A ALMA PORTUGUESA: PROBLEMÁTICA DA SAUDADE Joaquim de carvalho 104 OBRA COMPLETA DE JOAQUIM DE CARVALI-10 Desde 1890 até hoje, exprimiu sempre com alacridade, nesta pacífica e às vezes morna Coimbra, todas as vibrações da inteligência e do sentimento da beleza, tão extensamente que a literatura dos seus livros nos faz compreender as oscilações e inquietudes da cultura nacional nos últimos trinta anos. O Dr. Manuel da Silva Gaio vai-nos falar dos Vencidos da Vida, isto é, dos homens que no século passado, depois da jornada romântica, mais honraram a inteligência e o primado das ideias sobre o sentimento. Do primado da inteligência, disse, porque realizaram na arte, na crítica e na vida, esta façanha heróica do domínio da consciência clara, isto é, a razão, sobre o evanescente e o caprichoso episódico. Eu sei que os *vencidos+ estão hoje em eclipse no céu da nossa cultura: Oliveira Martins esquecido, Guerra Junqueiro maltratado, o Conde de Ficalho, objecto de citações, e o Conde de Sabugosa, encadernado em edições de bibliófilo. Só Antero e Eça de Queirós são vivos e actuais; mas não há sintomas patológicos na admiração que alguns lhes votam? Sei tudo isto, sei mesmo que viveram no século XIX, e que nós vivemos no século XX e que os ideais de hoje, talvez com brutal revolta, se apresentam não como *vencidos+, mas como *vencedores+. Afirmaram, no entanto, uma posição moral e intelectual de amor pelas ideias, de respeito pelos homens, compreendendo -porque não dizê-lo?- com indulgência o homo credulus e não sacrificando com dogmatismo ao homo sapiens. ]É destes homens e da sua atitude em face da vida que o Dr. Manuel da Silva Gaio nos vai falar. Eu permito-me dizer-lhe, Sr. Dr. Manuel Gaio, que considero esta conferência uma gentileza para esta Associação. Um homem da sua estirpe não tem porém o direito de ser gentil só para alguns, porque as suas ideias e os seus juizos devem ultrapassar o âmbito dos seus ouvintes de hoje. Foi para lhe conceder a palavra que me convidaram a ocupar este lugar. Não o farei: não tenho coragem. Quero apenas limitar-me a lembrar, a quem o vai ouvir, o dever de o escutar com a mais atenta das atitudes. Ouçamos, pois, minhas senhoras e meus senhores. A ALMA PORTUGUESA i PROBLEMÁTICA DA SAUDADE Se há tema que de antigo, pelo menos desde meados do século XV, afecte o pensamento dos portugueses, esse é o da significação, sentido e valor da saudade. O interesse de que tem sido objecto aparece predominantemente ligado às épocas em que *as razões do coração+ são tão atractivas como *as razões da razão+; por isso, o século XIX, durante a quadra em que a concepção romântica da vida dominou o mundo da nossa arte e do nosso pensamento, foi por excelência o século dos temas saudosistas, como o século XVIII, principalmente na segunda metade, de índole nacionalista e iluminista, foi o século em que a nacionalidade abstracta, universalista e impessoal, desterrou a emotividade inerente à saudade e consequentemente os problemas que ela suscita. A correlação com as situações espirituais epocais não significa, porém, que a temática da saudade seja una e constante. Esteticamente, dos Cancioneiros a Teixeira de Pascoais, o poeta que como nenhum outro da nossa língua se introverteu espontânea e habilmente num universo de factualidade imaterial e poética, o mundo da saudade é virtualmente ilimitado e até indefinido; porém o que importa ao nosso objectivo presente não é a descoberta das espécies valorativas ou das expressões estéticas temporais, mas a problemática contida na saudade e respectiva significação filosófica. Do conjunto da bibliografia portuguesa, brasileira e espanhola, assim em castelhano, como em galego e catalão, se colige que a temática da saudade tem consistido fundamentalmente na inquirição filo- sófica da origem e da semântica da palavra, na consideração do sentido privativo ou universal do respectivo conceito e na reflexão das consequências morais e sociais da atitude saudosista. 108 OBRA COMPLETA DE JOAQUIM DE CARVALHO A inquirição filológica, de copiosa bibliografia e, porventura, a mais bem conduzido das inquirições respeitantes à saudade, atingiu alguns resultados que parecem definitivos e abrem passo à indagação propriamente filosófica. Assim, pode dizer-se que a palavra saudade tem por étimo longínquo o adjectivo e advérbio latino solu, o que equivale a dizer que nele flui a ideia de estar só. A ideia de estar só, porém, tanto pode ter sentido tópico, reportando-se ao sítio em que se está, como sentido psicológico, relativo ao estado de alma de se sentir só, pelo que o termo genérico solu se explicitou na particularização das ideias que exprimem o sentido da solidão e solitude, como solitas e solitudo, e o sentido da soledade, cujo étimo é solitudine, da baixa latinidade. Etimologicamente, soledade e saudade derivam da mesma base, pelo que se compreende que Amador Arrais, no século XVI, com purismo de filólogo, preferisse o termo *soedade+ ao de saudade. O apuramento desta etimologia mostra que soledade e saudade remontam à ideia de isolamento e à do espírito refluir sobre si mesmo, tornando compreensível o facto de haverem sido empregados como termos sinónimos. Não sabemos se o facto chegou a verificar-se na história do nosso léxico, mas sabe-se que no castelhano a nossa palavra saudade, suidade ou soidade de ascendência medieval, teve correspondência perfeita na palavra soledad, como testemunham o passo da égloga virgiliana em que Juan de Encina, em 1490, *canta Ia soledad que Castilla sentia cando los reyes iban a Aragon+, e a frase de Núflez de Reinoso, em 1550: *Soledad de Espafía siento+. Não sabemos, repetimos, se chegou a verificar-se entre nós a sinonímia de soledade e de saudade, mas se isso ocorreu, deu-se somente como fantasia passageira, sem seguimento nem significação geral. A prova, e concludente, colhe-se em D. Duarte e em Gil Vicente: o primeiro, opinando antes de outrem que *este nome de suidade [é] tam próprio, que o latim nem outra linguagem, que eu saiba, nom é para tal sentido semelhante (... )+; e o segundo, colocado perante o facto de ter de exprimir o conceito de saudade em castelhano, inventando o termo de saludad e recorrendo ao de soledad, com o que mostrou a intraduzibilidade da nossa palavra por estes parónimos: Matadme, seiíor padre, que saludad de mi madre me mata ansi como ansi. A ALMA PORTUGUESA 109 Soledad tengo de ti Heridea, hermana mia. Encontramo-nos, assim, com o primeiro dado concreto a partir do qual começa a problematização da saudade, e este dado é a existência da palavra saudade como privativa do léxico português e galego, visto não ter correspondência como palavra nas demais línguas românicas, nem tão pouco nas anglo-saxónicas, o que inspirou a Garret os expressivos versos : Saudade! Mavioso nome, que tão meigo soas nos lusitanos lábios, não sabido das orgulhosas bocas dos Sicambros. O nosso objectivo consiste em extrair deste dado os problemas que ele encerra, deixando para outra oportunidade a reflexão acerca do método ou métodos com que os problemas descerrados melhor podem ser esclarecidos, bem como os resultados finais dos respectivos esclarecimentos. O primeiro problema é de índole histórico-sociológica. Formula-se com a seguinte pergunta: Quando e porque se verificou no noroeste da Península, Entre-Douro-e-Minho e na Galiza, o aparecimento do vocábulo saudade e não noutra região peninsular ou de falar romance? Sob o ponto de vista sociológico, a resposta não parece que seja alheia à celtização nem aos factores históricos que motivaram que em Entre-Douro-e-Minho, mais do que em qualquer outra região do actual território português, se tivesse operado a mutação do sentimento terrantês em sentimento nacional. O segundo problema é já de outra índole. Relaciona-se imediatamente com o facto do regionalismo da palavra, e consiste em saber se o expressado pela palavra saudade é também próprio de luso-galaicos, ou dito de outro modo, se o idiomatismo do fonema é ou não expressão de um estado psíquico ou de uma ideia ou atitude mental também peculiares a luso-galaicos. As respostas possíveis são fundamentalmente três. 110 OBRA COMPLETA DE JOAQUIM DE CARVALHO tiva Primeira: a saudade, como expressão e expressado, é coisa privadas gentes nativas do noroeste da Península. Segunda: a saudade é designação de um sentimento que *parece que (... ) toca mais aos Portugueses, que a outra nação do mundo o dar-se conta desta generosa paixão+, como escreveu D. Francisco Manuel de Melo, no século XVII. Terceira: a saudade é um fenômeno essencialmente humano. Como vocábulo, é um idiomatismo privativo de luso-galaicos; no entanto, o que ela exprime é próprio da constituição psíquica humana e como tal exprimível por palavras de som e grafias diferentes. Como dissemos, a determinação de uma resposta com pretensão de verdade, está fora do nosso objectivo actual; não pode, porém, prosseguir-se na inquirição da problemática sem se admitir, quanto mais não seja a título provisório ou hipotético, que uma das respostas tem mais probabilidade de ser verdadeira que as outras. Assim posta a questão, bastam os dados elementares da psicologia da vida afectiva para inculcar que a saudade é um acontecimento psíquico susceptível de se dar no espírito de qualquer ser humano. Pode a consciência de uns ser mais sensível que a de outros à inadaptação das circunstâncias, ao contraste das situações vividas, à distanciarão do mundo ambiental, ao recolhimento sobre si mesmo, à privação de bens ausentes e ao desejo de bens futuros; não obstante, é da própria natureza da vida emocional e da temporalidade da constituição espiritual o sentimento da conformidade ou desconformidade das situações sucessivamente vividas, e consequentemente a possibilidade do contraste da vivência de uma situação actual com a recordação da vivência ou das vivências de situações anteriores. Acontecimento puramente humano e oposto ao riso e ao choro, na medida em que estes tendem ao estabelecimento da comunicação entre pessoas, a saudade faz parte da vida emocional, o que implica dizer que é uma das maneiras por que a ipsidade de cada um responde ao mundo que o circunda ou à situação em que se encontra. O duvidar, assentir, o demonstrar são actos da consciência teorética, os quais se desenvolvem no plano da impessoalidade e da subordinação da razão lógica às condições objectivas ou de razão suficiente que lhe são presentes: o ser saudoso, pelo contrário, pertence à categoria dos fenómenos psíquicos que importam a tomada de posição perante as qualidades dos objectos circunstantes e cujo ponto de partida irrompe do A ALMA PORTUGUESA 111 mais íntimo da personalidade. A saudade não se dá se a consciência vive plenamente o mundo que lhe é dado e a totalidade da experiência anteriormente vivida flui na situação presente sem contraste nem desvios; como isto é supremamente improvável e difícil, segue-se, consequentemente, que todo o ser humano -e só o ser humano, pois no ser divino é inconcebível a saudade- é susceptível de estar saudoso e, sobretudo, de ser saudoso. Dito de outro modo, isto significa que todo o ser consciente e temporal é susceptível de estabelecer uma relação valorativa entre a situação que actualmente vive e a situação outrora vivida e de a sentir como desvio agradável ou desagradável do fluir da existência; e até pode acrescentar-se que as diferenças individuais são profundas, dado que cada qual é susceptível de ser afectado diversamente, já em virtude da nativa constituição psíquica e da ipsidade da própria experiência vivida, já em virtude das propriedades dos objectos, que valorativamente se apresentam com diversa capacidade de atracção e de repulsa, de apreço e de desapreço. É neste terreno da vida psicológica que se dá a saudade do qual se nutrem alguns estados psíquicos que têm por nota comum a solitariedade, como sejam a solidão contemplativa do eremita, a nostalgia do desterrado e a soledade do desconsolado. Acompanha-se normalmente de um halo de tristeza, mas o acto saudoso também pode trazer consigo a sensação de alívio, como disse Gil Vicente: Oh tristes saudades minhas nestas montanhas maninhas que descanso é o que me dais? Do que vimos dizendo resulta que o terceiro problema consiste em isolar a saudade do que lhe é afim, em ordem ao estabelecimento de uma descrição precisa, e, podendo ser, de uma definição exacta. Daqui, o desdobrar-se este problema em dois sentidos diversos mas convergentes: o metodológico e o histórico. O sentido metodológico implica, como é óbvio, a escolha de um método. Oferecem-se vários com mais ou menos prontidão, mas creio que a todos se sobreleva, pelo menos de início, o da descrição fenomenológica da consciência saudosa. É o conhecimento do *estar saudoso+ que tem de preceder o conhecimento do ser saudoso e do eidos da 112 OBRA COMPLETA DE JOAQUIM DE CARVALHO saudade, dado que a saudade é verbo e é substantivo, é estar e ser, modo e essência, egofania e alofania, isto é, manifestação do eu e manifestação no eu; e este conhecimento apreende-se principalmente na fenomenologia da saudade, quer pela observação introspectiva, quer na análise extrospectiva, nomadamente nas expressões poéticas das literaturas gaélica, galega, portuguesa e brasileira, e no comportamento resultante de algumas exaltações mórbidas, designadamente de emigrantes e de enlutados. A análise fenomenológica permitirá determinar as componentes do acto saudoso, como sejam a renúncia, a nolontade, a sensação de isolamento, o desejo de bens ausentes e anteriormente vividos, e a tristeza. Isoladamente consideradas, as definições conhecidas da saudade não dão nota de todas estas componentes; por isso o resultado da análise fenomenológica não só será mais completo, senão que será mais preciso. O sentido histórico consiste na investigação das considerações filosóficas suscitadas pelo conceito de saudade -o conceito implícito, bem entendido, e não o do fonema saudade. É assunto inteiramente novo. Tem-se investigado, e por vezes com finura e saber, a traduzibilidade da nossa palavra saudade por outras palavras do vocabulário latino, designadamente desiderium, que etimologicamente significa *deixar de ver+, e dos vocabulários românico, anglo-saxónico e árabe; porém, a investigação histórico-filosófica da ideia está por fazer e estamos seguros que dará resultados esclarecedores. Assim, por exemplo a análise dos conceitos de desiderium em Santo Agostinho e em Espinosa, nomadamente na definição da Ética, a reflexão de Locke no Livro II do Ensaio sobre o Entendimento Humano acerca da Uneasiness, e as expressões literárias, as compenetrações místicas e as reflexões filosóficas acerca da solitude, conduzirão a aproximações significativas, e muito principalmente a noção de Uneasiness, que Lc>cke definiu como *o desejo fixado sobre algum bem ausente+, cuja tradução usual por inquietude Coste considerava imprecisa e que um português traduziu por saudade no final do século XVIII. O alcance máximo da indagação orientada com sentido fenomenológico e histórico-filosófico cremos que virá a ser a apreensão da intencionalidade da saudade, ou por palavras mais precisas, o correlato intencional da consciência saudosa, ou seja a comunicação da consciência com outras consciências ou com outros seres ou estados ausentes. A ALMA PORTUGUESA 113 É-se sempre saudoso de, isto é, na saudade dá-se sempre a consciência de algo ausente e cuja presença se apetece com *desejo melancólico+, como admiravelmente disse Garrett, e daqui decorre o quarto problema, relativo ao ser a que o objecto da saudade se reporta. ]É, pois, um problema ontológico, e este problema procede do facto de na saudade se dar, a um tempo, o ensimesmar-se e o exsimesmar-se, ou por outras palavras mais adequadas ao sentido noético, a presentação actual de um estado ou de uma situação indesejável ou menos agradável, e a representação de um estado, de uma situação, de objectos ou entes conhecidos em experiência transacta e que se desejariam revivescentes com vívida comunhão afectiva. Por esta característica, a saudade não é identificável de maneira alguma à reminiscência no sentido platónico, dado que o saudoso se coloca emocionalmente perante o seu mundo pessoal e vivido e não perante o mundo impessoal de ideias e de formas objectivas, indiferentes, intemporais, aespaciais e universalmente válidas. Os objectos a que se reporta a consciência saudosa têm valor real e não puramente conceptual ou explicativo, e por isso se verifica no acto saudoso o desprendimento, quando não evasão, da presentação objectiva actual, pela apetência mais ou menos veemente do ser ou maneira de ser, representada como ausente, envolvendo a representação, a par de elementos efectivos, a referência expressa a algo existente ou que existiu fora e independente do sujeito. Consequentemente, no acto saudoso dão-se a existência do ser para o sujeito e a existência do sujeito para o ser, ou por palavras expressivas do vocabulário escolástico, a coisa de que há saudade é, sob certo ponto de vista, esse in, isto é, acontecimento que se dá numa consciência individualizada, e sob outro, esse ad, isto é, relação intencional com o objecto ausente e desejado. Por isso, se o ensimesmar-se da saudade implica a determinação categorial da vivência saudosa no conjunto da vida psicológica, o seu exsimesmar-se implica o complexo problema das formas, natureza e lugar ontológico dos objectos que o saudoso desejaria actualizados. Do conjunto destas considerações resulta, finalmente, o problema central e totalizante da significação metafísica da saudade, ou talvez mais propriamente, a importância da saudade como dado para uma interpretação metalislca da existência. 114 OBRA COMPLETA DE JOAQUIM DE CARV.ALHO Se por filosofia se entender a teoria geral do mundo como síntese do saber ou a fundamentação crítica da possibilidade do próprio saber, a saudade é um acontecimento individual que se submerge apagadamente na interpretação geral da vida psicológica; porém, se s.e entender que para além do mundo que nos é dado, do qual somos espectadores, há o mundo das qualidades e das significações, do qual somos criadores pela arte, pela ética e pela metafísica, e que a filosofia é fundamentalmente interpretação qualitativa, então a saudade pode ser elemento capital de uma interpretação metafísica da existência, por implicar uma tomada de posição perante o mundo, a qual afecta a totalidade da existência vivida e a viver. A consciência de estar no mundo não creio que seja princípio bastante e suficiente de uma explicação metafísica da realidade que se vive, mas a explicação total da realidade que se vive não pode menosprezar os ensinamentc>s e as correlações implícitas na consciência saudosa. Como é óbvio, o homem saudoso percebe o mundo externo e o mundo interno exactamente como o homem que o não é. É com os mesmos sentidos, com os mesmos processos, com as mesmas categorias que um e outro apreendem sensações, elaboram ideias e generalizam abstracções; no entanto, os dois homens podem divergir, se é que não divergem, na maneira como interpretam a existência, de tal sorte que ao lado de uma interpretação intelectualista e de uma interpretação pragmática se pode falar de uma interpretação saudosista. Assim, creio que todos reconhecem o contraste do personalismo inerente à saudade com a impessoalidade do nacionalismo convicto que a virtude pode ser demonstrada como um teorema de geometria, tal como Espinosa, para quem a explicação cabal e a suprema felicidade consistem na plena integrarão do modo da existência de cada um no ser da substância donde tudo procede necessária e necessitantemente. A presença espiritual da ausência outrora vivida e agora desejada, que é porventura a essência da saudade, desentranha alguns problemas, como o da realidade vital do tempo, o da realidade da mudança e da alteração e o da existência da multiplicidade irredutível dos seres e das consciências, cujas soluções são elementos indispensáveis de qualquer configuração metafísica da existência e da concepção da vida. Com serem importantes, creio não obstante, que a significação suprema da saudade consiste em conduzir o pensamento a interrogar-se e a interrogar a existência vivida e a viver, perceptível e desejável, na sua expres- A ALMA PORTUGUESA 115 são concreta, e não meramente abstracta e menos ainda como espectáculo de que a mente e o coração humanos sejam meros espectadores, passivos e indiferentes. Tais são, em rápido conspecto, os problemas capitais que se me afiguram existir no tema da saudade como objecto de reflexão. Ao escolher este assunto, tive fundamentalmente em vista chamar a atenção para a possibilidade de se descobrirem problemas e filosofemos mais ou menos correlacionados com a nossa idiossincrasia. Creio saber que a índole e o teor da filosofia são supranacionais, ou melhor, a-nacio,nais; mais creio saber também que o próprio de uma consciência nacional irredutível pode alcançar pela arte, pela acção e pelo pensamento significação universal, e que este é um dos desideratos mais altos que se oferecem à mente de portugueses e de espanhóis, tanto no que os aparenta como no que os separa. A vida histórica de uns e outros, assim como as peculiaridades dos seus gênios nativos encerram temas e problemas a um tempo de significação nacional e universal; e destes temas, a saudade é, porventura, o que mais promete e o que mais instantemente aguarda quem lhe desvende o potencial de filosofemos com coerência lógica e consistência doutrinal. 2 ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA CONSCIÊNCIA SAUDOSA (ESBOÇO DE UM ESTUDO) A saudade propõe numerosos problemas, designadamente de filologia, de história literária, de psicologia étnica, de descrição psicológica, de análise filosófica e de interpretação metafísica, cada um dos quais põe em jogo factos diversos e objectivos diferentes. O nosso intento vai consistir somente em indagar a resposta à seguinte pergunta: o que é próprio da consciência saudosa? O quê desta pergunta carece de ser delimitado, em ordem a cingir-se com a possível clareza o assunto. É que a consciência saudosa, já em si mesma e nos seus conteúdos, já como acto da vida emocional nas relações com outros actos e estados, pode ser objecto de indagações relativamente independentes, conduzidos, aliás, com metodologia diversa. Normalmente, a vivência da saudade não se dá a conhecer por actos fisicamente expressivos, como a alegria, que se expande em riso, a mágoa, que se manifesta com soluços e lágrimas, a cólera, que se traduz em gestos arrebatados e violentos. Como todos os afectos e estados da vida emocional, a saudade acompanha-se de manifestações corporais, mas não são estas que caracterizam a consciência saudosa nem por seu intermédio se pode aceder ao que é peculiar e próprio da saudade. Nas formas avassaladoras da saudade, a consciência devém melancólica, comportando-se o saudoso como ser ensimesmado e distante do que o circunda, mas esta expressividade não é privativa da consciência saudosa, porque se dá também noutros 118 OBRA COMPLETA DE JOAQUIM DE CARVALHO estados, designadamente na preocupação expectante e na consciência amargurada e solitária. Daqui, por um lado, a necessidade de se discriminar a saudade dos actos da vida emocional que lhe são próximos, e, por outro, a exigência de uma atitude metodológica que se aplique principalmente ao exame intusceptivo da vivência da saudade, em ordem a apreender o que está aquém dos actos expressivos. É, pois, para a constituição da consciência saudosa enquanto consciência saudosa, que cumpre dirigir a indagação, pondo de lado outras indagações, designadamente as que respeitam ao porque se é ou está saudoso, ao de que se é saudoso, e ao como se é saudoso. A saudade é um acontecimento exclusivamente humano; o ser divino, por essência acto puro, não pode ter saudades, por ser inconcebível que sinta o presente como perda de bens outrora fruidos, e o animal, também as não pode ter, porque o seu psiquismo é restrito ao sensível e ao que lhe é presente com singularidade concreta. A saudade dá-se, pois, somente na consciência humana enquanto consciência que vive o tempo como coisa sua própria, e o seu acontecer apresenta-se simultaneamente como estado psíquico intransferível e como correlato com presencialidades que transcendem a consciência. Por outras palavras: a saudade dá-se em e é sempre saudade de algo, isto é, o acontecer da saudade é um acontecer que a consciência íntima pode comunicar mas não transferir para outrem, e cuja vivência se acompanha da presença espiritual de seres ausentes ou de circunstâncias e estados transactos. Na realidade vivida habitualmente, a saudade constitui como que um todo, mas este todo somente se apreende com alguma clareza depois de conhecidos os elementos que o integram. Os testemunhos literários da vivência da saudade, principalmente de poetas, mostram que uns acentuam predominantemente o em da saudade, e portanto transmitem de preferência manifestações de desejo e de afectividade, como a tristeza, a solitariedade, a nostalgia, enquanto outros, mais raros, são impressionados pelo de da saudade, e portanto transmitem A ALMA PORTUGUESA 119 intuições ontológicas acerca do que se é saudoso e da ausência que se deseja presencial e viva. A razão disto procede do facto da saudade exprimir originariamente, como todos os actos emocionais, uma tomada de posição da consciência perante seres, situações ou circunstâncias com que se defronta, e do *algo+ de que se é saudoso comportar uma multiplicidade de consistências e de gradações. Daí, lhe serem inerentes três elementos constitutivos: o ser subjectivo ou eu pessoal, os seres e situações postas como já vividas, e o correlato do eu pessoal com tais seres e situações. O estar saudoso exprime psicologicamente um estado em que a consciência opõe ao que lhe é dado na experiência patente a preferência de algo já vivido e ausente. O passado é representado em conexão de algo actual e presente, cuja dimensão afectiva é inferior à dimensão afectiva do passado representado. *Isto faz-me saudades+, diz o povo, e neste dizer claramente se deixa ver a conexão existente entre a presentação e a representação: se a consciência saudosa se insere necessariamente em algo actual e efectivamente presente, a intensidade da saudade varia na medida em que se opõem às qualidades e propriedades afectavas da presentação as qualidades e propriedades afectavas da representação. Ter vivido e conservar um núcleo de representações ligadas emotivamente entre si, são condições primordiais e indispensáveis da saudade; por isso a saudade se não dá na consciência incipiente da criança e o velho é mais propenso a viver saudosamente que o adulto. Somente a consciência fonnada, isto é, polarizada em torno do eu pessoal, pode ter saudades, e a razão procede da circunstância da consciência saudosa se inserir e compenetrar do tempo vitalmente vivido, sem o qual não pode haver saudades. A esta luz, a saudade aparece como forma particular do comportamento perante o presente. A peculiaridade da temporalidade que lhe é própria surge com alguma clareza quando se compara com a consciência apaixonada, que é a consciência imersa no presente imediato, com a consciência expectante e esperançada, que é a consciência que fita o futuro, e com a consciência erma, que é a consciência que se sente solitária e desamparada, isto é, sem raízes em qualquer sítio do espaço e sem conexão com qualquer das dimensões do tempo. 120 OBRA COMPLETA DE JOAQUIM DE CARVALHO Opondo o transacto ao que é percebido com actualidade, a consciência saudosa nem prolonga o presente que ela vive nem antecipa o futuro que ela deseja; a temporalidade que lhe é própria é retrotensa e não protensa. A saudade não exclui o futuro, como claramente mostra a frase popular de as saudades *só à vista terem fim+ e até pode dar-se o receio de que o futuro proporcione bens ou situações, cuja fragilidade gere a suspeita de que deles venha a ser-se saudoso; no entanto, o tempo próprio da saudade e no qual ela se insere é o tempo vivido e concretizado em representações evocativas, sem as quais a saudade se não pode constituir. ]É que assim como nos podemos comportar diante da presença de alguém como se estivesse ausente, assim também nos podemos comportar perante seres ausentes ou situações transactas como se estivessem presentes. A saudade, com efeito, nasce do contraste que a consciência estabelece entre duas realidades: a que é dada pela percepção actual e a que é dada pela evocação retrospectiva. A percepção actual dá a realidade que se vive, e a evocação, a realidade que se viveu, cuja projecção sobre a realidade actual estabelece como que a medida da perda que se sofreu e se desejaria recuperar. A projecção sobre o presente, ou seja a representação da ausência como perda ou privação, além do tempo vivido, requer que se não captem no objecto da percepção actual qualidades cujas dimensões afectavas se arraigaram no mundo da subjectividade. Propriamente, não há coisas que desprendam saudades, tal como há coisas que exalam repugnância e metem medo, porque a saudade se vincula ao ser íntimo e não a materialidades e exterioridades. Não obstante, não pode constituir-se sem ser despertada pela presença de coisas actuais desprovidas de certas qualidades, cuja falta suscita a representação de algo ausente acompanhada do desejo de a tornar a ver ou reviver com actualidade. Perante tais coisas, a consciência saudosa não toma a posição teorética, isto é, a posição que a partir de dúvidas se exprime por juízos existenciais, nem a posição prática, isto é, a posição que se exprime por decisões. A posição saudosa é ensimesmada e contemplativa; por isso o conhecimento inerente à saudade não é um conhecimento que é ou possa vir a ser científico, isto é, impessoal, de todos e para todos, nem o comportamento da consciência saudosa dá ensejo ao remorso, apesar da saudade e do remorso radicarem em tendências A ALMA PORTUGUESA 121 e concretizações que se enraizaram no âmago do eu pessoal. Assim considerada, a saudade não é a captação sensível de uma realidade extramental, nem a emanação de existências ideais ou irreais, nem tão pouco a criação fantasista da pura subjectividade, porque é um estado que se constitui a partir de uma situação presente mediante a representação de entes ausentes ou de situações anteriormente vividas com plenitude ou vitalmente imaginadas. Entes ausentes e situações vividas com plenitude, e não coisas ou manifestações puramente físicas. É que o inerte, o espacial e o mecânico não dão ser à saudade, nem tão pouco a saudade se dirige à exterioridade das coisas; por isso, se não dá na saudade o desejo da posse de materialidades, como na cobiça, nem a repugnância pelo aspecto das coisas, como no nojo. Essencialmente vinculada ao tempo emotivamente vivido, a consciência saudosa tem como correlato algo ausente no tempo ou no espaço, cuja representação se dá com presencialidade espiritual; o *algo+ de que há saudade é, sob certo ponto de vista, esse in, isto é, acontecimento que se dá numa consciência pessoalizada, e sob outro, esse ad, isto é, relação intencional com o *algo+ ausente e desejado. No acto saudoso confluem, assim, o ensimesmar-se e o exsimesmar- se, porque a retroversão do eu sobre si mesmo não é vaga, como no tédio da vida. Constitui-se e dirige-se a representações fortemente impregnadas de emotividade; por isso, a consciência saudosa nos aparece como a presença espiritual de uma ausencia ia vivida acompanhada do desejo de a tornar a viver. A consciência saudosa, enquanto manifestação vivencial da existência concreta, não é fundamento suficiente e bastante da explicação metafísica da realidade que se vive, mas a explicação total da realidade que se vive não pode menosprezar as correlações implícitas no ensimesmar-se e no exsimesmar-s.e da saudade. 3 COMPLEIÇÃO DO PATRIOTISMO PORTUGUÊS Ditaram as circunstâncias que eu passe no Brasil o dia comemorativo de Camões e quis a Direcção do Gabinete Português de Leitura honrar-me com o convite para usar da palavra nesta sessão e nesta sala, que empolga pelo ambiente e cativa pelas tradições. Aceitei o convite sem hesitação e com reconhecimento, principalmente porque ele me proporciona a satisfação de trazer a esta ara do nosso patriotismo a minha oferenda de estudioso da cultura portuguesa e de devoto da confraternidade luso-brasileira. Ã satisfação pessoal antepunha-se, porém, o cumprimento do dever. Tornava-se necessário que eu suspendesse por alguns dias as lições que interrompi em Coimbra e agora continuo em São Paulo, mas os meus ilustres e prezados colegas paulistas não só consentiram que eu me deslocasse até junto de vós como me animaram a entrar em relações directas com mestres e estudantes das Faculdades de Filosofia da Universidade do Brasil e da de Minas Gerais. Sinto-me, pois, plenamente à vontade para me congratular convosco neste dia festivo, em cujo simbolismo s,e fundem intimamente a glorificação do nosso passado, pela evocação das gestas da independência e dos descobrimentos, e o anelo do futuro, pela esperança de que se não interrompa nem quebrante a acção civilizadora de Portugal. Camões é de há muito, pelo plebiscito unânime e constante das gerações, o símbolo da nossa consciência patriótica, mas permiti que * Dismno proferido no Gabinete Português de Leitura, do Rio de Janeiro, sessão de 10 de Junho de 1953, comemorativa do *Dia de Camões+. 124 OBRA COMPLETA DE JOAQUIM DE CARVALHO eu quebre a tradição deste dia, não me ocupando propriamente da obra camoniana nem da sua significação nacional e universal, mas do que nutre e deu vibração colectiva à inspiração d'Os Lusíadas. É que estar à vontade não é sinónimo de restituição das condições necessárias às realizações da vontade. Fora do ambiente que quarenta anos de continuidade tornaram indispensável ao meu trabalho de investigação e de reflexão, sem o auxílio das minhas notas e sem o socorro dos meus livros, um elementar escrúpulo inibe-me de vos falar de Camões, mormente na terra em que Joaquim Nabuco e Afrânio Peixoto implantaram com mestria e solidez os estudos camonianos, erguendo-os desde logo a uma altura que obriga e responsabiliza. Não me sofre a consciência que recorra ao que já disse e escrevi acerca da cultura e do gênio do nosso poeta nacional, e não é digno da respeitabilidade desta casa centenária a improvisação de generalidades sem consistência nem densidade. Ocupar-me-ei, por isso, de um assunto que não é especificamente camoniano, mas sem o qual se não compreende cabalmente a épica eamoniana, e que me foi sugerido pela minha actual experiência de transterrado. Transterro é, com efeito, o termo que perfilho por mais significativo do que sinto e penso da minha situação actual. Encontro-me fora de Portugal, mas falo a língua que lá falaria, levo a vida que lá levaria, continuando o mesmo labor, com a mesma aplicação e o mesmo ideal de exactidão e de clareza. A terra que piso é outra e outra é a compleição do comum das gentes que a habitam, as quais me sugerem que, sendo forasteiro, não sou estranho, porque se me tornou afectivamente fluida a fronteira do pc>rtuguesismo e da brasilidade. No que toca às realizações materiais, vejo coisas pensadas com originalidade e em grande, levadas a cabo com tal dinamismo e sentido da modernidade que assombram. No que respeita à actividade científica, a par de assuntos que desabrocham, assisto à plena maturação de outros que em Portugal mal frutificam, e, no ideal cultural, dou fé da existência de tendências próprias, fortemente impregnadas de espírito nacionalizante, o que aliás não exclui de maneira alguma a não menos viva ambição de universalidade, sem a qual as criações do pensamento jamais perdem o acanhamento provinciano. Em suma, coisas análogas, diferenciadas ou radicalmente diferentes das que constituíram e constituem o mundo em que me criei ,e se me tornou habitual, mas vendo e ouvindo, aprendendo e ensi- A ALMA PORTUGUESA 125 nando, que é muitas vezes uma forma de aprender, confirmei algo do que sabia, rectifiquei juizos que tinha por exactos e sobretudo alarguei o campo da sensibilidade e da reflexão. Fico devendo aos mestres brasileiros da sociologia e da antropologia cultural a iluminação de alguns problemas que nos tocam pela raiz, e principalmente a incitação ao estudo de alguns sentimentos e de algumas estruturas da compleição portuguesa. Impressionou-me, em particular, a índole audaz, assimiladora e integrativa da capital bandeirant--, cuja alma, tensa com mais vigor para o Brasil que se constrói do que para o Brasil que se continua, também concorreu para me inculcar, não direi por contraste mas antes por diferenciação, a reflexão sobre a índole e as tendências do patriotismo português. Este será, pois, o assunto de que me ocuparei, e que considerarei à luz dos ensinamentos da história, da vida de terrantês que tenho levado e da de transterrado que agora levo acidentalmente, mas lançando também, e principalmente, os olhos para a variada fenomenolc>gia do comportamento dos portugueses fora do torrão natal, o qual não raro se patenteia como testemunho flagrante das nossas qualidades, dos nossos defeitos e, sobretudo, das nossas virtualidades. Saber porque s,e ama e quer a Portugal e em que consiste o amor que lhe votamos não são coisas tão óbvias e simples como à primeira vista parece. Não direi que cada português tenha uma ideia pessoal do que é e do que significa o nosso país, mas não hesito em dizer que os portugueses não coincidem na mesma concepção acerca de Portugal. Compreende-se. A elaboração de um conceito que englobe a totalidade da nossa existência nacional é um intento difícil e eminentemente falível, dado a realidade portuguesa ser múltipla, na sucessão das gerações, e diversa, na pluralidade e no matiz das suas manifestações. O critério mais instrutivo é o que a história propõe e a reflexão crítica da concepção da vida julga. Por si só, a história aconselha mas não decide, por várias razões, a começar nesta muito simples e óbvia: o ter sido não justifica sem mais o ser e o dever-ser. NO entanto, sem os ensina- 126 OIBRA COMPLETA DE JOAQUIM ]DE CARVALHO mentos da história o juizo não alcança densidade, porque assim como julgamos os indivíduos pelas acções, assim também conhecemos a índole dos povos pelas manifestações da sua actividade e do seu comportamento no decurso do tempo. A história dá-nos, assim, simultaneamente, o testemunho real e as dimensões existenciais da compleição da alma dos povos, da capacitação, qualidades e defeitos que a constituem, da hierarquia de valores que a singularizam, das tradições que a mantêm, das aspirações que a alentam e das vicissitudes dos ideais que a orientam. A análise dos sentimentos colectivos não escapa a esta lei constitutiva da cultura, mas importa tais dificuldades e escrúpulos que a sua aplicação se torna extraordinariamente complexa e delicada. Basta atentar momentaneamente na massa de factos que é necessário indagar e considerar, na exigência de equanimidade e no dever de evitar a simplificação de juizos, alguns dos quais, infelizmente vulgares hoje em dia, tendem a interpretar, quando não a estimular, o exercício da vida pública como guerra e extermínio de facções ou de classes. Sem perder o contacto com os ensinamentos patentes pela história, as circunstâncias forçam-me, no entanto, a situar-me predominantemente no terreno da fenomenologia do comportamento. A grande maioria dos portugueses vive o amor pátrio como dado intuitivo e imediato, identificando-o normalmente com o amor à terra em que nasceram e onde lhes decorreu a primeira educação. Assim considerado, este amor pátrio gera um patriotismo localista e constitutivamente emotivo. O seu horizonte físico mal vai além da aldeia ou da vila natal e o seu horizonte moral é definido pela constelação de sentimentos que tem por centro a casa familiar. Constitui a forma mais simples, tenaz e generalizada, da fenomenologia do nosso sentimento patriótico, sendo suas notas características a visão estática e a saudade, por assim dizer vital. Se não erro, é o amor pátrio assim entendido, ou melhor assim sentido, que explica em grande parte a constituição da nossa vida civil com base no agregado familiar, o desinteresse pela vida pública como actividade de primeira plana, e a instabilidade de todas as organizaçõ,es de significação estritamente política. Nunca faltou ao povo português o instinto político, isto é, a intuição do que importa vitalmente à sua existência como grei. A nossa autonomia política, das mais antigas da Europa, e a continuidade da nossa existência colectiva, A ALMA PORTUGUESA 127 sem os colapsos da história de alguns grandes povos, que possuindo o dom da imaginação e sabendo pensar não sabem agir, proclamam bem alto o instinto político dos portugueses. Nunca precisamos, em momento algum da nossa vida civil, de recorrer ao exemplo alheio para sabermos o que nos é essencial - o que aliás não quer dizer que a organização e efectivarão do que temos por essencial se não haja feito por vezes de olhos postos no exemplo alheio ou nas ideias de outros. A par de uma actividade de Portugal, isto é, do nosso gênio nativo, há também, e em larga medida, a expressão em Portugal da assimilação alienígena. Raras vezes ficamos indiferentes aos ventos do espírito, embora nem sempre os tivéssemos deixado soprar como mais conviria à boa saúde mental e à temperança moral. Política e intelectualmente, porém, ao convívio das associações livres da cidadania e às conexões mais ou menos abstractas com o pensamento forasteiro preferimos instintivamente o gosto de viver à parte e a nosso modo, conferindo à família, como agregado que polariza quase todos os afectos e aspirações, a ascendência e o primado que certos povos conferem a outras associações de interesses, de ideias ou de profissão. Esta maneira de sentir Portugal, que radica numa atitude tendencialmente conservadora e mais ou menos desconfiada das novidades, concorreu e continuará a concorrer poderosamente para dar fisionomia própria à nossa existência colectiva, que não depende de circunstâncias ou de conveniências alheias mas única e exclusivamente de nós mesmos e do plebiscito que tem por foro a intimidade da consciência. Sem este patriotismo localista, fortemente impregnado de sentimentos familiares, em geral mais polarizados em torno da dedicação materna do que da ascendência paterna, não se compreende a persistência do nosso espírito nacional, assim no que tem de singular, que é a unidade de comportamento nas mais diversas e remotas paragens, como no que tem de limitado e de suspicaz no exercício e na desenvolução. De horizonte estreito, fiel e persistente, mais propício a gerar homens de acção e de palavra que doutrinários, é deste espírito que cumpre partir para a conceptuação do nosso patriotismo. Três componentes fundamentais encontro na sua estrutura, a saber: a constância multissecular, o substracto afectivo e a tendência saudosista. Com Ricardo Severo penso que a nossa compleição remonta a tempos proto~históricos e que os castrc>s e citânias ao norte do 128 OBRA COMPLETA DE JOAQUIM DE CARVALHO Mondego foram as suas primeiras expressões de agregação social. Na sequência do juizo do ilustre patriota e república, a cuja memória rendo profundo respeito, as minhas indagações levam-me a admitir como seguro que a génese e constituição da nossa índole se foram produzindo à medida que o comunitarismo tribal, baseado na consanguinidade, se desagregou com a sedentariedade, com a monogamia e com o processo de individualizarão da consciência. Tudo indica a existência de um fio de continuidade da tribo castreja dos ten-lpos proto- históricos aos municípios, às vilas e póvoas da ocupação romana e destas às comunidades agrupadas em torno das igrejas cristãs, e que foram a raiz das freguesias. Nesta sucessiva organização do conviver social nota-se o alargamento, sob o ponto de vista da extensão, e a maior complexidade, sob o ponto de vista da especialização das funções e do trabalho, por forma que se é irresistivelmente levado a ter por certo que sem a romanização e cristianização outra seria a compleição das gentes que habitam o território de Portugal. Sem estes dois decisivos acontecimentos, que modelaram para sempre a nossa alma e a nossa estrutura mental, não é possível avaliar como se transformaria o clã consaguíneo dos povoados proto-históricos em circunscrições tcrritoriais, e as consciências indiferenciadas e aturdidas pelo pavor demoníaco e pelo discorrer mítico se transmudassem, primeiramente, em indivíduos dotados de uma linguagem que lhe desenvolvia a mentalidade lógica, depois, em sujeitos de direitos e de obrigações constituídas por actos de vontade autónoma, e por fim, em pessoas morais, com o sentido da responsabilidade da vida e da significação transcendente da existência. A nosso ver, o estudo sociológico do conviver das sociedades castreja, romanizada e cristã, correlacionado com a persistência fundamental da mesma constituição física, inculca fortemente o convencimento de que as grandes mutações operadas no actual território português foram essencialmente de ordem cultural e que o anelo de viver a seu modo, e à parte, é uma das mais antigas características das populações ao norte do Mondego. Sendo assim, a constituição autónoma do Estado português apresenta-se como ditame histórico e não como produto fortuito de circunstâncias propícias ou como remate feliz da acção pessoal do nosso primeiro monarca. Concomitantemente, o sentimento da nacionalidade, ou mais propriamente o anelo de viver à parte e a seu modo, em relação A ALMA PORTUGUESA 129 aos povos vizinhos, seria anterior à constituição da monarquia independente; e consequentemente, teria sido a compleição que deu origem e nutriu o esforço que se rematou na independência do Estado, e não o exercício do Estado político independente que gerou o sentimento da nacionalidade. O patriotismo sentido pela grande maioria dos portugueses, ou seja a emoção polarizada em torno da terra natal e que se nutre do conjunto de sentimentos inerentes ao agregado familiar, tem, assim, a mais veneranda ascendência, contando-se pelos dedos as nações européias onde é possível seguir tão longe e tão fundo as raízes da sua existência histórica e a estrutura da sua alma colectiva. Com o testemunho límpido de muitos séculos de história e com a constância ininterrupta da mesma sensibilidade e das mesmas reaccões perante os acontecimentos decisivos, os portugueses podem dizer que o seu patriotismo lhes é tão natural como a pulsação do coração e que, sob certo ponto de vista, ele constitui uma maneira de ser peculiar e até mesmo unia cultura própria, se por cultura se entender um complexo de tendências, comportamentos, tradiçc>es e aspirações, de constância no tempo e com unidade no espaço. Bastaria isto para gerar o convencimento de que, nós portugueses, haurimos o patriotismo com o leite materno e com a fala que nos é própria, de vocabulário abundante,e fino, mas incomparavelmente mais apto a exprimir o que o coração sente e os olhos vêem do que o que a razão excogita e subtilmente distingue. Para o nosso povo, a compenetração com a natureza é espontânea e íntima. Viver é conviver e não pugnar com o mundo. Daí, o predomínio das razões do coração sobre as razões da razão e a tendência a humanizar o mundo físico, não o sentindo somente como produto, potencial ou teatro de forças cegamente mecânicas. Os versos famosos do genial Teixeira de Pascoais, Cada folha que tombava Era uma alma que subia, brotam espontaneamente da intuição de que o ser da matéria não é diverso do ser do espírito, e consequentemente, de que o mundo é uma sinfonia de factos de consciência. Por isso, estes versos do mais vibrátil pc>eta-metafísico da linguagem portuguesa, cuja seiva espiritual aliás Antero ambicionou conceptuar em visão do mundo, encerram 130 OBRA COMPLETA DE JOAQUIM DE CARVALHO uma expressiva significação colectiva, pondo bem à vista quanto em nossa alma predomina o espírito de doçura e de comunicação afectiva sobre o espírito de mensura e de utilização prática. Daqui, ainda, a terceira componente da nossa compleição e que entra também na constituição do nosso sentimento patriótico: a saudade. Não há tema mais cativante e sugestivo do que falar da saudade a portugueses em terras do Brasil, onde aliás a sentimentalidade saudosa parece ter adquirido cambiantes peculiares. É que a inefável palavra tem o condão misterioso de fazer emergir do âmago da nossa personalidade uma constelação de recordações, agradáveis ou penosas, mediante as quais o presente nos aparece como que desprovido de valor próprio. A saudade manifesta-se sempre pelo contraste do presente que se vive com o passado que se viveu e exprime-se pela presença espiritual da ausência que se perdeu ou de que a consciência se sente distante, acompanhada do desejo, activo ou contemplativo, de a tornar a reviver. Esta me parece ser a estrutura da consciência saudosa, e sendo assim, é manifesto que a saudade é um acontecimento psíquico susceptível de se dar em qualquer ente humano. Pode a consciência de uns ser mais sensível que a de outros à inadaptação das circunstâncias ou ao contraste das situações vividas, à privação de bens ausentes e ao desejo de os reviver; não obstante, é da própria natureza da vida emocional e da temporalidade inerente à nossa vida espiritual o sentimento da conformidade ou desconformidade das situações sucessivamente vividas e, consequentemente, a possibilidade do contraste da vivência de uma situação actual com a recordação da vivência ou das vivências de situações transaotas. Daqui, a ilação de que a saudade não é privilégio de portugueses, de brasileiros e de galegos. É, repito, um acontecimento psíquico susceptível de se dar na consciência de quem quer, mas se isto é exacto sob o ponto de vista da psicologia em abstracto não é menos exacto, sob o ponto de vista concreto, que a saudade significa para portugueses, brasileiros e galegos uma maneira que lhes é própria de responderem às solicitações do mundo que os rodeia ou às situações em que se encontram, e na qual se compenetram em complexa combinação o passadismo e o idealismo, a vida vivida e a vida a viver. A história e a observação dão-se as mãos para justificarem este asserto. A ALMA PORTUGUESA 131 A primeira coisa digna de nota assinala-se com o facto do aparecimento da palavra saudade se ter verificado no noroeste da Península, em terras de Entre-D.ouroe-Minho e da Galiza, e não noutro território peninsular ou de fala românica. A geografia inculca, consequentemente, além do problema filológico, aliás já esclarecido por filólogos portugueses e brasileiros, o problema sociológico e o psicológico. Sociologicamente, seduz a explicação que radica a saudade na celtização dos povos do noroeste peninsular e nos factores históricos que concorreram para que Entre-Douro-e-Minho, mais do que em qualquer outra região do território português, se tivesse operado a mutação do sentimento terrantês em sentimento nacional. Se assim é, a origem e o regionalismo da palavra levam ao convencimento de que o idiomatismo do fonema exprime não só uma conformação psíquica peculiar a luso-galai<--os, mas ainda a tendência a conferir à existência um sentido personalista. Com ef@eito, a saudade não se confunde com a soledade nem com a nostalgia. Na soledade, a consciência encontra-,se somente consigo mesma, nua, desamparada, sem conexões que a prendam ao passado e ao futuro. Marca gelidamente o caminho da amargura, quando não do desespero; na saudade, pelo contrário, a consciência radica no tempo outrora vivido e abre quase sempre uma janela para o consolo da esperança. Na nostalgia dá-se como que a especificarão da saudade. Ambas partem do isolamento psíquico mas a evasão na saudade apresenta-se multiforme ao passo que na nostalgia s.e reporta directa e imediatamente ao ambiente onde se constituiu ou desenvolveu a individualidade psíquica. Reveste, por isso, duas formas: a nostalgia da terra natal e a nostalgia do lar familiar, mas tanto uma como outra geram o mesmo tormento do exílio, ou seja a inadaptação no meio das facilidades e a insatisfação diante da fartura, quando não é a desilusão, que impele, *o filho pródigo+ a retornar à mansão paterna, a morriíía, que consome a ternura do galego distanciado do eido natal, a dór e a urât do romeno oprimido pela melancolia da solidão, ou ainda o banzo, que aniquila no negro desterrado as próprias necessidades vitais. O vácuo da nostalgia é fundamentalmente inerente à constituição e à actividade psíquicas, pelo que tem nome em todas as línguas e correlativa expressão em quase todas, senão todas, as literaturas. A saudade, porém, não é propriamente um estado psíquico de desarti- 132 OBRA COMPLMA DE JOAQUIM DE CARVALHO culação da realidade, mas o impulso e a satisfação em interpretar a existência com sentido personalista. Ê@se sempre saudoso de algo, isto é, na saudade dá-se sempre a consciência de algo ausente e cuja presença se apetece com *desejo melancólico+, como disse Almeida Garrett, ou seja, a um tempo, o ensimesmar-se e o exsimesmar-se, para tudo dizer em duas palavras concisas e densas. O que venho dizendo sumária e rapidamente teve em vista o estabelecimento da seguinte conclusão, de importante consequência: o patriotismo vivido pela grande maioria dos portugueses tem como componentes primaciais elementos efectivos, de escasso e ténue conteúdo intelectual. Daqui, a vitalidade das exigências e dos apelos do amor pátrio e ao mesmo tempo a sua insuficiência. É que o patriotismo implica necessariamente uma relação entre a consciência individual e a existência de algo, ideal ou real, que ultrapassa o indivíduo. Não é agora oportuno indagar se isto que ultrapassa o indivíduo lhe é imanente ou transcendente à consciência. Basta de momento acentuar que sem o calor e a vibração do sentimento o patriotismo esmorece e definha, mas esta condição vital não significa que a essência do patriotismo resida no sentimento individual, mesmo que se lhe confira o fluir imanente. Pelo contrário. O patriotismo, qualquer que seja o vigor e a amplitude do sentimento que o aquece, é essencialmente um nexo que liga a consciência do indivíduo à totalidade dos seus compatriotas e à história pretérita e principalmente futura do país. A consciência de que o sentir e a acção individual coincidem inteiramente com o ditame da grei nacional é o ponto mais alto a que pode chegar o contentamento patriótico. Não é tanto a satisfação do dever cumprido, como sói dizer-se; é sobretudo a compenetração profunda de se sentir totalmente participante de uma vida que ultrapassa os indivíduos e se integra e solidariza com o ser profundo da própria Pátria: com o ser de ontem, com o ser de hoje e principalmente com o ser de amanhã, porque a Pátria vive mais do futuro que do passado e do presente, torno a dizer. A ALMA PORTUGUESA 133 Como vêdes, a reflexão sobre a índole do patriotismo afecta o que -há de mais escrupuloso e complexo na sensibilidade moral. Enquanto a indagação remi sobre o sentir concreto e historificado, a atitude é observadora, conduzindo a um saber descritivo, mas quando passa do ter sido para o que o patriotismo é em si mesmo e para o que pode ou deve ser, o indagador empenha a própria personalidade. A indagação deixa de ser neutral. Quem a pratica, sem entoar hosanas, carpir lamúrias ou verter recriminações, é inexoravelmente levado a medir a responsabilidade do seu pensamento perante a própria consciência e perante a consciência alheia. O pensar de quem assim discorre pode nutrir-se do alento e do estímulo dos sentimentos a que me referi, mas o único caminho que pode conduzir à determinação do objecto ou do conceito fundamental do patriotismo é o da razão esclarecido e fundada. Por outras palavras: o da razão que problematiza. O que importa é o juízo e não a opinião, e menos ainda o murmúrio lírico do poeta ou a configuração plástica do artista. A expressão poética ou artística é sempre expressão pessoal e intransferível, por mais representativa que a imaginemos, de sorte que somente o pensamento que se sente responsável perante a verdade e se submete unicamente às determinações exactas do objecto, pode aspirar a uma conoeptuação de Portugal, isto é, a responder à pergunta em que consiste e qual o sentido do nexo que liga a consciência dos portugueses à nação a que pertencem. Comecemos por notar as características deste nexo, não abstracta- mente mas atentos à realidade que nos é própria. A primeira que se nos oferece é a estabilidade e persistência. É que a pátria entendida como entidade moral é una e idêntica, e até ocupa normalmente um espaço físico delimitado por fronteiras, isto é, pelo espaço físico de outras pátrias. Pode ser ser-vida diversamente e até pode -ou antes deve, na maioria dos casos - desej@ar-se que empreenda novas tarefas e rumos ou se situe numa posição e num ideal tidos como fundamentais; no entanto, é o mesmo o objecto supremo a que s,e reportam estes pontos de vista, que inspiram e nutrem a diversidade das acções políticas, sempre partidárias por intrínseco ditan-ie, e portanto limitadas. Por isso, s,e se pode mudar de política sem afectar a estrutura do sentimento patriótico, ninguém 134 OBRA COMIPLE7rA DE JOAQUIM DE CARVALHO muda de pátria sem destruir o próprio conceito de pátria e sem lacerar e fender a própria consciência íntima, pelo rompimento de conexões que viveu e a que deu solidariedade. A segunda característica do elo que nos liga à pátria é o desinteresse. Na consciência isenta e sincera é a representação da pátria que origina e norteia a acção, e não às avessas. O pecado mortal do utilitarismo consiste precisamente em considerar a grei nacional como meio ao serviço do indivíduo, sem notar que o amor da pátria somente se alcança e goza quando a consciência se sente participe de um todo que ultrapassa e engloba os interesses individuais. Daqui a terceira característica do nexo que estam<:>s considerando: a feição englobante. A sede efectiva e viva da pátria é a consciência dos seres que a compõem, mas isto não quer dizer que a pátria seja constituída pela consciência dos indivíduos. A pátria é uma realidade que nos é dada, e o grande problema educacional e moral consiste em que o que nos é dado como facto tradicional seja sentido como emoção e pensado como ideia e como ideal. Para nós, portugueses, a freguesia e o município têm sido os elos sucessivamente mais gerais que conduzem à apreensão efectiva do nexo englobante que é a pátria -e faço ardentes votos por que o continuem a ser, qualquer que seja ou venha a ser a importância de outros elos inspirados mais ou menos na consciência de classe ou de profissão. A consciência da conexão que liga os portugueses, diversificados em várias e até estou em dizer, em necessárias parcialidades e confissões, tem assegurado ;a Portugal a continuidade, poupando-o a essa sucessão de catástrofes e de ressurreições que é a história de numerosos países: tanto basta para que seja insensatez procurar-lhe outros fundamentos e características. Sem deformar grandemente a realidade, pode pensar-se que o exercício da nossa vida colectiva tem sido tecido e destemido por duas famílias mal avindas, lutando uma com mentalidade de herdeiro, e portanto pela autoridade, e pugnando a outra com amor do risco e espírito de iniciativa, e portanto pela liberdade. Daí, dar-se o caso do nosso desenvolvimento se apresentar às vezes com ritmo oscilante e como história das ocasiões perdidas, mas seja qual for o número e a extensão destas oscilações e destas ocasiões, há um facto que as supera e de algum modo compensa: a constância entre nós da ideia de que não A ALMA PORTUGUESA 135 deve forçar-se o curso da história, precipitando o desenrolar dos acontecimentos. Sabemos, por um saber de experiência feito, no decurso de muitas gerações, que se as criações do pensamento são fulgurações na opacidade da ignorância ou da incompreensão, os ditames do patriotismo, mormente do que importa à nossa existência colectiva como nação, são, pelo contrário, constituídos e determinados pela continuidade do que é estrutural. Podem e devem variar as mensagens e tarefas das sucessivas gerações, sem as quais a vida colectiva estagna, mas o elo que liga as sucessivas gerações não deve variar e até tem de ser preservado da debilidade da anemia e da toxina de alguns venenos. Onde encontrar, porém, o ideal que transforme o patriotismo localista e nostálgico num plexo que religue a gama variada da sentimentalidade patriótica e integre todos os portugueses num destino moral comum? A resposta exige uma das mais árduas indagações que podem propor-se à consciência moral e reflexiva. Como tudo o que se funda na razão, ela tem de ser a um tempo consistente e coerente, e se a coerência, isto é, a conformidade lógica, s,e alcança com relativa facilidade, a consistência, isto é, a compatibilidade com todos os factos que importa considerar, é de extraordinária complexidade. De modo geral, oferecem-se dois grandes caminhos; o que atenta predominantemente no que subj,az e nutriu a expansão portuguesa no mundo, e o que apela para a maneira de ser portuguesa em ordem à sua intervenção na actividade civilizadora. Os descobrimentos e conquistas assinalam sem sombra de contestação a nossa posição na história universal, sendo maravilha e assombro que um pequeno povo, de exíguos recursos, tivesse como que duplicado a obra da criação, na frase expressiva de Humboldt. O facto, ou antes a continuidade dos factos, pois alguns se prolongam quase até aos nossos dias, inculca a fundamentação de uma concepção da pátria, que tenha por núcleo aglutinante a noção de imperium, ou mais propriamente a de exaltarão heróica. Com a mão na consciência, tão sinceramente como se jogasse o próprio destino, a reflexão em terra brasileira, robustecendo, aliás, antigos pensamentos, levou-me à convicção de que esta concepção não pode nem deve ser o nosso ideal do Portugal de amanhã, que é sempre o ideal que mais importa. Não pode, porque o Mundo já está descoberto e o que aconteceu nos séculos XV e XVI é irrepetível sob 136 OBRA COMPLETA DE JOAQUIM DE CARVALHO todos e quaisquer pontos de vista; e não deve, porque este ideal fomenta um complexo ambicioso e como que de superioridade, cujas crises e vicissitudes geram inexoravelmente, por contraste, o sentimento da decadência, quando não o da inutilidade de qualquer esforço colectivo. Repare-se um instante na nossa variada literatura sobre a decadência de Portugal, e logo se notará que esta literatura teve por nervo um ideal demasiado alto e exageradamente ampliado. Sei que o abandono deste ideal pode suscitar a opinião desalentadora dos portugueses de hoje se não reputarem à altura dos seus antepassados, em cuja acção a morte não teve poder. Sei isto e sei outras coisas mais ou menos relacionáveis; volto, no entanto, a insistir na realidade óbvia e insofismável de que o Mundo já está descoberto. As nações, com a responsabilidade histórica da gente portuguesa, não podem imobilizar-se extaticamente, nem devem iludir-se infantilmente; têm que desentranhar sucessivamente da massa das suas tradições e aspirações um ideal coerente com a conjuntura histórica, que exprima e defina o seu estar mudável em concordância com o seu ser permanente. Estacionar, é cometer o pecado da incompreensão e a cob,ardia de enfrentar as realidades que o acontecer faz emergir da temporalidade histórica. A esta luz, o que hoje importa não é um ideal de exaltarão e de poderio, mas um ideal de elevação humana, mediante o qual os portugueses afirmem a sua maneira de ser na parcela do mundo que lhes compete integrar e salvaguardar na civilização que representam, suscitando necessidades, incutindo a perseverança no trabalho e rasgando a inteligência e ia consciência para os mais altos e dignos valores humanos. Historicamente, este ideal é a projecção, senão o i=ate, da gesta que nos deu fisionima inconfundível na história do mundo; e eticamente, ele estabelece um conjunto de conexões susceptíveis de congregar todos os portugueses, vivam onde viverem e seja qual for a sua confissão religiosa ou parcialidade política, numa afectividade comum, fazendo-lhes sentir a pátria como acção criadora e como destino colectivo. Somente este ideal, a meu ver, dá expansão ao sentido personalista da nossa compleição, que se admira o herói, também se rende ao homem bom e justo. E não só dá expansão à nossa compleição, senão que lhe fixa meridiano próprio e a preserva eficazmente dos dois flagelos obscurantistas do nosso tempo: o que simplifica a vida, A ALMA PORTUGUESA 137 mecanizando-a e piivando.a do sentido qualitativo da existência, e o que ofusca o claro sol que tem iluminado os livres horizontes do espírito com as nuvens álgidas da estepe ou com a bruma opaca dos fanatismos meridionais. São estes juízos e anelos a oferenda que vos trago no dia grande que hoje vivemos. Pensei-a com ânimo isento e sincero, que é a única forma digna de se servir a pátria; e fortaleceu-a a lição admirável da actividade dos portugueses no Brasil. A obra humanitária das suas Beneficências, como primeira afirmação da existência de qualquer núcleo de portugueses e de porta franca a quem quer que dos seus serviços necessite, incitou-me a pensar que o que a nossa gente, humilde e obstinada no trabalho e sabedora do que custa e vale a vida, levou a cabo no plano da caridade, é susceptível de transpor outros planos em que a dignidade da pessoa humana, que é a palavra mais bela e nobre de todos os vocabulários e linguagens, constitui a meta suprema. Brotando da fonte viva do nosso patriotismo e radicando no cerne da nossa compleição, que tem a família por centro de interesses, a tenacidade do trabalho como primeira condição da honradez e a vida dúplice como a maior objecção moral, o ideal da dignificarão personalista, partindo da elevação das condições de vida e desenvoluindo-se na capacitarão dos dotes e recursos, é, a um tempo, na conjuntura que nos é dado viver, a melhor maneira da geração actual afirmar a nossa maneira de ser e de servir os valores constitutivos e permanentes da Pátria portuguesa. HOMENAGEM A INVESTIGADORES E PROFESSORES i HOMENAGEM A LUCIANO CORDEIRO A mentalidade histórica, isto é, a tendência para considerar os factos sob a categoria do transacto, descobrindo no presente a matriz do passado, parece ser uma das constantes da nossa conformação intelectual, dado que em todas as épocas e circunstâncias a história tem sido entre nós a disciplina mais cultivada. Não falta quem tenha visto no facto a incapacidade de soltar voos livres, sem peias, para aquelas zonas do pensamento onde só se entra com a audácia da originalidade e com a tenacidade do esforço, filiando-o uns na deficiência nativa, outros na deformação de uma educação mal orientada. Sem entrar no fundo da questão, densa de dificuldades e de consequências de vária ordem, creio que esta tendência do nosso espírito resulta dos imperativos do sentimento pátrio e das exigências vitais da nossa sociedade, que sempre atribuiu proeminente valor pragmático à história. Na Idade Média, durante a primeira dinastia, o processo espiritual da separação de fronteiras impôs o cultivo da crónica, porque é pelo reconto histórico de lendas, de tradições, de episódios e de feitos heróicos que se desperta e forja a consciência da diferenciação e da autonomia; olhos fitos na própria existência, sempre mais ou menos ameaçada, a consciência intelectual da nação teve principalmente em conta a eficácia da governarão pública e o pensamento pragmático, situando em plano secundário as subtilezas escolásticas de letrados. Com a dinastia de Aviz a vida espiritual tornou-s,e mais fina, mais complexa e compreensiva. Para além dos historiadores, que agora fazem a sua entrada com o incomparável Fernão Lopes e se nos apresentam mais esclarecidos e de mais vasto horizonte, surgem moralistas e pensadores da 142 O]3RA COMPLETA DE JOAQUIM DE CARVAL'HO política, isto é, despertam-se alguns contrastes entre o que é e o que deve ser, e começa a destacar-se a missão de formar e de desenvolver as gerações futuras, mas continua, não obstante, a prezar-se e a exigir-se aos bem dotados que aplicassem as suas capacidades intelectuais pragmaticamente, no sentido da utilidade nacional, e não especulativamente, na posição universalista e intemporal: Femão Lopes fala algures no Mestre de Aviz, que *enviou Nun'Álvares e seus companheiros a pregar pelo reino o envagelho português+. Depois do século XVI este imperativo da nossa constituição ético-cultural complicou-se e revestiu formas diversas, pela especialização crescente da actividade, sem que, no entanto, se lhe alterasse a substância, até mesmo nos tempos revoltos em que a vida pública rumou para novos ideais e para novas esperanças. Por isso, à maneira de remate ou de corolário do que vimos dizendo, pode asseverar-se que em todas as épocas abundaram sempre os indivíduos de sensibilidade ou de pensamento político e os cultores da história, não raro com feição militante, a investigação científica recaiu predominantemente sobre objectos ou problemas relacionados com as necessidades da vida nacional, e na reflexão filosófica só lograram significação relevante as concepções da vida e não os sistemas especulativos, o que aliás se contraprova com a existência na nossa língua de um vocabulário rico e denso de sentido axiológico em contraste com a escassez mirrada do léxico metafísico. É a recordação de um homem, cujo espírito brotou desta tradição vivaz e em cuja obra ela flui pujante, esclarecido, actual, que hoje se rememora nesta Casa, que ele, como ninguém, ajudou a fundar, a desenvolver e a tornar respeitada e querida, pranteando ainda uns, porventura, neste momento, a perda do amigo, sentindo outros a sua presença espiritual nas responsabilidades dos cargos que exercem e todos reconhecendo, afinal, com gratidão, o valor do exemplo que nos legou. O primeiro período da vida de Luciano Cordeiro vai do nascimento em 21 de Julho de 1844, em Mirandela, a 1875, aos 31 anos, isto é, ao advento da maturidade. ]É o período da formação, de ensaios e de tentativas, de actividade dispersa e de ambições malogradas, de arrojos atrevidos e de afirmações petulantes, mas que aos 21 anos já desfralda, com altivez, o estandarte do que será divisa e estímulo da sua vida inteira: a fé sem mancha nos destinos de Portugal independente. Nesses dias nevoentos da política nacional, quando se dizia vacilar a espada HOMENAGEM A INVESTIGADORES E PROFESSORES 143 de um velho condotieri e sofisticar a inteligência privilegiada de quem haveria de ser glória da tribuna acadêmica, Luciano Cordeiro foi, se não erro, o mais moço dos lidadores da campanha anti-ibérica, com o opúsculo Sim. Resposta aos que nos preguntani se queremos continuar a ser portugueses, impresso em Lisboa, em 1865. O jovem que então era, de espírito aberto aos mais avançados ideais democráticos, com o prazer de afirmar e a coragem de contradizer, como frequentemente testemunhariam os seus artigos da Revolução de Setembro e o vibrante panfleto de 1868, A Ordem do dia. Aos parlamentares futuros, não se deixou contaminar e muito menos cegar com a poeirada das novidades. O rasgo era coerente em quem, como ele, avaliando o vigor físico pela coragem moral, vestira, enquanto a saúde lhe permitira, de 1862 a 1865, a farda da Companhia dos Guarda-Marinhas, ou, por outras palavras, sentira a atracção da carreira que sempre seduziu os nossos rapazes de ânimo viril, de orgulho patriótico e de certa altivez mental, mas no lance ele brotou do âmago da sua personalidade, onde a flama do patriotismo crepitou, sem jamais vacilar. Abandonando a carreira naval, após a primeira viagem de instrução, e trocando o estudo das ciências exactas, para o que estava preparado com o exame de admissão à Escola Politécnica, pelo das disciplinas humanas, frequenta de 1865 a 1867 - sabe Deus com que dificuldades materiais ! - o Curso Superior de Letras, escola respeitável pelo fulgor do talento de alguns dos seus mestres e pela objectividade escrupulosa com que subtraíram algumas das chamadas ciências morais às dedadas da curiosidade atrevida e palavrosa. É uma nova forma de actividade que para ele começa, paralela à do jornalista, e cujas primeiras e mais cálidas manifestações se encontram no opúsculo Delenda Thibur, de 1866, com o qual se coloca ao lado de Antero na famosa querela da *Escola coimbrã+, no Livro de Crítica. Arte e literatura portuguesa de hoje, de 1869, seguido em 1871 do Segundo livro de crítica. Livros, quadros e palcos. Como a maior parte dos seus contemporâneos, Luciano Cordeiro fora procurar à literatura francesa o que não encontrara na nossa própria e munindo-se de algumas ideias gerais e normativas, colhidas designadamente em Proudhon, em Taine, em Teófilo Gauthier, convenceu-se ingenuamente ser isto o bastante para se tornar o Aristarco da arte portuguesa sua contemporânea. Legou-nos, assim, umas páginas de crítica literária e artística onde a precipitação alterna com a exígua densidade de 144 OBFU COMPLETA DE JOAQUIM DE CARVALHO juízo e a frase declamatória ocupa o lugar do raciocínio consistente; no entanto, o que elas perderam em valor pessoal lograram-no como expressão epocal e enfática de crenças e de esperanças, e apesar de tudo com lugar privativo na evolução histórica da crítica entre nós. O entusiasmo que os livros de Crítica denunciam revela claramente que o cultivo das letras lhe era incomparavelmente mais agradável e consentâneo com a sua maneira de ser que o estudo das ciências. Não é fácil conjecturar a influência que a es,colaridade no Curso Superior de Letras exerceu no seu espírito, nem os gennes de ideias e de aspirações que as lições nele depositaram. É de crer, no entanto, que o magistério superior se lhe afigurasse a profissão mais propícia à realização das suas ambições literárias e talvez por isso, em 1872, já professor de filosofia e de literatura no Colégio Militar, concorreu com Teófilo Braga e Manuel Pinheiro Chagas à cadeira de Literaturas modernas do Curso em que anos antes se diplomara. Foi este um concurso famoso pela categoria intelectual dos concorrentes, pelas parcialidades aguerridas do público e, sobretudo, porque dele se pode datar o monumento que é a História da Literatura Portuguesa, de Teófilo Braga, de alicerces nem sempre sólidos e cujas páginas abafam pelo ar confinado de uma pretensa positividade, mas que, pela mole imensa de factos que removeu e pelo alento patriótico que a percorre, subsistirá como expressão primeira e basilar da ciência,das letras entre nós. Luciano Cordeiro não possuía,a erudição de Teófilo nem o fulgor verbal e imaginativo de Pinheiro Chagas, e o breve opúsculo que apresentara como tese, intitulado Da literatura como revelação social, apenas denunciava a pressa com que havia sido redigido. Uma coisa, no entanto ' o singularizava em relação aos seus opositores: a associação do espírito crítico e do sentido dos valores estéticos, requisitos indispensáveis do historiador literário, à disciplina mental das ciências exactas, da sua primeira formação. Sob este ponto de vista não sofre, evidentemente, comparação com Latino Coelho, com Andrade Corvo, com o Conde de Ficalho, mas o breve convívio propedêutico com as matemáticas deu- lhe sobre Teófilo mais penetrante sentido da exactidão dos factos e sobre Pinheiro Chagas mais coerência na estruturação lógica do raciocínio. Teófilo foi, e justamente, o vencedor deste concurso célebre, em que se jogou para uma geração inteira a constituição objectiva da nossa história literária, mas o malogro de Luciano Cordeiro não lhe foi pre- HOMENAGEM A INVESTIGADORES E PROFESSORES 145 judicial ao desenvolvimento do espírito. Pelo contrário; o exame de consciência, que necessariamente suscitou, e o brio, que naturalmente feriu, provocaram o que pode chamar-se a conversão da sua inteligência aos ideais que lhe modelaram a personalidade definitiva. Na quadra em que escrevera tumultuariamente os Livros de Crítica e o demónio da facilidade lhe segredava que concorresse ao Curso Superior de Letras, pode dizer-se que pensava abundantemente com palavras e sobre palavras - tão abundantemente que certas páginas têm por vezes o desconforto dos quartos vazios. Em 1873, porém, meses depois do concurso, impulsionado p,orventura pelo sentimento de que devia justificar a posição docente que ocupava, publicou uns Apontamentos para a história do Colégio Militar, para o que aliás havia sido nomeado com outros colegas deste estabelecimento em Julho de 1872. No conjunto da nossa bibliografia histórico-pedagógica este escrito tem um lugar de relevo por se haver ocupado dos planos de estudos, frequentemente descorados pelas notícias biográficas e de organização extema, mas o que a meu ver o singulariza é a manifestação incipiente de um espírito que em vez do encanto formal da suces@são das palavras investiga factos e sobre eles raciocina e constrói directamente. É o eruchto que se anuncia, na atitude intelectual e nos métodos de trabalho, e cuja obra apenas irá depender da incitação das circunstâncias propícias, da acção do tempo e das vigílias. Entretanto, empreende a visita a vários países europeus, e talvez comc> despedida das ambiçc>es literárias da juventude deu-nos em 1874 os Estros e Palcos e o livro com as impressões sobre a Espanha e a França, e em 1875 o das relativas à França, à Baviera, à Áustria e à Itália, e ainda a tradução da Pepita Jiménez de Juan Valera, que poucos anos depois assistiria em Portugal como ministro e cujo epistolário com Menéndez y Pelayo encerra juízos de pennanente advertência. Com as Viagens termina o primeiro período da vida de Luciano Cordeiro, de en,-,aios e tentamos; outro lhe vai suceder, sensivelmente de igual duração, mas com a pujança disciplinada da maturidade, com o digno sentido das responsabilidades, com o nobre anelo de conciliar e de exortar, com a ambição honrada e leal de edificar solidamente, sem o salitre da vaidade nem o verdete do rancor. Num lugar, preferentemente, se exercita: a Sociedade de Geografia, e uma p- alavra densa o define: o patriotismo, porque todas as manifestações do seu talento, a partir de então, quer acreditem o geógrafo ou o historiador, 10 146 OBRA COMPLETA DE JOAQUIM DE CARVALIIO quer afiancem o literato ou o crítico, quer enalteçam o colonialista ou o organizador, se expandiram quase sempre nesta Sociedade e foram a incidência do dinamismo constante do sentimento que, como já recordámos, ditou as primeiras páginas impressas da sua pena fecunda. Evoquemos rapidamente o ambiente dos primeiros anos desse inolvidável derradeiro quartel do século passado. Reinava D. Luís, o mais honrado respeitador da Carta Constitucional, cujos benefícios, que eram os benefícios da liberdade, derramavam pelo país a alegria do viver estável e tranquilo, e governava Fontes, cujo Ministério proporcionaria as condições propícias ao estabelecimento do rotativismo, pondo fkn ao regime dos pequenos partidos em que se vivera depois da Regeneração, especialmente após a Janeirinha, e que, apesar de retardador e de instável no exercício do poder, gerou, talvez como nenhum outro no decurso da nossa história, uma pléiade notabilíssima de dirigentes civilistas, educados nos debates do Parlamento e no trabalho das comissões. A esta data, o fontismo significava, a um tempo, a confiança no progresso social mediante os melhoramentos materiais e a política da estabilidade e da resistência contra as inovações; por isso despertou a política do movimento e das reivindicações dem<>cráticas, atirando os descontentes, sobretudo a partir de 1876, para as lutas dentro e fora da Monarquia, pois é,deste ano que data o partido republicano, em cujo altar Luciano Cordeiro queimou alguns grãos de incenso. Disraeli convertia por este tempo os seus compatriotas à mentalidade imperial, a sua máxima obra, e as grandes nações, competindo no domínio industrial, na conquistada novos mercados e na exploração das fontes de matérias primas na África e na Ásia, numa interpretação política da teoria darwinista, que às vezes se coonestava com fins humanitários, não hesitavam em arvorar a dura lei do mais forte, desterrando direitos e espoliando os fracos. Cientificamente, esta é a época em que depois do século xvii, que foi o século do gênio, mais progressos se levaram a cabo, quantitativa e qualitativamente; e como na era de Quinhentos a Europa reviveu as emoções romanescas das viagens temerárias e dos descobrimentos geográficos, orientados agora para as regiões inexploradas do interior dos continentes. Uma vez mais, então, a razão se encontrou perante a revelação súbita de uma massa vastíssima de factos e de incitações, e Como no passado, por exemplo, no século XIII, no trânsito do HOMENAGEM A INVESTIGADORES E PROFESSORES 147 século XV para o XVI, no século XVII, as consequências foram multíplices: cientificamente, impôs-se a revisão das explicações existentes e o reajuste das teorias aos novos planos da realidade; política e economicamente, despertc>u-se a avidez da posse e da exploração das novas riquezas, e socialmente, o isolamento relativo em que as nações haviam vivido na primeira metade do século cedeu o lugar ao intercâmbio científico, ao estabelecimento de sociedades culturais, à realização de congressos, numa palavra à mais intensa e mais extensa internacionalizaçã,o da ciência e dos seus cultores. Pelo que à geografia respeita, pois é no caso a ciência que mais importa considerar, levam-se a cabo corajosas explorações continentais e polares. Todas feriram, mais ou menos, as imaginações e algumas lograram êxitos notáveis, como as de Wallace no Arquipélago Malaio, de 1854 a 1862, e de Richtofen, na China e na Manchúria, de 1868 a 1872. A constituição científica !da geografia e o desenvolvimento das ciências que lhe são auxiliares seguiu-se logicamente aos informes dos exploradores; e assim, após Alexandre de Humboldt, o iniciador das viagens científicas no século XIX e que no Cosmos nos deu uma admirável interpretação do progresso das relações do homem com a natureza, surgem Ritter, o fundador da geografia como ciência, com a Erdkunde, cujo último volume aparecera em 1859, Reclus, com La Terre, publicado em 1869, e Peschel, com os Neue Probleme der vergleichenden Erdkunde, publicados em 1870, para só citar obras capitais, e, finalmente, como remate do interesse e do alcance dos novos conhecimentos, a realização em Bruxelas, em Agosto de 1871, do primeiro Congresso Internacional das Ciências Geográficas, Cosmográficas e Comerciais. De todos os empreendimentos geográficos, latu sensu, levados a cabo nos diversos territórios inexplorados, nenhuns falaram tanto ao nosso sentimento e despertaram tão vibrantemente a consciência dos nossos direitos de descobridores e dos nossos interesses de colonizadores e primeiros ocupantes como os africanos. Restringindo-me apenas a estes, como tenho feito até agora e às três décadas que vão dos meados do século a 1875, recordarei somente que Ricardo Burton e João Speke atingiram o Tanganica em 1857, alcançando Speke no ano imediato o Vitória Nianza; Enrique Barth, em 1853, chegou a Tomboctu; Eduardo Vogel, em 1855, ao Lago Tchad; Gerhard Rohlfs empreendeu em 1867 uma viagem ao Saará e em 1873 outra ao deserto da Líbia, e Gustavo Nachtigal, de 1869 a 1874, pelo Saará oriental e 148 O]3RA COMPLETA DE JOAQUIM DE CARVALHO pelo Tibesti; Schweinfurt explora, de 1868 a 1871, a região dos Monbutos; Du Chailla,,de 1856 a 1865, o interland do Gabão; Carlos Mauch o Transvaal, e David Livingstone, de 1848 a 1873, tornasse famoso pela exploração do curso do Zamb,eze e com Stanley, em 1871, e Camerc>n, em 1873, tetn o seu nome ligado ao reconhecimento da região do Congo. Nesta falange de heróicos exploradores, Portugal contava especialmente Silva Porto com a travessia de 1852 a 1854, mas com ser memorável não bastava ao povo que primeiramente revelara o conhecimento do contorno do continente africano, desterrara algumas concepções potolomaicas, designadamente a dos limites da imaginária *Etiópia arenosa+, e dissipara a crença unânime na inabitabih'.dade da zona tórrida. Impunha-se-lhe o dever de actualizar e completar a gesta de Quatrocentos, devas,sando as terras remotas do interior como séculos antes havia descoberto as costas e os ancoradouros, não tolerando, portanto, que os recém-vindos lhe arrebatassem completamente o facho da iniciativa. Demais, se os resultados das viagens e das explorações trouxeram consigo, sempre ou quase sempre, novos conhecimentos de alcance científico, a ciência, não obstante, foi alheia aos propósitos íntimos de grande parte das que se levaram a cabo na África, mormente nas regiões lindantes com as nossas colónias ou afectas à bacia dos grandes rios que as valorizavam economicamente, designadamente como meio de transporte. É que sobre o explorador, o viajante, o próprio missionário, estava o bandeirante de uma política, que desdenhava do princípio dos direitos históricos para vindicar o da efectividade da ocupação e cogncstava a rapacidade de alguns interesses com a grandeza moral de princípios humanitários. Desde então as circunstâncias ditaram que a nossa política externa gravitasse em torno dos problemas ultramarinos e porque o clarividente e sagaz Andrade Corvo, ministro dos Estrangeiros, desejasse resolvê-los, começando em 1875 pelo de Cabinda, o mais candente, ao imperativo um pouco vago da nossa história acrescia o actual e preciso da reivindicação de legítimos direitos ameaçados, do reconhecimento universal da segurança da nossa soberania e influência. Finalmente, vivia-se ao tempo em franco e por vezes clamoroso regime de opinião pública, articulada organicamente pelos partidos políticos, e consequentemente, perante a aleivosia de certas campanhas de imprensa mundial, impunha-se a realização de actos que os grandes jornais de todos os países relatassem sem prévia passagem pela caixa, HOMENAGEM A INVESTIGADORES E PROFESSORES 149 assim como a devoção cívica de indivíduos e de colectividades que esclarecessem e guiassem a opinião interna. Dos primeiros, para só evocar os de mais retumbante fama, se incumbiram Serpa Pinto, C,apelo e Ivens; dos segundos, sem menos,cabo dos serviços e benemerências de relevantíssimos contemporâneos, os louros sempre verdes do nosso reconhecimento vão para esta Sociedade de Geografia, foco e lareira das províncias do Ultramar, e para Luciano Cordeiro, seu duca e maestro. É que na mente e no ânimo deste varão insigne pela robustez e vibratibilidade do patriotismo vieram confluir torrencialmente as diversas correntes que em brevíssimo compêndio acabo de indicar. Anos antes, as pretensões descobridoras e as injustiças de Livingstone haviam levantado protestos, dos quais, o mais clamoroso, porventura, ecoou em 1867 com o Exame das viagens do Dr. Livingslone, de D. José de Lacerda. Fora esta a fase, por assim dizer negativa e sentimental; agora, volvidos poucos anos, perante a maré alta das ambições, das ameaças esp-oliadoras, das violações de direitos, tomava-se necessária a acção positiva, multiforme, adaptada às ocorrências e circunstâncias. Impunha-se que as províncias ultramarinas fossem conhecidas pormenorizadamente no seu condicionalismo geográfico e que uma colectividade, brotando da livre associação de vontades, como era o estilo do século, sugerisse ou esclarecesse iniciativas coloniais e divulgasse conhecimentos e resultados? Pois bem: Luciano Cordeiro faz-se geógrafo, e mais do que géografo é o detís ex machina da Sociedade de Geografia, fundada em 1875, anteriormente às suas congéneres de Antuérpia, de Bruxelas, de Copenhague e de Madrid. Urgia que os nossos direitos de descobridores e de colonizadores fossem reconhecidos e firmados e que as populações e territórios do Ultramar beneficiassem dos progressos materiais e morais da civilização? Pois bem, para os servir e vindicar como cidadão livre, Luciano Cordeiro torna-se colonialista. Finalmente, no plano histórico' perante a vaga de falsidades e de deturpações, ignaras quando não vaidosas cumpria reviver o grande exemplo do Visconde de Santarém, dissipando erros, sugerindo hipóteses, robustecendo verdades? Pois bem, Luciano Cordeiro torna-se historiador dos descobrimentos, ou mais precisamente de alguns descobridores, na sua actuação concreta e real. 150 OBRA COMPLETA DE JOAQUIM DE CARVALHO Nenhuma destas manifestações da actividade prática ou intelectual ocupa habitual ou profissionalmente o meu espírito, e portanto o decoro inibe-me de as julgar como cumpre: atrevo-me, no entanto, a apreciar o contorno destes aspectos da sua personalidade sob o ponto de vista da cultura pátria, objecto dominante do meu estudo. A esta luz, Luciano Cordeiro, considerado como geógrafo, afigura-s,e-me essencialmente um combatente. Com Pedro Nunes, que indiferentemente se intitulava geógrafo ou cosmógrafo, a geografia fora essencialmente cc>smografiia e cartografia, para mais tarde se compendiar, didacticamente, em corografia. Luciano Cordeiro não reanimou nenhuma destas atitudes nossas domésticas, nem tão pouco se prendeu a qualquer das tendências forasteiras dominantes no seu tempo, isto é, à de Humboldt, orientada para o estudo da distribuição dos fenômenos naturais à superfície da terra, ou seja o aspecto físico, nem à de Carlos Ritter, mais humana, atribuindo valor capital à investigação das relações do homem com o solo. Fora o patriotismo que lhe ditara o estudo dos problemas geográficos na sua conexão com a história dos descobrimentos e da colonização e, sobretudo, com a soberania e com os interesses nacionais; por isso a sua atitude ou é histórica, como na notabilíssima L'Hidrographie africaine au XVIE siècle d'après les premières explorations portugaises, quando esclarece sabiamente as ideias dominantes entre nós, no grande século, acerca da origem lacustre e topográfica do Zaire, do Zambeze e do Nilo, do curso do Zaire e da provável bacia do Nilo, baseado em grande parte nesse estupendo livro que é a Relação de Duarte Lop.es; ou é militante, como o exaustivo, fogoso e exacto memorando da *C>uestão do Zaire+, quando as circunstâncias hnpunham a refutação de erros que eram o disfarce de ambições espoliadoras; ou é descritivo, como na memória acerca da Exploração e na Notícia do Cunene, quando pretende fundamentar a ideia ,de que *civilizar a África+ equivalia então *a conhecer-lhe a hidrografia+, e finalmente incitante e programática, como no admirável relatóri,o da primeira sessão anual da Sociedade de Geografia, no qual, sob o título Portugal e o movimento geográfico moderno, rasga a esperança de claros e promissores horizontes à ciência geográfica nacional, de par que refuta os tópicos que aleivos,amente se divulgavam acerca da pretensa desumanidade da nossa colonização. Na maior parte destes escritos não é fácil discriminar as fronteiras entre o geógrafo e o colonialista, dado que foram pensados como HOMENAGEM A INVESTIGADORES E PROFESSORES 151 justificação dos direitos da nossa soberania e neles lateja, sob o sentido da exactidão dos factos e do encadeamento lógico dos raciocínios, a pulsação do patriotismo. Escreveu um dia Rebelo da Silva que *a civilização impõe deveres, e para a atrair só há um caminho, que é cumpri-lo.s+. Este belo pensamento do romântico escritor, que serviu a política com a mesma generosidade de ideias com que exaltou a história pátria e compôs alguns lances romanescos, sintetiza uma das facetas de Luciano Cordeiro como colonialista. Com efeito, se por um lado o exaltava a ideia de ser patente a todos os idiomas, com o brado retumbante dos grandes feitos, que os portugueses do século XIX não desmereciam dos seus antepassados do século XVI, pugnando, por isso, pela realização da travessia do continente africano, por outro defendeu a organização de expedições científicas a África, incitou ao estudo da etiologia dos povos do Ultramar e o das condições de vida, técnicas e administrativas, em ordem à actividade de comerciantes, de colonos e de funcionários, relatou o notável projecto de um curso colonial, de fins científicos e de preparação administrativa, e sugeriu a reorganização da instrução pública em Africa. A sua opinião, voto ou patrocínio, secundou sempre os empreenditnentos públicos ou particulares, científicos ou económicas, que tendessem ao progresso e fomento colonial, muito especialmente das províncias africanas, pelos perigos que então corriam. Dele s,e disse com justiça e autoridade que fora a *alma de todo o moderno movimento africanista em Portugal+, mas com ser grandioso e admirável este aspecto da sua acção colonialista outro há que só os vindouros virão a conhecer plenamente nas suas fontes documentais. ]É o do patriota ardente, que se uma vez, em 1876, a quando da exclusão de Portugal da Conferência Internacional de Bruxelas, donde saiu, como larva do Estado Livre do Cc>ngo, a Associação Internacional para a Exploração e Civilização da África Central, pôde fazer ouvir a sua voz de protesto, com êxito e reconhecimento público, noutra, em 1884, como técnico da delegação portuguesa à Conferência de Berlim, teve, porventura, de a sufocar. Deste lance da sua e da nossa vida nacional, que ele próprio designou de *,amargurada tarefa+, repito, só os vindouros poderão julgar com o conhecimento documental das chancelarias, mas baste-nos a convicção robusta de que ninguém o excedeu na firmeza das opiniões, na suspicácia clarividente -e só acerta quem muito desconfia! - no sentimento implacável do direito e da justiça, e que a história imparcial corroborará o