Histórias para aquecer o coração dos pais Embora o papel do Pai tenha passado por mudanças no decorrer dos tempos, a importância na criação dos filhos, o amor, amizade e cumplicidade que devem permear esta relação não se modificou. A razão principal pela qual o Pai deve ter um relacionamento profundo com seu filho, é que ele um dia se tornará adulto e levará esta imagem refletida por toda a vida. Esperamos que este livro sirva de inspiração para todos os Pais, que buscam enriquecer a alma e o coração de seus filhos, dando-lhes apoio e proteção para que se transformem em adultos responsáveis, bem-sucedidos e principalmente amados e felizes. banespa Santander Banespa Jack Canfield Mark Victor Hansen Jeff Aubery Mark & Chrissy Donnelly Histórias para aquecer o coração dos pais Sextante Titulo da edição original em inglês: Chicken soup for thefathers soul Copyright © 2001 por Jack Canfield e Mark Victor Hanscn Copyright da tradução © 2003 por Editora Sextante (GMT Editores Ltda.) Publicado em acordo com Health Communications mc., Dcerfleld Beach, Flórida, EUA tradução Marilena Reginato de Moraes preparo de originais Regina da Veiga Pereira Virginie Leite revisão Antonio dos Prazeres Sérgio Bellinelio Soares capa Victor Burton projeto gráfico e diagramação Valéria Facchini de Mendonça fotolitos RR Donneliey impressão e acabamento Cromosete Gráfica e Editora Ltda. CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. H58 Histórias para aquecer o coração dos pais /Jack Canfield... [et ai.] tradução de Marilena Reginato de Moraes Souza. - Rio de Janeiro Sextante, 2003 Tradução de: Chicken soup for the father's soul ISBN 85-7542-073-9 1. Pais - Antologia. 2. Paternidade - Antologia. 1. Canfield, Jack, 1944 -. 03-1257. Todos os direitos reservados, no Brasil, por Editora Sextante (GMT Editores Ltda.) Rua Voluntários da Pátria, 45 - Gr. 1.404- Botafogo 22270-000 - Rio de Janeiro - RJ Tel.: (21) 2286-9944 - Fax: (21) 2286-9244 Central de Atendimento: 0800-22-6306 E-mail: atendimento@esextante.com.br www.sextante.com.br CDD 158.1 CDU 159.947 Introdução 7 Um momento pode durar para sempre de GRAHAM PORTER 9 O benfeitor secreto de WOODY MCKAY JR 12 Um outro fato marcante de RICHARD COHEN 17 Acabaram-se as matinês de domingo de LENNY GROSSMAN 20 Uma das minhas lembranças favoritas de ROSALIE SILVERMAN 24 O visitante da noite de HARTLEY F. DAILEY 27 A funcionária do ano de KEN SWARNER 33 O estranho que se tornou meu pai de SUSAN J. GORDON 36 Pescar e soltar de DER BERRY 41 A melhor época da vida de JoE KEMP 47 A garotinha do papai de MICHEIE CAMPBELL 49 Ao deitar-me em meu leito de DIANA DWÂN POOIE 52 Se você me ama, me diga! de MITCH ANTHONY 56 É preciso ser um homem especial para ser um bom padrasto de BETH MULLALLY 58 Tio Bun deJÂN NATLONS 61 Antes o pai, agora o filho de W. W. MEADE 64 Pés grandes, coração maior ainda de AUTOR DESCONHECIDO 70 Papai, tenho uma bola de plástico de JEFF BOHNE 72 5 A única lembrança que permanece de TED KRUGER 75 Ritos de passagem em turbilhão de STEFAN BECHTEL 77 Permissão para chorar de HANOCH MCCARTY 83 Uma nova perspectiva de SEAN COXE 86 Um escritor na prisão deCLALRE BRAZ-VALENTINE 87 Estatísticas de THE BEST OF BITS & PIECES 93 A pescaria mais importante da vida de JAMES P. LENFESTEY 94 O momento de Molhe de BILI SHORE 97 Para meu neto de FLOYD WICKMAN E TERRI SJODiN 102 Todo mundo conhece todo mundo de LEA MACDONALD 104 Um pedaço de giz de HOLLY SMELTZER 112 Meu segredo de amor de ROBERT FULGHUM 116 Uma família para Freddie de ABBIE BLAIR 118 Uma boa ação - a mitzvah de ARNoLD GElaR 125 Introdução Quando ouvimos a palavra mãe , na mesma hora temos uma sensação reconfortante, de carinho, aconchego e amor incondicional. Diz o ditado que, como Deus não podia estar em todos os lugares, ele criou as mães. Mas qual é o papel dos pais nesta história? O amor paterno, tão forte e confiável quanto o das mães, nem sempre é captado e transmitido com tanta emoção. A imagem do pai, em geral, está associada à do protetor, provedor e fonte de sabedoria da família. Ele é aquele que diz "não", a autoridade da casa. Essa é uma visão limitada, principalmente nos dias de hoje, em que os papéis não são tão claros e os pais muitas vezes assumem tarefas das mães, criando, educando, aconselhando e até dando "colo" nos momentos difíceis. Foi para capturar a verdadeira essência da paternidade, com todas as nuances de sentimentos que existem na relação pai e filho, que dedicamos esta edição de Histórias para Aquecer o Coração dos Pais. 6 7 Cada história ajuda a compreender um aspecto diferente desse importante laço familiar. São relatos - escritos por pais, filhos, filhas e avós - de como a paternidade transformou a vida de inúmeras pessoas. Esperamos que toquem seu coração e despertem a verdade sobre o amor que seu pai tem por você - e vice-versa. Ao organizar este livro, descobrimos que, apesar de muitos pais terem dificuldade de se expressar, eles nutrem um sentimento tão profundo por seus filhos quanto as mães. Paternidade envolve superar desafios, enxugar lágrimas e dar boas risadas. Ser pai é uma história de amor incondicional, mas com um gostinho diferente do amor materno. Também incluímos neste volume algumas histórias sobre outros assuntos para inspirar, emocionar ou simplesmente divertir os pais. Eles merecem! Compartilhe as histórias com os outros Quando lemos uma história que nos toca, queremos logo reparti-la com alguém de quem gostamos muito. Se isso acontecer, feche os olhos e pense: "Quem precisa ouvir essa história agora?" Não perca tempo. Procure esse amigo ou parente e compartilhe o que leu. Converse sobre o tema para saber a opinião dos outros. Todo esse processo pode ser extremamente transformador. Aproveite! JACK CANFIELD, MARK VICTOR HANSEN, JEFF AUBERY, MARK DONNELLY E CHRISSY DONNELLY Um momento pode durar para sempre Nossas férias no lago Michigan tinham terminado. Para evitar engarrafamentos na volta para casa, eu tinha acordado de madrugada para colocar no carro a parafernália dos nossos filhos, com idades de três a nove anos. Não era exatamente a minha idéia de diversão. Mas consegui o milagre de estar com tudo arrumado precisamente no horário que estipulara. Voltei ao chalé e encontrei minha mulher, Evie, acabando de varrer a areia do chão. - São seis e meia, hora de partir - eu disse. - Onde estão as crianças? Evie deixou a vassoura de lado. - Deixei que fossem até a praia para se despedirem. Balancei a cabeça, aborrecido, porque isso atrapalhava o meu horário cuidadosamente planejado. Por que, então, acordar tão cedo se não íamos conseguir estar na estrada antes que 9 o tráfego ficasse insuportável? Afinal, as crianças já tinham passado duas ótimas semanas fazendo castelos de areia e passeando por toda a região do lago à procura de pedras mágicas. E hoje elas só tinham que relaxar no carro - ou dormir, se quisessem -, enquanto eu me encarregaria da longa volta para casa. Abri a porta de tela, passei pela varanda. Encontrei meus quatro filhos na praia, depois das dunas suaves do terreno. Tinham tirado os sapatos e estavam andando na ponta dos pés na água, rindo e pulando cada vez que uma onda quebrava em suas pernas. O xis da questão era o quanto poderiam entrar no lago sem encharcar as roupas. Fiquei irritado ao lembrar que todas as roupas secas das crianças já estavam guardadas, sabe Deus onde, na mala entupida do carro. Com a firmeza de um sargento, fiz uma concha com as mãos para gritar que fossem todos imediatamente para o carro. Mas, por algum motivo, as palavras de repreensão ficaram presas na garganta. O sol, ainda baixo no céu da manhã, desenhava uma silhueta dourada ao redor de cada uma das crianças, que brincavam. Elas só tinham aqueles momentos finais para espremer a última gota de felicidade do sol, da água e do céu. Quanto mais eu olhava, mais a cena à minha frente adquiria uma aura mágica, pois jamais se repetiria novamente. Que mudanças podemos esperar em nossas vidas depois que se passar mais um ano, outros dez anos? A única realidade era aquele momento, a praia cintilante e as crianças - minhas crianças - com a luz do sol enfeitando seus cabelos, o som das risadas se misturando ao vento e às ondas. "Por que eu cismara de ir embora às seis e meia da manhã, a ponto de sair correndo do chalé para brigar com eles?", me perguntei. Eu tinha em mente impor uma disciplina construtiva ou estava apenas com vontade de ralhar porque tinha um longo dia no volante pela frente? Afinal, não há prêmios a receber por partir exatamente na hora. E como poderia esperar manter a comunicação com meus filhos, agora e daqui a alguns anos, se não conseguisse manter viva a memória da minha própria juventude? Na beira d'água, mais embaixo, minha filha mais velha fazia sinais para que me juntasse a eles. Então os outros começaram a acenar também, chamando por Evie e por mim, para nos divertirmos com eles. Hesitei, mas apenas por um instante. Corri, então, até o chalé para trazer minha mulher pela mão. Meio correndo, meio escorregando pelas dunas, logo chegamos à praia, jogando longe os sapatos. Numa alegre bravata, entramos na água além do ponto em que as crianças estavam, Evie segurando a saia e eu a bainha das calças. Até que o pé de Evie escorregou e ela afundou na água gritando e, de propósito, me puxou também. Hoje, anos depois, ainda me emociono ao lembrar as risadas das crianças naquele dia - boas gargalhadas e um sentimento de camaradagem. E, muitas vezes, quando elas pensam em suas lembranças mais caras, aqueles poucos momentos ocorridos há tanto tempo estão entre as recordações mais preciosas. GRAHAM PORTER 10 11 O benfeitor secreto Dá prazer ajudar outras pessoas. PAUL NEWMAN Por volta de 1910, meu pai era motorista de um homem muito rico e testemunhou o empenho do patrão em ajudar anonimamente pessoas que jamais poderiam retribuir o favor. Meu pai me contou várias histórias fascinantes dessa época, mas uma em especial ficou guardada para sempre na minha memória. Um dia, ele levou seu patrão a um encontro de negócios em outra cidade. Nos arredores pararam para comer um sanduíche. Enquanto comiam, vários garotos passaram pelo carro, brincando com arcos. Um deles mancava. Chegando mais perto da janela, o patrão de meu pai viu que o garoto tinha um dos pés deformado. Ele saiu do carro e alcançou o menino. - Este pé lhe traz muitos problemas? - perguntou. - Tenho de andar devagar - o garoto respondeu. - E preciso cortar um pedaço do sapato para poder pisar melhor. Mas dá para ir levando. Por que o senhor está me perguntando isso? - Talvez eu possa ajudá-lo a curar seu pé. Você gostaria? - Claro - disse o menino, embora tenha ficado um pouco confuso com a pergunta. O empresário anotou o nome do garoto, voltou para o carro e disse a meu pai: "Woody, o garoto que manca se chama Jimmy e tem oito anos. Descubra onde ele mora e pegue o endereço e os nomes dos pais." Ele entregou a meu pai um pedaço de papel com o nome do menino e pediu: "Vá visitar a família dele esta tarde e faça o possível para conseguir permissão para deixarem operar o pé de Jimmy. Podemos tratar da papelada depois. As despesas são todas por minha conta." Eles acabaram de comer seus sanduíches e meu pai levou o chefe para seu compromisso de trabalho. Não foi difícil conseguir o endereço de Jimmy numa loja próxima. Quase todos conheciam o menino com o pé deformado. A pequena casa em que Jimmy e a família moravam precisava de pintura e de consertos. Olhando à volta, meu pai viu camisas rasgadas e vestidos remendados no varal ao lado da construção. Um pneu velho pendurado por uma corda num carvalho servia de balanço. Uma mulher de trinta e poucos anos respondeu à batida na porta enferrujada. Parecia cansada e suas feições revelavam uma vida difícil. - Boa-tarde - meu pai cumprimentou. - A senhora é a mãe de Jimmy? 12 13 Ela franziu um pouco as sobrancelhas antes de responder. - Sou. Ele se meteu em alguma encrenca? - Seus olhos examinavam o colarinho engomado de meu pai e seu terno bem passado. - Não, senhora. Eu represento um homem rico que quer resolver o problema do pé de seu filho, para que ele possa brincar como todos os seus amigos. - A troco de quê, moço? Nada é de graça nessa vida. - Não se trata de uma brincadeira. Se for possível, gostaria de explicar o que está acontecendo à senhora e a seu marido, se ele estiver em casa. Sei que é inesperado e não a culpo por achar suspeito. Ela olhou para meu pai novamente e, ainda hesitante, convidou-o a entrar. "Henry", ela gritou, "tem um homem aqui dizendo que quer ajudar a resolver o problema do pé de Jimmy." Por quase uma hora, meu pai explicou o plano e respondeu às perguntas do casal. - Se permitirem que Jimmy seja operado, vou lhes mandar algumas autorizações para assinar. Meu patrão pagará todas as despesas, como já lhes disse - concluiu. Perplexos, os pais do garoto se olharam. Ainda não tinham muita certeza quanto ao que estava acontecendo. - Aqui está meu cartão. Quando enviar os papéis para autorização, vou mandar uma carta esclarecendo tudo sobre o que conversamos. Se tiverem mais alguma pergunta, telefonem ou escrevam para este endereço. Isso pareceu lhes dar um pouco mais de confiança, e meu pai foi embora. Sua missão fora cumprida. Mais tarde, o patrão de meu pai entrou em contato com o prefeito e lhe pediu que enviasse alguém à casa de Jimmy para reafirmar à família que a oferta era legítima. Naturalmente, o nome do benfeitor não foi mencionado. Logo, com as autorizações assinadas, meu pai levou Jimmy a um excelente hospital em outro estado para a primeira de cinco operações a que seria submetido. As cirurgias foram um sucesso. Jimmy se tornou o queridinho das enfermeiras na ala de ortopedia. Todos se abraçaram e choraram quando ele deixou o hospital pela última vez. Num gesto de carinho, deram-lhe um presente especial: um novo par de sapatos, feitos sob medida para seus pés "novos". Jimmy e meu pai se tornaram grandes amigos durante as idas e vindas do hospital. Na última viagem, quando o garoto voltava definitivamente para casa, eles cantaram, falaram sobre o que Jimmy poderia fazer com seu pé normal e dividiram momentos de silêncio à medida que se aproximavam da casa. O menino deu um largo sorriso ao sair do carro. Seus pais e os dois irmãos o esperavam, juntos, na maltratada porta da frente. - Fiquem aí - Jimmy gritou para eles. Todos ficaram olhando, surpresos, enquanto o garoto caminhava até eles. O defeito tinha desaparecido. Com abraços, beijos e sorrisos receberam o menino com o "pé curado". Seus pais balançavam as cabeças e sorriam enquanto o observavam. Ainda não podiam acreditar que um homem que nunca tinham visto pagara uma enorme quantia para consertar o pé de um menino que ele nem conhecia. 14 15 O rico benfeitor tirou os óculos e enxugou as lágrimas quando meu pai relatou a cena da volta de Jimmy para casa. "Faça mais uma coisa", ele disse. "Perto do Natal, vá a uma boa loja de sapatos. Faça com que chamem cada membro da família de Jimmy para que escolham um novo par de sapatos. Pagarei pelos sapatos de todos. Mas comunique que farei isso apenas uma vez. Não quero que fiquem dependentes de mim." Jimmy se tornou um homem de negócios bem-sucedido. Que eu saiba, ele nunca soube quem pagou por suas cirurgias. Seu benfeitor, o Sr. Henry Ford, sempre disse que é mais divertido fazer algo pelas pessoas quando elas não sabem quem lhes fez o bem. WOODY MCKAY JR. Nota do Tradutor: Henry Ford (1863-1947). pioneiro da indústria automobilística americana, fundou a Henry Ford Company em 1902 e a Ford Motor Company em 1903. Um outro fato marcante Há muitos anos, meus pais, minha mulher, meu filho e eu jantamos num desses restaurantes onde o cardápio está escrito num quadro-negro. Depois de uma ótima refeição, o garçom colocou a conta no centro da mesa. Eis o que aconteceu: meu pai não apanhou a nota. A conversa continuou. Finalmente percebi. Era para eu me encarregar da conta. Depois de ir a centenas de restaurantes com meus pais, depois de pensar a vida toda que meu pai é que era o dono do dinheiro, tudo tinha mudado. Apanhei a nota e minha visão de mim mesmo mudou de repente. Eu era um adulto. Algumas pessoas demarcam a vida em anos. Eu meço a minha por pequenos fatos, por ritos de passagem. Não me tornei rapaz numa idade determinada - treze anos, por exem- 16 17 plo -, mas quando um garoto entrou na loja em que eu trabalhava e me chamou de "senhor". Ele repetiu "senhor" várias vezes, olhando direto para mim. Aquilo foi como um soco: era comigo! De repente passei a ser um senhor. Houve outros fatos marcantes. Os policiais da minha juventude sempre me pareceram grandes, enormes até, e, naturalmente, eram mais velhos do que eu. Até que um dia, num instante, percebi que eles não eram nada disso. Na verdade, alguns eram garotos - e pequenos. Chegou o dia em que me dei conta de que todos os jogadores de futebol da partida a que estava assistindo eram mais novos do que eu. Eram apenas garotos altos. Com tal fato marcante foi-se embora a fantasia de que um dia, talvez, eu também pudesse me tornar um jogador de futebol. Mesmo sem jamais ter alcançado a montanha, eu a tinha transposto. Nunca pensei que chegaria a cair no sono vendo televisão, como meu pai fazia. Agora, sou ótimo nisso. Nunca pensei que iria à praia sem nadar. E acabei de passar o verão todo no litoral sem entrar na água uma só vez. Nunca pensei que apreciaria ópera, mas agora a combinação de voz e orquestra me atraem. Nunca imaginei que ia preferir ficar em casa à noite, mas agora me vejo recusando convites para festas. Considerava estranhas as pessoas que observavam pássaros, mas nesse verão me peguei fazendo a mesma coisa. Acho até que vou escrever um livro a respeito. Anseio por uma convicção religiosa que jamais imaginei querer e sinto uma proximidade com antepassados que já partiram há muito tempo. E o mais incrível é que, nas discussões com meu filho, repito os argumentos de meu pai - e ainda saio perdendo. Um dia, comprei uma casa. Um dia - que dia! - tornei-me pai e, não muito depois disso, paguei a conta no lugar de meu pai. Imaginava que esse dia tinha sido um rito de passagem para mim. Mas, depois, já um pouco mais velho, compreendi que fora para ele também. Um outro fato marcante. RICHARD COHEN 18 19 Acabaram-se as matinês de domingo Sempre gostei de cinema, desde garoto. Ia sempre às matinês de domingo no cinema Monroe, ver filmes como Se Meu Fusca Falasse e Um Astronauta Fora de Órbita. Então, quando fiz dez anos, em 1970, meus hormônios se manifestaram com vontade. Aprontei umas confusões (o que naquele tempo significava colocar fogo em gasolina na rua e roubar gibis) e meu gosto por cinema mudou. Não me contentava mais com filmes da Disney, mas ainda não podia assistir a filmes proibidos para menores. Foi quando começaram a aparecer na televisão as chamadas para Operação França. Eram sensacionais, cheias de vigor e mexiam com a minha testosterona. Aquele filme era mesmo coisa de homem. Mas eu ia perdê-lo porque não tinha idade suficiente. Lembro bem quando meu pai e meu irmão mais velho, Peter, foram ver o filme. Era uma noite gelada e eles disseram: - Vamos chegar tarde. Operação França rompeu barreiras. A perseguição de carro era ousada, nervosa e emocionante, como nunca se vira antes. Gene Hackman, no papel de Popeye Doyle, estava distante daqueles policiais certinhos a que estávamos acostumados. Fazia um detetive nova-iorquino, um anti-herói desbocado, racista e raivoso (o filme depois receberia vários Oscar: melhor filme, diretor, ator, roteiro e edição). Eu era fanático por cinema e sentia que estava perdendo uma coisa histórica. Enquanto Peter se divertia com papai, eu estava destinado a ter outra noite monótona em casa, com mamãe e Steven, meu irmão mais novo. Quando os dois chegaram, expressaram o que eu já sabia. O filme era sensacional. Hackman era fantástico! Ah, como eu queria ser mais velho e poder... - Você quer ir ver o filme, Leonard? "Era mesmo meu pai que tinha acabado de dizer aquilo? Eu tinha ouvido direito?" A confirmação veio em um segundo, de minha mãe. - Ed, você acha mesmo que ele deve ver o filme? "Ah, mamãe, não acabe com a minha chance. Não plante a semente da dúvida. Fique calada só mais um pouquinho, até que eu consiga arrancar uma promessa." Então as doces palavras vieram e, com elas, caiu a resistência. - Não vejo por que não. Acho que ele já tem idade para esse tipo de filme. Podemos ir amanhã à noite. - Mas você foi hoje com Peter. Vai ver de novo amanhã? Meu pai olhou em minha direção. Com certeza viu meus olhos cheios de ansiedade e expectativa. 20 21 - Claro, por que não? - ele disse. - Yes! - gritei, pulando no ar. Na noite seguinte, eu mal conseguia jantar. Não via a hora de sair e ver o filme que imaginara que só meu irmão seria autorizado a ver. - Leonard, se você não comer alguma coisa, vai ficar com fome no cinema - papai disse, rindo consigo mesmo. Finalmente o jantar acabou. Vestimos nossos casacos e nos dirigimos à porta. Meu pai sorriu e avisou: - Vamos chegar tarde. Entramos no carro e senti o cheiro da colônia OId Spice de papai. Estava muito frio, mas o carro ficou quentinho logo que ele ligou o aquecimento. Podia perceber o amor que ele tinha por mim. Aquele era um tempo que teríamos só para nós dois. Mesmo tendo visto o filme na noite anterior, papai ia me levar ao cinema. Nem esperou que algumas semanas se passassem. Naquele tempo, esse tipo de filme era proibido para menores de doze anos. Eu parecia ter mais idade, mas meu pai ainda deu uma gorjeta para a moça da bilheteria para não termos problema na hora de entrar. Operação França era ainda melhor do que eu esperava, o filme mais excitante que já tinha visto. E o mais adulto. Quando chegamos em casa depois da sessão, virei para meu pai e o olhei longamente. Queria que soubesse como me fizera feliz, como fora maravilhoso ele pensar em mim como adulto (pelo menos de alguma forma), mas tudo que consegui dizer foi: - Obrigado por me levar, papai. Ele me envolveu com seus braços fortes e ficamos assim num abraço apertado, mais longo do que o normal. - O prazer foi todo meu! - ele disse. E foi. Depois desse dia, meu pai e eu íamos sempre ao cinema, só nós dois. A censura dos filmes perdeu a importância. Eu tinha visto um, podia ver todos. Meu rito de passagem se completara. Quando fiz quinze anos, as coisas mudaram um pouco e passei a ir mais ao cinema com meus amigos do que com meu pai. Em 1975, Peter, eu e dois amigos ficamos duas horas na fila para assistir a Tubarão. Voltei para casa agitadíssimo por causa disso. Que filme sensacional! Ainda me lembro de meu pai se lamentando porque nós, os adolescentes, não o deixáramos ir conosco ao que ele chamou de "evento". Minha mãe não o acompanharia de jeito nenhum e, certamente, ele não iria sozinho. Agora ele era o pai, e adolescentes realmente não querem saber de pais por perto quando vão ao cinema em grupo. - Olha, papai - eu disse. - Você quer ir ver o filme? Ele me pareceu um pouco surpreso. - Claro, vou adorar. - Tudo bem, nós vamos. Amanhã à noite. Só você e eu. - Que máximo - ele disse, virando-se para que eu não percebesse que estava rindo de orelha a orelha. Na noite seguinte ficamos duas horas na fila para ver Tubarão. E, dessa vez, fui eu que tive o prazer de "levar" meu pai ao cinema. O prazer foi todo meu. LENNY GROSSMAN 22 23 Uma das minhas lembranças favoritas Rir é a melhor forma de se comunicar. ROBERT FULGHUM Quando comecei a sair com rapazes, com uns dezoito anos, minha mãe sempre ficava acordada, me esperando chegar em casa. Assim que entrava no apartamento, ela ia comigo para meu quarto, sentava-se na cama e me fazia contar sobre o encontro. Normalmente, a essa hora, papai estava dormindo, mas nossa conversa chegava até o quarto deles, que era bem próximo. "Vocês duas vão ficar com esse papo até de manhã?," ele reclamava. "Não podem esperar até amanhã para conversar?" Minha mãe dizia para ele ficar quieto e voltar a dormir. Ele resmungava e ficava em silêncio por um tempo, mas depois recomeçava. "Lillian, volte para a cama. Quando ela estiver pronta para se casar com o rapaz, você faz todas essas perguntas." Finalmente mamãe e eu nos dávamos um beijo de boa-noite e ela voltava para o quarto para acalmar o papai. Meu pai, quando jovem, atuara como comediante e sapateador em espetáculos de variedades. Quando esse tipo de teatro acabou, seus sonhos em relação ao mundo das artes acabaram também. Mas, ao longo dos anos, ele nunca perdeu a oportunidade de contar piadas, cantar ou sapatear um pouco. Era uma pessoa animada e expansiva, que sempre tinha um sorriso ou uma palavra amiga para todos. Num fim de semana, minha mãe foi visitar uns parentes, e eu tinha um encontro no sábado à noite. Prometi a papai que não chegaria tarde demais e tentei convencê-lo de que não havia necessidade de me esperar acordado. O rapaz conheceu meu pai quando foi me buscar. Os dois se cumprimentaram e nós saímos. Acontece que voltei mais tarde do que o prometido e, quando caminhava em direção à minha casa, vi meu pai na janela do nosso apartamento no terceiro andar esperando por mim. Continuei conversando com o rapaz, tentando distraí-lo para que não visse meu pai, porque eu ficaria tremendamente sem graça. Logo que chegamos à porta do apartamento, despedi-me rapidamente e esperei até ouvir a porta do prédio fechar, antes de pegar a chave e entrar em casa. Caminhando na ponta dos pés, vi a porta do quarto de meus pais fechada. "Ótimo", pensei, achando que papai fora dormir. Fiquei aliviada em não ter de lhe dar explicações sobre a hora tardia. Abri a porta do meu quarto, entrei e quase caí no chão. Lá estava papai sentado na minha cama, com um largo sorriso e usando um dos vestidos de mamãe. O cabelo crespo estava eriçado para cima e as pernas cruzadas. Com uma mão no 24 25 joelho e outra no quadril, ele começou a falar com voz fina: - Então, como foi o encontro? O que ele disse e o que você disse? Aonde foram jantar? Foram ao cinema? Vão se ver de novo? Aliás, em que ele trabalha? Ele tratou você bem? Espero que tenha sido um cavalheiro. Você acha que ele tem serias intenções? - Papai, calma, uma pergunta de cada vez. Foi apenas nosso terceiro encontro. - Quero todas as informações que sua mãe tem quando você fala com ela. Devemos ter conversado e rido por quase uma hora. Finalmente, eu disse: - Hora de dormir, de manhã a gente conversa. Quem está cansada agora sou eu. Papai me deu um abraço, um beijo de boa-noite e me disse: - Temos de nos lembrar de todos os detalhes para contar à sua mãe quando chegar, para ela não achar que ficou de fora. ROSALIE SILVERMAN O visitante da noite Nenhum ato de bondade, por menor que seja,jamais é em vão. Esopo O vale de Greenbriar estava quase escondido pelas nuvens baixas que provocavam chuvas intermitentes. Eu caminhava com dificuldade pelo terreno cheio de lama, me preparando para os afazeres da tarde em nossa fazenda, quando olhei para a estrada que passava pela nossa casa e serpenteava pelo vale. Um carro estava parado ao lado da pista, um pouco além do pasto. Naturalmente o carro estava com problemas. De outra forma, um homem bem-vestido não estaria tentando consertá-lo sob a chuva. Via-se que ele não era um mecânico, mexendo no motor e tentando desesperadamente dar a partida. Quando terminei o que tinha de fazer e fechei o celeiro, já era quase noite. O carro ainda estava lá. Peguei, então, uma lanterna e fui até a estrada. O homem ficou meio assustado quando me aproximei, mas se mostrou ansioso pelo meu 26 27 auxílio. Era um carro pequeno, da mesma marca do meu, embora mais novo. Em minutos identifiquei o problema. - É a bobina - eu disse. - Mas não pode ser! - exclamou. - Acabei de instalar uma nova, há cerca de um mês. Era um rapaz jovem, pouco mais que um menino. Tinha uns dezoito anos, no máximo. Parecia que ia chorar. - Estou muito longe de casa. Está chovendo. E preciso dar partida no carro. Tenho de dar partida! - disse quase soluçando. - É, mas a situação é essa - eu disse. - Bobinas são muito sensíveis. As vezes duram por anos. Outras se acabam numa questão de horas. Posso pegar um cavalo e levar o carro até o celeiro. Daí vamos ver o que dá para fazer por você. Podemos tentar a bobina do meu carro. Se funcionar, conheço uma pessoa aqui perto que pode lhe vender uma. Eu estava certo. Com a bobina do meu carro, o motor imediatamente pegou, como novo. - Viu? Era simples - eu disse sorrindo. - Vamos ver Bill David ali adiante. Ele vai lhe vender uma nova bobina e você poderá seguir seu caminho. Espere só um instante enquanto aviso à minha mulher, Jane, aonde vou. No caminho para a loja de David, achei que o rapaz estava meio estranho. Ele estacionou no escuro, atrás da loja, e não quis sair do carro. - Estou molhado e com frio - se desculpou. - Aqui está o dinheiro. O senhor se importaria de entrar e comprar a bobina para mim? Acabáramos de trocar a bobina quando minha filhinha, Linda, veio até o celeiro. - Mamãe mandou dizer que o jantar está pronto - ela anunciou. E, virando-se para o jovem, acrescentou: - Ela disse para voce entrar e jantar também. - Ah, não posso - ele protestou. - Tenho de ir. Não, não, não dá para ficar. - Não seja ridículo - eu disse. - Afinal, quanto tempo você vai levar para jantar? Além disso, ninguém vem à casa de Jane na hora da refeição e sai sem comer. Você não gostaria que ela se deitasse na lama na frente do seu carro, gostaria? Ainda protestando, ele se deixou conduzir até a casa. Mas eu tinha a impressão de que seu protesto não era por educação. Ele se manteve calado enquanto eu fazia a prece. Mas parecia agitado durante a refeição. Mal tocou a comida, o que foi quase um insulto a Jane, uma exímia cozinheira. Depois do jantar, ele se levantou rapidamente e anunciou que devia partir. Mas não contava com a reação de Jane. - Olhe aqui - ela disse, me olhando em busca de apoio. - Está chovendo muito lá fora. Suas roupas estão completamente molhadas e você vai acabar resfriado. Aposto que também está cansado porque deve ter dirigido muito hoje. Fique conosco esta noite. Amanhã estará aquecido, seco e descansado. Aprovei com a cabeça, olhando para Jane. Não é aconselhável acolher estranhos dessa maneira. Infelizmente, há muitas pessoas em quem não se pode confiar. Mas eu gostara do rapaz. Tive a certeza de que não haveria problema. 28 29 Relutante, ele concordou em ficar. Jane levou-o até o quarto de visitas e colocou suas roupas para secar perto da lareira. Na manhã seguinte ela as passou antes de servir ao visitante um belo café da manhã. Essa refeição o rapaz comeu com prazer. Parecia que estava mais calmo naquela manhã. Ele nos agradeceu efusivamente quando saiu. Mas, quando pegou a estrada, aconteceu uma coisa estranha. Na noite anterior, ele estava descendo o vale. Ao partir, tomou a direção oposta, voltando para a capital. Ficamos pensando nisso por um bom tempo, mas concluímos que ele se confundira na estrada. O tempo passou e nunca mais soubemos notícias do jovem. Nem esperávamos saber, na verdade. Os dias se transformaram em meses, os meses em anos. A Grande Depressão acabou e veio a Segunda Guerra. Que, a seu tempo, acabou também. Linda cresceu e tinha agora sua própria casa. As coisas na fazenda estavam muito diferentes daqueles primeiros dias de luta. Jane e eu vivíamos de maneira confortável, rodeados pelo aprazível vale Greenbriar. Há poucos dias recebi uma carta de Chicago. Uma carta pessoal, num papel requintado e caro. "Quem nesse mundo poderá estar me escrevendo de Chicago?", pensei. Abri a carta e li: Caro Sr. McDonald: Não imagino que o senhor se lembre do jovem a quem ajudou, anos atrás, quando o carro dele quebrou. Faz muito tempo e imagino que o senhor tenha auxiliado a muitos outros. Mas duvido que tenha ajudado alguém do mesmo modo como me ajudou. Imagine que, naquela noite, eu estava fugindo. Eu tinha no carro uma grande soma de dinheiro que eu roubara de meu patrão. Quero que o senhor saiba que tenho pais cristãos, boas pessoas. Mas esqueci seus ensinamentos e me juntei ao mau rebanho. Eu sabia que tinha cometido um erro terríveL. Mas o senhor e sua mulher foram muito bons para mim. Naquela noite, em sua casa, comecei a ver como estava errado. Antes de amanhecer, tomei uma decisão. No dia seguinte, voltei ao meu emprego e confessei o que fizera. Devolvi todo o dinheiro a meu patrão e lhe implorei perdão. Ele podia ter me processado e me mandado para a cadeia por muitos anos. Mas, como é um homem bom, ele me devolveu o emprego. Nunca mais me desviei do bom caminho. Agora estou casado, com uma mulher adorável e temos duas lindas crianças. Trabalhei bastante e tenho uma boa posição na empresa. Não sou rico, mas estou numa boa situação. Eu poderia recompensá-lo generosa men te pelo que o senhor fez por mim naquela noite. Mas não acredito que o senhor queira isso. Então resolvi estabelecer um fundo para ajudar outras pessoas que cometeram o mesmo erro que eu. Desta forma, acredito poder pagar pelo meu erro. 30 31 Que Deus o abençoe, senhor, e à sua bondosa esposa, que me ajudou ainda mais do que o senhor sabia. Entrei em casa e dei a carta a Jane. Enquanto a lia, vi que seus olhos se encheram de lágrimas. Com o semblante sereno, ela colocou a carta de lado. - "Fui peregrino e me acolhestes..." - ela citou Mateus. - "Tive fome e me destes de comer... estava preso e viestes me ver." HARTLEY F. DAILEY Nota do Editor: Os nomes foram trocados para preservar as identidades. A funcionária do ano Estou gostando muito mais do meu trabalho agora que Larry Johnson arrumou suas coisas e saiu do nosso departamento. Não quero parecer insensível, mas não dá para agüentar uma pessoa que tenha tanto tempo livre e que seja tão tranqüila puxando você ou os outros colegas para baixo. Por muitos anos, meus colegas e eu trabalhamos muito bem, todos planejando nos manter no mesmo emprego até a aposentadoria. Então, no ultimo dezembro, Larry chegou. Dei uma olhada nele e convoquei uma reunião de emergência na sala do café. - Não quero apavorar ninguém - eu disse. - Mas há alguma coisa esquisita com esse recém-chegado. A equipe pareceu preocupada. - Alguém reparou em suas roupas? Elas são passadas. 32 33 Uma onda de medo se espalhou pelos rostos. - A pele de seu rosto é clara. O cabelo é penteado. Os sapatos engraxados. As pessoas começaram a chorar. - Você está querendo dizer... - balbuciou Steve, da contabilidade. - É - interrompi. - Acho que ele não tem filhos. Todo mundo gritou. Mandamos um esquadrão de reconhecimento à mesa de Larry para confirmar minhas suspeitas. - Com certeza, mas é pior do que você pensou. Ele nem sequer é casado - o líder do esquadrão contou ao retornar. Os problemas começaram imediatamente. Enquanto estávamos fazendo o que sempre tínhamos feito - levar crianças a consultas médicas, voltar correndo em casa por uma lancheira esquecida e angariar fundos para os escoteiros no elevador -, Larry estava chegando cedo, almoçando na própria mesa de trabalho e trabalhando até tarde. Então aconteceu o inevitável. O chefe notou. - Alguém já notou como Larry está trabalhando? - ele rosnou. Como explicar que tínhamos responsabilidades em relação a nossas crianças? Ele jamais compreenderia. - Talvez Larry seja um bom candidato para o novo posto como assistente da diretoria - sugeri ao chefe. - Ia ficar bem para o senhor recomendá-lo. E foi assim que nos livramos de Larry "Sem Filhos" Johnson. No dia seguinte, a funcionária que veio substituir Larry chegou com uma marquinha de leite atrás de cada orelha e com um colar feito de macarrão seco como único enfeite. Fui o primeiro a cumprimentá-la. - Você pretende trabalhar além do horário? - perguntei nervoso. Ela estremeceu. - Está vendo esses círculos escuros à volta dos meus olhos? Estou acordada desde a madrugada trocando fraldas sujas e, quando sair daqui, vou ter de levar dez brownies com formato de carinha do outro lado da cidade para a festa em que meus filhos vão receber os distintivos de escoteiros. Quem tem tempo de trabalhar? Ela tem meu voto para ser a Funcionária do Ano. KEN SWARNER 34 35 O estranho que se tornou meu pai Aquele que cria, não o que gera, é o pai. Éxodo Numa tarde de sábado, minha mãe insistiu para que eu pusesse minha melhor roupa porque queria me apresentar ao seu novo namorado. Ele estava agora lá fora, esperando no carro. Ela já tivera outros namorados antes. Por que eu tinha de parar o que estava fazendo e trocar de roupa por causa dele? Por quê? Porque, como soube depois, ele a pedira em casamento na noite anterior. Ele já conhecia meu irmão e agora queria me conhecer. - Oi, senhor Cohan - eu disse, louca para voltar para casa e continuar a jogar. - Oi, Susan - respondeu o homem de meia-idade e cabelos crespos. Sua voz era suave, quase tímida, quando estendeu a mão e me cumprimentou. Depois que ele e minha mãe se casaram, eu não sabia como chamá-lo. Por um bom tempo não o chamei de nada. "Leo" não parecia certo. Ele me chamava de Susan, ou Sue, como minha mãe e meu irmão. Ele não tinha de me chamar de "filha". Eu tinha de chamá-lo de "pai"? Quem era aquele homem para mim? Parecia ser bondoso e delicado e até gostava da minha companhia. Mas um pai? Chamá-lo de pai o tornaria um pai? Entrando para uma família que já tinha uma mãe, um garoto adolescente e uma menina de doze anos, Leo sabia que não seria automaticamente tratado como pai. Éramos um grupo há muito estabelecido. Ele era a peça nova a ser encaixada. Não que tivesse de competir com qualquer amor que sentíssemos por nosso pai "verdadeiro", um homem frio e egoísta, que nunca fora bondoso nos anos em que tivemos contato. Leo tinha de competir com uma fantasia, nossas altas e irreais expectativas do que deveria ser um pai perfeito: amoroso, disponível, generoso, inteligente, bonito e sempre pronto a nos dar apoio. E, como todo pai perfeito, alguém que considerasse os filhos perfeitos também. Ele provavelmente tinha suas próprias fantasias. Órfão desde criança, Leo tinha sido criado por irmãos e irmãs mais velhos que, embora o amassem, jamais puseram os interesses dele em primeiro lugar, como um pai ou mãe devotados fariam. Agora, aos cinqüenta anos, ele se casara com uma mulher com dois filhos, aceitando todas as responsabilidades e obrigações financeiras que isso acarretava. No primeiro ano em que nós quatro vivemos juntos, Leo passou um bom tempo consertando coisas em nossa casa. Era sua maneira de fincar raízes, de estabelecer uma base sólida para 36 37 nossa nova família. Ele envernizou o painel de madeira do escritório, colocou papel de parede nos quartos e construiu armários de cedro no porão. Mas, enquanto nos tornávamos uma família, eu estava virando a típica adolescente: egoísta, desafiadora e rebelde. Minha mãe e eu, que sempre fôramos próximas, agora parecíamos discutir o tempo todo. - Por que você não pode se comportar? - ela me perguntava, zangada. - Você não me deixa fazer nada do jeito que eu quero! - eu contestava, saindo do quarto como um tufão. Precisava falar com alguém e encontrei Leo no porão. Devagar, metodicamente, ele estava aplainando uma peça de madeira. Enquanto a lixava com cuidado, me deixou falar e me ofereceu um pedaço de lixa para ajudá-lo a aparar as arestas. - Ela é impossível! - disse. - Grita comigo por qualquer coisinha. Tudo que faço tem de ser perfeito para ela aprovar. Leo balançava a cabeça enquanto eu falava, continuando seu trabalho. Gostaria que ficasse a meu favor, mas ele sabia que estava numa situação delicada. - Sua mãe quer apenas o melhor para você - disse suavemente. - Isso não deve ser tão difícil para uma garota tão excepcional. Leo e eu passamos um bocado de tempo juntos no porão naquele primeiro inverno. Ele me ensinou a trabalhar com ferramentas de modo que eu também pudesse construir, pintar e consertar coisas. Trabalhar ali com ele foi uma boa maneira de extravasar minhas frustrações adolescentes. O porão, aonde minha mãe raramente ia, tornou-se um "porto seguro" para mim. Meu padrasto estava lá para me ajudar sempre que eu precisava. Não resolvia meus problemas, mas me encorajava a organizar as coisas dentro da minha cabeça. Eu precisava de alguém que me ouvisse e ele fazia exatamente isso. - Sabe, você e sua mãe têm muito em comum. As duas são cheias de energia, corajosas e têm opiniões fortes. É por isso que às vezes uma irrita a outra. Mas é isso também o que eu gosto em vocês - nas duas. Ele muitas vezes trazia surpresas para casa: um quadro para a parede do meu quarto, uma revista de esporte para meu irmão. No jantar, ouvia nossas histórias sobre o time da escola e nossas piadas bobas. Ele nos tratava como se fôssemos as crianças mais inteligentes do mundo. - Que tal essa? - começava, e sabíamos o que vinha a seguir: uma nova charada que ele ouvira no trabalho ou lera no jornal. Ele ria depois de termos acertado a resposta. - Sabia que não ia conseguir pegar vocês! - sorria, orgulhoso. No primeiro mês de agosto que passamos juntos fui de bicicleta fazer compras na cidade, levando todo o dinheiro que recebera no mês anterior fazendo pequenos serviços para os vizinhos. Entrei numa loja de artigos masculinos e um cheiro de loção após barba me intoxicou. Aos treze anos, viera comprar meu primeiro presente de Dia dos Pais. Escolhi uma gravata de seda azul, enfeitada com fileiras de peixinhos, e a levei para casa. No domingo de manhã, quando a dei a Leo, ele a colocou imediatamente. 38 39 - Muito obrigado, gostei muito - ele agradeceu, beijando meu rosto. - De nada - respondi. - Feliz Dia dos Pais, papai. - Falei aquilo da maneira mais natural possível, mas vi que ele sorriu. Tinha me ouvido. Aos poucos, com o passar do tempo, nossa nova família criou suas próprias raízes e tradições. Leo nos viu entrar na universidade, casar e constituir nossas próprias famílias. Até morrer, aos setenta e nove anos, ele dividiu muito de seu tempo e de seu amor com nossos filhos - seus netos. Levou-os para passear em seus carrinhos, leu para eles e os ninou. Mais tarde, ensinou-os a pescar e a trabalhar com ferramentas, como fizera comigo. Leo escolheu minha mãe - e a mim e a meu irmão também. Éramos família e amigos por escolha. Sua amizade e seu amor foram presentes dos quais jamais me esquecerei. SUSAN J. GORDON Pescar e soltar Todo filho, em algum momento, desafia o pai, briga, se afasta, apenas para voltar - se tiver sorte - ainda mais próximo e protegido do que antes. LEONARD BERNSTEIN Uma antiga mágoa estava enterrada entre pai e filho, regada pelo silêncio, adubada pelo tempo. Ela cresceu forte, como tais mágoas crescem quando são negligenciadas pelo perdão. Sarah observou isso acontecer entre o marido e o sogro. Estava lá quando a mágoa foi plantada e sempre procurou uma forma de dar um fim àquela história. O único bálsamo que encontrara até então fora Joshua, seu filho. Os dois homens adoravam o menino, como se os sentimentos que costumavam ter um pelo outro precisassem de um escoadouro, um beneficiário, um herdeiro. Joshua amava o avô Bill e suas histórias de como crescera na floresta. Por duas semanas, a cada verão, Sarah levava o menino à casa do avô, no lago. Ali no cais, vovô Bill e Joshua se sentavam para pescar, desde que o sol nascia até que Sarah os 40 41 chamasse para jantar. Mas ela nunca deixava o menino sair no barco - era muito pequeno, dizia. Num verão, depois de avô e neto muito insistirem, Sarah finalmente deixou Joshua sair no barco. Mas impôs como condição que o garoto esperasse até o fim do mês, quando faria sete anos. Ted jamais acompanhava a mulher e o filho nas visitas a seu pai. Mas Sarah insistia que o garoto tinha de conhecer o avô, pois ela sempre lamentou não ter conhecido seus avós. Como presente de aniversário, Ted deu ao filho sua primeira vara de pescar. Era apenas um caniço leve com um molinete à prova de acidentes, mas Joshua mal podia esperar a visita ao lago do avô. Antes de lavar a louça no dia do aniversário, Sarah ligara para o sogro, combinando a saída de Joshua de barco. Quando Ted descobriu, ficou furioso! - É a primeira vez que o garoto vai sair para pescar de barco, Sarah, e eu queria levá-lo. - Então vá com eles - Sarah disse, enxugando a última travessa. - Você sabe que isso não é possível - Ted respondeu secamente. Sarah jogou o pano de prato no chão, virou-se para o marido com um olhar furioso e disse: - Não sei de nada disso, Ted Wilkins! Tudo que sei é que Joshua quer ir pescar com o avô e com o pai. Que tipo de homem você é para deixar uma discussão antiga impedi-lo de fazer seu filho feliz? A indignação de Ted se quebrou ante a lógica de Sarah. Ela apresentara um argumento que atingiu seu coração. - Bem, mas ele não vai me deixar entrar na propriedade, muito menos no barco - Ted disse em voz baixa, virando-se para o outro lado. - Vai sim, depois que eu falar com ele! - Sarah disse, indo em direção ao telefone. Foi uma conversa longa, mas que deu frutos. Vovô Bill, embora relutante, concordou que Ted se juntasse a eles. Depois de tantos anos, os dois se cumprimentaram friamente. Mas um olhar para o rosto de Joshua bastou para colocar os doiç homens em seus lugares. O menino estava radiante. Este fora seu desejo secreto de aniversário! Encheram o barco com equipamento de pesca suficiente para afundar o Titanic, pois cada homem levou sua caixa de apetrechos cheia de segredos. Sarah, por precaução, colocou em Joshua um salva-vidas laranja, que quase cobriu seu nariz quando se sentou no amplo barco de alumínio. Quando Sarah soltou a bolina e empurrou o barco para longe do cais, Ted e vovô Bill gritaram: - Você não vem junto? - Não, pescar é coisa de homem - ela respondeu, acenando. - Divirtam-se! Teimosamente, Ted se sentou na proa de frente para o lado direito, com Joshua no largo assento do meio, perto das varas de pescar. Vovô Bill ficou na popa, olhando para todos os lados, menos para a proa. 42 43 Os homens se revezavam mostrando a Joshua como pescar truta e como usar a isca artificial para pegar outros tipos de peixe. Mas nem por uma vez um falou com o outro, só falavam com Joshua. Passaram pelas pedras da margem, pelas piscinas cheias de sombras, os bancos de areia cobertos pela água, até mesmo pela escarpada pedreira de granito. Mas, depois de um dia inteiro no barco, estavam exaustos, sem terem pescado um só peixe. Finalmente tentaram fazer as minhocas flutuarem perto do banco de areia entulhado de junco. - Isso não está sendo do jeito que eu pensei - Joshua disse, fazendo tromba, enquanto o barco balançava com os homens em silêncio. O menino percebia uma certa tensão entre o pai e o avô, mas não compreendia bem do que se tratava. - É, Joshua, alguns dias são assim - Ted explicou. Bem nesse instante a linha de Joshua disparou - e num minuto os dois homens começaram a falar com ele. - Mantenha o caniço para cima! - vovô gritou, agitadíssimo. - Enrole a linha, filho, enrole a linha! - Ted disse, com o mesmo entusiasmo. - Veja o freio. Joshua não tinha idéia do que estava acontecendo. Ele nunca, na verdade, pescara qualquer coisa grande o suficiente para puxar tanta linha. - Papai, vá lá e ajude com o freio, ele não sabe como fazer - Ted rapidamente acrescentou. O peixe fez uma pausa na sua batalha pela vida e vovô Bill foi ajudar o neto, que estava completamente atrapalhado. Com habilidade, vovô Bill prendeu a linha entre o indicador e o polegar; mas um puxão avisou que o peixe resistia, a linha estava muito esticada. A truta não estava cansada; na verdade, tinha outras idéias. Com raiva, subiu à superfície, pulando no ar quente de verão a mais de dez metros do barco. O peixe fez um movimento rápido, parecia um arco-íris prata e verde, a água pingando de seu corpo vigoroso. Veio então o barulho que os dois homens sabiam significar desastre: o ruído seco da linha se partindo por causa da tensão. Vovô Bill ainda tentou segurar a linha entre os dedos, mas não agüentou por muito tempo. - Suspenda a linha na vertical, Ted - ele gritou. Ted mergulhou para apanhar a linha que se enrolou nas guias da vara. Joshua caiu no fundo do barco e, de repente, a tensão na vara cessou. Vovô Bill segurou a linha e começou a puxá-la, enrolando-a na mão. Puxou o quanto pôde, mas viu as mãos se enrolarem em nós. Foi quando Ted veio ajudar e ficou preso também. Bill conseguiu se soltar e tentou novamente. A linha esticada cortava as palmas das mãos e os dedos, mas nenhum dos dois reclamava, pois, afinal, era o primeiro peixe de Joshua. - Estou vendo o peixe! Pegue a rede, Joshua, pegue a rede - gritou Ted. O garoto foi até o lado inclinado do barco e tentou pegar a truta com a rede colorida, verde forte. Mas o peixe ainda não estava vencido. Com um golpe vigoroso da cauda, ele pulou a quase um metro de altura. Pensando rápido, Joshua ficou em pé 44 45 no assento e rodopiou a rede atrás de si, conseguindo pegar o peixe no ar, como se fosse uma borboleta! Juntos, Ted e Billy se agarraram ao colete salva-vidas de Joshua, puxando a tempo o menino para dentro do barco. Os dois homens e o menino riam histericamente enquanto a truta de uns dois quilos e meio se debatia no fundo do barco. Joshua conseguira apanhar seu primeiro peixe. Na volta para casa, os três reviveram suas proezas naquele triunfo como velhos amigos. Sarah ficou completamente surpresa ao se aproximar do cais e ver o marido e o sogro disputando quem contaria a história. O jeito distante e frio desaparecera de suas vozes, um interrompendo o outro para parabenizar por um ato ousado na aventura. Joshua, o peito cheio de orgulho, segurava a rede com um único peixe, que valia um troféu. Sarah tirou uma fotografia dos três abraçados, com Joshua e o peixe no meio. Estavam rindo como se tivessem apanhado o maior peixe do mundo. - Ei, papai, vamos ensinar a Joshua como limpar o peixe - Ted disse, enquanto se encaminhavam para o cais. Vendo-os, Sarah sorriu para si mesma. Bastou um garoto e um peixe para que voltassem a ser uma família. A melhor época da vida Era quinze de junho e em dois dias eu faria trinta anos. Estava inseguro com a rapidez com que o tempo tinha passado e temia que os melhores anos tivessem ficado para trás. Minha rotina diária incluía uma sessão de ginástica antes do trabalho. Todas as manhãs encontrava com meu amigo Nicholas na academia. Ele tinha setenta e nove anos e estava em plena forma. Quando o cumprimentei naquele dia, ele percebeu que eu não estava animado como sempre e perguntou se havia alguma coisa errada. Disse-lhe que estava ansioso por estar fazendo trinta anos. Fiquei imaginando como olharia para trás quando chegasse à idade de Nicholas, então lhe perguntei: - Qual foi a melhor época da sua vida? Sem hesitar, Nicholas respondeu: 46 47 - Bem, Joe, esta é minha resposta filosófica à sua pergunta filosófica: quando era criança na Austria e meus pais cuidavam de mim, sem que eu precisasse me preocupar com nada, aquela foi a melhor época da minha vida. Quando fui para a escola e aprendi as coisas que sei hoje, aquela foi a melhor época da minha vida. Quando arrumei meu primeiro emprego, passei a ter responsabilidades e a ser pago por meu esforço, aquela foi a melhor época da minha vida. Quando conheci minha mulher e me apaixonei, aquela foi a melhor época da minha vida. Veio a Segunda Guerra e minha mulher e eu tivemos de sair da Áustria para salvar nossas vidas. Quando estávamos juntos e a salvo num navio, vindo para a América do Norte, aquela foi a melhor época da minha vida. Quando viemos para o Canadá e formamos uma família, aquela foi a melhor época da minha vida. Quando me tornei um jovem pai e pude ver meus filhos crescerem, aquela foi a melhor época da minha vida. E agora, Joe, tenho setenta e nove anos e estou com saúde. Me sinto bem e continuo apaixonado por minha mulher, exatamente como quando a conheci. Esta é a melhor época da minha vida. A garotinha do papai - Você conta para o papai, em vez de eu contar? Essa era a pior parte. Com dezessete anos, dizer à minha mãe que estava grávida já era difícil, mas dizer a meu pai era impossível. Papai sempre fora uma fonte constante de coragem em minha vida. Sempre me olhara com orgulho e eu sempre tentara levar a vida de modo a deixá-lo orgulhoso. Até isso acontecer. Agora estava tudo perdido. Eu não ia mais ser a garotinha do papai. Ele nunca mais me olharia da mesma maneira. Dei um suspiro derrotada e me inclinei em direção à mamãe, para ela me consolar. - Vou ter de deixar você em algum lugar na hora de contar a seu pai. Sabe por quê? - Sei, mamãe. Porque ele não vai conseguir olhar para mim. Fui passar a noite com o pastor de nossa igreja, irmão Lu, a 48 49 única pessoa com quem me sentia bem naquela época. Ele me deu conselhos e me confortou enquanto mamãe foi para casa e telefonou para meu pai no trabalho, para lhe dar a noticia. Era tudo tão irreal. Naquela época, estar com alguém que não me julgasse era uma coisa boa. Rezamos, conversamos e comecei a aceitar e a entender o caminho à minha frente. Então, vi os faróis do carro refletidos na janela. Mamãe viera me buscar para voltar para casa e eu sabia que papai deveria estar junto. Eu tinha tanto medo. Corri da sala para o banheiro, trancando a porta. Irmão Lu me seguiu e me repreendeu. - Menina, você não pode fazer isso. Terá de enfrentá-lo mais cedo ou mais tarde. Ele não vai voltar para casa sem você. Venha cá. - Tudo bem, mas o senhor fica comigo. Estou com medo. - Claro, menina, claro. Abri a porta e, devagar, segui irmão Lu até a sala. Papai e mamãe ainda não tinham entrado. Imaginei que estivessem no carro, mamãe preparando papai para o que fosse fazer ou falar quando me visse. Minha mãe sabia o quanto eu estava apavorada. Mas eu não estava com medo de que meu pai fosse gritar ou ficar zangado. Não estava com medo dele. Era a tristeza de seus olhos que me amedrontava. Tristeza por saber que eu estava com problemas e sofrendo e que não recorrera a ele para me ajudar e apoiar. A compreensão de que eu não era mais a sua menininha. Ouvi passos na calçada e a batida suave na porta de madeira. Meu lábio começou a tremer e me debulhei de novo em lágrimas, me escondendo atrás do pastor. Mamãe entrou primeiro e o abraçou, então me olhou com um sorriso sem graça. Seus olhos estavam inchados de chorar, e eu fiquei agradecida por ela não ter chorado na minha frente. Então vi meu pai. Ele sequer estendeu a mão a Luther, apenas cumprimentou-o com a cabeça ao entrar. Veio em minha direção e me envolveu em seus braços fortes, me segurando bem perto dele enquanto murmurava: - Amo você. Amo você e vou amar seu bebê também. Ele não chorou. Não o meu pai. Mas senti seu corpo tremendo. Sabia que ele fizera todo o esforço possível para não chorar e eu estava orgulhosa dele por isso. E agradecida. Quando se afastou e me olhou, havia amor e orgulho em seus olhos. Mesmo naquele momento difícil. - Desculpe, papai. Gosto tanto de você. - Eu sei. Vamos para casa. - E fomos. Todo o meu medo tinha ido embora. Ainda haveria dor e provações que eu sequer podia imaginar. Mas eu tinha uma família forte e amorosa, com a qual sempre poderia contar. Principalmente, eu era ainda a menininha do papai e, sabendo disso, não haveria montanha que não pudesse escalar ou tempestade que não pudesse agüentar. Obrigada, papai. MICHELE CAMPBELL 50 51 Ao deitar-me em meu leito Todos aqueles soldados pertencem a alguém. Eles têm pai, mãe, mulheres, filhos... Têm alguém que os ama. Liz ALLEN, enfermeira no Vietnã Quando garota, queria ser médica, mas não tinha dinheiro suficiente para pagar a faculdade de Medicina. Assim, fui fazer Enfermagem. Em 1966, no último ano, uma pessoa encarregada de recrutar profissionais para o Exército foi fazer uma palestra na escola. Tudo parecia tão emocionante: eu teria a chance de trabalhar, seria bem paga e, o mais importante de tudo, não teria de ir para o Vietnã se não quisesse - e eu não queria. Eu me alistei. Depois de um treinamento básico, fui designada para o Hospital Letterman, em Presidio, São Francisco. Durante os dois anos em que trabalhei lá fui chamada para ir ao Vietnã três vezes. Nas duas primeiras me recusei, mas na terceira achei que estava preparada para aquela experiência. Pousamos na Base Aérea de Tan Son Nhut e, quando a porta do avião se abriu, quase caí para trás tal o calor e o mau cheiro. De repente, percebi que, aos vinte e três anos, não conhecia muita coisa da vida. Fiquei com medo, mas não havia como desistir. Depois de uma entrevista, fui designada para o Septuagésimo Sétimo Hospital Evac, em Qui Nhon. Quando o helicóptero pousou na pista do hospital, puseram minhas coisas no chão. Desci, segurando a saia. Os soldados no helicóptero gritaram: "Boa sorte, capitão", enquanto decolavam. Eu estava com meu uniforme classe A, o que significava que estava também de meias de náilon e salto alto. Nada menos adequado para o ambiente. Quilômetros de arame farpado, a parte de cima em espiral, rodeavam o complexo do hospital e o campo de pouso ao lado. Empinei os ombros e entrei no soturno prédio de concreto à minha frente. Disseram-me para dormir um pouco, pois começaria no dia seguinte. Foi bom dormir e, pela manhã, vesti uniforme e botas do Exército, exatamente como os soldados. Era a roupa que usaria no hospital. Como eu era capitão, fui designada enfermeira-chefe na ala da ortopedia, que basicamente abrigava soldados com amputações traumáticas. Levei meu papel a sério e tinha reputação de rígida. Ter sido enfermeira nos Estados Unidos por dois anos não me preparou adequadamente para o Vietnã. Testemunhei um enorme sofrimento e vi muitos homens morrerem. Uma de minhas regras era que às enfermeiras não era permitido chorar. Os homens feridos e à beira da morte que estavam sob nossos cuidados precisavam de nossa força, eu lhes dizia. Não 52 53 podíamos nos dar ao luxo de dar vazão aos nossos sentimentos. Por outro lado, eu era sempre direta com os soldados. Nunca dizia: "Ah, você vai ficar bom", se isso não fosse verdade. Eu não mentia. Mas me lembro de um garoto a quem eu não queria contar a situação real. O soldado, muito ferido, não podia ter mais de dezoito anos. Vi imediatamente que não havia mais nada a fazer para salvá-lo. Ele jamais gritou ou se queixou, mesmo quando estava sentindo muita dor. Um dia ele me perguntou: - Eu vou morrer? - Você acha que vai? - eu respondi. Ele disse: - Acho que sim. - Você sabe rezar? - perguntei. - Eu sei "Ao Deitar-me em Meu Leito". - Ótimo. Quando me pediu para segurar sua mão, alguma coisa estalou em mim. O garoto merecia mais do que uma mão que apertasse a sua. - Vou fazer melhor do que isso - eu lhe disse. Sabia que podia ser criticada pelas enfermeiras, pelos soldados e pelos pacientes, mas não me importei. Não havia ninguém olhando e me deitei na cama com o soldado. Pus meus braços à sua volta, tocando seu rosto e seu cabelo enquanto ele se aninhava no meu colo. Beijei seu rosto e juntos recitamos: "Ao deitar-me em meu leito, peço ao Senhor que guarde a minha alma. Se eu morrer antes de acordar, peço a Deus que cuide da minha alma." Então ele me olhou e disse apenas mais uma frase: "Amo você, mamãe, amo você", antes de morrer nos meus braços, calma e tranqüilamente, como se estivesse mesmo indo dormir. Depois de um minuto, saí furtivamente da cama e olhei à volta. Tenho certeza de que meu rosto estava com a fisionomia fechada, pronta para enfrentar qualquer um que me recriminasse. Mas eu não precisava ter me preocupado. Todas as enfermeiras e os outros soldados que ali serviam tinham quebrado a minha regra e estavam chorando, silenciosamente, as lágrimas escorrendo pelo rosto. Pensei na mãe do soldado morto. Ela receberia um telegrama informando-a de que o filho morrera de "ferimentos de guerra". Só isso estaria no telegrama. Imaginei que ela ficaria para sempre querendo saber o que acontecera. Será que ele morrera no campo de batalha? Havia alguém com ele? Será que sofreu? Se eu fosse sua mãe, ia precisar saber. Assim, mais tarde, eu me sentei e lhe escrevi uma carta. Achei que ela gostaria de saber que, nos últimos momentos, o filho pensara nela. Mas, principalmente, queria que soubesse que o filho não morrera sozinho. DiANA DWAN POOLE 54 55 Se você me ama, me diga! Expressar afeto é o melhor dos métodos quando se quer acender a paixão no coração de alguém e senti-la no seu próprio. RUTH STAFFORD PEALE Jerry não se esquece daquele dia de inverno em que nevava e seu filho mais velho quase sofreu um acidente sério. Jeff mal tinha um ano de carteira e isso deixava Jerry nervoso toda vez que o rapaz saía de carro. A proximidade com o desastre aumentou sua ansiedade. Um dia, logo depois do quase-acidente, Jeff disse ao pai que ia a uma festa e voltaria tarde. - Dirija com cuidado! - Jerry advertiu. Jeff virou-se para o pai com um olhar de tristeza e perguntou: - Por que você sempre diz isso? - Digo o quê? - "Dirija com cuidado." Ë como se você não confiasse em mim dirigindo. - Não, filho, não é nada disso - Jerry explicou. - Ë só uma maneira de dizer "Eu te amo". - Olhe, papai, se você quer dizer que me ama, diga isso! Se não, posso confundir a mensagem. - Mas... - Jerry hesitou. - E se seus amigos estiverem com você? Se eu disser "Eu te amo", você pode ficar sem graça. - Nesse caso, papai, quando estiver se despedindo, basta colocar sua mão perto do coração e eu vou fazer a mesma coisa - Jeff sugeriu. Jerry entendeu que seu filho, tanto quanto ele, queria expressar seu amor. - Estamos combinados - ele disse. Alguns dias depois, Jeff estava pronto para sair de novo, dessa vez com um amigo. - Papai, pode me emprestar o carro? - ele pediu. - Claro - Jerry respondeu. - Aonde você vai? - Ao centro da cidade. Jerry lhe deu as chaves. - Jeff, divirta-se - disse o pai, colocando discretamente a mão perto do coração. Jeff fez a mesma coisa. - Claro, papai. Jerry piscou. E Jeff, chegando perto do pai, falou baixinho: - Piscar não faz parte do nosso trato. Jerry ficou meio surpreso. - Tudo bem, papai, até mais tarde - Jeff disse enquanto se dirigia à porta. Antes de sair, ele se virou - e piscou. MITCH ANTHONY 56 57 É preciso ser um homem especial para ser um bom padrasto Chegando o Dia dos Pais, me passou pela cabeça que, neste país, falta comemorar uma data, o Dia do Padrasto. Se há quem mereça um dia especial são as almas valentes que têm de se encaixar em famílias já prontas com o cuidado e o esmero de um neurocirurgião. É por isso que temos o Dia do Pai Bob em nossa família. É a nossa versão do Dia do Padrasto, em homenagem a Bob, o padrasto de meus filhos. Eis por que nós celebramos esse dia. Pai Bob acabou de se mudar. - Se você fizer alguma coisa que magoe minha mãe, fique sabendo que mando você para o hospital - diz o rapaz que está na faculdade e que é muito maior do que o padrasto. - Não vou esquecer - diz Pai Bob. - Você não vai querer agora me dizer o que eu tenho de fazer - diz o garoto que está no primeiro grau. - Você não é meu pai. - Não vou esquecer - diz Pai Bob. O rapaz que está na faculdade telefona. O carro quebrou a setenta quilômetros de casa. - Já estou chegando - diz Pai Bob. O vice-diretor da escola está no telefone. O garoto que está no primeiro grau se envolveu numa briga. - Já estou chegando - diz Pai Bob. - Preciso de uma gravata para usar com essa camisa - diz o rapaz que está na faculdade. - Escolha uma no meu armário - diz Pai Bob. - Você devia pôr um brinco na orelha - diz o garoto que está no primeiro grau. - Você precisa parar de arrotar à mesa - diz Pai Bob. - Vou tentar - diz o garoto. - Não vou esquecer - diz Pai Bob. - O que você achou da garota com quem eu saí ontem? - pergunta o rapaz. - É importante para você saber? - pergunta Pai Bob. - É - diz o rapaz. - Preciso falar com você - diz o garoto. - Preciso falar com você - diz Pai Bob. - Acho que devíamos fazer uma coisa para selar a relação entre padrasto e enteado - diz o rapaz. - Fazendo o quê? - pergunta Pai Bob. - Trocando o óleo do meu carro - diz o rapaz. 58 59 - Acho que devíamos fazer uma coisa para selar a relação entre padrasto e enteado - diz o garoto. - fazendo o quê? - pergunta Pai Bob. - Me dando uma carona até o cinema - diz o garoto. - Eu sabia - diz Pai Bob. - Se beber, não dirija. Me telefone - diz Pai Bob ao rapaz. - Obrigado. Se beber, não dirija. Me telefone - diz o rapaz. - Obrigado - diz Pai Bob. - A que horas tenho de chegar em casa? - pergunta o garoto. - As onze e meia - diz Pai Bob. - Tudo bem - diz o garoto. - Nunca pense em fazer nada que possa magoá-lo - o rapaz me diz. - Precisamos dele. - Não vou esquecer - eu digo. E por isso temos o Dia do Pai Bob. Os meninos compram para o padrasto um brinquedo novo com o qual todos possam se divertir juntos. Pai Bob faz um churrasco. E eu fico feliz pela sorte de Pai Bob ter entrado nessa família de forma tão encantadora que agora parece que ele sempre esteve ali. BETH MULLALLY Tio Bun Tio Bun era uma pessoa fascinante. Não nos visitava com freqüência, mas ao ir a nossa casa quando eu era criança, nos anos quarenta e cinqüenta, tudo ficava diferente durante o tempo que passava conosco. Éramos oito filhos e a maior parte de nossa diversão vinha de fazer tortas de lama, brincar com vaga-lumes e com outros insetos que surgiam no verão, além de construir casas de boneca no antigo galinheiro. Para nós, tio Bun era um viajante que rodava o mundo. Quando vinha nos visitar, contava histórias sobre os lugares que estivera e as pessoas que conhecera. Fazia todos nós vermos a vida sob uma nova perspectiva. Normalmente trazia um presente maravilhoso para cada um e, às vezes, íamos até a pequena loja no centro da cidade e ele nos comprava um saco inteiro de balas de um centavo. O saco parecia enorme quando eu era uma garotinha. 60 61 Nunca sabíamos quando teríamos notícia de tio Bun. Eu atribuía isso ao fato de sua "carreiraP" - qualquer que ela fosse - mantê-lo por demais ocupado para fazer planos. As vezes, ao invés de nos visitar, enviava uma enorme caixa cheia de surpresas especiais, coisas que nunca tínhamos visto antes. Não existia maior felicidade do que abrir aqueles baús de amor feitos de papelão marrom. Lembro que ficava imaginando como tio Bun deveria ser rico para poder nos comprar tantas coisas lindas. Não podia deixar de comparar aquele tio animado e generoso com meu próprio pai: um homem simples, com uma vida simples, trabalhando nas minas de chumbo e fazendo pequenos consertos quando podia para manter um lar para sua mulher e filhos. Eu adorava papai e sabia que era um bom homem. Mas sua vida era sem nenhum glamour se comparada com a de seu irmão jovial, que tinha um brilho nos olhos, um largo sorriso e histórias fascinantes. Tio Bun sempre nos ligava um dia ou dois antes de chegar e, logo que papai desligava o telefone e nos contava que ele viria, ficávamos superagitados. Adorávamos tio Bun e esperávamos ansiosamente por aquela bem-vinda quebra de nossa rotina. O que eu não sabia quando criança é que, quando tio Bun telefonava, papai ia até a cidade e mandava uma ordem de pagamento ao irmão com as economias que guardava. Cada centavo que tio Bun gastava conosco saía do bolso de papai. Ao longo dos anos, as peças começaram a se encaixar: as muitas viagens de tio Bun eram feitas de trem, sem passagem, na traseira de vagões de carga. Suas histórias eram de pessoas que viajavam com ele, histórias que ele exagerava um pouco. Nunca soube por que tio Bun escolheu viver como vivia ou por que meu pai manteve seu segredo durante todos aqueles anos. O que sei é que, numa situação em que seria fácil ficar com o crédito, papai manteve um comportamento nada egoísta. Através de tio Bun, papai nos deu presentes de lugares onde nunca esteve. E, através de nós, tio Bun participou da vida em família e recebeu o amor que não tinha na sua vida solitária. Com meu pai, que jamais disse uma palavra a respeito, aprendi tudo sobre o amor generoso e incondicional. J AN NATIONS 62 63 Antes o pai, agora o filho Numa noite de inverno, eu estava lendo e meu filho, Luke, se aproximou timidamente em silêncio. Ficou fora da meia-lua de luz que vinha de um abajur de bronze de que eu gostava muito. Antigamente ficava na mesa do consultório médico de meu pai. Naquela época, Luke gostava de me trazer seus problemas mais sérios quando eu estava lendo. No ano anterior fazia isso sempre que eu estava trabalhando no jardim. Talvez ele se sentisse mais à vontade em relação a suas dificuldades quando eu estava fazendo aquilo que ele estava se preparando para fazer. Quando começou a se interessar em ver as coisas crescerem, aprendeu a plantar sementes e a deixá-las na terra ao invés de desenterrá-las na manhã seguinte para ver se tinham crescido. Agora estava começando a ler sozinho - embora ele não fosse admitir para mim. Levantei os olhos do jornal e ele me deu um sorriso largo. Mas, de repente, sua expressão tornou-se séria: - Quebrei minha serra - disse, mostrando o brinquedo que tinha escondido atrás das costas. - Olhe só. Luke não me pediu para consertá-la. Sua confiança de que eu poderia fazer isso era o respeito de um menininho ao milagroso consertador de triciclos, trenzinhos e vários outros brinquedos. O cabo de plástico azul da serra se partira. Meu pai, que apreciava as ferramentas de todas as profissões, não teria aprovado uma serra com cabo de plástico. Eu disse: - Faltam uns pedacinhos. Estão com você? Ele abriu a mão e me estendeu os pedaços que tinham sobrado. Eu não tinha idéia de como consertar a serra. Luke me olhou firme, a expressão revelando total confiança de que eu poderia fazer qualquer coisa. Aquele olhar revolveu lembranças. Examinei a serra cuidadosamente, remexendo as pecinhas quebradas na minha mão como remexia o passado em minha mente. Quando tinha sete anos, fui ao consultório de meu pai depois da escola, num dia de novembro. Meu pai era realmente o melhor médico da pequena cidade de Ohio River, onde morávamos. Ele sempre surpreendia a mim - e a seus pacientes - pelas coisas que podia fazer. Podia não apenas curar os males de qualquer pessoa, não importava o quê, mas também dominar um cavalo, fazer um pião e escorregar pela montanha em pé no meu trenó! Eu gostava de ficar na sala de espera do consultório ouvindo as pes- 64 65 soas me chamarem de "doutorzinho" e observando seus pacientes, que sempre saíam de sua sala melhor do que entravam. Mas, naquele dia, quando eu tinha sete anos, estava lá para ver meu melhor amigo, Jimmy Hardesty. Ele não ia à escola há três dias, e sua mãe enviara um bilhete à enfermeira de meu pai dizendo que levaria Jimmy ao consultório naquele dia. Quando o último paciente do dia foi embora, Jimmy ainda não chegara. Meu pai e eu saímos então para visitar doentes em casa. Ele gostava que eu fosse com ele e adorava me contar histórias enquanto dirigia. Eram quase sete horas quando terminamos. Quando voltávamos para casa, papai disse de repente: "Vamos ver como está o Jimmy." Fiquei contente e agradecido, certo de que meu pai estava fazendo aquilo para me agradar. Mas, quando chegamos à antiga casa de pedras cinza, havia uma luz acesa na janela superior da parte de trás e uma outra na varanda dos fundos - antigamente era assim que se avisava que havia algum problema na casa. Papai estacionou o carro perto da porta de entrada. Alice, a irmã mais velha de Jimmy, saiu correndo e passou os braços à volta de meu pai, chorando e tremendo, tentando falar. - Ah, doutor. Jiinmy está morrendo! Papai saiu à sua procura. Graças a Deus, o senhor está aqui. Meu pai nunca se apressava. Costumava dizer que não há nenhuma razão para correr. Se você tivesse de correr, já era tarde demais. Mas disse para Alice soltá-lo e correu. Eu os segui pela cozinha, subindo pela escada estreita e escura da sala. Jimmy estava com a respiração ofegante e fazia um ruído alto, cheio de ar. O menino tinha montes de cobertores sobre ele, de modo que mal podíamos ver seu rosto na luz tremeluzente das lamparinas de querosene. Parecia exausto e sua pele brilhava. Sua mãe estava extremamente abatida. - Ah, doutor. Por favor, nos ajude. Era só um resfriado, então, de tarde, ele começou com esse suor terrível. Eu nunca tinha visto a mãe de Jimmy assim antes. Ela ficou atrás de mim, com as mãos nos meus ombros, enquanto meu pai auscultava o peito de seu filho. Ele preparou uma injeção e levantou a agulha perto da luz. Eu tinha certeza de que ali estava para acontecer o milagre a que todos temos direito. Papai deu a injeção em Jimmy. Então pegou um chumaço de gaze e colocou na boca de meu amigo. Inclinou-se sobre ele e começou a respirar junto com ele. Ninguém se mexia no quarto e não havia outro som, a não ser a respiração regular de meu pai e a resposta da respiração de Jimmy, alta e sibilante. Então, repentinamente como um raio, havia apenas o terrível som da respiração de meu pai. Senti as mãos da mãe de Jimmy pressionarem meus ombros e eu sabia, como ela sabia, que alguma coisa acontecera. Mas meu pai continuou a soprar nos pulmões de Jimmy. Passou-se um bom tempo e a senhora Hardesty foi até a cama, pôs a mão no braço de meu pai e disse: - Ele se foi, doutor. Venha. Meu menino não está mais conosco. Mas meu pai não se mexeu. A senhora Hardesty então me pegou pela mão e descemos para a cozinha. Ela se sentou numa cadeira de balanço, e Alice, com um ar desamparado como eu 66 67 uma palavra. E eu não podia me arriscar a dizer nada para ele. O mundo que eu pensava conhecer se partira no fundo do meu coração. Em vez de irmos para casa, fomos a seu consultório. Ele começou a pesquisar em seus livros, procurando por alguma coisa que pudesse ter feito. Eu queria detê-lo, mas não sabia como. Não podia imaginar como a noite terminaria. De vez em quando, sem querer, eu começava a chorar novamente. Finalmente alguém bateu à porta e fui até a sala da frente, agradecido a quem quer que fosse. Notícias sobre nascimentos e mortes correm rápido e vão longe numa comunidade como a nossa. Mamãe viera nos procurar. Ela se ajoelhou, me abraçou, esfregou a parte de trás da minha cabeça e eu a abracei, como não fazia desde que era bebê. - Ah, mamãe, por que ele não conseguiu, por que ele não conseguiu? - eu soluçava, com a cabeça em seu ombro. Ela esfregou minhas costas até me acalmar. Então disse: - Seu pai é maior que você, mas ele é menor que a vida. Nós o amamos pelo que ele pode fazer, não o amamos menos pelo que não pode fazer. O amor aceita o que encontra, seja o que for. Embora eu não tenha certeza de ter compreendido o que ela quis dizer, sei que percebi a importância de suas palavras. Então ela entrou para falar com meu pai. Aquele inverno pareceu ter durado uma eternidade, mas todas essas lembranças passaram pela minha mente em segundos. Continuei a remexer as peças do brinquedo quebrado de Luke e lhe disse: - Não posso consertar. - Pode, sim. - Não, não posso. Desculpe. Ele me olhou e a expressão de confiança desapareceu de seu rosto. Seu lábio inferior tremia e ele tentava segurar as lágrimas que surgiam. Eu o coloquei no colo e o consolei da melhor maneira que pude - tanto pelo brinquedo quebrado quanto por ter acabado com a sua ilusão de que eu era infalível. Aos poucos o choro diminuiu. Eu tinha certeza de que ele percebera minha tristeza por tê-lo decepcionado ao demonstrar que era um simples mortal. Luke ficou aninhado em meu colo por um bom tempo, o braço à volta do meu pescoço. Quando ele saiu da sala, me dando um olhar direto e amigável, pude ouvir a voz de minha mãe me dizendo, do seu jeito incontestável, que o amor não era condicional. Antes o pai, agora o filho. Eu sabia com certeza que da angústia daquela descoberta vinha a primeira luz, ainda fraca, da compreensão. W.W. MEADE 68 69 Pés grandes, coração maior ainda Quando as boas ações falam, as palavras não são necessárias. PROVÉRBIO AFRICANO O verão ainda não havia começado, mas fazia um calor insuportável. Parecia que todo mundo estava procurando por algum tipo de alívio e, assim, a sorveteria era um lugar natural para se ir. Uma menininha, com o dinheiro apertado na mão, entrou na loja. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, o empregado asperamente mandou que saísse e lesse o cartaz na porta - e que ficasse lá fora até que calçasse uns sapatos. A menina saiu devagar e um homem bem alto a seguiu até a calçada. Ele ficou observando enquanto a garota leu o cartaz em frente à loja: PROIBIDO ENTRAR DESCALÇO. Lágrimas começaram a rolar pelo rosto da menina, que se virou para ir embora. Então o homem alto a chamou. Ele se sentou no meio-fio, tirou seus sapatos número quarenta e quatro e os colocou em frente à garota, dizendo: - Tome aqui. Você não vai conseguir andar com eles, mas, se for deslizando os pés, pode buscar sua casquinha de sorvete. O homem levantou a menina e colocou os pés dela nos sapatos. - Não precisa ter pressa. Estou cansado de andar por aí e vou ficar muito bem aqui sentado, tomando meu sorvete. Impossível não notar o brilho nos olhos da menina quando ela chegou no balcão e pediu a casquinha de sorvete. Ele era um homem grande, é verdade. Tinha uma barriga grande, sapatos grandes, mas, principalmente, tinha um grande coração. AUTOR DESCONHECIDO Do livro de Brian Cavanaugh, The Sower Seeds 70 71 Papai, tenho uma bola de plástico Estava preocupado com a minha filha. Betsy estava entrando na adolescência e passava por uma daquelas fases em que qualquer pequeno problema parece uma tragédia. Nos últimos tempos, andava cabisbaixa porque uma de suas melhores amigas resolvera implicar com suas roupas e debochar de tudo que ela dizia. Queria encontrar uma forma de ensinar a Betsy que a vida é cheia de altos e baixos e que precisamos enfrentar as adversidades de cabeça erguida, sem deixar que afetem nossa auto-estima. Mas fazer com que ela compreendesse isso não seria uma tarefa fácil. Como a maioria das meninas da sua idade, Betsy achava que os pais viviam em outro mundo e não entendiam seus problemas. - Minha vida é uma droga. Ninguém se importa comigo e às vezes penso que ninguém ligaria se eu não estivesse mais aqui. No dia seguinte, durante o jantar com netsy e o caçula, Andy, minha mulher lembrou "casualmente" de um discurso que o pastor de nossa igreja tinha feito há alguns dias. Ele tinha comparado os problemas com uma bola de plástico, daquelas bem leves que as crianças gostam de jogar na praia. O pastor pediu que imaginássemos que estávamos no fundo de uma piscina e tentávamos manter a bola entre as pernas, sob a água. Isso era fácil por algum tempo, mas depois só havia duas possibilidades. Ou você ficava tão cansado que deixava a bola escapar e pipocar na superfície ou - o que é pior - ficava tão cansado em tentar mantê-la submersa que acabava se afogando. A mensagem do pastor era clara: não adianta tentar esconder os problemas a qualquer custo. Mesmo usando toda nossa força e determinação, em algum momento eles virão à tona e lutar contra isso pode arruinar nossa vida. Por outro lado, ao observar as mentiras, mágoas, dúvidas e medos à luz do dia, temos muito mais chances de superar os obstáculos e perceber que não eram assim tão importantes. Depois que Nancy contou a história, pude ver que os meninos estavam tentando entender o que aquilo tinha a ver com eles. 72 73 Expliquei que, às vezes, todos nós temos nossas "bolas de plástico", que tentamos esconder. Pedi que, a partir de então, sempre que eles tivessem dificuldade em nos contar um problema, deveriam simplesmente dizer: "Tenho uma bola de plástico." Nancy e eu prometemos que a única coisa que faríamos por vinte e quatro horas seria ouvir. Nada de gritos, julgamentos, conselhos: apenas ouvir. Depois de vinte e quatro horas, poderíamos tentar lhes ajudar a sair do problema. O fundamental era que soubessem que sempre estaríamos por perto e prontos para ouvir, independente da gravidade da situação. Através dos anos, eles nos apresentaram muitas "bolas de plástico", normalmente tarde da noite. Algumas eram mais sérias que outras. Algumas até engraçadas e tentávamos não rir quando nos contavam. Outras jamais chegaram aos nossos ouvidos, mas foram divididas com amigos da família. Sempre nos submetemos à regra das vinte e quatro horas. Nunca voltamos atrás em nossa promessa, não importando o quanto queríamos reagir ao que contavam. Os dois agora são adultos. Tenho certeza de que ainda têm "bolas de plástico" de vez em quando. Todos temos. Mas sabem que estaremos por perto para ouvi-los. Afinal, o que é uma bola de plástico? Algo que desaparece quando você a solta ao vento. JEFF BOHNE A única lembrança que permanece Você nunca sabe quando está forjando uma lembrança. RICKIE LEE JONES Tenho muitas lembranças de meu pai e da minha infância com ele em nosso apartamento perto da linha do trem. Por vinte anos, ouvimos o barulho do trem como se passasse ao lado da janela do quarto. Tarde da noite, papai esperava sozinho na estação pelo trem que o levava à fábrica, onde trabalhava no turno que começava à meia-noite. Naquela noite especial, esperei com ele no escuro para me despedir. Seu rosto estava crispado. O filho mais novo fora convocado para a guerra. Eu deveria me apresentar às seis da manhã no dia seguinte, enquanto ele estivesse trabalhando na máquina de cortar papel. Meu pai e eu conversamos sobre a revolta que ele sentia. Não queria que eles levassem seu filho, de apenas dezenove 74 75 anos, que jamais bebera ou fumara sequer um cigarro, para lutar na Europa. Ele colocou as mãos sobre meus ombros magros: "Tenha cuidado, Srulic, e, se precisar de alguma coisa, me escreva que eu consigo para você." De repente, ouviu-se o barulho do trem que se aproximava. Ele me abraçou apertado e suavemente beijou-me o rosto. Com os olhos cheios de lágrimas, murmurou: "Amo você, meu filho." O trem chegou, as portas se fecharam e ele desapareceu na noite. Um mês depois, aos quarenta e seis anos, meu pai morreu. Tenho setenta e seis anos agora. Uma vez ouvi o repórter Pete Hamill, de Nova York, dizer que as lembranças são a maior herança de um homem e tenho de concordar. Sobrevivi a quatro invasões na Segunda Guerra. Tenho uma vida cheia de toda espécie de experiências. Mas a única lembrança que permanece é a de uma noite quando meu pai disse: "Amo você, meu filho." TED KRUGER Ratos de passagem em turbilhão Quando tiver certeza de que vai começar uma aventura, limpe o mel do nariz e se ajeite o melhor que puder, de modo a estar pronto para qualquer coisa que aconteça. URSINHO PUFF, de A.A.Mune Cheguei à região das florestas canadenses com meu filho Adam, que acabara de fazer treze anos. Eu estava pronto para alguma coisa extravagante. Se quisesse algo calmo e seguro, teria ficado em casa. "O papel da mãe é ensinar o filho a se afastar do perigo", pensei. Já o pai deve mostrar como chegar um pouco mais perto do limite. Assim, fomos a uma loja de artigos esportivos em Minnesota e nos equipamos com mapas, barracas, material de pescaria e mantimentos para passar cinco dias na floresta. Pegamos um hidroavião para o Parque Provincial Quetico, em Ontário, dois mil e setecentos quilômetros quadrados de lagos de águas negras e florestas assombradas por lobos, mergulhões e alces, perto da fronteira de Minnesota, a partir da região dos Grandes Lagos. No posto da ilha Hilly, onde o avião pousou num vale 76 77 arborizado, pusemos o equipamento numa canoa de alumínio e partimos. Assim que ultrapassamos o primeiro ponto rochoso, estávamos completamente sós. A tarde estava nublada e uma luz cinzenta e difusa coloria as águas inclinadas das cachoeiras. A nossa volta, a margem rochosa tinha uma linha escura de árvores que se estendia na vastidão. Paramos pela primeira vez depois de algumas horas remando para fazer uma pequena caminhada perto da cachoeira de Brewer, uma queda de uns seis metros, cheia de espuma, que se estendia por quase duzentos metros. Carregamos o equipamento até o alto da cachoeira em duas viagens. Na terceira levamos a canoa. - Por que não descemos com o barco? - Adam perguntou de repente, quando estávamos no alto da queda-d'água, com a canoa agora vazia. Deixando de lado momentaneamente a racionalidade, respondi: - Claro, por que não? Afinal, não parecia nada terrível - há pouco tempo fizéramos rafiing no rio Novo, em West Virginia, e, comparando o rio e a cachoeira, parecia fácil. Adam me lembrou de colocar o colete salva-vidas. Subi na popa, ele na proa e fomos adiante. A água cor de chá puxava o bote. - Fique na esquerda! - gritei, tentando nos guiar para fora do tumulto espumoso do centro da cachoeira. - Não, vamos bem para o meio! - Adam gritou de volta. E assim fizemos. E foi quando uma queda de quase um metro, não visível da beira, apareceu bem à nossa frente. Num instante o barco chegou à beira do precipício, balançou de um lado para o outro e virou de cabeça para baixo. Vi Adam voando por cima do barco, o que logo depois aconteceu comigo. Afundei e subi, bebendo água, mexendo as mãos, tentando segurar em alguma coisa. Com a força da torrente, afundei novamente e fui arrastado para baixo, batendo em pedras submersas. Minhas botas de caminhada, cheias d'água, instantaneamente se tornaram um peso enorme. Num relance, vi o salva-vidas roxo de Adam sendo arrastado para longe de mim. - Adam! - gritei, mas não ouvi a voz dele. Quando comecei a planejar essa viagem, morrer afogado não era meu maior medo. O maior medo era não termos nada a dizer um ao outro, que Adam logo se cansasse da minha companhia e começasse a querer estar ali com um amigo ou - o que seria pior - com o seu Carne Boy. Quando conversei com ele sobre fazer uma viagem de aventuras para comemorar seus treze anos, Adam me disse que o que queria mesmo era descer e subir o Grand Canyon. Basicamente, queria ter uma boa história para se gabar. Mas eu preferia alguma coisa mais calma e tranqüila. Queria lhe mostrar a região das florestas, mas sem ter de provar nada para ninguém. Mas, principalmente, queria me reaproximar de meu filho, que eu parecia ter perdido em meio a discos dos Smashing Pumpkins, Nintendo, bonés enfiados ao contrário na cabeça e tudo o mais. Ele estava passando tão depressa da doce vulnerabilidade da infância para a terrível teimosia da adolescência que eu às vezes 78 79 imaginava que ia acordar e descobrir que lhe nascera uma enorme barba durante a noite. Como muitos pais de minha geração, eu também queria que houvesse, na vida de meu filho, alguma comemoração, algum rito que delineasse claramente a passagem da infância para a iminente vida adulta - um acontecimento mais espiritual do que tirar uma carteira de motorista e menos doloroso do que uma circuncisão. Acertamos em fazer o passeio de canoa. Para meu alívio, as preocupações sobre não ter o que conversar se mostraram absurdas. Na verdade, ele parecia desejar a minha companhia tanto quanto eu desejava a dele. Redescobri, naquele rapaz crescido, o mesmo menino curioso e engraçado de anos atrás. Remando por aqueles lagos lindos e reluzentes, os dois numa canoa estreita na água escura, fiquei surpreso em descobrir como aquele garoto pesava - já que, para o barco não inclinar, tentava manter o equilíbrio com o lastro dos nossos corpos. Com uma onda de simpatia, percebi que o corpo daquele menino magrinho estava sofrendo uma violenta investida de testosterona e acumulando massa muscular a cada hora. Também me dei conta de que seus movimentos eram como uma série de explosões cinéticas - ele se balançava abruptamente de um lado para outro, batia na lateral do barco, não remava e, de repente, começava a remar furiosamente. Minha tarefa, concluí, não era reprimir aquela energia excessiva, mas ensiná-lo a equilibrá-la. No fundo, acho que também pretendi usar a viagem para ter conversas sérias de pai para filho sobre crescer, ter responsabilidades e tudo o mais. Meu texto ensaiado era aborrecido e pretensioso. Todos esses pensamentos tomaram conta de mim em meio ao pânico, enquanto nós dois descíamos pela torrente d'água. Consegui ver novamente o salva-vidas roxo de Adam e o localizei nadando em minha direção. Então, abruptamente fomos os dois lançados para fora do canal principal e caímos num redemoinho espumante. Surpreso, eu o ouvi rir e gritar: "Que barato, cara!" Eu estava morto de medo, mas ele estava se divertindo a valer. Finalmente meu pé tocou o fundo e consegui me levantar. Quando Adam também conseguiu, olhei para ele, que ainda tinha na cabeça o boné ensopado de seu time de basquete, e nós dois começamos a rir e gritar bem alto. A canoa, da qual só víamos as pontas da popa e da proa, de tão cheia d'água, tinha sido levada pelo vale e devia estar a uns duzentos metros dali. Tivemos de atravessar o canal a nado, nos agarramos depois a um tronco que encontramos e finalmente caminhamos pela floresta para apanhar o barco, bastante avariado. Só mais tarde percebi que, durante toda a malsucedida aventura, nós dois trocamos de lugar nos papéis de homem e garoto. Meu filho sugeriu a loucura de descer a cachoeira com a canoa, mas aconselhou que eu pusesse o colete salva-vidas. Eu concordei com seu plano nada adequado e depois tentei me comportar como adulto. Meu filho riu o tempo todo durante a descida e eu - exatamente como meu pai - estava morto de preocupação. 80 81 Eu estava ensinando Adam a ser um homem, mas, ao mesmo tempo, ele estava me lembrando de que não devia esquecer minha meninice. Ele também estava demonstrando mais uma coisa: que podia, às vezes, ser mais sensato e adulto que eu; que às vezes podia estar certo e eu errado; que alguma parte dele já era adulta. Achei esta revelação reconfortante, mas, ao mesmo tempo, perturbadora. Afinal, é inerente à noção de iniciar meu filho na idade adulta a de que estou transferindo meu papel para ele. Eu estava preparando aquele que ia me substituir. No final, minha idéia original e pretensiosa de levar meu filho para a floresta para se tornar adulto tinha se mostrado um pouco arrogante e simplista demais. Na verdade, eu parecia ter tanto a aprender quanto a ensinar. Com dificuldade, saímos da água em direção à margem e, por alguns momentos, nos sentimos exultantes e vivos - ensopados, batizados, despertos. Tínhamos vivido juntos uma aventura. Alguma coisa nos acontecera e tínhamos sobrevivido. A viagem tinha apenas começado. STEFAN BECHTEL Permissão para chorar Acima de tudo, dê valor ao amor que recebe. Ele vai sobreviver por muito tempo depois que sua riqueza e sua saúde tiverem acabado. OG MANDINO Sozinho, sentado à mesa de jantar, o resto da casa às escuras, comecei a chorar. Finalmente tinha conseguido colocar os dois meninos na cama. Pai solteiro há pouco tempo, tinha de ser pai e mãe para meus filhos. Dera banho nos dois, com suas risadas de prazer, corridas malucas pela casa, gargalhando e jogando coisas um no outro. Mais ou menos acalmados, deitaram para eu fazer em cada um os prescritos cinco minutos de massagem. Peguei, então, o violão e comecei meu ritual noturno de músicas folclóricas, terminando com a favorita dos dois meninos. Cantei-a repetidamente, reduzindo aos poucos o ritmo e o volume até que estivessem aparentemente dormindo. Recentemente divorciado, com a custódia dos filhos, estava determinado a lhes proporcionar uma vida doméstica a mais 82 83 normal e estável possível. Para eles, estava sempre feliz. Tentava ao máximo manter as atividades costumeiras sem muitas alterações. Esse ritual noturno sempre acontecera. A única diferença é que agora a mãe estava ausente. Eu conseguira realizá-lo mais uma vez: outra noite concluída com sucesso. Eu me levantei devagar, cuidadosamente, tentando não fazer qualquer barulho que pudesse despertá-los, pedindo mais canções e mais histórias. Saí do quarto na ponta dos pés, fechei a porta até a metade e desci as escadas. Sentado à mesa de jantar, joguei-me na cadeira, ciente de que era a primeira vez, desde que chegara em casa do trabalho, que conseguia me sentar. Tinha cozinhado e servido o jantar aos meninos, batalhando para que comessem. Tinha lavado a louça ao mesmo tempo que tentava lhes dar a atenção que exigiam. Ajudara o mais velho, que estava na segunda série, com o dever de casa. Tinha elogiado os desenhos do mais novo e exclamado ohs! de admiração com sua elaborada construção com os blocos de Lego. O banho, as histórias, as massagens nas costas, as canções e agora, finalmente, um pequeno momento só para mim. O silêncio era um alívio, por enquanto. Então, tudo se acumulou em mim: a fadiga, o peso da responsabilidade, a preocupação com as contas que não tinha a certeza de poder pagar naquele mês. Os detalhes infindáveis do dia-a-dia de uma casa. Até há pouco tempo estava casado e tinha alguém para dividir essas tarefas, essas contas e essas preocupações. E a solidão. Eu me sentia como se estivesse no fundo de um grande mar de solidão. Tudo aquilo vinha junto e eu estava completamente perdido, indefeso. Comecei a chorar, inesperada e convulsivamente. Fiquei ali, em silêncio, soluçando. Bem nessa hora, um par de bracinhos me rodeou pela cintura e um rosto me examinou com atenção. Olhei para a carinha simpática do meu filho de cinco anos. Fiquei envergonhado por meu filho me ver chorando. - Desculpe, Ethan, não sabia que você ainda estava acordado. Não sei por que isso acontece, mas tantas pessoas se desculpam quando choram e não sou exceção. - Eu não queria chorar. Desculpe. Estou um pouco triste hoje. - Tudo bem, papai. Não tem problema chorar, você é apenas uma pessoa. Não posso descrever como me deixou feliz aquele garotinho que, com a sabedoria da inocência, me deu permissão para chorar. Parecia que estava dizendo que eu não tinha de ser sempre forte, que às vezes podia me permitir ser fraco e demonstrar meus sentimentos. Ele deslizou para o meu colo e ficamos abraçados, conversando um pouco. Eu o levei de volta para a cama e o ajeitei entre as cobertas. De alguma forma, eu também consegui dormir naquela noite. Obrigado, meu filho. HANOCH MCCARTY 84 85 Uma nova perspectiva Quando era criança, sempre podia contar com meu pai para olhar as dificuldades sob outra perspectiva, fosse uma perna quebrada ou um coração partido. Anos depois, eu estava arrasada, com uma série de problemas pessoais. Precisando de ajuda e me sentindo derrotada, gastei minhas últimas economias numa viagem à Flórida para ver papai. Na última noite da minha visita, estávamos na ponta de um píer olhando o pôr-do-sol. Não conseguia mais conter meu amargor. - Sabe, papai, se pudéssemos juntar todos os bons momentos da vida, não durariam vinte minutos. - É - ele concordou. Olhei-o, espantada. Ele ainda estava estudando o sol que se punha no horizonte. Então, olhando firmemente nos meus olhos, acrescentou tranqüilamente: - São como tesouros, não são? SEAN COXE Um escritor na prisão Fui convidada a ministrar uma oficina literária na prisão estadual de Susanville, perto das montanhas de Sierra Nevada, no norte da Califórnia. Os homens que cumprem pena foram, em sua maioria, condenados por problemas com drogas. Estão alojados em grandes dormitórios com beliches. Não têm qualquer privacidade, nenhum lugar para estarem sozinhos, nenhum lugar para pensar tranqüilamente. Eu sempre ficava apreensiva ao entrar em penitenciárias. Já fizera esse tipo de oficina em muitas prisões da Califórnia, mas que tinham celas. Em celas, mesmo se divididas com outro preso, pode-se encontrar um pouquinho de tempo para escrever. Com certeza esses homens em Susanville não iam se interessar pelo que eu tinha para oferecer. Decidira passar os dois dias de curso dando um seminário sobre monólogos. Queria que aqueles homens tivessem a chance de escrever e então representar ante uma câmera. Queria que se vissem em vídeo antes que eu fosse embora no fim do segundo 86 87 dia. Sentia que a vida na prisão provavelmente tirara deles a maior parte da identidade e que escrever e representar podia restaurar um pouco de quem foram ou de quem poderiam ser. Fiquei satisfeita porque vinte presos se matricularam. Era o número máximo que eu dissera que poderia aceitar. Passei a primeira hora com eles falando sobre como era ser um escritor. Dizendo que há alegria e liberdade nas palavras. Que não interessava o quanto eram obrigados a ser como os outros, a se vestir como os outros, comer a mesma comida, ter o mesmo horário, pois, na escrita, poderiam finalmente ser diferentes - o quanto quisessem. Escrever pode ser a mais libertadora de todas as artes. Você pode ser livre através da palavra. Não há limites. Disse-lhes que todas as vezes que pegava um lápis ou me sentava diante do computador ou da máquina de escrever era como se voltasse para casa, para a casa da minha arte, das minhas palavras. Esse era um mundo que ninguém poderia me tirar. Essa arte me sustentaria através de todos os meus dias. Os homens prestavam atenção e, quando eu finalmente disse que começassem seus projetos de texto, eles se esforçaram. Menos um deles. O jovem relutara em participar naquele primeiro dia, quando pedi que escrevessem seus monólogos. Todos os outros liam, reescreviam, liam novamente, mas ele ficou ali quieto, apagando, escrevendo, rasgando rascunhos, recomeçando. Sempre que me aproximava de sua mesa, ele, envergonhado, cobria a folha com os braços. - Posso ver? - pedi. - Prefiro que a senhora não veja - respondeu com um sorriso tímido. Pensei, "que pena". Mesmo que não estivesse participando como os outros, estava escrevendo. Escolheu passar o dia todo nessa sala quente e sufocante trabalhando em alguma coisa chamada monólogo. Naquela manhã, provavelmente, ele sequer conhecia o significado daquela palavra. Isso devia me deixar feliz. Mas não deixou. Estava preocupada com a necessidade de ele ter alguma privacidade, com sua inabilidade de partilhar, sabendo que ele estava pensando que seu texto não era suficientemente bom. Eu já trabalhava em prisões há muitos anos para ser enganada por sua timidez. Sabia que muitos dos internos tinham aprendido, desde muito pequenos, que não conseguiam fazer nada direito. Tinham sofrido abusos e tormentos quando crianças e não tinham qualquer autoconfiança. Mas não importava o quanto eu elogiasse os outros internos, ele não cederia. Voltou para o dormitório naquela noite com seu texto enfiado no bolso da calça. Muitos tinham deixado os trabalhos sobre as mesas. Mas não ele. Não se arriscou a deixar que eu lesse depois que ele estivesse atrás das grades. Tinha razão, é claro. Eu teria ido direto à sua mesa no minuto em que ele saísse pela porta. O rapaz tinha feito o julgamento certo de mim. No segundo dia, todos os homens voltaram à sala. Aquilo me deixou especialmente satisfeita. O rapaz voltou também. Nesse dia haveria a leitura e a gravação. Imaginei como o aluno silencioso e tímido enfrentaria isso. Estava realmente surpresa 88 89 de vê-lo ali. Penteara o cabelo louro e comprido, a blusa estava bem passada. Naturalmente pensara que seria filmado e queria estar bem. Finalmente eu ia ouvir o que tinha escrito. Ele não falou muito durante as atuações. Eu dera apenas algumas instruções, mas dissera que queria ouvir seus personagens me dizendo o que realmente sentiam, o que é que ninguém compreendia a respeito deles e por que precisavam falar. O rapaz louro ficou sentado quieto, observando os demais apresentarem os trabalhos. Um dos homens escrevera um monólogo para Deus, um outro decidira interpretar Abraham Lincoln, o outro, Martin Luther IKing, Jr. Alguns dos monólogos eram engraçados, outros sérios. Mesmo sem terem tido tempo para decorar os textos, quando começavam a ler, mal se viam os papéis em suas mãos. Eu estava profundamente emocionada com o resultado. Finalmente, ele era o único que não tinha lido o monólogo. Quando todos já tinham terminado, perguntei: - Está pronto, agora? - Acho que não - ele respondeu com uma voz delicada. Então os outros começaram a cobrar. - Cara, se eu pude fazer, você pode também. Vamos lá, tente. Você vai gostar. Vamos, cara, não seja tímido. Ninguém vai julgar você aqui. Então ele se levantou e ficou em frente à câmera. Parecia tão jovem. Os papéis em sua mão tremiam como pássaros assustados, mas ele começou seu monólogo com determinação: "Meu nome é Bruce. Tenho vinte e um anos e estou morto. Estou morto porque ftui preso por causa de drogas. Nunca liguei para nada nesta vida. Nem para mim mesmo. Só me importava em conseguir a próxima dose. Eu mataria por mais uma dose. Com certeza, mataria por mais uma dose." Ele continuou a falar de sua vida, como crescera em meio à pobreza, com pais alcoólatras, sofrendo maus-tratos e fome, sem ter uma vida própria, passando de um lar adotivo para outro. Enquanto lia, mostrava cicatrizes no corpo, marcas de queimaduras nos braços, onde seu pai embriagado apagava cigarros, os cortes nos punhos causados por uma tentativa de acabar com a vida. Não pude evitar. Fiquei com os olhos cheios d'água. Meu Deus, por que eu pedira para ele dividir essa dor terrível? Então o rapaz chegou ao fim da história. "Embora eu tenha morrido na prisão, tenho uma coisa para lhes dizer. Eu acabo de renascer. Voltei a me levantar, como na Bíblia. Um dia uma mulher veio e me disse para escrever. Eu jamais tinha escrito antes, mas escrevi assim mesmo. Fiquei por oito horas numa cadeira e me concentrei como nunca tinha me concentrado na vida. Antes, eu sequer conseguia ficar parado! Escrevi sobre o horror que foi a minha vida até agora e finalmente consegui sentir alguma coisa. Sentir pena. De mim mesmo. E eu senti mais uma coisa. Senti alegria. Eu estava escrevendo e o que eu estava escrevendo era bom. Eu era um escritor! E ia me levantar ante todos aqueles homens na sala e ia dizer isso... Ao proferir essas palavras, ele levantou o pequeno manuscrito no ar. "Isso é mais importante para mim que qualquer droga. O que eu queria dizer é que morri como um viciado em drogas e renasci como um escritor." 90 91 Todos ficamos sentados ali, impressionados. A câmera continuou a filmar. Ele fez uma pequena mesura e disse "Obrigado", mais uma vez, com sua voz calma. Os outros aplaudiram fortemente. Ele andou até onde eu estava e apertou minhas mãos. Aos presos não é permitido tocar os professores, mas não contestei. - A senhora me proporcionou uma coisa que nenhuma droga jamais proporcionou. O respeito por mim mesmo - ele disse. Penso nele com freqüência. Rezo para que tenha continuado a ter respeito por si mesmo através da palavra escrita. Sei, no entanto, que naquele dia, naquela sala, com aqueles homens, nasceu um escritor. Depois de uma longa e terrível viagem, uma alma perdida voltara para casa, a casa das palavras. CLAIRE BRAZ-VALENTINE Estatísticas A mulher de um estatístico, disposta a procurar um emprego, persuadiu o marido a ficar em casa por um dia tomando conta das crianças. Quando voltou, ele lhe entregou o seguinte relatório: Lágrimas enxugadas, nove vezes. Sapatos amarrados, treze vezes. Bolas de encher compradas, dezesseis. Média de duração de uma bola, dez segundos. Advertência às crianças para não atravessar a rua, vinte e uma vezes. Número de vezes que as crianças atravessaram a rua, vinte e uma vezes. Número de vezes que farei isso de novo, zero. THE BEST OF BITS & PIECES 92 93 A pescaria mais importante da vida As lições de moral que realmente permanecem são as que vêm não dos livros, mas da experiência. MARK TWAIN Ele tinha onze anos e, a cada oportunidade que surgia, ia pescar no cais junto ao chalé da família, numa ilha no meio de um lago de New Hampshire. A temporada de pesca só começaria no dia seguinte, mas ele e o pai saíram no fim de tarde para pegar peixes-lua e percas, cuja pesca era liberada. O menino amarrou uma isca e começou a praticar arremessos, provocando ondulações coloridas na água. Logo as ondulações se tornaram prateadas por causa do efeito da Lua nascendo sobre o lago. Quando o caniço vergou, soube que havia algo enorme do outro lado da linha. O pai olhava com admiração enquanto o garoto habilmente arrastava o peixe ao longo do cais. Finalmente, com muito cuidado, ele levantou o peixe exausto da água. Era o maior que já tinha visto, mas era um dos peixes cuja pesca só era permitida na temporada. O garoto e o pai olharam para o peixe, tão bonito, as guelras para trás e para a frente sob a luz da lua. O pai acendeu um fósforo e olhou o relógio. Eram dez da noite - faltavam duas horas para a abertura da temporada. O pai olhou para o peixe, depois para o menino. - Você tem de devolvê-lo, filho - ele disse. - Mas, papai! - reclamou o menino. - Vai aparecer outro peixe - disse o pai. - Não tão grande como este - choramingou o filho. O menino olhou à volta do lago. Não havia outros pescadores ou barcos visíveis ao luar. Olhou novamente para o pai. Mesmo sem ninguém por perto, o garoto sabia, pela clareza da voz do pai, que a decisão não era negociável. Devagar tirou o anzol da boca do enorme peixe e o devolveu à água escura. A criatura movimentou rapidamente seu corpo poderoso e desapareceu. O menino desconfiou que jamais veria um peixe tão grande como aquele. Isso aconteceu há trinta e quatro anos. Hoje, aquele garoto é um arquiteto de sucesso em Nova York. O chalé de seu pai ainda está lá, na ilha no meio do lago, e ele leva seus filhos e filhas para pescar no mesmo cais. E ele estava certo. Nunca mais conseguiu pescar um peixe tão maravilhoso como o daquela noite, há tanto tempo. Mas ele sempre vê o mesmo peixe - repetidamente - todas as vezes que se depara com uma questão de ética. Porque, como seu pai lhe ensinou, a ética é simplesmente 94 95 uma questão de certo e errado. Apenas a prática da ética é que é difícil. Agimos corretamente quando ninguém está olhando? Nós nos recusamos a passar por cima de regras para conseguir entregar o projeto a tempo? Ou nos recusamos a negociar ações com base em informações que sabemos que não devíamos ter? Faríamos isso se nos tivessem ensinado a devolver o peixe para a água quando éramos jovens. Porque teríamos aprendido a verdade. A decisão de fazer a coisa certa está vívida em nossas lembranças. Ë uma história que contaremos com orgulho a filhos e netos. Não é uma história sobre como tivemos a oportunidade de derrotar o sistema e a aproveitamos, mas sobre como fizemos a coisa certa e ficamos fortalecidos para sempre. J AMES P. LENFESTEY apresentada por Diana Von Holdt O momento de Molhe Trabalhei muitos anos no meio político, numa carreira que me tomava muito tempo e exigia que viajasse com freqüência. Quando o senador Bob Kerrey concorreu à presidência dos Estados Unidos em 1992, por exemplo, ajudei-o na campanha e acabei passando um bocado de tempo longe de minha mulher, Bonnie, e de nossos dois filhos pequenos, Zach e Molhe. Depois da campanha, vim para casa para aprender uma lição importante sobre como equilibrar carreira e família, sobre o que as crianças realmente precisam receber de um pai - e sobre como construir e demolir paredes. Um pouco antes do terceiro aniversário de Molly, eu acabara de voltar de uma série de viagens com o senador, algumas durando seis ou sete dias, com uma rápida parada em casa para pegar mais roupa limpa. 96 97 Molhe e eu estávamos voltando do mercado na nossa vizinhança em Silver Spring, no estado de Maryland, quando ela me perguntou: - Papai, em que rua é a sua casa? - O quê? - Pensei ter ouvido errado. - Em que rua é a sua casa? Foi um momento crítico. Embora ela soubesse que eu era seu pai e que sua mãe e eu éramos casados, não sabia que eu morava na mesma casa que ela. Embora pudesse convencê-la de que morávamos no mesmo endereço, sua incerteza quanto ao meu lugar em sua vida continuou a se manifestar de várias maneiras. Um joelho machucado a fazia correr para a mãe, não para mim. Uma questão levantada por alguma coisa ouvida na escola seria guardada por horas, até que a mãe estivesse por perto. Compreendi que não só tinha de passar mais tempo com Molhe, como passar esse tempo de uma forma diferente. Quanto mais eu a sentia se distanciar de mim, mais tentava fazer coisas que nos aproximassem, como ir à piscina ou ao cinema. Mas, se Molhe e eu não tivéssemos uma atividade programada, eu ia cuidar de afazeres em casa. Era para maximizar o tempo e ser útil. Quando era para ler uma história na hora de dormir, Bonnie me chamava depois de vestir Molhe e colocá-la na cama. Eu entrava em seu quarto como um dentista que espera o paciente ser preparado porque não tem um minuto a perder. Era assim que eu me sentia e, agora tenho certeza, era como Molhe se sentia também. Mas tudo mudou numa noite de verão. Molhe estava ficando frustrada, tentando construir um esconderijo secreto no quintal da casa. Era fim de tarde e ela deveria estar ocupada até a hora de dormir, mas os ladrilhos acinzentados e finos que tentava apoiar uns nos outros continuavam a cair. Estava fazendo isso há dias, às vezes com um amiguinho da vizinhança, às vezes sozinha. Quando as paredes despencaram pela última vez, quebrando-se, ela começou a chorar. - Sabe do que você precisa para conseguir fazer esse trabalho, Molhe? - perguntei. - Do quê? - Precisa de uns sessenta tijolos. - É, mas não temos sessenta tijolos. - Mas podemos conseguir. - Onde? - Na loja de material de construção. Vá calçar os sapatos e entre no carro. Fomos até a loja, distante uns oito quilômetros, e achamos os tijolos. Comecei a colocá-los, vários de cada vez, num carrinho tipo plataforma. Eram grosseiros e pesados e percebi que era um trabalho para eu fazer. Do carrinho teriam de ser colocados no jipe e ainda descarregados em casa. - Por favor, papai, deixe eu fazer isso. Por favor! - Molhe pediu. 98 99 Se eu deixasse, íamos ficar lá para sempre. Ela teria de usar as duas mãos para pegar apenas um deles. Olhei o relógio e tentei controlar minha impaciência. - Mas, querida, são muito pesados. - Por favor, papai, quero muito fazer isso - ela choramingou, dirigindo-se rapidamente à pilha de tijolos e levantando um deles com as duas mãos. Ela o arrastou até o carrinho e o colocou perto dos muitos que eu já pusera ali. Aquilo ia levar a noite toda. Molhe voltou até a pilha e cuidadosamente escolheu outro tijolo. Não teve pressa em escolher. Era difícil nós dois termos um tempo assim, juntos e sozinhos. Isso seria o tipo de atitude impulsiva tomada por seu irmão mais velho, Zach, para ficarmos só os dois. Mas, com Zach, talvez numa maneira masculina de agir, o ideal seria terminar logo a tarefa e irmos construir a parede. Molhe queria que aquele momento durasse. Encostei-me em um dos estrados de madeira e respirei fundo. Molhe, trabalhando firme no carregamento dos tijolos, relaxou e começou a conversar, falando sobre o que ela já construíra, sobre a escola, as amigas e a próxima aula de equitação. Comecei a entender: estávamos ali comprando tijolos para fazer uma parede, mas, na verdade, estávamos demolindo uma parede, tijolo por tijolo - a parede que ameaçou me separar de minha filha. Então compreendi que ela queria que aquilo durasse a noite toda. Desde então aprendi o que a mãe dela já sabia: como assistir a um programa de tevê com Molhe, mesmo sendo um programa que não quero ver; como ficar com ela sem ao mesmo tempo ler um jornal ou uma revista, estando ali por inteiro. Molhe não me quer por causa do que eu posso lhe dar, para onde posso levá-la ou mesmo por causa das coisas que podemos fazer juntos. Ela me quer por mim mesmo. BILL SHORE 100 101 Para meu neto Nada como ter netos para reforçar sua crença na hereditariedade. DOUG LARSON Ouvi num domingo, na igreja, a história de uma família de refugiados do Leste europeu, forçada a sair de casa por tropas invasoras. Perceberam que a única chance de escapar dos horrores da guerra era atravessar as montanhas que circundavam a cidade. Tinham certeza de que estariam a salvo num país vizinho e neutro, caso conseguissem fazer a travessia. Mas o avô não estava bem e a viagem seria dura. - Me deixem para trás - pediu ele. - Os soldados não vão se importar com um homem velho como eu. - Vão, sim - disse o filho. - Para o senhor será a morte. - Não podemos deixar o senhor aqui, papai - reforçou a filha. - Se o senhor não for, então nós também não vamos. O idoso finalmente cedeu e a família, composta de umas dez pessoas de diversas idades, inclusive uma netinha de um ano, partiu em direção à cadeia de montanhas que se via à distância. Caminharam em silêncio, revezando-se para carregar o bebê, o que tornou mais difícil a subida do desfiladeiro. Depois de várias horas, o avô se sentou numa rocha e deixou pender a cabeça. - Continuem sozinhos. Não vou conseguir - disse. - Vai, sim - encorajou o filho. - Tem de conseguir. - Não - disse o avô. - Me deixem aqui. - Vamos - disse o filho. - Precisamos do senhor, é a sua vez de carregar o bebê. O homem levantou o rosto e viu as fisionomias cansadas dos demais. Olhou para o bebê envolto num cobertor, agora no colo de seu neto de treze anos, um menino magrinho. - Claro - disse o avô. - É a minha vez. Vamos, passem o bebê para mim. - Ele se levantou e ajeitou o bebê no colo, olhando seu rostinho inocente. De repente, sentiu uma força renovada e um enorme desejo de ver sua família a salvo numa terra em que a guerra seria uma memória distante. - Vamos - ele disse, com determinação. - Já estou bem. Só precisava descansar um pouco. Vamos andando. O grupo prosseguiu, com o avô carregando o bebê. E, naquela noite, a família conseguiu cruzar a fronteira a salvo. Todos os que iniciaram o longo percurso pelas montanhas conseguiram terminá-lo, inclusive o avo. FLOYD WICKMAN E TERRI SJODiN 102 103 Todo mundo conhece todo mundo Se você procurar uma forma de ajudar alguém, estará se ajudando também. AUTOR DESCONHECIDO Hoje foi um dia especial, o tipo de dia que reforça a nossa fé, mesmo que ela seja frágil. Aprendi uma lição, ensinada por meu filho de seis anos, Brandon. Eu o observava na mesa da cozinha, arrumando cuidadosamente sua lancheira. Ia levá-lo comigo ao trabalho. Ele dizia: - Vou ser um trabalhador. Ali estavam cuidadosamente dispostas todas as coisas de que ele precisaria durante o dia: um livrinho para colorir, lápis, uma caixa com bonequinhos, um bolinho de cereja, um "sandiche" (como ele dizia) de salada de ovo e três ovos de Páscoa. Conviver com Brandon nos faz ver que o tempo não tem qualquer significado. Como estava atrasado, pedi: - Se apresse! - Tenho certeza de que ele pensa que o relógio é uma arma secreta inventada pelos suíços. Ele se apressou. Na verdade, deixou em casa o caprichado pacote do sanduíche, um problema que não me deixou esquecer nos quarenta e cinco minutos que levamos até a cidade. Reclamou comigo várias vezes, dizendo: - Papai, você me fez correr. Agora não tenho nada para comer. Durante o tempo que durou a repreensão, ele mudou as palavras, mas o sentido permaneceu o mesmo: - Preciso de alguma coisa para comer, você me fez esquecer o lanche. Comprei um sanduíche e outro bolinho num restaurante da cidade. Satisfeito, Brandon carregou a sacola para a caminhonete e logo seus pensamentos rebeldes do tipo "sem sanduíche, nada de trabalho" foram embora. Chegamos a um chalé nos arredores de Kingston, em Ontário, Canadá. Nosso serviço: instalar um carpete na casa. Toquei a campainha. Ouvi o ferrolho sendo aberto, depois a fechadura e a correntinha de segurança. A porta se abriu devagar e surgiu um homem idoso e magro. Parecia doente. O cabelo branco cobria apenas algumas partes da cabeça. A camisa azul-clara sobrava nos ombros, como se pendurada em um cabide. Sorri, perguntando se ele era o senhor Burch. - Sou. Você veio colocar o carpete? - Vim, sim. 104 105 - Tudo bem. Vou deixar esta porta aberta. - Certo, vou começar o serviço. - O senhor tem uma "geladela"? - Brandon perguntou de repente. O senhor olhou para ele, que lhe esticou a mão com seu lanche. - Tenho, sim. Você sabe onde ela está? - Sei, sim - disse Brandon, seguindo em frente. - Está na cozinha. Eu ia dizer a Brandon que era muito atrevimento ir entrando daquele jeito, mas, antes que pudesse fazê-lo, o senhor levou o dedo aos lábios, indicando que não havia problema. - Tudo bem, ele não vai passar da cozinha. Ele realmente ajuda você? Fiz que sim com a cabeça. Brandon voltou, perguntando com sua voz mais encantadora: - O senhor tem um livro de colorir? Mais uma vez eu quase disse a Brandon que estava sendo inconveniente. Fiz um gesto indicando que fosse para fora. O senhor segurou-me levemente a mão. Olhou para Brandon. - Seu pai me disse que você o ajuda. - Sou um trabalhador - Brandon respondeu, orgulhosamente. Olhei para baixo e acrescentei: - Parece que o trabalho dele hoje é manter o cliente ocupado. O senhor olhou para Brandon e soltou minha mão, com um pequeno sorriso. - Quem sabe você pode trabalhar um pouco e me mostrar como se faz para colorir? Com um ar muito sério, Brandon perguntou: - Papai, você vai ficar bem? - O senhor Burch vai ficar bem? - questionei. - Vamos ficar bem. Vamos ficar aqui na mesa. Venha me ajudar a pegar o livro, trabalhador. Fui até a caminhonete, voltando com o material e meu bloco de anotações a tempo de ouvir Brandon comentar: - O senhor já coloriu este livro. O senhor cobre muito bem. - Não, não fui eu que colori. Foram meus netos. - O que são netos? - Brandon perguntou, curioso. - São os filhos dos meus filhos. Eu sou o avô. - O que é um avô? - Quando você crescer, se casar e tiver seus próprios filhos, seu pai vai ser avô. E sua mãe vai ser avó. Eles vão ser os avós de seus filhos. Entendeu? Brandon fez uma pausa e disse: - Entendi, vovô. - Não, eu não sou o seu avô - explicou o senhor. Brandou afastou o cabelo dos olhos. Estudando os lápis de cor, escolheu um, continuou a colorir e disse: - Todo mundo conhece todo mundo, o senhor sabia? - Não tenho tanta certeza. Por que você está dizendo isso? - o senhor perguntou, olhando com curiosidade para o meu filho, que, aplicado, continuava a colorir. 106 107 - Nós todos viemos de Deus. Ele fez todos nós. Somos uma "famila". - É verdade. Deus fez todas as coisas - o senhor confirmou. - Eu sei - disse Brandon, com uma voz alegre. - Ele me disse. Eu nunca antes ouvira meu filho falar dessas coisas, a não ser uma vez em que fôramos à igreja para assistir a um auto de Natal. Enquanto esperávamos pela apresentação, ele me perguntou por que porta Deus entraria se Ele fosse se sentar perto de nós. - Ele lhe disse? - O senhor estava visivelmente curioso. - É, Ele disse. Ele vive lá em cima. - Brandon apontou para o teto, olhando para o alto com respeito. - Eu "lembo" de quando estava lá e falei com ele. - E o que foi que Ele lhe disse? - O senhor pousou o lápis sobre a mesa, prestando atenção em Brandon. - Ele disse que somos todos uma "famila". - Depois de uma pausa, meu filho acrescentou, com lógica: - Então o senhor é meu avo. O senhor Burch me olhou de longe e sorriu. Fiquei envergonhado por ele ter me fiagrado observando a conversa. Ele disse a Brandon que continuasse colorindo, pois ia verificar como estava indo o serviço. O senhor caminhou vagarosamente até onde eu estava. - Como está indo? - perguntou. - Tudo bem - respondi. - Não vai demorar. - O senhor deu um leve sorriso. - O menino tem um avô? Parei um pouco o que estava fazendo. - Não, não tem. Eles se foram quando ele nasceu. Ele tem uma avó, mas ela tem a saúde frágil, não está bem. - Sei do que você está falando. Eu tenho câncer. Também não vou ficar nesta terra muito tempo. - Sinto muito saber disso, senhor Burch. Perdi minha mãe com câncer. Ele me olhou com seus olhos cansados, mas sorridentes. - Todo garoto precisa de um avô - disse suavemente. Concordei e disse: - Mas esse não era o destino de Brandon. O senhor olhou de novo para Brandon, que coloria animadamente. Virou-se para mim e perguntou: - Você vem muito à cidade, filho? - Eu? - perguntei. - É. - Venho quase todos os dias. O senhor me olhou novamente. - Quem sabe você pode trazer o Brandon aqui de vez em quando, se estiver por perto, assim por uma meia hora? O que você acha? Dentro da casa vi Brandon, que parara de colorir e estava prestando atenção ao que falávamos. - Pode, papai? Somos "gandes" amigos. Podemos almoçar juntos. - Tudo bem, se não atrapalhar o senhor Burch. 108 109 O senhor foi até a mesa, Brandon deslizou pela cadeira e foi até a geladeira. - Hora do lanche, vovô. Aqui tem para nós dois. - Brandon voltou à mesa e tirou as coisas da sacola de papel. - O senhor tem uma faca? - Brandon perguntou. O senhor fez menção de se levantar. - Deixe que eu pego. Me diga onde está - disse Brandon. - As facas para manteiga estão no canto do balcão, na gaveta. - Achei! Brandon voltou à mesa. Desembrulhou o bolinho. Como se cortasse um diamante, dividiu-o em dois pedaços idênticos. Colocou um deles sobre o plástico que o envolvia. Empurrou-o em direção ao senhor Burch. - Este é seu. - Em seguida, desembrulhou cuidadosamente o sanduíche e partiu-o ao meio. - Este é seu também. Temos que comer o "sandiche" primeiro. ii o que a mamãe diz. - Tudo bem - respondeu o senhor Burch. - Você gosta de suco, Brandon? - Gosto de suco de laranja. Caminhando devagar, o senhor Burch foi até a geladeira. Pegou uma lata de suco e encheu dois copos pequenos. Colocou um deles em frente a Brandon. - Obrigado, vovô. Enquanto comiam, Brandon fazia perguntas ao senhor Burch e continuava a colorir. - Você joga hóquei, Brandon? - Jogo - Brandon respondeu, examinando a ponta do sanduíche antes de mordê-la. - Papai me levou, com Tyler e Adam, no inverno. - Há muitos anos, eu jogava num time de primeira linha, estava quase pronto para jogar na Liga Nacional de Hóquei, mas nunca fui convocado. Mas uma vez participei de uma partida com um jogador que foi para a Liga. Era um ótimo profissional. Ele se chamava Bill Moore - contou o senhor Burch. Meu coração veio até a garganta. - Tutter Moore? - perguntei. O senhor Burch me olhou, surpreso. - É, era ele.., foi convocado para ir a Boston várias vezes. Você ouviu falar dele? - Ouvi - disse com a voz embargada. - O senhor está lanchando com o neto dele. O senhor virou-se para Brandon e fixou o olhar no menino, que o olhava inocentemente. - É... ele se parece muito com Tutter. E o nome da avó é Lillian? - É - respondi. O senhor segurou a mão de Brandon. - Brandon, tenho de lhe pedir desculpas. Você estava certo e eu errado. Todo mundo conhece mesmo todo mundo. LEA MACDONALD 110 111 Um pedaço de giz Em casa, era natural termos medo de papai. Até mesmo mamãe tinha medo dele. Quando éramos crianças, minha irmã e eu achávamos que todas as famílias eram daquela maneira. Que toda família tinha um alcoólatra imprevisível, impossível de se agradar, e uma mãe que rezava e estava sempre ali para proteger os filhos. Pensávamos que Deus tinha determinado as coisas daquele jeito. Éramos boas crianças. Mamãe estava sempre nos dizendo isso, apesar de papai não reconhecer. Em parte, éramos boas porque não ousávamos fazer nada. Eramos crianças tranqüilas, tímidas, que quase não falavam - e nunca falávamos quando papai estava em casa. As pessoas achavam que Deus abençoara mamãe com meninas tão doces. Ela tinha muito orgulho de nós! Então chegou o dia em que descobrimos uma coisa nova e divertida para fazer. Sabíamos que aquilo não aborreceria ninguém. Não nos arriscávamos quanto a isso. Em casa, tínhamos uma porta de madeira. Descobrimos que podíamos desenhar sobre ela com giz e apagar facilmente, esfregando. Iamos nos divertir muito. Começamos a fazer nossos desenhos, lindas figuras traçadas em toda a porta. Foi um divertimento. Ficamos surpresas ao descobrir nosso talento. Eram bons os desenhos! Foi quando decidimos acabar nossa obra de arte. Estávamos orgulhosas do nosso trabalho. Sabíamos que mamãe ia adorar. Ia querer que todos os amigos viessem vê-lo e talvez eles quisessem que também pintássemos as portas de suas casas. Descobríramos uma coisa em que éramos realmente boas! Mas o elogio que esperávamos não veio. Em vez de ver a beleza do trabalho, tudo em que mamãe pensou foi no tempo que levaria e no esforço que faria para remover tudo. Estava uma fera. Nós não compreendemos por que, mas sabíamos tudo sobre broncas - e estávamos metidas numa grande confusão! Corremos para procurar um lugar para nos esconder. No bosque cheio de árvores que ficava atrás de casa não era difícil duas crianças pequenas se sentirem a salvo. Juntas, ficamos atrás de uma árvore, sem nos mexermos. Logo ouvimos as vozes amedrontadas de mamãe e dos vizinhos nos chamando. Mesmo assim sequer nos mexemos. Eles estavam 112 113 com medo de que tivéssemos fugido e nos afogado no lago. Estávamos com medo de sermos achadas. O sol se pôs, começou a escurecer. As pessoas começaram a ficar mais ansiosas e nós, com mais medo. O tempo passava e, quanto mais tempo ficávamos escondidas, mais difícil era sair. Aquela altura, mamãe já estava convencida de que alguma coisa horrível nos acontecera e chamou a polícia. Sabíamos que alguma coisa estava se passando porque ouvíamos as vozes do grupo se misturando. E a busca continuava, agora com vozes fortes de homens se sobrepondo as demais. Se antes estávamos com medo, naquela hora ficamos apavoradas! Abraçadas na escuridão, ouvimos uma outra voz, que imediatamente reconhecemos com horror: a de papai. Mas havia algo estranhamente diferente em sua voz. Nela sentíamos alguma coisa que jamais tínhamos sentido antes. Medo, agonia, desespero - não podíamos dar um nome -, mas era assim que era. Então vieram as lágrimas mescladas às preces. Estava nosso pai ajoelhado pedindo alguma coisa a Deus? Nosso pai, com lágrimas no rosto, prometendo dedicar a Deus a própria vida se Ele devolvesse suas meninas a salvo? Nada em nossa vida nos preparara para essa espécie de choque. Nenhuma de nós se lembra de ter tomado a decisão. Fomos arrastadas até ele como um ímã, nossos medos se perdendo na floresta. Não sabemos sequer se nós é que realmente demos os passos ou se Deus de alguma forma nos deslocou e nos fez chegar a seus braços. Mas nos lembramos daqueles braços fortes e amorosos que nos envolveram, papai chorando, nos apertando como se fôssemos tesouros. As coisas mudaram depois do que aconteceu. Tínhamos um novo pai. Era como se o antigo tivesse ficado enterrado na floresta. Deus levara aquele, substituindo-o por outro, um que nos amava e era grato por nos ter como filhas. Mamãe sempre nos disse que Deus faz milagres. Acho que ela estava certa. Ele mudou toda a nossa família com um pedaço de giz. HOLLY SMELTZER 114 115 Meu segredo de amor Fica numa prateleira no alto do armário. Já foi uma caixa de sapatos enfeitada para o Dia dos Pais, um presente da minha filha mais velha. Dentro dela, papel-cartão rosa, vermelho e branco, desenhos e colagens com três tipos de macarrão, jujubas e confeitos - tudo aquilo grudado com um exagero de cola branca. A caixa de sapatos está enrugada e mofada onde as jujubas e os confeitos derreteram. Está grudenta em alguns lugares. Mas é um repositório de relíquias da infância dos meus filhos. Se levantar a tampa, você vai entender por que a guardo. Em folhas dobradas e desbotadas de bloco pautado, agora frágeis, estão as palavras: "Oi, papai", "Felis Di dos Pais" e "Ti amo". No fundo da caixa, colados, vinte e três corações feitos de miçangas. Com seus rabiscos, cada um dos três escreveu o nome. É o produto do amor em seu estado mais puro e verdadeiro. As crianças agora são adultas. Ainda me amam, embora tenham dificuldade, às vezes, de demonstrar. O amor se complica com a idade e o conhecimento. É amor, sim, mas não é simples. Não é uma coisa que se poderia colocar numa caixa de sapatos. Ninguém sabe que aquele presente antigo e grudento está lá. De vez em quando eu o desço do armário e abro a caixa. É uma coisa em que posso tocar, segurar e acreditar, agora que não há mais bracinhos ao redor do meu pescoço. É o meu baú do tesouro. E ele significa amor. Quero que o enterrem comigo. Quero levá-lo aonde quer que eu vá. ROBERT FULGHUM 116 117 Uma família para Freddie Lembro-me da primeira vez em que vi Freddie. Estava em pé no seu cercadinho na agência de adoção onde trabalho. Ele me deu um sorriso cheio de dentes. "Que bebê bonito", pensei. - Será que você vai conseguir achar uma família para Freddie? - a moça que tomava conta dele na agência me perguntou. Foi quando percebi. Freddie tinha nascido sem os braços. - Ele é tão esperto. Só tem dez meses, já anda e fala. - Ela o beijou. - Diga "bola" para a senhora Blair. Freddie sorriu para mim e escondeu a cabeça no ombro da encarregada. - Vamos, Freddie, não faça assim - ela disse. - Ele é realmente muito afável, um garoto muito, muito bonzinho. Freddie me fazia lembrar meu próprio filho com aquela idade, os mesmos cachos escuros e espessos, os mesmos olhos marrons. - Não vai se esquecer dele, senhora Blair? Vai tentar? - Não vou me esquecer. Fui para o andar de cima e peguei minha lista atualizada de "crianças de difícil colocação". Freddie é um menino de dez meses de idade, branco, de origem protestante, inglesa e francesa. Tem olhos e cabelos castanhos e pele clara. Freddie nasceu sem os braços, mas goza de boa saúde. A pessoa que se ocupa dele na agência considera sua inteligência superior à média e ele já está andando, além de dizer algumas palavras. Ë uma criança carinhosa e amorosa. Freddie foi abandonado por sua mãe biológica e está pronto para ser adotado. "Ele está pronto", pensei. "Mas quem está pronto para ele?" Eram dez horas de uma linda manhã de fim de verão e a agência estava cheia de casais - casais sendo entrevistados, conhecendo bebês, famílias sendo formadas. Esses casais quase sempre têm o mesmo sonho: querem uma criança parecida com eles, com pouca idade e - o mais importante - sem problemas. - Se ele tiver um problema depois de o levarmos, tudo bem. É um risco que corremos, como quaisquer outros pais. Mas escolher um bebê que já tem um problema, aí é demais - eles dizem. E quem pode culpá-los? 118 119 Eu não era a única a procurar pais para Freddie. Todas as pessoas encarregadas das entrevistas com novos casais interessados começavam a conversa com uma esperança: talvez aqueles quisessem ficar com Freddie. Mas o verão passou, chegou o outono e Freddie ainda estava conosco no seu primeiro aniversário. - Freddie é gaaande - dizia o menino, rindo. - Gaaande. E então eu os encontrei. Começou como sempre começa: uma mensagem impessoal na secretária eletrônica, um novo caso, uma nova família a ser analisada, duas pessoas que queriam uma criança. Eram Frances e Edwin Pearson. Ela com quarenta e um anos, ele com quarenta e cinco. Ela dona-de-casa, ele motorista de caminhão. Fui vê-los. Viviam numa casa de madeira branca bem pequena, num grande terreno cheio de sol e árvores antigas. Juntos me receberam à porta, ansiosos e mortos de medo. A senhora Pearson serviu um café quentinho e biscoitos assados no forno. Sentaram à minha frente, num sofá, bem perto um do outro, de mãos dadas. Depois de um momento, a senhora Pearson falou. - Hoje é nosso aniversário de casamento. Dezoito anos. - Anos muito bons, com a exceção... - disse o senhor Pearson, olhando para a mulher. - É. Com a exceção, sempre a exceção... - Ela olhou em volta. - A casa está arrumada demais, dá para entender? Pensei na sala da minha casa e nos meus três filhos, agora adolescentes. - Dá, dá para entender - respondi. - Será que estamos muito velhos? Sorri. - Vocês não se acham velhos e nós também não achamos. - A gente sempre pensa que vai ser num mês, depois no próximo. Exames. Testes. Todas essas coisas. Um monte de vezes. Mas nunca aconteceu nada. Você fica com aquela esperança e o tempo vai passando - disse a senhora Pearson. - Já tentamos adotar antes. Uma agência nos disse que nosso apartamento era pequeno demais, então compramos esta casa. Em outra agência nos disseram que eu ganhava muito pouco. Resolvemos nos conformar, mas um amigo nos indicou a sua agência e decidimos fazer uma última tentativa - o marido acrescentou. - Fico contente com isso - eu disse. A senhora Pearson olhou orgulhosa para o marido. - Será que podemos escolher? - ela perguntou. - Conseguir um menino para meu marido? - Vamos tentar arrumar um garoto - eu disse. - Que tipo de garoto? A senhora Pearson riu. - Quantos tipos existem? Basta que seja menino. Meu marido gosta muito de esportes. Jogava futebol e basquete quando estava no colégio. Ele será um ótimo pai. O senhor Pearson me olhou. - Sei que a senhora não pode dizer exatamente agora, mas pode nos dar uma idéia de quando será? Já esperamos tanto tempo! 120 121 Hesitei. Sempre faziam essa pergunta. - Talvez no próximo verão - a senhora Pearson falou. - Poderíamos levá-lo à praia. - A senhora não teria um garoto para nós? Deve haver um menininho em algum lugar. - Depois de uma pausa, o senhor Pearson continuou. - Claro que não podemos dar a ele o mesmo que outras pessoas. Não temos muito dinheiro guardado. - Mas temos um monte de amor - acrescentou a mulher. - Amor nós guardamos bastante. - Bem, há um menininho. Ele tem treze meses - eu disse, cautelosa. - Ah, uma bela idade - disse a senhora Pearson. - Tenho uma fotografia dele. É um menino maravilhoso, mas nasceu sem os braços - disse, mostrando a foto de Freddie. Olharam a fotografia em silêncio, estudando-a. O senhor Pearson olhou para a mulher. - O que você acha, Fran? - Futevôlei. Você pode ensinar futevôlei para ele - a senhora Pearson disse, entusiasmada. - O esporte não é a coisa mais importante. O importante é aprender como usar a cabeça. Ele pode viver sem os braços. Mas nunca sem a cabeça. Pode ir à faculdade. Vamos economizar para isso - o senhor Pearson falou. - Um menino, é um menino - insistiu a senhora Pearson. - Ele precisa jogar alguma coisa. Você pode ensinar. - Vou ensinar. Os braços não são tudo. Talvez consigamos uns braços para ele. Eles se esqueceram de que eu estava ali. Mas talvez o senhor Pearson estivesse certo. Talvez um dia Freddie pudesse ter braços artificiais. Na verdade ele tinha protuberâncias onde os braços deveriam estar. - Então vocês gostariam de vê-lo? Eles me olharam. - Quando podemos apanhá-lo? - Vocês acham que podem querer ficar com ele? A senhora Pearson me olhou. - Se podemos? - ela disse. - Podemos? - Nós o queremos - disse o marido. Olhando para a fotografia novamente, a senhora Pearson perguntou: - Você estava esperando por nós, não estava? - O nome dele é Freddie, mas vocês podem trocar. - Não. Frederick Pearson - o nome combina com o nosso. E assim foi. Houve formalidades, é claro. E, quando marcamos a data para a entrega de Freddie, as luzes de Natal enfeitavam as ruas da cidade e havia guirlandas penduradas em todos os lugares. Encontrei os Pearson na sala de espera. Em seus casacos, uns flocos de neve. - Seu filho já está aqui - lhes disse. - Vamos subir, que vou trazê-lo para vocês. - Estou nervosa! - disse a senhora Pearson. - E se ele não gostar de nós? Pus a mão sobre seu braço. 122 123 - Vou apanhá-lo - eu disse. A pessoa encarregada de Freddie o vestira com uma roupa nova, branca, com um ramo de azevinho e frutinhas vermelhas bordados na gola. Seu cabelo brilhava, um monte de cachos escuros. - Para casa - Freddie me disse, sorrindo, quando a encarregada o colocou no meu colo. - Eu disse isso a ele. Disse que ele estava indo para sua casa nova - ela falou. Ela o beijou, os olhos cheios de lágrimas. - Até logo, querido. Seja um bom menino. - Bom menino - disse Freddie alegremente. - Para casa. Levei-o ao andar de cima, até a sala onde os Pearson estavam esperando. Quando cheguei, coloquei-o no chão e abri a porta. - Feliz Natal - eu disse. Freddy deu uns passos cambaleantes, sem muito equilíbrio, olhando firmemente para as duas pessoas à frente dele. Os Pearson ficaram maravilhados. O senhor Pearson se apoiou em um dos joelhos. - Freddie, venha cá. Venha aqui com o papai. Freddie olhou para trás, me procurando. Mas logo se virou e andou devagar até eles, que abriram os braços e o envolveram carinhosamente. ABBIE BLAIR Uma boa ação - a mitzvah Era o outono de 1945 e voltei a Viena com as primeiras tropas americanas de ocupação. Estivera lá três meses antes como intérprete de alemão numa missão especial destinada a negociar a divisão da cidade em quatro zonas de aliados, parecido com o que fora feito em Berlim. Eu era fluente em alemão porque, apenas seis anos antes, emigrara de Berlim para os Estados Unidos. Assim que foi possível, me alistei no Exército americano para servir meu novo país e estava orgulhoso em vestir seu uniforme. Numa sexta-feira à noite, sentindo saudades de casa, dirigi-me à única sinagoga que restara em Viena para assistir à cerimônia. As pessoas que vi ali davam pena. Cerca de cinqüenta homens e mulheres, magros e pobremente vestidos. Falavam com sotaque ídiche e presumi que eram remanescentes de prósperas comunidades judaicas da Europa, agora reunidos naquele lugar, separados do resto do mundo. Quando viram meu uniforme americano, todos se reuniram à minha volta para ver um soldado amigo numa sinagoga. Para surpresa geral, eu era capaz de conversar com eles em ídiche fluente. 124 125 Enquanto conversávamos, percebi que minhas suspeitas estavam certas. Aquelas pessoas eram sobreviventes do Holocausto, que tinham se reunido na sinagoga para ver se podiam achar alguém, qualquer pessoa, que pudesse dar notícias de um parente ou amigo que também tivesse sobrevivido. Como não havia nenhum correio civilizado da Áustria para o resto do mundo, essas reuniões eram a única esperança para os sobreviventes terem notícias de suas famílias. Um dos homens timidamente me pediu se eu poderia fazer a gentileza de mandar uma mensagem para um parente na Inglaterra, que ele sabia estar vivo. Eu sabia que o correio militar não é para enviar cartas de civis, mas como podia dizer não? Aquelas pessoas, que literalmente tinham vivido o inferno, precisavam que parentes preocupados soubessem que elas tinham sobrevivido. Quando concordei, todo mundo queria mandar uma mensagem. Cinqüenta mensagens eram muito mais que uma: eu tinha de pensar rápido. Anunciei, então, que voltaria à sinagoga na próxima sexta-feira à noite e receberia mensagens curtas escritas em inglês, alemão ou ídiche, colocadas em envelopes abertos. Se as cartas preenchessem tais requisitos, eu as mandaria pelo correio do Exército. Na semana seguinte, como prometera, voltei à sinagoga. Quando abri a porta, fiquei chocado. O lugar estava lotado, cheio de pessoas que correram em minha direção, me estendendo seus envelopes. Eram tantos que tive de pedir a alguém para me arrumar uma caixa para colocá-los. Passei a semana seguinte verificando cada mensagem por razões de segurança, me certificando de que continham apenas o permitido. Então mandei as cartas para o mundo inteiro. Eu me senti maravilhosamente bem em saber que aquelas talvez fossem as primeiras notícias para a maioria daqueles parentes, comunicando que as pessoas que amavam tinham sobrevivido aos horrores do Holocausto. "Uma boa ação, uma pequena mitzvah" - pensei. Passou-se cerca de um mês. Aquilo tudo já estava se dissolvendo na minha mente quando o "carteiro" do Exército de repente entrou tropeçando na minha sala, carregado com sacos cheios de pacotes. - O que está acontecendo? - ele perguntou. Os pacotes que ele colocava no chão vinham de todos os lugares, endereçados às pessoas que eu encontrara na sinagoga, aos meus cuidados, cabo Arnold Geier. Eu não esperava esse resultado. O que devia fazer? Walter, um colega com quem trabalhara numa equipe de interrogatório, também antigo refugiado da Alemanha, riu quando viu a pilha de cartas. - Vou ajudar você a distribuir as cartas - se ofereceu. O que mais podíamos fazer? Eu guardara uma lista dos nomes e endereços das pessoas que tinham me dado mensagens, então pedi um jipe fechado, equipado para o inverno, e o enchi com os pacotes. A noite e pela madrugada, Walter e eu percorremos as ruas de pedra de Viena entregando pacotes para sobreviventes surpresos e agradecidos. A maioria deles vivia na zona soviética da cidade. Tínhamos de entrar naquela área tarde da noite e as patrulhas soviéticas muitas vezes nos paravam, desconfiadas. Mas 126 127 éramos tecnicamente aliados, de modo que pudemos explicar que estávamos entregando pacotes a sobreviventes do terror nazista e fomos autorizados a entrar, sem problemas. Os pacotes continuaram a chegar por mais uma semana e o volume de correspondência começou a aborrecer os encarregados do Exército. Continuamos com nossas entregas noturnas por toda Viena, mas eu estava preocupado com o descontrole surgido da minha oferta bem-intencionada. Finalmente, uma manhã, nosso comandante me chamou ao escritório. Queria saber por que eu estava recebendo tantos pacotes. Sabendo que o oficial era judeu e assim entenderia minha motivação, decidi dizer a verdade. Admiti ter feito mau uso do correio militar para ajudar sobreviventes e fazer uma boa ação tão necessária. Não esperava que meu simples gesto se transformasse naquilo. Ele me advertiu duramente e então sorriu. - Bem, por essa vez passa - ele disse, me dispensando. As vezes me lembro do caminho que minha boa ação tomou. Sim, eu perdera o controle da situação, mas somente da maneira que acontece com uma verdadeira mitzvah: aumentando e devolvendo o bem realizado, até que tenha preenchido seu propósito. Eu fui o instrumento escolhido para permitir que famílias ansiosas soubessem que aqueles que amavam estavam vivos. ARNOLD GEmER 128 FIM