MENINO DE ENGENHO José Lins do Rego Verbo Digitalização e Arranjo Agostinho Costa JoSÉ LINS DO REGO Cavalcanti nasceu em Pilar, na Paraíba, em 1901, e morreu no Rio de Janeiro, em 1957. Dos dois tipos dominantes no moderno ronance brasileiro - o romance regional e provinciano, e o romance urbano, de ambiente burguês ou operário -, é no primeiro que Lins do Rego se integra juntamente com Jorge Amado, Graciliano Ramos, Raquel de Queirós e o Erico Veríssimo de O Tempo e o Vento, entre os principais), como um notável representante do romance do Nordeste. Com a sua primeira obra, Menino de Engenho (1932), inicia o Ciclo da Cana-de-Açúcar, depois completado por Doidinho (1933), Banguê (1934), Moleque Ricardo (1935) e Usina (1936). Nesta extensa série é retratada a evolução de um Nordeste sujeito a profundas transformações económicas e sociais, um Nordeste semifeudal, cuja sociedade se vai desmoronando com o advento da máquina e de uma nova concepção do trabalho. Através do clima de determinismos que preside aos acontecimentos, o espírito revolucionário e político do escritor emana espontaneamente do drama que relata, sem se valer de qualquer proselitismo político, sem se deixar arrastar por qualquer demagogia intransigente: Lins do Rego traça com igual firmeza e imparcialidade o menino de engenho, os moleques do pastoreio ou o próspero usineiro. Concluído o ciclo, seguem-se vários romances rurais, mas sem a mesma intenção: Pureza (1931), onde passa dos campos de monocultura, dos sertões batidos pelas secas, para o interior das florestas; Pedra Bonita (1938), que é das suas obras tecnicamente mais perfeitas; Riacho Doce (1939); Água-Mãe (1941) e Fogo Morto (1943), considerado o seu melhor romance. Eurídice (1947) tem por cenário o Rio de janeiro; com Cangaceiros (1953), o romancista volta ao interior e à literatura regional. Para além da sua obra romanesca, José Lins do Rego trabalhou no Rio como cronista em diversos jornais, tendo igualmente publicado vários livros de crónica e ensaio: Gordos e Magros (1942), Poesia e Vida (1945), Homens, Seres e coisas (1952), A Casa e o Horaem (1954), Presença do Nordeste na Literatura Brasileira (1957) e O Vulcão e a Fonte (obra póstuma, 1958). Membro da Academia Brasileira de Letras, Lins do Rego tem muitas das suas obras traduzidas e é um dos grandes nomes da literatura de língua portuguesa. Menino de Engenho (C) Livros do Brasil e Editorial Verbo. Composto e impresso por Gris, Impressores 1971 Lisboa José Américo de Almeida Jorge de Lima Gilberto Freyre Olívio Montenegro 1 Eu tinha uns quatro anos no dia em que minha mãe morreu. Dormia no meu quarto, quando pela manhã acordei com um enorme barulho na casa toda. Eram gritos e gente correndo para todos os cantos. O quarto de dornir de meu pai estava cheio de pessoas que eu não conhecia. Corri para lá e vi minha mãe estendida no chão e meu pai caído em cima dela como um louco. A gente toda que estava ali olhava para o quadro como se estivesse a assistir a um espectáculo. Vi então que minha mãe estava toda banhada em sangue, e corri para beijá-la, quando me pegaram pelo braço com força. Chorei, fiz o possível para livrar-me. Mas não me deixaram fazer nada. Um homem que chegou com uns soldados mandou então que todos saíssem, que só podia ficar ali a Polícia e mais ninguém. Levaram-me para o fundo da casa, onde os comentários sobre o facto eram os mais variados. O criado, pálido, contava que ainda dormia quando ouvira uns tiros no primeiro andar. E, correndo para cima, vira o meu pai ainda com o revólver na mão e a minha mãe ensanguentada. "O doutor matou a Dona Clarisse! Porquê?" Ninguém sabia compreender. O que eu sentia era uma vontade desesperada de ir para junto de meus pais, de abraçar e beijar minha mãe. Mas a porta do quarto estava fechada, e o homem sisudo que entrara não permitia que ninguém se aproximasse dali. O criado e a ama, diziam, estavam lá dentro em interrogatório. O que se passou depois não me ficou bem na memória. 9 À tarde o criado leu para a gente da cozinha os jornais com os retratos grandes de minha mãe e de meu pai. Ouvi como se aquilo fosse uma história de Trancoso. Pareciam-me tão longe, já, os factos da manhã, que aquela narrativa me interessava como se não fossem os meus pais os protagonistas. Mas logo que vi na página de um dos jornais a minha mãe, estendida, com os cabelos soltos e a boca aberta, caí num choro convulso. Levaram-me então para a praça que ficava perto de minha casa. Lá estavam outros meninos do meu tamanho e eu brinquei com eles a tarde toda. As criadas é que conversavam muito sobre o meu pai e a minha mãe, contando umas às outras coisas a que eu não prestava atenção, pois no que eu cuidava era nos meus brinquedos com os amigos. Na hora de dormir foi que senti de verdade a ausência da mãe. A casa vazia e o quarto dela fechado. Um soldado tomando conta de tudo. As criadas da vizinhança queriam vir conversar por ali. O soldado não consentia. Deitaram-me a dormir, sozinho. E o sono demorou a chegar. Fechava os olhos, mas faltava-me qualquer coisa. Pela minha cabeça passavam, às pressas e truncados, os sucessos do dia. Então começava a chorar baixinho para o travesseiro, um choro abafado, de quem tivesse medo de chorar. 2 Ainda me lembro de meu pai. Era um homem alto e bonito, com uns olhos grandes e um bigode preto. Sempre que estava comigo, era a beijar-me, a contar-me histórias, a fazer-me as vontades. Tudo dele era para mim. Eu mexia nos seus livros, sujava as suas roupas, e meu pai não se importava. Às vezes, porém, ele entrava em casa calado. Sentava-se numa cadeira ou passeava pelo corredor com as mãos atrás das costas, e discutia muito com minha mãe. Gritava, dizia tanta coisa, ficava com uma cara de raiva que me fazia medo. E minha mãe ia para o quarto aos soluços. Eu não sabia compreender o porquê de toda aquela discussão. Sei que, daí a pouco, lá estava ele com a minha mãe aos beijos. E o resto da noite, até me ir deitar, era só com ela que ele estava, com os olhos vermelhos de ter chorado também. Eu amava-o, porque o que eu queria fazer ele o consentia, e brincava comigo no chão como um menino da minha idade. Depois é que vim a saber muita coisa a seu respeito: que era um temperamento de excitado, um nervoso, para quem a vida só tivera o seu lado amargo. A sua história, que mais tarde conheci, era a de um arrebatado pelas paixões, a de um coração sensível de mais às suas mágoas. Coitado de meu pai! Parece que o vejo quando saiu de casa com os soldados, no dia do seu crime. Que ar de desespero ele levava no rosto de moço! E o abraço doloroso que me deu nessa ocasião! Vim a compreender, por aquele tempo, 10 11 por que razão se deixara levar ao desespero. O amor que tinha pela esposa era o amor de um louco. O seu lugar não era no presídio para onde o levaram. O meu pobre pai, dez anos depois, morria na casa de saúde, liquidado por paralisia geral. 3 Todos os retratos que tenho de minha mãe não me dão nunca a verdadeira fisionomia que eu guardo dela - a doce fisionomia daquele rosto, daquela melancólica beleza do seu olhar. Ela passava o dia inteiro comigo. Era pequena e tinha os cabelos pretos. Junto dela eu não sentia necessidade dos meus brinquedos. Dona Clarisse, como lhe chamavam os criados, parecia mesmo uma figura de estampa. Falava para todos com um tom de voz de quem pedisse um favor, mansa e terna como uma menina de internato. Criara-se num colégio de freiras, sem mãe, pois o pai ficara viúvo quando ela ainda não falava. Filha de senhor de engenho, parecia mais, pelo que me contavam dos seus modos, uma dama nascida para a reclusão. À noite ela fazia-me dormir. Adormecer nos seus braços, ouvindo a surdina daquela voz, era o meu requinte de sibarita pequeno. Ela enchia-me de carícias. E quando o meu pai chegava, nas suas crises, exasperado como um pé-de-vento, eu via-a chorar e pronta a esquecer todas as intemperanças verbais do seu marido. Os criados amavam-na. Ela também os tratava com uma bondade que não conhecia mau humor. Horas inteiras eu fico a pintar o retrato dessa mãe angélica, com as cores que tiro da imaginação, e vejo-a assim, ainda tomando conta de mim, dando-me banhos e vestindo-me. A minha memória ainda guarda detalhes bem vivos que o tempo não conseguiu destruir. 12 13 O seu destino fora cruel: morrer como morreu, vítima de excesso de cólera do homem que tanto amara; e depois, cheia de pudor e de recato, a encher as folhas de sensação, com o seu retrato, com histórias mentirosas da sua vida íntima. A morte de minha mãe encheu-me a vida inteira de uma melancolia desesperada. Porque teria sido com ela tão injusto o destino, injusto com uma criatura em que tudo era tão puro? Esta força arbitrária do destino ia fazer de mim um menino meio céptico, meio atormentado de visões ruins. 4 Três dias depois da tragédia levaram-me para o engenho de meu avô materno. Eu ia ficar ali a morar com ele. Um mundo novo se abria para mim. Lembro-me da viagem de comboio e de uns homens que iam connosco no mesmo carro. O tio Juca, que fora buscar-me, contava a história, afirmando que o meu pai estava doido. Todos olhavam para mim com um grande pesar. - Eu avalio como deve estar o coronel Cazuza - dizia um deles. - Naquela idade, a sofrer destas coisas! Compreendi que falavam do meu avô, - Um homem de bem como ele e tão infeliz com a família! O meu tio Juca ficava calado. E a conversa mudava para o Inverno que corria bem, para os partidos de cana. E, depois, para a política. O comboio era para mim uma novidade. Eu ficava à janelinha do vagão a olhar os matos correndo, os postes do telégrafo, e os fios baixando e subindo. Quando chegava a uma estação, ainda mais se aguçava a minha curiosidade. Passavam meninos com roletes de cana e bolos de goma, e gente apressada a dar e a receber recados. E uma porção de pobres a receber esmolas. Uma mulher chegou-se para mim, e toda cheia de brandura: - Que menino bonitinho! Onde está a sua mãe, meu filho? Tive medo da velha. E a saudade de minha mãe fez-me chorar. A pobre afastou-se, espantada, dizendo para os outros que já tinha estranhado. 14 15 O meu tio levou-me a beber qualquer coisa. E a viagem continuou a divertir-me como dantes. - Agora vamos apear-nos - disse-me ele. E na primeira paragem deixámos o comboio, com grande pena para mim. Na estação estava um pretinho com um cavalo, trazendo umas esporas, um chicote e um pano branco. Meu tio estendeu o pano branco na anca do animal, montou, e o pretinho atirou-me para a garupa. Era o meu primeiro treino de equitação. - O engenho fica ali perto. Eu ia reparando em tudo, achando tudo novo e bonito. A estação ficava perto de um açude coberto de uma camada de verdura. Os matos estavam todos verdes e o caminho cheio de lama, e havie poças de água. Pela estrada estreita, por onde nós íamos, de vez em quando atravessava um boi. Meu tio dizia-me que tudo aquilo era do meu avô. E um pouco adiante, avistava-se uma casa branca e um bueiro grande. - É ali o engenho, mas nós temos que andar um bocado. A minha mãe falava-me sempre do engenho como de um bem do céu. E uma negra que ela trouxera para criada sabia tantas histórias de lá, das moagens, dos banhos de rio, das frutas e dos brinquedos, que me acostumei a imaginar o engenho como qualquer coisa de um conto de fadas, de um reino fabuloso. Quando cheguei, com o meu tio Juca, ao pátio da casa, o alpendre estava cheio de gente. Apeámo-nos e uma mulher muito parecida com a minha mãe logo me abraçou e beijou. Sentado numa cadeira, perto de um banco, estava um velho a quem me levaram para receber a bênção. Era o meu avô. Uma porção de moleques olhavam-me admirados. E andei de mão em mão, olhado e examinado da cabeça aos pés. Levaram-me para a cozinha. As negras queriam ver o filho de Clarisse. Foi uma festa na casa. - Vai mostrar o menino à tia Galdina! E conduziram-me para um quarto na dependência da casa-grande. Era um quartinho escuro, com cheiro a coisa abafada. Lá dentro estava uma negra velha deitada. - Tia Galdina, olhe aqui o menino de Dona Clarisse. Chegou com o doutor Juca, de Recife. A velha chamou-me para junto da cama, olhou-me de pertinho como um míope que quisesse ler com atenção, e caiu num choro angustiado. - É a cara da mãe, meu Deus! Saí chorando do quarto da velha. A moça que se parecia com a minha mãe, e que era a sua irmã mais nova, levou-me para mudar de roupa. - Agora vou ser a tua mãe. Você vai gostar de mim. Vamos, não chore. Seja homem. E abraçou-me e beijou-me, com uma ternura que me fez lembrar os beijos e os abraços de minha mãe. Da minha maleta tirou um pijama e vestiu-mo, penteou-me os cabelos desgrenhados. - Vá brincar com os moleques no copiá. Os moleques estavam à minha espera, mas não se aproximavam de mim. Desconfiados, eles olhavam para o meu pijama, para os meus alamares, encantados, talvez, com a minha pompa. Porém, aos poucos, foram-se chegando, e pela tarde já estavam na intimidade. E fomos à horta para apanhar goiabas e jambos. O que chamavam de horta era um grande pomar. Muito da minha infância eu iria viver por ali, por debaixo daquelas laranjeiras e jaqueiras gordonas. O meu sono dessa noite foi curto. De manhã levaram-me para tomar leite ao pé da vaca. Era um leite de espuma, ainda morno da quentura materna. O meu avô andava vestido com um grande e grosso sobretudo de lã, falando com uns, dando ordens a outros. Uma névoa como fumaça cobria os matos que ficavam nos altos. Os moleques das minhas brincadeiras da tarde estavam todos ocupados, uns levando latas de leite, 16 17 outros metidos com os pastores no curral. Tudo aquilo para mim era uma delícia - o gado, o leite de espuma morna, o frio das cinco horas da manhã, a figura alta e solene de meu avô. Tio Juca levou-me a tomar banho no rio. Com uma toalha no braço e um copo grande na mão, chamou-me para o banho. - Você precisa de se tornar matuto. Descèmos uma ladeira para o Paraíba, que corria num fino fio de água pelo areal branco e extenso. - Vamos para o Poço das Pedras. Pouco mais adiante, debaixo de um marizeiro, de copa arrastando no chão, lá estava uma destas piscinas que o curso e a correnteza do rio cavava nas suas margens. E foi aí, com tio Juca, que bebeu, antes do seu banho, um copo cheio de remédio para o sangue, que tinha ficado ao relento, que entrei em relação íntima com o engenho de meu avô. A água fria do rio, àquela hora, deixou-me o corpo a tremer. Meu tio então começou a atirar-me para o fundo, ensinando-me a nadar. Daquele banho ainda hoje guardo uma lembrança à flor da pele. De facto, para mim, que me criara nos banhos de chuveiro, aquela piscina cercada de mata verde, sombreada por uma vedação ramalhuda, só poderia ser uma coisa do outro mundo. No regresso, o tio Juca dizia, rindo-se: - Agora você já está baptizado. Quando chegámos a casa o café estava pronto. Na grande sala de jantar estendia-se uma mesa comprida com muita gente preparada para a refeição. O meu avô ficava do lado direito e a minha tia Maria na cabeceira. Tudo o que era para se comer estava à vista: cuscuz, milho cozido, angu, macacheira, requeijão. Não era, porém, somente a gente da família que ali se via. os homens, de aspecto humilde, ficavam na outra extremidade, comendo, calados. Depois seriam eles os meus bons amigos. Eram os oficiais carpinas e pedreiros, que também se serviam como o senhor de engenho, nessa boa e humana camaradagem do repasto. 5 Eu tinha sido criado num primeiro andar. Todo o meu conhecimento do campo fizera-o nuns passeios de eléctrico a Dois-Irmãos. E era com olhos de deslumbrado que olhava então aqueles sítios, aquelas mangueiras e os meninos que via brincando por ali. As divergências de meu pai com meu avô nunca permitiram à minha mãe fazer uma temporada no engenho. Minha imaginação vivia assim a criar esse mundo maravilhoso que eu não conhecia. Sempre que perguntava a minha mãe porque não me levava para o engenho, ela desculpava-se com o emprego de meu pai. Daí a impressão extraordinária que me iam causando os mais insignificantes aspectos de tudo o que via. Depois do café mandaram-me para o engenho, que ficava nos fins da moagem. Eram uns restos de cana que aproveitavam. - Quase que você não encontra o engenho trabalhando - disse-me o tio Juca. Ficava a fábrica bem perto da casa-grande. Um enorme edifício de telhado baixo, com quatro biqueiras e um bueiro branco, a boca cortada em diagonal. Não sei porque os meninos gostam tanto das máquinas. Minha atenção inteira foi para o mecanismo do engenho. Não reparei em mais nada. Voltei-me inteiro para a máquina, para as duas bolas giratórias do regulador. Depois comecei a ver os piradeiros atulhados de feices de cana, o pessoal da casa das caldeiras. Tio Juca começou a mostrar-me como se fazia o açúcar. Mestre Cândido com uma cuia de água de cal que ia deitando nas tachas 18 19 e as achas a ferver, o cocho com o caldo frio e uma fumaça cheirosa a entrar pela boca da gente. - É aqui onde se cozinha o açúcar. Vamos agora para a casa de purgar. Dois homens levavam caçambas com mel batido para as formas estendidas em andaimes com furos. Ali mandava o purgador, um preto, com as mãos metidas na lama suja que cobria a boca das formas. Meu tio explicava como aquele barro preto fazia o açúcar branco. E os tanques de mel de furo, com sapos ressequidos por cima de uma borra amarela, deixaram-me uma impressão de nojo. Andámos depois pela boca da fornalha, pela bagaceira coberta de um bagaço ainda húmido. Mas o que mais me interessava ali era o maquinismo, o movimemto ronceiro da roda grande e a agitação febril das duas bolas do regulador. Quando vieram chamar-me para o almoço, ainda me encontraram encantado diante da roda preguiçosa, que mal se arrastava, e das duas bolas alvoroçadas, que não queriam parar. 6 Com uns dias mais, eu já estava senhor da minha vida nova. Tinham chegado para passar um tempo no engenho uns meus primos, mais velhos do que eu: dois meninos e uma menina. Agora não era só com os moleques que me acharia. Meus dois primos, bem afoitos, sabiam nadar, montar a cavalo em osso, comiam tudo e nada Lhes fazia mal. Com eles eu fui aos banhos proibidos, os do meio-dia, com a água do poço a escaldar. E então nós ficávamos com a cabeça ao sol, enxugando os cabelos, para que ninguém percebesse as nossas violações. - Você está um negro - disse-me a tia Maria. - Chegou tão alvo, e nem parece gente branca. Isto faz mal. Os meninos da Emília já estão acostumados, você não. De manhã à noite de pés descalços, à solta como um bicho. Seu avô ontem falou-me nisto. Você é um menino bonzinho, não vá atrás destes moleques para toda a parte. As febres andam por aí. O filho do seu Fausto, no Pilar, há mais de um mês que está na cama. Para a semana vou começar a ensinar-lhe as letras. Mas os primos não paravam. De manhã íamos com os moleques lavar os cavalos, e aí passávamos horas inteiras dentro de água. Galinha gorda, gorda é ela; vamos comê-la, vamos a ela. 20 21 E atiravam pedras para dentro do poço, mergulhando para irem apanhá-las no fundo. Espadanavam a água com os cangapés ruidosos, e saía sempre gente chorando, com queixas para casa. O dia todo passávamo-lo assim, nessa agitação medonha. 7 A minha tia Sinhazinha era uma velha de uns sessenta anos. Irmã de minha avó, ela morava há longo tempo com o seu cunhado. Casada com um dos homens mais ricos daqueles arredores, o Dr. Quincas, do Salgadinho, vivia separada do marido desde os começos do matrimónio. Era um temperamento esquisito e turbulento. Contava-se que um dia amanhecera num engenho de seu pai, amarrada a um carro de bois, com uma carta do marido fazendo voltar ao sogro a sua filha. Era ela quem tomava conta da casa do meu avô, mas com um despotismo sem entranhas. Com ela estavam as chaves da despensa, e era ela quem mandava as negras no serviço doméstico. Em tudo isso, como um tirano, meu avô, que não se casara em segundas núpcias, tinha, no entanto, esta madrasta dentro de casa. Logo que a vi pela primeira vez, com aquele rosto enrugado e aquela voz áspera, senti que qualquer coisa de ruim se aproximava de mim. Esta velha seria o tormento da minha meninice. Minha tia Maria, um anjo junto daquele demónio, não tinha poderes para resistir às suas forças e aos seus caprichos. As pobres negras e os moleques sofriam dessa criatura uma servidão dura e cruel. Ela criava sempre uma negrinha, que dormia aos pés da sua cama, para judiar, para satisfazer os seus prazeres brutais. Vivia a resmungar, a encontrar defeitos, poeira nos móveis, furtos em coisas da despensa, para pretexto das suas pancadas nas criadas da casa. 22 23 As negras odiavam-na. Os meus primos fugiam dela como de um castigo. E quando ia para a casa de uma filha, na cidade, era como se um povo tivese perdido o seu verdugo. Minha tia Maria assumia a dírecção da casa - e todos passavam a conhecer a mansidão e a paz de uma regência de fada. Depois que vim a saber a história de rainhas cruéis, as intrigas perversas das Ana Bolenas, acreditava em tudo, porque me lembrava da tia Sinhazinha. 8 Magrinha e branca, a prima Lili parecia mais de cera, de tão pálida. Tinha a minha idade e uns olhos azuis e uns cabelos louros até ao pescoço. Sempre recolhida e calada, nunca estava connosco nas brincadeiras. - Esta menina não se cria - diziam as negras. Na verdade, a prima Lili parecia mais um anjo do que gente. Qualquer coisa era motivo para um choro que não acabava mais. Comigo ela sempre se abria. Eu era-Lhe menos agressivo que os irmãos. E juntos nós estávamos com a tia Maria, e nos cuidados e nos carinhos da nossa amiga nos encontrávamos de quando em vez. Lili não ia ao sol, vivia o dia todo calçada. Tudo lhe fazia mal: o chuveiro, o mormaço, o relento. E só vivia de remédios. Não sei porquê, fui criando a esta criaturinha uma amizade constante. Gostava de ficar com ela, na companhia das suas bonecas. E um preá-da-índia que me deram, eu ofereci-lho de presente. Também, era tão terna comigo! Um dia amanheceu com vómitos negros e com febre. Entrei no quarto onde ela estava, mais branca ainda, e encontrei-a muito triste, ainda mais magrinha. As suas bonecas andavam por cima da cama como se fossem as suas amigas em despedida. Os olhinhos azuis demoraram-se em mim, parecendo pedir-me alguma coisa. Era talvez para que eu ficasse com ela mais tempo. Mas levaram-me do quarto. 24 25 No outro dia, quando acordei, a minha priminha tinha morrido. Lembro-me do seu caixão branquinho, cheio de rosas, tia Maria chorando o dia inteiro. Ainda hoje, quando encontro enterros de crianças, é pela prima Lili que me chegam lágrimas aos olhos. 9 Com a morte da Lili, a tia Maria ficou toda em cuidados comigo. Proibiu-me a liberdade que eu andava gozando como um libertino. Passava o dia a ensinar-me as letras. Os meus primos, esses, ninguém podia com eles. Eu ficava horas a fio sentado na sala de costura, com a cartilha do abc na mão, enquanto por fora de casa ouvia o rumor da vida que não me deixavam levar. Era para mim, esta prisão, um martírio bem difícil de vencer. Os meus ouvidos e os meus olhos só sabiam ouvir e ver o que andava pelo terreiro. E as letras não me entravam na cabeça. - Nunca vi um menino tão rude - dizia asperamente a velha Sinhazinha. A tia Maria, porém, não desanimava, continuando com afinco a martelar a minha desatenção. As conversas das costureiras começavam então a prender-me. Elas trabalhavam mantendo uma palestra que não parava. Falavam sempre de outros engenhos, onde estiveram no mesmo serviço, contando das intimidades das famílias. - No Santarém ninguém come - dizia uma -, Bacalhau ao almoço e ao jantar. A outra contava que o senhor do engenho de Poço-fundo tinha mais de vinte mulheres. Esta conversa prendia-me inteiramente e as letras, que a solicitude de minha tia procurava enfiar pela minha cabeça, não tinham jeito de vencer tal aversão. O que eu queria era a liberdade de meus primos, agora que as 26 27 arribaçãs, com a seca do sertão, estavam a descer em revoada para os bebedouros. Chamavam de arribaçãs a rolas sertanejas que desciam, batidas pela seca, para o litoral. Vinham em bando como uma nuvem. muito no alto, a espreitar um poço de água para a sede dos seus dias de travessia. E quando o avistavam, faziam a aterrissagem em magote, escurecendo a areia branca do rio. Nós ficávamos à espreita, de cacete na mão, para o massacre. E a sede das pobres rolas era tal que elas nem davam pelos nossos intuitos. DeZatávamos às cacetadas, como se elas não tivessem asas para voar. A seca tirara-lhes o instinto natural de defesa. Depois, no colégio, quando no Génio do Cristianismo eu lia uns versos falando dos pássaros da Bretanha, que fugiam do Inverno da sua pátria, vinha-me a saudade das pobres rolas sertanejas que trucidávamos. 28 10 Uma tarde, chegou um portador, num cavalo cansado de tanto correr, com um bilhete para o meu avô. Era um recado do coronel Anísio, de Cana-Brava, prevenindo que António Silvino naquela noite estaria entre nós. A casa toda ficou debaixo de pavor. O nome do cangaceiro era o bastante para mudar o tom de uma conversa. Falava-se dele baixinho, em cochicho, como se o vento pudesse levar as palavras. Para os meninos, a presença de António Silvino era como se fosse a de um rei das nossas histórias, que nos marcasse uma visita. Um dos nossos brinquedos mais preferidos era até o de fingirmos de bando de cangaceiros, com espadas de pau e cacetes ao ombro, e o mais forte dos nossos fazendo de António Silvino. Naquela noite íamos tê-lo em carne e osso. Meu avô é que era o mesmo. Aquele seu ar de tranquilidade poucas vezes eu o via alterar-se. A velha Sinhazinha para dentro e para fora, nas suas ordens para o jantar, gritando para osnegros e os moleques com a mesma arrogância incontentável. A tia Maria ficava no seu quarto a rezar. Tinha muito medo dessa gente que vivia no crime. Quando me viu a seu lado, abraçou-me, chorando. Não havia, porém, perigo de espécie alguma. António Silvino vinha ao engenho em visita de cortesia. Um ano antes ele estivera na vila de Pilar com outras intenções. Fora ali para receber o pagamento de uma nota falsa que o coronel Napoleão lhe passara. 29 E não encontrando o velho, vingara-se nos seus bens com uma fúria de vendaval. Atirou para a rua tudo o que era da loja, e quando não teve mais nada para desperdiçar, jogou do sobrado abaixo uma barrica de dinheiro para o povo. Mas com meu avô o bandido não tinha rixa alguma. Naquela noite viria fazer a sua primeira visita. À noitinha chegava o bando à porta da casa-grande. Vinha António Silvino à frente, os seus doze homens a distância. Subiu a calçada como um chefe, apertou a mão do meu avô com um riso na boca. Levado para a sala de visitas, os cabras ficaram enfileirados na banda de fora, numa ordem de colegiais. Só ele tomava intimidade com os de casa. Ficávamos nós, os meninos, numa admiração, de olhos estarrecidos para o nosso herói, para o seu punhal enorme, os seus dedos cheios de anéis de ouro e a medalha com pedras de brilhantes que trazia ao peito. O seu rifle pequeno, não o deixava, trazendo-o entre os joelhos. À hora do jantar foram todos para a mesa. Ele à cabeceira, e os cabras por ordem, todos calados, como se estivessem com medo. Só ele falava, contava histórias - o último cerco que os macacos Lhe fizeram em Cachoeira-de-Cebola -, numa fala de tátaro, querendo fazer-se muito engraçado. Alta noite foi-se com o seu bando. Para mim tinha perdido um bocado do prestígio. Eu fazia-o outro, arrogante e impetuoso, e aquela fala bamba viera desmanchar em mim a figura do herói. No outro dia o meu primo Silvino contou-nos que se tinha lembrado de dizer ao cangaceiro que a tia Sinhazinha não gostava dele. É que nos falavam sempre de uma velha que António Silvino fizera dançar nua, dando umbigadas num pé de caldeiros, por motivo semelhante. Se isto tivesse acontecido com a velha Sinhazinha, os moleques, as negras e os meninos do Santa-Rosa teriam dormido uma noite de grande. 30 11 - Vamos hoje ao sítio do seu Lucino - disse-me a tia Maria. E de tarde saímos para esse passeio. Íamos a pé. Os meninos na frente a correr, e a tia Maria, uma negra e as duas costureiras atrás, conversando. Pela estrada encontrávamos de quando em vez gente a cavalo que vinha da feira de São Miguel. Traziam as cargas vazias, os caçuás emborcados e o quilo de carne dependurado na cangalha. Também: mulheres a pé, de chinelas batendo no calcanhar e flor na cabeça. Os moleques informavam que eram as raparigas do Pilar que iam fazer a feira a São Miguel. Mas eu reparava que elas não traziam quilos de carne: vinham com as mãos vazias, a abanar. Essa gente tola conversava: os de cavalo com os que iam a pé. Mais adiante encontrámos o negro Zé Passarinho bêbado, no seu costume de sempre. E um peso de carne, sujo de terra, ao ombro, num cacete. Os moleques caíam em cima do pobre com pancadas, a que ele respondia descompondo-os. Pela estrada, toda sombreada de cajazeiras, rescendia um cheiro ácido de cajá maduro. Nós íamos colhendo cabrinhas amarelas e arrebenta-bois vermelhos que não comíamos porque matavam as pessoas. Depois a cerca de arame abria-se num terreiro que dava para uma casa de telha, com parede de barro escuro. Um menino nu, que estava à porta, correu assombrado para dentro de casa. Umas mulheres apareceram. - São os meninos do engenho. 31 Saíram para nos ver, quando avistaram a tia Maria na estrada. Foi uma festa de exclamações: - Entre, Maria Menina, entre. Como vão todos de lá? Como está gorda, benza-a Deus! E puseram tamboretes à porta, numa alegria saudável de quem estivesse em casa com uma princesa. Tia Maria conversava com elas sem altivez, perguntando pelos seus porcos, que elas criavam de meias, comendo umas goiabas que lhe foram buscar. - Maria Menina, cadê o menino de Dona Clarisse? Minha tia chamou-me, e elas fizeram-me todos os mimos, com aquelas mesmas exclamações: - É a cara da mãe! Foram-me dando goiabas e limas-de-umbigo. Os primos já estavam no local a atirar pedras às fruteiras. Atrás da casa ficava uma meia dúzia de laranjeiras e goiabeiras e um pé enorme de genipapo. Num girau, umas panelas velhas com craveiros a brotar e bogaris pelas biqueiras florindo. E uns leirões de coentro cercados de faxina, porque as galinhas e os porcos criavam-se soltos, entrando por dentro de casa, como gente. Na cozinha, uma trempe de ferro com fogo aceso e um pote com água barrenta do rio, que bebiam. Dois meninos com medo correram para outra casa perto. Depois foram-se chegando para nós, desconfiados como cabritos, sujos e de barriga grande. Mas, quando o meu primo quis um genipapo maduro, um deles trepou pela árvore numa ligeireza de macaco. A tia Maria ainda conversava no terreiro com as meninas de seu Lucino, como o povo chamava àquelas três velhas solteiras. Agora era de doenças que elas se queixavam, perguntando quando viria ao engenho o doutor, para receitar-lhes. A tia Maria prometia remédios, e contava a visita de António Silvino às velhas, que cortavam a conversa com um Pai-do-Céu e uma Nossa-Senhora de vez em quando. À tardinha voltámos para casa. A estrada escurecia com as sombras da noite. Ainda restavam pelas folhas das canas os últimos raios de sol do dia. E os moleques começavam a falar em mal-assombrados. Bem juntos de tia Maria, quietos e calados, com medo de almas do outro mundo, íamos fazendo o retorno da nossa viagem. 32 33 12 A velha Sinhazinha não gostava de ninguém. Tinha umas preferências temporárias por certas pessoas a quem passava a fazer gentilezas com presentes e generosidades. Isto somente para fazer raiva aos outros. Depois mudava. E vivia assim, de uns para outros, sem que ninguém gostasse dela e sem gostar a sério de ninguém. De mim nunca se aproximou. E eu mesmo fugia, sempre que podia, da sua proximidade. Mas a propósito de nada, lá vinha com beliscões e cocorotes. Trancava na despensa as frutas, andava com a chave do guarda-comidas no cós da saia, para contrariar as nossas gulodices e fazer raiva à gente adulta da casa. A tia Maria roubava para nós os sapotis e as mangas que a veLha deixava em montão apodrecer. O meu ódio por ela crescia dia a dia. Numa ocasião, quando eu jogava o pião na calçada, o brinquedo foi cair em cima do seu pé. A velha levantou-se como uma fúria direita a mim, e com o seu chinelo de couro encheu-me o corpo de açoites terríveis. Bateu-me como se desse num cachorro, rangendo os dentes de raiva. E se não fosse a tia Maria, que me acudiu, ela ter-me-ia despedaçado. Eu nunca tinha apanhado. Minha mãe, quando queria repreender-me por qualquer maldade, punha-me de castigo em pé ou sentado num lugar. Esta surra fora a primeira da minha vida. Chorei como um desenganado a tarde inteira, mais de vergonha que pelas pancadas. Não houve mimo que me fizesse calar. E quando a negra Luísa, passando, me disse baixinho: "Ela só faz isto porque você não tem mãe", 35 parece que a minha dor chegou ao extremo, porque foi quando chorei de verdade. À hora da ceia não quis ir para a mesa. Ouvi então minha tia Maria dizer indignada: - Num menino daqueles não se bate! É tão sentido! E a velha Sinhazinha, replicando que era por isso que aos meninos da Emília ninguém podia aturar, porque não lhes davam educação: - Meninos só se endireitam com chinelo! Fui dormir imaginando tudo o que era vingança contra o diabo da velha. Queria vê-la despedaçada entre dois cavalos como a madrasta da história de trancoso. E cortada aos pedaços na serra do engenho. Aquela injustiça brutal despertava em meu coração puro de menino os impulsos mais cruéis de desforra. 36 13 Há oito dias que relampejava no horizonte. Meu avô ficava, de noite, por muito tempo, a espreitar o abrir rápido do relâmpago para os lados de cima. E quando se cansava de tanto esperar, punha os moleques no seu lugar. Um dia, para as cordas das nascentes do Paraíba, via-se, quase rente ao horizonte, um abrir longínquo e espaçado de relâmpagos: era Inverno pür certo no alto sertão. As experiências confirmavam que com duas semanas de Inverno o Paraíba apontaria na várzea com sua primeira cabeça de água. O rio no Verão ficava seco, capaz de se atravessar a pé enxuto. Apenas, aqui e ali, pelo seu leito, formigavam grandes poços, que venciam a estiagem. Nestes pequenos açudes pescava-se, lavavam-se os cavalos, tomava-se banho. Nas vazantes plantavam-se batatas doces e cavavam-se pequenas cacimbas para o abastecimento de gente que vinha das caatingas, andando léguas, de pote à cabeça. O seu leito de areia branca cobria-se de salsa e junco verde-escuro, enquanto pelas margens os marizeiros davam uma sombra amiga nos meios-dias. Nas grandes secas o povo pobre vivia da água salobra e das vazantes do Paraíba. O gado vinha entreter a sua fome no capim ralo que crescia por ali. Com a notícia dos relâmpagos nas cabeceiras, entraram a arrancar as batatas e os jirimuns das vazantes. O povo gostava de ver o rio cheio, a água correndo de barreira a barreira. Porque era uma alegria por toda a parte quando se falava da cheia que descia. E anunciavam a chegada, 37 como se se tratasse de visita de gente viva: - a cheia já passou na Guarita, vem em Itabaiana. A notícia corria de boca em boca. No engenho era no que se falava. A canoa já estava calafetada e pintada de novo. Nós todos dormíamos pensando na cabeça da cheia que não tardaria. Eu aguardava com uma ansiedade medonha essa cheia de que tanto se falava. No Recife, vira o Capibaribe nos seus dias de enchente, coberto de balsas, mas o Capibaribe vivia todos os dias a encher e a vazar com as marés. Por isto pensava tanto na cheia do Paraíba, como em coisa inédita para mim. Vieram dizer, ao engenho: - O chefe da estação de Pilar recebeu um aviso de que a cheia já vinha em Itabaiana. Não custava, portanto, a apontar entre nós. Diziam que o rio vinha de barreira a barreira. E uma tarde um moleque chegou às carreiras, gritando: - A cheia vem no engenho de sen Lula! Todos correram para a beira do rio - os moleques, os meninos, os trabalhadores do engenho, o meu avô. E começava-se a ouvir a gritaria da gente que ficava pelas margens: - Olha a cheia! Olha a cheia! - Ainda vem longe - diziam uns. - Qual nada! Olha os urubus a voarem por ali! De facto, dentro em pouco, um fio de água apontava, numa ligeireza coleante e espantosa de cobra. Era a cabeça da cheia correndo. E quando passava por perto da gente, arrastando basculhos e garranchos, já a vista alcançava o leito do rio todo tomado de água. - É muita água. O rio vai às margens. Vem com força de açude arrombado. O povo a gritar por todos os lados. E o barulho das águas que cresciam em ondas enchendo-nos os ouvidos. Num instante não se via nem um banco de areia descoberto. Tudo estava inundado. E as águas subiam pelas barreiras. Começavam então a descer grandes tábuas de espumas, árvores inteiras arrancadas pela raiz. - Lá vem um boi morto! Olha uma cangalha! - E uma linha de madeira lavrada. - Aquilo é cumieira de casa que a cheia deitou abaixo. Longe ouvia-se um gemido como um urro de boi. Estavam tocando o búzio para os que ficavam mais distantes. O rumor que as águas faziam nem deixava ouvir-se o que gritavam do outro lado do rio. As ribanceiras que a correnteza ruía por baixo arriavam com estrondo abafado de terra caída. Com a noite, um coro melancólico de não sei quantos sapos roncava sinistramente, como vozes que viessem do fundo da terra cavada pelos seus confins, pela verruma dos redemoinhos. Eu fiquei a pensar de onde viria tanta água barrenta, tanta espuma, tantos pedaços de pau. E custava a crer que uma chuvada no sertão desse para tanta coisa. Saímos da beira do rio quase à hora da ceia. Meu avô, à mesa, contava episódios da enchente de 75: - O rio subiu até à calçada da casa-grande. O velho Calisto, ao querer salvar um animal, foi arrastado pela corrente. Ele tinha perdido um escravo numa virada de canoa. A várzea ficou toda debaixo de ágúa, com mais de um metro de lama. Mas há muitos anos que o Paraíba não repetia a façanha. Fui dormir com a cabeça cheia de tanta novidade. E alta noite acordámos com o barulho que ia pela casa. Eram as águas que estavam a crescer cada vez mais. E se continuassem assim, de manhã estariam dentro da casa-grande. Fomos ver o rio. E pouco andámos, porque já estava a entrar pelas estrebarias. O marizeiro ficava em baixo; a corrente corria por cima dele. Era um mar de água roncando. O meu avô, com aquele seu capote de lã, comandava o pessoal como um capitão de navio em tempestade. Operigo estava na casa de purgar, pois a safra de açúcar do ano encontrava-se nos 38 39 grandes caixões de madeira e no tanques cheios de mel de furo. Não havia nada a fazer. Como evitar a invasão dos tanques E mudar para onde aquela enormidade de açúcar? - É preciso mandar uma canoa para o povo da Ponte. Lá é mais baixo, deve haver precisão de socorros. E José Ludovino seguiu com a canoa pela várzea. Já estava tudo tomado pelas águas. Púnhamos marcos de pau para ver se o rio baixava ou subia. Às três horas da manhã parara de encher. E ouvia-se por toda aquela extensão de águas como que um gemido soturno. E de quando em vez um rumor de pancada das ribanceiras que caíam. Não sei porquê, eu tinha vontade de que o rio continuasse a encher, a entrar por toda a parte com as suas águas sujas. Queria ver os baús nadando dentro de casa. A minha tia Maria ficava com as negras no quarto do oratório a rezar. Quando acordei, de manhã, a várzea era um lago de água barrenta. Apenas, aqui e ali, uns pedaços verdes de canavial, como ilhas de verdura. O rio entrara pelos sangradouros das lagoas e deixava-nos cercados de um lado e de outro. Ia até os pés da caatinga. Meu avô, de pé, olhava de uma ponta da calçada as suas plantas de cana submersas, com a safra quase toda perdida. Mas não se lastimava, porque sabia que riqueza em limo Lhe trouxera o rio para as suas terras. Ele mesmo dizia: - Gosto mais de perder com água do que com sol. Mais tarde os canoeiros chegaram contando os trabalhos da madrugada. Encontraram gente dentro de casa com água pelo peito. Mulheres chorando, sem esperança de mais nada. Passaram para o alto para mais de cem pessoas, móveis, e criações. Tinha, porém, desaparecido o negro Salvador, quando procurava passar a nado pelo riacho da Ponte. Era preciso mandar comida para todo aquele povo desarvorado. Meu avô dava ordens para levarem uma barrica de bacalhau. - E o povo de Maravalha? - perguntava ele aos canoeiros. - Estão em São Miguel. Mas o capitão Joca ficou. O rio chegou ao batente da cozinha. Não se vê nem um pé de cana. É um mar de água daqui até lá. A canoa passou por cima do cerrado do engenho. Mas o rio, que vazara para mais de um metro, à noitinha começou a encher outra vez. Nós íamos sair de casa num carro de bois para a caatinga. Era preciso fazer uma volta de légua para chegar à estrada nova e alcançar uma bueira que atravessava a lagoa. Para os meninos tudo isto parecia uma festa. Saltávamos de contentes com as arrumações. E quando saímos no carro parecia que íamos fazer uma daquelas nossas visitas a outros engenhos. Pela estrada encontrávamos gente com notícia da cheia para as bandas do Pilar. "Na Rua da Palha não ficara uma casa de pé. A canoa virara-se, morrendo seis pessoas. A ponte de Itabaiana acabou-se". E isto ia aumentando mais o pavor da minha tia Maria. Connosco vinham as costureiras e umas quatro negras. Noutro carro, deitada, a avó Galdina paralítica. A velha Sinhazinha não quisera vir: não ia abandonar o Cazuza sozinho. Os seus inimigos não podiam deixar de respeitar esta sua coragem. E naquela hora perdoávamos-Lhe muito da sua ruindade. O carro chegou a casa do velho Amâncio às cinco horas da manhã. Todos estavam acordados. Pelo terreiro da casa viam-se os haveres dos refugiados, chegados ali primeiro do que nós. Eram, talvez, duas famílias, com os seus meninos, os seus porcos, suas panelas, as suas galinhas. Nós, os da casa-grande, estávamos ali reunidos no mesmo medo, com aquela pobre gente do eito. E com eles bebemos o mesmo café com açúcar em bruto e comemos a mesma batata doce do velho Amâncio. E almoçámos com eles a boa carne-do-ceará com farofa. À noite dormimos em cama de vara. A chuva pingava dentro de casa por não sei quantas goteiras. E o cheiro horrível dos chiqueiros de porcos pertinho da gente. Os outros refugiados 40 41 ficaram na casa da farinha, pelo chão. Era tudo isto o que de melhor o pobre do velho Amâncio tinha para nos oferecer: esta sua desgraçada e fedorenta miséria de pária. Depois chegou do engenho o mantimento que tínhamos esquecido com a pressa. E a minha tia Maria distribuiu por aquela gente toda a carne-de-sol e o arroz que nos trouxeram. Eles pareciam felizes de qualquer forma, muito submissos e muito contentes com o seu destino. A cheia tinha-lhes comido os roçados de mandioca, levando o quase nada que tinham. Mas não levantavam os braços para imprecar, não se revoltavam. Eram uns cordeiros. - O que vale é a saúde e a protecção de Deus - diziam sempre. Mas, coitados, com que saúde e com que Deus estavam eles contando! No outro dia de manhã veio um portador chamar-nos. O rio já estava no leito. Atrelaram os bois ao carro e descemos para a várzea. Do alto podia-se avistar o grande lençol de águas barrentas que corria lá em baixo. E quando chegámos mais para perto, a várzea estendia-se aos nossos olhos, ainda coberta de água: é que os sangradouros naturais tinham-se obstruído com os depósitos de areias trazidas pela corrente. Era preciso cavar com uma enxada para que as águas descessem outra vez para o rio. Nós, os meninos, queríamos encontrar os estragos da cheia. Parece que havia um certo prazer, uma vaidade nossa, em que também no engenho ela tivesse deixado sinais de destruição. Pelo caminho o homem que nos viera chamar contara como os canoeiros tinham encontrado o corpo do negro Salvador: - Zé Guedes viu uma coisa amarela a boiar. Pensou que fosse uma jaca. Meteu o remo: era a cabeça do negro coberta de lama, engalhada num pé de cabreira. Estava com três dias de afogado. E os urubus por cima, rondavam. Vimos então o estado em que as águas deixaram os canaviais. Parecia que uma chuva pesada, de oca, caíra por ali; tudo parecia cor de barro vermelho. - O coronel este ano não faz duzentos pães de açúcar - dizia o carreiro. - Só ficou com cana para semente. E por onde as águas tinham passado, espelhava ao sol uma lama cor de moedas de ouro: o limo que ia fazer a fartura dos novos partidos. O meu avô esperava no terreiro. Quando chegámos, começou a interrogar-nos sobre tudo por que tínhamos passado. - A cheia destruiu mais que em 75. O Joca perdeu a semente de cana. A linha férrea foi arrastada em mais de um quilómetro no Engenho Novo. No Espírito Santo caíram ruas de casas. Há muita Miséria. Muita fome no povo. O governo está a mandar mantimentos. Havia uma sombria tristeza na gente da casa-grande. Há três dias que ali não se dormia, comia-sa à pressa, com o pavor da inundação. O engenho e a casa da farinha repletos de flagelados. Era a população das margens do rio, arrasada, morta de fome, se não fossem o bacalhau e a farinha seca da "fazenda"... Conversavam sobre os incidentes da enchente, achando graça até nas peripécias de salvamento. João de Umbelino mentia à vontade, contando fanfarronadas a que ninguém assistira. Gente esfarrapada, com meninos amarelos e chorões, com mulheres de peitos murchos e homens que ¨ninguém dava nada por eles- mas uma gente com quem se podia contar na certa para o trabalho mais duro e a dedicação mais canina. Saí¨mos então para ver de perto o que o rio tinha feito. Na parede da estrebaria e nos paus do cercado ficara a marca das águas. A boca da fornalha parecia um açude; com mais um palmo a casa de purgar ter-se-ia ido embora, O cercado era um atoleiro por onde os bois iam deixando as marcas dos cascos. Por toda a parte um cheiro aborrecido de lama. 42 43 Os galhos dos marizeiros, todos pendidos para um lado, como se tivessem sido torcidos por uma ventania. E garranchos e ramarias secas por cima deles. O engenho todo estava triste. Só os canoeiros alegres, passando a bom preço, de um lado para outro, os aguardenteiros que vinham do contrabando de cachaça de Pernambuco. E para nós era a única coisa a ver: a canada cheia de ancoretas, e os cavalos puxados à corda, nadando, e a gritaria obscena do pessoal. O resto, tudo muito triste, e lama por toda a parte. 44 14 Mandaram-me, para aprender as primeiras letras, para casa de um Dr. Figueiredo, que viera da capital passar um tempo na vila do Pilar. Pela primeira vez eu ia ficar com gente estranha um dia inteiro. Fui ali recebido com os agrados e as condescendências que reservavam para o neto do prefeito da terra. Tinha o meu mestre uma mulher morena e bonita, que me beijava todas as vezes que eu chegava, que me fazia as vontades: chamava-se Judite. Gostava dela de forma diferente da que sentia pela minha tia Maria. Ela sempre que me ensinava as letras debruçava-se por cima de mim. E os seus abraços e os seus beijos eram os mais quentes que já tinha recebido. E o Dr. Figueiredo não parava no lugar. Só ficava quieto a ler os jornais e os livros, que tinha muitos pela mesa. A mulher era quem me ensinava, quem tomava conta de mim, Uma vez ví-a a chorar, com os olhos vermelhos e o Dr. Figueiredo sair de casa batendo com a porta. E de outra, enquanto eu ficava sozinho na sala com o meu livro na mão, ouvi no interior da casa um ruído de pancadas e uns gritos de quem estivesse a apanhar. Compreendi então que a minha bela Judite apanhava do marido. Tive mesmo o ímpeto de correr para a rua e chamar o povo para lhe acudir. Mas fiquei quieto na ladeira, escutando-lhe os soluços abafados. Mais tarde ela chegou para me ensinar, e abraçou-me e beijou-me como nunca. Fiquei a pensar no que sofria a minha amiga, na convivência daquele homem magro e alto. 45 E o meu coração sentiu-se cheio de uma afeição estranha pela sua mulher. Era tão terna para mim, punha-me no colo para me acarinhar, para me dizer que me tinha um amor de mãe. Eu sentia o seu sofrimento como se fosse o meu. Foi ali com ela, sentindo o cheiro dos seus cabelos pretos e a boa carícia das suas mãos morenas, que aprendi as letras do alfabeto. Sonhava com ela de noite, e não gostava dos domingos porque ia ficar longe dos seus beijos e abraços. Depois mandaram-me para a aula de outro professor, com outros meninos, todos de gente pobre. Havia para mim um regime de excepção. Não ralhavam comigo. Existia um copo separado para eu beber água, e um tamborete de palhinha para "o neto do coronel Zé Paulino". Os outros meninos sentavam-se em caixotes de gás. Lia-se a lição em voz alta. A tabuada era cantada em coro, com os pés balançando, num ritmo que ainda hoje tenho nos ouvidos. Nas sabatinas nunca levei uma palmatoada, mas quando acertava mandavam-me que desse nos meus coMpetidores. Eu sentia-me bem com todo esse regime de miséria. Os meninos não me tinham raiva. Muitos deles eram de moradores do engenho. Parece que ainda os vejo, com seus bauzinhos de folha, voltando a pé para casa, a olharem para mim, de bolsa a tiracolo, na garupa do cavalo branco que me levava e trazia da escola. 46 15 Outro mestre que eu tive foi o Zé Guedes, meu professor de muita coisa ruim. Levava-me e trazia-me da escola todos os dias. E na meia hora que estava com ele, de ida e volta, aprendi coisas mais fáceis de aprender que a tabuada e as letras. Contava-me tudo que era história de amor, sua e dos outros. - Ali mora a Zefa Cajá. E lá vinha com os detalhes, com as coisas erradas da vida desta mulher. Às vezes parava à porta, e era uma conversa comprida, cheia de ditos e de descaramentos. - Olha o menino, Zé Guedes! Ó homeM desbocado! Mas ele pouco se importava comigo, Eu mesmo gostava de ouvir o palavreado imundo. Pelo caminho o moleque continuava nas suas lições, falando de mulheres e de doenças do mundo. E, nome por nome, ele dava-os de todas as doenças: cavalo, mula, crista-de-galo. As velhas, da estrada, pediam para comprar coisas na vila: carretéis de linha, papel de agulhas. Zé Guedes entregava as encomendas, puxando conversas compridas com as mulatinhas. - Aquela ali já foi passada. Quem manda nela é o doutor Juca. E eu ia sabendo que o meu tio Juca tinha mulatas em quem mandava. De uma feita desceu numa casa de palha, onde só morava uma negra. Ficou lá dentro uma porção de tempo. Quando saía, ouvi a mulher dizemdo: - Não vá esquecer-se do corte de chita, seu xeixeiro! 47 Eram assim as minhas lições de porcaria com aquele mestre que não se contentava com o lado teórico do seu magistério e também dava as suas lições de coisas. Nós tínhamos, porém, no curral pegado à casa-grande, uma aula pública de amor. O que Zé GuedeS nos contava de si com as Zefas, os touros e as vacas faziam-no entrar pelo entendimento. Era ali um bom campo de demonstração. No cercado dos engenhos o menino inicia-se nestes mistérios do sexo, antecipando-se por muitos anos no amor. A reprodução da espécie ficava para nós um acto sem grandeza nenhuma. Víamos as vacas e as porcas nas dores do parto. E éramos quase os seus assistentes. Lembro-me de uma vaca malhada que morreu por uma malvadez do meu primo Silvino. Ele meteu-se a médico, e com uma imperícia infeliz matou a pobre novilha turina do meu avô. Ninguém soube no engenho deste crime cometido com a minha cumplicidade. Concorríamos também no amor com os touros e os pais do chiqueiro. Tínhamos as nossas cabras e as nossas vacas para encontros de lubricidade. A promiscuidade selvagem do curral arrastava a nossa infância às experiências de prazeres que não tínhamos idade de gozar. Era apenas uma buliçosa curiosidade de menino, a mesma curiosidade que nos levava a ver o que havia por dentro dos brinquedos. Uma tarde o primo Silvino disse-me: - Hoje vamos fazer porcaria no curral. De facto, à boca da noite, quando o gado chegado da pastagem descansava, uns deitados e outros parados a olhar para o chão, eu vi o primo Silvino trepado na cerca, procurando pôr-se em cima de uma vaca mansinha. Nós todos ficávamos de longe, mudos e sôfregos, como se fôssemos cúmplices de um crime. - Sai daí, menino sem vergonha. Vou dizer ao coronel. 48 16 Meu avô levava-me sempre nas suas visitas de corregedor às terras do seu engenho. Ia ver de perto os seus moradores, fazer uma visita de senhor aos seus campos. O velho José Paulino gostava de percorrer a sua propriedade, de percorrê-la canto por canto, entrar pelas suas matas, olhar as suas nascentes, saber das precisões do seu povo, dar os seus gritos de chefe, ouvir queixa; e implantar a ordem. Andávamos muito nessas suas visitas de patriarca. Ele parava de porta em porta, batendo com a tabica de cipó-pau nas janelas fechadas. Acudia sempre uma mulher com cara de necessitada: a pobre mulher que paria os seus muitos filhos em cama de vara e os criava até grandes com o leite de seus úberes de mochila. Elas respondiam pelos maridos: - Anda no roçado. - Está doente. - Foi para a rua comprar gás. Outras lastimavam-se de doenças em casa, os meninos com sezões e o pai entrevado na cama. E quando o meu avô queria saber porque o Zé Ursulino não vinha para os seus dias no eito, elas arranjavam desculpas: - Levantou-se hoje, do reumatismo. O meu avô então gritava: - Ponho-os fora. Gente safada, com quatro dias de serviço adiantado e metidos no eito do Engenho Novo. Pensam que eu não sei? Deito fogo à casa. 49 - É mentira, seu coronel, Zé Ursulino nem pode andar. Tomou até purga de batata. O povo foi-lhe contar mentiras. Santa Luzia me cegue se estou a inventar. E os meninos nus, de barriga esticada como arco. E o mais pequeno, na lama, a brincar com o barro sujo como se fosse com areia da praia. - Estamos a morrer de fome. Deus quisera que Zé Ursulino estivesse com saúde. - Diga-Lhe que para a semana começa o corte da cana. E quase sempre mais adiante nós encontrávamos Zé Ursulino de cacete na mão e com a sua saúde bem rija. - Já disse à sua mulher que o mando embora. Não vai trabalhar na "fazenda" mas anda vadiando por aí. Não quero cabras safados no meu engenho. E era a mesma conversa. Que para a semana ia pela certa. Que andava doente de novo, com dores pelo corpo todo. De outras vezes batíamos a uma porta onde não acudia ninguém. Mais adiante a família toda estava agarrada à enxada: o homem, a mulher, os meninos. E vinham logo de chapéu na mão pedir às suas ordens. Era um rendeiro que não tinha a obrigação dos três dias no eito. Pagava o foro e ficava livre da servidão da bagaceira. O seu roçado de algodão e de fava garantia essa meia liberdade que gozava. Então meu avô perguntava pelo que se passava nos arredores, se alguém andava a vender algodão por fora ou a levar lenha da mata para vender. - Que eu saiba não, seu coronel. - Pois você vigie por aqui. E depois: - Cabra bom - dizia-me. - Nunca me deu trabalho. E numa casa de palha uma mulher branca, como madapolão, sem uma gota de sangue na cara, com um menino pequeno engatinhando no chão quente do terreiro e o outro de peito nos braços: era a mulher de Chico Baixinho. Tinha parido há oito dias, e o marido estava ausente. - Ninguém sabe onde ele anda, seu coronel. Aquilo é um desgraçado. Deixou-me de cama com a barriga a estalar, e danou-se. Só não morri à míngua porque o povo daqui me socorreu. O meu avô dizia para ela ir buscar bacalhau ao engenho. Noutra casa o povo todo estava atacado de sezões. Tinham voltado da várzea de Goiana amarelos e inchados de paludismo. - Mande o menino buscar quinino ao engenho. Vocês saem daqui com saúde e voltam assim. em petição de miséria. Vão outra vez para a Goiana. Eram assim as viagens do meu avô, quando ele saía a correr todas as suas grotas, revendo as árvores do seu engenho. Ninguém Lhe tocava num capão de mato, que era o mesmo que arrancar um pedaço do seu corpo. Podiam roubar as mandiocas que plantava pelas chãs, mas não lhe bulissem nas matas. Ele mesmo, quando queria fazer qualquer obra, mandava comprar madeira aos outros engenhos. Os seus paus-darco, as suas perobas, os seus corações-de-negro cresciam indiferentes ao machado e às serras. Uma vez, numa das nossas viagens, vi-o furioso como nunca. Entrávamos por uma picada na mata grande, e ouvimos um ruido de machado: - Quem lhe deu ordem para deitar abaixo este pau-darco? - Foi o doutor Juca - respondeu mais morto do que vivo o seu Firmino carpina. - Mas o senhor sabe que eu não quero que se meta machado por aqui, com seiscentos mil diabos! E voltou para casa sem dar mais uma palavra, sem parar em parte alguma. 50 51 17 Nos dias de festa tiravam um pano que cobria o oratório preto de jacarandá e acendiam as velas dos castiçais. O quarto dos santos ficava aberto para toda a gente. Não havia capela no Santa-Rosa nem nos outros engenhos, talvez porque ficassem pertinho dali as duas matrizes do Pilar e de São Miguel. E mesmo o meu avô não era um devoto. A religião dele não conhecia a penitência e esquecia alguns dos mandamentos da lei de Deus. Não ia às missas, não se confessava, mas em tudo que procurava fazer lá vinha um se-Deus-quiser ou tenha-fé-em-Nossa Senhora. A minha tia Maria cuidava de ensinar-me e aos moleques as rezas que ainda hoje sei. Ao meu avô, nunca o vi rezar. Com ele, contavam os padres das duas freguesias nas suas festas e nas suas necessidades. Apesar de que morria pelas suas matas, mandara uma vez que os carp inas deitassem abaixo a madeira que o padre Severino quisesse para as obras da igreja. Quando acendiam as velas do quarto dos santos, nós íamos ver as estampas e as imagens. Havia um menino Jesus que era o nosso encanto, um menino bonito com os olhos azuis da prima Lili e um nrriso bonzinho na boca. Trazia numa das mãos um longo bastão de ouro e na outra a bola do mundo. - Se aquela bola caísse, o mundo acabava-se. Mas o nosso menino, vestido de manto azul estrelado, trazia por debaixo das súas vestes uma rolinha bicuda de criança. 53 e nós levantávamos o manto, de quando em vez, espantados de que a gente do Céu também precisasse daquelas coisas. - Os meninos estão a mexer no santuário. Vinham ralhar com a gente. As estampas das paredes contavam histórias de mártires. Um São Sebastião atravessado de setas, com os seus milagres em redor do quadro. O Anjo Gabriel com a espada no peito de um diabo de asas de morcego. São João com um carneirinho manso. São Severino fardado, estendido num caixão de defunto. Um santo comprido com uma caveira na mão. Os moleques então mostravam-nos uma santa mulata com uma criança no braço, uma que tinha no rosto a marca de ferro em brasa. - Ela era uma escrava - contavam os moleques. - E a senhora queimou-lhe o rosto com um garfo quente. Eu pensava sempre na tia Sinhazinha quando os moleques falavam nesta senhora malvada. Mas o quarto dos santos estava sempre fechado. Não havia no engenho o gosto diário da oração. Talvez que o exemplo de meu avô, justo e bom como ele era, mas indiferente às práticas religiosas, arrastasse os seus a esses afrouxamentos de devoção. Pagava-se muita promessa, dava-se muito dinheiro para as festas de Nossa Senhora. Mas nunca vi ninguém do engenho numa mesa de comunhão, nem mesmo a tia Maria. O povo pobre, do eito, só se confessava na hora da morte, quando, à revelia deles, mandavam chamar o padre à pressa. E, no entanto, não tiravam Nosso Senhor da boca e faziam novenas a propósito de tudo. A não ser a tia Maria, que me ensinava o padre-nosso, ninguém ali me falava de catecismo. A religião que eu tinha vinha ainda das conversas com a minha mãe. Sabia que Deus fizera o mundo, que havia Céu e Inferno, e que a gente sofria na terra por causa de uma maçã. Os moleques também não sabiam mais do que eu. Nas missas de festa a que assistíamos na vila, pouco víamos o padre no altar. Andávamos pelos botequins, no capilé, ou tirando sorte de papeizinhos enrolados. Pela Semana Santa contavam-nos as maldades dos judeus para com Nosso Senhor - da coroa de espinhos, da lançada no coração e do sangue que correu da ferida e abriu os olhos de um cego que ficara por baixo da cruz. Na Sexta-feira Santa só se comia uma vez, no engenho. Vinha peixe fresco da cidade e parentes de outros engenhos: comia-se muito mais do que nos outros dias. As negras na cozinha falavam do martírio de Jesus com uma compaixão de dentro da alma, e diziam que se o padre na missa do sábado não achasse a Aleluia, o mundo se acabaria de uma vez. Os moradores vinham então pedir o jejum, em bandos. Davam-Lhes bacalhau e farinha. Eles saíam com a mulher e os filhos rotos, de saco às costas, como se estivessem fazendo um número de via-sacra. O dia todo era triste. O comboio não corria na linha. Às vezes vinha ao engenho por este tempo uma velha, Totonha, que sabia uma Vida, Paixão e morte de Jesus-Cristo em verso e nos deixava com os olhos molhados de lágrimas com a sua narrativa dolorosa. A velha Snhazínha dizia que Semana Santa boa era a do Itambé. O padre Júlio beijava os pés dos pobres, fazia Procissão do Encontro e um sermão de lágrimas, que toda a gente chorava na igreja. As negras ficavam pela cozinha, sentadas, conversando em cochichos sobre o dia. Não se tomava banho de rio, para não se ficar nu na frente uns dos outros. Não se judiava com os animais. Não se chamava nomes a ninguém. Um canário que eu tinha apanhado, fizeram-me soltá-lo. E as nossas conversas avançavam até em corrigenda à vontade de Deus. Nós achávamos que Jesus Cristo devia ter liquidado todos os judeus e tomado conta de Jerusalém. Não atinávamos com a grandeza do sacrifício. Queríamos a vitória material sobre os seus algozes. Abriam, por esse tempo, o quarto dos santos. O santuário coberto de preto e as estampas viradas todas para a parede. Os santos estavam com vergonha de olhar para o mundo. Era assim a religião do engenho onde me criei. 54 55 18 O meu avô mandou prender o cabra no tronco. E nós fomos vê-lo, estendido no chão, com o pé metido no furo do suplício. Raramente eu tinha visto gente no tronco. Somente um negro ladrão de cavalos ficara ali até que chegassem os soldados da vila, que o levaram. Agora, porém, Chico Pereira estava lá, com os pés no buraco redondo. - É mentira daquela bicha sem vergonha. Ela deitou para cima de mim os estragos que os outros fizeram. Ela pode casar com o diabo, comigo não. O coronel mata-me, mas eu não me amarro com aquela peste. Vou para a cadeia, crio bicho na peia, mas não vivo com aquela prostituta descarada. Eu não tapo os buracos dos outros. O cabra, deitado de costas, com os pés presos no tronco, impressionou-me com aquela sua revolta. Chico Pereira era rufião, moleque chibante da bagaceira, cheio de dinheiro e nomes obscenos. Toda a gente acreditava que tivesse sido ele mesmo o autor do mal feito à mulata Maria Pia. A mãe da ofendida viera fazer queixas ao meu avô, atirando a coisa para cima do Chico Pereira. E ele ficaria no tronco até se resolver a casar com a sua vítima. No outro dia voltei para junto do prisioneiro. As pernas presas já estavam inchadas, apertadas de mais no buraco do tronco. Ele quando me viu chamou-me: - Vá pedir à Maria Menina para me valer. A tia Maria disse-me: - Se ele deve, tem de pagar. 57 Na hora do almoço eu mesmo fui levar ao preso o prato de comida. Estava com o corpo todo dormente. Aquela imobilidade de mais de vinte e quatro horas entorpecia-lhe a circulação. - Morro aqui e não caso. Aquela desgraçada paga-me. O coronel pode picar-me com um facão. Fiquei ao lado de Chico Pereira, deixei os meus primos e os moleques. Não fui ao poço lavar os cavalos, para ficar com ele, conversando, ouvindo as suas histórias, sentindo as suas angústias. Era uma injustiça o que estavam a fazer. Porque não seria mentira da mulata? Não havia ninguém no engenho que estivesse a favor do cabra. A moça tinha sido ofendida, e o moleque que pagasse o que devia. Chico Pereira só contava comigo. À tarde, estava o meu avô sentado na sua cadeira, perto da banca, no alpendre, quando chegaram Maria Pia e a mãe. Vinham as duas a chorar. A velha correu logo para a tia Maria, ajoelhando-se aos seus pés: - Proteja a minha filha, Maria Menina... O meu avô ordenou que acabasse com aquele barulho. E mandou buscar um livro que havia debaixo do santuário. - Você vai jurar em cima deste livro santo em como contará a verdade toda. O cabra está no tronco. Ele nega, prefere morrer a casar. Vamos, ponha a mão aqui em cima e diga o nome de quem lhe fez mal. Deu o livro vermelho com a cruz dourada na capa para a negra pôr a mão em cima. A velha e a filha ficaram fora de si. Aquele livro santo não era para menos. E então a mãe de Maria Pia, como se estivesse com a faca nos peitos: - Menina, não lances a tua alma no Inferno... O povo todo tinha-se chegado para perto da mulata. - Vamos - disse o meu avô, com aquela sua voz de mando. E a mulata, com os olhos esbugalhados: - Juro que foi o doutor Juca quem me fez mal... O meu avô não deu uma palavra. Só disse: - Soltem o cabra. Corri para ver o Chico Pereira, na ânsia de encontrar o meu constituinte inocente. Ele não podia andar. Os pés inchados não tocavam no chão. - Estou com um formigueiro no corpo todo. Eu não dizia que a negra não prestava? O doutor Juca vai ficar agora com mais esta às costas... Na casa-grande só se falava baixinho no caso. Minha tia Maria não me deu palavra. À hora da ceia, meu avô pouco falou. Tio Juca não viera para a mesa. Apenas no fim o velho José Paulino se queixou: - Não sei para que servem os estudos. A gente gasta um dinheirão e eles voltam para fazer asneiras desta ordem... 58 59 19 O caminho de ferro passava do outro lado do rio. Do engenho nós ouvíamos o comboio apitar, e fazía-se da sua passagem uma espécie de relógio de todas as actividades: antes do comboio das dez, depois do comboio das duas. Costumávamos ir para a beira da linha ver de perto os comboios de passageiros. E ficávamos em cima dos cortes olhando como se fossem uma coisa nunca vista os horários que vinham de Recife e voltavam da Paraíba. Mas proibiam-nos esse espectáculo, com medo das nossas traquinices pelo leito da estrada. E tinha razão de ser tanta cautela: um dos lances mais angustiados da minha infância passei-o numa dessas esperas do caminho de ferro. O meu primo Silvino combinara fazer virar a máquina na rampa do Cabocho. Já de outra vez, com um pano vermelho que um moleque pregara num pau, um maquinista alterara o horário das dez. Agora o que o meu primo queria era um desastre. E colocou uma pedra mesmo na curva da rampa. Nós ficámos à espreita, esperando a hora. Quando vi o comboio aproximar-se como um bicho comprido que viesse para uma armadilha, senti uma agonia dentro de mim que eu não soube explicar. Parecia que eu ia ver ali perto de mim pedaços de gente morta, cabeças rolando pelo chão, sangue correndo no meio de ferros desmantelados. E num ímpeto, já o comboio vinha roncando pertinho, corri para a pedra e com toda a minha força empurrei-a para fora. Um instante depois ouvi o ruído da máquina que passava. 61 Fiquei sozinho, ali no ermo do caminho de ferro. Os meus primos e os moleques tinham corrido. O meu coração batia apressado. Parecia que eu era o único culpado daquela desgraça que não acontecera. Comecei a chorar, com medo do silêncio. Muito de longe o comboio apitava. E banhado em lágrimas fui Para casa. Nunca mais em minha vida o heroísmo me tentaria por essa forma. 62 20 Na mata do Rolo apareciam lobisomens. Na cozinha era no que se falava, num vulto daninho que agarrava gente para lhe beber o sangue. Manuel Severino, quando voltava de uma novena, fora perseguido pelo bicho. Ele mesmo contava: - Eu vi o vulto partir para cima de mim, e dei às pernas numa corrida de cavalo desembestado. Olhei para trás e só vi o mato bulindo com um pé-de-vento de arrancar raízes. As notícias do bicho misterioso chegavam com todos os detalhes. Uns afirmavam que José Cutia estava encantado outra vez. José Cutia era um comprador de ovos da Paraíba, un pobre homem que não tinha uma gota de sangue na cara. Andava sempre de noite, talvez para melhor fazer as suas caminhadas, sem sol. E por isto tinha-se na certa que era ele o lobisomem. - Ele quer corar com o sangue dos outros... E havia gente que até vira José Cutia por debaixo das ingazeiras transformando-se em bicho. As unhas cresciam como lâminas enormes, os pés ficavam como os das cabras, e os cabelos eram crinas de cavalo. Diziam que o homem grunhia como um porco na faca, nos momentos de se encantar. Ele não queria, mas o seu corpo não podia viver sem sangue. E tornava-se lobisomem contra vontade. O povo não lhe tinha raiva; tinha até pena, Porque era certo que José Cutia era mandado de noite por uma força que não era dele. Mas nós, quando o víamos passar com as suas cestas de ovos, fugíamos da estrada com medo. 63 Diziam também que ele comia o fígado dos meninos e que tomava banho com o sangue de crianças de peito! - Lá vem o papa-figo! - era assim que diziam para nos correr de qualquer parte. E as histórias corriam como os factos mais reais deste mundo. Agora era o encontro do padre Ramalho com o lobisomem na mata. O padre ia para a extrema-unção a um doente nos Caldeiros, quando viu uma coisa puxando pelo rabo do cavalo. Chicoteou-o, meteu as esporas, e nada. O cavalo parecia com os pés enterrados no chão. Olhou para trás, viu o bicho querer saltar para cima dele. Tirou do bolso a caixinha já com a hóstia consagrada, e apontou. Ouviu o baque de um corpo todo, e um gemido prolongado de moribundo. O cavalo tomou as rédeas, largando numa correria. No outro dia encontraram José Cutia desfalecido na estrada. E o lobisomem bebia sangue também dos animais, chupava os cavalos no pescoço. O poldro coringa do meu avô amanheceu um dia com um golpe jorrando sangue. O lobisomem andara de noite pelas estrebarias. Eu acreditava em tudo isto, e muitas vezes fui dormir com medo destes bichos infernais. Na minha sensibilidade ia crescendo este terror pelo desconhecido, pelas matas escuras, pelos homens amarelos que comiam o fígado dos meninos. E até grande, rapaz de colégio, quando passava pelos sombrios recantos dos lobisomens era assobiando ou cantando alto para afugentar o medo que sentia. Os zumbis também existiam no engenho. Os bois que morriam não se enterravam. Arrastavam-se para o cemitério dos animais, à beira do rio, debaixo dos marizeiros, onde eles ficavam para o repasto dos urubus. De longe sentia-se o hálito podre da carniça, e a gente via os comensais disputando os pedaços de carne e as tripas do cadáver. O zumbi, que era a alma dos animais, ficava por ali a rondar. Não tinha o poder maligno dos lobisomens. Não bebia sangue nem dava surras como as caiporas. Encarnava-se em porcos e bois, que corriam pela frente da gente. E quando se procurava agarrá-los, desapareciam por encanto. Ao velho Fausto, maquinista, uma vez, indo para o sítio da Paciência, deparou-se-lhe um porco-espinho a roncar. Para onde ia, ia o porco, como um cachorro de fila. E ele, perdendo a calma, deu com o seu cacete de jucá, com toda a força, no lombo do barrão: foi num toco preto de pau que bateu. Eles contavam-me estas histórias tão detalhadamente, que ninguém podia suspeitar de mentira. E a verdade é que para mim tudo isto criava uma vida real. O lobisomem existia, era de carne e osso, bebia sangue de gente. Eu acreditava nele com mais convicção do que acreditava em Deus. Ele ficava tão perto da gente, ali na mata do Rolo, com as suas unhas de espetos e os seus pés de cabra! Deus fizzera o mundo somente. Era distante dos nossos medos, e nós não o víamos como o José Cútia com o seu cesto de ovos. Pintavam o lobisomem com uma realidade tão da terra que era como se eu o tivesse visto. De Deus, tinha-se uma ideia vaga de sua pessoa. Um homem bom, com úm Céu para os justos e um Inferno para a gente ruim como a velha Sinhàzinha, com caldeiras e espetos quentes. Mas tudo isto depois que o sujeito morresse. O lobisomem lutava corpo a corpo com a gente viva. Era só sair antes da meia-noite para a mata do Rolo, e encontrá-lo. Punham-nos a dormir embalando-nos com o bicho-carrapato. A cabra-cabriola, a caipora, encontravam na mata os caçadores solitários. A burra-de-padre andava tinindo as correntes das suas patas pelos portais distantes. Um mundo inteiro de duendes em carne e osso vivia para mim. E o que de Deus nos contavam era tudo muito no ar, muito do Céu, muito do começo do Mundo. É verdade que os sofrimentos de Jesus Cristo na Semana Santa nos tocavam profundamente. Mas Jesus Cristo era pra nós diferente de Deus, Deus era um homem de barbas grandes, e Jesus era um rapaz. Deus nunca nascera, 64 65 e Jesus tivera uma mãe, aprendera a ler, ouvira ralhar, fora menino como os outros. E nós não sabíamos compreender os mistérios da Santíssima Trindade. Só depois o catecismo viria destruir a minha crença absoluta nos bichos perigosos do engenho. Muita coisa deles, porém, ficou por dentro da minha formação de homem. 66 21 A velha Totonha, de quando em vez, batia no engenho. E era um acontecimento para a meninada. Ela vivia de contar histórias de trancoso. Pequenina e toda engelhada, tão leve que uma ventania poderia levá-la, andava léguas e léguas a pé, de engenho a engenho, como uma edição das Mil e Uma Noites. Que talento ela possuía para contar as suas histórias, com um jeito admirável de falar em nome de todos os personagens! Sem um único dente na boca, e com uma voz que dava todos os tons às primeiras. As suas histórias para mim valiam tudo. Ela também sabia escolher o seu auditório. Não gostava de contar para o primo Silvino, porque ele se punha a tagarelar no meio das narrativas. Eu ficava calado, quieto, diante dela. Para este seu ouvinte a velha Totonha não conhecia cansaço. Repetia, contava mais uma, entrava por uma perna de pinto e saía por uma perna de pato, sempre com aquele seu sorriso de avó de gravura dos livros de histórias. E as lendas eram suas, ninguém as sabia contar como ela. Havia uma nota pessoal nas modulações da sua voz e uma expressão de humanidade nos reis e nas rainhas dos seus contos. O seu Pequeno-Polegar era diferente. A avó que engordava os meninos para comer era mais cruel que a das histórias que outros contavam. A velha Totonha era uma grande artista para dramatizar. Ela subía e descia ao sublime sem forçar as situações, como a coisa mais natural deste mundo. Tinha uma memória prodigiosa. 67 Recitava contos inteiros em verso, intercalando de vez em quando pedaços de Prosa, como notas explicativas. Havia a história de um homem condenado à morte. Os sinos já dobravam para o desgraçado que caminhava para a forca. Era acusado por crime de morte. Todos os indícios eram contra ele. E quando o cortejo passava pela porta da casa de sua mulher em lágrimas, um filho seu que mamava tirou a boca do peito e começou a falar em verso e descobriu tudo, salvando o pai que ia morrer inocente. Os versos que esse menino recitava, a velha Totonha declamava-os com uma expressão de dor de arrepiar. As lágrimas vinham-me aos olhos com aquele lamento fanhoso de menino de peito a cantar. Havia sempre reis e rainhas nus seus contos, e forca e adivinhações. E muito da vida, com as suas maldades e as suas grandezas, encontrava naqueles heróis e naqueles intrigantes, que eram semPre castigados com mortes horríveis. O que fazia a velha Totonha mais curiosa era a cor local que ela punha nos descritivos. Quando ela queria pintar um reino era como se estivesse a falar de um engenho fabuloso. Os rios e as florestas por onde andavam os seus personagens pareciam-se muito com o Paraíba e a mata do Rolo. O seu barba-Azul era um senhor de engenho de Pernambuco. A história da madrasta que enterrara uma menina era a sua obra-prima. O pai saíra para uma viagem comprida, deixando a filha, que ele amava mais do que tudo, com a sua segunda mulher. Quando partiu, encheu a mulher de recomendações, para que tivesse todos os cuidados com a filha. Era menina de cabelos louros, linda como uma princesa. A madrasta, porém, não lhe queria bem com os ciúmes do amor de seu marido pela menina. Começou, então, a maltratar a menina. Ela era quem ia de pote à cabeça buscar água ao rio, quem tratava dos porcos, quem varria a casa. Nem tinha tempo para brincar com as suas bonecas. Parecia uma criada, com os cabelos maltratados e a roupa suja. 68 Um dia a madrasta mandou-a ficar debaixo de um pé de figueira, com uma vara na mão a espantar os sabiás das frutas. E a menina passava o dia inteiro enxotando os passarinhos famintos. As rolas lavandeiras, aquelas que lavavam a roupa de Nosso Senhor, vinham conversar com ela, contavam-lhe histórias do Céu. Mas um dia ela pôs-se a olhar para o mundo bonito, para o céu azul e a alegria toda do canto dos pássaros. Na sombra da figueira, com aquele mormaço do meio-dia, adormeceu sonhando com o pai que andava longe e com os brinquedos que traria. E os sabiás depenicaram os figos da figueira. Era o que a madrasta queria. Agarrou na menina, deu-lhe uma sova de matar, e enterrou-a, ainda viva, na beira do rio. De volta o pai chorou como um desgraçado, com a notícia da morte da filha. A madrasta disse-lhe que a menina adoecera desde que ele saíra de casa: - Não houve remédio Para a pobrezinha. Uma manhã, porém, o capineiro do engenho saiu para cortar capim para os cavalos. Uma touceira bem verde crescia do meio do capinzal. Ele meteu a serra. Ouviu então de dentro da terra uma voz muito de longe. Pensou que fosse engano dos seus ouvidos e meteu outra vez a serra. Aí uma voz dorida, como a de uma alma sofrendo, levantou-se numa cantiga: Capineiro de meu pai, não me corte os meus cabelos. Minha mãe me penteou, minha madrasta me enterrou, pelos figos da figueira que o passarinho picou. O capineiro assombrado correu para chamar o senhor de engenho. E voltaram com a enxada, e cavaram a terra. A menina estava verde como uma folha de mato. Os cabelos crescidos em touceiras de capim de planta. Os olhos cheios de terra. E as unhas das mãos pretas e enormes. 69 O senhor de engenho chorou como um doido, abraçando e beijando a filhinha. No engenho foi uma festa que durou muitos dias. Os negros dançaram o coco duas semanas e Muitos escravos tiveram cartas de alforria. E amarraram a madrasta às pernas de dois poldros bravos. Os pedaços dela ficaram pela estrada a cheirar mal. Havia também umas viagens de Jesus Cristo com os Apóstolos. Chegava Jesus para dormir num rancho com os seus companheiros. Os donos da casa eram pobres de fazer pena. Nem um pedaço de pão tinham para os hóspedes. Jesus mandou Pedro buscar o saco que ficara com os mantimentos. - Mestre, o saco está vazio. - Homem de pouca fé, vai ver o saco. MaS Pedro sabia que deixara o saco sem coisa nenhuma, mas foi. E encontrou duas cargas de farinha e de carne na porta. MaS, Pedro nestas histórias era um homem que só acreditava no que via e estava sempre a levar descomposturas de Nosso Senhor. A velha Totonha sabia um poema a propósito do naufrágio do paquete Baía nas costas de Pernambuco. Um náufrago contava o que vira do desastre: Oh, que dia de juízo! Oh, que dia de horror! Só as pedras não choravam, que não sentiam dor. Ó mestres e contramestres, pilotos e capitão, vamos ver nosso Baía se quer afundar ou não. Incidente por incidente eram narrados nestes versos: meninos agarrados às mães, em pranto; um choro angustiado de gente que vai morrer; a água entrando dentro do navio; uma velha salvando-se num garajau de galinhas; 70 um homem rico chamado Pataca-Lisa correndo para dentro do camarote para buscar um pacote de dinheiro e não voltando mais: foi ao fundo com a sua riqueza. Todo o poema era uma abundância de detalhes. E na voz plástica da velha a tragédia parecia a dois passos de nós. Ficava arrepiado com esse canto soturno. Vinha-me então um medo antecipado de embarcar em navios, pelo horror das penas do naufrágio desse pobre Baía. Depois sinhá Totonha saía para outros engenhos, e eu ficava à espera do dia em que ela voltasse, com suas histórias sempre novas para mim. Porque ela possuía um pedaço do génio que não envelhece. 71 22 Restava ainda a senzala dos tempos do cativeiro. Uns vinte quartos com o mesmo alpendre na frente. As negras do meu avô, mesmmo depois da abolição, ficaram todas no engenho, não deixaram a "rua", como elas chamavam à senzala. E ali foram morrendo de velhas. Conheci umas quatro: Maria Gorda, Generosa, Galdina e Romana. O meu avô continuava a dar-lhes de comer e vestir. E elas a trabalharem de graça, com a mesma alegria da escravidão. As suas filhas e netas iam-lhes sucedendo na servidão, com o mesmo amor à casa-grande e a mesma passividade de bons animais domésticos. Na rua a meninada do engenho encontrava os seus amigos: os moleques, que eram os companheiros, e as negras que lhes deram os peitos para mamar; as boas servas nos braços de quem se criaram, Ali vivíamos misturados com eles, levando desandas das negras mais velhas, iguais aos seus filhos moleques, na partilha de seus carinhos e de suas zangas. Nós não éramos seus irmãos de leite? Eu não tivera estes irmãos porque nascera na cidade, longe da salubridade daqueles úberes de boas turinas. Mas a mãe de leite de dona Clarisse, a tia Generosa, como a chamávamos, fazia as vezes de minha avó. Toda cheia de cuidados comigo, ralhava com os outros por minha causa. Quando reclamavam por tanta parcialidade a meu favor, ela só tinha uma resposta: - Coitadinho, não tem mãe. Nós mexíamos pela senzala, nos baús velhos das negras, nas locas que elas faziam pelas paredes de taipa, 73 para os seus cofres, e onde elas guardavam os seus rosários, os seus ouros falsificados, os seus bentos milagrosos. Nas paredes de barro havia sempre santos dependurados, e num canto a cama de tábuas duras, onde há mais de um século faziam o seu coito e pariam os seus filhos. Não conheci marido de nenhuma, e no entanto viviam de barriga enorme, perpetuando a espécie sem previdência e sem medo. Os moleques dormiam nas redes fedorentas; o quarto todo cheirava horrivelmente a mictório. Via-se o chão húmido das urinas da noite. Mas era ali onde estávamos satisfeitos, como se ocupássemos aposentos de luxo. O interessante era que nós, os da casa-grande, andávamos atrás dos moleques. Eles dirigiam-nos, mandavam mesmo em todas as nossas brincadeiras, porque sabiam nadar como peixes, andavam a cavalo de todo o jeito, matavam pássaros ao arco, tomavam banho a todas as horas e não pediam ordem para sair para onde quisessem. Tudo eles sabiam fazer melhor do que a gente: soltar papagaios, brincar ao pião, jogar a castanha. Só não sabiam ler. Mas isto, para nós, também não parecia grande coisa. Queríamos viver soltos, com os pés nus e a cabeça ao tempo, senhores da liberdade que os moleques gozavam a todas as horas. E eles às vezes abusavam deste poderio, da fascinação que exerciam. Pediam-nos para furtar coisas da casa-grande para eles: laranjas, sapotis, pedaços de queijo. Trocavam connosco os seus arcos e os seus piões pelos géneros que roubávamos da despensa. E iniciavam-nos nas conversas picantes sobre as coisas do sexo. Por eles comecei a entender o que os homens faziam com as mulheres, por onde nasciam os meninos. Eram uns óptimos repetidores de História Natural. Andávamos juntos nas nossas libertinagens pelo cercado. Havia um quarto dos carros onde iam ficando os veículos velhos do engenho. Dali fazíamos uma espécie de lúpanar para jardim de infância. A nossa doce inocência perdia-se assim nessas conversas parvas, no contacto libidinoso com os moleques da bagaceira. As megras, porém, respeitavam-nos. Não abriam a boca para imoralidades na nossa frente. Estavam elas nas suas palestras de intimidade de cada uma, e mal nos viam mudavam de assunto. E no entanto recebiam os seus homens no quarto com os filhos. O meu primo Silvino contou-nos um dia o que vira no quarto da negra Francisca: - Zé Guedes numa cama de vara ringindo. E todos os anos pariam o seu filho. Avelina tinha filho do Zé Ludovina, do João Miguel destilador, do Manuel Pedro purgador. Herdavam das mães escravas esta fecundidade de boas parideiras. Eu vivia assim, no meio dessa gente, sabendo de tudo o que faziam, sabendo de seus homens, de suas brigas, de suas doenças. No quarto da negra Maria Gorda não se podia entrar. Nunca conseguíamos aproximar-nos desta velha africana. Ela não sabia falar, articulava uma meia língua, e à hora do almoço e do jantar saía da loca pendida em cima de uma vara para ir buscar a ração. Gritava com os moleques e as negras, com aqueles beiços caídos e os peitos moles dependurados. Era de Moçambique, e com mais de oitenta anos no Brasil, falava uma mistura da língua dela com não sei quê. Esta velha fazia-me medo. As fadas perigosas dos contos da sinhá Totonha tinham muito dela. O seu quarto fedia como carniça. Na noite de São João era à sua porta somente que não acendiam fogueira. O diabo dançava com ela a noite inteira. Eu mesmo pensava que a negra tivesse qualquer coisa de infernal, porque, nela, nada senti, nunca, de humano, de parecido com gente. Todos na rua temiam a Maria Gorda. À tardinha sentava-se num caixote à porta de casa, para fumar o seu cachimbo de canudo comprido; mas ficava sozinha, resmungando ninguém sabe o quê. A velha Galdina era outra coisa. Africana também, de Angola, andava de muletas, pois quebrara uma perna ao fazer de cabra-cega para brincar com os meninos. Fora ama de colo 74 75 de meu avô, e todos nós a chamávamos de vovó. As negras queriam-lhe um bem muito grande. A tia Galdina era para elas uma espécie de dona da rua. Não se falava com ela aos gritos, e davam-lhe o tratamento de vossa mercê. Eu vivia em conversa com ela, atrás das suas histórias da costa de África. Viera de lá com dez anos. Furtaram-na ao pai. Um seu irmão vendera-a aos compradores de negros, e marcaram-na no rosto a ferro em brasa. Contava a sua viagem de muitos dias: os negros amarrados e os meninos soltos; de dia punham todos a tomar sol onde viam o céu e o mar. Já estava contente com aquela vida de navio. O veleiro corria como o vapor na linha. E um dia chegaram a terra. Ela levou muito tempo ainda a ser comprada. Os homens que vinham, queriam mais gente grande e molecas taludas. A vovó contava que via almas, pássaros brancos batendo asas pelas paredes. Na viagem, estas almas, de noite, ficavam a voar por cima dos negros amarrados. E ensinava-nos uns restos de palavras que ela ainda sabia da sua língua. Na noite de Natal atrelavam os bois ao carro para a velha Galdina ir ouvir missa ao Pilar. E davam colchões velhos para a cama dela. Por qualquer coisa chorava como uma criança. Quando queriam agarrar a gente para nos surrarem, era para junto dela que corríamos. Ela pedia pelos seus netos com os olhos cheios de lágrimas. A velha Generosa cozinhava para a casa-grande. Ninguém mexia num cacareco da cozinha a não ser ela. E viessem meter-se nos seus serviços, que ouviam gritos, fosse mesmo gente da sala. Tinha não sei quantos filhos e netos. Negra alta e com braços de homem, tirava uma tacha de doce do fogão sem pedir ajuda a ninguém. Só falava a gritar, mas nós tínhamos tudo o que queríamos dela. A negra Generosa era boa como os seus doces e as suas cangicas. Era só pedir as coisas ao seu ouvido, e ela dava-no-las sem ligar importância às impertinências da velha Sinhazinha. 76 - Quem quisesse mandar na cozinha que viesse para a boca do fogo. E quando iam reclamar por qualquer coisa, saía-se com quatro pedras na mão: - Que se quisessem, era assim. Os tempos de cativeiro já tinham passado. Distribuía aos moleques da pastagem as rações de carne- do-ceará e farinha seca. E fazia-o aos gritos, chamando "severgonha" a todos eles. Não se importavam, porém, com esta raiva da velha Generosa. Os moleques sabiam que o coração dela era um torrão de açúcar. Pois dava remédios para as suas tosses e as suas feridas, e remendava-lhes os farrapos das roupas. A senzala do Santa-Rosa não desaparecera com a abolição. Ela continuava pegada à casa-grande, com as suas negras parindo, as boas amas de leite e os bons cabras do eito. 77 23 Depois do jantar o meu avô sentava-se numa cadeira perto do grande banco de madeira do alpendre. O gado não havia chegado da pastagem. Lia os telegramas do Diário de Pernambuco, ou dava as suas audiências públicas aos moradores. Era gente que vinha pedir ou queixar-se. Chegavam sempre de chapéu na mão, com um "Deus guarde a Vossa Senhoria". Queriam terras para plantação, lugar para fazer casas, remédios para os meninos, cartas para meter pessoas no hospital. Alguns vinham fazer queixa dos vizinhos: - Não podiam ter um pau de roça, com os animais do outro destruindo. Os porcos andavam a fossar nos leirões de batatas e os filhos a chupar as caninhas verdes. Já não tinham paciência, vinham queixar-se porque não queriam fazer uma desgraça. - Vou mandar chamar aqui o Chico Carpina. Quero saber bem como isto é. E ficavam pela banca conversando com as negras, contando os seus aperreios à tia Maria, chamando-a para madrinha de mais um filho. Outro vinha a chamado do meu avô. Porém, tudo o que diziam dele era mentira. Nunca vendera um quilo de algodão na balança do Pilar. Nem estava a criar animais de outros engenhos nos pastos da fazenda. Se fosse verdade podia deitar fogo às suas coisas e meter o gado dentro do seu roçado. 79 O meu avô chamava-os de ladrões, de velhacos, e nem mostravam cara de aborrecidos. Parecia que aquelas palavras feias na boca do velhoJosé Paulino não quisessem dizer coisa nenhuma. Muitos vinham arranjar carros do engenho para fazer mudanças, e alguns dar conta de suas meações com o senhor ou pagar o foro do ano. A todos o meu avô ia dando uma resposta ou passando uma descompostura, mas cedendo sempre ao que eles pediam. Uma vez chegoú lá um homem de cara diferente. Estava ali para pedir a protecção do coronel. Tinha matado um sujeito no Oiteiro, e correra para se valer do meu avô. O velho quis saber do crime, Havia sido por questão de mulher. - Vá entregar-se ao delegado. Eu não acoito criminosos. Se matou com razão vai para a rua. Aqui não quero que fique. No júri protejo. Entregue-se à Justiça. Conte a sua história ao juiz. No meu engenho nunca protegi criminosos. Quando a gente está de cima, muito bem. Caiu, lá vem a Polícia cercar a propriedade. Não estou para isso. Outro dia o tenente Maurício entrou nas terras do Quincas do Jatobá para prender um criminoso, e surrou uns moradores que nada tinham com o facto. Pela estrada iam passando os matutos que voltavam das feiras. Às terças, em Itabaiana, aos sábados, no Pilar. O meu avô chamava-os para saber quanto dera a cuia de farinha ou a arroba de algodão. Davam notícia de tudo - do preço dos géneros e dos boatos que corriam. - Feijão verde, de graça, de fazer lama. O coronel Nô Borges vai cair na política. A política está a prender o povo do doutor Odilon. Os matutos já não podem andar de camisa por fora das calças, nas ruas, nem estalar o chicote a tocar os animais. Tem descido muito gado magro do sertão. A carne-de-sol a dois e oito. O doutor Ribeirinho comprou duzentas reses para a solta. Feira ruim, a do Pilar. O povo anda com medo de António Silvino. 80 MaMaram somente dois bois, e sobrou carne no açougue. E daí a pouco aparecia o gado voltando do pasto. O meu avô levantava-se para ver de perto as vacas e os bois de carro de barriga cheia. Indagava dos moleques em que pasto estiveram. Mandava curar as bicheiras dos animais. Havia sempre um boi ladrão que chegava fora de horas. 81 24 - Amanhã vamos passar o dia no Oiteiro. Fui dormir assim, com a viagem na cabeça. Estes passeios a outros engenhos de perto eu fazia-os com alegria, de todo o coração. De manhã bem cedo já estávamos prontos, com o carro de bois à porta. Cobriam o carro com uma esteira de piripiri e forravam as tábuas da sua mesa com um colchão. Era a nossa carruagem ronceira, mas segura. O carreiro Miguel Targino, grande e agigantado como um São Cristóvão, capaz de tirar sozinho o seu carro de um valado, já estava de vara e macaca, esperando a gente para a viagem. Quando a família saía a passeio, chamavam-no para carrear. Todos os seus irmãos eram mestres carreiros: Chico, João e Pedro Targino. Ele, porém" fazia os serviços da casa-grande. O gado na sua mão não apanhava, e ele não ficava sentado à mesa, deixando o carro ao deus-dará. Nunca dera úma virada. Punha-se de vara na mão chamando os bois de cambão para os atalhos, desviando as rodeiras das pedras da estrada: - Ei, Labareda! Ei, Medàlha! E nós saíamos para a grande viagem, com a gente adulta sentada e os meninos dependurados pela mesa do carro, pedindo de quando em vez a Miguel Targino a macaca para tocar os bois do coice. Chamavam-se Medalha e Javanês os do coice, grandes e largos para bem aguentarem o peso e sustentarem as manobras; 83 Estrela e Labareda os do cambão, pequenos e de pescoços compridos, ágeis, os verdadeiros motores do carro. Para estes a vara de ferrão, e a macaca para os do coice. E todos eles atendiam à voz do carreiro. Quando o Miguel Targino fazia um ô descansado, os do coice enterravam os pés na areia, e ninguém arrastava o carro dali. E com um ei, Labareda, de ordem, os do cambão espichavam o pescoço na canga, e lá ia o carro andando. Ainda tudo estava escuro com a madrugada. A névoa dos altos chegava até os cajueiros. Tudo parecia branco daquele lado, como grandes paióis de algodão. Pelo curral começavam a tirar o leite; ouvia-se o falazar dos moleques na manjedoura. Mas o carro já deixara o cercado do engenho, ganhava a estrada de São Miguel. Vinham cargueiros com sacos brancos de farinha e caçuás cheios de louças de barro para a feira do Pilar. O chicote deles estalava naquele silêncio bom da madrugada. Passava-se por casas de moradores ainda com as portas fechadas; os homens, nus da cintura para cima, já estavam a ver o tempo, enquanto os meninos e a mulher se encolhiam no pobre quente das camas de vara. Os bogaris das biqueiras cheiravam no ar frio. Galinhas empoleiradas em árvores, com preguiça de deixar o seu sobrado de galros. Mais adiante o sol espelhava os campos, esquentando as folhas da cana, ainda pingando do orvalho. As casas dos moradores abertas, bem como as portas e as janelas, com a família inteira no terreiro tomando o seu banho de sol, de graça. Às vezes o carro parava para minha tia falar com as comadres, que vinham alegríssimasdar duas palavras com a senhora. E os meninos de camisa comprida tomavam a bênção à madrinha. - Deus te abençoe... E eram mesmo abençoados por Deus, porque não morriam de fome e tinham o Sol, a Lua, o rio, a chuva e as estrelas como brinquedos que não se quebravam. Depois o carro saía - e a casa toda ficava a olhar-nos até dobrar a curva da estrada. Punham sabão nos cocões que começavam a chiar. 84 Carros que levavam gente não cantavam: rodavam mudos pelos caminhos. Agora passava-se à porta do engenho Maravalha. A estrada passava rente à casa-grande. - É o carro do Santa-Rosa. E corriam as primas para falar com a tia Maria. - Deviam apear-se. Tomar café. Chegariam ao Oiteiro muito cedo. Perguntavam por tudo. E a tia Nenén, magrinha, perguntava pelo José Paulino e porque não viera a Sinhazinha. Falavam ao mesmo tempo. Mas a tia Maria na volta apear-se-ia para conversar. E o carro partiu, com promessas de que à noitinha ficaríamos em Maravalha para a ceia. O Oiteiro estava bem perto. Passávamos já pelo balde do açude, coberto de folhas de baronesa. E via-se o sobrado branco aparecendo com os pilares do seu alpendre. Os moleques abriam a porta para o carro entrar. O povo da casa corria para nos receber. Era uma festa, da cozinha à sala de visitas. Levaram a tia Maria para mudar o vestido da viagem. Ofereciam roupas de casa para vestir, davam aos meninos fofas dos outros, As negras do Santa-Rosa todas metidas no seu vestido de recepção, em conversas pela cozinha. Para nós o Oiteiro tinha muito que ver. O senhor de engenho de lá, um primo do meu avô, o coronel Lola, morrera deixando um palácio para os seus. Era a melhor casa de morada da ribeira do Paraíba. Tínha água encanada até na horta. E banheiro de torneira para os criados. O engenho bem tratado, com -um sobradinho de varanda para se vigiar o serviço. O dia que passávamos ali anoitecia depressa. Em cima do sobrado um corta-vento puxava água para os tanques da serventia. Para mim, aquele ruído do moinho, o batuque compassado dos canos, parecia uma música. Nós mexíamos por todos os cantos, com a liberdade que a cerimónia dava às visitas. E os meus primos pequenos de lá abriam-se em gentilezas. Não ficava nada que não víssemos. 85 Havia uma caixa de música, com uns cilindros cheios de espinhos, que me deslumbrava com o Trovador e o Carnaval de Veneza. O meu grande número de concerto era o Trovador. Aquela monotonia de canto de igreja tocava a minha precoce melancolia. Pensava sempre em minha mãe diante de qualquer coisa triste da vida. Esta lembrança acompanhava-me em todos os caminhos da minha sensibilidade em formação. 86 25 Era um menino triste. Gostava de saltar com os meus primos e fazer tudo o que eles faziam. Metia-me com os moleques por toda a parte. Mas, no fundo, era um menino triste. Às vezes dava-me para falar comigo mesmo, e solitário andava por debaixo das árvores da horta, ouvindo sozinho a cantoria dos pássaros. O meu desporto favorito concorria para estes isolamentos de melancólico. Eu andava a apanhar pássaros em alçapão. E, escondido, passava horas inteiras na expectativa do sucesso. Via o canário chegar, pousar em cima da gaiola, trocar as suas carícias com o prisioneiro, lastimar a sorte daquele pobre amigo, e depois subir para o alçapão armado, fitar o milho dentro da armadilha, demorar um bocado, na indecisão de quem vai dar um grande passo na vida, e cair na cadeia. Mas isto demorava horas a fio. Muitos chegavam, examinavam tudo, punham o bico quase dentro do alçapão, e iam-se embora, bem senhores do que se preparava para eles, Enquanto os canários vinham e voltavam, eu metia-me comigo mesmo, nos meus íntimos solilóquios de caçador. Pensava em tanta coisa... E um rastejar de calangro nas folhas secas fazia um ruído como de coisa grande bulindo. Pensava então naquilo em que junto dos outros eu não podia pensar. Já estava no engenho há mais de quatro anos. Mudara muito desde que viera do Recife. - Para o ano - diziam -, iria para o colégio. E o que seria esse colégio? Os meus primos contavam tanta coisa de lá, de um director medonho, de bancas, de castigos, 87 de recreios, de exercícios militares, que me deixavam mesmo com vontade de ir com eles. Mas o engenho tinha tudo para mim. Minha tia Maria tomava conta de mim como se fosse mãe. E a lembrança de minha mãe enchia os meus retiros de cinza. Porque morrera ela? E de meu pai, porque não me davam notícias? Quando perguntava por ele, afirmavam que estava doente no hospital. E o hospital ia-se tornando assim um lugar de onde não se voltava mais. Via gente do engenho que ia para lá, com cartas do meu avô, não voltarem nunca, E as negras quando falavam do hospital mudavam a voz: "Foi para o hospital". Queriam dizer que foi morrer. Tinha um medo doentio da morte. Aquilo da gente apodrecer debaixo da terra, ser comido pelos tapurus, parecia-me incompreensível. Toda a gente tinha de morrer. As negras diziam que alguns ficavam para semente. Eu desejava ser destes felizardos. Porque não podia ficar para semente? Dentro de um navio, enquanto o mundo todo se acabasse. E nesse barco eu via-me cercado de todos os bichos, e a minha tia Maria, a negra Generosa, a vovó Galdina, o meu avô, todos os que me estimavam estariam comigo. Esta horrível preocupação da morte tomava conta da minha imaginação. Uma ocasião estava um trabalhador a morrer no engenho. Levaram-me para vê-lo, estendido na esteira, com a boca meia aberta, arquejando. O homem estava na hora da morte. Aquele rosto lívido e molhado, aqueles olhos a revirarem-se, e a, boca caída, não me deixaram dormir à noite. Acordei aos gritos, com o homem do engenho perto de mim. - Não deviam ter levado este menino para ver essas coisas! E a morte deixou essa imagem gravada na minha memória. Vira também a prima Lili no seu caixãozinho de rosas. Mas não parecia morta a minha pobre prima. Ela fora assim mesmo em vida, tão branca, que morta mudara pouco. O homem do engenho não me deixava ficar sozinho no escuro. Era ele quem eu via quando se apagava a luz para dormir. E só podia dormir com uma pessoa junto de mim. Fiquei um menino medroso. De dia, porém, esperando os meus canários, amava a solidão. Era ela que deixava falar o que eu guardava por dentro - as minhas preocupações, os meus medos, os meus sonhos. O mundo de um menino solitário é todo dos seus desejos. Eu queria ter tudo nesses meus retiros: o tesouro da história de trancoso, o cavalinho de sela, aquela vara mágica das fadas, que transformava tudo no que a gente quisesse. Eu desejava também que a velha Sinhazinha morresse. Então, começava a ver a minha inimiga trucidada, com os cavalos desembestados puxando-lhe o corpo pelos espinhos. Sentia um prazer sem limites quando me caía um canário no alçapão. Não ia para o almoço, entretido com a gaiola da rhama. Procuravam-me por toda a parte. Minha tia Maria ameaçava soltar tudo quanto fosse passarinhos. - Nem come, só a pensar em canários. Absorvia-me inteiramente nesse desporto cruel. Deixava os moleques e os primos para um canto. Mas os meus canários não cantavam. Via-os soltos, com trinados de estalos, dando os seus concertos nos galhos das árvores. Nas gaiolas, irremediavelmente mudos. Faziam greve contra mim. Tratava deles com cuidados maternos. Limpava-lhes as gaiolas, pisava-lhes milho - e nada, calados de vez. Dependurava-os então nas árvores, para ver se os enganava com esse contacto com os palcos dos seus dias de festa. E mudos sempre. Os meus pássaros só trabalhavam ao bom preço da liberdade. As negras ameaçaram-me: - Fazer mal aos passarinhos bota as pessoas no Inferno, menino. Deus nosso Senhor fez os pássaros foi para cantar no mato, soltinhos. Porém, os grandes dias de glória da minha infância dera-mos o meu alçapão, escancarado aos ingénuos canários do Santa-Rosa. 88 89 26 Eu ia para junto dos mestres do ofício, ver os seus trabalhos. Os tanoeiros com as formas e as cubas, os carpinas com as rodas de carro ou lavrando as cumieiras. A enxó descascava os paus-darco, e as plainas iam aos poucos desbastando, alisando, as tábuas de cedro. Seu Firmino carpina, Pinto tanoeiro, seu Rodolfo mecânico, tomavam conta da casa do engenho na vaga da safra. Passavam os seus meses de Inverno raspando madeira e batendo ferro. Gostavam de mim. Mexia nos seus instrumentos, e nem se importavam com as minhas travessuras. O que, porém, mais me prendia aos meus amigos, eram as suas conversas e confissões. O seu Rodolfo sabia de muita coisa. Vivia consertando engenhos desde menino. E de toda a parte trazia uma história. Trabalhara para um marinheiro no engenho do Meio, para o major Ursulino do Itapuá, para o Dr. Pedro do Miriri. Os negros de Ursulino todas as manhãs levavam uma chibatada, à porta da senzala, para aquecer o corpo, O marinheiro dormia na rede, com a garrafa de cana nos braços. A destilação do engenho só trabalhava para a gente da casa-grande. E o seu Rodolfo falava também de mulheres. Quando estivera no Jaburu, apanhara uma carga de gálico que lhe deixara o corpo numa chaga. O mestre Firmino parava com o serviço para ouvir o fim da história. Eu passava o dia inteiro rondando os oficiais nas suas confidências. Contavam a história de uns carpinas num engenho do Brejo. - O senhor de engenho só lhes mandava bacalhau, 91 ao jantar e ao almoço. Passavam o dia inteiro a beber água, com a boca seca. Um dia un deles disse ao negro que não gostava de bacalhau, que não aguentava mais aquilo. No outro dia o tabuleiro com a comida chegou: era peru. É peru de tarde. E a semana toda, peru. Um Domingo, o mestre saiu para dar umas voltas nos arredores. Viu um negro com uma porção de urubus às costas: - O que é isso, moleque? - É peru para os carpinas. Os oficiais anoiteceram e não amanheceram na propriedade dele. E rebentaram-lhe feridas pelo corpo. Estiveram à morte durante muito tempo. - O velho Duda do Riachão não gostava de mulheres. Uma filha fugira con um cambiteiro. Casou a segunda vez. E sempre que a mulher estava para dar à luz, o velho ficava à porta do quarto. Chorava uma criança lá dentro. Batia à porta para a parteira, a saber do sucedido. E se a notícia era ruim, o velho Duda só dizia: "Acabai com ela". - O capitão Quincas, irmão do velho José Paulino, tinha uma mulher chamada Calu. Morava no sítio da sinhá Germínia. Era uma cabrocha bonita. Ele tirara-a menina da família de um morador do Maravalha. Da irmandade, o capitão Quincas parecia o mais arrebatado. O seu tio, Manuel César do Taipu, tinha fama de bravo. Falava aos gritos com toda a gente. Uma vez umas bestas do Santa-Rosa fugiram para o engenho dele. O velho Manuel César mandou pôr os animais na almanjarra, de manhã à noite. Os bichos estavam a comer muito. Ninguém no Santa-Rosa tinha coragem de os ir buscar. O coronel José Paulino respeitava o tio. Tinha medo. O capitão Quincas, quando soube, saiu. Entrou pelo engenho dentro, parou a moagem e cortou os arreios da almanjarra. O velho Manuel César engoliu calado o atrevimento. Era assim o irmão mais moço do coronel. Pois bem, a cabrocha dera corda ao feitor. O homem soube da coisa. Um dia, estavam na planta da cana, aqui, 92 nos cajueiros. Os escravos no eito. O feitor Salvino de lado. O capitão chamou o cabra para junto dele. Os negros levantaram a cabeça do serviço. "Cabra atrevido!" E o chicote cortou-lhe o rosto. Pegaram-se os dois por cima das canas verdes, Rolaram no chão. Brigaram muito. Os negros correram, O capitão Quincas ficara estendido com uma facada no lado esquerdo. O cabra entregou-se, Quiseram matá-lo na peia. O coronel mandou-o para a cadeia. O partido dele estava debaixo, e no júri foi um serviço. O velho Manuel César protegia o assassino do sobrinho. Estava a vingar-se da afronta. O povo do Santa-Rosa vendia o engenho, mas o cabra não saía livre. Arranjou trinta anos em Fernando. À hora do almoço vinham chamar os mestres. Na mesa nem pareciam aqueles das histórias: todos calados, a comer de cabeça baixa. Ficava a olhar para eles, naquela boa humildade dos seus modos. No fim da mesa, parece que nem ouviram o que se dizia. Eram surdos-mudos para as conversas da casa-grande. Aquele irmão mais moço do meu avô passava para a galeria dos meus heróis. O velho José Paulino governava os seus engenhos com o coração. Nunca o vi com armas no quarto. Umas carabinas que guardava atrás do gúarda-roupa, de tão imprestáveis, a gente brincava com elas. Eu queria um senhor de engenho que protegesse assassinos, que tivesse guarda-costas, gente de rifle. Ouvia falar no Dr. Quincas do Engenho-Novo, num seu Né do Cipó-Branco que, com cabras armados, arrombara a cadeia para tirar um protegido das grades. Estes sim, que eram senhores de engenho de verdade. Quando chegavam os parentes do Itambé, o seu Álvaro daAurora, o Manuel Gomes do Riacho Fundo, com os filhos pequenos de botas e faca no colete, punha-me a admirá-los como os meus grandes modelos. Meu avô falava das eleições da monarquia, dentro das igrejas. Os senhores de engenho iam até às armas, nas disputas. Brigavam pelos seus partidos, profanavam os templos de Deus, arrombando urnas e queimando actas. 93 No Brejo-de-Areia, Félix António levantou o povo contra o Governo. De Goiana saiu um exército para atacar o Recife. Os senhores de engenho iam à frente com os seus negros. Mas o velho José Paulino não era homem para tais coisas. Ele era temido mais pela sua bondade. Não havia coragem de levantarem a voz para aquela mansa autoridade de chefe. Não tinha adversários na sua comarca. Os seus inimigos eram mais de sua família do que dele. Herdara-os com o Santa-Rosa. O meu grande senhor de engenho teria outro tipo. O irmão que morrera brigando, o capitão Quincas Vieira, esse sim, eu quisera que vivesse, para o gozo da minha vaidade. 94 27 Até que afinal conseguira o meu carneiro para montar. Vivia a pedi-lo ao tio Juca, ao primo Baltasar do Beleza, a todos os parentes que tinham rebanho. Um dia chegou um carneiro para mim. Já vinha manso e era mocho, Carneiro nascido para montaria. Chamava-se Jasmim. Via chegar ao engenho os meninos do Zé Medeiros, do Pilar, cada um no seu carneiro arreado, esquipando pela estrada. E uma grande inveja enchia o meu coração. Comecei então a alimentar o sonho de ser dono também de um cavalinho daqueles. E um sonho de menino é maior que os de gente adulta porque fica mais próximo da realidade. O meu tomara conta de todas as minhas faculdades. E de tanto pedir, eu entrara na posse do objecto sonhiado. Já tinha o meu carneiro Jasmim. Faltavam-me a sela e os arreios. Sonhei também noites inteiras com o meu corcel todo metido nos seus arreios de luxo. Queria-os, e, por fim, mandaram fazê-los em Itabaiana. Os canários do Santa-Rosa iriam cantar sem a sedução da minha armadilha escancarada. Era todo agora para o meu carneiro chamado Jasmim. Conduzia-o de manhã para o pasto, levava água fria para ele beber, dava-lhe banho com sabonete, penteava-lhe a lã. E à tardinha saía para os meus passeios. Esses passeios, sozinho, pela estrada, montado no meu Jasmim penteado, arrastavam-me a pensamentos de melancólico. Deixava a dócil cavalgadura à rédea solta, e fugia para dentro do meu íntimo, Pensava em coisas ruins - no meu avô morto, e no que seria do engenho sem ele. Ouvia sempre dizer. 95 - Quando o velho fechar os olhos, quem vai sofrer é a pobreza do Santa-Rosa. E esta ideia da morte do velho José Paulino dominava as minhas cogitações. Quem tomaria conta do Santa-Rosa, quem pagaria aos trabalhadores? O carneirinho, com o passo miúdo, andava os meus caminhos, e eu nem os olhava, embebido que estava nos meus pensamentos. Pensava muito na minha tia Maria. Ela estava a preparar-se para casar com o meu primo do Gameleira. Não sei quantas costureiras cosiam as suas camisas e as súas saias brancas. Bordavam letras nas fronhas. E ela comprava as rendas da terra que apareciam. Havia na horta um girau com craveiros trabalhando para o dia do casamento. Ia-se embora a minha grande amiga. Mas um incidente qualquer arrancava-me dessas cogitações. E começava a ver a estrada de verdade. O Jasmim sabia andar os seus caminhos com segurança, conhecia os atalhos e os desvios das poças de água. Eu parava quase sempre à porta dos moradores. As mulheres, sem casaco, quase com os peitos de fora, faziam renda sentadas pelos batentes. Os filhos corriam para ver o meu carneiro e pediam uma montada. Ficava a brincar com eles, misturado com os pequenos servos do meu avô, com eles subindo às pitambeiras e comendo genipapo maduro, sujo de terra, que encontrávamos pelo chão. Contavam-me muita coisa da vida que levavam, dos ninhos de rola que descobriam, dos preás que apanhavam para comer, das botijas de castanha que faziam. Muitos deles amarelos, inchados, coitadinhos, das lombrigas que lhes comiam as tripas. As mães davam-lhes jaracatiá" e eles passavam dias e dias obrando ralo como passarinho. Cresciam, e eram os homens que ficavam de sol a sol, no eito puxado do meu avô. As mulheres perguntavam pelas coisas do engenho, queriam saber de tudo: do casamento de minha tia, da saúde de toda a gente. E quando eu pedia água para beber, iam arear o caneco de folha, para me darem a água barrenta de seu gasto. 96 Na volta não se esqueciam das lembranças, dos remédios que a tia Maria prometera. E entregavam-me pacotes de renda: - Diga à Maria Menina que é para o enxoval dela. E também plantavam craveiros pensando no dia do casamento da filha do senhor de engenho. O sol ia já quase escondido, nas minhas caminhadas de volta. Por debaixo das cajazeiras, o escuro frio da noite próxima. O carneiro corria. E o medo daquele silêncio de fim de dia, daquelas sombras pesadas, fazia-me correr depressa com o meu corcel. Trabalhadores, de enxada ao ombro, vinham do serviço para casa. Conversavam às gaitadas, como se as doze horas do eito não lhes viessem pesando nas costas. 97 28 O Santa-Fé ficava encravado no engenho do meu avô. As terras do Santa-Rosa andavam, léguas e léguas de norte a sul. O velho José Paulino tinha este gosto: o de perder a vista nos seus domínios. Gostava de descansar os olhos em horizontes que fossem seus. Tudo o que tinha era para comprar terras e mais terras. Herdara a Santa-Rosa pequeno, e fizera dele um reino, rompendo os seus limites pela compra de propriedades anexas. Acompanhava o Paraíba com as várzeas extensas e entrava caatinga adentro. Ia encontrar as divisas de Pernambuco nos tabuleiros de Pedra-de-Fogo. Tinha mais de três léguas, de estrema a estrema. E não contente do seu engenho possuía mais oito, comprados com os lucros da cana e do algodão. Os grandes dias da sua vida davam-lhos as escrituras de compra, os bilhetes de sisa que pagava, os bens de raiz que lhe caíam nas mãos. Tinha para mais de quatro mil almas debaixo da sua protecção. Senhor feudal ele foi, mas os seus párias não traziam a servidão como um ultraje. O Santa-Fé, porém, resistira a essa sua fome de latifúndios. Sempre que via aqueles condados na geografia, espremidos entre grandes países, lembrava-me do Santa-Fé. O Santa-Rosa crescera a seu lado, fora ganhar outras posses contornando as suas encostas. Ele não aumentara um palmo e nem um palmo diminuíra. Os seus marcos de pedra estavam ali nos mesmos lugares de que falavam os papéis. Não se sentiam, porém, rivais, o Santa-Fé e o Santa-Rosa. Era como se fossem dois irmãos muito amigos, que tivessem recebido de Deus uma protecção de mais 99 ou uma protecção de menos. Coitado do Santa-Fé! Já o conheci de fogo morto. E nada é mais triste do que um engenho de fogo morto. Uma desolação de fim de vida, de ruína, que dá à paisagem rural uma melancolia de cemitério abandonado. Na bagaceira, crescendo, o mata-pasto de cobrir gente, o melão entrando pelas fornalhas, os moradores fugindo para outros engenhos, tudo deixado para um canto, e até os bois de carro vendidos para dar de comer aos seus donos. Ao lado da prosperidade e da riqueza do meu avô, eu vira ruir, até no prestígio da sua autoridade, aquele simpático velhinho que era o coronel Lula de Holanda, com o seu Santa-Fé caindo aos pedaços. Todo barbado, como aqueles velhos dos álbuns de retratos antigos, sempre que çaía de casa era de cabriolé e de casimira preta. A sua vida parecia um mistério. Não plantava um pé de cana e não pedia um tostão emprestado a ninguém. - Coitado do Lula -- diziam os senhores de engenho em suas conversas. - Atrasou-se. E o seu engenho perdera até o nome bonito, chamavam-no somente de engenho do seu Lula. Diziam então que ele vivia de uma botija que arrancara ao avô. As suas visitas ao Santa-Rosa eram sempre de cerimónia. Tiniam na estrada as campainhas, e lá vinha o seu Lula com a família, com os cavalos magros da sua carruagem. Iam sempre para a sala de visitas, numa distância de estranhos que se encontrassem pela primeira vez. A Nenén do seu Lula, sua filha, educara-se nos colégios de Recife. Falava diferente do meu povo. Eu olhava para ela, sentindo uma criatura que nunca tinha visto. Sentava-se como se estivesse de castigo, sem um movimento de vida, numa posição só, desde que entrava até que saía. E dona Amélia, pequenina, petrificara-se também, na etiqueta. Sabia tocar piano, casara-se com o coronel Lula de Holanda, no Recife. Para o Santa-Rosa, a visita dessa gente educada de mais tornava-se um suplício. A minha tia Maria já nem tinha conversa. Os assuntos todos tinham-se ido embora. 100 Ficavam então calados, a olhar uns para os outros, até à noitinha, qùando saíam. Nós interessávamo-nos pelo cabriolé. As histórias de trancoso falavam muito das carruagens. E sinhá Totonha contava-nos os seus romances, com princesas que andavam pelas estradas reais, em carros que tinham as campainhas como o de seu Lula. Maria Borralheira perdera um sapato ao descer de uma carruagem daquelas. Passava pelo Santa-Fé, quando ia para a escola. A mesma tristeza, todas as manhãs e todas as tardes. O mato a tomar conta do engenho. E a várzea com ressocas acanhadas, uns restos de cana que o tempo ia deixando viver, no meio do pasto grande. As casas dos moradores a cair. Morava numa melhor o velho JosÉ. Amaro sapateiro, que não plantava nada. Eu via o seu Lula à porta. Não tirava a gravata do pescoço. mandava parar o cavalo para saber notícias do coronel José Paulino. Muito solene, muito parecido com aqueles senhores arruinados da Califórnia, que a gente vê no cinema, com os Americanos a tomarem conta das terras deles. Corriam histórias da casa do seu Lula: o povo de lá não comia, as negras viviam de jejum; uma lata de manteiga era para um mês; as vacas trabalhavam nos carros de bois. E ele tinha dinheiro em ouro enterrado. Quando se ia a pé para o Pilar, via-se pela faxina da sua horta uma sua irmã maluca, Dona Olívia, andando de um lado para outro, falando só. Com os cabelos todos brancos e soltos, nunca vi uma imagem tão pungente de dor. Não me contavam nada da sua vida. Parecia mesmo que não tinha história. O meu avô olhava para o seu vizinho com certo respeito. Dava-lhe a presidência da Câmara, como se quisesse corrigir com honrarias aquela crueldade de destino. Os moleques contavam-me que o primeiro nome do Santa-Fé fora Pegue-Aqui-por -Favor. O pai do seu Lula era um unhas-de-fome. Levantara o engenho com o povo que passava na estrada. "Pegue aqui por favor", e ia levantando a cumieira, 101 cobrindo a casa. E por isso ninguém ali progredia. Aquele destino sombrio preocupava-me. Nas visitas ao Santa-Fé demorava-me a olhar os quadros, os candeeiros bonitos, os tapetes, os móveis ricos de lá. Havia sempre uma nobreza naquela ruína. Dona Amélia tocava piano, e a conversa era sempre de cerimónía. A doida às vezes aparecia sentada a um canto, olhando-nos de longe, com a boca bulindo, como se comesse as palavras. Ouvia-se um sussurro de todo aquele cochichar com o desconhecido. Uma noite bateram à porta do engenho. Era uma carta do seu Lula chamando o meu avô com urgência. Depois soube-se. O velho estava dentro de casa como um leão enfurecido. Um Dr. Luís Viana queria roubar-lhe a filha. Dois negros com espingarda de caçar passarinhos e o seu Lúla de clavinote. A casa toda escorada com trancas. A filha e a mulher a chorarem no santuário. Tinha apanhado uma carta combinando a fuga. E dali a filha não saía, com ele vivo, Tudo aquilo, porém, era mais de sua imaginação. Ninguém queria roubar Dona Neném. Isso só serviu para a mangação da cabroeira. Fizeram até versos com o roubo da moça. Seu Lula falava em voz alta, repetindo as palavras com um "já ouviu?", autoritário, no fim. Dizia uma mesma coisa duas, três vezes. De tarde aparecia para conversar com o velho José Paulino. Eu ficava a ouvir o que ele dizia. O meu avô só escutava. O seu vizinho sabia muita coisa mais do que ele. - Pobre do Lula - dizia, quando lhe vinham contar histórias do seu amigo. E o açúcar subia e o açúcar descia - e o Santa-Fé sempre para trás, caminhando devagar para amorte, como um doente que não tivesse dinheiro para a farmácia. 102 29 Já estava mais crescido, quando comecei a sofrer de asma. Uma moléstia horrível que me deixava sem fôlego, com o peito chiando, como se houvesse pintos a sofrerem dentro de mim. Tenho uma impressão de terror das minhas noites de asmático, dos meus dias compridos em cima da cama, dos vomitórios abomináveis que me davam. Eram acessos de mais de três dias. Depois a convalescença, sem poder pisar o terreiro, sem ir ao alpendre por causa do mormaço, do relento, dos chuviscos. Não comia frutas, não tocava em coco, assavam-me a cana para chupar, num resguardo rigoroso de mulher parida. Mandavam ao meu quarto para brincar comigo os moleques menores, mas eles enjoavam-se daquela companhia de enfermo e deixavam-me sozinho, abandonavam-me, E, sozinho, começava a vencer o tempo com as minhas cismas de menino. Os primos tinham chegado do colégio mudados, nos primeiros dias. - Os meninos só se endireitam no colégio -- era como toda a gente julgava essa cura milagrosa. Dentro em pouco voltaram a ser os mesmos diabos de antigamente. O engenho estava a moer. Do meu quarto ouvia o barulho da moenda quebrando a cana, a gritaria dos cambiteiros, a cantiga dos carros que vinham dos partidos. A fumaça cheirosa do mel entrava-me de janelas adentro. O engenho todo na alegria rural da moagem. E o diabo daquela asma tomando-me a respiração, deixando-me sem ar e com um gosto amargo na boca. 103 Olhava para as réstias que as telhas de vidro espalhavam pelo quarto. Elas iam fugindo devagarinho, até subirem pelas paredes, redondas ou ovais, e, enfim, desapareciam, quando não havia mais sol no telheiro. Às vezes vinham de cima, como uma flecha, e enfileiravam num canto. Eu tinha visto esse jacto de luz nas estampas do santuário. Diziam que era o Espírito Santo entrando em nossa senhora. O menino Jesus havia saído dessa réstia de sol vinda do céu. Jesus viera do céu, mas os outros meninos não seriam como ele. Eram os homens que faziam os meninos. Tudo igual ao que a gente via nos cercados. O meu avô passava pelo meu quarto para me ver: não tinha febre, dizia, e ia-se embora. A febre, para ele, era o grande mal, e o seu grande remédio a lavagem. As moléstias do engenho tinham o seu diagnóstico e a sua medicina certa: sarampo, bexigas doidas, papeira, sangue novo. Saindo dali era febre. O velho José Paulino tratava de tudo, fazia sinapismos de mostarda, dava banhos quentes, óleo de rícino, jaracatiá para vermes. Curava assim os negros, os netos, os trabalhadores. E lancetava furúnculos. Uma vez um carro de bois passara por cima do pé de um carreiro, esmigalhando-lhe um dedo. O meu avô cortou à tesoura aquele pedaço de carne dependurada, pôs tintura de jucá na ferida e amarrou com tiras de uma camisa velha o pé de Chico Targino. Para a minha asma prescreviam vomitórios de cebolas cem-cem. Minha tia Maria ficava comigo enquanto eu me extenuava nos vómitos desesperados. A asma, porém, só passava com o tempo. Piava no peito até quando bem quisesse. As noites pareciam-me uma eternidade. Ficava acordado na ânsia miserável do acesso, horas seguidas, de olhos fechados, com o meu medo do escuro. Depois via a madrugada entrar pelas telhas-vãs do quarto, e ouvia os passos do meu avô andando pela calçada, para o seu banho frio das quatro horas. 104 O rumor do curral, o apito do engenho chamando o povo para o trabalho pareciam-me uma novidade de todos os dias. Mais tarde os pássaros cantavam as suas matinas no gameleiro. Eram noites de pieira que envelheciam a minha meninice, mas obrigavam os meus olhos cansados da escuridão a esperarem extasiados as madrugadas. Quando o sol se abria, chegavam as réstias ao meu quarto. Havia mesmo uma em cima da minha cama, bem redonda, junto dos meus travesseiros. Estendia as mãos para lhe sentir a quentura, e via as nuvens passando por ela a carreiras ou devagar. Devagarinho lá iam deixando o meu leito de doente; faziam apenas uma visita ao enfermo, e já estavam com a metade pela barra da cama, e caíam no chão, onde se iam arrastar o dia inteiro. Eu entretinha a minha doença com esse cinema, em que o sol e as nuvens faziam de artistas. 105 30 O quarto do meu tio Juca estava fechado à chave o dia inteiro. Ali só entrava a negra que lhe fazia limpeza e mudava as roupas da cama. Mas quando aos domingos descansava na sua grande rede do Ceará, de varandas a arrastar no chão, eu ia ter com ele. O meu tio punha-me ao seu lado, e brincava comigo. Era o único sobrinho com quem se dava de intimidade. Ele tinha muita coisa para me mostrar: os seus álbuns de fotografias, os seus livros de muitas gravuras, o Malho, que assinava, cheio de gente de cara virada do avesso. Lia as histórias todas do Malho, com retratos dos políticos e com um Zé-Povo que tinha resposta para tudo. - Ali não mexa - dizia-me quando eu tocava por acaso num pacote embrulhado em cima da cómoda. Num dia em que ele me deixou sozinho, corri sôfrego para o objecto da proibição; uma colecção de mulheres nuas, de postais em todas as posições da obscenidade. Não sei para que meu tio guardava aquela nojenta exposição de porcarias. Sempre que sucEdia ficar sem ele no quarto, era para os postais imundos que eu corria. Sentia uma atracção irresistível por aquelas figuras descaradas de meu tio Juca. Uma vez em que ele se demorou muito, fora não sei onde, entretive-me com as gravuras longo tempo. O meu tio apanhou-me de surpresa com o pacote na mão. Pôs-me para fora do seu quarto. Eu não era digno da sua intimidade, dos segredos da sua alcova. Mas ficava-me dos seus aposentos uma saudade ruim daquelas mulheres e daqueles homens indecentes. 107 31 Um moleque chegou, a gritar: - O partido da Paciência está a arder! Tinha sido faísca do comboio, decerto. O povo todo correu para lá, com enxada, foice, pedaços de pau. Via-se a fumaceira do outro lado do rio, tomando o céu todo. - Mande chamar o pessoal do eito - gritava o meu avô. E daí a pouco chegavam os cabras em disparada, para os lados do partido. O fogo ganhava o canavial com úma violência danada. As folhas da cana estalavam como taboca a arder. Parecia tiroteio de verdade. - Corta o fogo no Riacho-do-Meio! Era a única forma de atalhar o incêndio para salvar o resto do partido, meter a enxada e a foice no riacho que cortava o canavial, abrindo aceiros de lado a lado. A casa de palha do negro Damião, comeu-a o fogo num instante. Nem tiveram tempo de tirar os trastes. O vento soprava, atirando faíscas à distância. Mil línguas de fogo devoravam as canas maduras, com uma fome canina. E o vento insuflando este apetite diabólico, com um sopro que não parava. Mas os cabras do eito estavam ali para conter aquela fúria. E o meu tio Juca no meio deles. As enxadas tiniam no massapê, as foices cantavam nas touceiras de cana, abrindo os aceiros para barrar a corrida das chamas. E batiam no fogo com galhos de mato verde, gritando como se estivessem numa batalha. 109 Ficávamos de longe, vendo e ouvindo as manobras e o rumor do combate. Os meus olhos choravam com a fumaça, e o cheiro de mel de cana queimada rescendia no ar. Descia gente das caatingas para um adjutório. E com o escurecer, o fogo era mais vermelho. Agora as chamas subiam mais para o alto, porque o vento abrandava. Os cabras andavam por cima das brasas, chamuscavam os cabelos, nessa luta braço a braço com um inimigo que não se rendia. - Olha, a casa do Zé Passarinho está a arder! Zé Guedes correu para dentro das chamas, e voltou com a velha Naninha, entrevada, nos braços, atirando-a para o chão como um saco de açúcar. - Ataca o fogo - gritava meu tio, de panavoeiro na mão. O meu tio Juca crescia, para mim, neste arranco de coragem com os seus cabras. Estava metido com eles no mesmo perigo e no mesmo aperreio. Chegavam moradores de Maravalha e de Taipu. E eram para mais de quinhentos homens que enfrentavam o inimigo desesperado. Não passaria do riacho, porque todo ele estava tomado de aceiros. E gente com galhos nas mãos para esperar o avanço. O vento abandonara o aliado no campo da lúta. E só se via gente com os pés queimados, a cara tisnada, os olhos vermelhos, as roupas em tiras. Zé Guedes com o peito em chaga viva. E o pretume do canavial a fumegar. - É preciso deixar gente nos aceiros a noite toda. No engenho, o meu avô punha jucá nos feridos. A destilação abria-se para uma bicada. A boca de fogo podia fazer mal. E o eito esperava por eles de manhãzinha. 110 32 Estavam na limpa do partido da várzea. O eito bem pertinho do engenho. Da calçada da casa-grande viam-se no meio do canavial aquelas cabeças de chapéu de palha velho subindo e descendo, no ritmo do manejo da enxada: uns oitenta homens comandados pelo feitor JoSé Felismino que; de cacete na mão, vigiava o serviço deles. Pegava com o sol das seis, até à boca da noite. Às vezes eu ficava por lá, entretido com a conversa dos cabras. Trabalhavam conversando, bulindo uns com os outros, os mais moços com gabarolices de mulheres. Outros muito calados olhavam para o chão, cumprindo a sua tarefa com a cara fechada. Assim, poucos. Os demais raspavam a junça dos partidos contando histórias e soltando ditos. - Deixem-se de conversas! - gritava seu José Felismino -, Vamos para diante com o serviço. Daqui a pouco o coronel está aqui a gritar. E a enxada tinia no barro duro, e ele espalhando com os pés o mato que ficava atrás. O sol espelhava nas costas nuas; corria o suor em bica dos lombos encharcados. Manuel Riachão puxava o eito na frente, como um capataz. Era o mais ligeiro. De cabeça enterrada nos ombros, a enxada nas suas mãos raspava como uma máquina a terra que aparecesse na frente. Sempre na dianteira, deixando os companheiros para trás. O moleque Zé Passarinho a remanchas, o último do eito. Não havia grita que animasse. aquela preguiça alcoolizada. Também ganhava dois cruzados, davam-lhe a mesma diária das mulheres na apanha do algodão. 111 - Tira a peia da canela, moleque safado! O diabo não anda! E ele atrás, na maciata, com os pés roliços de bicho e o corpo a rebentar em moléstias do mundo. Paravam às dez horas, para o almoço de farinha seca com bacalhau. Comiam na marmita de folha, lambendo os beiços como se estivessem em banquetes. E deitavam-se por debaixo dos pés de juá, esticando o corpo no repouso dos quinze minutos. De alguns, as mulheres traziam a comida num pano sujo; a carne-do-ceará assada, com farofa fria. Pegavam no trabalho outra vez, até às seis da tarde. O meu avô vinha ver a "canalha" no trabalho forçado. - Que está esta gente a fazer, seu José Felismino? Oitenta pessoas, e o partido no mato? em eito de mulher! Não se importavam com a gritaria do velho. Aquilo era de todos os dias, fizessem eles muito ou fizessem pouco. Só tinha boca, o coronel José Paulino. Chamava nomes a todos, descompunha-os como a malfeitores, mas não havia um ali que não estivesse com dias adiantados no livro de apontamento. Cachorrinhos com a barriga encolhida, de magros, acompanhavam os seus donos para a servidão. Rondavam pelos cajueiros, perseguindo os preás. Porém, não pisavam o terreiro da casa-grande. Os cachorros gordos do engenho não davam tréguas aos seus infelizes irmãos pobres. João Rouco vinha com três filhos para o eito. A mulher e os meninos ficavam em casa, no roçado. com mais de setenta anos, aguentava o repuxo todo, como o filho mais novo. A boca já estava murcha, sem dentes, e os braços rijos e as pernas duras. Não havia rojão para o velho caboclo do meu avô. Não era subserviente como os outros. Respondia aos gritos do coronel José Paulino, gritando também. Talvez porque fossem da mesma idade e tivessem em pequenos brincado juntos. - Cabra malcriado! E quando precisava de gente boa, para um serviço pesado, lá ia um recado para João Rouco. O velho Pinheiro não prestava para nada. Roubava como boi ladrão, vivia de intrigas no engenho. E os filhos, a mesma cambada. Quando vinha ao eito, passava o tempo queixando-se de dores. Mandavam-no então para serviços maneiros. Ouvia os desaforos do feitor com a cara mais serena do mundo. E os seus vizinhos não criavam galinhas, porque ele era como uma raposa com fome. Também para os cabras do eito não valia nada. Ao João Rouco, respeitavam-no de verdade. Tratavam-no de seu João, e para ele não vinham com brincadeiras. Nós mesmos, os meninos da casa-grande, as negras da cozinha, os moleques do engenho, púnhamos o velho João Rouco numa categoria diferente. Em tempos de emergência, o eito avolumava-se com os foreiros e os lavradores. Desciam para um adjutório ao senhor de engenho. Mais de duzentas enxadas espalhavam-se pelos canaviais. Os foreiros e os lavradores, os pequenos burgueses do engenho, desciam do seu mandado para este contacto ombro a ombro com os párias. E não recebiam nada pelo dia que davam. Queriam assim fugir da indignidade do eito, trabalhando de graça. Quando havia ajuntamentos destes, para nós, meninos, era um espectáculo. Levavam mel de furo, para regalada merenda dos cabras. E à noite o terreiro da casa-grande enchia-se com um exército de esfarrapados. Bebiam cachaça nos dias de chuva, e voltavam para casa para o sono miserável da cama de vara. O costume de ver todos os dias esta gente na sua degradação habituava-me à sua desgraça. Nunca, menino, tive pena deles. Achava muito natural que vivessem dormindo em chiqueiros, comendo pouco, trabalhando como burros de carga. A minha compreensão da vida fazia-me ver nisto uma obra de Deus. Eles nasceram assim porque Deus quisera, e porque Deus quisera nós éramos brancos e mandávamos neles. Mandávamos também nos bois, nos burros, nos matos. 112 113 33 O meu avô costumava, à noite, depois da ceia, conversar para a mesa toda, calada. conttava histórias de parentes e de amigos, dando, dos factos, os mais pitorescos detalhes. - Isto deu-se antes da cólera de 48 ou depois da cólera de 56. Eram os sinistros marcos das suas referências. O seu grande motivo era, porém, a escravidão. - Tio Leitão batia nos negros como em bestas de almanjarra. Tinha uma escravatura pequena: um negro só para mestre de açúcar, purgador, pé-de-moenda. - O major Ursulino de Goiana fizera a casa de purgar no alto, para ver os negros que subiam a ladeira com a caçamba de mel quente à cabeça. Cortavam cana com a corrente tinindo nos pés. Uma vez um negro dos Picos chegou à casa-grande do major, calçado e engravatado. Vinha conversar com o senhor de engenho. Subiu as escadas do sobrado oferecendo cigarros. Estava ali para prevenir das destruições que o gado do engenho fizera na cana dos Picos. Ele era o feitor de lá. O seu senhor pedira para levar este recado. O major calou-se, afrontado. Mandou comprar o negro ao outro engenho. Mas do negro só uma banda ainda era escrava. Pertencendo a duas pessoas numa partilha, um dos herdeiros libertara a sua parte. Então o major comprou a metade do escravo. E trouxe o atrevido para a sua bagaceira. E mandou chicoteá-lo no carro, a cipó de couro cru, somente do lado que lhe pertencia. 115 Esta história do banda-forra, o meu avô contava-a para mostrar a ruindade do velho Ursulino. Era raro o senhor de engenho de coração duro para os escravos. Os dele vestiam e comiam com fartura. - Negro só mesmo com barriga cheia. Era verdade que havia alguns que pediam cipó de boi. Ali mesmo no Santa-Rosa, uma escrava deitara uma erva venenosa no caldeirão de comida dos escravos. Quase que morria tudo de dor de barriga. Tinha-se inimizado com uma crioula por causa de um negro, e queria matar o resto. Os jornais, na abolição, falavam de senhores de engenho que matavam negros a relho. Ninguém hoje mata boi de macaca. Queria-se o negro gordo para o trabalho e a revenda. Não se ia deitar fora um conto nem dois de réis. Aqui comiam até fartar, e na várzea só Ursulino punha negros em correntes. Também os escravos dele eram uma desgraça. Quem tinha o seu negro fujão vendia-o para o eito do Itapuá. Mandavam-se escravos para o Úrsulino como hoje se mandam meninos para a marinha - para amansar. E a gente do Partido Liberal pôs a Ursulino o nome de "barão do couro cru". Quando veio o 13 de Maio, fizeram um coco no terreiro até alta noite. Ninguém dormiu no engenho, com o zabumba batendo. Levantei-me de madrugada, para ver o gado sair para a pastagem, e encontrei-me com a negrada, de enxada ao ombro: iam para o eito. E aqui ficaram comigo. Não me saiu do engenho um negro só. Para esta gente pobre a abolição não serviu de nada. Vivem hoje comendo farinha seca e trabalhando a dias. O que ganham nem dá para o bacalhau. Os meus negros enchiam a barriga com anu de milho e ceará, e não andavam nus, como hoje, com tudo à mostra. Só vim a ganhar dinheiro em açúcar com a abolição. Tudo o que fazia dantes era para comprar e vestir negros. "Cabeça-de-Puque ensinava os meninos de Manuel António do Bonito. Um dia desapareceu um dinheiro de ouro do velho. Atirou-se logo a culpa para cima do mestre. 116 E judiaram com o homem de tal forma, para descobrir o roubo, que o deixaram a morrer. Dias depois prenderam um pedreiro em Itabaiana, que estava a trocar dinheiro em ouro na feira. Então tudo ficou descoberto. O pedreiro trabalhava retelhando o sobrado do Bonito, quando viu o velho Manuel António pondo um saquinho debaixo de uma galinha choca, deitada. Era ali a burra do engenho. E por causa desta surra no Cabeça-de-Puque o senhor de engenho andou pelos matos até o Partido Conservador subir. Dom Pedro chegou ao Pilar uma tarde. Ninguém esperava por ele. A casa da Câmara estava fechada. Era certo que estaria na vila no outro dia, mas o imperador só andava a correr, cansando os cavalos. Quando a cavalhada entrou na rua grande, o povo todo correu para ver. Dom PEdro parou defronte da casa da Câmara. Vieram abrir. Tio Henrique, vereador, tremia de medo. Não havia nem uma cadeira lá dentro. Estava tudo no marceneiro a envernizar. A grande sala do júri, vazia. Dom Pedro subiu, com o seu grande chapéu do Chile, olhou para todos os lados: não viu móveis. Atirou o chapéu para o chão e deitou-se na rede do pedreiro que estava a limpar a casa para a festa. O presidente da província mandou prender o tio Henrique pelo desastre. Estas histórias do meu avô prendiam-me a atenção de um modo bem diferente daquelas da velha Totonha. Não apelavam para a minha imaginação, para o fantástico. Não tinham a solução milagrosa das outras. Puros factos diversos, mas que se gravavam na minha memória como incidentes a que eu tivesse assistido. Era uma obra de cronista ressumando realidade. A história inteira da família era contada nestes serões de depois da ceia. O avô do velho José Paulino viera de Pasmado, com um irmão padre para São Miguel. Fundara ali pelas várzeas e caatingas do Paraíba uma grande prole de senhores de engenho. Espalhara sangue de branco por entre os caboclos daquelas redondezas. 117 Por isso a gente do Taipu falava de bronquidade com a boca cheia. - Hoje em dia está tudo a tornar-se camumbembe - dizia o meu avô. - Este negócio de família já não é dote para moça casar. Ele tinha o orgulho da casta, a única vaidade daquele santo que plantava cana. 118 34 A minha primeira paixão tinha sido pela bela Judite, que me ensinara as letras no seu colo. O meu coração de oito anos arrebatava-se agora com mais violência. Estavam no engenho a passar uns tempos umas parentas do Recife. Era uma gente que não tirava as meias de manhã à noite; falavam francês uma com a outra, só conversavam de negócios de teatro: o tenor Tal, que belo homem!, a artista Fulana, que chique! As filhas do tio João, quando chegavam ao engenho, revolucionavam os hábitos pacatos da casa-grande. Só viviam metidas nos banhos mornos, dando trabalho às negras, lendo romances nas cadeiras de balanço. Punham esteiras de piripiri por cima dos quartos delas, porque tinham medo da telha-vã: podiam cair bichos de lá. Os moleques passavam o dia inteiro espantando os sapos das calçadas. Elas fugiam das baratas, aos gritos. E até em nós esta influência se exercia: não tirávamos os sapatos dos pés, por causa da gente do Recife. A tia Maria desdobrava-se em cuidados, temendo a língua das parentas civilizadas. Uma delas dissera em carta, para uma amiga da cidade, que o povo do Santa-Rosa só tinha de gente os olhos. E enchiam a casa de chiliques e de cheiros de essência. Aos domingos iam de chapéu à missa do Pilar. E censuravam o pessoal do engenho, porque, a meia légua da igreja, ficava em casa nos dias de obrigação. - José Paulino é um hereje, e cria esta gente daqui como bichos. O menino da Clarisse nem fez a primeira comunhão. 119 O meu avô ouvia as primas com aquele seu sorriso de justo. Ele sentia-se amigo de Deus com o coração de bom que era o dele. A grita de suas primas devotas não lhe doía na consciência. O Santa-Rosa com as meninas do tio João parecia outro. A sala de visitas abérta o dia inteiro, as negras a conversarem baixo na cozinha, a tia Maria de vestido de passeio, os moleques pequenos vestidos, sem as nadegazinhas de fora. As tardes, visitas de outros engenhos; brinquedos de prendas de noite, conversas sobre a moda, e queijo do reino na mesa. Até o meu avô, sem os seus gritos e palavras para os moleques da estrada. Para mim, a visita viera aperrear-me o coração de menino. Maria Clara, mais velha do que eu, andava comigo pela horta. Menina da cidade, encontrara um bedéquer amoroso para mostrar-lhe os recantos do Santa-Rosa. Queria ver tudo - o rio, os cajueiros, o cercado. Maria Clara, com aqueles seus cabelos em cachos e uns olhos grandes e redondos, fizeram-me esquecer o carneiro e os passeios solitários. Brincávamos juntos, comíamos juntos e toda a gente reparava nesse pegadio constante. Ela contava-me as histórias das suas viagens de mar, pintava-me o vapor, os camarotes, o tombadilho e o mar batendo no olho de vidro das vigias. - Não havia perigo, parecia que se estava em casa. Havia mesa para os meninos e gente adulta. E banho de chuveiro. Passavam-se dias só se vendo céu e mar. Sentávamo-nos por debaixo dos gameleiros, nestas longas conversas. Eu também contava as minhas coisas de engenho: o fogo no partido, a cheia cobrindo tudo de água. Exagerava para parecer impressionante à minha prima viajada. Ali mesmo, aonde estava sentada, o rio passara com mais de nado. A canoa encalhara no gameleiro. As nossas conversas iam longe. Maria Clara perguntava por António Silvino. Então desfazia-me em histórias. O cangaceiro encantava-se em bicho. Uma tropa vinha atrás dele, e o que encontrava era um rebanho de carneiros. 120 Uma vez matara uma onça numa luta corpo a corpo; quando não podia mais com a fera, lembrou-se do punhal: meteu o chapéu de couro no focinho da onça e enfiou-lhe a arma no coração. O couro desta onça era aquele que meu avô tinha na sala. Procurávamos a sombra dos cajueiros para os nossos colóquios. Havia folhas secas pelo chão, como um grande tapete cinzento, que rangiam sob os pés. E o cheiro agradável da flor de caju chegava até longe. - Vamos fazer piquenique nos cajueiros. Levávamos merenda, pedaços de Pão e queijo, que as formigas comiam. Maria Clara olhava-me séria, pegava-me nas mãos, perguntando o que a gente faria ali se o António Silvino aparecesse. - Ele casava-nos. E contava-me cena por cena das fitas do cinema que vira, dos amores dos seus heróis predilectos e dos casamentos bonitos que faziam. Os galos-da-campina cantavam bem perto de nós os seus números de sucesso. E os concris depenicavam os cajus vermelhos, chiando de gozo. - O engenho é melhor do que o Recife - dizia-me Maria Clara. - A mamã conta que morando aqui nos tornamos bichos. Ela quer que eu toque piano e fale francês. Aqui é bom porque não há aulas, não há professoras. Uma ocasião, depois que ela terminou uma fita de dois namorados deitados na relva nos braços um do outro, eu agarrei Maria Clara e beijei-a forte na boca, Corri como um doido para casa, com o coração a bater. - Este menino fez travessura. Basta estar corado - repararam, quando apareci na cozinha. Escondi-me da namorada o resto da tarde. À hora da ceia, ela estava, com os seus olhos redondos e pretos, a olhar para mim. A noite toda, foi um sonho só com Maria Clara. Ia com ela no navio não sei por onde. E o mar batia com raiva no meu barco. 121 Chovia tanto, que a água começava a encher o casco. Só se via mar e céu. Eu tinha medo de ir para o fundo. Maria Clara dizia que não havia perigo. E nós chegávamos aos cajueiros e ficávamos nas folhas secas, a dormir. Um dia ela chamou-me para ver uma coisa: a canalha do curral estava em amor livre, num canto da cerca. Tirei a minha namorada dali. Aquilo era porcaria para os seus olhos limpinhos. E o meu amor crescia, dilatava o meu verde coração de menino. As meninas do tio João já estavam em despedidas. Para a semana voltariam para o Recife. De engenho a engenho andavam passando dias. E chegavam prestes de toda a parte: rendas da terra, colchas bordadas, panos de filé. Os bichos dos engenhos gostavam das primas assanhadas. A viagem seria na terça-feira. Depois de amanhã não tornaria a ver a minha companheira. Fizemos os idílios derradeiros, correndo os nossos recantos preferidos, como um casal de namorados de livro. De manhã, o carro de bois saía com o povo para a estação. As meninas do tio João dando dinheiro às negras, a velha Generosa chorando, todos na sala aos abraços e beijos. O tio Juca iria com a tia Maria à estação. Para meninos não havia lugar. Maria Clara nem parecia que me queria bem, toda satisfeitta, sentada no carro. Esperava que ela estivesse triste como eu. Mas qual! Alegre com a viagem, bem contente no meio do alvoroço das despedidas. Já saíam do terreiro, ganhando a estrada. Corri para as estacas do cercado a fim de olhar ainda o carro. Trepei à cerca até que se sumisse a carruagem com a minha ingrata. Quando cheguei, de volta, não sei quem disse, na cozinha: - Ficou sem namorada, hem? As lágrimas chegaram-me aos olhos, disparei num choro que não contive. Foi a graça da casa durante o dia. À mesa contaram ao meu avô. O velho José Paulino riu-se: -A quem saiu este menino assim namorador? E o meu amor era a conversa de toda a gente. Dormi à noite, com Maria Clara junto de mim. Os sonhos de um menino apaixonado são sempre os mesmos. Acordei, porém, com a primeira angústia da minha vida. Os pássaros cantavam tão alegres no gameleiro, porque talvez não soubessem da minha dor. Senti nesse meu despertar de namorado um vazio doloroso no coração. Tinha perdido a minha companheira dos cajueiros. E chorei ali, entre os meus lençóis, lágrimas que o amor faria ainda muito correr dos meus olhos. 122 123 35 O meu avô recebera uma carta sobre o meu pai. Soube isto por uma conversa dele com o tio Juca. Não sabiam que eu estava na sala de visitas a ver umas revistas velhas - e conversavam. O director do hospício escrevera perguntando se o meu pai continuaria como pensionista, pois os parentes dele há meses que haviam suspendido a mesada. - Acho que o senhor deve pagar. Afinal de contas, é seu genro. - Foi isso mesmo que eu fiz. Escrevi ao Lourenço para tomar conta disso todos os meses. Foi um choque para mim essa certeza da desgraça de meu pobre pai. Sabia que estava doente, mas assim, quase na indigência, tocou-me fundamente. Contei à tia Maria o que escutara da conversa. Ela não me quis dizer coisa nenhuma. - Isso não é assunto para o menino. Vá brincar lá fora. Não achei graça a nada, nesse dia. Só pensava no meu pai, amarrado num quarto, gritando. Chegara uma vez um doido ao engenho, para ser levado para o asilo. O homem olhava-nos como se quisesse comer-nos com os olhos, e fazia um esforço desesperado para soltar os braços, amarrados com cordas. De noite cortavam o coração os seus gritos angustiados. Cuando saiu de manhã, para o comboio, fui olhá-lo. Estava manso, com um sorriso de menino na boca. 125 O meu pai devia ser assim também, Devia estar fechado num quarto de grades, com aqueles gritos de desespero, tratado como animal perigoso. - Eles vão para o Céu - afirmavam dos doidos. - São inocentes como os anjos. Havia, porém, doidos que o eram por influência do diabo. Metiam-se com invocações, e o demónio tomava-lhes conta do corpo. O meu pai, sem dúvida, não seria destes. Seria inocente como os outros, e iria para o Céu. E isto consolava-me um bocado da sua situação. Mas os doidos começavam a tomar conta de mim de uma maneira absorvente. E comecei a ter medo de endoidecer também. No engenho todos diziam: - Fulano saiu ao pai, é a cara da mãe, tem o génio da família. Quem sabe se eu não ficaria como meu pai? Punha-me triste com estes pensamentos sombrios. - É porque a namorada se foi embora. A lembrança do homem amarrado com cordas, e com aqueles olhos de cachorro doente, atormentava a minha tenra sensibilidade. Essas preocupações de doença, começadas na infância, iriam ser uma das torturas da minha adolescência. Um médico que veio ao engenho examinou-me da minha asma. Perguntou tudo: de que morrera minha mãe, de que sofria meu pai. Disse então que era preciso um tratamento rigoroso para o meu caso; fazer uma série de injecções. E porque não se pudesse aplicar ali no engenho o seu tratamento, receitaria uns remédios internos. Fiquei preso aos horários dos frascos de mezinhas e às dietas exageradas. O meu avô com cuidados. Ninguém ralhava comigo. Certa ocasião o primo Silvino queria uma coisa que eu também desejava. Deram-ma, e como o meu primo protestasse: - O Carlinhos está doente, ninguém pode fazê-lo zangar. 126 Isso aumentava o meu desengano, as minhas desconfianças de mim mesmo. Voltei-me para os canários e o carneiro. Eles não me falavam de doenças, não tinham medo de que eu morresse. Eram também as meditações solitárias e as conversas mudas com o meu íntimo que voltavam. Já não ia aos banhos de rio, ralhavam-me quando me viam ao sol, não podia ficar de noite de conversa na senzala. - Vem para dentro, Carlinhos. Era o que ouvia de todos os lados. A minha vida estava a tornar-se como a dos meus canários prisioneiros, enquanto os meus primos se soltavam e um magnífico Verão se abria em dias de festa de sol, em noites brancas de lua cheia. Não me queriam levar para parte alguma, Os moleques tinham medo de andar comigo. - Ralham com a gente - era como respondiam aos meus convites de passeios e brincadeiras. Via os meus primos vermelhos de sol, chupando tudo que era fruta, com uma amargura que me consumia. Aqueles cuidados excessivos transformavam-me. Criava uma raiva bem viva a todos os que se opunham às minhas vontades. Até para a minha tia Maria, tão meiga para mim, tão cheia de ternura para o seu filho adoptivo, me voltava com rancor. "Este menino está a tornar-se diferente", pensava ela dos meus maus humores de contrariado. A minha amiga acertava. Só me consentiam sair à tardinha, nos meus passeios de carneiro. Mas que não voltasse sob a humidade da noite. Eu consolava-me das proibições nessas fugidas aos arredores do engenho. Os meninos dos muradores brincavam comigo sem receio, pois até lá não chegavam os zelos da minha gente. Na casa de Maria Pitu demorava-me tardes inteiras, com o carneirinho amarrado comendo folhas de cabreira, enquanto eu, solto com os camaradas, fazia tudo o que não me consentiam no engenho. Eram três os meninos de Maria Pitu. 127 E um doente, coitado, sempre sentado num caixote, e com uma cabeça enorme, pendendo. Não andava, não falava, a cabeça arriada para a frente, com o peso, olhava para o mundo com uns olhos que ardiam de vivacidade. Desde que nascera que era assim. A mãe tratava dele como de um bicho doméstico. Dava-lhe a comida com úma colher de pau, deixando-o esquecido dentro do caixote, no terreiro. Fazia-me horror essa criatura quase dona. Mas os seus olhos pareciam mesmo de gente. Pretos e vivos, fitavam-me com um interesse que me perturbava. Era, sem dúvida, por se tratar de coisa estranha da casa. Não tinha nome, não fora ainda baptizado. Chamavam-no Cabeção, e ele respondia com um riso de boca mole, que fazia nojo. Às vezes ficava com medo dele, com aqueles guinchos que lhe saíam da boca. Era a fome. E davam-lhe um pedaço de brote para roer. A mãe desejava-lhe a morte em todas as conversas. - Deus Nosso Senhor devia levar aquilo do mundo. Só dava trabalho, aquele aleijão. Seria até um alívio para o pobrezinho. Mas ele não morria, como se estivesse muito sólido e satisfeito daquela miséria da natureza. Voltava para casa a pensar nele. Ouvira dizer que o pai morrera por beber de mais. O filho nascera assim por causa da cachaça. Destes problemas de hereditariedade me aproximava com pavor. Também tinha um pai a quem podia sair. E todos no engenho pensavam nisto, porque me cercavam de cautelas e precauções. E os frascos de remédio enchiam-me a boca de amargo três vezes ao dia. O pai do Cabeção bebia como o José Passarinho. E dera ao mundo um filho daqueles. Os meus pensamentos vinham assim de fontes envenenadas de pessimismo. Menino, e pingando em cima da minha infância este ácido corrosivo que me secava a alegria de viver. E os meus parentes ainda mais me sacrificavam, em vez de me deixarem no contacto inocente com os meus pequenos prazeres. O diabo daquele doutor fechara-me núm inferno, ali, a dois passos de um paraíso de portas abertas. Os pensamentos ruins principiavam a fazer ninho no meu coração. Batiam asas por fora, mas vinham sempre terminar comigo, nas soluções que me davam, nos sonhos que me faziam sonhar, nos ódios a que me arrastavam. Por debaixo dos sapotizeiros, nas sombras amigas destas árvores, à espera dos canários, só tinha pensamentos maus. Criava assim dentro de mim uma pessoa que não era a minha. As reclusões forçadas a que submetiam o menino que precisava de ar e de sol iam perdendo mais a minha alma que salvando o meu corpo. Lembrava-me de Maria Clara com uma saudade cheia de desejos que nunca tivera. Misturava as minhas alegrias de antigamente a umas vontades perversas de posse. Os meus impulsos tinham mais anos que a minha idade. Ficava horas seguidas olhando, no curral, as vacas que mandavam de outros engenhos para reproduzirem com os zebus do meu avô, e as bestas vadias rinchando com os pais-d'égua pelo cercado. O sexo crescia em mim mais depressa do que as pernas e os braços. A negra Luísa fizera-se comparsa das minhas depravações antecipadas. Ao contrário das outras, que nos respeitavam seriamente, ela seria uma espécie de anjo mau da minha infância. Ia-me deitar para dormir, e quando estávamos sozinhos no quarto, arrastava-me a coisas ignóbeis. Eu era um menino sem contacto com o catecismo. Pouco sabia de rezas. E esta ausência perigosa de religião não me levava a temer os pecados. Muito depois, esta miséria de sentimentos religiosos se reflectiria em toda a minha vida, como uma desgraça. A moleca iniciava-me, naquele verdor de idade, nas suas concupiscências de mulata incendiada de luxúria. Nem sei contar o que ela fazia comigo. Levava-me para os banhos da beira do rio, sujando a minha castidade de criança com os seus arrebatamentos de besta. A sombra negra do pecado juntava-se aos meus desesperos de menino, contrariado, 128 129 para mais me isolar da alegria imensa que gritava por toda a parte. O engenho, na festa das doze horas da moagem. O povo miserável da bagaceira compunha um poema na servidão: o mestre-de-açúcar pedindo fogo para a boca da fornalha, o ruído compassado das talhadeiras no mel quente que espumava. E do pé da moenda: Tomba cana, negro; eu já tombei. O engenho de Massanguana faz três anos que não mói. Ainda ontem plantei cana, faz três anos que não mói. Os carros de bois gemendo nos eixos de pau-darco, os cambiteiros tangendo os burros com o chicote tinindo, e o ô! dos carreiros para os Labareda e os Medalha, mansinhos. Os moleques, trepados nas mesas dos carros, aprendiam a carrear com os mestres carreiros. Tudo nessa labuta melódica do engenho moendo. Chegavam visitas do Pilar. Os meninos do capitão José Medeiros com farda do colégio diocesano. Já não vinham montados em carneiros, com vergonha da montada de outrora. Contavam-me histórias do internato. E aqueles botões dourados de uniforme enchiam-me de inveja. O meu avô conversava com o padre Severino e o Dr. Samuel, o juiz municipal. Tratavam dos negócios políticos da vila, das eleições próximas, e do júri de algum protegido do coronel José Paulino. À noite, quando essa gente retornava, saíam atrás os moleques com as latas de mel e os cabaços de caldo à cabeça. 130 Mas tudo isso, que constituía um acontecimento, agora, de longe, parecia-me indiferente. Só pensava nos meus retiros lúbricos com o meu anjo mau, nas masturbações deliciosas com a negra Luísa. E comecei a querer-lhe um bem esquisito. Um bem que me arrastava à roda da sua saia para onde ela ia. E não gostava dos negros com quem se metia em cochichos. O grande mal dos amorosos, a inquietação dos que se sentem enganados, um ciúme impertinente enfiava-se todo pelo meu coração. A negra, porém, dizia-me que eu ainda tinha o cheiro de leite na boca, e dava rendez-vous aos cabras pelas alcovas cheirosas das fruteiras. Era um vício absorvente o meu pegadio com a negra Luísa. O sexo impunha-me essa escravidão abominável. 131 36 O casamento da tia Maria estava marcado para o São Pedro. Ela fora ao Recife comprar muita coisa do seu enxoval. Trouxera-me um velocípede e um bonito fato de marinheiro. Comprara com estes presentes a minha vontade de ir com ela também. No engenho, os preparativos da festa tomavam conta de todas as actividadeS. Os pintores játinham terminado a limpeza da casa-grande. Tudo cheirava ao óleo novo das portas: os marceneiros envernizavam a mobília preta da sala; rescendia o ouro-banana das molduras remoçadaS. O mestre Galdino, cozinheiro, chegara da cidade para fazer o banquete. A negra Generosa ficava assim destronada do seu reino, e na cozinha já não podiam entrar os meninoS. O homem de chapéu branco e de avental preparava os fiambres, isolado de toda a gente. Parecia que a casa-grande perdera metade da sua vida com a porta da cozinha fechada. O homem não queria conversas pelos bancoS. Ninguém podia saber das coisas, era ali onde se publicavam todas as novidades do engenho. Nas cozinhas das casas-grandes vivem as brancas e as negras, nessas conversas como de igual para igual. As brancas deitadas, davam as cabeças para os cafunés e a cata dos piolhoS. E as negras iam-lhes contando as suas histórias, fazendo as suas queixas, pedindo os seus favoreS. Agora, para o casamento da tia Maria, o velho Galdino fechara a cozinha do Santa-Rosa. Começavam a chegar as gentes dos outros engenhos para grande festa de São Pedro: o povo da Aurora, de Fazendinha, 133 do Jardim, do Cambão. Os carros de bois paxavam no terreiro com uma festa de abraçoS. Vinham meninos, vinham negras, vinha o baú com o vestido novo para o dia. Chegava gente a cavalo, gente de comboio, da Paraíba e do Recife. Mandaram buscar o piano de dona Nenén do seu Lula. E quando chegou, à cabeça dos cabras, lembrei-me de repente do Recife. Lá, eles cantavam. Corri então para ver a cantiga dos ganhadores, regulando os passos com a toada, para não desafinar: João Crioulo, Maria Mulata: João Crioulo, Maria Mulata. Ai pisa-pilão, pilão gonguê. Ai pisa-pilão, pilão gonguê. E na beira dos rios começava a matança dos porcos e dos carneiroS. Fui ver os sacrifícios. Iam matar também o meu carneiro. Dar-me-iam outro, mas o Jasmim rebolava, de gordo, bom mesmo para o talho. Os porcos gemiam na ponta da faca de Zé Guedes, e um sangue escuro corria em arco do pescoço furado. - Os meninos não podem ver estas coisaS. Tornam-se assassinoS, gente. E o bicho ficava com o olho duro, olhando para a gente. O meu pobre Jasmim iria para a faca. Estava debaixo dos marizeiros esperando a hora da morte. Comia ainda o capim do chão, numa inocência que me tocou. Não sabia de nada. Olhei para o meu companheiro como para um amigo condenado à forca. 134 Zé Guedes com a maceta na mão pegou-o pelo cabresto. Descarregou-lhe o cacete na cabeça, que o deixou estendido, arquejando. Amarrou o meu Jasmim pelos pés e dependurou-o de cabeça para baixo. Depois meteu-lhe a faca de ponta na garganta. Nem um gemido do pobrezinho. Calado, com o sangue correndo e os olhos abertos, bem vivo. Duas grandes lágrimas miravam naquele longo olhar de sofrimento. E começaram a tirar o couro, com a quicé a chiar e a carne branca a aparecer. - Tem muita gordura. Saí da matança com a alma a doer-me, e teria chorado muito se não fosse o alvoroço do povo na casa-grande. As negras, trepadas, limpavam os vidros das rótulaS. As visitas em conversas pelos quartoS. E a pândega dos homens na rua. As risadas e as histórias contadas para fazer graça. Os senhores de engenho da redondeza, de meia e chinela no pé, falavam de safras, do preço do açúcar, de bois de carro, do Inverno, de plantações de cana. Na casa-grande do Santa-Rosa já não havia cómodos para tanta gente. Armavam redes pela casa da farinha e no sobradinho do engenho. E ainda chegariam convidados no próprio dia do casamento. O meu avô ficava de palestra com os mais velhoS. Os perus de roda e os capões gordos morriam aos magotes na cozinha. Vinha um caixote de gelo e outro de frutas estrangeiras, de Paraíba. A música da Polícia chegaria ali no comboio das dez. Pelo alpendre da casa-grande só se via gente a falar. Os moleques a cavalo, em caso, levando e trazendo recados do Pilar. O vestido da noiva chegaria de tarde, do Recife. O mestre Galdino não consentia ninguém na cozinha. Os moradores que apareciam iam ficando sentados pelas pontas da calçada, escutando tudo de boca aberta. Lica da Ponte trouxera uma porção de cravos para a noiva. velha Sinhazinha dividia com os outros o seu prestígio de dona. Toda a gente mandava nas arrumações E havia três e quatro mesas para o almoço e para o jantar. Esperava-se o noivo com o pessoal do Gameleira, no outro dia de manhã. 135 E de manhã chegaram, esquipando na estrada. Correram todos para os ver chegar. E foi uma gritaria de recepção. Levaram-no para o quarto de cortinados, e ele também ficou de meia e chinela, de conversa com os outroS. A tia Maria, nem pude falar com ela. As primas do Maravalha estavam no seu quarto, preparando a noiva para a tardinha. Os craveiros da horta, limpoS. Uma bem casada preparava o ramo da noiva. E a hora aproximava-se. O padre Severino já estava lá com o juiz. A tia Maria, toda de branco, bem triste, olhava para o chão. A música da Paraíba tocava no alpendre. O noivo, contente, respondia às pilhérias dos rapazeS. O meu avô, de preto, com a sua corrente de ouro no colete, e a velha Sinhazinha ringindo, na seda do vestido comprado feito, no Recife. A casa estava cheia de gente. Era um zunzum por toda a parte. Metiam-se comigo: - Vai ficar sozinho, hem? Quem vai tomar conta dele agora é a velha Sinhazinha. Não quis ver o casamento. Corri chorando para a minha cama. Tiniam os pratos na sala de jantar. Era o banquete. O doutor Jurema fazia um discurso aos noivoS. Bateram nos copos quando ele se levantou. A tia Maria, enfiada. Nem olhava para ninguém. Os senhores de engenho, embevecidos com o discurso do promotor. Era um elogio ao meu avô, que nem ouvia nada, pensando na filha. Depois veio a segunda, a terceira, a quarta e a quinta mesa. E o baile de arromba na sala de visitaS. Quem marcava a quadrilha era o professor José Vicente, do Pilar. Os noivos sentados no sofá, no centro da sala. E o baile continuava. Fui dormir. Minha tia Maria beijou-me chorando. E de manhã, quando acordei, ainda a música tocava para a dança. Os noivos iriam no cabriolé do seu Lula. Já estavam preparados para a partida. Maria Menina dava os seus adeuses com os olhos cheios de lágrimaS. Abraçava-se às negras, que soluçavam de pena. E beijou-me, abraçou-me não sei quantas vezes, enquanto eu chorava num pranto desesperado. 136 O cabriolé saía tinindo as campainhas dos seus arreioS. E pela estrada molhada das chuvas de fim de Junho, lá se fora a segunda mãe que eu perdia. No terreiro ainda fumegava o resto da fogueira na noite. Depois selaram os cavalos para as visitas que se iam. Os de longe, mais cedo. Outros ficavam ainda para o almoço. Os carros de bois saíam carregados de gente. O outro dia amanheceu chuvoso, e o Santa-Rosa, a coisa mais triste do mundo. Tudo vazio para mim, tudo oco, sem os cuidados, os beijos e as cavilações da minha tia Maria. 137 37 A tia Sinhazinha chamou-me para perto dela, e passou a sua mão pela minha cabeça, acarinhando-me. Era a primeira vez que eu sentia um afago da velha. - Você, no mês que entra, vai para o colégio. Desde que a minha tia Maria se fora que me falavam do colégio: - Ele não vai sentir muito, porque está a aprontar-se para o colégio. E preparavam o meu enxoval, faziam camisas de homem para mim, e calças compridas, e ceroulaS. Tinha a mala nova cheia de roupa branca, para o internato. Comeceientão a reprimir as minhas lágrimas, pensando no tempo de colégio que viria. Não ia para ali com medo. Pelo contrário: vivia a desejar o dia da minha partida. Os primos tinham-se ido embora, e chovia todos os diaS. E os dias de chuva deixavam-me preso aos meus pensamentoS. O aguaceiro zunia nos cajueiroS. Descia da mata numa carreira rumorosa, e roncava ao longe como um comboio na linha. - Tira o feijão do sol! Empurra o balcão do açúcar! Os moleques corriam para o terreiro coberto de ramos de mulatinho meio secoS. A chuva chegava com pingos de furar o chão e chovia dia e noite sem parar. As primeiras chuvas do ano originavam uma festa no engenho. O tempo armava-se com nuvens pesadas, fazia um calor medonho. 139 - Vamos ter muita água! O meu avô ficava pelo alpendre a olhar o céu, batendo com a vara de jucá pelas ruaS. Era a sua grande alegria: a bátega amolecia o barro duro dos partidos e enverdecia as folhas amarelas das canas novas. Às primeiras pancadas do Inverno, os cabras deixavam o eito para tomar uma bicada na destilação. Vinham gritando de contente, numa alegria estrepitosa de bichoS. Mas isto somente nas primeiras chuvaS. Depois aguentavam nas costas o aguaceiro, tomando o seu banho de chuva de doze horaS. Pela estrada passavam os cargueiros metidos em capotes, no passo moroso do cavalo. Paco, paco, paco, paco - lá iam espadanando a água com os cascoS. Chegavam os moradores com as calças arregaçadas, pedindo sementes de algodão para o roçado. E a chuva a cair sem cessar. Ficava a olhar os riachos descendo pelos altos e a estrada que parecia um rio de lado a lado: A casa-grande, escura como se fosse a boca da noite. Acendiam os candeeiros mais cedo. E a cozinha suja de lama, da gente de pé descalço que entrava lá. José Felismino chegava de noite, respondendo às perguntas de meu avô: - A térra molhou-se mais de um palmo. Tiraram-se quatro cinquentas na planta do roçado. Acabou-se o partido de baixo. O Inverno deste ano vai ser pesado. O Crumataú já desceu com muita água. Invernão. Os dias tornavam-se compridoS. Não se tinha para onde ir. Eu olhava a chuva, que era a mesma coisa sempre, engrossando e afinando numa intermitência monótona e impertinente. À tardinha os cabras do eito chegavam, pingando da cabeça aos péS. Vinham com as canelas enlameadas e as mãos enregeladas de frio. O chapéu de palha pesado de água, gotejando. Mas indiferentes ao tempo. Parecia que estavam debaixo de bons capotes de lã. Levavam bacalhau para as mulheres e os filhos, e iam dormir satisfeitos, como se os esperasse o quente agradável de uma cama de rico. 140 Dentro da casa deles, a chuva trazida pelo vento amolecia o chão de barro, fazendo riachos da sala à cozinha. Mas os sacos de farinha do reino eram os edredões das suas camas de marmeleiro, onde se encolhiam para sonhar e fazer os filhos, muito satisfeitoS. Iam com a chuva nas costas para o serviço e voltavam com a chuva nas costas para casa. Curavam as doenças com a água fria do céu. Dentro em pouco, porém, teriam o milho verde e o macaça maduro para a fartura da barriga cheia. Estes dias de chuva, agora que a minha tia se fora, faziam-me mais triste, mais íntimo comigo mesmo. Acordava de manhã com a chuva a correr na goteira e nem um sinal de pássaro no gameleiro. Estirava-me na cama, pensando na vida. Todos me diziam que eu era um atrasado. Com doze anos sem saber nada. Havia meninos da minha idade que faziam contas e sabiam as operaçõeS. Só indo para o colégio. Sabia ruindades, puxara de mais pelo meu sexo, era um menino-prodígio da porcaria. E ali, sozinho, no quarto, os pensamentos maus conduziam-me às agradáveis masturbaçõeS. A negra Luísa deixara-me, andava de barriga empinada, com as dificuldades e os medos da primeira cria. Estava prenhe e não sabia de quem. Diziam que era de todos os cambiteiros do Santa-Rosa. Olhava muito para um São Luís Gonzaga que a minha tia Maria deixara na parede do quarto. Tinha vergonha dos meus pecados na frente do santo rapaz. Arrepia-me sinceramente daquelas minhas lubricidades de pequena besta assanhada. E no outro dia, enquanto a chuva se derramava lá por fora, voltavam-me outra vez os pensamentos do diabo. Sujava os olhos do santo com os meus actos imundos de sem-vergonha. Um dia a chuva parava, e o sol, vingando-se das nuvens escuras que lhe taparam o rosto, queimando, brilhava em cima dos matos, como nunca. As tanajuras aproveitavam a trégua para uma passeata por toda a parte. Zuniam junto dos ouvidos da gemte e depois iam arrastar a bunda gorda pelo chão. 141 Mané Firmino comia, torradas, com farinha seca, as tanajuras que apanhava. Era melhor do que galinha, dizia ele. Estes dias de estiagem acabavam com o mofo da humidade. Punham feijão de rama a secar no terreiro. E abriam os baús de roupas pelas calçadaS. Ia ver o milho novo apontando no roçado e os bezerrinhos nascidos saltando à doida pelo curral. As mães ficavam bravas nos primeiros dias do parto, irritadas pelo nascimento dos filhoS. Um sol criador ajudava a terra nos seus trabalhos de mãe. E, se demorasse, as lagartas caíam em cima das folhas das plantações, deixando-as rentes ao chão. Pedia-se então uma pancada de água de alagar. E começava a chover: os pés de milho cresciam, a cana acamava-se na várzea, o gado engordava e as vacas pariam. 142 38 O engenho estava a moer quando se ouviu um rumor de pancada na boca da fornalha. Eram dois cabras brigando de cacete e faca de ponta: Mané Salvino e o negro José Gonçalo. O de arma na mão avançava para o que brandia o cacete pequeno, que a cada momento tocava de raspão na cabeça do outro. O engenho todo correu para ver a briga. Os cabras não atendiam aos gritos do velho José Paulino. - Deixem os negros matarem-se. Já estavam na bagaceira pegados como cachorros num vaivém de pancadas e de golpeS. Nisto o negro Gonçalo deu um grito e tombou para um lado com a mão na barriga. E Mané Salvino em disparada pelo cercado. - Pega o cabra! Pega o cabra! Corria gente de todos os lados atrás do assassino. Mestre Fausto atirou-Lhe um tijolo e ele caiu de bruços por cima da cerca de arame. Já estava amarrado com cordaS. E o outro estendido com as duas facadas mortaiS. Pedia água, olhando para a gente com uns olhos amortecidoS. E nem dava um gemido: - Quero água, quero água! - com uma fala rouca de tísico, arrastando a voz como um bêbado. - Leve o homem para o sobradinho. Mas quando pegaram nele, os braços caíram bamboS. Estava nas últimaS. - Moleque bom, ordeiro -, diziam do ofendido. 143 Mais tarde chegavam a mulher e os filhos num berreiro doloroso. Era um choro alto e pungente, o da negra e dos moleques pequenoS. Cinco fiLhos miúdos e um de peito ainda. Deitaram o defunto na rede. Ia para o corpo de delito no Pilar. A família saiu atrás, enchendo aquela boa tranquilidade rural de uns lamentos de canto fúnebre. O outro estava na casa de bagaço, a apanhar: - Valei-me, minha Nossa Senhora! Valei-me, minha Nossa Senhora! E o cipó de boi roncava-lhe nas costas - lápote!, lápote! E o grito de misericórdia do negro chicoteado. - Vá dizer ao seu Juca que eu não quero isto aqui. Mande o cabra para a vila. Entregue-o à Justiça. Lá, façam dele o que quiserem; aqui, não. Estas surras não adiantam nada. O cabra vinha com a cabeça lascada, a gotejar. A camisa toda suja de sangue, com as cordas a amarrar-lhe os braçoS. Não olhava para ninguém. - Diabo malv ado! - O negro afrontou-me, seu coronel. Quando saiu para o Pilar, foi com um bando atráS. Muitos já estavam do lado dele. - A cadeia fez-se para os homenS. A mulher e os filhos choravam também, pedindo protecção ao senhor de engenho. O defunto deixara as tábuas do sobradinho encardidas de sangue. Rasparam com bucha no outro dia, mas a mancha ficou. Sangue de gente não larga. Sempre que estávamos no engenho, não pisávamos por cima daquilo, com medo. Espalhavam que enquanto aquele sangue não se sumisse, o defunto apareceria por ali. Havia gente que vira o negro deitado pelos picadeiroS. E as visões começavam a aparecer. Uns tinham encontrado o engenho a moer vazio. Outros, carros de bois andando sem sair do lugar. E o negro Gonçalo a cortar cana. Estas histórias chegavam à cozinha, onde ninguém duvidava. 144 O pé de marizeiro andava de um lado para outro pelo rio. E todos os dias havia um sonho de botija para contar. Já não se falava de lobisomenS. As almas do outro mundo tomavam conta do medo do povo do Santa-Rosa. 145 39 Tinha uns doze anos quando conheci uma mulher, como homem. Andava atrás dela, beirando a sua casa de palha, numa ânsia, misturada de medo e de vergonha. Zefa Cajá era a grande mundana dos cabras do eito. Não me queria. - Vá-se criar, menino intrometido. Mas eu ficava por ali, conversando com ela, a olhar para a mulata mesmo com vontade de fazer coisa ruim. Esteve comigo uma porção de vezeS. Levava as coisas do engenho para ela - pedaços de carne, queijo roubado do armário; dava-Lhe o dinheiro que o meu avô deixava por cima das mesaS. Ela acariciava-me com uma voracidade de animal de amor; dizia que eu tinha gosto de leite na boca e queria-me comer como uma fruta, de vez. Andava magro. - Este menino está com vício. Era mesmo um vício visguenito aquele dos afagos de Zefa Cajá. Mal tomava o café, ia para casa dela, ia depois do almoço e depois do jantar. Foram dizer ao meu avô: - O menino não sai da casa da rapariga. O velho José Paulino então disse-me aos gritos: - Se não fosse para a semana para o colégio, dava-lhe uma tareia. Mas não fez o barulho que eu esperava. Para estas coisas o velho olhava por cima. A sua vida também fora cheia de irregularidades dessa natureza. Quando se zangou com o tio Juca por causa da mulata Maria Pia, 147 ouvi a negra Generosa dizer na cozinha: - Quem fala! Quando era mais moço, parecia um pai-d'égua atrás das negraS. O seu Juca teve a quem sair. Mas eu tinha que pagar o meu tributo antecipado ao amor. Apanhei "doença do mundo". Escondi-me muitos dias do povo da casa-grande. Ensinaram-me remédios que eu tomava em segredo, na beira do rio. Deixava ao relento a goma com açúcar para os meus maleS. Não melhorava, tinha medo de urinar com as dores medonhaS. E por fim souberam na casa-grande, Foi um escândalo: - Daquele tamanho, e com gálico! Meteram a Zefa Cajá na cadeia, e eu, desconfiado, com vergonha de olhar para as pessoaS. Fui motivo de todos os comentários, de risadaS. O meu tio Juca tomou conta do tratamento. Onde eu chegava, lá vinham com indirectas: - Menino danado! E comecei a envaidecer-me com a minha doença. Abria as pernas, exagerando no andar. Era uma glória para mim essa carga de bacilos que o amor deixara pelo meu corpo imberbe. Mostravam-me às visitas masculinas como um espécime de virilidade adiantada. Os senhores de engenho debochavam-se diante de mim, dando-me confiança nas suas conversaS. Perguntavam pela Zefa Cajá, chamavam-na professora. - Saiu ao avô! E riam-se, como se fosse uma coisa inocente este libertino de doze anoS. O moleque Ricardo apanhara na mesma fonte a sua doença de homem. Estava entrevado na rede, sem dar um passo. Eu tinha medo de ficar como ele. E precavia-me de tudo, prendendo-me aos remédios, em escravidão. O meu companheiro pagara mais caro do que eu o seu imposto de masculinidade. Curava-se com os remédios de casa: as garrafas de raiz de mato com aguardente de cana. 148 - A minha foi pior do que a sua: é de cabresto. Parecia nun orgulho da ruindade de cada um. O tio Juca não dava tréguaS. Levava-me aos banhos para o tratamento rigoroso de seringa. Bebia refrescos de pega-pinto em jejum, chá de urinana de manhã à noite. E os diuréticos faziam-me vergonha: - Mijou na cama! E era um debique de todo o mundo. - Isto é lá homem! - dizia o velho José Paulino, quando soube da minha fraqueza. A negra França lavava os panos da minha doença. Batia no rio as minhas imundícies purgadaS. Com um mêsmais, já estaria capaz de ir para o colégio. A "doença do mundo" operara em mim uma transformação. Via-me mais alguma coisa do que um menino; e mesmo já me olhavam de forma diferente. Já não tinham para mim as condescendências que se reservam às criançaS. As negras tratavam-me como a um homem. Não paravam as conversas quando eu chegava. Intrometiam-se. Procurava as lavadeiras de roupa pela beira do rio. Ficavam quase nuas, batendo os panos nas pedraS. Tomava banho despido junto delas, olhando as suas partes relaxadamente descobertaS. - Sai daí, menino safado! Mas riam-se, gostando da curiosidade. Agora o engenho oferecia-me o amor por toda a parte: na senzala, na beira do rio, nas casas de palha. Os moleques levavam-me para as visitas por debaixo dos matos, esperando a vez de cada um. Na casa-grande os homens achavam graça a tanta libertinagem. - Menino vadio! Só pai de chiqueiro! Eu ficava a pensar na tia Maria, se ela soubesse de tudo aquilo. Longe de mim, parecia um vulto de uma outra vida, a minha tia. Era um outro o menino que ela criara com tanto carinho. O sexo vestira calças compridas ao seu CarlinhoS. 149 E o coração de um menino depravado só batia ao compasso das suas depravações, Estava até a esquecer a doce ternura daminha segunda mãe. Corria os campos como um cachorro no cio, esfregando a minha lubricidade por todos os cantoS. Os moradores queixavam-se: - Ninguém pode deixar as meninas em casa com o seu CarlinhoS. João Rouco deu-me uma corrida por causa do filho pequeno, que eu quis agarrar. Em Junho iria para o colégio. Estava marcado o dia da minha partida. - Lá ele endireita-se. Recorriam ao colégio como a uma casa de correcção. Abandonavam-se em desleixos para com os filhos, pensando corrigi-los no castigo dos internatoS. E não se importavam com a infância, com os anos mais perigosos da vida. Em Junho estaria no meu sanatório. Ia entregar aos padres e aos mestres uma alma onde a luxúria cavara galerias perigosaS. Perdera a inocência, perdera a grande felicidade de olhar o mundo como um brinquedo maior que os ouhroS. Olhava o mundo através dos meus desejos e da minha carne. Tinha sentidos que desejavam as botas do Polegar para as suas viagenS. 150 40 No dia seguinte tomaria o comboio para o colégio. O meu tio Juca levar-me-ia para os padres, deixando carta branca a meu respeito. Acordei com os pássaros cantando no gameleiro. Tocavam dobrados ao meu bota-fora. E uma saudade antecipada do engenho me tomou, em cima da cama. Vieram-me acordar. Há tempo que estava de olhos abertos na companhia dos meus pensamentoS. Uma outra vida ia começar para mim. - O colégio amansa os meninos! Em mim havia muita coisa a precisar de freios e de chibata. As negras diziam que eu tinha o mal dentro de mim. A tia Sinhazinha falava dos meus atrasoS. Os homens riam-se das intemperanças dos meus doze anoS. - Menino safado, menino atrasado, menino vadio! A minha asma entrava e saía sem ninguém dar por ela. Ia melhorando com a idade. E nada de Deus por dentro de mim. Era indiferente aos castigos do Céu. Os lobisomens faziam-me mais medo. A minha religião não conhecia os pecados e as penitênciaS. O pavor do inferno, confundia-o com os castigos dos contos de trancoso. Tudo entrava por uma perna de pinto e saía por uma perna de pato. Ia para a cama sem um pelo-sinal e acordava sem uma ave-maria. O meu São Luís Gonzaga devia olhar com nojo para o seu irmão afundado na lama. 151 Agora o colégio iria consertar o desmantelo desta alma crescida de mais para a terra. Iriam podar os galhos de uma árvore, para que os seus brotos crescessem para cima. - Quando voltar do colégio, vem outro, nem parece o mesmo. Toda a gente acreditava nisto. Este outro, de que tanto falavam, seria o sonho da minha mãe. O Carlinhos que ela desejava ter como filho. Esta lembrança animava-me para a vida nova. - Vá-se vestír. A minha mala subira à cabeça do Zé Guedes para a estação. Iríamos depois a cavalo. E nesta viagem, passando à beira dos partidos de cana, passando pela porta dos moradores, a minha saudade demorava-se por toda a parte. - O seu Carlinhos vai para o colégio. E vinham os moleques olhar para mim. O tio Juca à frente, e eu, ronceiro, sentindo em cada passo do Coringa o engenho que ficava para tráS. À porta da Zefa Cajá só se viam uns panos estendidos ao sol. A casa de portas fechadas, e mulheres de pano na cabeça, no roçado, perto. Um sol das nove horas enxugava a terra ensopada da chuva da noite. A enxada limpava o mato bonzinho de cortar. Os pés do povo deixavam o seu tamanho no barro mole da estrada. Lá vinha ùm moleque com uma carga de milho, com as folhas verdes arrastando no chão. Ia para a cangica e as pamonhas da negra Generosa. O engenho dava-me assim as suas despedidas, como os namorados, fazendo os derradeiros mimoS. Na estação estava o povo do Angico esperando o comboio. - Vai para o colégio, já era tempo. As mulheres achavam-me parecido com Dona Clarisse. Os homens conversavam com o tio Júca. Já sabiam da minha doença, e chamavam-me para perguntas inconvenienteS. 152 O comboio pedira ordens de Itabaiana, partira do Pilar. A gente via-o enroscar na curva do Engenho Novo. Depois, sumindo-se no corte, roncava perto. O poste do sinal caía. E chegava, apertando os passos, à plataforma. - Fique deste lado, para ver o pessoal do engenho. E o comboio saiu, correndo por entre os canaviais e os roçados de algodão do meu avô. Chegava gente à porta para ver o horário em disparada. O povo da Lagoa-Preta, no alpendre, olhava. O homem do correio atirava a correspondência à porta. E o comboio entrava pelos cortes e saía nos aterros da várzea, separando a água das lagoas improvisadas no Inverno. Longe, via o bueiro comprido do Oiteiro e o corta-vento trepado no sobrado. O gado pastava pela beira da linha. - Zebu bonito! Os bois levantavam a cabeça da rama apetitosa para ver também o comboio correndo. Daí a pouco apitoú na rampa do Caboclo. Lá estava o Santa-Rosa com o bueiro branco e a casa-grande rodeada de pilareS. Os moleques estavam na beira da linha para me ver passar. - Adeus, adeus, adeus! - com as mãos para mim. E eu, com o lenço, acenava-lheS. Os olhos encheram-se-me de lágrimas. Cortava-me a alma a saudade do meu engenho. E o comboio corria para o Entroncamento. Vinha Santana, Maraú no alto, Massangana com o coronel Trombone à porta. A máquina tomava água. O comboio de Guarapira chegava, mais curto que o nosso. Apareciam passageiros de- guarda-pó para conversar com os outros do nosso comboio. Todo esse movimento me vencia a saudade dos meus campos, dos meus pastoS. Queriam endireitar-me, fazer de mim um homem instruído. Quando saí de casa o velho José Paulino disse-me: - Não vá perder o seu tempo. Estude, que não se arrepende. 153 Eu não sabia nada. Levava para o colégio um corpo sacudido pelas paixões de homem feito e uma alma mais velha do que o meu corpo. Aquele Sérgio, de Raul Pompeia, entrava no internato de cabelos grandes e com uma alma de anjo cheirando a virgindade. Eu não: era sabendo de tudo, era adiantado nos anos que ia atravessar as portas do meu colégio. Menino perdido, menino de engenho. FIm OBRAS DE JOSÉ LINS DO REGO PUBLICADAS POR LIVROS DO BRASIL MENINO DE ENGENHO - DOIDINHO BANGUê O MOLEQUE RICARDO USINA PUREZA PEDRA BONITA RIACHO DOCE àGUA-MãE FOGO MORTO EURí DICE CANGACEIROS Data da Digitalização Amadora, Agosto de 1998