes de embarcar, recomendou a Dr. Fernando tudo o que j á recomendara antes, despediu-se do chefe da est ação e do telegrafista que vieram apertar-lhe a mão e desejar "prontas melhoras para dona Zeli nda.” Sentiu lágrimas nos olhos quando viu a ci dade desaparecer da sua vista; queria que o temp o corresse como o trem e pensava na volta, quand o apertasse os seres queridos em seus braços o utra vez. Chegou a S. Paulo no dia seguinte, de pois de uma longa noite de viagem; dirigiu-se pa ra a casa da mãe, na rua Rego Freitas. Lá inform aram que Zelinda estava no Sanatório Santa Cat arina, fora operada nessa manhã e ia passando re gularmente. Gina foi para o hospital; encontrou a mãe desolada. Abraçou Gina sem perguntar pelo marido e pelos filhos, só pensava na filha doe nte, só Zelinda e a doença de Zelinda existiam p ara ela. Pegou Gina pela mão e levou-a para o qu arto da irmã; pelo caminho, Gina foi perguntan do o que havia e como fora a operação. Dona Juli ca falou com lágrimas nos olhos: - A operação f oi horrível, Gigina. Tiraram o seio esquerdo. G ina parou no meio do corredor, umas das mãos sob re o peito: - Não diga, mamãe. Coitada da Zelin da! Então o que era? Ela me escreveu que era no coração que sentia as dores, depois disse que ta lvez fosse um tumor. - Ela não quer que ninguém saiba, nem você, mas foi um tumor maligno que e la teve, tirou hoje. Finja que não sabe. Encost ada na parede do corredor, Gina ficou pálida, se m ver nada do que se passava à sua volta. - Ser á possível, mamãe? Dona Julica enxugou os olhos: - Pois foi isso que estou contando. Vamos agor a para lá. Você precisa animá-la, dar-lhe corage m. O quarto estava na penumbra; percebia-se um vulto sobre o leito; dona Julica abriu ligeirame nte a veneziana e debruçou-se ao lado da doente: - Olhe quem chegou, minha filha. Gigina! Viajo u a noite inteira e o dia de hoje para vir fazer uma visita a você. A mão de Zelinda moveu-se e a cabeça voltou-se no travesseiro, mas não diss e uma palavra. A mãe tornou a falar: - Zelinda! Olhe quem está aqui. É Gigina que veio ver você . Gigina. Você perguntou por ela antes de ser op erada. Gina inclinou-se também: - Como vai, Ze linda? Mamãe disse que você foi feliz na operaçã o e está melhor. Ela sacudiu a cabeça: - Estou pior! Dona Julica estremeceu: - Está melhor. Está melhor. Não diga que está pior, está melhor . Durante toda a semana, dona Julica, Zeca e Gi na passaram horas inteiras no hospital, ao lado da doente. Oito dias depois, as melhoras se acen tuaram visivelmente. Dona Julica ficou animada : - Está muito melhor. Essa doença é assim mesm o. Dá esse abatimento, mas depois você sara. Já está sarando. Gina observava as feições desfigu radas, os círculos roxos à. volta dos olhos, a m agreza de Zelinda. Para esconder a emoção, começ ou a falar: - Assim que você melhorar, vai comi go para Pinheiral. Lá está mais bonito agora. O jardim está lindo, você precisa ver. Você nem c onhece Ana Luiza, está com um ano e quatro meses . Anda, corre e está até falando algumas palav ras. Um encanto. Sentada na cama, do outro lado da cabeceira, dona Julica observou o rosto magr o da filha; sentia uma aflição quando a via desa nimada. Falou também: - Vamos com Gigina para P inheiral. Levamos Gracinha e passamos lá uma tem porada bem grande. A paineira está com flor, Gig ina? - Ih! mamãe. Que beleza está a paineira! I a esquecendo de contar à senhora. Se Zelinda pud er viajar nestes vinte dias, alcança a paineira ainda com flor. Olharam ambas para Zelinda; ela moveu lentamente a cabeça: - Não tenho mais te mpo para ver a paineira. Dona Julica torceu as mãos num gesto desesperado; sua voz era angustio sa: - Não fale assim, Zelinda. O que me mata é esse seu desânimo para tudo. Por que fala assim para encher de tristeza o coração da gente? Gigi na veio de tão longe para ver você e levar dep ois para a fazenda. Vislumbrando um leve sorris o no rosto de Zelinda, falou mais animada: - Es cute, filha, vamos todos para a fazenda de Gigin a. Que temporada boa vamos passar lá... Organiz aremos piqueniques como aquele da cascata, lembr a-se? Vamos receber aquelas visitas todas: dona Sinhá, dona Carmen, dona Odete, dona Belinha.. . dona... Como é mesmo que chama? A mulher do Dr . Cosme? - Dona Teodolinda. - Dona Teodolinda, padre Ernesto. Lembra do padre Ernesto, Zelinda ? Ele vai ficar com cara de tacho quando você pu xar a piteira perto dele. Depois vai comer coalh ada todos os dias, ovos quentes todas as manhã s. Eu levo para você no quarto, quer? E aqueles bolos de fubá que a Vicência faz? Lembra? Com pe daços de queijo dentro... Zelinda fez um gesto de impaciência. Dona Julica calou-se; houve um b reve silêncio, depois ela pediu que fechassem a janela. Quando Gina voltou para perto da cama, disse: - Que todos vão para o diabo... para o diabo... E afundou o rosto no travesseiro. Dona Julica saiu do quarto soluçando; queixou-se par a Gina: - É sempre assim, Gigina, não quer sabe r de nada, nada. Uma indiferença para tudo... N em se importa mais com Gracinha, com Zeca, com n inguém. Pobre de minha filha. Enxugou ligeirame nte os olhos e perguntou: - O que você acha, Gi gina? Acha que ela vai sarar? Está melhor? Gina apoiou o braço sobre o ombro da mãe: - Não sei , mamãe. Penso que ela vai bem. Devemos ter espe rança, os médicos dizem que é assim mesmo, ela v ai melhorar. Ela que tem tanto amor à vida, há d e sarar... Nessa semana, levaram Zelinda de vol ta para casa e durante os quinze dias que Gina p assou em S. Paulo, não notou melhoras na irmã. R esolveu voltar a Pinheiral porque sua presença era inútil em S. Paulo, Passou uns meses na faz enda tendo sempre noticias da irmã; Zeca escrevi a que Zelinda estava sempre na mesma, sempre na mesma. E de repente, um dia, foi novamente cha mada por telegrama; Zelinda estava pior e talvez fosse preciso outra operação. Quando entrou na casa da rua Rego Freitas, dona Julica contou t udo no vestíbulo, antes que Gina tirasse o chapé u: - Ah! Gigina, o que temos sofrido. O tumor d o seio foi tirado, agora apareceu outro no pulmã o. Os olhos muito abertos fixos em dona Julica, Gina ficou imóvel, sem saber o que dizer. Dona Julica deu um gemido: - O pior é o sofrimento d ela, sofre demais, demais... - Não é possível, mamãe. No pulmão? - No pulmão. - Então... não tem cura. Dona Julica soluçou, apoiada na chapel eira, o braço de Gina sobre seu ombro. Gina tamb ém começou a chorar e tirou lentamente o chapéu para dependurá-lo no cabide. Bateram na porta ; dona Julica foi atender enxugando os olhos; er a uma vizinha pedindo notícias de Zelinda. Gina ouviu a voz da mãe falando com convicção: - Est á bem melhor, obrigada. Já está mais animada, am anheceu alegre hoje. Já conversa; está contente com a chegada da irmã. - Ah! Sua outra filha ch egou? - Chegou sim, senhora. Veio visitar Zelin da, sempre foram muito amigas. Nunca se separara m. Uma amizade como esta estou para ver outra ig ual... Nunca se separaram. - É tão bonito isso. - Nem fale. Gina pensou: "Ela sabe que Zelind a está muito mal e diz a todos que está melhor, bem melhor. Quer enganar-se a si própria. Coitad a.” Durante uns dias o estado de Zelinda não se modificou; parecia melhor um dia, de repente ca ía em grande abatimento; tomava injeções para di minuir as dores. Amigas e vizinhos telefonavam todos os dias; outros vinham vê-la e ficavam co nversando com dona Julica, dando coragem, contan do casos semelhantes em que a doente havia se curado. Dona Julica vivia em estado de desespero ; quase não dormia, sempre ao lado da filha. Hav ia outra cama no quarto, onde ela se recostava, mas a qualquer movimento da doente, estava de pé, aflita e desgrenhada: - O que é, Zelinda? E stá sentindo alguma coisa? Sente dor? Seu almoç o era uma xícara de café e um pedaço de pão que a criada trazia numa bandeja e ela comia ali mes mo no quarto, entre os cheiros dos medicamentos. Seu jantar era um prato de sopa que tomava da mesma maneira, às pressas, às vezes de pé. Em v ão, Gina pedia que descansasse um pouco, fosse c omer na sala de jantar enquanto ela ficava com Zelinda, dormisse algumas horas noutro quarto. Não. Como se tivesse medo de que alguém roubasse a filha se ela se ausentasse, ficava ali noite e dia vigiando, os olhos fixos em Zelinda, inc ansavelmente. Disputava uma luta silenciosa com a morte; era como se dissesse: "Não. Ela é minha e você não a levará enquanto eu viver. Não a levará." Coitada. E a morte a levou. Na segunda quinzena, Zelinda melhorara consideravelmente; sentava-se numa cadeira do quarto, interessava-s e por tudo, mandou fazer um chapéu novo, falou e m mandar fazer vestidos brancos para o verão. Pediu à mãe que fosse dormir no quarto dela, não era necessário ficar ali a noite inteira no mes mo quarto. Para que? Se ela estava passando tã o bem? E ria, cheia de animação. Gina começou a preparar-se para voltar à fazenda; sentia intens amente a falta do marido, dos filhos. Escrevia de dois em dois dias e recebia cartas de Dr. Fe rnando também de dois em dois dias. Eram cartas apaixonadas como se essa separação fosse a prime ira entre eles: "Meu adorado marido. Não posso mais de saudades suas e dos filhos queridos. An a Luiza não sente muita falta de mim? Zelinda co ntinua na mesma e ainda não posso deixá-la. Ne m acredito quando chegar o dia de abraçá-los." A s respostas eram idênticas: "Minha querida Georg ina, sem você Pinheiral é demasiado triste. Onte m choveu e ventou; o barulho do vento entre as árvores me deixou tão nervoso que tomei uma res olução; se até o fim da semana, você não voltar, vou até aí...” Alguns dias depois, acentuaram- se as melhoras de Zelinda e Gina preparou-se par a deixar S. Paulo. Algumas vezes, a irmã descia para jantar; nessa noite, estavam todos reunid os à volta da mesa e Zelinda conversou serenamen te. Não disse a ninguém que ouvira uma conversa dias antes. O marido dissera: - A radiografia c onfirmou o que eu esperava. Infelizmente. Gina perguntou em voz baixa: - Então é verdade? Mas é horrível isso. - É verdade. Localizou-se agor a no pulmão. - Coitada! Ouviu a voz de dona Ju lica: - Mas câncer é uma coisa medonha. Pobre d e minha filha! Pobrezinha! Gracinha que saía ce do para o colégio e voltava para o jantar, pergu ntou, satisfeita: - Deixe eu ir também, mamãe? Dona Julica pensou que ela ia dizer não, como s empre. Descascando uma pêra, Zelinda perguntou s implesmente: - Já fez as lições? - Fiz quando cheguei. Só falta estudar um pouco de história, mas eu estudo amanhã bem cedo, levanto de madrug ada. Admirada com a calma da mãe, perguntou com voz meiga: - Deixa, mamãe? , Ela respon deu sem levantar a cabeça: - Pode ir. Os olhos da menina brilharam de contentamento; acabou de jantar apressadamente, passou o guardanapo na bo ca com um gesto brusco e levantou-se para ir s e aprontar. A avó reclamou: - O café, Gracinha. .. - Não quero café, vovó. Dá licença... E sub iu correndo as escadas. O pai sorriu e mexeu a x ícara de café; olhou a esposa. Ela estava distra ída, olhando a mesa e comendo pedacinhos de pêra ; depois pediu um pouco de café. A mãe adverti u, sobressaltada: - O médico não quer que você tome café, filha. Ela fez um gesto de indiferenç a: - Um dia só, mamãe, não faz mal. Olhou o ma rido e Gina como a pedir apoio. Gina perguntou: - Há quanto tempo você não toma café? - Faz mu ito tempo. Nem sei quanto. Um pouco só não faz m al, não acha? Zeca aconselhou: - Misture um po uco d’água, não tome forte. - Não. Ou tomo um p ouco de café forte ou nada. Dá uma xicrinha, mam ãe. Dona Julica preparou o café, um pouco contr ariada. Queria que a filha seguisse o regime ceg amente, pois esse regime talvez dependesse as me lhoras dela; sabia que não havia cura, mas que ria prolongar aquela vida o mais possível. E o m édico dissera: "Talvez possa viver muito ainda". Zelinda tomou o café saboreando, os olhos fech ados, Gina teve pena: "Coitada. Que suplício." Z eca deixou o guardanapo amassado sobre a mesa e levantou-se; Gracinha já vinha descendo a esca da, de dois em dois degraus; levava na cabeça um chapeuzinho de feltro verde. - Vamos, paizinho ? Dona Julica pegou o guardanapo do genro, alis ou-o sobre a toalha e dobrou-o cuidadosamente- G racinha beijou a mãe na testa num gesto carinhos o: - Até logo, mamãe. Zelinda levantou a cabeç a e olhou para a filha; parecia querer dizer alg uma coisa, chegou a abrir a boca para falar. Tod os ficaram olhando e esperando, ela apenas dis se: - Adeus, filhinha. Dona Julica e Gina olha ram com admiração; nunca Zelinda dizia assim par a a filha: "filhinha". A própria menina ficou tã o admirada que tornou a beijar a mãe. Quando o marido também saiu Zelinda disse: - Vou me dei tar; estou cansada hoje. Boa noite, mamãe. Boa n oite, Gigina. Dona Julica perguntou: - Vai tão cedo? - Vou. - Então eu levo o chá para você. - Hoje não quero chá, mamãe. Obrigado. Já tome i café. Gina observou a irmã quando subiu a esc ada; estava magríssima e abatida. "Coitada. Que sofrimento". Zelinda entrou no quarto e fechou a porta com chave; não queria ser interrompida n o que ia fazer. Acendeu a luz e aproximou-se do espelho; olhou-se bem. "Terei coragem? Natural mente. Hei de ter coragem." Abriu a primeira gav eta do guarda roupa; tirou umas cartas, releu-as ligeiramente e rasgou-as; eram cartas de amigas , da irmã, do marido; sempre gostara de guarda r essas cartas; de vez em quando sentia prazer e m lembrar. Abriu a segunda gaveta, onde havia al gumas contas e recibos; abriu a conta da costu reira e para que ficasse bem claro quanto às sua s pequenas dívidas, pegou o lápis e escreveu no mesmo papel, em baixo, estas palavras: "Devo a M me. Luciana, a quantia de 465$00.” Pôs a data de dois dias antes, assim não haveria dúvida. P rocurou um recibo velho da chapeleira; precisava avisar a família que tinha um chapéu novo, verm elho na casa de dona Olga. Não queria deixar n ada escrito diretamente, era pior. Escreveu em b aixo do recibo: "Dona Olga deve me mandar por es tes dias, até sábado, o chapéu de feltro verme lho." Pôs a data atrasada. Colocou os dois papéi s sobre a penteadeira, sob um vidro vazio de per fume; quando gostava muito de um perfume, tinha a mania de guardar o vidro vazio. Destapou e c heirou antes de pô-lo sobre os papéis. Pensou: " O que mais? Não quero esquecer nada. Quero ir em paz comigo mesma. Em paz.” Abriu a porta qua se sem ruído e ficou escutando: "Primeiro precis o garantir o principal. O principal." Ouviu as v ozes da irmã e da mãe conversando com uma das vi zinhas na sala de jantar; da cozinha, vinha o ruído abafado da lavagem dos pratos. Silenciosam ente, encaminhou-se para o quarto do marido; ent rou; acendeu a luz e sem perder tempo, dirigiu -se à mesinha da cabeceira. Lá estava o que proc urava, no fundo da gaveta, esquecido. Tomou entr e as mãos firmes, o revólver pequeno, preto e br ilhante, enfeitado de madrepérola. "Ele não va i achar falta nisto, nunca lembra de usá-lo. Ter ei coragem? Por que não? Prefiro morrer assim a morrer de câncer. Câncer! Meu corpo está sendo comido, devorado! Sei que é uma morte lenta e d olorosa. Horrível. Prefiro que seja já, hoje mes mo, esta noite. Ficarei libertada deste horror.” Apertou o revolver na. mão direita e deixou o quarto do marido; atravessou o pequeno hall e ou viu as vozes conversando lá embaixo. A irmã dizi a: - A minha mais nova está com um ano e seis m eses. Já fala quase tudo. - As meninas falam ma is depressa que os meninos. Por que será? Ouviu risos. Entrou no próprio quarto; seu primeiro p ensamento foi esconder o revólver, podia alguém entrar antes da hora determinada; colocou-o entr e as roupas de uma gaveta do guarda-roupa. End ireitou-se: "O que mais? Não quero esquecer nada . Se eu acreditasse em Deus... Não, Sempre tive uma teoria só minha...” Riu-se num riso amargo, desesperado. Estranhando o som do próprio riso, aproximou-se novamente do espelho e olhou-se: " Hoje ainda sou eu, uma criatura viva que fala, ri, pensa, anda... Amanhã serei um monte de car ne apodrecida. E acabou-se. Tão bom assim. Que a livio! Se eu viver, sofrerei dores atrozes, não quero! Quero acabar com tudo desde já. E se o revólver não tiver balas?” Dirigiu-se para a ga veta, sentindo certo alivio; não sabia se queria ou não encontrar balas no revólver. E se não ti vesse? Não seria melhor? Abriu a gaveta, tirou o revólver e examinou-o; as balas estavam ali: seis. Então seu destino era esse. Estava escrito . Escondeu-o outra vez; com gestos automáticos, abriu outra gaveta, onde guardava as bolsas e carteiras: "Quero ver quanto dinheiro tenho. Par a que deixar este dinheiro aqui? É pouco, mas pa ra a cozinheira, é muito. Vou dar a ela e à co peira, vou dizer que há muito tempo queria dar e sta gorjeta, mas não tinha dinheiro trocado; est a noite Zeca trocou para mim." Abriu uma bolsa a zul marinho, tirou o dinheiro e contou-o: oite nta e oito mil e quinhentos reis. "Darei cinqüen ta para Benedita e o resto para Joana. Vão ficar espantadas com minha generosidade, mas vão go star muito. Coitadas.” Pegou o dinheiro, foi at é à porta, abriu-a e ficou perto da escada, escu tando. As vozes estavam agora na sala da frente decerto a visita ia sair; ouviu quando Joana e ntrou na sala de jantar para guardar os pratos l avados. Chamou em voz baixa, não queria que a mã e e a irmã ouvissem: - Joana! A criadinha cheg ou ao pé da escada: - A senhora chamou, dona Ze linda? - Chamei sim, venha cá. Joana subiu dep ressa as escadas; perguntou: - Quer que chame d ona Julica? - Não. Não tenho nada. Estou muito bem, quero só gratificar você e Benedita. Joana parou na frente dela, indecisa; Zelinda pôs o d inheiro nas mãos da copeira: - Este é pra você e esta nota de cinqüenta é pra Benedita. Entreg ue pra ela. Joana ficou vermelha e risonha: - Mas é muito, dona Zelinda. - Não, vocês foram m uito boas quando estive doente, trabalharam muit o. Não pude dar antes, mas hoje posso, por isso dou. - Vendo que a criada estava parada no mesm o lugar, continuou: - Agora vou me deitar porqu e estou cansada; avise mamãe que não quero chá h oje. Boa noite. - Muito obrigada, dona Zelinda. Deus lhe pague muito. Ela que já segurara o tr inco da porta, voltou-se: - Olhe, não diga que eu dei o dinheiro, não diga a ninguém. É melhor assim. - Não falo nada. Deus lhe pague. - Está chovendo? - Começou agora mesmo, uma chuvinha fina que nem garoa... Zelinda entrou no quarto e fechou a porta; ouviu os passos de Joana desce ndo a escada: "Está chegando a hora. Terei corag em? Preciso esperar, esperar ainda. Está chove ndo, chuva fina que nem garoa.” Apagou as luzes , tirou os sapatos e deitou-se vestida como esta va. Apagou a luz da cabeceira: "A dor é aqui no pulmão. Câncer no pulmão. Miséria." No escuro, e m silêncio, começou a recapitular sua vida, su a infância, seus amores. Pensou no marido, na fi lha, na mãe. Pensou na irmã, em todas suas amiga s e conhecidas; seu pensamento parecia pular d e um fato a outro, de uma época a outra; parecia querer relembrar toda sua vida nos últimos inst antes que ainda eram seus. Pensou nos vestidos q ue possuíra, nas festas que freqüentara, em tu do que ouvira e vira nessas festas. Recordou-se de um vestido azul de bolinhas brancas; quando o vestia, toda a gente elogiava: "Que elegância ." "Como está bonita hoje." "Que vestido chique. ' Pensou nos livros que havia lido, nos fatos qu e haviam ficado gravados no seu cérebro. "Morr er! Por que ter medo da morte? Deve ser boa, dá descanso e esquecimento. O que adianta viver com o estou vivendo? Sofrendo? Gemendo? Vivendo de i njeções e de palavras de piedade? Até quando? Nunca mais serei forte e bonita, nunca mais pode rei viver. Quero tranqüilidade. Só isso.” Ouviu o relógio da sala de jantar dar dez horas. Sent iu um frio dentro de si e estremeceu: "Falta pou co, falta pouco. Meia hora talvez; não. Talvez mais. Uma hora. Duas horas. Depois... nada.” Ou viu os passos da mãe e a irmã que vinham subindo a escada; rapidamente cobriu-se com a colcha pa ra pensarem que já estava dormindo, caso abrisse m a porta. Sentiu medo; deixara a porta do qua rto fechada a chave; tinha que abri-la, depressa , depressa se não desconfiariam. Tateando no esc uro, foi até à porta, torceu a chave bem devag ar, voltou quase correndo para a cama, deitou-se e cobriu-se. No mesmo instante, a mãe abriu a p orta e enfiou a cabeça dentro do quarto. Escutou . Deu uns passos e perguntou, baixinho: - Zel inda! Ela fez um movimento como se despertasse: - O que é? - Quer um pouco de chá? - Não sen hora. Hoje não, estou muito bem. - Joana me dis se que você não queria, mas o chá faz bem, faz d ormir, o medico recomendou. - Hoje não, mamãe. Estou com sono. - Não quer nada? - Nada. - Se quiser alguma coisa, me chame. - Eu chamo. Os dedos de Zelinda crisparam-se sobre a colcha. A voz da mãe sussurrou: - Então, boa noite. - B oa noite, mamãe. "Era a última vez que dizia: b oa noite, mamãe." Ouviu a mãe fechar a porta do quarto e andar pelo hall. Escutou mais; ouviu a porta do banheiro fechar e abrir, ouviu ruído de portas que se fechavam lá em baixo, depois tu do silenciou na casa. Os bondes passavam longe, com um ruído de ferragens e campainhas. Dez e me ia. Ouviu a voz da irmã dizer boa noite: - Bo a noite, mamãe! Silêncio. Chegara finalmente a hora. Levantou-se, foi até à porta, torceu a cha ve. Acendeu a luz. Num instante, tirou o vestido caseiro; procurou no guarda-roupa um vestido bom e vestiu-o; calçou meias finas. Estava com r oupa fina por baixo; não queria que ninguém toca sse no seu corpo depois de morta. Para que? Ela mesma se vestia para dormir. Iria dormir. Apen as dormir. De repente lembrou-se do seu "diário" ; quando era mocinha, escrevia um "diário" e mes mo depois de casada, escrevera durante muito t empo. Havia se esquecido dele. Procurou-o febril mente na última gaveta; lá estava o caderno entr e dois chapéus; gostava de guardar seus chapéus pequenos em gavetas. Abriu-o. Releu alguns tre chos, não havia nada demais: "25 de Dezembro. Fa z muito calor aqui em Pinheiral, em toda a parte faz calor nesta época. Deve ser bom passar o Natal na Europa, entre a neve e o vento frio. Gi gina mandou fazer o bolo de Natal, com pedaços d e frutas, um bolo enorme. Gracinha bancou o Papa i Noel; durante a noite, colocou no meu sapato , um lindo corte de vestido. Não sei de que jeit o trouxe de S. Paulo sem eu perceber. Todos ganh aram presentes, inclusive os criados. Há grand e alegria na fazenda. Os bois mugem espalhados p elos campos. Vieram contar agora mesmo que nasce ram dois bezerrinhos hoje. Estão todos alegres." Sorriu. Podia acrescentar algumas linhas na ú ltima pagina. Para que? Tudo isso pertencia ao p assado, a este mundo a que ela não pertencia mai s. Iria desertar. Ouviu uma porta se fechar lá embaixo. Assustou-se. O marido e a filha vinham voltando do cinema. Eles nunca entravam no quar to dela a essa hora. Ouvi-os subindo as escadas; de súbito, Gracinha falou atrás da porta: - Mamãe! Está sentindo alguma coisa? Aborreceu-se por ter sido perturbada; teve vontade de não re sponder, mas seria pior. Falou: - Não. Estou be m. A filha desculpou-se: - Vi luz debaixo da po rta, por isso estou perguntando. - Ah! - A fit a é formidável. A senhora precisa ir ver. Pode i r com tia Gigina na matinée. Amanhã tem matinée. - Está bem. - Boa noite, mamãe. - Boa noite, Gracinha. - Papai está perguntando se a senhor a não quer nada. - Não. Obrigada. Sua voz não tremeu. Fechou o "diário", dirigiu-se para a por ta e torceu a chave outra vez para deixá-la aber ta. Tudo estava bem. Apagou a luz maior e deixou só a lâmpada da cabeceira. Tirou o revólver d a gaveta, da mesma gaveta onde colocou o "diário " e encaminhou-se para o leito. Esticou bem a co lcha, prendeu-a, tirou os sapatos, deitou-se, arranjou, as pregas da saia ao lado do corpo. "C âncer. Não. Prefiro morrer, sei que não tem cura ." Ficou imóvel um instante, escutando. Silêncio . Seus lábios murmuraram: "Mamãe! Coitada de m amãe. Os outros não, mas ela vai sofrer." Seus o lhos encheram-se de lágrimas. "Por que será que todo o mundo pensa na mãe em certos momentos d ifíceis da vida? Parece que a gente vira criança outra vez. Mamãe!” Aproximou o revólver da tes ta e sentiu o frio do aço na pele. "E se errar? Não. Não errarei. Eu quero mesmo morrer. Não pos so viver assim, não posso. Sofro horrivelmente, sinto dores atrozes, só a injeção faz passar. Como é que vou viver assim? Até quando? Sou cova rde para sofrer, sou covarde". No último instant e, lembrou-se de que não era covarde, pois tin ha a coragem inaudita de se matar; um último sor riso crispou seus lábios. Lembrou-se de um dia e m que enfrentara um gato tido como louco; toda a vizinhança e as mulheres do cortiço admiraram -na: "Como é corajosa!" Apertou o gatilho. Dona Julica acordou com um ruído esquisito. Que seri a? Um estampido? Um tiro? Um pneu de automóvel? Não era nada, sonhara com certeza. Ficou escutan do longo tempo. De súbito escutou uns gemidos, pareciam de gente. "Zelinda? Não é possível. Se ela quisesse alguma coisa, tocava a campainha, como tem tocado algumas vezes. São os gatos da vizinha; são insuportáveis, não deixam a gente dormir tranqüila. O barulho que ouvi, foi alguma coisa que derrubaram no quintal. Que mania dess a gente ter tanto gato... Amanhã eu vejo o que foi.” Dormiu outra vez. No dia seguinte cedo; quando entrou no quarto da filha, depois de ter dado o prato de aveia para Gracinha que saia às seis e meia de casa, encontrou-a vestida de pr eto, estendida sobre a colcha lisa. A lâmpada da cabeceira ainda estava acesa e a luz esverdeada que se espalhava pelos móveis e pelo tapete, pa recia sinistra. A mão direita de Zelinda apert ava ainda o revólver preto, enfeitado de madrepé rola; apenas um fio de sangue escorria-lhe pelo rosto; o tiro fora direitinho no ouvido direit o. Sua fisionomia estava serena e parecia que um leve sorriso pairava na sua boca; apesar do san gue, do revólver, do quadro desolador, da atitud e de abandono, da morte, de tudo, ela parecia dormir. Com o grito angustioso de dona Julica, todos correram; encontraram-na de joelhos ao lad o da cama, a cabeça encostada no corpo da filha, os braços trêmulos procurando ainda abraçar Z elinda; os olhos estavam secos e seu olhar desva irado pousava sobre o cadáver; seus lábios não c ansavam de murmurar: - Zelinda! Minha filhinha! Houve um momento de pânico indescritível, depo is tudo serenou; nada havia a fazer. Todas as pe ssoas da casa ficaram dentro do quarto, ouvindo os lamentos da mãe desolada: - Filha, escute, filha, sou eu, a velha. Você dizia: Mamãe, você está muito rabugenta, está ficando velha. Escut e filha, não deixe a velha sozinha. Você me deix a sozinha? Abra os olhos, Zelinda, abra os ol hos, nem que seja uma vez, quero ver seu olhar, só uma vez... Zelinda, está me ouvindo? Vamos p ara Pinheiral no mês que vem. Não se lembra do q ue combinamos? Você está me ouvindo? Se não quer responde, sacuda a cabeça para eu saber que voc ê está me ouvindo. Só uma vez, filha, nem que seja só uma vez. Fazia uma breve pausa; seu olh ar enlouquecido passeava pelo quarto sem ver nad a; os cabelos brancos desgrenhados, pálida e des esperada, tornava a falar: - Filha, você dizia sempre: mamãe, este mundo não vale nada, é uma d roga. Uns tem demais, outros não tem nada. Por q uê? É mesmo, filha este mundo é miserável. E n o entanto, você tem coragem de me deixar neste m undo miserável e vai embora? Não, filha, você nã o vai. Não deixo você ir embora. Não deixo. Eu e ntão vou junto. Ah! Aqui eu não fico sem você . Que me importa o resto? Está ouvindo, Zelinda? Filha, está me ouvindo? Eu sou a velha, não dei xe a velha sozinha. Filha do meu coração, você não é a filha do meu coração? Sempre foi, Zelin da, e você sabia disso. Como é que me abandona e ntão? Impossível. Você não vai me deixar- Quem d isse isso? Quem foi? Quero saber quem foi. A cozinheira persignou-se; solícito, Zeca inclinou -se e sussurrou: - Dona Julica, vamos descansar um pouquinho lá dentro. Gigina fica aqui. A se nhora não quer tomar um café? Faz bem... Ela ag arrou-se com mais força às mãos de Zelinda; sacu diu a cabeça dizendo que não queria nada; logo m ais sua voz continuou: - Filha, está me ouvindo ? Mundo desgraçado! Você não vai me deixar sozin ha, não filhinha. Não vai. Não vai. Algumas viz inhas entraram no quarto e começaram a chorar qu ando ouviram os lamentos de dona Julica. Horas p assaram-se. Mais tarde, Gina e algumas pessoas a proximaram-se de dona Julica para levá-la dali ; seu rosto estava desfigurado pela dor e pelo d esespero; começou a gemer e a puxar os cabelos e não quis deixar a cabeceira da filha: - Não vo u. Não saio daqui. Não abandono ela. Me deixem. Me deixem. Zelinda, querem me levar daqui. Está me ouvindo? Tenho certeza que ela me ouve; está sorrindo para mim. Vejam... E quando quis lev antar-se para empurrar as importunas que queriam levá-la, não conseguiu e caiu sem sentidos sobr e a cama. Levaram-na para o quarto; a criada lem brou-se de ir buscar um vidro de amoníaco que dona Zelinda guardava no banheiro para limpar ma nchas de suor dos vestidos; passaram várias veze s o vidrinho sob o nariz de dona Julica; ela a briu os olhos com esforço e de repente lembrou-s e; levantou-se num salto, afastou as pessoas que estavam na frente dela e correu para o quarto de Zelinda, cambaleando e gemendo: - Filha! Fi lhinha! Zelinda! Caiu de joelhos ao lado da cam a e abraçando a morta pela cintura, gemeu e solu çou: - Está me ouvindo, Zelinda? Está me ouvind o? Estou aqui com você, filhinha... Consternada s, as vizinhas rodeavam dona Julica, sem saber o que fazer. Zeca que estava ajoelhado ao lado da cama e segurando uma das mãos de Zelinda, levan tou-se, assoou-se e chegando ao lado de Gina, cochichou no seu ouvido. - E Gracinha? - É verd ade. E Gracinha? Gina prometeu ir buscá-la imed iatamente; ela saíra muito cedo para o colégio e não sabia de nada. Gina vestiu um casaco, pente ou rapidamente os cabelos e chamou um automóve l. No colégio, explicou à Madre o que havia suce dido e pediu que chamassem Gracinha. Enquanto fi cou sozinha na sala de espera, meio escura, pens ou de que forma iria contar a Gracinha, a mort e de Zelinda. Olhou o chão, as cadeiras, a mesa do centro com um vaso azul cheio de cravos; já n ão estavam frescos, deviam ter sido colocados ali dois ou três dias antes, talvez mais. Pensou : "Cravo é uma flor que dura tanto." Olhou os sa patos: "Preciso comprar uns sapatos novos, preto s. Preciso um vestido preto também de crepe... Que crepe? Nem sei. A costureira deve saber. Cr epe romain, crepe cetim, crepe... tem tanta qual idade de crepe. Digo a Gracinha: "Estou tão tr iste, minha filha, sua mãe..." Parando assim no meio da frase, ela compreende. Há de compreender . Ela vai sentir a morte da mãe. Coitada! Zeca também vai sentir, todos queriam bem Zelinda. E eu? Não sei, mas creio que não. Engraçado! Só c onheci o lado mau de Zelinda. Parece que para to dos ela foi boa, para mim nunca foi. Por quê? Penso que tinha inveja de mim. É a única explica ção. Inveja. Sempre foi injusta, maldosa e egoís ta, mas para os outros não, só para mim. Será que há muita gente assim? Não sei. Este mundo é tão engraçado... Mamãe disse que o mundo é isto ou aquilo... Para mim o mundo é Fernando e as cr ianças. Meu Deus! Como eu sinto falta deles. C omo os adoro! Preciso mandar telegrafar a Fernan do. É Gracinha que vem vindo... O que irei dizer ? Eu devia estar chorando, afinal minha irmã m orreu hoje, agora mesmo. Preciso chorar... Se eu chorar, não preciso nem falar, ela compreende.. . Mas não tenho vontade de chorar. Meu Deus! O que irei dizer a ela? Sua mãe morreu agora mesm o. Impossível. Que brutalidade. Sua mãe está mui to mal, Gracinha, está mesmo à morte. Mas depois , chega em casa, encontra a mãe morta, é pior. O melhor é contar já, já. Sua mãe se matou. Com o eu sou estúpida. Um raio de sol entrou pela ja nela e refletiu a poeira do tapete. Tapetinho velho! Tão amassado, tão pisado. Quantos milhare s de pessoas já passaram por aqui? Que saudades de Ana Luiza! Por que me lembrei dela agora? Já sei, porque uma vez ela quis pegar um raio de sol e ficou uma porção de tempo estendendo a mão zinha. Que vontade de apertá-la em meus braços. E Fernandinho? Já sei o que ele vai dizer quan do eu chegar: Mãezinha, o que você trouxe para m im? Meu filho adorado! Agora é Gracinha que vem vindo, vem vindo... O que irei dizer? Meu Deus! Dai-me vontade de chorar... Não é ainda. Eu de via sentir a morte de Zelinda, afinal era minha irmã, crescemos juntas, lutamos juntas, passamos fome juntas, (parece incrível que já passei f ome) choramos juntas, nossa miséria era tão gran de. E não sinto ela ter morrido. Sempre tive pen a dela, mas não afeição, nem amizade, apenas dó. .. Dai-me vontade de chorar, meu Deus... Que h ei de fazer? Não tenho vontade de chorar... Se e u chorasse agora, Gracinha compreenderia e eu ne m precisava falar. Parece até que estou alivia da de Zelinda ter morrido, agora posso voltar pa ra Pinheiral, para o meu mundo. Não, não estou a liviada. Deus me perdoe. Agora é ela. É Gracinha .” No seu passinho rápido e leve, Gracinha entr ou na sala, acompanhada pela Madre Superiora. En trou sorrindo; Gina que estava sentada olhando o raio de sol sobre o tapete, não viu mais raio , viu o vulto escuro da menina interceptando a l uz. Levantou-se sem dizer nada e olhou Gracinha; o sorriso se apagou no rosto da menina; Gina abriu os braços e apertou Gracinha contra si, nu m abraço longo e angustioso. Então Gracinha perg untou, sufocada: - Mamãe, tia Gigina? Gina suss urrou: - Sua mãe, Gracinha, sua mãe. Viu tal a ngústia no rosto da menina que não teve coragem de continuar; a Madre pegou as mãozinhas de Grac inha e apertou-as contra o peito, depois disse, baixinho: - Sua mãe, Maria da Graça, está melho r que nós. Está no céu. Ela deu um grito de dor e começou a soluçar nos braços da Madre; depois voltou-se para Gina: - Mas, quando? Quando ela morreu? Vovó disse que ela estava melhor, muito melhor... - Morreu hoje, depois que você saiu. Seu pai pediu-me para vir buscar você. Vamos te r coragem, filhinha. Temos que ter coragem... N ão falou mais. Gracinha foi soluçando para o aut omóvel; a Madre acompanhou-a aconselhando e conf ortando. Gina não dizia nada, sentia horror de s i mesma porque não tinha vontade de chorar, ne m vendo o desespero da menina. O pai esperava-as na porta da rua; abraçou a filha prolongadament e, depois entraram e subiram devagar as escada s; desde a sala de jantar ouviram os lamentos de dona Julica. As vizinhas e amigas enchiam o qua rto; afastaram-se quando a menina entrou abraçad a ao pai. Dona Julica ainda estava de joelhos ao lado da cama falando com Zelinda: - Está me ouvindo? Filha, está me ouvindo? É Gracinha que vem chegando; você deixa Gracinha também? Fale f ilha... A menina abraçou a avó pelos ombros: - Vovozinha, ela morreu, ela não pode ouvir mais a senhora. Oh! Mamãe, minha mãezinha... Inda ont em quando eu vim do cinema, falei com ela; disse que a fita era boa e ela me disse que ia ver. .. Mãezinha... Começou a beijar as mãos da mãe num desespero, de joelhos ao lado do leito; dona Julica olhou estranhamente a neta; alguém senti a a morte de Zelinda tanto ou mais que ela. Fo i se acalmando ao ver a angústia de Gracinha, de pois começou a consolar a neta; achara afinal qu em precisava do seu consolo: - Não chore assim, filhinha. Ela estava sofrendo tanto. Descansou. Nem dormia mais direito, nem comia, até a respi ração estava difícil. - Mas eu não queria que m amãezinha morresse. Eu não queria. - Mas é a vo ntade do destino. Tinha que ser. - Ah! Vovó, el a era tão boa... - Era boa, sim, minha filha. A h! Gracinha, como eu sofro.... - E eu, vovozinh a? E eu? Eu não queria que ela morresse. Inda on tem de noite falei com ela, ouvi a voz dela. Ela disse: Boa noite, filhinha... Foram se acalman do aos poucos. Levantaram-se e deixaram o quarto , uma nos braços da outra. Pela primeira vez dep ois de muitas horas, dona Julica concordou em to mar algum alimento e descansar; encontrara afi nal um pequeno consolo em Gracinha. Era como um lenitivo para seu desespero, era um raiozinho de sol na sua negra noite, era um bálsamo na sua ferida. Recostada na cama ao lado de Gracinha, ficou durante muitas horas imóvel, quase sem ch orar; só o calor da neta ao seu lado era um cons olo; de vez em quando falavam na morta: - Coi tada de Zelinda! - Não fale assim, vovó, ela es tá melhor que nós. A Madre disse. - Como é que a Madre sabe essas coisas? - Ah! Não sei, decer to é porque ela reza. - O que ela reza? - Reza as orações todas, vovó. E isso consola. - Entã o vamos rezar juntas. - O que? - O que quiser. No quarto vizinho Gina ouviu Gracinha ensinand o dona Julica rezar: - Depois da Ave Maria, dig a: "Jesus, manso e humilde de coração, tornai me u coração semelhante ao vosso". Se a senhora re zar isso uma vez por dia, terá trezentos dias de indulgência. Diga. Dona Julica repetiu em voz alta a oração. Depois perguntou: - Por que tem indulgência? Quem disse isso? - Está escrito no livro de reza, vovó. Quer ver? Houve um longo silêncio. No quarto de Zelinda, as amigas rodeav am o corpo da morta; Gina ouviu uma dizer à outr a: "Este par de sapatos está quase novo. Veja um pouco. Nem foi quase usado." A outra responde u: "Ela fez de propósito, pôs o que havia de mel hor." Gina pensou: "Bobagem. Para essa viagem, o s sapatos não precisam ser novos- Não se vai a pé.” XV Dr. Fernando chegou depois do ent erro; encontrou a casa ainda cheia de gente, flo res pisadas pelo chão, um cheiro esquisito de ve la queimada e flores murchas. Gina estava no q uarto da mãe tentando consolá-la; o médico havia dado uma injeção em dona Julica, depois um calm ante; ela estava recostada na cama, os cabelos b rancos caindo sobre a testa e uma expressão de desespero em toda sua figura. Gracinha estava d eitada, atravessada nos pés da mesma cama e tinh a um lencinho todo molhado que levava aos olho s a todo o momento. Sentada numa cadeira ao lado de dona Julica, Gina passava as mãos sobre os o mbros e os cabelos da mãe numa terna carícia. Pascoalina que chegara de viagem dias antes, est ava sentada noutra cadeira do lado oposto e susp irava enxugando os olhos. Duas vizinhas estavam de pé ao lado de Gina; uma delas falava: - Es sas coisas são terríveis mesmo. Eu me lembro qua ndo morreu minha mãe; quase morri. Passei três d ias sem comer, nem beber, num estado... só vendo . Também eu era mocinha, nunca tinha visto nin guém morrer, podia ter uns quinze anos. A outra vizinha respondeu: - Nem fale. Eu quando perco alguém da família, dou para gritar. Me dá um ne rvoso que não há quem me segure. Lá em casa, já sabem; morreu algum parente e ouviram gritos n a hora do enterro, dizem logo: "Já sabemos. É a Adélia que está gritando." “É um horror, não me contenho.” Pascoalina levantou-se e foi fumar pe rto da janela entreaberta; as vizinhas ficaram olhando para ela com ar de admiração; ela falou depois de ter assoprado a fumaça: - Dona Julic a tem razão de estar tão triste. Perder uma filh a moça, assim com tanta vida... A Zelinda tinha muita vida, era alegre... Onde ela estava, estav a a alegria. As outras confirmaram; ela continu ou: - Perder em tão pouco tempo, não é brincade ira. E depois eram tão amigas. Nunca vi uma long e da outra; Zelinda casou e continuaram a morar juntas, nunca se separaram. Gigina foi morar l onge, viajou pela Europa, mas Zelinda sempre est eve com a mãe. Nunca vi. Uma vizinha sorriu ao contar: - Eu achava até graça quando as três ia m passear juntas: dona Julica, dona Zelinda e Gr acinha. Sempre juntas no cinema, nas visitas, no s passeios... - Não se lembra daquele dia que d ona Julica caiu da escada? Que susto! Dona Zelin da ficou tão aflita, foi correndo lá em casa per guntar se eu não tinha arnica para esfregar na perna da mãe. Eu não tinha, aconselhei passar s almoura quente, fazer compressas e pôr assim no lugar. É muito bom. Ela estava com medo de que a velha tivesse quebrado algum osso. Estava bra nca. A outra vizinha respondeu: - Ela era muit o boa, muito amável. Quando Juquinha ficou doent e, ela perguntava todos os dias pelo menino: O J uquinha está melhor? Passou a febre? Todo o sant o dia. Quando não era ela, mandava a Benedita. Pascoalina jogou fora o cigarro e veio se aprox imando da roda outra vez; sentou-se e cruzou as pernas, depois perguntou: - Gigina, você viu qu ando beijei disfarçadamente os pés de Zelinda? Gina sacudiu a cabeça negativamente; Pascoalina continuou: - Dizem que é bom para a gente não s onhar com defunto. Tenho um medo horrível de def untos e fico sem dormir a noite inteira quando v ejo um. Um vizinho lá do apartamento morreu e eu fui lá. Pra que fui? Não dormi de noite, vi o homem a noite inteira na minha frente. Então be ijei os pés dele, dizendo que é uma simpatia mui to boa. Uma das vizinhas falou, convicta: - Eu também já ouvi dizer que isso é muito bom. Mas é que às vezes a gente não lembra. Pascoalina r iu: - Ah! Mas eu me lembrei e agora fico sosseg ada. O defunto não vem para meu lado. Gina falo u baixinho: - Mas Zelinda é diferente, Pascoali na, ela era sua amiga. Não é a mesma coisa. - Q uem vai se fiar em defunto? Dona Julica moveu-s e e sentou-se na cama; Gracinha perguntou: - Vo vozinha quer alguma coisa? Dona Julica não resp ondeu, calçou os chinelos e foi em direção ao ba nheiro; Gina foi amparando-a. Pascoalina sussurr ou: - Coitada da velha. Foi um baque. As duas vizinhas confirmaram com a cabeça. Ouviu-se um m ovimento lá embaixo e ruído de vozes; uma das vi zinhas correu para a janela e espiou: - Será qu e o pessoal já voltou do enterro? Impossível, nã o dava tempo. Outra correu para o hall e debruç ou-se no corrimão da escada. Gritou; - Chegou g ente! Pascoalina levantou-se para ver quem era; Gina que voltava do banheiro onde deixara dona Julica, pôs a mão no coração como a conter-lhe a s batidas; reconhecera a voz do marido. Desceu a escada depressa e caiu nos braços de Dr. Fern ando: - Estava ansiosa para que você viesse, me u bem.".. Ele abraçou-a sem dizer nada. As vizi nhas foram se retirando; Pascoalina ainda ficou para tomar outro café, depois despediu-se dizend o que voltaria no dia seguinte. Zeca voltou do cemitério e ficou sentado numa cadeira da sala de jantar, como que apalermado. À hora do jantar , dona Julica não quis descer, mas Gina insistiu para que ela tomasse ao menos um prato de sop a; Gracinha levou-lhe e ela tomou umas colherada s. A menina também declarou que não queria nada, nem sopa; mas sentou-se à mesa para assistir ao jantar. Tomou uns goles de sopa dizendo que e ra um sacrifício engolir, depois resolveu comer um pedaço de carne assada com arroz porque tia Gigina pediu; depois comeu couve-flor com molho branco, sobremesa e queijo. Quando terminou, ol hou o pai e os tios e falou muito admirada, dand o um suspiro: - Juro que não estava com fome, n ão sei como é que comi tanto. Gina sorriu e aca riciou-lhe os cabelos. No dia seguinte, Gina en controu o diário de Zelinda; abriu-o e leu algum as paginas: "Adoro Debussy. "Au clair de lune" m e faz chorar. Ontem vi numa loja da rua Direita uma fazendinha azul clara com bolinhas marrom. Comprei três metros e meio para um vestido” Ma is adiante: "Os rios correm para o mar. Há os qu e têm tudo e os que nada têm. Eu nada tenho. Não . Não posso me queixar, tenho alguém que pensa e m mim, mesmo de longe.” Noutra página, depois de casada: "Penso que morrerei cedo. Tenho esse pressentimento sombrio e todas as vezes que vej o um carro fúnebre passar, penso que em breve, passarei também. Irei a caminho do Araçá; é lá que temos nossa futura casa. Ontem ouvi "Fuga" d e Bach e "Jesus, alegria dos homens", também de Bach. Chorei.” Mais adiante: "Meu dia foi cheio hoje. Fui ver uma fita com uma amiga, depois to mei chá com doces e trouxe chocolate para Gracin ha. A noite fui ao teatro com Zeca - ótima peç a do Procópio. Depois do espetáculo, encontrei u mas amigas que não via há muito tempo, fomos tod os juntos tomar novamente chá numa confeitaria. Eu estava com meu vestido marrom, novo, achara m-me elegante. Recordamos muita coisa nessa noit e, ficaram de me telefonar para sairmos juntas: Branca e Jeny. Não contei que já fiz quarenta anos. Me acharam moça.” Adiante: "Estou emagrec endo sem regime, sem remédio, sem nada. Mamãe fa lou ao almoço que devo consultar um médico. Pois se estou contente de estar emagrecendo, por q ue consultar? Recebi carta de Pinheiral, tudo be m. Estarei doente? Um emagrecimento assim não é natural.” Noutra página: "Branca me telefonou, ficamos de sair juntas qualquer dia. Jeny me dis se que tem dois filhos e está separada do marido . Contei que também estive separada do Zeca, d epois fizemos as pazes por causa de Gracinha que chorava muito. Menina sensível! Por amor não fo i que fiz as pazes. Gina está esperando outro fi lho e está contente. Tola!” Quando acabou de ler outros trechos, Gina ficou pensativa; a irmã era muito diferente do que ela pensava, recordo u-se do que lera num livro: "Não se chega a comp reender uma pessoa senão depois da sua morte. Enquanto ela vive, todas as coisas que poderá ai nda realizar, e que nós ignoramos, constituem in cógnitas que alteram os cálculos. A morte dete rmina os contornos: é como se a pessoa se destac asse de suas possibilidades e se isolasse. Andam os em seu redor, vemo-la como é na verdade, pode mos fazer um julgamento de conjunto... mas não a conhecemos." Como isso era verdade. Não conhe cera Zelinda; não sabia que ela gostava tanto de música. Arrependia-se de não ter sido mais am iga da irmã, de não ter procurado compreendê-la melhor. Como fora cega! Nessa noite, após o jant ar, Dr. Fernando convidou a sogra e Gracinha par a residirem em Pinheiral, ao menos passar uma temporada grande. Dona Julica falou com energia: - Então vou deixar Zelinda sozinha? Não tem pe rigo, não posso ir. Zeca aconselhou-a a ir; far ia bem a ambas e Gracinha estava tão adiantada n os estudos que a perda de uns meses não a prejud icaria. Dona Julica tornou a falar voltando-se para o genro: - Então pensa que vou deixar minh a filha aqui? Pois se pretendo ir visitá-la todo s os dias, como é que vou para a fazenda? Não po sso! - Gina impacientou-se: -• Mas, mamãe, qua ndo a senhora voltar, vai visitá-la. O que adian ta agora ficar aqui? Vamos embora. Lá a senhora descansa, faz bem para Gracinha também. Ela está magrinha, vamos. Mudança de ares faz bem a to dos. Ela falou resoluta e teimosa: - Não. Você s vão embora, eu não abandono minha filha. Deus me livre. Gina insistiu: - Isso não é abandon ar, mamãe. Se Zelinda fosse viva, compreenderia. - Já disse que não vou e não vou. Não adianta discutir. Gracinha preferiu ficar com o pai e a avó; resolveram procurar outra casa, não queria m continuar nessa onde Zelinda sofrera e morrera . Dr. Fernando e Gina pagaram todas as despesas do enterro, deram dinheiro a dona Julica para p agar o colégio da menina, despediram-se e embarc aram alguns dias depois. Dona Julica prometeu ir à fazenda nas próximas férias da neta. Nesse s primeiros dias, em Pinheiral, receberam muitas visitas; toda a cidade foi dar pêsames ao Dr. F ernando e dona Georgina pela morte de Zelinda; " tão boa, coitada, mas um pouco aluada, nem par ecia irmã de dona Georgina, tão diferente, mas e ram só meias irmãs, por isso..." Na missa do sét imo dia, a igreja ficou repleta; todo o povo s e comprimiu para abraçar o casal e o padre Ernes to rezou uma missa solene por alma da defunta, " tão boa, coitada, mas...” XVI Durante anos e anos a vida não se modificou na fazenda Pinheiral; os donos eram sempre gener osos e amáveis para com as pessoas da cidade e o s da cidade interessavam-se vivamente pelo que se passava na fazenda. Costumavam visitar dona Belmira todos os anos quando ela vinha do Rio pa ra passar uns meses na fazenda; visitavam também dona Julica que vinha com Gracinha passar as férias de Dezembro. Mandavam pratinhos de doces para a menina e quando os da fazenda iam à cidad e para a missa das dez aos domingos, comiam ge léia feita por dona Sinhá, a senhora do Juiz. To da a cidade sabia que os filhos de Dr. Fernando, os filhos do primeiro matrimônio, estavam cre scidos e fortes, moravam com a mãe no Rio de Jan eiro e vinham uma vez por ano visitar o pai em P inheiral; sabia também que Maria Clara, já com d ezesseis anos, respondera um dia para dona Geo rgina, só porque esta a mandara limpar os sapato s antes de entrar; estava chovendo e os sapatos enlameados. - A senhora não é minha mãe, não ma nda em mim. Todos ficaram penalizados e acompan haram o sentimento de dona Georgina, que ficara muito sentida, depois desculparam a menina; afin al era criancice. Isso passava. Em 1931, quando Maria Clara fez dezoito anos, a cidade toda sou be que ela ficara noiva no Rio, de um moço muito distinto. Acompanharam Dr. Fernando e dona Geor gina em pensamento, quando eles foram para o R io fazer o casamento; depois souberam dos detalh es: o vestido era de cetim e o véu, de rendas ve rdadeiras, fora da avó de Maria Clara, a defun ta dona Eulália. Souberam que o casal ficara res idindo no Rio e quando Dr. Fernando e dona Georg ina voltaram, foram visitá-los para comentar o acontecimento. Souberam também que Eduardo, o f ilho, entrara para a Escola da Marinha; na prime ira vez que ele foi a Pinheiral, depois desse fa to, ficaram curiosos para vê-lo de farda. Cump rimentaram Dr. Fernando por ter um filho tão bon ito e já numa carreira tão boa e tão honrosa. Q uando Gracinha fez dezoito anos e foi com a avó para a fazenda, toda a cidade se interessou pela menina e o jornal local publicou nas "Sociais" de domingo: "Acham-se entre nós vindas de S. P aulo, onde residem, dona Júlia Camargo Francesch ini, viúva do professor Pasquale Franceschini, e sua gentilíssima neta, Maria da Graça. Para o s íntimos - Gracinha. Auguramos a Gracinha, uma feliz estadia entre nós." E Gracinha recebeu con vites para festas e bailes; os rapazes principai s da cidade procuraram namorá-la; as casamente iras trataram de arranjar casamento para a menin a. Dona Loló insinuara o Chico, um rapaz de futu ro, pois já tinha um sítio, mas dona Ermengarda não gostou da idéia da amiga; o Chico já estav a prometido para Lucinha há muitos anos. Dona Lo ló protestou: - Mas dizem que a Lucinha gosta d o Genaro. - Qual o que, respondeu dona Ermengar da. Ela namora de vez em quando o Genaro para fa zer ciúmes ao Chico, mas gosta do Chico e é com ele que vai se casar. Dona Loló perguntou: - Então quem você acha que está bom pra Gracinha? - O Ramos. No domingo, no clube, vou apresentar o Ramos pra Gracinha. Você vai ver que dá certo . Sempre acerto essas coisas. Dona Ermengarda f ez ar de pouco caso; não simpatizava muito com o Ramos porque quinze anos antes discutira com a mãe dele e haviam ficado de mal, por uma coisinh a à toa. Mas Gracinha não namorou ninguém; br incou, dançou, divertiu-se e voltou com a avó pa ra S. Paulo; dois anos depois, ficou noiva de um primo, parente longe do pai. Gina foi a S. Pa ulo providenciar o enxoval da sobrinha; residiam numa casa da Alameda Tietê. Gina comprou, encom endou, tratou de tudo. Gracinha e o marido resol veram continuar a residir na mesma casa com do na Julica; Zeca, o pai, vivia em casa de uma irm ã viúva e visitava a.filha todas as semanas. Do na Julica andava com umas manias muito esquisita s; ia um dia sim, um dia não no cemitério do Ara çá e conversava com Zelinda; contava à filha, to das as novidades da família. Descreveu-lhe o c asamento de Gracinha, quem era o noivo, contou q ue Dr. Fernando pagou as despesas, que o Zeca es tava cada vez mais envelhecido, queixando-se d e uma úlcera no duodeno. Contou como era o vest ido de Gracinha, os vestidos das convidadas, os presentes que Gracinha ganhou, as cestas de flor es... depois voltou para casa contente e feliz. Era sempre assim desde a morte da filha; em to dos esses anos visitou a filha no cemitério e co ntou tudo o que sabia e o que ouvia. Vinha conte nte para casa, rindo sozinha, feliz. A cidade também comentava as esquisitices de dona Julica ; dona Ermengarda olhava dona Loló e levava o de do indicador à testa como quem diz: "Ela não reg ula bem da bola." Quando souberam que Maria Cl ara havia tido um filho, no Rio de Janeiro, fora m cumprimentar Dr. Fernando "um avô tão moço e s acudido; assim era bonito ser avô." E quando G racinha teve a primeira filha, dona Georgina rec ebeu os cumprimentos; "era pena a defunta dona Z elinda não conhecer a neta; tão boa, coitada, ma s... havia de ter tanto gosto nisso.” E os an os foram passando um a um sobre Pinheiral. Um di a, Helena e Fernandinho fizeram a primeira comun hão; desde um mês antes, a cidade comentou o aco ntecimento. Dona Clarisse que preparava as cri anças todos os domingos depois da missa, ficou e ncantada com a inteligência dos filhos de Dr. Fe rnando. Dizia que Helena "tinha grande agilida de mental e uma vivacidade fora do comum", enqua nto que Fernandinho era mais inteligente: não pa recia, mas era, dona Clarisse afirmava com convi cção. Contavam, uns aos outros, as respostas q ue Helena dava às perguntas de dona Clarisse e n um dos últimos domingos correu de boca em boca a melhor graça de Fernandinho; enquanto dona Cl arisse explicava o inferno e ele ouvia com olhos dilatados de espanto (dona Clarisse até pensou que ele estivesse atemorizado) perguntou de repe nte: "Dona Clarisse, sabe que ganhei um cavali nho alazão do papai?" Todos riam quando contavam a "última de Fernandinho.” No domingo da prime ira comunhão, padre Ernesto pediu a dona Georgin a que cantasse no coro; doze crianças iam comung ar pela primeira vez, diversas famílias disputar am a honra de hospedar Dr. Fernando e dona Geo rgina para um "chocolate" oferecido aos comungan tes; ficaram pesarosas quando souberam que já es tavam comprometidos com dona Sinhá. Dona Loló e dona Ermengarda ficaram aborrecidas e chegaram a censurar dona Sinhá que sempre chegava em pri meiro lugar em toda a parte. Dona Loló suspirou: - Afinal ela é mulher do Juiz, Erme. O vestid o de Helena viera de S. Paulo, de uma casa impor tante e ficara caríssimo; era todo entremeado de rendas; o véu viera também de S. Paulo, uma riq ueza. As mães de quase todas as crianças comun garam também e isso emocionou os que assistiram; perguntaram a Gina se não ia comungar: - Dona Georgina não acompanha os filhinhos nesse ato de fé? Gina disse que dessa vez não, porque iria cantar; e quando cantou a "Ave Maria" de Schuber t durante a missa, muitas pessoas tiveram vontad e de chorar porque a voz de dona Georgina como via até às lagrimas. Ninguém sabe como começou, nem de onde surgiu o primeiro boato na cidadezi nha; a principio, eram apenas frases veladas em voz baixa, ditas discretamente com a mão no ca nto da boca: "A senhora soube do que está corren do por aí?" A outra respondia baixinho: "Soube s im. Será verdade? Quase nem acreditei." A primei ra continuava: "Me asseveraram que é a verdade pura. O irmão de um cunhado meu tem um primo em S. Paulo e esse primo soube de fonte limpa por um outro. É verdade.” Continuava o diálogo sem disfarce algum, bem às claras: - Quem havia de dizer. Parece incrível! - Nem fale. E nós com t anta amizade pra cá e pra lá. Que horror. - Até fico arrepiada quando penso nisso. - Eu também . Este mundo está perdido. Não vale mais nada; n em um vintém. - Isso eu digo sempre, não vale m esmo. Entre os homens havia comentários também; quando se encontravam na porta do clube ou na m esa do jogo; antes de dar cartas ou então quando pediam uma cerveja no balcão do bar. Um sussu rrava: - Será certo esse boato que corre por aí ? - Não sei, dizem que é exato. O terceiro afi rmava: - É exato, sim. Pois o Alcebíades da Tud inha tem um cunhado em S. Paulo que soube por um irmão e contou tudo. Nunca pensei. - Mas não p arecia. Nunca supus que isso pudesse ser verdade . - Nem eu. Então, à nossa. - À nossa! E embo rcavam os copos de cerveja, recostados no balcão de mármore do bar do Chancharulo. Depois os co mentários foram aumentando; um dia dona Loló, do na Ermengarda e dona Cilota foram à casa do Juiz para comentarem o caso com dona Sinhá. Estavam excitadas; aproximaram as cadeiras umas das ou tras e falaram depressa: - Quem diria, hein, do na Sinhá? E nós recebendo ela em nossa casa, tra tando de igual pra igual... Que coisa! - Eu ten ho dó é do marido. Tão bom, tão esmoler e casado com uma mulher dessa espécie! - Não faz muito ele deu dinheiro para o altar de Nossa Senhora d o Rosário... O "Município" deu a notícia. - Poi s é isso mesmo. Tenho muita pena dele. Será que não sabia antes? - Vai ver que não. Essas mulhe res têm lábia. - Elas sabem iludir os homens. P obre do marido! - E os homens são tão inocentes pras manhas de mulher... - Inocentes, dona Lol ó? Que é isso? - Quero dizer que acreditam em t udo que mulher diz... - Ah! Isso sim. De repen te dona Ermengarda falou com mais animação: - E u não queria dizer nada antes porque não valia a pena, mas sempre desconfiei de alguma coisa. A s outras olharam para dona Ermengarda e ficaram atentas, com cintilações nos olhos. Dona Loló pe rguntou: - Por que você desconfiou, Erme, viu a lguma coisa imprópria? Dona Ermengarda pigarreo u, olhou para o lado da porta para ver se não ha via alguém e falou inclinando-se para a frente: - Desconfiei por causa da irmã dela; aquilo não eram modos de moça distinta. O que nós pensávam os que era esquisitice, era sem-vergonhice. Quem não está vendo que a irmã era uma bisca? Me d iga uma coisa, alguma das senhoras viu algum dia o marido dela? Garanto que não tinha marido nen hum. Era só "meu marido" pra cá e pra lá. Ment ira, não havia marido, sou capaz de jurar. Dona Ermengarda falava com entusiasmo, com convicção . As outras ficaram ponderando. Dona Cilota arri scou: - Mas a menina também falava no pai. Eu m e lembro... Dona Loló interrompeu: - Ah! Isso p odia ser ensinado... Dona Sinhá procurou apazig uar: - Não. Podia ser que ela fosse mesmo casad a e depois tivesse separado. É estranho que o ma rido nunca tenha vindo aqui. As outras quase ap laudiram: - Então é isso. Dona Sinhá tem razão. Com certeza viviam separados. - Dona Ermengard a interrompeu: - Lembram-se de uma vez no clube o jeito que ela apareceu? Estava com um vestido creme com rosas vermelhas deste tamanho... Não sei que jeito a sirigaita deu (Deus me perdoe, já morreu) e fez com que duas rosas ficassem aq ui nos dois seios... Lembram-se? Pois meu marido não tirava os olhos das duas rosas, eu já estav a ficando enfezada... Dona Cilota sorriu: - Os homens gostam dessas coisas... - Pois por is so mesmo precisamos ser enérgicas e não tolerarm os certas facilidades... - Precisamos ser intra nsigentes para certos fatos... - Dizem até que uma vez que ela veio à cidade fazer compras, par ou no bar do Chancharulo pra beber uma cerveja. - Essa eu não sabia... - Ela era capaz de tudo . Dona Cilota falou, tímida: - Viemos pedir su a opinião, dona Sinhá. Que devemos fazer? Qual a atitude que devemos adotar? Dona Ermengarda e dona Loló falaram depressa: - Dona Cilota, deve mos cortar o mal pela raiz. Dona Sinhá é da noss a opinião, nem se discute. Dona Sinhá hesitou u m instante: - Não sei, é uma questão tão delica da. Eu me dava tanto com ela, vinha sempre aqui depois da missa dos domingos, fico sem saber o q ue fazer. Vou falar com Sebastião... Dona Loló exaltou-se: - Dona Sinhá, não há o que escolher . Então vamos deixar nossos filhos brincarem com os filhos dele? Pense bem, dona Sinhá, pense be m. Não devemos permitir isso, temos que ser os censores dos nossos filhos. Dona Ermengarda in terveio: - Ela tem razão. Vejam um pouco: se nó s não zelarmos pelo futuro dos nossos filhos, qu em vai zelar? E se deixamos os nossos brincarem com os dela, quanta ruindade não poderão apren der? Quanto mau costume? E somos nós, as mães, q ue temos que arcar com as responsabilidades; os homens não têm tempo para ver certos fatos. As outras concordaram. Dona Sinhá levantou-se e foi pedir um café na sala de jantar; voltou e sento u-se. Dona Cilota estava com a palavra: - Devem os fazer as coisas com muito critério, isto é qu e estou falando pras nossas amigas, dona Sinhá. Sem ela perceber nada, vamos nos afastando aos p oucos, não aceitaremos mais os almoços na faze nda, não convidaremos mais ela para vir à nossa casa, ela há de perceber.. Vamos cortando aos po ucos. Dona Loló bateu uma mão na outra: - Agor a estou me lembrando; por isso ela não quis comu ngar quando os filhos fizeram primeira comunhão. Quase todas as mães comungaram, a Tuda não foi porque estava muito pesada; Leontina estava co m gripe, naquele dia mesmo estava com febre de 3 8; e ela não tinha nada, até cantou na igreja. D ava pra gente desconfiar. - Dava mesmo. Achei s empre a mãe dela diferente das outras senhoras d a idade; não conversava muito bem, sempre descon fiada de um lado. Nós é que devíamos desconfiar. - Não. Pra mim o pior era o modo como a irmã s e vestia; parecia mesmo vulgaríssima... - E ess e negócio de cantar... vai ver que foi cantora d e teatro. - E de teatro barato, se não a gente havia de ouvir falar. Pararam de comentar para tomar café; elogiaram; o café de dona Sinhá dize ndo que tinha fama; depois que a criada levou a bandeja, continuaram com mais animação: - Tenho dó é do marido. Tão bom homem. - É verdade, do na Sinhá. E a primeira mulher dele foi distinta, toda a gente fala. Pena ele não ter escolhido b em na segunda vez. - Pena mesmo. Por isso agora estou me lembrando, os filhos do primeiro matri mônio não paravam na fazenda, vinham do Rio e vo ltavam logo. Não se davam bem aí. - A mãe dele também. Vinha todos os anos, é verdade, mas não demorava muito, e sempre com um ar triste. - Eu também reparei. Não atinava com a tristeza dela , agora compreendo. - Decerto era desgosto. - Naturalmente. Penso também nas crianças. Como ir ão criar essas crianças? Dona Sinhá procurou de fender: - Mas as crianças são até bem educadas, já fizeram a primeira comunhão, o fato é que a gente não pode criticar. Dona Ermengarda ficou de pé: - Mas dona Sinhá, a senhora já viu árvor e bichada dar bons frutos? Os frutos têm que ser bichados por força. Eu nunca vi e já tenho vivi do muito... Dona Cilota gostou da comparação: - Dona Ermengarda dava um bom advogado de defesa . Sabe falar muito bem. Dona Ermengarda sentou- se e ficou numa atitude imponente, para que a ad mirassem. Dona Loló sorriu: - De defesa? Acho q ue dava melhor da acusação... Sorriram. Houve u ma pausa curta. Dona Cilota falou outra vez: - A gente quando não tem do que desconfiar, não le va a mal nada do que vê e ouve; mas depois, a ge nte começa a pensar e a ligar certos fatos. Eu a chava que eles viviam convidando a gente para ir à fazenda, para almoçar, para piqueniques, tu do isso parece que era para disfarçar... Agora e stou acreditando. Era para passar mel nos lábi os do povo. - É mesmo. Quem não deve, não teme. Essas amabilidades demais eram para esconder al guma coisa, para engambelar a gente. Nós é que n unca desconfiamos de nada... - É porque temos a consciência tranqüila; quando a gente não deve nada, não desconfia. Dona Sinhá falou: - Mas e u custei a acreditar. Acho que ela enganou todos muito bem. - Muito bem. E eu andei dando recei tas de biscoito de polvilho, até me arrependo. D ona Sinhá deu aquela receita especial de "papo d e anjo?” - Pois dei também. Ela me pediu... - Antes não tivesse dado, ela não merecia. Então v amos minha gente; a prosa está boa, mas precisam os ir andando. - Nossa atitude então será essa, de defesa, não é dona Sinhá? - Acho que sim. S erá melhor nos afastarmos aos poucos sem escânda lo, sem nada. É para não magoar o Dr. Fernando. Ele é tão bom... Dona Loló bateu na testa: - L embrei agora, quem sabe nem são casados! Dona Er mengarda sentiu um arrepio: - E nós nos dando c om gente amigada! Que horror! Dona Cilota defen deu: - Isso creio que não. Dr. Fernando é incap az disso. - Vamos indo? - Quem poderá saber? O s homens... - Eu ensino ela a respeitar gente h onesta. - Ela há de ver. Despediram-se com pro testos de muita amizade e deixaram a casa de don a Sinhá. Toda a cidade soube dessa conferência e m casa do Juiz; e todos resolveram adotar a me sma atitude de dona Sinhá: fugir de dona Georgin a. E a cidade ferveu de comentários e diz-que di z-que; falavam agora abertamente. Dona Georgina, a distinta esposa do Dr. Fernando tinha sido "mulher da vida" em S. Paulo. Desaforada. Pensar que era igual às outras! Ela havia da ver. Tinh a feito uma farsa e enganara a todos, mas ela ia ver agora a verdadeira farsa: ia ser posta de lado da sociedade, afastada, desprezada. Todas as qualidades de Gina tornaram-se defeitos; sua amabilidade para com as pessoas era para iludir e não dar tempo de se lembrarem ou quererem sab er do seu passado; sua beleza era pecaminosa; sua voz era péssima, voz de teatro barato; sua d edicação pelo marido era fingida e seu amor pelo s filhos era só para enganar as outras mães; n ada era sincero. No primeiro domingo depois de declarada a guerra, Gina percebeu a animosidade contra ela; ao deixar a igreja, não encontraram dona Sinhá e o Juiz que os convidavam sempre p ara tomar um café ou um refresco. Procuraram os conhecidos, que paravam todas as vezes para fala r com eles à saída da missa e não viram ninguém; avistaram de longe dona Loló e dois filhos, m as caminhavam com tanta pressa e tão rapidamente que não foi possível alcançá-los; viram depois o seu Tobias, um fazendeiro vizinho e a famíli a. Seu Tobias e as duas filhas cumprimentaram Gi na de longe e entraram depressa no automóvel; a senhora do seu Tobias não a viu, estava distraíd a. Resolveram então passar pela casa de dona Si nhá para saber se alguém estava doente; encontra ram o Juiz muito ocupado, disse que dois homens o esperavam no escritório para tratar de negóc ios e dona Sinhá, com uma dor de cabeça como nun ca tivera antes, estava deitada. O Juiz, muito d esajeitadamente convidou-os para entrarem e toma rem um café, mas eles não aceitaram, ficou par a outro domingo; despediram-se e entraram de nov o no automóvel. Passaram pela farmácia de seu In ácio para comprar sabão para barba e pasta den tifrícia; seu Inácio serviu-os muito apressadame nte e quando Gina perguntou pela esposa disse qu e ela havia saído com as crianças, (moravam no s fundos da farmácia). Gina achou muito esquisit o e não disse nada, mas ouviu gritos de criança lá dentro e olhou para seu Inácio: estava todo r uborizado. Voltaram para Pinheiral. Durante tod a a semana não apareceram visitas na fazenda. Gi na nada disse ao marido mas desconfiava que algu ma coisa acontecera; Dr. Fernando também perce beu, mas não comentou. No domingo seguinte, qua ndo foram à cidade, quase não encontraram conhec idos à saída da missa; viram dona Cilota e uma f ilha, mas dona Cilota estava muito atarefada a marrando um laço de fita na cabeça da menina e n ão viu Gina; só quando ela parou ao seu lado e p erguntou: "Bom dia, dona Cilota, como vai a senh ora?" Dona Cilota levantou a cabeça e disse co m falsa alegria: - Ah! É dona Georgina? E eu qu e não tinha visto a senhora... Também estou com tanta pressa, meu menino não passou muito bem a noite, creio que foi indigestão. Por isso vou indo... Até logo. Gina perguntou: - Dona Sinhá continua doente? Há dois domingos que não a vejo ... Dona Cilota voltou-se com ar triunfante, co mo se a ela coubesse a ventura de atirar a prime ira pedra: - Doente? Não me consta. Só sei que dona Sinhá não vem mais a esta missa, vem à das oito porque é melhor pra ela. Passe bem, dona Ge orgina... E foi embora, apressada, empurrando a menina para a frente. O pior foi dona Ermengard a, logo depois. Dr. Fernando entrou num cartório para falar sobre um negocio e Gina ficou sent ada no automóvel, esperando. Viu dona Ermengarda e o marido virem a pé pela calçada fronteira; o lhou-os para cumprimentá-los, viu então dona Erm engarda e o marido voltarem os rostos e olhare m atentamente uma vitrina. Nessa mesma noite, no Clube, dona Ermengarda gabou-se com orgulho; fo ra a primeira, a única que tivera coragem de v oltar o rosto e não cumprimentar aquela mulher q ue as enganara durante tanto tempo; e mais orgul hosa se sentia porque o marido a acompanhara no gesto. Fora magnífica essa adesão muda do mari do, pois às vezes os homens pensam tão diferente ... E dona Ermengarda sorriu com triunfo. Gina assustou-se; estavam todos contra ela. Todos. Nã o escapava ninguém. Por quê? Tinha adivinhado a resposta: porque fora infeliz. Desprezavam-na e humilhavam-na pela desgraça que sofrera, pela vida humilhante que levara. Que mundo estranho e ste! Nesse dia conversou com o marido sobre o qu e estava sucedendo na cidade; a guerra era às claras, declarada, sem perdão. Dr. Fernando aind a duvidou, parecia-lhe impossível; para tirar um a prova definitiva, resolveu convidar os amigos para um almoço no dia do seu aniversário, como fazia todos os anos. Uns dias antes, ele em pes soa telefonou a uma dúzia de amigos fazendo o co nvite e o dia do almoço chegou. Veio um automó vel da cidade trazendo padre Ernesto e o Juiz; v eio outro automóvel trazendo dois fazendeiros vi zinhos, cujas esposas estavam gripadas, alguns a migos solteiros e só. O almoço que fora prepar ado para vinte amigos, foi servido para seis e l ogo depois de terminado, o Juiz pediu licença e voltou à cidade "tinha um mundo de papéis para despachar". Nessa noite o casal ficou só, à lu z do lampião, um na frente do outro, tristemente abandonado. O único pensamento que os aniquilav a era o futuro dos filhos. Não sofreriam mais tarde sentindo essa animosidade? Como cresceriam nesse ambiente hostil e como suas mentalidades se desenvolveriam sentindo o desprezo sobre eles ? Por quê? Que culpa tinham esses filhos? Por que o mundo os condenava e os separava do convív io social, se nada haviam feito? Pois se os pais estavam condenados ao desprezo, mais tarde os filhos também sofreriam o mesmo desprezo. Onde estava a justiça? Pela primeira vez pensaram em vender Pinheiral e retirarem-se para uma grande cidade, onde viveriam desconhecidos na multidão . Mas Gina sofria à idéia de desfazer-se da fa zenda. Foi se tornando rancorosa e revoltada; se u temperamento, tantos anos tranqüilo pela felic idade que desfrutara, veio à tona como as águas bravias em dia tempestuoso. Tornou-se uma revo ltada; explodia a todo,o momento em palavras de ódio contra aquela sociedade que a bania pelo se u passado, pelo seu desgraçado passado. Essa m esma sociedade que a abandonara no caminho teneb roso da perdição. Que culpa tinham seus filhos i nocentes? Daí em diante, começaram a viver como caramujos, recolhidos em si mesmos; pouco deixa vam a fazenda. Tinham raras visitas de velhos ou amigos solteiros; a única preocupação era o f uturo dos filhos. Como aceitariam mais tarde a s ituação? Gina ia às vezes à cidade para experim entar um vestido, para levar as crianças ao dent ista, para alguma compra, e não visitava ninguém . Algumas pessoas cumprimentavam-na de longe; o marido de dona Ermengarda cumprimentava-a quan do sozinho, mas quando em companhia da mulher fi ngia que não a via. A única pessoa que continuou a procurar Gina foi Odete Pinheiro; ela e o m arido estavam no Rio de Janeiro quando os primei ros boatos circularam pela cidade. Foi a primeir a notícia que ouvira quando desembarcaram; no dia seguinte à sua chegada, dona Áurea, a mulher do farmacêutico, foi visitar dona Odete. Sentou -se na saleta da frente, e contou tudo que sabia . - Oh! Áurea, você tem coragem? Freqüentamos t anto a casa dela, há alguém que possa acusá-la? Há algum motivo para desconfiar? Diga! - Motivo não há, mas basta eu lembrar o que ela foi, não posso nem olhar para ela. Tenho até asco. Houv e um silencio. Dona Odete sussurrou: - Coitada de Georgina! Tenho pena do que está acontecendo, francamente. - Você é tolerante demais, eu não tenho pena. E é por causa dessas tolerâncias qu e a sociedade está como está, uma podridão. Se t odos fossem mais exigentes a respeito dessas s em-vergonhices, o mundo seria diferente, haveria mais respeito e mais critério na sociedade. Do na Odete perguntou admirada: - Que sem-vergonhi ce você está falando? Ela fez alguma coisa incor reta? Que eu saiba, nada. Georgina é uma das sen horas mais distintas que conheço, vive só para a família, nem é vaidosa, nem se pinta quase... Uma mulher que quer ser sem vergonha, é vaidosa acima de tudo e Georgina é tão simples... O pas sado é o passado e nós não sabemos nada, nada. Dona Áurea levantou-se: - Nunca pensei que vo cê fosse tomar o partido dela, nós todas estamos contra e continuaremos contra. Ermengarda nem c umprimenta mais ela; se encontra na rua, vira o rosto. Assim é que está direito. Dona Sinhá, d ona Cilota, todas... - Pois eu penso diferente; tenho pena e continuo a considerá-la como sempr e. Ela é correta e não tem culpa do seu passado. Dona Áurea deu um grito: - O que? Continua su a amiga? Então amanhã você deixa sua filha ser a miga da filha dela? Com o passado que ela teve? E quem nos diz que ela não teve culpa? Diga! U ma mulher ignóbil, desclassificada... Dona Odet e ficou um pouco indecisa e dona Áurea continuou , triunfante: - Deixa sua filha ser amiga? Hein ? Não sei se foi dona Loló que disse uma coisa m uito certa outro dia em casa do Juiz: "Os frutos de uma arvore bichada, têm que ser bichados f orçosamente.” - Não acho... - Odete, você me d esilude... - Mas, Áurea, quem sabe foi uma cria tura que cresceu num meio ruim, num meio pernici oso e não teve auxílio de espécie alguma... Não se sabe de nada, quem sabe foi infeliz. - Inf eliz? Sem vergonha é o que ela foi! Toda mulher pode ser honesta em qualquer circunstância. Semp re. Há sempre trabalho para mulher que quer ser honesta, digna. E aquela que leva essa vida é porque quer. Por que não foi lavar roupa? E quem foi, sempre será. Se amanhã ela namorar seu mar ido, você deixa? Está de acordo? - Meu Deus! Ma s ela nunca namorou ninguém, pelo menos nunca vi . Você viu? - Nós não vimos, mas não ponho a mã o no fogo por ela. Eu já vou indo. Este seu vest idinho está muito bonito. Comprou no Rio? Compro u feito? - Comprei. É cedo ainda. - Não. Pense bem na nossa conversa. O caso é muito sério e a cidade não fala noutra coisa. Ela deve ser expu lsa do nosso convívio, já foi aliás. Não merece a nossa amizade... lembrança ao Dr. Pinheiro. Conte para ele, ouviu? Até loguinho. Desceu uns degraus da escada que dava para um jardinzinho e voltou-se: - Olhe, Odete, depois que você ref letir melhor, verá que temos razão. Se não formo s enérgicas e intransigentes para certos casos, a sociedade ficará cada vez pior... Já está ru im e se nós não reagirmos será pior. Temos que c ombater pelos nossos filhos, pelo futuro deles.. . Parou no portão. Dona Odete alcançou-a e retr ucou: - Mas afinal, aponte alguma coisa de mal que ela tivesse feito aqui. Nunca fez nada, Áure a. Precisamos ser justas, o que passou, passou. - Você tem o coração muito mole. Acha pouco o p assado vergonhoso que ela teve? Lembre-se das ár vores carunchosas de dona Cilota ou dona Loló, n ão sei bem... não podem dar frutos perfeitos. Cesteiro que faz um cesto, faz um cento, minha c ara. - Bobagens. - Não crê na hereditariedade? Olha que vai se arrepender depois... Reflita, a té logo. Deu dois passos e voltou-se; - Você g ostaria que seu filho casasse com a filha dela? Hein? - Ah! Não sei... Dona Áurea riu-se: - T oquei no alvo, hein, Odete? Até logo, seu vestid o está uma gracinha... Dona Odete segurou-a pel o braço: - Escute uma coisa, conheço moças que não tiveram passado algum, foram criadas ao lado do papai e da mamãe, foram santinhas no colégio das freiras e depois de casadas são piores qu e três mulheres da vida juntas. Dona Áurea paro u indecisa: - Isso acontece... - Acontece tamb ém que uma mulher por circunstâncias que desconh ecemos teve um passado pouco recomendável e depo is torna-se uma senhora da grande distinção, com mais linha que muita moça sem passado algum.. . - Isso é verdade. Mas não volto atrás. Até lo go... Nessa noite, Dona Odete e o Dr. Pinheiro conversavam a respeito do "escândalo" como dizia m na cidade. Resolveram continuar as mesmas rela ções de amizades com Pinheiral, mas breve toda a gente censurou-os e apontaram dona Odete como uma leviana. Dona Loló chegou a dizer com despr ezo, a respeito deles. - São aves de arribação, por isso não se importam, qualquer dia vão embo ra da cidade. Outros disseram que o Dr. Pinheir o tinha grandes lucros como médico da fazenda e outros ainda que a educação dele era muito moder na, por isso não se importava com escândalos, estava acostumado. De repente esqueceram esse c aso para tratar de um assunto palpitante para a cidade: o Presidente do Estado iria até lá no pr óximo mês inaugurar uma Escola, uma ponte e um a estrada de rodagem; seria hóspede da cidadezin ha durante um dia inteiro. À noite, haveria banq uete e baile; a cidade esqueceu provisoriamente a história de Gina que passou para segundo pla no e começou a comentar a visita do Presidente e as festas; viria de S. Paulo uma grande comitiv a. As costureiras começaram a trabalhar ativam ente, algumas senhoras encomendaram vestidos na Capital, e todos já sabiam a cor do vestido de d ona Sinhá, que dona Loló mandara vir de S. Paulo um par de sapatos prateados e dona Ermengarda encomendara um vestido de cetim branco; comenta ram em voz baixa que dona Ermengarda estava muit o gorda para usar branco, isso era para mocinh as ou senhoras de corpo fino. Com a mão na boca diziam com malícia uma para outra: "Está um pouc o velha também". De súbito, uma lembrou-se de p erguntar: - Será que a bisca da Georgina vai ao baile? A que ouviu teve uma idéia que foi cons iderada magnífica: - Pois se ela for, eu não ir ei, está aí. Todas aplaudiram e juntaram-se ime diatamente; cada uma celebrizou-se com frases as sim: "Se ela for não iremos." "Nenhuma de nós." "Vamos fazer uma greve." "Ela há de ver.” XVII - Em Pinheiral Gina disse a m arido que preferia não ir ao baile, mas Dr. Fern ando protestou: "Por que não haviam de ir? Ele e ra amigo do Presidente e haviam se formado jun tos; tinham sido sempre amigos e visitava-o quan do ia a S. Paulo. Por que não ir? O que o presid ente diria sabendo que eles residiam em Pinheira l e não compareciam às festas? Precisavam ir.” Discretamente, Gina dirigiu-se à cidade e foi procurar Natália, a costureira que trabalhava pa ra ela e os filhos. Na segunda semana, quando ap areceu em casa de Natália para experimentar o vestido, encontrou-a nervosa, e embaraçada. Expe rimentou, puxou, prendeu, ajoelhou-se para ver o comprimento da saia e de repente, tirou os alfi netes da boca para falar: - Dona Georgina, nã o sei se eu devia contar à senhora, mas... Pelo espelho, Gina viu o rosto vermelho de Natália e notou seu embaraço; perguntou: - O que há, Nat ália? Pode contar o que quiser. Fale, estou quas e adivinhando. - Não. Não pode adivinhar, dona Georgina. - Eu sei que falam mal de mim. O que disseram agora? Natália levantou-se e medindo a cintura de Gina para fazer o cinto, explicou: - Estão dizendo por aí... Não vá se zangar, dona Georgina. Estão dizendo que se a senhora for ao baile do Presidente, nenhuma senhora irá. Gina respirou fortemente: - Falaram isso? - Falara m, sim senhora. Todas que vêm experimentar o ves tido aqui falam a mesma coisa. Fiquei indignada, dona Georgina, mas a senhora sabe, são minhas f reguesas também e não quero ofender ninguém. Gina afastou uns passos e olhou Natália bem de f rente; levantou a cabeça altiva, os olhos brilha ntes de cólera: - Pois diga para essas mulheres que vêm aqui, diga mesmo, - ouviu Natália? - Qu e não me importo se elas vão ou não vão ao baile do Presidente, mas eu irei. Ouviu? Não devo n ada a ninguém e irei; mesmo que seja a única mul her no baile, irei. Começou a tirar o vestido p ela cabeça. Natália falou com humildade: - Cuid ado que um alfinete pode cutucar a senhora. Eu f iquei tão furiosa que nem dormi direito essas tr ês noites. Isso não se faz... mas eu estava louc a de vontade de prevenir a senhora. - Fez mui to bem, Natália. Obrigada por ter me contado, ma s se alguma daquelas feras tornar a falar, pode dizer: ela vai ao baile. Ouviu bem? - Ouvi, sim senhora. Gina vestiu-se auxiliada por Natália; suas faces estavam vermelhas de raiva: - Diga também que se elas tiveram a sorte de nascer aba stadas, de não precisar pedir, nem se humilhar p ara viver, não devem desprezar as que não tivera m essa felicidade, não devem desprezar as que choraram por um pedaço de pão... Natália começo u a se desculpar: - Não leve a mal eu ter conta do, dona Georgina, desculpe. - Não tem que pedi r desculpa. Fez bem em contar, mas não fale nada disso que falei antes, não merecem minhas expli cações. Não fale nada. - Nada direi, dona Georg ina. O Presidente chegou num sábado à cidade; e ntre os que o esperavam na estação, estava o Dr. Fernando. Assim que viu o velho amigo, o Presid ente abraçou-o e perguntou pela família. À noi te, depois do banquete realizado na Prefeitura, as famílias se dirigiram ao Clube para assistir ao grande baile. Eram onze horas da noite. Gina veio de Pinheiral e ao lado do marido, entrou no Clube juntamente com a comitiva do Presidente . Os salões estavam repletos; num relance perceb eu que. todas as senhoras estavam presentes e, apesar da ameaça, nenhuma havia faltado. O pre sidente voltou-se, solícito, quando a viu numa d as portas do salão principal; Dr. Fernando apres entou-a. Muito gentilmente, o Presidente deu-lhe o braço e dirigiram-se ao lugar de honra; ent ão a orquestra tocou uma valsa e ele que só danç ava valsa, convidou-a para dançar. Sorrindo, um pouco assustada entre tantos inimigos, ela ace itou. Estava bonita, num vestido preto muito dis creto e elegante; enquanto valsava, viu rostos c onhecidos sorrirem para ela; percebeu dona Ermen garda, dona Loló, dona Cilota... Seria possíve l? Não estaria sonhando? Conversava com o Presid ente, mas nem sabia o que falava; sentia-se emoc ionada e um pouco sufocada. Viu dona Ermengard a dançando com Dr. Pinheiro; estava de branco, m uito apertada numa cinta nova; todas sabiam que dona Ermengarda estava estreando uma cinta. O qu e não se sabia naquela cidadezinha? Percebeu d ona Sinhá falando dela a uma vizinha; quando pas sou, a outra disfarçou e sorriu levemente fingin do que estava falando sobre o calor. Depois da valsa, sentou-se ao lado do Presidente e olhou o baile; Odete Pinheiro e o marido aproximaram-s e para cumprimentá-la; dona Cilota passou dançan do e cumprimentou, muito formalizada. Então d ona Odete contou que todas estavam assim amáveis por causa do Presidente; antes da comitiva .des embarcar, toda a gente sabia que Dr. Fernando er a íntimo do Presidente; mas ela não se iludiss e; no dia seguinte a guerra continuaria, talvez mais acerba ainda. E foi verdade. À meia noite a comitiva embarcou no trem especial; assim que o Presidente deixou o Clube, tudo transformou-s e para Gina. Parece que até o salão tornou-se ho stil, como a expulsá-la; não viu mais rostos ris onhos a cumprimentá-la, só viu fisionomias fec hadas em carrancas e olhares furtivos quando ela não estava olhando. Pediu ao marido para voltar à fazenda; e nessa noite ficou determinado qu e Pinheiral seria vendido. Iriam residir no Rio de Janeiro definitivamente, por causa dos filhos . Gina revoltava-se à idéia de deixar a fazenda: - Miseráveis. Riram para mim só porque dancei com o Presidente, assim que ele deixou o baile, viraram-me a cara. Mulheres bandidas . E dando um soco no travesseiro, deitou-se; Dr. Fernando procurou acalmá-la: - Não leve tão a serio, Geo rgina, A sociedade é mesmo hipócrita e em cidade s pequenas assim, com mentalidades tão pouco des envolvidas, não é de estranhar. Vamos embora e acabou-se. - Decadência mental. Elas todas são decadentes mentais. O que eu fiz, Fernando, que elas pudessem me recriminar? - Nada. É assim m esmo. Não perdoam. - Que coisa horrível. Vamos embora, até é melhor para as crianças; muito mel hor que cresçam noutro ambiente mais adiantado, mais civilizado, mais puro. - Muito melhor mesm o. Na semana seguinte, Dr. Fernando seguia para S. Paulo e a fazenda Pinheiral com terras que s e estendiam a perder de vistas, foi posta à vend a. Os comentários que haviam enfraquecido depoi s do baile do Presidente, fortaleceram de novo c om a venda da fazenda. Reuniram-se outra vez em casa de dona Sinhá para resolverem um problema que parecia sem solução: iriam ou não despedir- se deles na estação? Dona Loló era de opinião q ue deviam ir; seu peito arfava em suspiros fundo s e dizia: - Afinal, coitada! Vai embora de mud ança, a gente devia ter pena dela. Dona Cilota protestava: - Eu por mim não ia. Já cortamos me smo as relações, para que reatar no momento da d espedida? Para que? Dona Mirtes que batizara um filho de dona Sinhá e era muito considerada por ser mais velha e avó de dois netos, chegou atra sada à reunião desse dia: - Boa tarde, comadre. Boa tarde para todos. De que se trata? Explica ram a dona Mirtes e perguntaram a opinião; ela e ra muito alegre e tudo levava em brincadeira, te ve uma idéia: - Vamos pôr o caso em votação. Qu e acha, comadre? Dona Sinhá concordou: - Pois vamos. Começamos aí por dona Cilota: vamos ou nã o à estação? -Meu voto é contra. Eu não vou. Do na Loló o que acha? - Acho que devemos ir. Afin al fomos amigas dela, freqüentamos tantas vezes a fazenda, almoçamos lá... Houve o que houve nos afastamos e acho que está muito direito, mas como vão embora de uma vez e não voltam mais, o que tem que a gente vá à estação? Dona Áurea in terveio: - Para ela se rir de nós? Dona Mirtes protestou: - Não chegou sua vez ainda, dona Áu rea. Espere um pouco; vamos saber a opinião de d ona Ermengarda. Dona Ermengarda conservava-se s ilenciosa nesse dia; quase não falava e tinha um a aparência tristonha. Logo à chegada, foi dizen do que estava com uma terrível dor de cabeça. Quando se viu interpelada, passou a mão pela tes ta, como a confirmar que a dor continuava, depoi s titubeou e respondeu: - Não sei bem, não pens ei ainda no caso, mas acho... nem sei. Dona Cil ota e dona Áurea protestaram vivamente: - O que Ermengarda? Ainda hesita? Você que é a mais val ente, até virou a cara para eles desde o primeir o dia, ainda hesita? Está ficando como Odete Pin heiro? É o cúmulo! Dona Ermengarda sorriu tri stemente: - Ah! Desde o baile, tenho uma pena d e Georgina... Olharam admiradas para dona Ermen garda. Dona Sinhá respondeu: - Pena por quê? Po is eu não tive nenhuma. Achei ela tão altaneira, tão orgulhosa dançando com o Presidente que até tive raiva. Francamente. Dona Ermengarda falou com humildade: - Mas eu acho que devemos ir à estação, dona Sinhá. Afinal eles vão embora de m udança e enquanto viveram em Pinheiral e freqüen taram a cidade, o que temos contra eles? Nada. Sempre foram bons e amigos... Dona Ermengarda baixou os olhos, toda confusa. Houve um coro de protestos e exclamações; dona Mirtes adivinhou l ogo: - Isso foi arte de Odete Pinheiro; ela tem muita lábia, encheu a cabeça de Ermengarda. Do na Ermengarda reagiu fracamente: - Não. Não foi , nem estive com Odete. É porque refleti melhor. .. Dona Mirtes interrompeu: - Está bem. Dois vo tos a favor e um contra. Muito bem. Dona Áurea, sua vez. Com os lábios apertados de raiva, dona Áurea disse logo: - Eu não vou. Contra. - Doi s contra dois. E a comadre o que diz? Dona Sinhá hesitou um instante: - O meu voto é a favor; a pesar de tudo, devemos ir. Dona Mirtes exultou: - A eleição está se tornando interessante. Três contra dois. Agora vou dar meu voto: não dou ne m contra, nem a favor. Acho que aquelas que eram mais amigas de dona Georgina como dona Sinhá, dona Cilota devem ir à estação... Agora, aquel as que freqüentaram Pinheiral, mas não eram amig as de peito como eu, dona Ermengarda, dona Loló, dona Áurea não devemos ir... Aplaudiram dona M irtes; deu provas de mais ponderada e mais crite riosa de todas. Dona Loló chegou a bater palmas: - Muito bem, dona Mirtes. Dona Mirtes sorriu lisonjeada e tomou um gole de limonada que dona Sinhá mandara servir. Dona Ermengarda pediu lice nça, levantou-se para sair; disse que não estava muito boa e retirou-se. Nessa mesma tarde, G ina estava fazendo compras na loja do seu Arruda quando viu dona Ermengarda entrar; fingiu que n ão a viu e continuou a escolher fazendas, mas dona Ermengarda aproximou-se e falou: - Boa tar de, dona Georgina, como vai a senhora? Depois p erguntou pelas crianças, deu uma prosa e se foi sem comprar nada. Gina ficou pensativa; o que te ria dona Ermengarda? No dia seguinte Dr. Fernan do contou o que havia: tinha ido à Câmara e dois amigos de Dr. Fernando haviam pedido pelo marid o de dona Ermengarda que estava para perder o emprego; uma carta para o Presidente, pois eram tão amigos... Era preciso salvar o Bentinho. Gin a compreendeu. Então era para pedir, pedir uma c arta para o Presidente, por isso dona Ermengar da sorria, procurava falar com ela, perguntava p elas crianças... O Bentinho não sabia que Dr. Fe rnando era tão amigo do Presidente, se não não teria rompido. Interesseiros. Gina perguntou ao marido se ele ia atender ao pedido e escrever a carta; Dr. Fernando ficou indeciso. Gina pediu: - Não dê carta nenhuma. Ela é muito desaforada e andou se gabando de me desfeitear. Não dê, Fe rnando. Dr. Fernando lembrou: - Mas ele vai pe rder o emprego na Câmara se não houver um pedido nesse sentido. - Pois que perca. Quem manda do na Ermengarda ser tão fingida? Agora vive me pro curando para falar... Porque precisa de mim, não sou ruim, não é? Não dê nada. Os pedidos conti nuaram a chegar para a carta do Bentinho. Coitad o! Perderia o emprego. E uma carta, apenas uma c arta do Dr. Fernando poderia salvar a situação. Tivesse pena. Uma tarde, Gina estava sozinha no terraço de Pinheiral, quando viu um automóvel se aproximar; era Dr. Pinheiro e dona Odete. Fi caram conversando ali mesmo no terraço, estava um dia quente. De súbito, dona Odete pediu a Gi na, a carta para o Presidente. Tivesse pena, o B entinho perderia o emprego se Dr. Fernando não p edisse. Nessa mesma noite, quando Dr. Fernando chegou, Gina telefonou a dona Odete que a carta seria enviada no dia seguinte. A cidade suspirou , aliviada. Dona Loló falou nessa mesma tarde para dona Cilota: - Nunca, devemos desprezar os outros. Olha aí a Ermengarda; fez pouco caso da Georgina, virou a cara, pintou o sete, agora fo i pedir favor. Que sirva de lição pra muita ge nte... Dona Cilota baixou os olhos e não respon deu; e o Bentinho não perdeu o emprego na Câmara , graças a D. Georgina. Pinheiral com seu gado, suas enormes plantações, sua cascata que caía d e tão alto como um véu branco, suas terras que s e perdiam de vista, seus pinheiros perfumados e sua paineira em flor na frente da casa, foi um dia vendida. Um dia de tristeza para seus habi tantes. Gina chorou. Ana Luiza e Fernandinho for am se despedir dos cavalos, das árvores, da casc ata. Dias depois deixaram a fazenda para sempr e. Percorreram a casa, o pomar e as crianças des pediram-se de toda a criação. Fernandinho ficou um tempo soluçando, abraçado ao pescoço do alazã o; o pai disse que o cavalo não fora vendido, seguiria muito breve para o Rio. Quando entrara m no automóvel e dirigiram-se para a estação, vo ltaram muitas vezes a cabeça, para ver Pinheiral ainda uma vez. Lá estava a paineira dominando t udo pelos arredores; suas flores cor de rosa p areciam dar gritos de saudade na beleza da manhã ; o sol batia em cheio sobre a casa e o jardim. Viram Benedita, a preta velha que fazia parte da fazenda e morava numa casinha nas terras que Dr. Fernando dera, sacudindo o braço em direção ao automóvel; viram seu braço magro e preto ag itando-se no ar num adeus triste porque era para sempre; Benedita estava chorando, coitada! O ca valinho alazão, excitado com a beleza da manhã d e sol, corria pelo campo ao lado do automóvel, como a apostar corrida, depois parou perto da c erca e apoiando a cabeça na porteira ficou olhan do o carro que desaparecia. Fernandinho com os olhos cheios d’água gritou: - Adeus Alazão! Gi na consolou o filho: - Daqui a um mês, ele esta rá no Rio, meu filho, não chore. E pela última vez olhou para trás. A casa e a paineira parecia m envolvidas na leve neblina da manhã; viu as ja nelas dos quartos das crianças, o terraço, as ja nelas do seu quarto, a arvore florida, o chão salpicado de rosa e aquilo tudo imóvel, parado, sem vida, como um quadro; do outro lado, viu os animais esparsos pelo campo, cabeças inclinada s para o solo, mastigando; o rio mais longe e o braço negro de Benedita suspenso, no ar, como um a advertência de que tudo aquilo já pertencia ao passado, ao esquecimento. Seu coração diminui u como se fosse desaparecer. Meu Deus! Era ela m esma que ficava ali também no quadro que via da janelinha, do automóvel; era um pedaço do seu coração que ficava como que dependurado num galh o da paineira, era sua saudade, era sua vida. O carro deu um solavanco e fez uma curva rápida; Gina fechou os olhos um instante para guardar na retina o ultimo quadro; Ana Luiza agarrada ao b raço dela, falou: - Mamãe, não chore... Ela ab riu os olhos e sorriu: - Não, minha filha, isso é demais para chorar. As crianças não compreen deram; o marido olhou-a e não disse nada. No pá tio da estação, despediram-se do rapaz que guiar a o automóvel e que ficava na fazenda. Entraram. A primeira pessoa que viram foi padre Ernesto q ue estendeu as duas mãos para eles, sorrindo c om tristeza; as crianças apertaram a mão do padr e. Lá estava o Juiz e dona Sinhá, o delegado, Dr . Pinheiro e dona Odete, vários amigos de Dr. Fernando e num canto, humildes e silenciosos, o Bentinho e dona Ermengarda. Muito desapontados, foram se aproximando para agradecer a carta mais uma vez. Outras pessoas chegaram com um pouco de atraso e a estação ficou cheia. O chefe da e stação, o telegrafista e outros funcionários for am apertar a mão de dona Georgina; todos desej aram boa viagem e feliz estadia no Rio de Janeir o; "e que não esquecessem dos velhos amigos." O Juiz chegou mesmo a dizer que Dr. Fernando não devia ter vendido Pinheiral; podiam residir no Rio para educar melhor os filhos e conservar a f azenda para as férias ou para uma temporada gran de, de vez em quando. Dr. Fernando não respond eu. Eram sete horas da manhã; o sol parecia quer er incendiar a cidade. Dona Odete levou flores p ara Gina; despediram-se em abraços longos e pa lavras repassadas de, amizade; promessas de mand ar o novo endereço muito breve, muito breve. - Hoje o dia vai ser quente. - Vão sentir calor n a viagem. - Que pena irem embora de uma vez. - Quem sabe aparecem um dia para fazer uma surpre sa pra gente? Adeus, dona Georgina... - Boa via gem, Dr. Fernando. Felicidades. O trem começou a rodar e todas as mãos agitaram-se na despedida ; Gina percorreu todos os rostos com o olhar. Le mbrou-se que dona Ermengarda sussurrara ao seu o uvido, a voz tremula: “Deus lhe pague, nunca e squecerei o que fez por nós.” Coitada! Lá estav a ela dizendo adeus também. Adeus, cidadezinha! O trem deu um apito triste. Parecia triste; viu umas casas na beira da estrada, galinhas ciscand o, uma delas era carijó estava cercada de pint os. Com as azas abertas, chamava os pintos que c orriam, assanhados. Viu cachorros sonolentos que mal abriram os olhos para ver o trem passar; uma criança sem graça levantou a mão para dizer adeus aos viajantes, ninguém respondeu. As últim as casas foram ficando para trás; o trem corri a como louco. Contentes com a novidade da viagem , as crianças se acomodaram, discutindo, por que queriam ficar junto às janelas; queriam ver a p aisagem. Decerto Fernandinho já esquecera o Al azão. Ana Luiza estava rindo e mostrando os bois que pastavam perto da cerca; Helena pensando na vida feliz que iria levar no Rio de Janeiro. Gina não viu mais as casas da cidade. Bois vagar osos na beira da linha, plantações espalhadas aq ui e ali, bezerrinhos ao lado das vacas, riozinh os, postes, matas, campos, aves de caudas long as no pau da cerca, flores humildes espiando no meio do capinzal, um homem parado olhando o trem , nada. Recostou a cabeça no banco e suspirou baixinho: “Adeus, Pinheiral.” XVIII Dr. Fernando e Gina fizeram inúmeras amizades no Rio de Janeir o: instalaram-se numa bela casa em Copacabana e matricularam os filhos nos melhores colégios. H elena foi se tornando cada dia mais bonita; era parecida com Gina, mas,com os olhos negros do pa i. Muito sociável, tinha um círculo grande de am igas e nos dias de aniversário a casa ficava a legre e animada. Dançavam. Ana Luiza tinha perso nalidade marcada; não tão bonita como Helena, ma s inteligente e viva, tinha resposta para tudo . Fernandinho era estudioso e considerado bom me nino, tranqüilo e ajuizado. Com o tempo, Gina f oi se esquecendo do que sucedera na cidadezinha; seu passado era uma névoa quase apagada que rar amente vinha à memória. Visitava a mãe todos os anos em S. Paulo; dona Julica vivia sempre com Gracinha e auxiliava-a a criar os filhos; Graci nha tinha três crianças; tornara-se uma senhora muito quieta, amiga da casa e dos seus, não pa recia filha de Zelinda. Zeca residia Com a irmã, viúva, mas almoçava diariamente em casa da filh a. Estava aposentado, envelhecido pela doença e sua única alegria eram os três netos; gostava de pô-los no colo e contar-lhes historias de Mar ia e Joãozinho. As crianças ficavam ouvindo o av ô num encantamento e quando Zeca falava imitan do a voz da feiticeira: "Joãozinho, deixa ver se u dedinho, quero ver se está bem gordo", o menor dos netos, no colo, encolhia-se todo e escond ia as mãozinhas gordas, atrás das costas, medros o. Gracinha que costurava sentada ali perto, ria sempre. Era tão diferente de Zelinda, tão sensa ta, tão preocupada com sua família que Gina se sentia feliz quando vinha a S. Paulo. Comprava então presentes bons e caros e distribuía genero samente à família de Gracinha; parece que era o único meio que encontrava para demonstrar sua satisfação. Dona Julica nunca pudera esquecer a filha; visitava-a todas as semanas no cemitério ; não ia todos os dias porque sua idade não perm itia, mas ia pelo menos uma vez por semana. Tr ôpega e reumática, toda de preto, tomava o bonde para ir ao túmulo de Zelinda. Gracinha contava em voz baixa a Gina, um pouco assustada: “É semp re a mesma coisa, tia Gigina. Até impressiona; conversa com mamãe, pergunta se ela sabe que o último neto já está falando, conta tudo como se mamãe pudesse escutar. Fico até arrepiada, já vi mais de uma vez.” Gina aconselhava-a que a d eixasse, era uma mania como outra qualquer, tinh a pena da mãe. Distribuía os presentes, beijava os filhos de Gracinha, abraçava dona Julica e a sobrinha e voltava para o Rio, entre os seus. Via seus filhos fortes, bonitos e inteligentes; esquecia o passado, feliz com seu próprio destin o. Possuíam uma chácara em Teresópolis, para on de tinham vindo alguns cavalos de Pinheiral, ent re eles o Alazão e os cães caçadores, dos quais Dr. Fernando não pudera se separar. Todos os a nos, durante o verão, tomavam o automóvel e segu iam para Teresópolis, onde passavam dois ou três meses; era quase como se estivessem na fazenda outra vez: passeios a cavalo, tranqüilidade, v ida de roça. Os menores adoravam a chácara, mas Helena, que já estava mocinha, achava falta do R io com suas atrações. Gina não se importava con sigo mesma; queria só saber se seus filhos e seu marido estavam bem, se não sentiam nada, se hav iam tomado coalhada, se haviam almoçado, se ha viam gostado da receita do pato assado com aquel a farofa, se não haviam acordado durante a noite com os latidos do Black. Era a mãe de família b urguesa e pacata, vivendo somente para os seus , como se nada mais tivesse importância. Em Tere sópolis, ia todos os dias à cozinha fazer um pra to novo e quando Dr. Fernando o elogiava, sent ia-se feliz. Engordara, mas não se importava; ti nha bons vestidos, gostava de andar sempre com r oupas boas, mas não dava importância a certos de talhes; sua única preocupação era a família. C omeçou a usar óculos por causa da vista cansada; quando chegava em casa, perguntava logo se Ana Luiza tinha voltado do colégio, onde estava Fe rnandinho, porque Helena não tomara o copo de le ite. Não era vaidosa, era amorosa, profundamente amorosa. Queria bem a tudo que a rodeava: pesso as, animais, plantas. Preocupava-se com uma ro seira que não dera quase rosas aquele ano; chama va o jardineiro e ficavam os dois à volta da pla nta, comentando e procurando descobrir a causa . Percebia que Black, o cachorro predileto das c rianças, estava perdendo o pêlo; consultava o ve terinário que mandava dar um vermífugo mas Black saia correndo e ninguém conseguia segurá-lo. Uma das empregadas chamava-a: ela vinha com mans idão e fazia o cachorro tomar o remédio; ele rel utava um pouco e tomava. Descobrira no jardim que o pé de manacá estava cheio de bichos e por isso não dava bastante flores; ia buscar um remé dio e ficava mais de uma hora tratando da planta . Ensinava música aos filhos; Ana Luiza gostava de piano, talvez um dia fosse pianista; Fernand inho era admirável no desenho, quem sabe seria p intor? Como seu velho pai, o Pasquale, quem sa be seria escultor? Cantava quase todas as noites quando estavam sós; Dr. Fernando ficava ouvindo em silêncio. Os filhos, extasiados. Freqüentava a sociedade por causa dos filhos, mas não gos tava; não sabia se era devido ao passado e ao me do de encontrar algum conhecido daquele tempo ou se não gostava por não gostar; nunca se aprof undara em si mesma para saber. Considerava-se f eliz por ser casada com Dr. Fernando; era um hom em bom e afetivo e ela nada mais queria a não se r isso: amor do marido e afeto dos filhos. Quan do Helena fez dezesseis anos, Gina percebeu que ela estava preocupada e distraída; descobriu log o que a menina tinha um pesar. Educava os filhos de tal modo que contavam tudo a ela: as intri gas de colégio, os namoros, a preguiça de estuda r certas matérias, as notas baixas. A mãe aconse lhava, ensinava como deviam agir nesta ou naqu ela questão; procurava uma solução para todos os casos, sempre com muito critério e calma. Era m ãe e amiga ao mesmo tempo. Quando percebeu a tri steza de Helena, ficou esperando que ela mesma viesse contar; não perguntou, não inquiriu, com o se nada quisesse saber. Passou-se muito tempo antes que Helena contasse. Um dia Ana Luiza en trou na sala, onde Gina estava colocando flores numa jarra; deu uma volta, levantou a cortina e espiou o jardim, contou que Mimosa, a cachorrinh a, não quisera almoçar; depois chegou-se a Gin a e olhou as flores de perto: - Mamãe, vou tira r os espinhos desta rosa. E tirou fora da jarra as rosas de cabo longo, respingando água sobre a mesa de vidro. - Ana Luiza, olhe o que você e stá fazendo. Deixe isso. - Quero só tirar os es pinhos, mamãe. Veja quantos. - Mas tirar para q ue? Ninguém vai pegar os espinhos. Deixe as rosa s. Ana Luiza tirou uns dois ou três espinhos, f eriu um dedo tornou a respingar água que Gina en xugou cuidadosamente com o lenço. Depois sussurr ou: - Mamãe, eu descobri uma coisa... Gina não respondeu e continuou a procurar gotas d’água n a mesinha; a menina foi até à janela e voltou ou tra vez, inquieta: - Helena tem um namorado... - Não invente coisas, Ana Luiza. - Juro por De us. - Não jure por Deus toda hora. Já disse pra você. Ela passou o braço pelo pescoço de Gina que estava inclinada sobre a mesa: - Sabe, mamã e? Helena escondeu de mim, mas eu descobri. Ele é meio alto, simpático, tem o nariz assim meio c omprido e é estudante de medicina. - Como é que você sabe tudo isso? Ela afastou-se de Gina e fez uma pirueta no meio da sala, depois riu: - Ah! Ah! Descobri, mamãe. O que é que eu não desc ubro? Sei até onde eles se encontram três vezes por semana. Gina encarou a menina: - Eles se encontram? Aonde? Ela fez outra pirueta: - Lá no fim da praia. Eu vi! Depois baixou a voz. - Olhe, mamãe, e quando ela diz que vai estudar em casa de Margarida, vai encontrar com ele. - Te m certeza, Ana Luiza? - Juro... Tenho certeza, mamãe, já vi porque fui atrás deles. - Você fez isso? Não se envergonha? - Fui só uma vez, par a depois vir contar pra você. Juro... Gina cerro u as janelas da sala com um ar despreocupado. - Vá brincar e não fale mais nisso. Ana Luiza ap roximou-se rapidamente, beijou-lhe a face e deix ou a sala correndo e gritando: - Mimosa! Mimosa ! Venha brincar no jardim. Gina ficou perplexa. Por que Helena não lhe contara? Ela que fora se mpre tão sincera e franca? Por quê? Pois não con tava tudo, tudo o que se passava com ela desde pequenina? Os filhos são surpreendentes às veze s... Não se compreende. À noite contou ao marido ; acabou dizendo que ia interpelar a filha; Dr. Fernando aconselhou-a que esperasse ainda, não falasse nada, mas vigiasse mais. No dia seguin te, ouviu a voz de Ana Luiza falando com a cacho rrinha no quarto. Ana Luiza era assim, um pouco sonhadora; sonhava que era isto ou aquilo. Em Pi nheiral, desde que começara a falar, dizia: “M amãe, hoje sou uma borboleta.” E ficava sentada, olhando na frente dela, imaginando em que flore s pousaria, se fosse borboleta. Outro dia, diz ia: “Papai, hoje sou andorinha.” E na sua imagin ação, voava de galho em galho, depois vinha ao b eiral da casa, voava longe de novo, sobre os alt os pinheiros. O pai perguntava muitas vezes, q uando a via brincando: "Ana Luiza, o que você é hoje? Ela respondia: "Hoje sou um peixinho do ma r." Dr. Fernando ria: "Ah! É um peixinho? Entã o vou comer este peixe." Levantava Ana Luiza no s braços e fingiu que a mordia e mastigava alto, dizendo: "Que peixinho gostoso." E a menina ria até não poder mais, nos braços do pai. Agora que ela estava crescida e residiam no Rio, sonha va coisas mais elevadas; sonhava que ia para Eur opa, visitava as Índias, cavalgava os camelos do deserto; ou então falava em modas e jóias. Er a vaidosa. Gina sorriu quando ouviu a voz dela falando com Mimosa: "Olhe, Mimosa, faz de conta que você é gente e chegou de Paris há três dias. Fique aí sentada na cadeira e eu venho fazer uma visita. Espere aí; as bonecas são outras vis itas e eu venho chegando: “Boa tarde, dona Mima, como foi de viagem? Estava ansiosa por lhe faze r uma visita, mas a senhora sabe, tive um filh o há pouco tempo e ainda estou amamentando. Boa tarde, dona Margarida. Boa tarde dona Consuelo. Como vão? Pois como ia contando, meu filhinho fez três meses hoje. Se tenho leite bastante? Gr aças a Deus, tenho muito leite.” Fazia uma paus a e andava pelo quarto: "Mas dona Mima, conte al guma coisa da sua viagem. Divertiu-se muito? Viu muita coisa bonita? Do que a senhora gostou mai s?” Outra pausa. Mudava o tom de voz para falar com a cachorrinha: "Fique aí na cadeira, não le vante.” Voltava a voz aguda outra vez: "A senho ra esteve também na Rússia? Que tal? Sim, senhor a. Pois não; recebi sim, senhora. E em Paris? Mu itos divertimentos? Que maravilha é Paris! Ah! Pois não. Trouxe vestidos de Patou? Sim? Muitos ? Eu quando estive lá comprei vestidos de Moline ux. Acho Molineux um assombro. Tem um corte! E o s perfumes de Lanvin? Adoro a água de colônia de Jeanne Lanvin. Não experimentou ainda? Delici osa! O que a senhora disse, dona Margarida? Gost o de jóias também, minha paixão são os rubis. Oh! Como os adoro! A senhora também? Que coincid ência interessante! A prosa está boa, mas estão me chamando. Dão licença?” Gina ouviu os passos de Helena; subiu a escada e entrou no quarto; d e repente saiu outra vez e gritou: - Ana Luiza! A menina que parara de falar porque ouvira os passos de Helena, não respondeu logo; houve um s ilêncio. Helena foi até o quarto da irmã, gritan do sempre: - Ana Luiza! Ana Luiza! - Não preci sa gritar, não sou surda. Helena estava zangada : - Onde está minha blusa azul? Silêncio. - J á foi tirar outra vez, não é? Espere aí, vou con tar pra mamãe. Ela já disse que cada um tem o qu e é seu, por que tirar dos outros? A voz de Ana Luiza era suave: - Que blusa, my sister? Tinh a aulas de inglês e sempre que podia encaixava p alavras inglesas na frase porque sabia que isso irritava Helena. A voz de Helena estava cada vez mais zangada: - Não sabe, é? Vou contar já pra mamãe. Você vai ver. - Não precisa contar nada ; não vou comer sua blusa. Está aqui. Tome. - M as você tem a verde, por que tira a minha? - I like. - Vou contar que você anda usando minhas roupas e deixe de falar inglês, sua boba. Ana L uiza respondeu prontamente: - Pode contar. Tamb ém tenho coisas para contar. All right. Houve o utro silêncio entre as duas. A voz de Helena est ava um pouco assustada quando perguntou: - Cont ar o que? O que você tem para contar? Não uso su a roupa, graças a Deus. - Mas anda com namorado na praia que é pior, muito pior. Pensa que não vi? É moreno claro, meio alto e tem o cabelo rep artido deste lado. Vi os dois de maillot outro dia. E mamãe pensa que você toma banho aqui per to. Ah! Pensa que sou boba? I am no... Helena z angou-se mais: - E o que você tem com isso? - Muita coisa. Não quero permitir que minha irmã a nde com qualquer um. E por isso vou contar... - Mas ele não é qualquer um. Eu o conheço há muit o tempo, e não é meu namorado. É um moço muito d istinto. - Não é seu namorado? Coitada! Vá enga nar outra a mim não. Poor thing! - Dá aqui minh a blusa. - Está aqui sua namoradeira. - Malcri ada! Gina ouviu a voz de Ana Luiza: - Mamãe, o lhe Helena me beliscando. Gina aproveitou a opo rtunidade e aproximou-se: - O que é isso? Estão brigando? Duas moças! - Ela tomou minha blusa. - Não tomei, mamãe. Emprestei, nem cheguei a u sar. - Então por que a blusa está aqui? - Porq ue ia usar hoje com aquele costume cinza. - Não disse, mamãe? Usando minhas roupas... - Gina o lhou para Ana Luiza: - Você tem suas blusas, mi nha filha. Por que quer usar as de sua irmã? Cad a um com o que é seu... - É, mas eu não ando na praia... Helena enrubesceu e tomou o braço de Gina: - Mamãe, venha cá, quero conversar com vo cê. Levou-a para o quarto dela; fechou a porta. Ouviram a voz de Ana Luiza outra vez: "Pois é, dona Mima, na Europa uma vez...” Helena fez Gin a sentar-se numa cadeira, ela sentou-se na cama e começou: - É verdade, mamãe. Tenho um namorad o... Pela primeira vez, Gina pensou seriamente que suas filhas se casariam. Ouviu Helena em sil êncio e quando ela acabou de falar e ficou olhan do a mãe, como que interrogando, Gina estava c om o pensamento longe. Voltou à realidade. - Fe z muito bem em me contar tudo, Helena. Se ele é um bom rapaz e de boa família, será uma felicida de para você e para nós também. Seu pai e eu só pensamos na felicidade dos filhos. Nosso ideal é ver vocês três encaminhados na vida, bem casa dos e felizes... Continuou depois de um momento : - Mas é muito cedo para pensar em casamento, filha. Você só tem dezessete anos... - Mas ele ainda está estudando, mamãe. Só vamos casar depo is que ele se formar, daqui a dois anos... Paro u um pouquinho e perguntou: - Então você aprova ? - Aprovo. Por que não? Se ele é bom e distint o como diz, aprovo. Não sei por que escondeu tan to tempo de mim, devia me contar logo. - Descul pe, mamãezinha. Queria ter certeza que ele casav a mesmo comigo; só isso. Gina beijou a filha e só riu: - E casa então? - Ele disse que sim. F icaremos noivos no fim deste ano. Que felicidade ! Os olhos de Gina encheram-se de lágrimas; Hel ena surpreendeu-se: - Que é isso, mamãe? E abr açou fortemente a mãe. Gina sorriu: - Nada, só quando penso que vou perder você... Parece um so nho. - Mas você não vai me perder, mamãe. Fico aqui sempre; Eduardo vai trabalhar aqui mesmo no Rio. Ficaram ambas silenciosas. Gina falou dep ois: - Lembro de vocês em Pinheiral, tão pequen inas... E agora falando em casamento. Quase não acredito. Helena deu uma risada: - Você tem ca da uma, mamãe. Ouviram Fernandinho subindo a es cada correndo e chamando: - Mamãe! Mamãe! Onde você está? - No quarto de Helena! Ele empurrou a porta e espiou; - Estão conspirando? Mamãe, olhe a nota que tirei hoje em matemática. Tenho certeza que vou ser engenheiro; quer ver meu des enho? Estava vermelho e suado, os cabelos despe nteados, a camisa desabotoada no peito. Ana Luiz a foi entrando também no quarto acompanhada pela cachorrinha que abanou a cauda quando viu o m enino. Todos se inclinaram para ver o caderno do menino: - Deixa ver, deixa ver, gritou Ana Lui za. Deu um grito de admiração: - Puxa! Que des enho! - Não falta nada no avião. Veja, mamãe. - Olha a nota que ele tirou, mamãe. - A mais al ta da classe. Gina beijou a testa suada do filh o: - Como eu fico contente com você, Fernandinh o. Muito bem. Fernando é que vai ficar radiante. - E a nota de matemática, mamãe? Veja que colo sso! - Puxa! Ele tirou a nota mais alta. - Che ga de falar "puxa", Ana Luiza. Mamãe não gosta. - Foi sem querer. Inclinou-se e tomou a cachor rinha no colo, dizendo: - Veja, Mimosa, veja a nota do Fernandinho. - Ela vai manchar o desenh o, Ana Luiza! Mamãe, o focinho da Mimosa vai man char o desenho. - Nossa Senhora! Nem encostou o focinho. Só para ver. - Que menina! Nos braço s de Ana Luiza, o focinho preto da cachorrinha d ebruçou-se sobre o caderno do menino: - Veja, M imosa! Gina acariciou a cabeça do filho: - Qua ndo seu pai chegar, vai ficar contentíssimo. Vá agora tomar seu banho e se vestir para o jantar. Vamos descer. De repente Ana Luiza gritou olha ndo pela janela: - Papai vem vindo! Vou encontr ar com ele! E desceu correndo as escadas. Ferna ndinho tomou os cadernos e os livros, juntou tud o rapidamente e desceu as escadas, também. Gina pôs o braço à volta do pescoço de Helena: - V amos, filhinha. Vamos também... Desceram devaga r; encontraram Dr. Fernando no hall, Ana Luiza d e um lado e Fernandinho com o caderno aberto na frente do pai. Dr. Fernando colocara os óculos e olhava, satisfeito. O menino falava: - Veja, papai, o professor ficou satisfeitíssimo. Olhe que nota! - Bravos! Beijou Gina que se aproxim ara: - Viu, Georgina? O desenho está muito bom. Ana Luiza apontou o dedinho: - Veja, papai, t em hélice, tem tudo, até o nome escrito aqui. O pai aproximou o caderno dos olhos e leu: - Pin heiral. Muito bem. O nome do avião está sugestiv o. E na matemática? - Acertei todos os problema s. Olhe a nota. - Vai ganhar um presente por is so. Fernandinho exultou; Ana Luiza quis saber: - O que, papai? Conte! - Não seja curiosa! Gin a interveio: - Suba, meu filho, vá tomar banho e trocar roupa, daqui a pouco o jantar está pron to. Fernandinho ajuntou tudo outra vez e subiu as escadas, radiante. Ana Luiza foi ao terraço l evando Mimosa. Gina sentou-se ao lado do marido, tendo Helena junto a ela. Falou: - Temos mai s novidades hoje, Fernando. Helena andou me fala ndo... Sorriu e olhou a filha. Helena corou e c omeçou a brincar com o cabelo da mãe. Ela contin uou: - Parece que Helena está pensando em casam ento, não tão cedo bem entendido, mas querem fic ar noivos logo... Ela me contou tudo... Dr. Fer nando olhou a filha: - Que é isso, Helena? Quem é ele? Mas é muito cedo para pensar em casament o, você só tem dezessete anos... - Quase dezoit o, papai. Daqui a cinco meses, faço dezoito, - Mesmo assim é cedo. Ela corou mais e disse: - M amãe conta tudo pra você, papai. Deixou o hall quase correndo. Gina então contou a Dr. Fernando ; ele ficou silencioso, escutando. Depois levant ou-se, passeou pelo hall e sentou-se de novo; Gi na aproximou-se dele e sentando-se no braço da cadeira do marido, falou: - Parece impossível, hein, Fernando? Já temos uma para casar! Ele f icou olhando o chão sem dizer nada. Depois repet iu, pensativo: - Parece impossível. Outro dia m esmo ela era tão peque nininha... Pela primeira vez, nessa noite, uma dúvida atravessou o céreb ro de Gina: contaria ou não o seu passado a Hele na? Nunca pensara antes em agitar o lodo por ond e caminhara, mas ali estava a idéia dominando a lembrança desse passado que procurava esquecer por todos os meios. Era tão doloroso lembrar, a inda mais reviver contando à filha. Não. Era i mpossível contar; só em pensar nisso, sentia hor ror e miséria. Não. Mas se a filha viesse a sabe r um dia por outrem? Não seria pior? Se viesse a saber pelo próprio marido um dia, por acaso? Não há tantos acasos na vida da gente? E não ser ia uma humilhação para Helena? Uma vergonha? Não seria pior? Era preciso contar. Mas onde enco ntrar palavras que não ferissem a filha? Que pas sasse por cima do seu amor próprio como a água q ue desliza sobre pedras? Sem ferir, sem bater, s em magoar, sem fazê-la sofrer? Como? De que fo rma? Teria essa coragem um dia? Sem poder dormir , recapitulou seu passado cheio de misérias; viu sua infância nítida na memória: as inúmeras m udanças de quarto em quarto, dona Julica cozinha ndo num canto e a água que fervia numa lata de q uerosene. Ouviu na imaginação o ruído da água fe rvendo e o pai chegando para o almoço. O profe ssor Pasquale, calmo e silencioso, falando numa mistura de português e napolitano. Quando a mãe não fazia o almoço, ele cortava um pedaço de p ão e comia com cebolas, sentado na porta do quar to. Lembrou dos dias de chuva; ela ficava lá for a, de pé, rente, à parede, encolhida, vendo a ch uva cair, salpicar, escorrer, formando poças n o cimento arrebentado do corredor que ia até o f undo da vila. Às vezes entrava em casa de uma vi zinha e ficava esperando a chuva passar; menti a não sabia por que, talvez por instinto; dizia que a mãe havia saído para comprar osso para a s opa, mas sabia que a mãe estava lá dentro com o amigo Giacomo. "Como contar tudo isso a Helena ? Ainda mais Helena que é altiva, tem um arzinho de comiseração para as colegas cujos pais são d ivorciados. Diz assim: "Imagine, mamãe, ela va i visitar o pai uma vez por semana, tenho até dó ." Esse dó é misturado com orgulho por ter sua s ituação firme, saber que seu lar é organizado. Compara-se mentalmente com a colega e sente-se feliz. Como hei de contar? Quebrar essa firmeza? Destruir essa fé? Ana Luiza é diferente; parece mais compreensiva, mais humana. Apesar de mai s criança, compreende certos fatos com mais cora ção do que. Helena; Helena é mais dura, mais ina ccessível. É orgulhosa. Como falar? De que for ma?” Ouviu a tosse de Ana Luiza no quarto próxi mo; pensou no xarope que daria à menina no dia s eguinte. Seus pensamentos continuaram a deslizar como a água de um rio numa noite escura; no s ilêncio e na treva: "Deve ser mais de meia noite . Estou tão distraída que não ouvi o relógio da sala de jantar dar as horas. E ouve-se tão bem aquele relógio! Precisarei mesmo contar a Helen a? Ela, não me desprezará depois? E se me despre zar? Como viverei com o desprezo de minha filha? E se eu não contar? Não me arrependerei um di a? Que poderá acontecer? Ela virá a saber por ou tra pessoa e que pensará de mim? Que fui uma cov arde? Não virá me recriminar cheia de desespero? ” "Mamãe, você..." E' melhor falar, contar tud o, de qualquer maneira. Sempre fui leal, sincera , franca em todos os atos da minha vida; sempre achei que a verdade precisa ser dita apesar de tudo, mesmo que seja contra nós; deve pairar se mpre sobre todas as coisas e agora vou ocultar, de minha filha a história da minha vida? Não. Po r pior que seja e por mais penosa que seja par a mim a situação, contarei. Ana Luiza está tossi ndo outra vez, amanhã sem falta lhe darei o xaro pe. Vou consultar Fernando se devo ou não cont ar a Helena. Não, não consultarei, isso é entre mim e minha consciência, ele nada tem com isso. Apenas direi: "Fernando, vou contar tudo a Helen a." Tenho certeza de que ele aprovará e nem qu e ele diga: "Acho que não deve", contarei. Conta rei tudo. Há momentos na vida da gente em que é o mesmo que passar sobre uma tábua num abismo. Passarei ou cairei? Que idéia. Qual será a reaç ão de Helena? Será de desespero? Sim, ela vai me odiar. Terá vergonha e desprezo por mim. Como poderei saber o que ela vai sentir? Assim como souberam tudo em Pinheiral, poderão saber também aqui; tudo o que é ruim, sabe-se logo. Fernandi nho é que estava satisfeito hoje com as notas que tirou. Que satisfação! E como está crescido! Com calças compridas, parece um homem. Forte e bonito, com aqueles dentes grandes na frente da boca. Engraçado. Parece com Fernando, mas pens o que vai crescer mais, ficar mais alto. Que dir ei a Helena? Ah! Se eu tivesse uma inspiração! P oderei começar deste modo: "Helena, venha cá, quero contar a você uma história verdadeira". El a dará uma risada, talvez responda: "Virei crian cinha outra vez, mamãe?" "Escute, minha filha, já sofri muito, tive uma mocidade cheia de cont ratempos. Meus caminhos já foram penosos... Você não pode saber o que é isso, nunca poderá imagi nar o que é ter fome e frio, viver pelas ruas pedindo emprego, mendigando colocação e não enco ntrar nada, apenas o vento frio a uivar nas esqu inas, a fome, a desolação e a miséria..." Os o lhos de Helena ficarão fixos em mim, mas ela não acreditará. Dará um suspiro: “O que mamãezinha? Quando isso? Não acredito.” E eu que farei? Com o continuarei a falar? A falar que quando volt ava para casa, com os sapatos rotos, cansada de tanto procurar trabalho, encontrava minha mãe fa zendo uma sopa rala sem se importar comigo, pa pai morto... Eu sentada na cama, esperando a sop a e noutro dia a mesma coisa, sempre... Terei co ragem de ir até o fim? Falarei a ela sobre os ca minhos que já trilhei? Nitidamente, vejo diant e de mim, os três caminhos; talvez haja alguns a talhos entre eles, mas são três os que me lembro bem: o da miséria, o da riqueza falsa e o do amor, amor verdadeiro. Quando cansei do caminho da miséria, escolhi o mais fácil, o mais fácil d e todos... Mas não tive outro remédio, parece qu e tudo estava vedado para mim e só havia aquel e por onde enveredei. É estranho, nunca minha mã e me ensinou a rezar, nunca me disse que havia u m Deus; nunca tive o que quase todas as crianç as têm: um lar, carinho, religião, amparo. Nada. Só senti necessidade, desprezo, e só ouvi queix as e palavras de revolta. Como poderia escolher outro senão aquele? Foi o mais fácil, mas tamb ém o mais enganador; tudo nele foi ilusório e pa ssageiro, teve o brilho das pedras falsas, foi t ransitório e enganador. Nele não havia paz, ha via só desassossego e falsidade. Nada era durado uro. Caminhei por ele porque não conhecia outro, só havia aquele diante de mim. Foi como um refú gio, ao menos não passei necessidade, tive sap atos e casacos para o frio, e roupas para me cob rir e não sentia mais, na sola dos pés, o frio e o calor das calçadas; a chuva não me maltrato u mais, tive dinheiro para me abrigar dos vendav ais. Eu sabia que tudo era falso, mas servia de abrigo contra a necessidade; Mas não era feliz. Como podia ser feliz vivendo na falsidade? O p rimeiro caminho foi o do desamparo, o segundo o da falsidade; toda aquela riqueza que me rodeava era enganadora; de um dia para outro, poderia perder tudo e ficar novamente desamparada. Foi quando tive as maiores desilusões e não mais sup ortei a vida falsa: era como se caminhasse sob re pedras que me magoassem os pés e me fizessem sofrer. Era preferível voltar ao desamparo outra vez, era preferível o primeiro. Foi então que s e me deparou o terceiro, o da segurança. Pela primeira vez na minha vida, me senti com firmeza , como se visse diante de mim uma estrada plana e limpa, sem atalhos, sem pedras, sem tormenta s. E nesse estou até hoje graças a Fernando. Fiq uei conhecendo Deus e contei aos meus filhos a h istoria de Jesus. Dei-lhes o que nunca tive: um lar sólido, carinho, religião, amor. Dei tudo. Vivi para eles e para meu marido desde o primei ro dia e posso dizer que acertei. Venci! Uma bad alada. Uma hora já? Quem sabe uma e meia? E eu pensando... pensando... sem poder dormir. E se depois que eu contar tudo a Helena, ela me disse r: "Está bem, mamãe sei agora quanto você sofreu , sei tudo, mas escute uma coisa, você podia t er escolhido outro caminho. Mamãe, eu preferia l avar chão, ser criada, tomar conta de uma crianç a, encerar casa, lavar vidros, tudo menos o qu e você fez. Esse serviço você arranjaria se quis esse. Ao menos teria comida e um pouco de dinhei ro, não precisaria levar outra vida, essa vida h orrível que você me contou. Eu sofreria trabal hando, mas não faria o que você fez". Helena vai me falar assim, ela é orgulhosa... Então respon derei: "Helena, talvez você esteja com a razão . Nunca procurei esse serviço, mas sabe por quê? Porque nunca tive Deus no coração e quem não co nhece Deus, não sabe distinguir entre a honra e desonra. Eu só sabia que estávamos num mundo, onde aquele que não luta, perece; num mundo onde temos de vencer de qualquer maneira porque se n ão morreremos de fome. E escolhi o caminho mai s fácil porque não tinha ninguém comigo. Estava só e precisava vencer; nem um conselho, nem um c arinho, nem uma palavra amiga, e nem Deus. E s e hoje você pensa assim é porque eu coloquei Deu s em seu coração. Você conhece Deus e por isso p refere qualquer outro caminho, por mais áspero q ue seja, ao da desonra. Mas fui eu que dei a v ocê o que nunca tive: a religião. Somente em Pin heiral, quando vocês dois se prepararam para a p rimeira comunhão, foi que aprendi religião com padre Ernesto. E foi porque Deus entrou tarde n o meu coração que escolhi o caminho mais fácil, minha filha. Foi por isso. Naquele tempo, só sab ia que aquele que lutasse mais arduamente, ven ceria. E de que forma lutar? Pobre de mim! Não t inha ninguém a não ser eu mesma. Helena me compr eenderá; e me dirá com os braços à volta do me u pescoço: "Mamãezinha, você é um anjo." Que fel icidade se ela compreender e falar assim. Oh! Me u Deus! Dai-me forças para vencer este obstáculo , o mais difícil que até hoje encontrei em meu s caminhos.” Gina cerrou as pálpebras e tentou dormir; mas só o conseguiu quando o dia estava r aiando. Ouviu uns latidos da Mimosa lá embaixo, ouviu o canto dos pássaros no jardim e tornou a abrir os olhos. Percebeu a tênue claridade do dia ameaçando passar através das venezianas, ouv iu carrocinhas em disparada pela rua a fora, dep ois ouvir o mar. Era embalador o ruído do mar; como uma canção suave e doce prometendo paz aos corações aflitos, como se cantasse melodias de amor por toda extensão da praia. Pensou: "O di a deve ser lindo hoje. Deve ser um desses dias b rilhantes de luz e de vida. O que os filhos irão pensar do meu passado? Irão recriminar-me? Não. Para eles, serei sempre a mãezinha querida. D eus é grande." Dormiu. Alguns meses depois, Hel ena foi pedida em casamento; Eduardo estudava me dicina e pertencia a distinta família. Gina e Dr . Fernando ofereceram uma recepção para festejar o noivado da filha. Desde manhã chegaram cest as de flores com cartõezinhos dependurados; gran de excitação, Ana Luiza encarregou-se de guardar todos os cartões para serem respondidos depoi s; a cada nova cesta que chegava, ela gritava pa ra cima com toda a força. - Mais uma. Cinco já. Às vezes acrescentava: - Esta é linda, Helena, só rosas vermelhas, venha ver. Demonstrando dis plicência, Helena descia as escadas bem devagar, parando em cada degrau para mostrar indiferença e lustrando as unhas com cuidado, mas Gina sa bia que tudo isso era para esconder a emoção e d isfarçar a alegria que sentia. Estava emocionada . Olhou com pouco caso as cestas que Ana Luiza colocara à volta do salão e depois os cartões q ue estavam escondidos sob um cinzeiro de mármore . Perguntou: - É assim que você está guardando os cartões Debaixo do cinzeiro? - Isso é provis ório, Helena, depois vou guardar direito. Veja e sta, só de copos de leite e cravos. Não é linda? - É. - E esta? - Também. Fernandinho desceu para ver; olhou à volta querendo criticar: - H um! Parece um mercado de flores! Helena zangou-s e: - Bobo. Nunca viu cestas de flores? - Tanta s assim não. Ana Luiza mostrou-lhes as rosas ve rmelhas; ele perguntou: - Onde estão os cartões ? Quero ver quem mandou. Helena interveio: - P ara que? Que interesse tem nisso? - Só para ver . Onde estão, Ana Luiza? - Não mostre, Ana Luiz a. Mas pelo olhar da menina, ele percebeu; corr eu para o lado do cinzeiro e descobriu-os. Helen a estendeu o braço: - Deixa os cartões aí. - Q ue bobagem, menina, não vou rasgar nem comer seu s cartões; quero ver se o pai de um amigo meu ma ndou. Ele disse que ia mandar. Percorreu um por um lendo alto os nomes e os dizeres; de repent e ouviram a campainha e Ana Luiza deu um pulo: - Juro que é outra. Querem ver? A criada entrou com uma cesta enorme com hortênsias azuis e cor de rosa; a menina bateu palmas: - Esta ganha! Esta ganha de todas. Vamos ver de quem é. Ferna ndinho precipitou-se é arrancou o cartão; Helena gritou: - Não seja bruto. Deixa eu ler primeir o. - Deixa que eu leio. Eu leio, Helena. É do p ai do meu amigo Fritz. Veja. - É a mais bonita. - Não é. Cada uma que vai chegando Ana Luiza d iz que é a mais bonita. Dr. Fernando chegou par a o almoço; toda a família reuniu-se à volta del e para comentar os últimos preparativos... O tel efone tocou e Helena correu para atender. Fern andinho observou: - Até na última hora ela tem que falar com Eduardo. Nunca vi. Segurando o br aço do pai, Ana Luiza perguntou: - E você tem a lguma coisa com isso? Ele fez uma careta e não respondeu; durante o almoço falaram no noivado d e Helena, em Eduardo, nos convidados que esperav am. Gina sentia-se um pouco nervosa; há meses seu cérebro trabalhava incessantemente: contaria ou não à filha? Observava os filhos para compre endê-los melhor e poder adivinhar o que cada um sentiria quando ela contasse; que diriam? Olho u a filha mais velha: Helena seria a primeira a saber. Era bonita e inteligente; usava os cabelo s soltos nos ombros, tinha as feições delicada s e distintas. Clara, cabelos castanhos escuros; não crescera muito, mas era esbelta e elegante. Muito elegante. Toda a gente admirava a beleza de Helena, mas ela tinha qualquer coisa que Gi na não conseguia descobrir; guardava na sua fisi onomia ou na sua alma, um segredo. Mas que segre do poderia ter uma menina de dezoito anos, sem pre junto dos pais? Saberia alguma coisa do pass ado da mãe? Impossível. Era apenas impressão, nã o havia segredos. Mas parecia ter qualquer coisa que a mãe nunca aprofundara, não conseguira. Ana Luiza e Fernandinho eram livros abertos, lia -se-lhe nas fisionomias o que se passava nas sua s almas; eram francos, alegres, despreocupados . Helena era retraída, fechada. Guardava tudo pa ra si, "Como é difícil reconhecer as pessoas ret raídas", pensou Gina. "Nunca dizem o que sentem" . Os outros dois filhos diziam claramente se g ostavam disto ou daquilo e porque gostavam; expl icavam o que sentiam e porque sentiam. Helena nã o. Por mais que se perguntasse, vinha com evas ivas: "Nem sei por que..." "À toa." "Porque gost o." Era difícil de ser compreendida. Havia momen tos em que seu belo rosto parecia adormecido; ti nha os olhos abertos, olhava para a frente e p arecia não ver, mas atrás dos seus olhos, quanta vida, quanto entendimento. Isso é que perturbav a a mãe. Dr. Fernando dizia: "Ela tem muita vi da interior Georgina, vive mais para si mesma.” Muitas vezes nas reuniões, nos espetáculos ou n os passeios, onde iam todos, os dois filhos mais moços vinham contando tudo o que viram; Helena vinha silenciosa; mas quando se lhe perguntava , ela às vezes respondia mais do que os outros, porém apenas nos dias em que estava disposta a f alar. Ana Luiza se admirava: "Você não viu, He lena, você não foi lá perto." Ela respondia: "Ma s vi muito bem." E descrevia com detalhes o que os outros não haviam percebido. Durante o almoç o, Gina observou a filha. De repente, Dr. Fernan do falou; - Hoje vamos festejar o noivado, mas o casamento será daqui a um ano ou mais. Está be m claro, filha. Já falei com Eduardo. Quando voc ê fizer dezenove anos, marcamos o casamento. Ela não respondeu, sorriu e tornou um pouco d’ág ua. Fernandinho deu opinião: - Também acho, pap ai. Casamento muito cedo, dá em droga. O que ele s estão sabendo da responsabilidade de casados? Ana Luiza cruzou os talheres: - Eu não me casa rei, nem quando tiver trinta anos. Ele riu-se: - Então o que vai fazer? Ficar para tia? Mulher precisa casar. Ana Luiza interveio: - Tudo vo cê dá opinião. Frangote não dá opinião. O pai e a mãe censuravam a menina; Fernandinho ficou ve rmelho de raiva, estendeu o braço e beliscou a i rmã por baixo da toalha; Ana Luiza deu um gritin ho: - Papai, olhe Fernandinho. Ele continuou a comer. Helena pediu licença para se levantar: - Mamãe, eu não quero sobremesa. Deixa eu subir? Fernandinho começou a rir: - Está nervosa hoj e? É salada de fruta, você gosta. Gina sussurro u: - Não fale tão alto, meu filho. Por que grit ar? Vá, Helena. Ela começou a subir as escadas; Ana Luiza comeu apressadamente a salada: - Mam ãe, deixa experimentar meu vestido? - Você não experimentou ontem? - Estava com aquele defeiti nho na cintura. Quero ver se ficou bom. - Vá. Ana Luiza subiu correndo as escadas; Fernandinho procurou imitar a voz da irmã: - Mamãe, deixa experimentar meu vestido? Ela gritou lá de cima : - Não seja bobo... Gina ficou mexendo a xícar a de café: - Ana Luiza é vaidosa... Nunca vi... Uma hora antes da chegada dos convidados, Ana Luiza ainda não estava pronta. Só de combinação, andava de um lado para outro no quarto, falando sozinha como era hábito seu; parou diante do espelho. Tirou os cabelos que caíam sobre as ore lhas, voltou-se para um lado para ver como ficav am, tornou a deixar cair os cabelos e sorriu, satisfeita: "Mas como ia dizendo, este meu vesti do veio da Europa. Conhece Paris? Não? Pois é pe na, morei lá três anos no boulevard... boulevard Maupassant.” Penso que tem um boulevard com e sse nome. O que será um boulevard? Inclinou-se diante do espelho para sua própria imagem. "Muit o prazer em conhecê-lo... Não sabia que Pinheira l era de papai? Não? Pois nasci lá.” Fez um ges to faceiro e quis piscar um olho, mas não conseg uiu; piscou os dois. Então parou de falar e fico u uns minutos diante do espelho tentando piscar um olho só. Ouviu o barulho da cachorrinha arr anhando a porta; falou alto: É dona Mima? Faça o favor de entrar... (fez uma pirueta e abriu a p orta). “Como vão seus filhos, dona Mima? Estão com saúde? O último sarou da coqueluche. Ah! Nã o era coqueluche? Era o que? Varíola? Nossa Senh ora!!” Deu uma risada gostosa à idéia de invent ar essa doença para o filho da cachorrinha; Mimo sa subira sobre uma poltrona coberta de cretone e se aninhara, espiando Ana Luiza com olhinhos muito negros. Dançando, ela aproximou-se da cac horrinha: “Você precisa ficar bonita, hoje, mais bonita do que nos outros dias. Hoje é o noivado de Helena. Não sabia?” Cantarolou e dirigiu- se à gaveta de onde tirou uma fita vermelha: "Le vante-se, Mimosa, vamos pôr esta fita no seu pes coço. Ande.” Amarrou a fita com cuidado e deu u m laço grande: "Você está um amor, garotinha. Mi mosa você já esteve noiva alguma vez? E não se c asou? Por quê?” Riu alto ao lembrar do noivado de Mimosa; depois cantarolou outra vez: "Lá... l á... lá..." E fingiu que estava dançando num sal ão nos braços de um rapaz: "Agora uma valsa as sim..." Girou pelo quarto dando voltas; deitada na poltrona, a cachorrinha espiava-lhe os movime ntos com um olho só, vivo e negro. De repente a menina parou perto do guarda-roupa: "Bem, agor a vamos vestir o vestido de Paris... Que amorzin ho... Tão azul..." Alisou a seda do vestido e ti rou-o do cabide; enfiou-o pela cabeça, ajeitou , puxou as saias para baixo. Lembrou da careta q ue Fernandinho fazia para ela todas as vezes que brigavam; era uma careta horrível: puxava as pálpebras para baixo, arrebitava o nariz e arreg anhava os dentes, tudo de uma só vez; nessa manh ã fizera uma porção de vezes quando ela estava n o salão arranjando as flores. A essa lembrança , recostou a cabeça no espelho do guarda roupa e riu até ficar com os olhos úmidos. De repente l embrou-se de que precisava acabar de se vestir ; olhou sua própria imagem: o vestido não estava bem. O que seria? Puxou-o para um lado e para o utro. E agora? Parecia largo demais na cintura, teve vontade de chorar. Ficou desolada. A idéi a brilhou de repente: "Mamãe dá um jeito." Abriu a porta do quarto e gritou com a voz aflita: - Mamãe! Gina que estava sentada diante da pente adeira e ia começar a se pentear, foi ao quarto da filha; encontrou Ana Luiza de pé no meio do q uarto, um ar aborrecido: o vestido estava larg o demais na cintura. Voltou-se para Gina, vermel ha e nervosa: - Eu não disse? Olhe que coisa ho rrível. Que defeito medonho! - Mas pode se arra njar, filhinha. Deixa ver. Fez a menina voltar- se em todos os sentidos; foi falando: - Prenden do aqui deste lado fica bom. Quer ver? Vire um p ouco, não, para a direita. Veja agora. Vai ficar bom. - Parece que fica. Gina. animou-a: - En tão tire o vestido. Conserto num instante; vá se penteando, para não perder tempo. Sentou-se na cadeira do quarto e começou a costurar; Ana Lui za de combinação, ia de um lado para outro, mais calma. Chegou à janela e espiou. - Vá se pente ando, Ana Luiza. - Depois. É só passar o pente. O cabelo está ótimo hoje. Ouviram os passos de Helena e uma leve batida na porta do quarto. Su a voz era autoritária: - Abra, Ana Luiza. Hele na entrou; estava com um vestido branco muito si mples. Ana Luiza levantou a cabeça e aspirou o a r franzindo o nariz: - Hum! Está perfumada dema is, senti de longe! Diante do espelho, Helena f ingiu que não ouviu; começou a se voltar de um l ado para outro, observando-se. Perguntou: - Vo cê ainda não está pronta? Mamãe precisa se apron tar. - Meu vestido estava com defeito, mamãe es tá consertando. À última hora? Ouviram os pass os de Fernandinho. Ana Luiza correu e gritou: - Não entre! Fechou a porta à chave. Helena pedi u: - Mamãe, prenda minha pulseira. Estendeu o braço; Gina deixou a costura e prendeu a pulseir a de Helena. Continuou a costurar apressadamente . Dr. Fernando chamou do outro quarto: - Georgi na, está na hora de se vestir. Quatro e meia. A voz de Gina estava sufocada de aflição: - Abra a porta e diga a seu pai que já vou. Passaram- se alguns minutos; Ana Luiza passeava, impacient e: - Pronto, mamãe? - Pronto. Vestiu o vestid o na menina e ficou observando; prendeu de um la do com um alfinete; tornou a tirá-lo e perguntou : - Está bem agora? A menina sorriu, satisfeit a: - Agora sim, mamãe. Você é um anjo. Gina ap ressou-se em deixar o quarto; estava atrasada. E ra preciso correr; viu quando Helena ia descendo a escada; ia devagar, a cabecinha levantada com o se fosse desafiar o mundo todo. Seu rosto cl aro e rosado destacava-se no vestido branco muit o simples; ia arranjando o colar à volta do pesc oço e toda sua figurinha delgada e bonita demo nstrava altivez. Gina suspirou e entrou no quart o: "Dai-me forças, meu Deus, tenho medo." Tirou o vestido pela cabeça e arremessou-o no divã; de scalçou os sapatos e foi escolher um par de me ias na gaveta. Dr. Fernando, pronto, avisou do h all: - Você está atrasada... - Ninguém vem às cinco em ponto, Fernando. Num instante estarei p ronta. Tirou os óculos e começou a se pentear, apressada. Desceu quando todos estavam no salão; havia cestas de flores no terraço e no jardim. Ana Luiza tinha uma porção de cartões entre as mãos; o pai aconselhou: - Vá guardá-los numa g aveta, filha. - Já vou, papai. Gina falou: Pre nda a Mimosa. Ana Luiza começou a rir: - Viu c omo ela está bonita com a fita vermelha no pesco ço? Mimosinha, venha cá. Deixa ela ficar, mamãe. Ela não morde ninguém. Dr. Fernando ordenou: - Ana Luiza, prenda a cachorrinha lá dentro. - Que tem que ela fique num cantinho do salão, pap ai? Ela não incomoda ninguém... Mas vendo o ros to contrariado de Gina, fez uma careta e saiu co rrendo e chamando: - Mima, vem! Parou um autom óvel no portão; num instante Helena estava na po rta, sorrindo para Eduardo. Gina viu quando as f aces de ambos se uniram; depois Helena apertou o braço do noivo num gesto carinhoso. Ele falou qualquer coisa e ela riu-se toda corada. Gina p ensou: "Terei coragem?" Sorriu e estendeu a mão ao seu futuro genro. Recebia os convidados, dir igia uma palavra a um e outro, olhava as bandeja s que as criadas levavam ao salão. Observou os n oivos; Eduardo era bem mais alto que Helena; e la era pequena e esbelta; brincava com o colar e olhava para ele enquanto conversavam. Viu Ferna ndinho num grupe de homens; esforçava-se por mos trar-se desembaraçado, mas magrinho e alto, ai nda tinha um rosto de criança. Ana Luiza não par ava, ia e vinha, sorria, falava. Gina lembrou da sua irmã Zelinda; que triste impressão causaria sua irmã ali naquele meio, entre essa fina so ciedade onde ela vivia agora. Seria deplorável. Pensou: "Graças a Deus ela morreu." Sentiu um ch oque; como estava dando graças a Deus da irmã ter morrido? Mentalmente fez o sinal da cruz e d isse: “Deus me perdoe.” A sala de jantar estava movimentada; grupos de pessoas conversavam anim adamente. Dirigiu-se para lá a fim de ver se nad a faltava. Muita gente à volta da mesa, beberica va e comia salgado; ela aproximou-se e convers ou, com alguns convidados. Estava com um discret o vestido preto, um colar de pérolas no pescoço; engordara ultimamente e sentia-se "forte", co mo as modistas diziam. Tinha ainda a pele bonita e os dentes perfeitos, mas usava óculos por cau sa da fraqueza da vista. Muitas senhoras falava m-lhe sobre a beleza da festa, os noivos, o enca nto da filha. De repente seu coração como que pa rou de bater e a palavra que ia pronunciar mor reu-lhe nos lábios: o marido estava diante dela apresentando Dr. Frederico. Era Fred. Era o pass ado que surgiu diante dela, esse passado que lev ara anos para sepultar. "É o meu passado que r evive". Estendeu a mão quando o marido fez as ap resentações, mas não entendeu uma palavra do que disseram. Ficou parada no mesmo lugar e viu-o s afastarem-se novamente; teve vontade de se esc onder. Voltou ao salão um pouco desorientada e f icou de pé perto do piano, olhando à volta; viu Fernandinho passar com um grupo de moças; e fa lava alto, convencido do que afirmava. Viu Helen a e Eduardo receber felicitações de um casal con hecido; viu Ana Luiza conversando com uma moci nha de olhos azuis. Ouviu frases soltas: - O te atro estava repleto e acabou quase à uma hora. M as também valeu, eles representaram muito bem... Foi esplêndido. - Não gostei muito daquele mod elo preto. Achei a saia muito rodada. - Ah! O a zul é um encanto. Será possível que não tivesse reparado? - A música é suave... Eu gostei muito . Não foi no aniversário dela? - É de Máximo Go rki: "Minha Infância.” - O mais engraçado foi q uando ela disse: "Sou uma infeliz. Ninguém me qu er." Umas frases assim... Não me lembro bem. - E você achou engraçado? Devia ser triste. - Dev ia, mas não foi. Tinha qualquer coisa de humorís tico. - Há o tragicômico, na vida é muito comum . - Há situação incríveis na vida da gente... Foi quando viu Frederico diante dela; sorriu con trafeita, sem saber que dizer. Ele inclinou-se e cumprimentou; Gina viu-lhe fios brancos entre o s cabelos escuros; olhou-a. Estavam sós um na frente do outro. Ela apoiou a mão direita na tam pa do piano como se nesse gesto procurasse uma d efesa, estava desorientada. Ele disse com calm a: - Admiro-a profundamente, muito mais do que a senhora pensa... (Hesitou quando disse: senhor a, Gina percebeu que ele queria dizer você.) Co nfortada por essas palavras, ela sentiu-se mais calma; mas não sabia o que dizer. Ele tirou-a do embaraço continuando a falar: - Tive hoje a ma ior surpresa da minha vida vindo a esta festa. O uvi meu filho falar muitas vezes no Fernandinho, mas não sabia que ele era "seu filho". E levo u ma recordação desta casa, recordação que me ac ompanhará até o fim dos meus dias como uma das m ais gratas ao meu coração. Ele falava olhando-a intensamente; seus olhos pareciam ávidos da ima gem dela. Gina sorriu e olhou em torno um pouco pálida: - Eles são muito amigos, nossos filhos. .. Não sabia que dizer. Ele tornou a falar: - Foi uma grata surpresa encontrá-la aqui. Reside há muito tempo no Rio de Janeiro? Queria dar à pergunta um tom indiferente, mas traiu-se; antes que Gina respondesse, ele continuou com voz mai s baixa e surda de emoção: - Procurei-a desespe radamente durante um ano... Não, dois anos, nem sei... Onde se escondeu? Por quê? Olhou para um lado e sorriu para uma pessoa conhecida fazendo um gesto amistoso com a mão. Os lábios de Gina cerraram-se; embaraçada, tirou o óculos e coloco u-os sobre o piano, depois cerrou os olhos man samente e perguntou com indiferença: - O Dr. re side aqui ou em S. Paulo? Seu tom de voz era me tálico e duro. Ele endireitou-se e fitou-a; sua fisionomia pareceu enrijecer: - Ultimamente res ido no Rio devido aos negócios. Aqui é muito bom para se viver; uma grande cidade... Depois per guntou friamente: - Canta ainda? Gina reanimou -se: - Às vezes para as crianças.. Ana Luiza, m inha segunda filha, gosta muito de música. Está estudando piano e estuda com prazer... - Isso é raro nesta época... Em geral a mocidade prefere o rádio ou a vitrola. - É verdade. Notou seu rosto envelhecido e um pouco cansado, mas era o mesmo homem que ela havia amado; aquelas feições delineadas demonstrando força, a boca suave, o queixo um pouco grande, parecia grande demais para o rosto, mas o rosto era simpático e agradá vel. Quando falava, toda sua fisionomia parecia sorrir e seu sorriso era encantador. Ela també m sentia-se envelhecida e o olhos que ele tanto amara estavam, também cansados... Estendeu o bra ço para tomar os óculos de sobre o piano quando ele falou novamente: - Foi uma grata surpresa ... Meus lábios continuarão cerrados a nosso res peito, como cerrados têm estado até hoje... Ret irou-se com seu andar calmo, atravessou a multid ão que enchia as salas e sumiu-se no terraço. Gi na viu-o de longe tirar um cigarro, batê-lo na p rópria cigarreira e levá-lo aos lábios. Pensou : "Que foi que ele disse? Qual foi a última fras e de Fred?" Viu Ana Luiza aproximar-se: - Mamãe , você está branca... Está doente? - Não. Estou com calor, só queria tomar alguma coisa. - Uma limonada? Algumas senhoras começaram a falar p erto dela sobre diversos assuntos; durante algum tempo, foi incapaz de reunir idéias, de dar opi nião. Só muito mais tarde, quando começaram a se retirar, ficou mais calmo, e lembrou-se do qu e se passara. Os filhos reunidos no salão, comen tavam a festa Ana Luiza foi buscar a cachorrinha e dançou com ela nos braços; depois beijou o focinho de Mimosa. O irmão censurou: - Não beij e a cachorra. Pega doença em você. - Que doença ? Mentiroso! - Então beije. - Beijo mesmo. De repente lembrou-se: - Mamãe, você estava doent e àquela hora? Estava branca. Gina voltou-se: - Não. Uma tontura apenas, depois passou. O mari do sobressaltou-se: - Sentiu tonturas? Quando? Gina sorriu: - Não foi nada, passou logo. Com c erteza foi por causa do calor. - E você se preo cupou muito esses dias. Por que não vai descansa r? - Isso mesmo que eu vou fazer, vou deitar ma is cedo. Também estava bem cansada. Do quarto, ouviu as vozes dos filhos conversando no hall. M imosa latiu várias vezes; depois a voz de Ana Lu iza: - Não provoque a cachorrinha. Papai, olhe Fernandinho maltratando a Mimosa. A voz do filh o: - Quem é que está maltratando, sua boba? Mim osa, Mimosa, vem cá... - Não vá, Mimosa. Tomou então uma inabalável resolução. XIX Quand o foi marcado o casamento de Helena, Gina foi pr ocurá-la uma tarde no quarto e contou tudo. De u m ímpeto, receosa de arrepender-se ou de esquece r algum detalhe importante contou à filha a vi da que levara, as dificuldades, a luta que sofre ra; falou sobre o professor Pasquale, a mãe, a v ida na rua Livre e tudo o que passara antes de conhecer Dr. Fernando. Estavam as duas sentadas no sofá, uma ao lado da outra, no quarto de Hel ena. Quando terminou, levantou os olhos e viu um quadrinho da primeira comunhão dos dois filho s mais velhos; era uma fotografia tirada em Pinh eiral. Helena tinha ainda as feições infantis, o s cabelos presos em duas tranças. Enquanto olh ava, admirou o silêncio da filha; então voltou o rosto para olhá-la; ela estava imóvel fixando o chão e sua bela face parecia adormecida. Gina n ada pôde ler naquelas feições que pareciam sem vida; de súbito, Helena fez um movimento como s e fosse apertar uma das mãos da mãe que estava s obre o colo e Gina sobressaltou-se, mas Helena puxou as saias sobre os joelhos, depois falou c om voz inexpressiva: - Ora, mamãe, você não pre cisava me contar nada disto. Por quê? - Porque era meu dever, Helena. Achei que era meu dever. Não peço que me julgue, não diga nada por enquan to porque você ainda não conhece a vida, mas com o sempre fui muito franca e coloco a lealdade acima de tudo, acho que meus filhos não devem ig norar meu passado. Tenho horror à mentira, por i sso ensinei vocês a serem sinceras e contar se mpre a verdade. Pensando assim, como poderia esc onder certos fatos da minha vida? Seria mentir, enganar, e eu odeio a mentira. Parou para olhar Helena; ela continuava imóvel como se não ouvis se; Gina tornou a falar; - Você vai casar daqui a dois meses, por isso achei que você precisava saber a verdade. A verdade acima de tudo. A me nina continuou silenciosa ela levantou-se para s air e colocou uma das mãos sobre o ombro de Hele na: - Isso me pesava, filha, por isso falei. H elena franziu a testa e perguntou, como se lembr asse de súbito: - E papai? - Nada ignora. Sabe tudo a meu respeito, naturalmente. Suspirou e acrescentou olhando a filha: - Foi Fernando que me salvou. Você sabe agora o quanto sofri. Peço a você que procure esquecer, não pense nada sob re meu passado. Seria horrível continuar a pensa r, numa coisa que acabou. Procure esquecer. A travessou o quarto e abriu a porta; antes de fec há-la, relanceou os olhos pela filha; ela contin uava no mesmo lugar, como que petrificada. Gina fechou a porta de vagar e se foi. Helena cont inuou imóvel. Por que a mãe viera falar sobre es se passado vergonhoso? Por quê? Sentiu uma onda de sangue subir-lhe ao rosto; escondeu-o entre a s mãos sentindo asco. Por quê? Que miséria! Le vantou-se rápida, fechou a porta com chave; quer ia ficar sozinha com sua dor e sua vergonha. E t ambém sua desilusão. E se Eduardo soubesse, o que pensaria? Era capaz de não querer mais se ca sar com ela pois a mãe fora uma mulher... indign a. Deu um gemido e deitou-se na cama, horrorizad a; ficou de cabeça para baixo, os braços crisp ados sobre o travesseiro: "Detesto-a. Por que ve io me tirar tanta ilusão? Sou infeliz agora por causa dela. Parece que tem inveja da minha fel icidade, do meu amor. Há mães assim, eu sei, que têm inveja das filhas. Ela nunca teve isso, tal vez nem papai saiba. Pobre papai. Por isso que tia Zelinda era esquisita, eu me lembro, decert o também era... Que horror! Mamãe dizia para ela não falar nomes feios perto de mim. Tenho ódio. .. ódio... Que vergonha. Sou filha dela... Não . Não.” Começou a soluçar, a cabeça enterrada n o travesseiro. "Preferia morrer. Ela é miserável e eu a detesto. Ah! Como a detesto.” Enxugou a s lágrimas com a ponta da fronha: Será que vovó Julica também... Impossível! Coitada de vovó Jul ica, tão boa, tão direita. Ela não. Que idéia ho rrível. Mamãe me perturbou, tirou minha alegri a, minha tranqüilidade. E Gracinha? Não, Gracinh a é tão quieta, tão boa... Escreveu que não pôde vir para a festa do noivado porque as criança s estavam com catapora, mas vem para o meu casam ento sem falta. Não. Gracinha não. Só mamãe. Por quê? Parou de chorar. Levantou-se e foi procur ar um lenço na gaveta. Assuou-se, enxugou as fac es e olhou-se ao espelho: "Ela disse que foi por miséria... Miséria o que! Não acredito... É m entira. Tenho vergonha de olhar para Eduardo... Mas ele nunca saberá. Nunca. Que rosto maravilho so eu tenho... Sou formidável! Daqui a pouco é hora do jantar, vou descer como se nada tivesse acontecido, ela vai ver de que fibra sou feita. Pensa que me esmagou? Ela vai ver.” Acendeu as luzes do quarto, fechou as venezianas e sentou- se diante da penteadeira. Lembrou-se de ir ao ba nheiro para banhar o rosto; abriu a porta do qua rto e escutou para ver onde "ela" estava. Foi ao banheiro e voltou, tornou a fechar a porta. " Ela fez de propósito Veio me contar tudo hoje po rque sabe que Eduardo não vem jantar. É para e u chorar à vontade. Pois não choro. Ela vai ver; eu sou forte. Tenho fibra. Não choro.” Passou o batom nos lábios, penteou-se: "Sou mesmo formi dável. Dizem que sou uma beleza. E ninguém sabe nunca o que sinto. Ninguém. Papai disse que tenh o muita vida interior. Talvez. Hei de tratá-la com indiferença de hoje em diante, ainda é pior que o desprezo. Ela vai ver. Isso não se faz, t irar a ilusão de uma menina de dezoito anos. E u tinha ilusões, ela me tirou." Ouviu os passos ligeiros de Ana Luiza perto da porta do quarto; ouviu a menina mexer no trinco: - Helena, abra um pouco, quero mostrar uma coisa pra você. Voc ê não está aí? Estou vendo luz! Bateu na porta. - Estou me vestindo, Ana Luiza! Agora não poss o abrir. - Só um instantinho, Helena. Abra um p ouco. - Agora não. - Quero mostrar uma pedra q ue eu ganhei de Tidinha. É azul e tem um brilho amarelo de vez em quando. Venha ver. - Já disse que agora não, estou ocupada. Ouviu Ana Luiza resmungar qualquer coisa e depois afastar-se. Fi cou deitada na cama, esperando que a chamassem p ara o jantar. Mais tarde, ouviu vozes; era o pap ai que subia a escada. Continuou fechada no qu arto; percebeu quando todos desceram para o jant ar. Pensou que tivessem se esquecido dela e teve vontade de chorar outra vez. Resolveu descer. Olhou-se ao espelho, compôs uma fisionomia sere na e desceu depressa, com ar despreocupado. Beij ou o pai no momento em que se sentavam à volta da mesa. Não olhou para o lado da mãe. Durante todo o jantar esforçou-se por parecer natural; c ontou a Fernandinho uma história que lera num li vro, conversou com Dr. Fernando, mas nem uma v ez sequer olhou para o lado de Gina. Depois do j antar ficaram sentados no terraço, sentindo o ar fresco que vinha da praia. Dr. Fernando entro u logo para ler os jornais; Ana Luiza e Fernandi nho ligaram o rádio e ficaram ouvindo uma comédi a. Helena foi buscar um livro e começou a ler, m as não entendeu nada do que lia. Viu Gina ir l á para dentro, voltar, ler jornais, tocar piano; continuou lendo como se a história fosse muito interessante, mas disfarçadamente observou os gestos da mãe, o modo de andar. Teria sido muito bonita? Ainda era. Quando todos subiram, ela su biu também e fechou-se no quarto. Logo depois, A na Luiza bateu e falou em voz baixa: - Helena , abra, quero conversar... Silêncio. - Helenin ha, o que você tem hoje? Eu não fiz nada. Pergu ntou depois de uma pausa: - Fiz alguma coisa ? A voz de Helena veio lá de dentro, áspera e zan gada: - Vá embora e não me aborreça, Ana Luiza. Vá embora. Ana Luiza gritou fora de si: - Est úpida! Bruxa! Imediatamente o pai abriu a porta do quarto e perguntou: - Que é isso, Ana Luiza ? Todas as portas se fecharam e a luz do hall f oi apagada. Helena pensava sem poder dormir: "So u uma infeliz. Por que ela quis me contar esses horrores? Para me fazer desgraçada? Para tirar minha alegria e minha felicidade? Ela fez de pr opósito, achou que eu era feliz demais. Ela me p aga, hei de desprezá-la. Ela vai ver. Detesto-a. ” Não tinha sono, mas começou a se despir rapid amente. Onze horas. Vestiu o pijama branco de ri squinhos verdes e deitou-se ficou só com a luz d a cabeceira; colocou os braços atrás da cabeça : "Não gosto mais dela, nem um pouco. Será que g ostei um dia? Não. Tenho ódio de todos, todos. O deio minha família e nunca perdoarei o que ela fez. E dos outros eu gosto? Dos meus irmãos?” Lembrou-se de que Fernandinho se machucara uma v ez quando caíra de uma árvore em Teresópolis e e la chorara por vê-lo sofrer. Sentiu os olhos che ios de lágrimas a essa lembrança. Voltou-se de lado e olhou a lâmpada: "Só quero Eduardo, só a mo Eduardo. Só penso nele. Tenho certeza que gos to dele; quando ele não vem, como hoje, sinto um vácuo perto de mim. Adoro Eduardo. Quero Edua rdo.” Passou o braço direito ao redor da sua ci ntura e imaginou que era o braço do noivo que es tava a sua volta; fechou os olhos e mergulhou a cabeça no travesseiro para sentir mais nitidam ente a presença de Eduardo ao seu lado; lembrou- se dos seus olhos, da sua boca, do seu modo de f alar, do seu andar, das suas roupas, da sua grav ata, do seu relógio-pulseira. Apertou mais o b raço e sussurrou: Eduardo! Voltou-se do outro la do e com a mão esquerda acariciou levemente seu peito pensando na mão de Eduardo apertando-a c om doçura; lembrou-se dos beijos dele. Quantas v ezes já haviam se beijado? Sentiu tão nitidament e o beijo que estremeceu. Voltou-se outra vez e espiou o relógio na mesinha da cabeceira: quas e meia-noite. Imaginou Eduardo ali também espian do o relógio. Murmurou: “Meu amor”. Ajeitou-se c omo se estivesse se ajeitado nos braços do noi vo e apagou a luz. Imediatamente pensou na mãe: "Por que ela me tirou essa ilusão? Por quê? Por que preciso saber o passado dela?" Estendeu o corpo e ficou de costas olhando a escuridão. Ouv iu o ruído do mar bem longe, nas suas atribulaçõ es até se esquecera do mar; imaginou o vai-vem d as ondas àquela hora da noite. Desejou morrer. Viver com aquele peso no coração? Era demasiado para ela. Sentiu os olhos cheios de lágrimas qu ando imaginou Eduardo chorando sua morte. Ouvi u um leve ruído: era a cachorrinha arranhando a porta do quarto de Ana Luiza. De vez em quando d ava para fazer uma travessura, aquela Mimosa. Sa tisfeita por poder afastar os tristes pensamen tos, levantou-se no escuro, abriu a porta do qua rto e acendeu a luz do hall; lá estava Mimosa co m um ar desapontado, sentada na porta do quart o da irmã. Olhou para Helena e não se moveu; Hel ena ralhou em voz baixa para não acordar os outr os: - Vá embora, Mimosa, vá para sua cama. A c achorrinha continuou imóvel e baixou as orelhas; ela ameaçou: - Quer ver como eu te bato? Vá em bora. Diante do seu gesto de ameaça, o braço es tendido, a cachorrinha obedeceu; passou por ela, toda humilde, esperando um tapinha nas costas, mas não sentiu nada. Desceu as escadas e volto u-se duas ou três vezes para ver se Helena a cha mava, mas Helena continuou fazendo carrancas e a meaçando com as mãos, sem falar para não acordar os pais. Mimosa desceu, atravessou a sala de jantar e foi para a copa, onde dormia numa cesta de vime. Helena apagou a luz e voltou tateando para o quarto. Deitou-se. Pensou mais uma vez no noivo e dormiu. No dia seguinte, acordou um pouco tarde; levantou-se e lembrou-se do que hav ia se passado na véspera. Resolveu esquecer; pen sou no sonho que tivera com Eduardo. Desceu; t odos já tinham tomado café; viu a mãe auxiliando a criada na limpeza da sala. Disse tristemente: - Bom dia, mamãe. Tornou a lembrar do que hav ia se passado e seu rosto tornou-se mais sério. Sob sua xícara havia um bilhetinho da irmã que j á havia ido para o colégio: "Desculpe os nomes que eu disse ontem pelo buraco da fechadura, ma s você estava impossível. Tenho exame hoje, de m atemática. E não estudei nada. Reze por mim. Ana Luiza, sua irmã.” Teve um acesso de riso; Gi na veio saber o que era e ela mostrou o bilhete, já sem rir. Pensou: "Como poderei ser feliz out ra vez? Ela pensa decerto que já esqueci; diz sempre: mocidade esquece depressa. Pois mostrare i a ela que não esqueço." Estendeu o bilhete par a Gina, sem uma palavra e começou a tomar café. Gina percebeu a animosidade da filha; leu o bi lhete sorriu e deixou a sala. Helena seguia-a co m os olhos: "Parece incrível. Por que me contou? Para me fazer infeliz? Sempre ouvi dizer que há gente assim; gente que se sente feliz com a d esgraça dos outros, mesmo dos seus próprios filh os. Que coisa horrível.” Tomou um bordado entre as mãos e foi para o caramanchão do fundo do ja rdim; sua resolução da noite anterior havia caíd o por terra; não pensava mais em demonstrar in diferença pelo que ouvira, nem provar que era fo rte, superior e estava acima do que a mãe contar a. Nova resolução viera-lhe à mente essa manhã; queria provar que sofria e sofria muito; queri a demonstrar o mal que a mãe havia lhe feito; qu eria provar com a sua atitude francamente desgos tosa que fora atingida no mais profundo do seu coração. Queria que todos notassem seu abatimen to e perguntassem uns aos outros: "Que tem Helen a que está tão triste?" Mesmo que o noivo perceb esse, ela diria que não tinha nada e nada cont aria, mas sua mãe havia de sofrer, havia de ter remorsos e passar noites sem dormir, arrependida do que fizera. Seria essa a sua vingança; mud a, mas terrível. Enquanto bordava, pensava em Gi na: "Com que cinismo ela me contou tudo; ainda s e chorasse, se eu visse lágrimas nos olhos dela, podia ter pena. Não. Contou-me com tanta calm a que me revoltou; foi isso que mais me revoltou . Mas ela há de se arrepender do que me fez, há de sofrer e chorar de remorso. Por que me cont ou? Por que levou essa vida indigna? E agora me conta tudo como se fosse tudo muito natural. Mas há de se arrepender; papai, Eduardo, Fernandinh o, todos hão de perceber meu desgosto e ela va i se arrepender, tenho certeza. Vai chorar de re morso. Por que me fez isso?" Desde esse dia, co meçou a evitar a mãe: quando estava conversando com os irmãos ou com amigas e Gina entrava na sa la ela parava de falar e ficava pensativa, um ar desgostoso. Não procurou mais a mãe para pedi r-lhe opinião ou conselhos sobre o enxoval e só respondia o que Gina perguntava. E quando respon dia, era com os lábios meio cerrados, o olhar perdido no espaço como se estivesse empolgada po r outro pensamento. Durante os dois meses que p recederam o casamento de Helena, Gina esteve tão ocupada que não teve tempo de prestar atenção n a filha; via-a ir e vir, experimentar os vesti dos, escolher modelos, conversar com o noivo. Pe nsou consigo que fora muito mais fácil do que im aginara; às vezes, à noite, observava a filha di sfarçadamente; essa tranqüilidade aparente não significava nada? Helena era tão diferente dos outros que essa placidez assustava-a um pouco. P referia que a filha tivesse reagido, tivesse c horado em seus braços, respondido alguma coisa, recriminando-a. Nada. Com seu rosto bonito e fin o, andava de um lado para outro atendendo ao tel efone, discorrendo sobre apartamento onde ela e Eduardo iriam residir. Às vezes, muito raramen te, surpreendia o olhar da filha sobre ela; era um olhar frio, como que acusador. Mas não era possível, talvez fosse engano porque logo depois Helena estava alegre e conversando animadamente . Uma semana antes do casamento, Gina estivera na cidade ultimando os preparativos para a recep ção que ia haver após a cerimônia; chegou um pou co cansada e subiu as escadas devagar, acompan hada por Mimosa que dava latidos de alegria aos seus pés. Tirou o chapéu diante do espelho do qu arto; havia emagrecido bastante e tinha olheiras . Era cansaço, com certeza. Preocupações. Ruga s nos cantos da boca e à volta dos olhos; falou consigo: "Estou velha. Quarenta e poucos anos pa ra uma criatura que sempre se preocupou com os outros, mais com os outros do que consigo mesma , é alguma coisa." Tirou os sapatos e trocou-os por uns mais largos, caseiros; estava se prepara ndo para trocar de vestido quando ouviu batida s leves na porta e a voz de Ana Luiza: - Mamãez inha, posso entrar? A menina apertou o pescoço de Gina, deu-lhe um beijo no rosto e, falou: - Tirei dez hoje outra vez em História Universal. - Cada vez mais estudiosa, hein? Isso é uma mar avilha. Muito bem. Passou o pente pelos cabelos depois de ter trocado o vestido; Ana Luiza leva ntou Mimosa do chão e falou, confidencial: - Ma mãe, Helena está chorando... - Chorando? Por qu ê? - Não sei. Passei pelo quarto dela, ouvi um chorinho, parei para escutar; era ela. Pedi para entrar ela não deixou, mas está chorando. Gina encaminhou-se rapidamente para o quarto da filh a mais velha. Ana Luiza recomendou: - Não conte que eu falei, faça de conta que não sabe de nad a. E sumiu pela porta do quarto dela. Gina bate u: - Helena, quer abrir a porta um pouquinho? P reciso falar. Ouviu a voz dela um pouco rouca: - Espere um pouco. Já vai. Abriu a porta. Esta va ainda com os olhos vermelhos e, apesar de ter passado pó de arroz sobre o nariz, percebia-se que havia chorado. Gina fingiu que não viu e fal ou: - Encontrei aquela seda azul que você queri a, sabe? Trouxe uma amostrinha para você ver. Cr eio que as cortinas dessa cor ficarão lindas. Tr ouxe outras amostras também; encontrei um ceti m maravilhoso, só indo lá embaixo ver... De repe nte reparou no rosto da filha: - O que você tem ? Está tão vermelha... - Dor de dente outra vez . - É aquele dente que já tratou? - É. Tornou a doer hoje. - Mas não pode ficar assim, filhin ha. Precisa ir ao dentista outra vez. Tomou algu m comprimido? - Ainda não. Mais tarde... - Esp ere aí que eu vou buscar, não pode esperar para mais tarde. E fez um movimento para a porta; He lena segurou-lhe o braço: - Não precisa, mamãe. Os olhos encheram-se de lágrimas; Gina assusto u-se: - Mas está doendo tanto assim? Ela sentou -se na beira da cama: - Não, mamãe. Não é dor d e dente, já sarei do dente. - Então o que é, He lena? O que aconteceu com você? Fale. Helena co ntinuou calada, os olhos marejados. Gina debruço u-se: - Alguma coisa com Eduardo? Brigaram? - Não, mamãe. Nada. - Conte o que há. Sempre fui sua confidente. O que aconteceu? Sentou-se ao l ado da filha e puxou a menina para si: - Então, filhinha? Helena começou a chorar sem dizer na da. De que modo contar à mãe aquele sentimento d e remorso que sentia desde dois meses antes? Cho rava sem poder se conter e não tendo lenço pas sava as mãos sobre o rosto, num gesto aflito. Er a um choro desconsolado e sentido; Gina insistiu : - Será que você não pode contar para sua mãe, Helena? Baixou mais a voz: - É sobre nossa con versa de outro dia? Helena sobressaltou-se; nego u: - Não, mamãe. Nada disso. Estou triste à toa . - Não é possível. Há sempre uma causa para no ssas tristezas. Fale o que quiser, filha. Estou aqui para escutar. Para que servem as mães? Para amparar os filhos nos momentos de incerteza. Seja o que for, pode contar, Helena. Não há ning uém que compreenda tão bem uma filha como a próp ria mãe. Fale. Soluçando, Helena ajoelhou-se di ante de Gina, tomou-lhe uma das mãos e beijou-a: - Mamãezinha, oh! Mamãezinha... As lágrimas c orreram dos olhos de Gina. No fundo do coração, percebeu o que Helena estava sentindo. Fez a men ina levantar-se e sentar-se outra vez ao seu lad o, foi buscar um lenço na gaveta da penteadeir a e enxugou o rosto da filha, depois o seu própr io. Foram se acalmando, depois Gina perguntou: - Não está sentido mesmo nada? - Nada. Juro par a você; só tristeza. - Então chorou porque esta va nervosa... Isso acontece algumas vezes. Quand o Eduardo vier hoje, vai encontrar você com cara feia. Helena sorriu. Gina inclinou-se para um lado e se olhou no espelho do guarda-roupa; fez Helena inclinar-se também: - Olhe que duas feio sas. Daqui a pouco seu pai chega para o jantar. Passou o nervoso? - Passou, mamãe. Começaram a rir vendo os dois rostos unidos diante do espel ho; Helena pediu: - Não conte nada a papai. - Não, não conto. Por melhores que sejam os homens , às vezes não compreendem certas coisas. Fez u ma pausa e continuou: - Se você soubesse como c horei no dia do nosso casamento. Parecia não ter fim... Seu pai foi tão bom, tão compreensivo. - Papai é um amor. - É mesmo um amor. Quer adiv inhar nossos pensamentos; veja seu nariz como es tá vermelho, parece um tomate. Helena riu-se ol hando no espelho. - Nem tanto, mamãe! - A que horas Eduardo vem? - Ele prometeu estar aqui às sete horas. - Então vamos nos aprontar, está q uase na hora. Vá lavar seu rosto, eu também vou. Hoje está bem quente. Beijou a filha na testa e deixou o quarto. Ouviu a voz de Fernandinho no hall, em baixo: - Ana Luiza! Vem ver Mimosa qu erendo pegar um passarinho. Sai Mimosa. - Mi-mo -sa! Mi-mo-sa! Ouviu as risadas intermináveis d a menina, com certeza Fernandinho fizera uma car eta. Pela primeira vez, Gina pensou conhecer um pouquinho o coração de Helena; desde esse dia, tornaram-se mais amigas. Havia um segredo que gu ardavam juntas, até à morte. XX Naquele mesmo ano, depois do c asamento de Helena, Fernandinho entrou para a Es cola de Engenharia; no primeiro semestre, dedico u-se muito aos estudos e foi um aluno aplicado . No segundo ano o entusiasmo foi esmorecendo; n inguém mais viu Fernandinho estudando; voltava p ara casa altas horas da noite e dia seguinte ia para a praia, onde ficava durante a manhã toda . Os pais inquietaram-se. Ana Luiza veio um dia com a novidade; contou a Gina confidencialmente. - Ele tem uma pequena, mamãe. Não é bonita, pa rece mais velha que ele e ainda por cima é peitu da. Tem uns seios assim, enormes... E Ana Luiza fez um gesto mostrando o busto numa distância e xagerada. - Você vê sempre os dois juntos? - D e uma semana para cá vejo sempre. Eu, se fosse e le, teria vergonha de namorar ela. - Não compre endo, Ana Luiza. Vergonha por quê? - Ela é esqu isita... Não sei explicar para você, mas não é c omo eu, nem como Helena. Dá gritos no banho de m aré chama a atenção de toda a praia... É muito p intada, muito exagerada nas roupas. Quando ela passa, os homens olham e dão risada. Não sei ex plicar, mas eu não gosto dela. Sacudiu o dedinh o na direção de Gina: - Não conte nada disso pa ra ele, viu? Se não ele me come. Nessa tarde, Gi na e Dr. Fernando conversaram a respeito do filh o; Dr. Fernando prometeu chamar a atenção de F ernandinho para os estudos. Depois do jantar, ch amou-o ao escritório; mandou-o sentar-se e começ ou: - Preciso falar seriamente com você. Como v ão seus estudos? - Vão bem. - Mas eu não vejo você estudar. Fernandinho tomou uma atitude defe nsiva: - Mas você passa o dia todo fora, papai. Como é que você pode ver? Estudo durante o dia. - Mas sua mãe me disse que não vê você pegar u m livro. No princípio do ano você estudou, depoi s nada. Assim você será reprovado. Fernandinho tirou um cigarro do bolso, bateu e estendeu a ci garreira ao pai, sorrindo: - Não tem perigo, pa pai. Agora não há necessidade de muito estudo, m as na véspera dos exames, você vai ver. Pego no duro. Dr. Fernando levantou-se e deu uma volta pelo escritório; parou na frente do filho que fu mava olhando o tapete: - Me diga uma coisa: que m é essa menina que anda com você pra baixo e pr a cima? E cerrou os olhos por causa da fumaça d o próprio cigarro observando o filho através dos cílios; Fernandinho perturbou-se um instante, d epois falou com firmeza olhando o pai. - É um a menina muito correta. O que tem isso? - Não t em nada, mas é por causa dos estudos; você não e studa mais como estudava. Não fica bem ir a toda a parte com ela... Fernandinho riu, constrangi do: - Ora, papai, que idéia. Ela não influi na minha vida particular. Isso é um absurdo. - Voc ê de repente deixou de estudar, volta fora de ho ras, não o vejo pegar num livro. Só com essa men ina, na cidade na praia, em toda parte. - Mas e u estudo, papai. Quem disse que não estudo? Todo s os dias pelo menos duas horas. - Quem disse f oi sua mãe... - Como é que mamãe pode saber? Eu me fecho no quarto e estudo durante horas. Hou ve um silêncio entre os dois; continuaram a fuma r. Dr. Fernando aconselhou: - Está bem filho. E stou apenas fazendo lembrar seus estudos, parece que você está se esquecendo deles. Não quero qu e seja reprovado. - Você vai ver que não serei. Não tenha receio. Antes de Dr. Fernando deixar o escritório, voltou-se para o filho: - Você e stá com dezenove anos, não é? - Vou fazer dezen ove. Parece que ia dizer mais alguma co isa, mas não falou, apenas respondeu: - Está be m. Ficando só, Fernandinho aproximou-se da jane la e jogou fora o cigarro; viu a pequena chama d esaparecer na grama do jardim. Estava agitado: " Já começou o barulho, eu sei que mais cedo ou mais tarde eles haviam de saber. Terei que lutar , mas lutarei. E vencerei. Quem seria que contou ?” Refletiu um instante: "Ana Luiza? Foi Ana Lu iza. Ela me viu passeando com Jujú muitas vezes. Ela me paga novidadeira. Vai ouvir boas; por qu e aborrecem tanto a gente? Família é um caso s ério.” Deixou o escritório e atravessou o hall com ar de grande superioridade, a cabeça levanta da. Não viu ninguém. Entrou no quarto e fechou-s e; deitou-se na cama com os pés para fora para não estragar a colcha, numa posição incomoda: " Afinal o que papai quer? Que eu deixe Jujú? Nunc a. Disse que ela me atrapalha os estudos. Que idéia absurda. Eu não tenho estudado mas não faz mal. Tenho meses inteiros na minha frente. Jujú é um colosso. Que pernas perfeitas, parecem mod eladas em mármore; serviria de modelo para um escultor. Mas o que mais gosto é a boca. Que boq uinha admirável!” Voltou-se para um lado e colo cou com cuidado um pé sobre o outro, por causa d a colcha. "Vamos ver que horas são. Sete e meia. Daqui a pouco me chamam para o jantar. Que ge nte cacete! Tenho que aturá-los durante todo o j antar, nem acredito quando der o fora e abraçar Jujú." Apertou os braços contra o peito e cerrou os olhos, num enlevamento. "Ela é adorável, s implesmente adorável. Ainda não tinha encontrado uma garota assim, tão completa. Ela se finge de esquiva para me provocar, bem que conheço o j ogo dela, mas gosta de mim. Oh! Se gosta.” A es se pensamento levantou-se num salto; todo seu co rpo vibrava. Procurou um cigarro no bolso, tirou e acendeu-o; abriu a janela e olhou o jardim so litário àquela hora; viu depois Ana Luiza e a cachorrinha entre os canteiros de hortênsia: "Pe stinha. Foi ela que contou. Quem mais? Também el a não pode saber nada do que se passa. Que eu passeio com Jujú? Ora, o que tem isso? Eles tinh am que saber um dia, antes saberem já. O dia que eu contar que minha resolução é casar-me com Ju jú, vai haver um estouro aqui em casa. Vão fic ar estonteados, vão ver. Mas ela há de ser minha , menina danada." Ouviu o gongo chamando para o jantar; jogou fora o cigarro, correu para o ba nheiro e pôs a cabeça sob a torneira d’água fria ; penteou-se com esmero e desceu para jantar. N o fim do ano, foi reprovado. Teve que repetir o segundo ano. Foi uma consternação na família e D r. Fernando chamou-o novamente ao escritório. Re preendeu-o acerbamente; Fernandinho ouviu tudo calado e quando o pai falou na menina com quem ele andava, revoltou-se. Disse que era uma menin a distinta com quem pretendia casar-se algum d ia. Dr. Fernando elevou a voz: - Distinta? Você acha distinta uma menina que vai sozinha com vo cê a toda parte? Até a Cassinos? Fernandinho ce rrou os lábios com força: - Você está muito bem informado, informado demais. Fui uma vez com el a ao Cassino da Urca, só para levar um casal par ente dela. Ficamos só um instante. - Acha isso correto? Voltar fora de horas sozinho com ela? S uas irmãs algum dia fizeram isso? - Que tem, pa pai? Hoje é diferente do seu tempo. Nos Estados Unidos... Dr. Fernando cortou a frase: - Não e stamos nos Estados Unidos. Aqui é diferente, des de o começo é diferente. Eu sabia que você ia to mar bomba, vi sua vadiação, Georgina me avisou. Preveni você, mas você ficou queimado; disse q ue estudava fechado no quarto não sei quantas ho ras por dia, que sua mãe não podia saber. Estou vendo que estudou mesmo. Estou vendo. Fernandin ho ficou vermelho de raiva: - Isso acontece a m uita gente. - Mas não quero que aconteça a um f ilho meu. Trate de estudar para não tomar outra reprovação este ano, seria uma vergonha. O rapa z levantou-se para sair. O pai ficou tamboriland o os dedos sobre a escrivaninha; Fernandinho fal ou da porta com voz irônica: - Já perdi o gosto pelos estudos. Preferia trabalhar... - Não fal e coisas sem nexo. Você mesmo escolheu essa carr eira. Como não quer estudar? Por quê? Estude e n ão será reprovado. Mas estude. Fernandinho subi u, furioso, as escadas; fechou-se no quarto: "Te nho ódio quando se intrometem na minha vida. Pen sam que não me casarei com Jujú? Eles hão de ver Agora querem que eu vá para Teresópolis. Vou, mas toda semana venho ver Jujú. Isso ninguém me tira. Gosto dela e sou capaz de me casar mais c edo do que eles pensam. Quantos homens não se casam com antigas companheiras? Quando a gente a ma, ama e acabou-se. Papai quer que eu continue a estudar, vamos ver. Depende de minha vontade. Vou assobiar para ele Ver que estou muito cont ente com minha situação. Que diabo! Pensa que me intimida?” E assobiou bem alto uma valsa; exam inou o rosto diante do espelho: "Esta espinha es tá cacete, vou espremê-la. Jujú é um amor: o dia bo é a mesada; preciso pedir a mamãe que dê um jeito para aumentar a mesada. Mas justamente ag ora que tomei bomba. Esperemos.” Começou a espr emer a espinha do nariz; nesse instante ouviu ba tidas na porta do quarto. Pensou que fosse Ana L uiza, mas não era. Era a mãe. - O que, mamãe? V ocê por aqui a esta hora? Que novidade é essa? Tirou uma toalha de cima da cadeira para que a m ãe se sentasse comodamente; ela olhou-o: - Cuid ado com a espinha, Fernandinho. Às vezes pode in feccionar. - Eu desinfetei as mãos com água de Colônia. Mas então? Vamos para Teresópolis? - V amos na semana que vem. - Muito bem. Pensou: " Ela vem aqui para me pedir para deixar a Jujú. E stá muito enganada. Quando souber da minha resol ução, vai se assustar. E minha resolução é irrev ogável." - Escute, filho, por que você não trás essa menina aqui em nossa casa? Essa menina que você gosta tanto? Convide a mãe e ela para toma rem um chá aqui em casa. Seria agradável conhe cê-las; a titulo de amizade, convida em meu nome . Ele assustou-se; a unha do polegar enterrou-s e na espinha inflamada, nem sentiu a dor. Aparen tou calma: - Quem? Jujú? - Ah! Chama-se Jujú? Que apelido engraçadinho. Gostaria de conhecê-l a pessoalmente, já falei até com seu pai e ele m e disse que devo mesmo convidá-las. Traga logo q ue elas puderem. Ele voltou-se, já calmo: - Sé rio mesmo, mamãe? - Por que não? Pois vocês são namorados, gostam-se tanto há mais de um ano. E la é uma menina distinta e pode ser minha nora u m dia, tenho vontade de conhecê-la. Ele sorriu : - Papai não pensa assim... - Seu pai ficou a borrecido com sua reprovação e é severo demais p ara certas coisas. Mas já o convenci, se você go sta de Jujú, por que não hão de se casar? - Ela não tem mãe. - Ah! Coitada! - Quero dizer, a mãe não mora no Rio, mora no interior Mas tem mã e. - Com quem ela mora aqui? Alguma irmã casada ? - Não, mora com uma amiga. - Ah! Pois traga essa amiga com quem ela mora. Fernandinho senti u de repente que não tinha mais com quem lutar; perdeu o entusiasmo por um instante, depois exul tou: - Mamãe, você é um anjo. Já esperava isso da sua bondade. Inclinou-se e beijou-a nas duas faces. Gina riu: - Está bem; faço tudo para me us filhos mas é preciso estudar. Seu pai ficou t ão triste quando você foi reprovado... Aceito s eu noivado e seu casamento com Jujú, mas não enq uanto estudar; apenas um conhecimento mais profu ndo. Por isso convido-a para vir aqui; assim fi co querendo bem minha futura nora. Enquanto ela falava, Fernandinho molhou a toalha na água de Colônia e fez uma espécie de compressa sobre a e spinha: "Já sei o que ela pretende. Percebi tudo , peguei no ar. Quer que eu traga Jujú aqui pa ra eu me aborrecer de Jujú. Acha que meu entusia smo irá esmorecendo vendo todos aceitarem Jujú E stá en-ga-na-da. Logo vi que tanta amabilidade encobria qualquer coisa, mas a mim não me engan a. Ainda não nasceu a pessoa que poderia me pass ar a perna. Digo - poderia - e não poderá. Condi cional do verbo poder. Espertinha. Mas eu sou mais." Gina continuou: - Só o que eu quero é qu e você estude. Faço questão; quanto ao noivado, não me importo, podem ficar noivos entre vocês d ois. Mais tarde participa-se. Marque o dia de trazê-la aqui, quero fazer aquele bolo de nozes que você gosta tanto. Ele animou-se outra vez: - Quando? - Quando quiser. Acho bom antes de i rmos a Teresópolis. Segunda feira por exemplo. - Ótimo. Falo com ela hoje mesmo. Assim ela pode rá dar um pulo na chácara também. Num domingo, q uando estivermos lá. Gina aquiesceu: - Natural mente. Se ela quiser, teremos muito prazer em re cebê-la. Levantou-se para sair. Ele não pôde de ixar de exclamar: - Como você é boa, mamãe. Cam arada mesmo. E deu-lhe um beijo na testa. Ela ri u e saiu fechando a porta. No domingo, Fernandi nho avisou: - Mamãe, Jujú vem amanhã à tarde. V ou buscá-la às quatro horas. Dou um jeito e papa i me empresta o carro. - Pois fico contente que ela possa vir amanhã. Vou mandar chamar Helena para vir também. No dia seguinte, ela própria pr eparou a mesinha do chá no jardim de inverno, junto à sala de jantar; depois de pronto, espero u. Helena chegou pouco antes; estava um pouco ma is gorda e mais bonita; suas feições pareciam ma is firmes e havia mais expressão no seu olhar. Não era mais aquele olhar adormecido. Beijou a mãe e sentou-se; tirou um cigarro da caixinha e acendeu-o. Assoprou a fumaça: - Afinal resolver am aceitar a tal mulherzinha, mamãe? Eduardo ou viu falar mal dela. Andava com todo o mundo ante s de Fernandinho. Deve ser terrível. Gina inter rompeu: - Psiu! Não se fala ainda, minha filha. Vamos esperar e depois falaremos, se tivermos o que falar. Helena ficou olhando a mãe com ar c onstrangido; Gina adivinhou-lhe o pensamento. En direitou as flores na jarra. Helena perguntou: - Então é um chá de observação? - Que idéia, H elena. Ouviram o automóvel do pai estalando na areia do jardim; o próprio Fernandinho vinha gui ando. Parou junto à escada do terraço, desceu e deu a mão a uma moça de vestido fantasia, um g rande chapéu de palha na cabeça. Gina e Helena f oram ao encontro dos dois; Fernandinho apresento u: - Mamãe, esta é Jujú. Gina abraçou a moça e levou-a ao jardim de inverno; num relance perce beu que espécie de moça era Jujú. A principio, a moça quis mostrar superioridade; sabia que a família era contra ela, depois sentou-se com des embaraço e cruzou as pernas nuas. Estendeu a mão para Fernandinho e ficaram de mãos dadas um ins tante; Gina percebeu que o filho ficara desapo ntado com o desembaraço da moça; levantou-se e f oi procurar cigarros. Jujú seguiu-o com a vista, perguntando, curiosa : - Onde vais, Nando? El e não respondeu: Gina fingiu que não tinha ouvid o e começou a conversar; falaram sobre a tarde b onita, a beleza da casa onde residiam, as flores da jarra, a ida a Teresópolis. Helena pensou logo: "Vulgaríssima. Como é que ele gosta dela? Que estúpido. Nem parece que é meu irmão.” A mo ça tirou um cigarro da caixa que Fernandinho ofe receu e bateu na ponta da unha vermelha; ele apr essou-se em acendê-lo. Jujú começou a falar: - Eu fazia outra idéia da senhora. Gina perguntou , admirada: - De mim? Por quê? Ela deu uma ris ada: - Não sei. Pensei que a senhora fosse mais velha. A senhora é muito moça; sempre tive idéi a de ter uma sogra velhinha acho tão engraçadinh o. Assoprou uma baforada para cima; falava alto e tinha uma voz desagradável e estridente. Gina , sentada na frente dela, via-lhe as pernas nuas , quase até às cochas. Tirara o chapéu de palh a que o rapaz levara lá para dentro; tinha os ca belos oxigenados, a cabeça estava cheia de cacho s miudinhos presos com grampos. A boca não era pintada simplesmente, era desenhada de vermelho escuro, a linha natural aumentada pela batom. U ma boca falsificada. Ria alto e desagradavelment e, por qualquer coisa. O mais estranho era o s eu olhar; um olhar velado, não tinha franqueza. Olhava as pessoas sempre de lado, como quem fing e que não está vendo o que se passa; parecia u m animal que vigia antes de atacar. Não se podia chamá-la de feia e a pintura deformava de tal m aneira a sua fisionomia que não se sabia dizer s e era bonita. Gina qualificou em pensamento: " Bonitinha, mas vulgar. Horrivelmente vulgar; sem querer lembro de minha irmã Zelinda. Era quase assim. Esse mesmo modo de rir, essa maneira es tranha de se vestir e pentear, de chamar a atenç ão, de prender o olhar de todos em sua pessoa, e sse mesmo cabelo mal pintado. Estou vendo a imag em de Zelinda. No entanto, Gracinha que é filh a dela, é tão diferente, graças a Deus.” Mandou servir o chá. Fernandinho procurava conversar s obre assuntos interessantes, mas Jujú teimava em falar sobre a própria família. Contou que a mãe e o pai moravam numa cidade do interior; Gina perguntou o nome da cidade e ela disse: Valença . Depois na conversação, falou-se em Valença e e la retrucou que eles residiam em Campos. Helen a que não perdia detalhes da conversa, perguntou : - Campos ou Valença? Ela retificou corando m uito: - Um tempo residiram em Valença, agora em Campos. Gina interveio: - Fernandinho me cont ou que você mora aqui no Rio com uma amiga, não é? Precisa trazê-la um dia aqui também, em nossa casa. Ela olhou Fernandinho um pouco desconfia da: - Eu morava antes com minha irmã, mas ela f oi embora. Agora moro com duas amiguinhas, mas são muito sapecas, dona Gina, não gostam de visi tas. Percebendo que havia dito uma tolice, proc urou corrigir: - Mas são muito camaradas, muito boazinhas. Deu uma risada. Fernandinho corou; Gina teve pena e procurou disfarçar: - Quer chá com leite? - Não gosto de leite; leite é pra c riança ou pra velho que não pode mastigar. Quand o eu estiver desdentada, aceito seu leite. Mamãe era assim como a senhora, fazedora de doces. Fernandinho me disse que a senhora ia fazer um b olo de nozes. É esse? - É sim. Você gosta? - I h! Sou louca. Voltou-se para Helena: - Há quan to tempo está casada, mocinha? - Ontem fez seis meses. Ela examinou Helena dos pés à cabeça : - Que tal a vida de casada? É boa? Riu-se muit o com a própria pergunta. Helena respondeu: - É muito boa. Eu gosto muito. Ela riu-se mais: - Está se vendo que você gosta. Helena corou e F ernandinho mexeu-se na cadeira perguntando: - V ocê não disse que queria bolo? Olhe no seu prato . - Que é isso, meu bem, quer que eu coma e fal e? Ou quer as duas coisas junto? Ou assobio ou c hupo cana. Não te contei nada, Nando, as granfas da frente foram embora ontem. Enquanto tomav a chá e comia pedaços de bolo, contou uma histór ia desagradável sobre umas moças que residiam no mesmo prédio e recebiam rapaziada à noite, faze ndo algazarra. Terminou: - Eu te disse desde o principio. São cafajestes. Fizeram cada frege. .. Granfas ordinárias; bebiam e cantavam Maria C achucha a noite inteira... Deu risadas intermin áveis. Gina começou a servir mais chá e pergunto u se não queriam sanduíches, haviam esquecido. F ernandinho apenas provou o bolo. Gina protestou: - Mas fiz de propósito para seu chá, meu filho . Você gosta tanto deste bolo... Jujú interromp eu: - Ele está cheio, dona Georgina. Comemos pa monhas lá em casa antes de sair. Oh! pamonhas go stosas, comi umas quatro. Eu sou assim, quando g osto de uma coisa como até quase arrebentar. Helena deu uma risadinha e Jujú riu francamente dando uma palmada no joelho de Fernandinho. Enqu anto sorvia o chá, Gina pensava de que modo impe diria aquele namoro, impossível que fosse até o fim. De qualquer, maneira, era preciso impedir . O automóvel que fora buscar Ana Luiza no Colég io, entrou no jardim esmagando pedrinhas. Jujú perguntou: - É essa a sua garota? Ana Luiza? E h! Garota bonita. Ana Luiza entrou no jardim de inverno e cumprimentou Jujú com certo acanhamen to; esta sacudindo três vezes a mão da menina: - Eh! Ana Luiza, vamos ser boas camaradas. Estou vendo que você é das minhas. Tristeza pouca é b obagem. Ana Luiza riu com gosto. Pensou: "Ela é estupenda. Gosto dela." Via-se os braços moreno s e torneados de Jujú, o busto muito desenvolvid o para a altura, o pescoço fino e comprido. Qu ando se levantou dizendo que queria ver as salas e o jardim, Gina observou-lhe o vestido curtíss imo; tudo nele era exagerado, extravagante, sem gosto. Usava brincos de ouro, colar, broche co m vários berloques e varias pulseiras em cada br aço que tilintavam a todo movimento que fazia; e fazia movimentos rápidos com os braços, de mo do que o ruído das pulseiras era ouvido constant emente. Nas mãos, dois anéis com pedras falsas. No instante em que deixava o jardim de inverno, voltou-se para esmagar o cigarro no cinzeiro e as pulseiras tilintaram ruidosamente; depois de u um pulinho para perto de um retrato que havia numa das paredes; era de um irmão de Dr. Ferna ndo que falecera anos atrás. Jujú fez uma exclam ação de espanto: - Parecidíssimo com um irmão m eu. Ana Luiza aproximou-se e contou: - É titio. - Pois é igual meu irmão; nem que fosse irmão dele. Voltou-se para Fernandinho e explicou: - É aquele que te contei que pegava bezerros pelo rabo. Lembras? Era um colosso para lidar com o gado, nunca vi. Agora está louco, no hospício. Helena que rira quando ouvira falar em bezerros, assustou-se; Ana Luiza recuou um passo: - Louc o? - Chi! Louco varrido. Precisou camisa de for ça pra levarem ele. Acrescentou com displicênci a: - Sífilis cerebral. Olhou Gina e Fernandinh o: - Eu não tinha te contado isso? Pois quero q ue saibas tudo a respeito da minha gente, não es condo nada. Com gestos sinuosos, aproximou-se d o rapaz e quis segurar o queixo dele; ele desvio u em tempo, vermelhou até à testa. Ela murmurou, com enlevo: - Então? Ana Luiza começou a rir; Fernandinho perguntou, impaciente: - Quer ou nã o ver a casa? - Vamos sim. Dá licença, dona Geo rgina. Vamos. Saíram os dois acompanhados por A na Luiza; Gina ouviu a voz da moça na sala de ja ntar: - Sua mãe é um doce. Você me disse que nã o são ricos? Então isto não cheira riqueza? Você é milionário, tutuzinho... Ana Luiza riu, deli ciada. Ouviu-se a voz impaciente do rapaz: - Or a, Jujú... Os passos deles afastaram-se; Helena suspirou e tirou um cigarro da caixinha vermelh a: - Mamãe, que lástima! Onde meu irmão descobr iu isso? Gina recostou-se com desânimo na poltr ona de vime: - Ele é muito criança e foi levado pela lábia que ela tem. Ela deve ter mais de vi nte anos, talvez uns vinte e cinco. Não sei, mas parece que ela está exagerando tudo, não sei se você reparou: os modos, a maneira de falar, d e rir. Não compreendo. Em vez de conter-se diant e de nós, parece que faz de propósito. - Nada d isso, mamãe. Não se iluda. Acho que não está exa gerando coisa alguma, o natural dela é esse; que m sabe está se controlando? - Você acha, Helena ? - Claro. Gina ficou pensativa. Depois que Ju jú foi embora, pediu às filhas que não comentass em a visita e estranhou o filho não lhe pergunta r a impressão que teve da moça. Pensou: "É um bom sinal. Ficou talvez envergonhado com o proce dimento dela." Na semana seguinte, seguiram para a chácara de Teresópolis e Fernandinho só se re feriu um dia a Jujú, pedindo licença à mãe par a levá-la à chácara: - Para ela conhecer a chác ara, mamãe. Passar o dia conosco. Gina consenti u, não demonstrando aborrecimento algum. Um dia antes de Fernandinho ir buscá-la, procurou-o no quarto dizendo que precisava falar com ele. O r apaz pensou: "Ela vem me pedir para eu não ir bu scar Jujú Vai dizer que achou Jujú moderna dem ais. Pois eu direi: É sincera, isso que ela é. N ão é hipócrita como muita gente que conheço, gen te que vive fingindo. Eu gosto de Jujú assim m esmo e está acabado. Ela diz o que sente, por is so implicam com ela. Jujú faz a minha felicidade , não posso negar. É um pouco rude de maneira, u m pouco livre, fala às vezes demais, mas o que tem isso? Não diz mentiras, isso tenho certeza. Gosto dela." Parecia querer convencer-se a si p róprio de que a amava. Gina sentou-se perto da janela: -Que linda vista. - Linda mesmo. Da minha janela a paisagem é mais bonita. - É verd ade. Venha sentar-se aqui perto, vou contar uma história bem longa. Ele riu: - Como é que come ça? Era uma vez... - Justamente. Era uma vez... E Gina contou ao filho sua triste história; qu ando terminou, viu lágrimas nos olhos de Fernand inho: - Mamãe, como você sofreu. Mas sofreu tud o isso? - Sofri tudo isso. E contei a você, fil ho, por um motivo muito plausível: quem sabe alg um dia poderão fazer a você insinuações maldosas a meu respeito, o mundo é invejoso. É preciso que você esteja prevenido e saiba a verdade pra me defender ou defender minha memória, se eu já tiver desaparecido. A gente só pode defender quando sabe compreender. Baixou os olhos sobre as mãos e ficou silencioso; durante alguns momen tos nenhum falou, depois ele murmurou: - Parece um sonho. Num movimento brusco, levantou-se e procurou cigarros nos bolsos do paletó e na mesi nha do quarto; acendeu um e tornou a sentar-se. Ela tirou os óculos e limpou os vidros com o l enço; falou: - Você há de dizer: "por que mamãe me contou tudo isso?" Vou explicar por que: em primeiro lugar porque a verdade deve pairar acim a de tudo, mesmo que seja contra nós, mesmo qu e seja doloroso confessá-la. Sempre pensei assim , foi uma espécie de dogma que herdei de meu pai . Tenho horror à mentira, à dissimulação, ao eng ano. Quanto mais eu via a dissimulação e a men tira à minha volta, mais horror sentia, como se aquela vida de enganos e subterfúgios me causass e asco, repugnância. Em segundo lugar porque c onheço o mundo o suficiente para poder aconselha r você a respeito de Jujú... Ele ficou imóvel c omo se não tivesse ouvido, apenas as pálpebras c erraram-se por um instante. - Conheço as moças como Jujú, meu filho; elas não podem fazer a fel icidade de um homem como você, de nenhum homem.. . Fernandinho fez um movimento brusco, parecia querer falar, mas ela levantou a mão pedindo sil êncio e continuou: - Nessa minha vida passada, conheci muita coisa e aprendi a discernir o bem do mal. Serviu de experiência para mim; foi como se tivesse cursado uma escola chamada a escol a da desgraça. E não há nada que nos ensine a vi ver, a saber viver, como o infortúnio. Aquele ou aquela que passou por muitos infortúnios, que c onheceu a necessidade mais premente: a fome, q ue conheceu as noites de frio sem agasalho, que conheceu a procura de trabalho sem nunca encontr ar, que viu de perto, a miséria e a doença, po de dizer que sabe o que é a vida. O sofrimento e nsina; portanto posso dizer que conheço as criat uras. Não digo a você: não se case com Jujú. Nad a disso. Apenas conto quem é Jujú e previno-o dizendo que ela não pode fazer sua felicidade: v em de um meio muito diferente e de um nível infe rior. Parou um pouco indecisa e não soube conti nuar: "Ela também não viera de um meio inferior? De um nível mais baixo?" Fernandinho compreende u o embaraço de Gina: - Mamãe, então não há mui ta lógica nisso tudo. Você conta uma coisa e con tradiz logo depois. Ela corou: - Há exceção em tudo, filho. Você quer dizer que eu também vim de um meio inferior apesar de não parecer, não é ? Mas seu avô, o professor Pasquale foi um homem de educação superior. Foi pobre, infeliz no c asamento, um artista incompreendido. Colocava a arte acima de tudo e foi isso que o fez infeliz porque não foi compreendido. Mas era um homem distinto, um gentleman. Fernandinho continuou c alado: - Você pode se casar com ela, mais tarde ; apenas previno: essas mulheres não servem para esposas; minha irmã Zelinda era assim leviana e fútil, fez do marido e da filha uns infelizes . Falo para seu bem, para sua felicidade. Jujú é apenas uma borboleta à procura de mel; nada nel a é profundo, apenas superficial. Mas talvez me engane; quem não se engana às vezes? Ele leva ntou-se e ficou na frente de Gina, as mãos nos b olsos: - Você esteve com Jujú apenas uma hora, na hora do chá. Como pode dizer que a conhece? A cha leviana por que fala a verdade? Por que é fr anca? Por que não esconde o que sente? Você me smo não acabou de dizer que a verdade deve paira r acima de tudo? Jujú tem sido infeliz e tem pas sado muitos apertos, mas é correta. Trabalhou durante algum tempo e o dinheiro que ganhava man dava para a mãe, lá no interior. Penso que você está enganada, mamãe. - Talvez esteja mesmo, já disse isso a você. Mas o que me faz pensar que ela é leviana, ou não pensa bem o que diz, é iss o: mal ela chegou em nossa casa naquele dia fo i dizendo que sempre idealizou uma sogra velhinh a, de cabelos brancos. Como podia falar em sogra se vocês ainda não são noivos? Foi pelo menos i mprudente; outra moça ficaria calada. Fernand inho riu-se e começou a andar de um lado a outro : - Isso foi brincadeira dela, quis agradar voc ê. Era uma maneira de dizer que você é muito moç a. - Depois foi dizer que haviam comido pamonha s, por isso não quis comer à hora do chá. Meu fi lho, se ela foi convidada para um chá, não devia comer pamonhas antes e se comeu não devia con tar. Isso desilude a dona da casa. Ele começou a rir francamente: - Mas, mamãe, você faz quest ão dessas coisinhas? Uma das companheiras de apa rtamento entrou na hora em que íamos saindo e no s deu umas pamonhas. Comemos e pronto. Não tem nada de mais. Brincadeira de Jujú. Ela sempre f ala a verdade, por isso você não gosta dela. - Não digo que não gosto dela; digo que a conheço bem e por essas pequeninas coisas, percebem-se a s grandes. Não falemos mais nesse assunto, quis apenas prevenir você. Ficaram quietos uns ins tantes olhando através da janela aberta. Gina to rnou a falar: - Que vista tão bonita. - Bonita mesmo. Não me canso de ver. - A gente não cans a de ver a beleza, sob qualquer aspecto. Há muit as formas de beleza, mas nem todos sabem aprecia r; às vezes é uma simples flor, uma árvore, um rosto, uma atitude, uma música, uma frase, um a to generoso. A pintura, a escultura e a música t êm nos dado muita beleza. A musica principalment e. Fernandinho continuou a fumar em silencio; e la tornou a falar: . - Há trechos de mús ica que me comovem até as lágrimas; não posso ou vir "Capricho Italiano" de Tchaikovsky sem que m eus olhos fiquem úmidos. Sabe aquele trecho? (G ina cantarolou). Me faz chorar. Ele aquiesceu c om a cabeça. Todas as vezes que eu cantava o "C aro Nome" ficava comovida. A beleza comove. Cert os atos tocam o coração da gente; eu me lembro d e três irmãzinhas, já estavam ficando moças e quase não tinha vestidos nem sapatos bonitos. Um dia o pai fez um bom negócio e prometeu dar a c ada uma delas duzentos mil réis na véspera de Na tal. Cada uma fez uma listinha do que mais pre cisava e a mais moça disse: "Precisamos reservar trinta mil réis para um presente pra mamãe; som os três ficam noventa mil réis". Ora, com esse dinheiro, elas poderiam comprar tanta coisinha: pó de arroz, ruge, cinto; elas não tinham quase nada, mas lembraram da mãe. Acho lindo um ato a ssim. - E deram o presente? Gina sorriu: - O pai não realizou o negócio ou se arrependeu de d ar tanto; deu apenas trinta mil réis para cada f ilha. Não puderam comprar nem um par de sapatos. - Então não deram nada para a mãe? - Deram. D eram um par de chinelinhos azuis. Olhe, uma vez foi você, Fernandinho. - Eu? - Você. Eu andava um pouco doente nesse tempo e sentia muita falt a de ar; sempre me queixava para seu pai: "É hor rível esta falta de ar." Você teria uns sete ano s nesse tempo. Um dia levei você à igreja S. B ento, em S. Paulo expliquei que cada pessoa que entra numa igreja pela primeira vez, tem direito de pedir três graças. Estávamos atravessando o Largo e você ia segurando minha mão, quando di sse: "Mamãe, sabe a primeira graça que vou pedir ? Pra você não sentir mais falta de ar. Peço e m primeiro lugar porque é mais importante, não é ?" Fiquei comovidíssima e agradeci a Deus por te r um filho assim. Isso é beleza, filho. Fernand inho começou a rir: - Não me lembro mais disso. - Mas eu não me esqueci; as mães não esquecem. Ele atirou o cigarro pela janela: - Mas não e stou muito de acordo com você. Acho que a beleza é o que se vê ou o que se ouve. É concreto, é m atéria, não acha? - Não. Acho que a beleza é tu do o que nos toca, o que nos faz vibrar, como a música por exemplo. Como as paisagens bonitas, o s objetos, as criaturas e os atos heróicos. - E stá certo. De acordo. Mas um ato de generosidade como o daquelas meninas, por exemplo, é bonito e nos comove, mas não significa beleza. - Como não? Um ato de renúncia ou de generosidade, uma prova de amor desinteressado ou de dedicação são as belezas da vida, Aí de nós se não houvesse i sso. Ficaram os dois em silêncio por um instant e, depois Fernandinho disse: - São pontos de vi sta. Não sei se a beleza estará nesses atos huma nos. - Então que é isso? Esses belos atos human os? Ele refletiu um momento: - São estados d’a lma, assim como a paixão, a bondade, a perversid ade. Mas não vejo nisso a essência da beleza que vejo numa flor, por exemplo. - É como você diz : pontos de vista. Eu vejo assim. Assim como ve jo daqui esta bela paisagem. Ele riu e, aproxim ando-se, beijou-a na testa: - Não confundo, mam ãe. Não confundo uma paisagem encantada com um a to de bondade. - Por que não? Se um ato de bond ade nos comove, é belo; assim como é bela a pais agem, e bela a flor, é belo um rosto... Levanto u-se e debruçou-se na janela: - Creio que é o a utomóvel de seu pai que vem vindo; veja um pouco . - É sim. - Vamos nos encontrar com ele... A prosa fica para depois. Ia deixar o quarto quan do Fernandinho disse, rindo: - Sabe por que voc ê pensa assim? Você é artista, mamãe. Ela riu-s e e sacudiu o dedo indicador na direção dele: - Talvez. Mas não se esqueça dos meus conselhos; são valiosos, são de mãe amorosa... Fernandinho ficou só e resolveu fumar outro cigarro: "Coita da de mamãe. Sensível como é, deve ter sofrido m uito. Quando é que eu poderia imaginar? Aproveit ou e falou o que quis de Jujú. Vamos ver mais tarde o que se resolve. Agora não vale a pena in sistir, depois do que ela contou. Já sofreu muit o, coitada!” De repente começou a se sentir mal ; fechou a porta do quarto e sentou-se na mesma cadeira onde a mãe estivera. Olhou a paisagem. " Ficou louco. Como é que eu podia imaginar mamã e levando outra vida senão está? Estou chocadíss imo. Só Deus, sabe o esforço que fiz para me con trolar. Coitada, nem percebeu. É horrível pensar , não quero pensar.” Levantou-se e andou pelo quarto, as mãos nos bolsos; esforçou-se por cho rar, os olhos ficaram úmidos. "Chorar pra que? Q ue diabo! E Papai? Sabe de tudo? Naturalmente sabe. Que idéia idiota. Ela disse que eu preciso defendê-la se algum dia ouvir uma insinuação a esse respeito. Mas quem irá falar dela pra mim, um filho? Poderão rir de mim às escondidas, is so sim. Disse que eu nunca poderia avaliar o que ela passou; não posso mesmo. Saberei por acaso o que é necessidade? Fome? Sempre encontrei a mesa farta, coberta de pratos. Como é possível n este Brasil tão grande, haver gente que passe ne cessidade? Fome? Nunca acreditei; e no entanto m inha mãe passou. Deve ter sido horrível. Como é possível isso?” Parou no meio do quarto e pas sou a mão direita pelos cabelos, como fazia semp re que estava nervoso, Lembrou-se de que ia faze r a mesma coisa que seu pai fizera vinte anos antes. Sorriu amargamente. "Casar-me com uma mul her que tem um passado... Compreendo tudo agora. Por isso mamãe convidou Jujú para tomar chá, po r isso não se importa que Jujú venha aqui pass ar o dia, almoçar, jantar... É porque ela conhec e a vida, conheceu a mesma vida de Jujú.” Recom eçou o passeio: "Mas estou ficando maluco. Jujú não é o que ela pensa; nunca foi. Teve algumas a venturas que ela mesma me contou, coitadinha, ma s hoje é séria. Vive apenas para mim. Jujú me ama. Tenho certeza.” Riu alto: "Como é forte a lei da hereditariedade! Aquilo que meu pai fez a ntes, vou fazer agora. Por quê? Não posso compre ender. E por que ela me contou toda essa histó ria?” Ouviu batidas na porta e a voz de Ana Lui za: - Fernandinho, me empresta seu chicote? Se ntiu raiva da irmã; por que vinha interrompê-lo? Estava tão acabrunhado. Fingiu não ouvir e proc urou cigarros nos bolsos do paletó. - Fernandin ho, me empresta seu chicote? - Não me amole. Nã o sei onde está. - Não precisa vir com má-criaç ão; está dependurado atrás do guarda-roupa perto da janela. Eu mesma dependurei aí. Ele olhou; lá estava o chicote. Mal humorado, tirou-o do pr ego e o entregou à irmã através da porta entreab erta, viu-lhe o rostinho alegre, os olhos cintil antes. - Você não vem? - Não. - Por quê? O di a está estupendo. Papai chegou. Ele fechou a por ta sem responder; ela gritou afastando-se. - Ma lcriado. Vou no Tinhoso, por isso preciso do chi cote. Até logo. "Em que mesmo estivera pensando ? Na lei da hereditariedade. Por que ela me cont ou? Ninguém vai falar mal de minha mãe para mim, um filho. Nem insinuação, nem nada. Quem? Men tira dizer que o mundo é tão mau assim. Exagero. ” Sentou-se perto da janela para fumar. Ouviu a voz alegre de Ana Luiza falando com o pai; ouvi u a voz de Gina recomendando à filha que tivesse cuidado. Ana Luiza riu alto um riso de intens a felicidade, despreocupação, alegria. Depois gr itou: - Vamos, Tinhoso. Vamos! "Ela ri porque não sabe de nada. Por que o mundo é tão mau? Tão cheio de misérias? Por que faz uma criatura sof rer até o limite? E depois... Queria saber o que meu amigo Amadeu pensaria se soubesse. Dona G eorgina... Dona Georgina... Que obsessão. E se J ujú também soubesse? Preferia morrer a contar. M orrer. Desaparecer da face da terra. Agora já sei por que mamãe não se importa que eu me case com Jujú; papai também não se importa. Como é qu e ele vai me recriminar se fez a mesma coisa? O mesmo sangue. Barbaridade. Como eles são dissi mulados! Como eu poderia adivinhar isso? Que min ha mãe teve um passado? Se meus amigos soubessem , teriam pena de mim. Pena por quê? Isso pode acontecer a qualquer um. As mães deles também nã o poderiam?” Na imaginação, reviu todas as mães dos amigos. "Nenhuma podia ter sido assim. Impo ssível. O mesmo pensarão de mamãe; impossível. E no entanto... Que deverei fazer? Dissimular t ambém? Fingir? Parece que envelheci dez anos. Qu e peso!” Aproximou-se do espelho e começou a se examinar. "Amanhã vou ver Jujú. Estou com sauda des dela; Jujú me ama; percebo isso no olhar, no modo dela, em tudo. Quando me vê, ela se tran sfigura e estremece. Isso não é fingimento, é am or.” Fez com os lábios um gesto como se fosse d ar um beijo no espelho, em sua própria imagem. S orriu ao lembrar-se dos lábios carnudos e vermel hos de Jujú. "Amanhã não posso, mas depois de amanhã vou surpreendê-la. E mamãe? Que coisa med onha. Como é que nunca desconfiei de nada? É hor rível pensar nisso. Sem querer estou pensando; tenho vontade de gritar aos quatro ventos: Minh a mãe foi... Quem sabe assim desabafo.” Contrai u o rosto com vontade de chorar e afastou-se do espelho; sentou-se na beira da cama e inclinou a cabeça entre as duas mãos. Um soluço agitou-lhe os ombros: "Mamãe!" De repente reagiu e levan tou-se: "Sou um homem. Que diabo. Não posso chor ar." Aproximou-se da janela e viu ao longe um au tomóvel que vinha em direção à chácara. Amadeu ficara de vir. Seria ele? Passou as mãos rapida mente pelos olhos para apagar algum vestígio; ol hou-se ao espelho. Passou o lenço pelo rosto e p reparou-se para deixar o quarto. Avistou o pai lendo jornal num canto do terraço; a mãe vinha lá de dentro com uma bandeja. Fernandinho sentiu -se mal ao lembrar; sua mãe fora sempre sua mã e, um ser à parte. Reparava pela primeira vez qu e era uma mulher; era estranho. - Creio que Ama deu vem vindo, mamãe. Vi um automóvel na estrada . Gina sorriu ternamente mostrando a bandeja co m bolos: - Olhe os bolos que fiz para vocês. Pr ove um. Ele começou a mastigar: "Não é possível . Não e não; não quero que seja assim.” - Vou m andar arrumar a cama do Amadeu no seu quarto. Re parou como Ana Luiza é desconfiada com Amadeu? A cho-o tão simpático! - Criancice de Ana Luiza! A mãe foi em direção ao terraço levando a bande ja: "Sempre assim. Pensando em nós, fazendo tudo para nosso bem estar, para nossa alegria. Que p ena ela ter me contado; parece que não a admir o mais.” Viu o automóvel do amigo parar em fren te ao terraço, correu para recebê-lo. Passaram t oda a tarde juntos andando pelos arredores. Pouc o antes do jantar Fernandinho foi buscar gelo; ia fazer um "veneno" para ele e Amadeu; viu Ana Luiza na sala de jantar, falando com cachorrinh a: - Eu já sabia que você vinha pedir; parece q ue adivinha. Ponho uma bala na boca, vem ela mui to lampeira pedir a bala. E vem passando essa lí ngua vermelha no focinho. Gulosa. Tirou o res to da bala da boca e deu à Mimosa. Fernandinho p ediu: - Vamos para o terraço, Ana Luiza. Traga as garrafas vamos fazer uma mistura para Amadeu. - Já vou. Mas ficou no mesmo lugar falando co m Mimosa. Fernandinho voltou para procurar o Cin zano; estava sobre o móvel da sala de jantar: - Eu não disse para você levar isto para mim? - Eu já ia levar... - Ia nada... Fernandinho sai u resmungando: Diabo de menina. Implicou com Ama deu. Não há quem tire isso. Será que ele desconf ia? Não é nenhum trouxa.” Após o jantar, Gina t ocou piano. Depois levantou-se dizendo que ia pr eparar o quarto para Helena e Eduardo que deveri am chegar domingo pela manhã. Ana Luiza conservo u-se arredia durante toda a tarde; quase não f alou, não quis tocar piano quando o pai pediu e logo depois do jantar, deixou a revista que esta va folheando e disse que ia dormir. Deu um boa noite geral e retirou-se para o quarto. Fernand inho aborreceu-se; resolveu falar seriamente com a irmã no dia seguinte. Por que fazia esse ar desdenhoso para o amigo dele? Pensou consigo: " Enjoada. Tão raras vezes ele vem e ela sempre as sim. Adota um ar superior, insuportável, de rain ha ofendida.” À noite, no quarto, Fernandinho a briu a janela para fumar um cigarro antes de dor mir; de súbito voltou-se para o amigo e pergunto u: - Amadeu, você acredita na hereditariedade? Amadeu que estava se descalçando, ficou com um sapato na mão: - Por que pergunta isso? - À to a. Vontade de saber. Amadeu colocou o sapato no chão, depois de o ter observado: "Logo vai prec isar de uma meia sola; não durou nada.” Era trê s anos mais velho que Fernandinho e cursava a Es cola de Medicina. Quase bonito, se não fosse o n ariz comprido demais; era simpático e muito estu dioso. Começou a descalçar outro sapato: - Co mo não hei de acreditar? Estudo medicina, rapaz. Fernandinho tirou uma baforada do cigarro; disf arçou: - A noite está estrelada. - Por que per guntou? Algum caso interessante? - Hein? Ah! pa pai falou hoje no almoço sobre o caso de uma mul her. É interessante sim, muito interessante. Ol hou o amigo e a luz deu-lhe em cheio sobre o ros to. Pensou: "É preciso que ele não desconfie de nada. Mas contarei; preciso desabafar.” - Vou a pagar a luz e só deixar a da cabeceira. Posso? P ode entrar mariposas. - Pode. Já estou deitado. De pijama, Amadeu estendeu-se sob as cobertas: - Puxa! Faz frio aqui; mas um friozinho gostos o. Diante do silêncio do amigo que se deitara ta mbém, perguntou: - Então? Qual é a história? F ernandinho resolveu ir até o fim, resoluto: - U ma mulher que foi prostituta por necessidade. Co mpreende? A família paupérrima, passando as maio res necessidades; o pai preocupado com sua arte, a mãe cansada de sofrer miséria e prevaricand o para ter roupas melhores. Afinal um dia, a men ina, filha desse casal, envereda pelo caminho ma is fácil, cansada de passar fome... Interrompeu um pouco assustado: "Cuidado. Preciso ter cuida do. Ele não poderá saber nunca; preferia morrer. " Disfarçou: - Está mesmo friozinho; vou puxar o cobertor. Afinal ela encontra um homem que a t ira dessa vida miserável. Casa-se com ela, têm f ilhos, vivem felicíssimos... Fe-li-cis-sí-mos. Houve uma pausa. Lá fora o vento passava entre a s árvores e sacudia o toldo do terraço que começ ou a ranger. Amadeu perguntou encolhendo-se: - Será chuva? - Não. Mais tarde pode ser que chov a. - Adoro dormir com o barulho da chuva. Boce jou. Vendo que o amigo não continuava, perguntou ;. - E então? A que você quer chegar? - Ah! Nã o acabei ainda. O mais engraçado é que vinte ou trinta anos depois, o filho faz a mesma coisa, C asa-se com uma moça de vida alegre. Amadeu riu: - Que família? E deu certo também como o pai? - Hein? - O filho foi feliz como o pai? Ferna ndinho embaraçou-se: - Ah! Isso não se sabe. Pa pai parece que perdeu a família de vista. Houve um breve silencio. Depois a voz de Amadeu, já s onolenta: - Olhe, meu caro. Nada nesta vida é p ositivo, infalível, indestrutível, a não ser a m orte. Tudo é incerto e móvel como a água, como a s folhas das árvores sacudidas pelo vento, com o o próprio vento que vem ora do Norte, ora do S ul. Tudo é vago. Pode uma mulher descender de um a respeitável família e ser uma meretriz. Pode a filha de uma meretriz ser puríssima e entrar para um convento. O filho pode seguir o caminho do pai, mas depende do meio; para mim, o meio é tudo. Compreende? Tudo é produto do meio; isso é importante para mim, Mais que a hereditarieda de. Mas em todo caso, não há regra sem exceção. Se uma mulher levou essa vida, depois casa-se e cria os filhos num meio puro, forçosamente os filhos têm que ser puros. O meio é tudo. Fez um a pausa: - E depois você me disse que a mulher desviou-se por necessidade não por temperamento. E isso é importantíssimo. - Mas se o filho que foi criado num meio bom, foi pelo mesmo caminho ? Como se compreende isso? É o mesmo sangue. - Talvez. Mas não creio, creio mais numa coincidên cia. Fernandinho respondeu num bocejo: - Também penso assim... - Estou com sono hoje, decerto é o ar daqui. Ouviram o vento outra vez e o baru lho do toldo do terraço batendo levemente; Amade u perguntou, quase dormindo: - Como vai Jujú? - Bem. Amadeu começou a ressonar; os olhos de F ernandinho encheram-se de lágrimas: "Vou-me embo ra para longe, longe de todos. Ela esmagou minha personalidade, não poderei ser eu mesmo de ag ora em diante. Serei hipócrita, falso, dissimula do. Envelheci.” Sentiu inveja de Amadeu, inveja de todo o mundo. Sofreu. No dia seguinte, prete xtando ter o que fazer no Rio, voltou à tarde co m Amadeu, de automóvel. O caráter de Fernandinh o acentuou-se; de um dia para outro, tornou-se m ais sensato, mais retraído, mais recolhido a si mesmo. Foi como um amadurecimento prematuro. P ensou nos segredos que os outros teriam também; cada pessoa devia carregar consigo um segredo. A trás de cada fronte, havia uma consciência e nes sa consciência, quantos segredos? Quantos mist érios insondáveis? Começou a observar as pessoas de uma maneira diferente. Quando olhava um home m ou uma mulher pensava: "Deve ter um segredo também, um grande segredo. Que haverá atrás dess a testa? Pensa que só ele tem segredos? Também t enho.” Passou algumas semanas numa grande prost ração; esteve com Jujú quase todos os dias; ela passava-lhe as mãos úmidas na testa escaldante: - O que você tem, Nando? Conte pra mim. Deitad o na cama, com a cabeça no colo de Jujú, ele pro curava esquecer; o pior era não poder repartir c om alguém aquele segredo, aquele peso que o opri mia. Puxava Jujú para perto de si e apertava-a com força. Ela ria: - Olhe meu cabelo, você de smanchou ele todinho. Ele sussurrava: - Jujú, s e eu tivesse dinheiro, nós íamos embora daqui. - Chi! Pra onde? - Para a Argentina. Para os Es tados Unidos. Ia viver por aí com você. Ela se e ntusiasmava e acomodava-se melhor ao seu lado. - Vamos, vamos largar esta joça e vamos embora c orrer mundo. Há de ser tão bom! Os dois ficavam quietos escutando as ondas quebrarem-se na prai a. Sonhavam. Ela dizia: - Havia de ser uma delí cia. Por que você não pede dinheiro emprestado? A gente trabalha e manda pagar depois. Peça pra Amadeu. - Amadeu não tem para dar. - Há de ter alguém que tenha. Vamos, vamos correr mundo, me u nego. Ver coisas diferentes, cidades cheiinhas de gente que a gente não conhece. - Seria bom demais, Jujú. - Por que então você me deixa com água na boca? Não fale essas coisas boas. Por q ue fala? - Às vezes sou tão infeliz, Jujú... Vo cê é a única que me compreende. Tenho vontade de fugir, me libertar destes grilhões. Parece que tenho cadeias de ferro nos pés. Cadeias de pre conceitos... - Puxa! Você falando assim... Você que tem uma família tão boa, não deve falar ass im. Eu não tenho ninguém, eu sim, posso ficar tr iste. Minha mãe e meu pai me tocaram de casa, tu sabes... minhas irmãs não sei onde andam... S ó tenho tu, meu nego... Ela inclinava a cabeça cheia de cachos e encostava o rosto no rosto de Fernandinho; ficavam assim unidos por um instant e, depois ela recostava-se no ombro do rapaz e pedia carinhosamente: - Conte, conte o que a g ente faria se pudesse ir embora. Para aonde? Bue nos Aires? - Primeiro, Buenos Aires. Faz de con ta que eu arranjava o dinheiro e a gente tomava um navio. Depois... Ela interrompia, animada, o s olhos brilhantes; levantava a cabeça: - E se fossemos sem dinheiro mesmo? - Impossível, Jujú ... - Por que não? Você vai como marinheiro e e u como criada: vamos... Ficavam amadurecendo es sa idéia; a cabeça dela caía outra vez sobre o o mbro dele. De súbito ela lembrava: - E sua mãe, Fernandinho? Ela não pode arranjar dinheiro? Di ga que tu precisas pra fazer um negócio e a gent e foge... Ela levantava a cabeça outra vez e co ntinuava: - De lá a gente escrevia um cartão: " Tudo bem. Não se preocupem. Jujú e Fernandinho.” Ela batia palmas: - Vamos mesmo? - Quem sabe ? Ficavam em silêncio outra vez e a cabeça de J ujú inclinava-se de novo. Pensavam nas aventuras que arrostariam, sem dinheiro, em países descon hecidos... Ou então a mãe emprestaria o dinhei ro sem o pai saber. A tarde caía, vinha a noite, uma noite cheia de estrelas. Tomavam cerveja no quarto até se embriagarem; depois dormiam nos braços um do outro. O último pensamento de Fern andinho era seu segredo: "Como se evadir? Fugir? Esquecer? Um dia que chegou fora da hora de co stume para visitar Jujú, encontrou a porta fecha da; bateu e ouviu sussurros de vozes. Jujú grito u que estava se vestindo, esperasse. Quando ab riu a porta, um pouco desorientada, convidou-o p ara saírem. Queria espairecer, passear. Ele perg untou quem estava com ela no quarto, ouvira voze s; ela respondeu que era uma amiga doente e el e não podia entrar. Ele insistiu, gritou, ficou furioso; ela pôs-se na frente da porta, os braço s abertos, dizendo que não entrasse, fosse emb ora. Estava trêmula e chorosa. Ele não disse mai s nada, deu um empurrão em Jujú e tentou arromba r a porta aos pontapés; várias pessoas correram e seguraram Fernandinho. Jujú começou a gritar estridentemente, depois caiu nos braços de uma amiga, desacordada. Foi um reboliço. Gritavam e falavam todos ao mesmo tempo; empurraram o rap az para fora do prédio. Fernandinho saiu furioso e jurou que havia de vingar-se; Jujú havia de p agar. Não voltou para casa. Entrou num bar e pa ssou toda a tarde bebendo; a noite também. De ma drugada, um amigo levou-o para casa. Então telef onaram para Teresópolis e chamaram os pais que vieram imediatamente, apreensivos. Chamaram um médico; durante vários dias ficou de cama, sem f alar, tendo a mãe ao seu lado que nada perguntou , nada censurou. Apenas velou-o, noite e dia. Passou toda a semana num mutismo absoluto, sucu mbido e desesperado. Depois vendo que Gina nada queria saber, nada perguntava, contou tudo. Seu grande aborrecimento, suas tristezas, sua desi lusão com Jujú. Gina então mostrou-lhe as cartas que haviam chegado durante essa semana; todas e ram da mesma pessoa. A letra era incerta, como a de uma criança. Ele abriu uma e leu: "Nego, s ofro desesperadamente. Não posso suportar tua au sência. Venha nem que seja por uma hora, meia ho ra, uns minutos. Quero ver-te, quero apertar-t e contra mim. Quero amar-te. Explicarei tudo o q ue houve, tudo bem direito. Eu estava arranjando um negócio que ia dar dinheiro pra nós irmos pra Argentina. Te juro, te juro que não tenho cu lpa. Pelo que há de mais sagrado. Venha amor, am or, amor. Tua para sempre. Teu tutuzinho.” Ele rasgou a carta em pedacinhos e pediu à mãe que r asgasse as outras também; não queria ler. Gina f ez o que ele pediu. Depois sentou-se na cabeceir a do filho e segurou-lhe as mãos; estava tão c omovida que não podia falar. Ele beijou-a e diss e com os olhos cheios de lágrimas: - Mamãezinha , você é uma só. Ouviram a cachorrinha arranhan do a porta; Gina levantou-se para abrir. Ana Lui za entrou acompanhada por Mimosa que pulou sobre o leito; Ana Luiza começou a cantar: - Viva, v iva, Fernandinho já está bom. Viva, viva! Dava voltas pelo quarto, batendo palmas; Mimosa latiu . Fernandinho gritou: - Boba alegre! E atirou- lhe um travesseiro. Gina riu. Fernandinho estava feliz outra vez; tudo havia passado. XXI Ana Luiza e Fernandinho conversavam no hall. Ele dizia: - Acho você muito engraçada. Gosta de t odo o mundo e diz que não gosta de Amadeu, meu m elhor amigo. - Gosta de todo o mundo não. Alto lá! Há muita gente que detesto. - Cite alguém p or exemplo... - Agora assim de momento não me l embro. - Como não lembra? - Não me aborreça, F ernandinho, você às vezes é desagradável. Não go sto daquelas moças que moram na casa de pedra, d a esquina. - Você nunca falou com elas, nem con hece as moças. - Não conheço? Nossa Senhora! En contro sempre com elas no banho de mar; até viro a cara. - Assim à toa? - À toa. Vem cá, Mima, deixa arranjar sua fita. Com uma perna passada por cima do braço da poltrona, Fernandinho come çou a assobiar, despreocupado. A tarde caía rapi damente, mas ainda havia luz no céu, onde o so l se escondia. Vinha uma aragem fresca que sacud ia a folhagem do terraço e refrescava toda a cas a, como que renovando-a. Fernandinho tirou um ci garro do bolso e acendeu-o. Voltou ao assunto: - Pois o Amadeu é um dos melhores caracteres q ue tenho conhecido. Bom e nobre. Ótimo amigo. A na Luiza fez que não ouviu e passou o queixo na cabeça da cachorrinha: - Como ela é macia- Como é aquela, canção, Fernandinho? Aquela que você estava cantando outro dia. - Olhe Eduardo que v em chegando... Levantou-se para receber o cunhad o; gritou lá para cima: - Helena, Eduardo está aqui. Às quintas feiras, Helena e Eduardo janta vam em casa dos pais. Eduardo cumprimentou, puxo u os cabelos de Ana Luiza num gesto brincalhão e foi encontrar-se com Helena que já vinha desc endo a escada, a fisionomia radiante. Abraçaram- se e beijaram-se; Fernandinho piscou para Ana Lu iza mostrando os dois abraçados no meio da escad a; ela fingiu-se distraída e encheu Mimosa de caricias: - Mimosinha... Que amor de cachorrinh a... De repente ficou tesa na cadeira, olhando a porta; avistara Amadeu parado no terraço, um p ouco embaraçado; o chapéu na mão. Num pulo, Fern andinho foi encontrar-se com o amigo e convido u-o para entrar; ele apertou a mão de Ana Luiza e sentou-se muito naturalmente. Antes, porém, de u um piparote na cabeça da cachorrinha. Ana Lu iza ficou ali uns instantes e de repente, falou alto: - Papai vem vindo. Saiu para o jardim a fim de encontrar Dr. Fernando; entraram os dois meio abraçados. O pai subiu e Ana Luiza foi para a copa; de lá, pela porta entreaberta, começou a fazer sinais ao irmão, chamando-o. Fernandin ho deixou o amigo e foi até à copa, um pouco abo rrecido: - O que você quer? Com um joelho sobr e uma cadeira, Ana Luiza inclinava o corpo para a frente e para trás; fez um gesto mostrando o h all: - Por que você convidou ele para jantar? O mau humor de Fernandinho acentuou-se; responde u levantando os ombros: - Para isso que está me chamando? Porque quis. E você não tem nada com as pessoas que convido. Ficou na frente dela en carando-a; Ana Luiza fez um muxoxo e baixou a vo z: - Não gosto dele. Você sabe muito bem. - Vo cê não gosta de Tilinha? Não vive procurando ela em casa de dona Gertrudes? Tilinha e Amadeu er am irmãos; visitavam a avó todas as semanas; e a casa de dona Gertrudes era ao lado da casa de D r. Fernando. Ana Luiza defendeu-se: - Mas Tilin ha é diferente, é minha amiga. E eu visito Tilin ha nas horas que ele não está lá. Eu sei as hora s que ele visita a avó e nessas horas não vou. Inclinou o corpo mais para trás e repetiu, convi cta: - Já disse que não gosto dele. Fernandinh o perdeu o ar preocupado e ordenou á irmã: - Ti re umas pedras de gelo; vou preparar um drink. D epressa. Procurou garrafas e copos no armário e começou a assobiar; com gestos lentos, Ana Luiz a abriu o refrigerador e tirou uma gavetinha che ia de gelo; por cima do ombro falou para o irm ão: - Mas por que você convida para jantar? Ele é pau. Não gosto de gente assim com espírito d e contradição. Ele parou de assobiar e mediu um cálice de vermute com todo cuidado: - Ele não é espírito de contradição. Nunca foi. E quando c ontradiz uma pessoa, sabe o que está fazendo. Co nheço-o muito bem. Você não viu o vidrinho de an gustura? Ao lado da pia, Ana Luiza tirava as pe drinhas de gelo: - Não. Deve estar por aí mesmo . Quantas pedras você quer? - Umas quatro. Aind a outro dia estava aqui. Ah! Achei. Recomeçou a assobiar; parou para falar: - Ele disse que vi nha visitar dona Gertrudes, depois iria jantar n a cidade. O pai está viajando, você sabe. Eu ent ão disse: jante conosco. Helena e Eduardo também estão hoje lá. Ele aceitou, por isso veio. É um bom camarada; você que é implicante... Ela n ão respondeu; bateu a porta do refrigerador com toda a força e enquanto Fernandinho recomeçava a assobiar, deixou a copa sorrateiramente, atrave ssou o hall quase correndo e entrou no salão; aproximou-se do piano, abriu-o e passou as mãos pelo teclado: “Felizmente não me viu quando pass ei pelo hall, também passei correndo. Antipáti co. Com aquele carão que nem sei o que parece. F eio. Só tem dentes bonitos, mas muita gente tem dentes bonitos. Eu também tenho. Já disse para F ernandinho não convidá-lo para jantar, é inúti l. Convida sempre. Que irei tocar? Não quero fic ar no hall só porque ele está lá. A cara não é f eia... mas não sei o que ele tem que eu não go sto. Vive dando piparotes na Mimosa. Detesto-o. Fernandinho disse que ele não tem espírito de co ntradição, mas eu sei que tem. Ora, então já não percebi? Depois devia tratar melhor a cachorr inha, que coisa! Vou tocar qualquer música viva, palpitante, alegre. Preciso me distrair. Ningué m me compreende, essa é a verdade. Agora é só Helena, Helena, só porque ela vai ter filho... C omigo ninguém se importa, mal falaram comigo. Já estou acostumada; sempre fiquei de lado, sempre . Sempre a segunda em tudo; também não sou bon ita e ela é. Esse Amadeu disse que só gosta de m oças bonitas, por isso que tenho raiva. Pois que fique com as bonitas... Que vem fazer aqui? H elena é casada, seu trouxa... Também por que Fer nandinho convida?” Sem sentir, começou a tocar a Valsa do Adeus: "E eu que queria tocar músicas alegres... É porque estou triste hoje.” Mesmo sem se voltar, pressentiu uma presença estranha ao seu lado; percebeu que era Amadeu e começou a tocar mais depressa do que devia, sem dar atenç ão à música. Quando terminou, voltou-se para s e levantar, mas ele suplicou com voz terna: - T oque outra vez, faça o favor. Gosto tanto desta música. Ela estava séria e quis recusar, mas nã o teve coragem. Tocou melhor, com mais sentiment o; quando terminou, ele explicou: - Minha mãe t ocava isso muito bem e todas as vezes que ouço e ssa música, tenho tantas saudades dela... Corri giu, um pouco embaraçado: - Quero dizer, tenho saudades, mesmo sem a música, mas assim lembro m ais, com tanta intensidade... Faz três anos que ela morreu. Ana Luiza ficou tão comovida que te ve vontade de chorar; Amadeu parecia sempre tão brincalhão, tão cético, arrogante mesmo. Agora p ercebia que decerto ele brincava assim para es conder seus sentimentos mais Íntimos. Pensou: "C oitado! Ele é bom; vai que Fernandinho tem razão ". Olhou-o de lado. Amadeu estava de cabeça bai xa e ela viu-lhe a risca dos cabelos negros do l ado direito da cabeça; os cabelos estavam lisos e, perfumados; pareceu-lhe sentir um leve perf ume conhecido. Perguntou enquanto passava as mão s pelo teclado: - Quer outra? - Naturalmente, se você quiser... - Escute esta. É nova, de Jac ques AIbert. Chama-se "Le petit âne blanc." Minh a professora me ensinou agora; é um burrinho que trota pela estrada. Ele ouviu em silêncio, a c abeça inclinada. Quando ela terminou Amadeu feli citou-a calorosamente: - Muito bem. Você é uma pianista estupenda. Não conhecia essa música. Co mo é mesmo o nome? - "Le petit âne blanc." Jacq ues AIbert. Fernandinho entrou trazendo bebidas para o amigo; ofereceu a Ana Luiza, mas ela rec usou e continuou a passar as mãos sobre o teclad o, brincando. Os dois amigos falaram sobre um caso que se dera na Escola de Medicina uma seman a antes. Ana Luiza observou Amadeu disfarçadamen te; ele estava de pé e a luz dava-lhe sobre o ro sto - "Está arrogante outra vez. Narigudo. Não gosto dele. Pensa que é dono do mundo. Quando f ala, pensa que só ele sabe, ninguém mais sabe. B obão.” E começou a tocar uma musica movimentada de Albeniz; tocava com força para não ouvir a v oz de Amadeu. Queria abafar aquela voz antipátic a, não gostava dele nem um pouquinho "nem a po nta de uma unha." Sorriu a essa idéia pueril. Qu ando parou de tocar, viu o pai, a mãe, Helena, E duardo e os dois amigos atrás dela aplaudindo com entusiasmo; ficou muito vermelha e deixou a sala quase correndo, acompanhada por Mimosa. No dia seguinte, à tarde, foi à casa vizinha onde residia dona Gertrudes. A tarde estava muito bon ita e quente; Ana Luiza ouviu a voz de Tilinha c hamando-a; como sabia que Amadeu não estava lá àquela hora, segurou Mimosa nos braços e foi. C umprimentou dona Gertrudes, a filha com quem ela vivia, e conversou com Tilinha. Foram para a mesa do chá. Mal haviam começado a tomá-lo, Ana Luiza sentiu um baque no peito; ouvira a voz de Amadeu que vinha entrando e brincando com a cach orrinha. Entrou na sala acompanhado por Mimosa , que dava pulos de alegria; Ana Luiza olhou-a e pensou: "Assanhada. Sem vergonha.” Amadeu sent ou-se ao lado da tia e pediu chá; Ana Luiza não falou mais. Não achou mais nada a dizer; viu don a Gertrudes tirar disfarçadamente a dentadura co m o lenço e escondê-la no bolso do casaco. Til inha contava entre risadas que a avó tirava os d entes para comer; as duas haviam rido muito com o caso. Olhou dona Gertrudes; com a boca murch a mastigava com satisfação um pedaço de bolo. Am adeu contava um desastre de automóvel que assist ira pouco antes: - Vi o corpo do camarada volte ar no ar; creio que foi atirado a uns dez metros de distancia. Ofereci meus serviços, mas já hav iam chamado a Ambulância. Tilinha ficou pálida; dona Gertrudes não ouvia bem, era surda. Pediu a Tilinha que contasse outra vez. A menina repet iu a história em poucas palavras, a voz bem al ta. Dona Gertrudes perguntou: - E ele morreu? Tilinha pronunciou bem as sílabas: - Não se sab e ainda, vovó. A ambulância levou o homem. Ela sacudiu a cabeça branca: - Que horror! Mimosa estava passeando sob a mesa; de repente começou a arranhar dona Gertrudes, pedindo colo. Todos o s dias dona Gertrudes brincava com a cachorrinha através da cerca do jardim, dava-lhe balas e a cachorrinha adorava-a, Ana Luiza levantou-se p ara tirar Mimosa do colo de dona Gertrudes, ela pediu: - Deixa, Ana Luiza. Sentiu-se corar qua ndo percebeu Amadeu olhando-a. Acompanhou Tilinh a e foram para o terraço; Tilinha queria a opini ão da amiga para um vestido de baile; Ana Luiza pensou um pouquinho e começou a descrever um v estido muito bonito que vira numa casa de modas: - Azul e rosa. Um amor. Você compra uma... Ou viram a voz da tia chamando Tilinha; quase imedi atamente, apareceu no terraço seguida por duas c riadas: - Não viram a dentadura de mamãe? Perde u. Voltaram à sala e começaram a procurar sob a mesa, sob as cadeiras, em todos os recantos. Na da. Amadeu e a avó olhavam o chão, procurando; j á haviam procurado no terraço e na escada, não estava em lugar nenhum. A avó, a boquinha murch a, afirmava: - Eu estava com ela quando me sent ei na mesa. Tirei para comer o bolo; tenho certe za. Amadeu ficou de quatro no chão: - Então es tá aqui mesmo, vovó. Vamos procurar. Procuraram até atrás das portas; a tia que havia ido ao te rraço, voltou: - A Mimosa está com uma coisa br anca na boca, não será a dentadura? Ana Luiza s entiu um sobressalto. Seria a Mimosa? Correu e c hamou a cachorrinha; num canto do jardim, entre pés de hortênsia, Mimosa estava entretida com qu alquer coisa na boca. Ana Luiza aproximou-se, mas Mimosa correu para outro extremo do jardim; a copeira apareceu, um guardanapo sobre o braço: - A cozinheira deu um osso pra ela roer. O oss o da sopa. Mas Ana Luiza, cada vez mais desconf iada, correu atrás da Mimosa para verificar. De repente gritou: - É a dentadura! A dentadura de dona Gertrudes! A copeira levantou os braços: - Nossa Senhora! A cachorrinha carregou a denta dura de dona Gertrudes! A cozinheira apareceu n a porta da cozinha: - É mesmo a dentadura. Ela correu pra cá. Começou então a corrida atrás da Mimosa; dona Gertrudes de pé no terraço, ria-se mostrando as gengivas cor de rosa: - Olha que cachorrinha levada! Amadeu correu para um lado da casa, dando as ordens: - Cerca daquele lado, Tilinha. Ana Luiza, corra para o outro lado. M imosa adorou a brincadeira; nunca pensou que tod os da casa fossem brincar com ela aquela tarde. Com a dentadura na boca, corria de um lado para outro, a cauda peluda volteando no espaço, pul ando sobre canteiros de cravos, dando pinotes so bre os pés de buxo, escondendo-se sob as hortêns ias. Divertidíssimo. A copeira arremessava o g uardanapo quando ela passava perto, mas qual! Mi mosa corria mais que todos. A arrumadeira procur ava cercá-la: - Ave Maria! A dentadura de dona Gertrudes! E eu pensando que era o osso da sopa. A cozinheira gritava: - Mas eu dei mesmo o os so da sopa, ela trocou... Amadeu corria mais: - Cerca daquele lado, Ana Luiza! Agora pegamos e la! Pega! Mimosa corria mais; saltava canteiro s desafiando todos. Nunca correu tanto. Ana Luiz a ria, mas no intimo, estava furiosa com a cacho rrinha. - "Pestinha! A gente vem fazer visita e ela tira a dentadura de vovó". Chamava às veze s dona Gertrudes de vovó para acompanhar a amiga ; mas corou quando viu Amadeu olhando para ela e rindo: - Você precisa ensinar essa bichinha pa ra que tenha mais educação. Ana Luiza zangou-se ; ia responder, mas a copeira passou correndo, s uando, quase sem fôlego e gritou: - Ela já está cansada, dona Ana Luiza. Agora nós seguramos... A avó perguntava de vez em quando, do terraço: - Não pegaram ainda? E ria. A tia voltou para o terraço e esperou. De súbito, Amadeu berrou: - Peguei! Ah! Diabinha! Dá aqui a dentadura, su a danada. Todos correram para ver. Sem poder se conter, furiosa por causa de Amadeu, Ana Luiza bateu com força na cachorrinha; ela não estava a costumada a ser tratada assim gritou desespera damente. Recriminaram Ana Luiza por bater na Mim osa. Amadeu quis tirar a cachorrinha das mãos de la; Ana Luiza não deixou. Ele então inclinou-se para beijar a cabeça de Mimosa, com pena por e la ter apanhado e beijou a mão de Ana Luiza. A a vó foi lá para dentro com a dentadura nas mãos; todos se dispersaram entre risadas, a tia acon selhava: - Ponha a dentadura na boca, antes que perca outra vez. D. Gertrudes perguntou: - Me smo, sem lavar? Novas risadas. Ana Luiza desped iu-se rapidamente, dizendo que voltaria mais tar de, ouvira a mãe chamando-a. Levou Mimosa. Quan do entrou no jardim de sua casa, começou a chora r; chorou de pena da cachorrinha. Dera nela por causa de Amadeu, se não fosse ele não daria. Cho rou de raiva de Amadeu: "Tenho ódio dele. Ódio . E fez de propósito para beijar minha mão. Por que faz isso se não gosta de mim? Eu sou feia." Chorou ainda mais; subiu correndo as escadas e fechou-se no quarto soluçando. Teve medo que a mãe ouvisse e viesse perguntar por que estava c horando; abriu a porta, espiou o hall e não vend o ninguém, correu para o banheiro e se fechou; a briu as duas torneiras para que o ruído da águ a abafasse seu pranto e chorou alto, num desespe ro. Gina bateu na porta: - Ana Luiza, está sent indo alguma coisa? Ela demorou um pouquinho par a responder, indignada: "Não me deixam tranqüila , nem no banheiro. Por que mamãe vem me importun ar? Eu quero ficar sozinha e chorar. Me deixem ao menos chorar.” - Ana Luiza, o que você tem? - Nada. Fechou as torneiras e se conteve para não chorar mais. Esperou. Não ouviu mais nada; molhou os cabelos para que pensassem que havia t omado banho; depois abriu a porta, espiou nova mente o hall e correu para o quarto: encontrou G ina sentada numa cadeira, esperando. Ficou contr ariada, mas não deu a perceber; virou as costas e começou a pentear os cabelos úmidos, rapidam ente. A mãe olhou-a: - Por que estava chorando, Ana Luiza? Ana Luiza não sabia mentir; respond eu logo: - Porque dei na cachorrinha e depois m e arrependi. - Deu na Mimosa? Por quê? Ana Lui za contou o que Mimosa fizera em casa de dona Ge rtrudes; Gina começou a rir: - E por isso você deu nela? Coitadinha! - Não foi por isso só... - Então por que foi? - Por causa de Amadeu, ma mãe. Ele me provoca tanto que me dá raiva. Fez uma pausa e continuou: - Disse que eu devia dar educação pra Mimosa. Fiquei danada de raiva. - Mas só por isso, filha? Foi brincadeira de Amad eu. Ele gosta de brincar. Ela não respondeu e c ontinuou a passar o pente com força nos cabelos. Houve um silêncio prolongado. De súbito, Gina d isse : - Bem, eu vim aqui por outro motivo. Que ro contar uma história a você. - Uma história, mamãe? Riu-se, mas vendo o rosto sério de Gina ficou séria também; sentou-se na cama e ficou es perando. E pela terceira vez, Gina voltou ao pas sado. Ana Luiza ouviu atentamente, sem interro mper; tinha os olhos fixos no rosto da mãe e sua face impassível, nada revelava. Enquanto Gina p rosseguia na narrativa o cérebro de Ana Luiza es tava em tumulto: "Minha mãe está contando uma coisa horrível. Será mesmo verdade? Eu não sinto nada. Será que não sinto nada? O que havia de s entir? Desgosto? Tristeza? Vergonha? Nada. Ape nas frieza de sentimentos. Sou cínica. Que horro r. Cínica. Estou olhando o rosto da minha mãe, v ejo que só em lembrar, ela sofre, ela respira com dificuldade, ela fica com os olhos lacrimeja ndo e eu nada, absolutamente nada. Então sou cín ica. Devia chorar, sofrer com ela, sentir o que ela está sentindo. Nada. Tenho vergonha de ser assim sem sentimentos. Há muito tempo eu descon fiava que era assim, agora tenho, certeza. Não t enho dó dela. Tenho raiva. Disse que me conta essas coisas porque tem horror à mentira, ao emb uste, à falsidade. Mas ocultar uma verdade não é mentir. Será? Ninguém perguntou nada. Por que c onta? Helena saberá? Fernandinho saberá? O que eles pensarão? Eu não penso nada; se perguntare m, direi que não penso nada, Por que pensar? Há tanta coisa que se precisa pensar, mas isso nã o, não preciso. Tenho raiva dela. Que horror.” Pela janela aberta entrava um vento morno e leva ntava a cortina branca de bolinhas verdes; Mimos a entrou e aninhou-se no tapete ao lado da cama. A voz de Gina parecia cansada; quando termino u, levantou os olhos e fitou pensativamente a co rtina branca; depois olhou para a filha. O rosto sério de Ana Luiza não dizia nada; nem parecia ter ouvido. Gina levantou-se, arrumou umas rou pas que estavam espalhadas sobre a cadeira, deu um piparote no travesseiro um pouco amassado e i nclinando-se sobre a cabeça da filha, beijou-a de leve. Ana Luiza ficou imóvel; depois num ges to de carinho habitual tomou uma das mãos de Gin a e apertou sem uma palavra. Quando ficou só no quarto, continuou sentada no mesmo lugar: "Não quero pensar. Para que? Creio que sou infeliz. N ão sou bonita como Helena, não sei se sou muito inteligente, tenho um gênio esquisito por que tenho raiva de certas pessoas sem ter motivo (pe nsou em Amadeu) e depois... tenho uma mãe assim. .. Não posso ser feliz. Como poderei ser feliz ? Tenho papai e meus irmãos que eu quero bem, Te nho esta Mimosa que me adora mas um dia morrerá, cachorro não dura muito. Ela já tem cinco ano s; um dia morrerá. Todos morrerão porque são mai s velhos do que eu, só eu ficarei no mundo... so zinha... Não me casarei para não... porque nunca poderei gostar de homem algum para casar. Sou infeliz.” Sentiu os olhos rasos d’água. Repeti u: "Todos morrerão. Nunca tinha pensado nisso. C omo é triste pensar... Ficaria sozinha.” Ouviu os passos de Fernandinho que subia a escada de d ois em dois degraus; levantou-se com medo de ser surpreendida nessa atitude triste e num pulo fi cou diante do espelho com o pente na mão. Ele pôs a cabeça no vão da porta: - Ana Luiza, você não vai no coquetel dos Menezes? Deve ser bom. - Ah! Tinha me esquecido. Creio que não. - Vam os. Deve ser bom. Todo o pessoal conhecido vai; vamos. - Estou com uma leve dor de cabeça. Ele dirigiu-se para o quarto, quase gritando: - Um drink cura dor de cabeça; já vou me vestir. Fe chou a porta do banheiro com estrépito. Ela fico u imóvel olhando a própria imagem. Sentia-se tão infeliz... Não. Não iria... Sua mãe,.. O que me smo havia acontecido com sua mãe? Era o mesmo que tivesse morrido... Sua mãe havia morrido par a ela. Não tinha mãe. Ouviu os movimentos de Fer nandinho quando deixou o banheiro; sua voz can tarolada alegremente. De repente perguntou do qu arto, aos gritos: - Ana Luiza, como foi a denta dura de dona Gertrudes? Mimosa correu com ela na boca? E começou a rir; seu riso era tão contag ioso que Ana Luiza riu também. Ele repetiu: - A madeu me contou. Disse que foi formidável, hein? Todo o mundo correndo atrás da bichinha e ela pensando que era brincadeira e correndo mais... Deu uma gargalhada. Ana Luiza resolveu de repen te se vestir. Tirou o vestido e jogou-o sobre a cadeira; abriu o guarda roupa e olhou o vestido branco: "Sim. Vou de branco. Gosto deste vesti do; eu me visto num instante. Cinco minutos. Dez minutos.” - Fernandinho, se você visse a Mimos a com a dentadura, morria de rir. - Eu sei. Ama deu me contou. Você resolveu ir? Deu outra risa da. Depois começou a assobiar enquanto terminava a toilette; Ana Luiza vestiu-se pensando: "Amad eu decerto vai também. Que me importa o Amadeu? Não gosto dele. Nem dele, nem do nome. Eu vou me divertir; preciso me divertir. Sinto-me abafa da. Es-ma-ga-da. Ela fez mal em me contar. Não q uero pensar. Amadeu é espírito de contradição, pensa que só ele sabe as coisas. Não gosto dele . Por que ela me contou? Serei cínica? Parece qu e estou até com raiva.” O irmão perguntou da po rta: - Você está pronta? - Quase. Desceram a escada depressa e despediram-se de Gina; entrara m no automóvel que os esperava. Ana Luiza sentiu um vento fresco no seu rosto; de repente pergun tou: - Se você for chamado, você vai, Fernandin ho? - Se for convocado? Naturalmente que vou. P or quê? - Por nada. Que guerra medonha; queria que já tivesse acabado. O automóvel partiu pela rua asfaltada. Ana Luiza pensou: "Tenho tanto e m que pensar sem ser no caso de mamãe. Se ele fo r para a guerra, por exemplo? Que tristeza. No sso irmão ir combater tão longe... Morrerei de d esgosto." Suspirou e olhou o rosto do irmão; seu perfil se destacava forte e enérgico conduzindo o automóvel através das ruas movimentadas. "I magine se ele morrer na guerra? Não permita, Deu s de Misericórdia.” Uns dias depois, eram quase seis horas e Gina estava sentada no terraço, qu ando ouviu gritos lancinantes da cachorrinha. Le vantou-se sem compreender o que tinha havido e viu umas das criadas aparecer correndo e muito pálida; Mimosa estava inanimada nos seus braços. Contou que enquanto falava com o empregado do e mpório, a cachorrinha saíra para a rua e um au tomóvel passara-lhe por cima, ainda respirava, m as saía sangue da barriga, decerto ia morrer. An a Luiza não estava; o primeiro pensamento de G ina foi chamar um veterinário; a cozinheira e a arrumadeira vieram de dentro para ver o que era. Rodeavam a cachorrinha e uma delas lembrou-se d e passar salmoura; outra disse que não valia a pena, "a bichinha estava nas últimas." Gina, co m a lista telefônica entre as mãos, procurava af litamente o veterinário, quando viu Amadeu no portão; perguntou o que houvera com Mimosa; esta va em visita à avó quando ouviu os gritos. Então mostraram-lhe a cachorrinha que gemia no chão da copa, sobre uns panos que a cozinheira troux era lá de dentro. Amadeu tirou o paletó, arregaç ou as mangas e ajoelhou ao lado do animalzinho, começou um exame atento. Seu rosto adquiriu de súbito uma espécie de rigidez; tornou-se sério e concentrado, parecia empolgado pela profissão. Gina notou a transformação: "como ele gosta d e ser médico. Está se vendo; neste instante não ouve nada, não vê nada, a não ser a cachorrinha doente. Será um grande médico, não há duvida." A madeu pediu iodo; a arrumadeira foi correndo b uscar o vidro no armário do banheiro; ele contin uou examinando os membros de Mimosa, apalpou-os repetidas vezes; disse como se estivesse falan do consigo: "Não. Nada está quebrado.” Escutou o coração da cachorrinha; Mimosa vendo-lhe a cab eça tão próxima da sua, procurou lamber-lhe a or elha; gemia baixinho como a querer contar o que havia sucedido, O rapaz estava assim, ajoelhad o no ladrilho da copa, escutando Mimosa quando A na Luiza entrou; Gina foi ao encontro dela para explicar o que acontecera, mas ela já sabia; u ma das empregadas de dona Gertrudes contara tudo . Estava pálida e perguntou ansiosamente para o grupo reunido na copa: - Morreu? Ninguém respo ndeu; ela empurrou o braço da cozinheira e aprox imou-se mais; Gina acalmou-a : - Amadeu está ex aminando-a. Não morreu e creio que não morrerá. Não é, Amadeu? O rapaz respondeu evasivamente s em levantar a cabeça: - Não há fraturas, foi ma is o choque. Não vai morrer. Os lábios de Ana L uiza tremeram; pensou que estivessem enganando-a ; perguntou: - E esse sangue? - Não é nada dem ais. Saiu de um ferimento pequeno aqui na barrig a. Amadeu falou sem olhar para Ana Luiza; a cac horrinha vendo a dona, abanou a cauda e olhou-a ternamente. Amadeu passou iodo nos ferimentos, s em dar atenção à moça. Ela admirou-se da sisud ez do rapaz, parecia transfigurado pelo trabalho . Irritou-se e dirigiu-se diretamente a ele, o q ue nunca fazia; sua voz era trêmula: - Amadeu, e o ferimento da barriga não é grave? Ele respon deu preocupado: - Não. Aliviada, ela inclinou- se para auxiliá-lo; a cachorrinha gemia por caus a do iodo. A cozinheira segurava a cabeça da Mim osa; do avental dela, vinha um cheiro de alho e cebolas. Ana Luiza sentiu-se mais tranqüilizad a: "Que cheiro bom de cebolas. Amadeu está difer ente hoje. Gosto mais dele assim. Não gosto, mas acho-o mais simpático. Fiz força para não cho rar; não chorarei, ainda mais perto dele. Me rid icularizará com certeza. Todos são bons, todos t iveram pena da Mima. Pobrezinha! Deve estar se ntindo dores. E como me olha..." Inclinou-se mai s e chamou com voz suavíssima: - Mimosinha! Pob re da minha Mimosa! A cachorrinha tornou a agit ar a cauda, depois ficou imóvel, os olhos cerrad os. - Ela vai sarar, Amadeu? - Vai, sim. Uma onda de ternura subiu ao coração de Ana Luiza: " Meu Deus, como ele é bom." Perguntou por pergunt ar, para dizer alguma coisa: - E não quebrou na da mesmo? - Nada. Só choque. Ele afinal levant ou a cabeça e encarou Ana Luiza, o olhar intelig ente e suave: - Pronto. Sua Mimosa está curada. Leve-a para a cesta, tem que ficar imóvel uns d ias, depois ficará completamente boa. As criada s começaram a rir: - Que susto esta bichinha no s pregou! A copeira levantou punho e explicou p ela décima vez: - Também aquele chauffeur não p odia desviar? Desalmado! Eu estava falando com o homem do empório quando Mimosa passou pelas min has pernas; não tive tempo de nada e pronto! O automóvel pegou... Havia satisfação em todas a s faces. Carregaram com cuidado a cachorrinha e levaram-na para o cesto de vime. Gina chamou Ama deu para lavar as mãos e perguntou o que ele p refere: café ou um cálice de vinho do Porto. Ele foi para dentro dizendo que fora uma sorte a ca chorrinha ter escapado. Lavou as mãos, enxugou-a s, desceu as mangas da camisa e vestiu o palet ó. Aceitou um cálice de vinho que Gina ofereceu e saiu dizendo que voltaria no dia seguinte para fazer os curativos. Ana Luiza ficou na copa, debruçada sobre o cesto de vime. Na tarde do di a seguinte, esperou Amadeu; ele chegou perguntan do logo pela doente; ela sorriu: - Está bem mel hor. Levantei duas vezes essa noite para ver se ela estava bem. Papai também foi olhar à meia-no ite, mamãe foi às duas horas. Passou bem; venha ver. Dirigiram-se para a copa e inclinaram-se s obre a cachorrinha; Mimosa sacudiu a cauda e olh ou ternamente as duas cabeças: - Não terá febre ? - Se tiver é muito pouco, vamos ver os ferime ntos primeiro. Tiraram Mimosa da cesta para os curativos; Gina e a copeira foram auxiliar. Amad eu examinou os ferimentos e Mimosa começou a gri tar. Seguravam os braços e as pernas da Mimosa ; a copeira falou: - Dona Ana Luiza está tão pá lida que parece que vai ter alguma coisa... Pre ocupado, Amadeu levantou a cabeça: - Que é isso , Ana Luiza? Ela está melhor, vai sarar nestes t rês dias. Os olhos de Ana Luiza encheram-se de lágrimas e ela tentou um pálido sorriso: - Não posso ver essas coisas, fico nervosa... Cala a b oca, Mimosa. Gina acalmou-a dizendo que Mimosa estava bem melhor, até tomara leite naquela manh ã. Logo estaria boa. Ana Luiza teve vontade de d izer que não estava chorando por causa da Mimo sa; estava comovida pela bondade de Amadeu; só p or isso. Ele olhou Ana Luiza outra vez: - Daqui a uma semana ela não terá mais nada. Terminou os curativos em silêncio; depois lavou as mãos e foi para o terraço; Ana Luiza sentou-se ao lado dele, pensativa. Amadeu repetiu: - Ficará logo curada, mas no primeiro dia tive medo, pensei q ue ela morresse... - Mamãe disse que você foi a dmirável. Se não estivesse em casa de dona Gertr udes naquela hora decerto a Mimosa morreria... - Olhou-o timidamente; ele sacudiu os ombros: - Dona Georgina ia chamar um veterinário e ela fi caria curada da mesma forma. Vamos dar uma volta peio jardim ou você prefere ficar aqui? Juntos desceram a escada e foram ao caramanchão cobert o de buganvílias; sentaram-se um ao lado do outr o, em silêncio. O dia estava no fim. Havia paz e m toda a parte e o mar parecia salpicado de br anco e azul. Sem saber por que, Ana Luiza teve v ontade de chorar e baixou a cabeça; sem dizer um a palavra, Amadeu apertou-lhe uma das mãos. - O que? Ainda está nervosa? Não há razão para is so. Ela, que não podia admitir o mais leve cont ato com Amadeu e nem gostava de dançar com ele, sentiu a pressão das mãos grandes do rapaz sobre a sua e não a retirou. Ficou silenciosa, a mã o esquerda cobrindo os olhos e a direita entre a s dele. Amadeu perguntou, solícito: - Está pens ando na cachorrinha? Ela vai sarar... A voz del a era tremula: - Não é por isso que estou nervo sa... - Então por que é? Aconteceu alguma coisa ? - Não sei. Estou triste, só triste. Ele volt ou-se para ela, sem deixar-lhe a mão: - Engraça do. Eu tenho isso também. Há dias que sinto uma tristeza... e se me perguntarem por que, não sei dizer. Os americanos chamam de "blue". I am blu e... São certos estados d’alma que toda a gent e tem. Talvez os insensíveis não... Há gente que sofre porque perde um negócio, ou dinheiro, ou uma oportunidade boa, mas sabem sempre porque sofrem. Não sofrem por nada... Eu sofro às vezes por nada. Os psicólogos devem ter explicação pa ra isso... - Não é sempre que eu tenho isso... Às vezes só. Ela procurou retirar a mão, mas el e apertou-a com mais força e falou. - Bom. Eu t ambém não tenho isso sempre; de vez em quando. I magine se fosse sempre, seria intolerável. Quem suportaria? Ela sorriu e descobriu os olhos: - Eu pensei que você nunca ficasse triste, você p arece diferente... - Eu, diferente? Por quê? Em que sentido? Então você não me conhece. Ela fic ou embaraçada. - Penso que não conheço mesmo; a chei sempre você era um pouco indiferente a tudo ... Como quem não está ligando. Ele riu-se: - Como quem adota uma atitude de superioridade, nã o é? Isso é muito comum nas pessoas tímidas e eu sou muito tímido. Ela admirou-se - Você é tími do. Amadeu? Não parece. Você parece sempre tão s enhor de si, tão seguro do que diz, do que quer. .. Delicadamente retirou a mão que Amadeu apert ava e procurou um lenço; ele apressou-se em dar- lhe o próprio lenço e ela passou-o sobre os olho s e sobre os lábios. Sorriu e entregou-lhe de novo; quando ele retomou-o, tornou a prender a m ãozinha dela. Ana Luiza baixou a cabeça sentindo -se corar, depois falou um pouco enleada: - Cre io que manchei o seu lenço de batom, nem me lemb rei que era seu. - Isso não tem importância. En tão pareço arrogante, hein? Se ele tivesse dito : "Guardarei o lenço como lembrança desta hora a dorável," ou qualquer coisa assim ela acharia a frase antipática, mas ele apenas dissera "não tem importância" e mudara de assunto. Respondeu animadamente: - Não. Arrogante não, mas nada tí mido. Pensei que os tímidos não falassem muito, conservassem silêncio numa roda grande onde todo s falam muito, nunca procurassem se salientar e você é o contrario. Conversa bastante, dá apar tes, conta histórias. - Então procuro me salien tar? Santo Deus, serei assim? Ela deu uma garga lhada: - Não. Nada disso; você nunca procura sa lientar-se. Conversa, ri, conta um fato ou outro , por isso pensei que não fosse tímido, mas você diz que é... - Sempre fui. Nunca fui muito est udioso, você sabe... Criei um complexo de ignorâ ncia. Sou um ignorante, sempre pensei assim. Mas depois resolvi estudar e aprendi alguma coisa ; então procuro falar sempre para provar que não sou mais ignorante, tenho noções gerais sobre o s assuntos, sei o "porque" de muita coisa. Então falo para provar que sei, tirar esse complexo que me acompanha... Mas por mim, ficava quieto, falava menos e escutava mais. Chega de falar de mim; e você? Não diga, eu sei o que você é. V ocê é quietinha... Não gosta de falar muito, mas observa tudo, vê tudo. É terrível. Ela tornou a rir achando graça: - Eu? Pobre de mim! Nem se i o que está se passando muitas vezes. O que eu observo? Nada. Você está errado a meu respeito, Amadeu. - Não senhora. E vou dizer mais uma coi sinha muito importante: você não gostava de mim. .. Agora não sei se gosta um pouquinho. Ela riu -se mais para disfarçar o embaraço; depois recos tou a cabeça para trás e falou sem olhar Amadeu: - E depois você diz que eu observo. Quem obser va é você. Vê até de mais. Por que foi inventar essa bobagem? - Você nega isso, Ana Luiza? - N egar o que? - Que não gostava de mim? Ela endi reitou-se e olhou-o de frente; fitaram-se nos ol hos. - Amadeu, se há alguém que não goste do ou tro aqui é você. Você não gostava de mim, tenho certeza. Você... Ele inclinou-se para o lado de la e falou bem pertinho: - Meu Deus! Se você fu gia de mim, como é que ia dizer: Ana Luiza não f uja, eu gosto de você. Eu via má vontade em você para comigo. Eu via quase raiva... Eu via ani mosidade... Rapidamente ela retirou a mão e cob riu os olhos: - Então nós dois somos ignorantes ou não entendemos nada de psicologia... Tinha c erteza que você me detestava. No primeiro dia qu e você veio em casa - lembra-se? - Fernandinho trouxe você e apresentou. Começamos a conversar e você disse que não tolerava moças feias... Só gostava das bonitas... Ele segurou as duas mãos de Ana Luiza e apertou-as; riu-se: - Então? - Então Helena era muito bonita e eu não; você de clarou no primeiro dia que não gostava de mim. E u não... não me esqueci. Sentiu os olhos rasos d’água; ele inclinou-se e beijou-a de leve na fa ce ela procurou afastar-se e corou. Ele sorriu: - Ana Luiza, sou mesmo um ignorante. Desde o mo mento que vi você, gostei de você. Gostei muito. .. mas achei você tão altiva, tão inacessível, t ão rude comigo... Falei sem saber o que estava falando, é o tal complexo que me acompanha, mas eu gosto de você e você é muito bonita. Você é linda, Ana Luiza. Para mim, não há ninguém mai s bonita que você. Eu não disse que falo para di sfarçar? Às vezes falo demais e falo errado. Ado ro você... Houve um silêncio; ela recostou-se m elhor no banco e inclinou a cabeça para trás, se m ver nada. Cachos de buganvílias caíam à volta. Amadeu estava ao seu lado e apertava-Ihe a mã o docemente; ela também apertou a mão dele e sor riu. Sentiu uma coisa esquisita tomar conta dela , invadi-la, apoderar-se de todo seu ser. Mas er a delicioso. Delicioso! Voltou devagar a cabeç a e olhou Amadeu; ele estava fitando-a e uma luz também esquisita brilhava-lhe nos olhos. Ele su ssurrou: - Ana Luiza! E puxou-a para .si. Ana Luiza recostou a cabeça no ombro de Amadeu; fica ram imóveis, de mãos dadas, olhando as flores. A na Luiza pensou: "Gosto dele. Amo-o. Amo o Ama deu. Há muito tempo que eu gosto dele, mas não s abia; pensei que não gostasse. Amor. Que mundo e squisito. Será que vamos nos casar? Como é bom a gente recostar a cabeça no ombro dele. Como s ou feliz. Sinto a respiração dele nos meus cabel os, sinto Amadeu perto de mim, me apertando, me apertando. Casarei com ele. Penso que ele me b eijou de leve os cabelos. E se ele quiser me bei jar a boca? Deixo? Sinto-o cada vez mais perto d e mim, mais perto; Sou tão feliz. Quero-o, quero -o só para mim. Amo Amadeu.” Ana Luiza recost ou a cabeça para trás sob a pressão de uma das m ãos de Amadeu que lhe levantava o queixo; os olh os de ambos se cruzaram. Havia tanta luz nos olh os dele uma luz tão irradiante, tão intensa e ao mesmo tempo havia tanta força no seu olhar qu e ela fechou os dela, fascinada, e sentiu sobre os seus os lábios de Amadeu. XXII A casa de Dr. Fernan do estava em festa; às cinco e trinta realizar-s e-ia o casamento de Ana Luiza e Amadeu. Era Sete mbro e o dia estava quente, o ar pesado. Desde cedo chegavam cestas de flores; as salas ficara m floridas, depois o terraço, depois o próprio j ardim. Tudo era belo naquele dia. Telegramas amo ntoavam-se sobre uma bandeja. A noiva estava d iante do espelho do quarto, o longo vestido bran co, o véu, as flores de laranjeira. No quarto do casal, Gina colocou cuidadosamente, sobre os cabelos grisalhos, o chapéu de plumas verdes; se u vestido era longo, de veludo negro. As únicas jóias eram um colar de pérolas que o Dr. Fernand o lhe dera quando se conheceram e na mão esque rda um grande brilhante de tons azulados. Olhou- se demoradamente depois de colocar o chapéu e vi u as rugas no rosto bonito; eram muitas. Suspi rou. Sua missão estava quase cumprida: Helena er a feliz, Fernandinho formar-se-ia em engenharia no próximo ano e agora casava a última filha, su a querida Ana Luiza. Sua vida, daí em diante, seria uma espécie de recapitulação, seria um ret orno, tornaria a viver, desde o principio, na vi da dos netos, seus descendentes. Cada vez esta riam mais distanciados de si pelas circunstância s que os separava, pela idade, pelas idéias mas veria neles a continuação do seu sangue, do seu próprio eu. Tornou a tirar o chapéu para coloc á-lo de novo, pois não ficara bem assentado e pe nsou na primeira neta, a filha de Helena que nas cera seis meses antes. Imaginou Dr. Fernando e ela, já bem velhos, na chácara de Teresópolis, rodeados de netos de várias idades.... Sorriu. O chapéu agora ficara bem, pelo menos parecia mel hor. Ouviu os passos de Helena que vinha subin do a escada e recomendava qualquer coisa à ama q ue carregava a criança. Ouviu os balbucios da ne ta e apressou-se em abrir a porta; Helena esta va diante dela com um longo vestido cor de pérol a e levava na cabeça um chapéu de plumas vermelh as, altíssimas. Nunca vira a filha mais velha tão bonita assim e sentiu orgulho por ela. Depoi s viu a criancinha nos braços da ama e inclinou- se para vê-Ia melhor. Beijou-a de leve, segurand o-lhe a mãozinha. Helena falou, admirada: - M amãe, você está uma beleza. Seu vestido está óti mo; vire um pouco. Ela voltou-se e riu para Hel ena: - Quem está bonita é você, minha filha; Es tá muito bem. Gracinha que viera de S. Paulo pa ra assistir à cerimônia, passou empurrando diant e dela o filho mais novo; riu-se para as duas: - Que troca de cumprimentos são esses (Mostrou a criança à Gina). Olhe, tia Gigina, manchou a go la da blusa; por mais que a gente recomende, não adianta. Criança é criança. Entrou no banhei ro, para lavar a gola do menino. Helena falou: - Meu vestido está bem? - É porque você não sabe meus apuros, mamãe: O leite está saindo sempre e tenho medo que o vestido fique todo molhado na igreja... - Você não pôs qualquer coisa? Ela riu-se: - Olhe como eu estou gorda. Fiz o que p ude, mas não sei se vai valer. Vamos ver a noiva ? Dirigiram-se para o quarto de Ana Luiza; a co stureira dava os últimos retoques no véu que hav ia acabado de colocar. Gracinha entregou o filh o a empregada e voltou ao quarto de Ana Luiza pa ra auxiliar. A arrumadeira acabava de preparar a mala de mão que Ana Luiza levaria na viagem, Apontou vários frascos: - E água de Colônia? Qu al a senhora quer levar? Ana Luiza voltou-se um pouco: - Esse aí de rótulo verde. Esse mesmo. Não se esqueça do perfume que eu falei. Gracinh a, toda de preto, admirava a noiva: - Está lind a, tia Gigina. O vestido cai que é uma maravilha . Ande um pouco, Ana Luiza. Vagarosamente, com muito cuidado, Ana Luiza deu uns passos de um la do para outro para que a admirassem. A cozinheir a apareceu na porta do quarto com Mimosa nos bra ços: - Deixa ver também a noiva. Que beleza! Be nza-a Deus. Ficou como que em êxtase diante de Ana Luiza que sorriu alegremente; depois disse: - Mimosa está bonita com a fita branca. A cozi nheira explicou: - É pra acompanhar a dona; tem que usar fita branca hoje... Riram. Gina falou : - Foi uma pena mamãe não ter podido vir. Fiqu ei triste. Gracinha tomou a contar: - O reumat ismo não deixa, tia Gigina. Ela tem sofrido. Coi tada! Houve um silêncio. Os homens esperavam em baixo; Fernandinho subiu até o meio da escada e gritou olhando o relógio pulseira: - Está quase na hora! Cinco e vinte! Alguém respondeu: - J á vamos! Ana Luiza desceu as escadas acompanhad a por palavras admirativas. Estava um pouco como vida; aproximou-se de Dr. Fernando e apoiou-se n o braço dele; o pai deu-lhe um tapinha na mão: - Então? Estamos quase na hora. Fernandinho a ssobiou de leve quando viu a irmã, depois disse que estava nervoso e foi à sala de jantar tomar um gole de vinho. Eduardo dirigiu-se a Helena e perguntou pela criança; ela disse que estava l á em cima, quase adormecida. Num gesto carinhoso , endireitou-lhe o laço da gravata. Gina e Graci nha percorreram mais uma vez a sala de jantar, depois o terraço e o salão; tudo estava determi nado para a recepção e os garçons passavam de um lado para outro sem ter nada que fazer. No jard im havia muitas mesas sob toldos listados e a chuva que ameaçara às duas horas, havia desapare cido. A tarde estava clara e mais fresca; no céu , nuvens brancas e volumosas quedavam imóveis, como que indecisas. Todas as fisionomias pareci am alegres à idéia de que a chuva não caíra, a t arde estava bonita e a festa seria um sucesso. H avia flores por todos os recantos da casa e do jardim; flores aos montes nas jarras e nas mesa s; e um perfume agradável se espalhava por toda a parte, uma mistura de flores com o das geléi as, bolos e cremes. Gracinha inclinou-se para ar ranjar mais uma vez os cabelos dos filhos e reco mendou-lhes que entrassem na igreja como Ana L uiza havia ensinado: vagarosamente, acompanhado a música, e olhando para a frente, bem comportad os e corretos. Eram um menino e uma menina encan tadores. Gina perguntou se a mancha da gola ha via desaparecido; Gracinha disse que sim, quase. Fernandinho olhou mais uma vez o relógio: - Já estamos atrasados; papai. Cinco e meia! Até che gar à igreja... Dr. Fernando havia se afastado e procurava qualquer coisa entre os telegramas a montoados na mesa fez um gesto para que Gina se aproximasse. Tirou um telegrama, uma carta rec ebida essa manhã e dois cartões; Gina olhou-os c uriosa: eram de Pinheiral. Uns enviavam votos de felicidades, outros davam apenas - parabéns. A carta era um convite do antigo Juiz de Direito e de dona Sinhá; enviavam também felicitações e convidava-os para passar uma temporada com eles . Haviam comprado uma fazenda nas imediações e o Juiz terminava: "Consideramos uma honra e uma grata felicidade poder hospedá-los em nossa faz enda por quanto tempo os amigos quiserem. Não é como Pinheiral, é simples e pequena, mas ofere cida de coração.” Gina leu duas vezes, olhou o marido sem dizer nada; Dr. Fernando apenas comen tou: - Ainda não se esqueceram de nós... - Vam os, mamãe. Gina não teve tempo de pensar; foi p ara a igreja com os padrinhos do genro que estav am no portão, esperando. Os automóveis estavam e nfileirados na frente da casa; Dr. Fernando de u o braço à filha: - As noivas sempre se atrasa m. Vamos, filhinha. Durante a cerimônia, Gina n ão pôde deixar de lembrar de seu próprio casamen to numa igreja de Buenos Aires, os dois sozinhos , isolados, tendo por padrinhos dois desconhecid os. Fizera tudo para que as filhas tivessem ou tro caminho e conseguira; o das filhas era brilh ante e fácil. Sem obstáculos. Ali estava sua seg unda filha. Sentiu uma leve emoção, mas procur ou reprimi-la: "Devo estar contente hoje, não de vo chorar. Como Amadeu está simpático... Quando me lembro que Ana Luiza fugia dele... tenho at é vontade de rir. As fugas acabaram em casamento . Vão ser felizes; os dois são bons, ele tem uma bela carreira diante de si... Médico e com o no me do pai, irá longe. E ela, a minha filhinha é boa, carinhosa, bem educada e tem no coração, um tesouro de ternura. Como vão se amar! Mas par a mim, Ana Luiza mudou; mudou um pouquinho, é verdade, mas mudou. Desde aquele dia que eu cont ei meu passado, ela não é a mesma, seu espírito amadureceu. Ficou magoada, percebi desde o princ ípio. Muitas vezes ela me beijava e me abraçav a com força assim, área, para distribuir um pouc o desse tesouro que trás no coração... Mas desde esse dia notei bem, desde esse dia... nunca m ais me beijou, nem disse: mamãezinha querida... Só me beija à noite quando se despede para ir do rmir. Percebi muito bem, mas não digo nada, não me queixo. Para que? As mães devem fingir que não percebem muitas coisas. E depois... eu criei a situação. Eu fui a culpada. Helena e Fernandi nho continuaram os mesmos; Fernandinho tornou- se ainda mais carinhoso, mais amoroso para mim, e Ana Luiza, minha caçulinha, aquela que eu semp re acreditei que me compreenderia melhor porque tinha mais coração, não me perdoou. Estarei en ganada? Não. Percebi tão bem, percebi tudo; talv ez porque essa ainda seja muito moça e não conhe ça o mundo... Mais tarde deve mudar, tenho qua se certeza. O que o padre estará falando? Precis o prestar atenção. Conselhos... Conselhos... Os noivos estarão ouvindo? Amadeu está tão sério, t ão concentrado. Ela não devia contar nada a An a Luiza. Por quê? Fernando disse que eu fizesse o que entendesse e eu achei melhor falar. Não po sso esconder, simular, mentir. Fui sempre assi m: franca demais, sincera demais, até contra mim mesma, Fernandinho irá mesmo para a África? Ele disse que irá como engenheiro, mas eu não que ria que ele fosse nem como engenheiro. Oh! Deus de Misericórdia e de bondade, livrai os meus fil hos de todos os males e de todos os horrores. E das doenças também, e de tudo o que possa fazê -los infelizes. Neste momento feliz da minha vid a, deponho meu coração aos vossos pés. Quero sof rer por eles, por meus filhos; todo o mal que tiver que recair sobre qualquer deles, que recai a sobre mim, sobre este coração de mãe, porque a cima de tudo, na vida fui mãe e mãe amorosíssima . Perdoe se peço essas coisas assim neste mome nto, durante o casamento de Ana Luiza, mas peço- vos que livre meus filhos e aqueles a quem eles estão ligados, de todo o mal. Amém. Ainda não terminou a cerimônia. Peço-vos também longa e fe liz vida ao meu marido, aos meus netos e não se esqueça desses meus pedidos neste momento solene . Vós bem conheceis a minha vida, sabeis que n asci na pobreza e vivi muitos anos na adversidad e. Tive tudo contra mim e apesar disso, desde qu e vivi num mundo melhor, procurei sempre eleva r meus filhos, ensinar-lhes religião, dar-lhes o que nunca tive na minha infância e na minha ado lescência: um lar feliz. Quantas vezes me esforc ei por aprender, para não voltar àquele tempo, pelos meus atos pelas minhas palavras, para que meus filhos ou meu marido nunca sofressem por m inha causa. Vós sabeis disso muito bem. Afaste i minhas velhas amizades porque achei que podiam ser perniciosas às minhas filhas. Por exemplo: Pascoalina a quem sempre quis tanto bem, mas diz ia nomes horríveis; a Lolô que me ensinou um p ouco de francês, mas tinha modos tão livres. E n o entanto eu gostava imensamente delas deliberad amente afastei-me e quando vou a S. Paulo não as procuro, apesar das saudades que sinto dessas amigas, mas não quero contaminar a pureza das m inhas filhas. Adoro a pureza. Adoro a candura. Adoro tudo o que é belo e puro e bom no mundo. E às vezes fico pensando: nasci meio pobre e tri ste, mas Deus teve pena de mim. Amém." Gina incl inou-se levemente e as plumas verdes ondularam sobre sua cabeça; o marido pensou que ela estiv esse chorando e tocou-lhe o braço num gesto cari nhoso. A cerimônia havia terminado. Quando o co rtejo se formou para deixar a igreja, Ana Luiza percebeu que Gina tinha lágrimas nos olhos, "Coi tada de mamãe. Está comovida. Tenho vontade de d izer a ela: Não chore, mãezinha. Sou tão feliz ..." Não sei por que ela me contou o passado, só para tirar-me as ilusões. Eu era tão orgulhosa. .. E agora sinto-me até humilhada. Decerto foi por isso que ela me contou, para quebrar-me o o rgulho. Mas ela é admirável, tão firme sempre na s suas resoluções, tão segura de si, tão confian te em tudo. Venceu... E venceu brilhantemente. É admirável. Procurarei ser como mamãe; procura rei ter a mesma presença de espírito, a mesma ca lma, o mesmo critério, a mesma segurança, a me sma maneira de encarar os acontecimentos, por pi ores que se apresentem. Serei como mamãe, uma tr iunfadora. Terei a mesma distinção, o mesmo so rriso, a mesma sóbria elegância. Amadeu é um pal mo mais alto do que eu e eu o adoro! Todas as pe ssoas que têm confiança em si, vencem sempre. E eu que às vezes tinha raiva de Amadeu; já era amor e eu não sabia. Meu amor! Pensei que ele nã o gostasse de mim, mas quando ele tratou de Mimo sa com tanto carinho e me viu chorar e teve pe na de mim, percebi que ele me queria. Então vi q ue tudo o que sentia antes e pensava que era rai va, era amor. Que amor eu tenho por ele! Como é bonita esta marcha nupcial de Mendelssohn! Tod os os olhares estão fixos agora na minha pessoa. Olham para meu vestido, para meu rosto, para tu do. Passarei com toda a firmeza pelo braço do meu marido. Meu. Deus! Amadeu é meu marido! Não estarei sonhando? Ele olhou para mim e sorriu; e stou um pouco trêmula, só um pouquinho, estou ac hando extraordinário ser esposa dele. Vamos pa ssar entre alas de convidados e lírios brancos q ue fenecem entre ramos verdes. Ouço a marcha Nup cial de Mendelssohn e sinto alegria no meu cor ação. Ouço sussurros entre os convidados, vejo o ndular plumas e flores nos chapéus de senhoras, não distingo nada, vejo tudo em conjunto e só se i que sou esposa de Amadeu, meu marido muito q uerido. Sinto que caminham atrás de nós, papai e mamãe, nossos padrinhos, minha irmã Helena dand o o braço a Eduardo. Sinto-me tão feliz que at é tenho medo de morrer, ouço a música e ando dev agar, arrastando meu longo vestido branco que va i varrendo o tapete vermelho. Amadeu acha que estou muito séria, fala qualquer coisa e sorri t ernamente para mim. Olhamos um para outro e entr amos no automóvel. Durante o percurso, ele pega minha mão e beija várias vezes, tão apaixonada mente. Pergunto baixinho: "Será que somos marido e mulher?" Ele não respondeu, apenas aperta min ha mão entre as dele e sussurra ao meu ouvido: "Minha adorada mulherzinha.” A recepção decorr eu animada. Gracinha preocupada com os filhos, v igiava-os; o menino derramou sorvete na roupa e ela levou-o para dentro. Nos grupos espalhados p elos cantos do salão, comentava-se a guerra; f alava-se sobre a invasão da Europa. Uns davam op iniões desanimadoras, outros menos pessimistas, achavam que a guerra estava no fim. Fernandinh o num grupo de jovens dizia que seguiria em brev e para a Itália. Dois rapazes iriam como corresp ondentes de guerra; um terceiro declarou que sen tia inveja dos que partiam. Outro levantou a t aça dizendo: - Aos soldados do Brasil que lutam pela Liberdade dos povos! Um perfume sutil esp alhava-se por toda a casa. Fernandinho respondeu : - À nossa vitória! Ana Luiza e Amadeu, junto à mesa principal, estavam rodeados de convidado s. Viram vovó Gertrudes lá no outro lado, sentad a numa poltrona, tendo ao lado, duas filhas. J á havia feito desaparecer a dentadura que com ce rteza estava no bolso do casaco, e comia, com a boca murcha, um grande pedaço de bolo de noiva. Seu queixo subia e descia em movimentos rítmic os, indiferente ao que pudessem pensar da sua fa lta de dentes: Ana Luiza e Amadeu riram. No tape te, encostada à sua saia, Mimosa estava sentad a, com o olhar desiludido. O laço de fita branca caía na frente do pescoço, quase até o chão; ti nha um olhar admirativo e ao mesmo tempo receoso , para toda aquela gente tão desassossegada. Gina e Dr. Fernando conversavam no salão princip al com um grupo de amigos; Helena subiu para ama mentar a criança, depois desceu e contou ao mari do que a menina estava dormindo "com as mãozin has assim”. E fechou as duas mãos sobre o peito; Eduardo achou graça. Muitos convidados subiram para ver os presentes que se alinhavam, inúmeros , no quarto que fora de Helena. No escritório de Dr. Fernando, que dava para o salão, um grup o de pessoas trocava idéias sobre vários assunto s. Dr. Frederico já havia cumprimentado os donos da casa; agora conversava com um Ministro. De repente o Ministro perguntou: - Conhece dona G eorgina, a senhora do Dr. Fernando? Antes de ou vir algumas respostas, continuou: - Acho-a tão bonita e tem um ar de tanta distinção que admiro . Lembrou-se: - Ela é de S. Paulo. O amigo tamb ém é de lá, não a conheceu? Fred olhou os livro s alinhados nas estantes do escritório e respond eu com indiferença: - Conheci muito dona Georgi na. Há muitos anos quase desde criança. O Minis tro insistiu: - De família conhecida? Fred res pondeu sem hesitar: - Família conhecida, sim. P obre, sabe? Sem aparência mas gente distinta. O Ministro sorriu triunfante: - Logo vi. A disti nção é nata, meu caro. Ninguém adquire, nasce-se com ela. Ou a pessoa é bem nascida ou não é. De monstra nos menores gestos, nunca me engano. Fr ed concordou: - Tem razão. O Ministro convidou : - Vamos tomar qualquer coisa? Fred pareceu de spertar: - O que? Champanhe? - Eu preferia um refresco ou água Mineral. Uma laranjada, talvez. - Vamos. Viram Gina de pé conversando com out ras pessoas no fundo do salão; seu rosto ainda e ra belo, emoldurado por muitos cabelos brancos; tirara os óculos a pedido dos filhos "assim ma mãe fica mais bonita" e sorria para os convidado s. O Ministro, num gesto discreto, indicou-a: - Uma grande dama! Fred repetiu como um eco: - U ma grande dama! E inclinou-se levemente para qu e o Ministro passasse em primeiro lugar. Este livro foi composto e impresso nas oficinas da E mpresa Gráfica da "Revista dos Tribunais" Ltda., à rua Conde de Sarzedas, 38, São Paulo, para a Editora Brasiliense Ltda., em 1945.