LUÍS BRAILLE Janelas para os cegos J. ALVIN KUGELMASS Tradução de José Reis Ilustrações de Edgard Cirlin EDIÇÕES MELHORAMENTOS NOTA DO AUTOR São muito escassas as informações publicadas sobre a vida de Braille. As bibliotecas mais antigas, e os museus em que se achavam instaladas algumas delas, foram mais fàcilmente atingidos pelas guerras. Encontram-se alguns dados nos relatórios da Sociedade Real da França, na Biblioteca Nacional de Paris. Existem ainda algumas raras referências em estudos sociais sobre os cegos, publicados no século XIX, e existentes no Museu Britânico, em Londres, na Biblioteca Nacional de Bruxelas, em Roterdão, Francforte, Berlim, Viena, Estocolmo e Marselha. A pequenina aldeia de Coupvray, lugar do nascimento de Braille, inalterada e intocada desde 150 anos, apesar de diversas invasões, proporcionou-nos o ambiente da história. Ainda lá se encontra a oficina do seleiro, assim como o degrau escavado que lhe dava acesso, e no qual o gênio cego costumava assentar-se, quando criança. Dois camponeses, descendentes de primos de Braille, contaram-nos interessantes anedotas que lhes haviam sido transmitidas pelos antepassados. Homens de mãos calosas, que mais facilmente manejam o arado do que as palavras, relataram-nos algo a respeito de seus pais, histórias contadas pelos avós. Pouco se encontra nas grandes bibliotecas dos Estados Unidos. Nada possui a Divisão de Cegos da Biblioteca do Congresso. A braillista chefe de lá, também cega, confessa com tristeza que, naquele país, não se encontra nenhuma pesquisa a esse respeito. "Gostaria de poder ver apenas por um ano, para mergulhar nas bibliotecas européias", diz ela, desesperada. "É urgente escrever uma biografia de Braille". Também escassas foram as informações encontradas em Trente Ans d'Etude et de Propagande em Faveur dês Aveugles - Jules Meshin, Paris, 1908. Dês Sourds: Muet dês Aveugles, de Hubert - M.E. Vallerous, editor Victor Masson, 1853. Ueber den Unterricht der Blinden, de August Zeune. Berlim, 1849 Royal Commission of the Blind, Deaf and Dumb Reports. Editores: eyre and Spottiswoode, londres, 1889. From Homer to Helen Keller, pelo Dr. Richard Slayton, ed. American Foundation for the Blind. É difícil imaginar que um gênio do século dezenove, da estatura e da projeção de Braille, ainda não haja despertado o interesse de nossos biógrafos profissionais. Homens de importância muito menor, de interesse muito menos universal, acham-se entronizados nas estantes dos biógrafos. Mas nenhum escritor, antes da presente tentativa, cuidou de estudar a vida daquele que tão valentemente lutou em sua busca de luz. O biógrafo contemporâneo tem tanto de repórter quanto de erudito de mãos pálidas, talvez possa comparar-se a um geômetra porque, dados dois pontos, pode logo determinar um terceiro. No caso de Braille, essa determinação foi um delicado trabalho de microscopia. Pois ele lá estava, a um século de mim, obscuro, fugidio, desconsertante. O pioneiro no terreno da biografia não precisa pedir desculpas. O mais que pode fazer é recompor, da melhor maneira, os elementos que lhe vêm às mãos para formar um ser tridimensional. Quando faltam elementos, não pode ele, ao contrário do Ser Supremo, cria-los; apenas poderá tentar, desde que o faça com humildade e devotamento. Não sinto vergonha em declarar que saudei com a cabeça o seu busto de olhos cegos, quando me achei diante dele em Coupvray. Devemos reverência a esse Prometeu dos cegos, pois a verdade é que, enquanto escrevo êste livro, milhões de criaturas anônimas estão a homenageá-lo sempre que tocam, com os dedos, a luz que ele criou.. ÍNDICE Trevas pela manhã 11 Acumulam-se as nuvens 18 Move-se o dedo 28 Abre-se uma janela 37 O olhar pousou em mim 46 Mais perto do horizonte 59 A chispa 67 Vejo a aurora 74 Clarão ao meio-dia 80 Trevas, novamente 88 CAPÍTULO 1 TREVAS PELA MANHÃ o pequeno Luís, de olhos brilhantes e castanhos, estava brincando na oficina paterna, indiferente ao cheiro acre que dela se desprendia. À medida que o pai ia manejando de lá para cá a sua faca reluzente, espessas aparas de couro caíam ao chão, em torno dele. Os fragmentos às vezes pareciam meias luas, e outras vezes formavam bonitos triângulos. Na maioria das vezes, porém, não passavam de míseras aparas, sem nenhuma forma especial. Luís tentava ajustar umas aparas às outras. Tinha apenas três anos e por isso a forma, a matéria e a luz eram de grande interesse para ele. E era muito importante fazer o que ele estava tentando, isto é, adaptar um pedaço quadrado a outro, triangular. Era de ver a alegria do pequeno, quando os lados coincidiam mais ou menos. Mas também o interessavam as aparas sem forma definida. Ao seu olhar irrequieto elas pareciam dotadas de mágicas qualidades. Inclinando a cabeça para o lado, imaginava reconhecer rostos, casas e árvores - as coisas, enfim, que lhe eram mais familiares. Sentado na soleira da porta, batida de sol, ele deixava livre a imaginação. O pai, homem enorme, seleiro da aldeia de Coupvray, a poucos quilômetros de Paris, era todo ternura para o filho. Recortava os pedaços de couro, para fazer figuras de cavalos e vaquinhas, de pessoas e de cães. Chegou até a fazer uma pequena imagem de Cristo. Por isso o pequeno Luís possuía uma coleção de brinquedos que punha água na boca da meninada de Coupvray. Ao meio-dia, lá do outro lado do pátio, a senhora Braille chamava o marido e o pirralho para o almoço. De mãos dadas, o Luisão e o Luisinho, como eram conhecidos na aldeia, atravessavam o pátio para ir sentar-se à mesa, onde a esposa servia o almoço, com todas as cerimônias típicas da refeição dos franceses. Após o almoço, pai e filho tiravam uma soneca e depois recomeçavam o trabalho, Luisão fazendo rédeas e selins para os agricultores da próspera localidade, Luisinho enchendo sua imaginação de coisas bem mais importantes. "Meu filho nunca será seleiro", dizia o pai, atirando o pequeno para o ar. "Será sacerdote ou professor". O seleiro era muito respeitado na aldeia. Além de econômico, era um homem piedoso. Amável para com sua esposa Constância, era sempre gentil e acolhedor também para os vizinhos, a quem tratava com toda a polidez. Duas vezes fora indicado para fazer parte do Conselho da Aldeia, e numa dessas ocasiões conseguiu angariar fundos para a compra de um novo sino para a igreja. Era, pelo que se vê, um homem tão talentoso como se pode ser numa pequena aldeia. Constância Braille, sua esposa, nascera na roça e por isso não exibia as faceirices e os ares importantes da esposa do açougueiro, que nascera em Paris. "É verdade que meu marido está bem de vida", dizia ela, "mas também é verdade que somos gente modesta, e eu sou moça da roça". Muitas vezes o vigário da aldeia vinha visitá-los e conversava com Luís a respeito dos problemas locais. Também gostava muito do pequeno, a quem via com bons olhos. "Esse menino possui vida interior", dizia o sacerdote. "Vejam só como ele passa horas brincando sozinho. Deve ter uma rica imaginação". Um dia, porém, não muito depois do terceiro aniversário do pequeno, em 1812, aconteceu uma grande desgraça. Como de costume, o menino divertia-se na oficina paterna. Maria, a filha de um vizinho, quis levá-lo para brincar na lagoa. Mas o pai, alegando que o dia estava frio e que o menino se resfriaria, se entrasse na água, bondosamente pediu que a vizinha deixasse o menino em casa, brincando, como sempre. Nesse mesmo dia o seleiro prometera ao advogado da aldeia umas rédeas para o seu cavalo. O advogado tinha passado cedinho pela casa do seleiro, quando a família tomava o café da manhã, para lembrar que tinha de ir a Paris, a fim de tratar de uma herança. "Minhas rédeas", dissera o advogado, "estão caindo aos pedaços, arrebentam a cada volta da estrada, e além disso não faria com elas boa figura em Paris. Muito apreciaria se pudesse conseguir as rédeas novas, no mais tardar, hoje à tarde". "Pode estar descansado que as receberá hoje sem falta. Eu mesmo as entregarei em sua casa, à tarde", respondera o seleiro. O pequeno Luís sentara-se comodamente na pequena depressão que o passar das pessoas havia cavado na soleira da porta, através dos anos. O pai, por sua vez, aparava as rédeas, molhava-as, apertava-as na mão, esticava-as através das argolas que havia nas vigas do teto. Olhando contra a luz um pedaço de couro, menino julgou ver, no contôrno, a silhueta do pai. Só faltava o cabelo encacheado. Que maçada! Apesar disso, exclamou: "Olhe, papai! O senhor está aqui, no couro! Veja só!" O pai respondeu sem prestar atenção. O pequeno deu uma olhadela ao pedaço de couro e sorriu consigo mesmo. Haveria de colocar os cabelos na cabeça que tanto amava! Dirigiu-se ao banco em que o pai trabalhava, e apanhou uma das pequenas sovelas com que êle furava os arreios. E começou a forçar o contôrno do pedaço de couro. Colocou-o no chão e raspou-o com a ponta fininha. Mas o couro não cedia. O pai estava numa das extremidades do banco, lutando com as rédeas, que procurava espichar o mais possível, antes de enrolá-las em grandes carretéis. Assim, como conseqüência mesma do estiramento sofrido, elas não encolheriam muito quando apanhassem umidade. Mais uma vez o menino olhou o pedaço de couro, para ver se os cabelos já tinham aparecido. Mas qual! A coisa não estava certa! Aproximou, então o couro do rosto, mantendo a sovela bem perto dos olhos, como se fôsse um artista a medir uma perspectiva. E fêz fôrça com o instrumento. Êste resvalou na superfície do couro duro e foi atingir o ôlho esquerdo do pirralho. O menino gritou. O pai deu um pulo e foi correndo ver o que acontecera. "Meu filho! Meu filho!", exclamou, ao ver o sangue, mas não imaginou que se tratasse de coisa séria. Tantas vêzes se tinha arranhado o pequeno! Mas quando olhou mais uma vez para o rosto da criança, soltou um grito de horror. Agarrou o menino às pressas e correu para casa, chamando pela esposa, que logo apareceu à janela. "Que aconteceu, Luis?" perguntou, aflita com o que via. "Que é? Meus Deus, que houve?" "O olho", disse o pai com voz rouca, "o ôlho dele!" constância atirou um lenço sôbre a cabeça, amarrou-o râpidamente e veio correndo ao encontro do marido, rezando à Virgem Maria. Enquanto isso, o pai, ainda com o menino ao colo, montava o cavalo, no qual também ajeitou a esposa, e saiu correndo através dos campos, à procura do veterinário, o único médico da localidade. O maior desespêro do Dr. Horace Duclos era ser apenas veterinário. Estudava quanto podia, e tanto lia as publicações médicas que diziam respeito a cavalos e bois, quanto as que se referiam a pessoas. "Vejamos, vejamos", disse ele aos preocupados pais. "Talvez não seja nada de mais. O olho é um órgão muito resistente, apesar de parecer tão delicado! Vejamos." Procurou estancar o sangue e só ao fim de muitas horas pôde examinar a ferida. Já o dia passara, sem que ninguém comesse. O pequeno estava muito pálido, deitado no divã, chorando baixinho e de vez em quando soltando soluços fundos, que lhe sacudiam o pequenino corpo. Sôbre o olho lesado via-se uma venda preta. Voltou-se, então, o veterinário para os pais do menino: "Que lhes posso dizer, meus amigos? Que hei de dizer-lhes? Não sei nada, só entendo de animais. Mas temo que tenha acontecido o pior. Parece que o nervo ótico foi destruído". E continuou: "Se eu estiver enganado - e certamente estou, pois não sei nada - talvez se salve o outro olho. Um olho tem pouco que ver com o outro, isto eu sei perfeitamente. Vamos esperar uns dias e então veremos o que acontece", aconselhou. Com o menino nos braços, e Constância a pé, caminhando ao lado, o pai cavalgou de volta para casa, o mais devagar que pôde. Em casa, despiram a criança e colocaram-na na cama. Feito isso, o pai montou novamente a cavalo e foi procurar o advogado, para avisá-lo de que as rédeas não poderiam ficar prontas em tempo. "Não se preocupe, Luís", disse o advogado. "Já soube do que aconteceu. Venha comigo a Paris, amanhã, procuraremos um médico meu amigo, que presta serviços à côrte de Napoleão. A pedido meu, ele talvez se disponha a examinar o pequeno". Na manhã seguinte, Constância preparou um farnel para o marido, o filho e o advogado, e os três se foram com destino a Paris levados por dois cavalos pretos. Ao cair da noite chegaram às portas da cidade, cruzaram Pont-Neuf e pousaram numa hospedaria. No dia seguinte o pai esperou diante do Palácio da Justiça, enquanto o advogado tratava de seus casos. Terminada a audiência, partiram todos em busca do famoso Dr. Armand Fontaine. O menino recusara a comida e estava pálido como cinza. Tinha aspecto cadavérico. Os lábios estavam exangues e as dores ainda eram fortes. Agora ambos os olhos se achavam cobertos com um lenço de seda, pois ele se queixava de dor também no direito. A sala de espera estava apinhada de gente importante e de oficiais do exército de Napoleão. Já era noite quando Luís e o filho foram recebidos para a consulta. "Que é que trazem? Um pequerrucho? Ah, ah, isto não é nada. As crianças sempre ficam boas!" disse o médico. Mas quando retiraram o lenço que cobria os olhos do menino, a fisionomia do Dr. Fontaine tornou-se grave. "Nada se pode fazer neste caso. Nada, meu amito", disse ele ao pai. "Só Deus pode criar um outro olho. Eu, nada posso fazer", repetiu. O outro olho também estava fechado. "Dói, menino?" perguntou o médico famoso. O menino disse que sim, com a cabeça. O médico levantou a pálpebra delicadamente, enquanto um assistente segurava uma vela. O olho fixou a chama impassível, gelado, sem piscar. O médico colocou um espelho diante do menino e perguntou: "Que é que você enxerga aqui?" não obteve resposta. "Vamos, vamos! Diga-me o que está vendo", insistiu o médico. "Nada, senhor!" disse o pequeno. "Está tudo preto, então?" murmurou o médico. Mais uma vez aproximou a vela, afagou os cabelos do menino e disse ao pai: "Ainda não posso afirmar mas receio que ambos os nervos óticos estejam destruídos. O senhor não é desses clientes ricos a quem eu trato com protelações e subterfúgios. O senhor é o amigo de meu amigo. Infelizmente sou forçado a confessar que a cirurgia dos olhos é coisa ainda muito mal conhecida. Sabemos tratar melhor as feridas da carne, no campo de batalha, do que as outras doenças", afirmou tristemente. "O pouco conhecimento que temos do ser humano tem sido obtido por uma série de tentativas e de erros, feitas, na maior parte, nas vítimas da guerra. Sabemos amputar uma perna e tratar a ferida produzida por uma bala, mas pouco sabemos das outras coisas. Posso dizer-lhe seguramente, meu amigo, que uma lesão dos olhos tem de ser deixada a si mesma. Se sarar, agradecemos a Deus Todo Poderoso. Se não sarar, continuamos a bendizê-lo". O pai olhou desconsolado para o médico. "Que vamos fazer? Que devo fazer? Pagarei tudo o que quiserem", disse. "Não se trata disso, retrucou o médico, gentilmente. "Não é o dinheiro que resolve a questão. Confie em Deus. Isso é o mais que posso recomendar. Com toda a franqueza, reconheço que nada posso fazer. Espere umas duas ou três semanas, para vermos se o olho direito sara. O esquerdo, posso garantir, está perdido". O pai levou o filho de volta a Coupvray e durante todo o longo percurso foi conversando baixinho com ele. O instinto levava-o a descrever com minúcia todos os acidentes do caminho, através dos campos. "No alto daquela árvore há um passarinho pousado", disse ao filho, que se mantinha mudo sôbre o selim, em frente ao pai. "O passarinho está procurando a companheira. Ouve só como êle chama..." O menino ouvia confusamente. A dor ainda era muito forte e por suas faces rolavam lágrimas. O pai não podia deixar de recriminar-se tristemente. "A culpa foi minha! Minha! Nunca poderei perdoar-me a mim próprio!" Quando chegaram à casa, o pai ainda estava conversando com o pequeno. "Chegamos. Aqui está a nossa casa. Ali está a lagoa, brilhando ao sol. E a oficina... Ah, vou fazer uma porção de brinquedos maravilhosos para você..." Constância veio correndo de dentro de casa tôda caiada de branco. Da chaminé saía um rôlo de fumaça e o ar estava impregnado com o cheiro convidativo do assado. Ela preparara uma festiva recepção. "Que novidades trazes, Luís? Que é que o médico disse?" perguntou. Mas suas faces empalideceram quando o marido sacudiu,lentamente, a cabeça. "Não posso falar diante do pequeno", avisou o pai. "Não diante do menino!" Constância cobriu o rosto com o avental e entrou chorando em casa. "Ah, porque não aconteceu a mim essa desgraça? Virgem Santa, por que não fui eu?" Nos dias seguinte a dor foi declinando e acabou por desaparecer. Os vizinhos vieram visitar e trouxeram doces e geléias. O vigário trouxe uma garrafa de seu melhor vinho. "Este vinho retempera. Há de devolver ao menino o sangue que ele perdeu. Há de dar-lhe forças", disse o vigário. O sacerdote sentou-se na cama do menino e conversou algum tempo com ele. O pequeno sorriu e bebeu um pouco do vinho. "Veja, ele já está se sentindo melhor", exclamou o vigário."Meu vinho e a Virgem Maria hão de fazer maravilhas", exclamou. Até o pai criou alma nova quando o menino sorriu. "Veja, ele está rindo!" disse Constância. "Olhe só, ele está melhor!" Ao fim de uma semana já não tinham dúvida: o menino ficara completamente cego. Nunca mais veria. "Não desesperem", disse o advogado. "Não desesperem", disse o vigário. "Não desespere", disse o mestre escola. "A vista já foi recuperada outras vezes e ele ainda é muito novo", disseram todos. Mas as semanas passaram, o menino melhorou de saúde, os olhos cicatrizaram e a vista não retornou. Então o pai, homem decidido, e que sabia reconhecer quando é que as coisas eram determinadas por Deus, tratou de fabricar uma bengalinha para o filho. O pequeno estava cego e por isso precisava de uma bengalinha. CAPÍTULO 2 ACUMULAM-SE AS NUVENS Durante toda a sua meninice Luís Braille nunca pôde sentir o vento em seu rosto, o sol em sua cabeça, o trinado dos pássaros, tudo enfim que existe fora de casa, sem ao mesmo tempo os associar ao incessante bater de uma bengala. A medida que ia crescendo, a bengala crescia com ele, pois sempre que o corpo se tornava alto demais para a bengala, o pai, já agora completamente encanecido, fabricava outra. Uma vez, durante a confissão, o pai, chorando, disse ao sacerdote:"É a minha maldição, a minha cruz. De seis em seis meses sou obrigado a relembrar o meu pecado, ao ter que fazer uma bengala nova para o menino". "Pois saiba que seu filho é feliz por ter pais tão devotados", respondeu o vigário, gravemente. "É a vontade de Deus", disse a Constância, quando ela veio procurá-lo, chorando. "Deus não quer que chore tanto. Isso não é bonito". Enquanto isso, o pequeno Luís ia-se acostumando fâcilmente à sua vida de trevas. De vez em quando sentia uma dor pungente nos olhos. Outras vêzes recordava a forma das árvores, o aspecto das nuvens que corriam céleres pelo céu, a silhueta das colinas próximas da casa, enfileirando-se para formar o vale, o rosto materno, o interior do seu quarto de dormir. Mas quando chegou aos sete anos, segundo relatou depois, essas lembranças de forma, sombra e luz foram-se confundindo com sensações e contornos de sua própria criação. "Que é a dor?" perguntava êle, mais tarde. "Não existe resposta. Pois é isto o que eu quero dizer por lembrança de minha meninice. Sei o que se quer significar quando se fala em côr, mas não posso vê-la dentro de mim. Sei perfeitamente que existe a côr, mas ela não passa de ilusão, que vivo a perseguir eternamente". Todas as manhãs, às oito horas, o pai tomava-o pela mão e lavava-o, pelos caminhos da colina, até a escola, que tinha uma única sala de aula. "Que te parece o tempo hoje?" perguntava ao menino, que caminhava batendo a bengalinha ao longo do caminho duro de frio. "Que tal o tempo?" "O vento está suave, papai", respondia o menino. "E também sinto que está úmido. Deve vir chuva. Diga-me como está o céu". Na aula, davam-lhe o primeiro lugar, no banco da frente. O mestre confessava não compreender como é que o pequeno aprendia a aritmética e a geografia, tais como eram ensinadas naquele tempo. "Ele se inclina para a frente, em sua carteira, e ouve com toda a atenção. Pode-se ver sua mente assimilar, apanhar as coisas. Depois recosta-se e começa a classificar o que aprendeu. Sim, podemos vê-lo classificando as coisas em sua cabeça". Os tempos de então eram fatalistas. O mundo não era, pròpriamente, cruel, mas apenas indiferente. Os inválidos eram tidos como amaldiçoados por Deus. Os fortes e os inteligentes tinham de lutar duramente, para viver e o resto... Bem, o resto que se arranjasse! A Igreja falava da vontade de Deus; o govêrno encolhia os ombros, e os infelizes tratavam de arranjar-se da melhor forma que pudessem. Os aleijados tornavam-se mendigos. Os loucos eram considerados verdadeiro trambolho, e o govêrno achava que só tinha obrigações com os fortes. É verdade que os homens já começavam a duvidar de que assim devesse ser, mas essas dúvidas eram abafadas pelo ruído das guerras, que eram quase constantes. Por essa razão os Braille trataram de garantir da melhor maneira possível o futuro do menino. "Ele precisará de tudo aquilo que possuímos", concordaram. E por isso o pai dedicou-se à tarefa de ajuntar dinheiro e a mãe tornou-se ainda mais econômica. Procuravam guardar o mais possível para o pequeno. "Quando morrermos, ele precisará de muito dinheiro", diziam. O pessoal da aldeia era bondoso. "Aí vem o Luisinho", diziam assim que ouviam o bater de sua bengalinha. Cavavam pequenos sulcos na estrada, a fim de que ele achasse fâcilmente o caminho da escola. Marcavam a estrada que levava à lagoa, para que o pequeno achasse fàcilmente o caminho e pudesse ir sentar-se ao sol e ouvir os companheiros brincar. Tap, tap, tap... a bengalinha ia vencendo a estrada. Tantas pancadinhas até a árvore grande. Tantas outras até a lagoa. E tantas outras mais, para a esquerda, até a casa da tia. Os olhos do pequeno Luís estavam agora na ponta da bengala. Mas, como ele explicou mais tarde, foram as batidas que ficaram em seu espírito e o conduziram à teoria dos "pontos batidos", que tanto haveria de significar para o mundo. Às vezes os meninos de sua idade procuravam-no para brincar. Mas ele percebia muito bem o embaraço que sentiam sempre que imaginavam um brinquedo do qual não pudesse participar. Também percebia que, em breve, eles o esqueceriam completamente. Acompanhava os seus gritos e a maneira pela qual se escondiam e se procuravam, nas colinas próximas. E procurava imaginar-se a si próprio brincando de esconder, mas na verdade o mais que podia fazer era servir de juiz para os outros meninos. Seu rosto mostrava precoce maturidade. A benevolência nele mostrou-se muito antes do que costuma, ou do que é necessária, e em torno de sua bôca formaram-se duas pregas muito antes que a experiência lhe formasse rugas no rosto. Seu corpo era fino e sua face, pálida. Fêz-se grande amigo do vigário, com quem conversava horas a fio a respeito de histórias bíblicas. "Seu filho está predestinado", dizia o sacerdote ao pai. "Está destinado a alguma coisa que não posso prever. Juro, meu amigo, que vejo uma missão em sua vida. Repare em como os amigos se submetem a êle, embora se esqueçam depois. Veja como êle se senta, com a bengala entre as pernas, e anima os companheiros. Em algum lugar precisam dêle. Em tudo isso há, afinal, uma graça divina". A mãe, entretanto, não via outra coisa senão o pequeno corpo gasto. "Só tenho um filho e êle não viverá muito tempo comigo", dizia. "Ele tosse e emagrece. Além disso, é cego. Não, estou enganada! Êle não é cego, mas cegado", ajuntava com amargura. Com trinta anos, pai e mãe achavam-se muito envelhecidos. Não podiam fazer bastante pelo menino. Mas, êste, no jantar, procurava tranqüilizá-los. "Sinto-me perfeitamente bem. Gosto de ser cego. Gosto de estar só comigo mesmo". Ocasiões havia em que sua maturidade os assustava. "Ele tem só nove anos e conversa com o vigário sôbre coisas de que nunca ouvimos falar", diziam os vizinhos. "Para onde irá, quando não mais vivermos? Que fará? Quem tomará conta dêle?" Luís dava grandes passeios sòzinho. Atirava-se ao chão e procurava tocar a terra, acariciando as ervas rasteiras. Às vêzes tateava os pobres olhos e exclamava:"Não, não! Mil vêzes não!" O pobre Dr. Duclos procurava explicar aos pais. "É preciso que vocês se lembrem de que êle não nasceu cego, mas tornou-se cego. O choque é muito forte e pode durar tôda a vida. Tenho visto cavalos que ficaram cegos em conseqüência de incêndios ou outros acidentes; êles correm pelos campos, desnorteados, esfregam a cara contra a palha, voltam-se de repente como se alguma coisa estivesse atrás dêles. Os camponeses matam-nos porque não os compreendem e, além disso, porque ficam inutilizados para o trabalho". "Durante tôda a sua vida o pequeno há de comportar-se como os meus pobres doentes, os cavalos. Durante a vida tôda êle procurará sua vista perdida. Não passo de um veterinário, mas sei que a perda de um sentido não pode ser aceita com facilidade. Êsse menino comporta-se, porém, de maneira diversa, porque é diferente.Êle sempre há de procurar a luz". Os pais não o compreendiam, não sabiam como proceder em relação ao filho cego e brilhante. Êste é que parecia tratá-los como crianças, zombando dêles quando os via preocupados a seu respeito. "Papai, o senhor trabalha demaiss", dizia o menino por volta das cinco horas. "Pare de trabalhar e vamos dar um passeio pelos campos!" O pai tirava o avental de couro e saía a passear com o filho. Nunca o abandonava o sentimento de culpa pelo que ocorrera há anos. E por isso procurava satisfazer todos os desejos do filho, e adivinhar tôdas as suas necessidades. E como procurava compreendê-lo! Passeava com êle horas a fio, ouvindo-o falar de coisas que estavam inteiramente fora de suas preocupações. Respondia, da melhor maneira possível, às perguntas sôbre os componentes físicos da vida que se desenrolava fora dos olhos cegos do menino. Embora sem poder compreendê-lo, o pai tornou-se cada vez mais achegado ao filho e reconheceu, ainda que vagamente, que êle possuía um temperamento estudioso e introspectivo. Muitas vezes procurava o sacerdote para dissipar, por meio de uma conversa, a sua confusão. "Padre, ele é tão poético! Fala de coisas que não entendo. Estará triste?" perguntava desesperado. "Estará triste? Será por isso que fala de maneira tão distante?" o sacerdote fumava durante algum tempo o seu cachimbo de barro. "Não cabe a nós compreendê-lo. Deixemos que siga o seu caminho. Se sente coisas que não compreendemos, isto é lá com ele. Faça o que puder como pai e deixe o resto a Deus, que tratará de sua salvação. Seja paciente. Deixe que êle encontre o próprio caminho. É moço ainda!" tirava mais algumas baforadas e continuava: "Deus sempre age de estranhas maneiras. Quem sabe? Não posso dar-lhe conselho. Você tem sido um bom pai e Constância uma excelente mãe. E isso é tudo o que Deus exige de vocês. Que mais pode exigir de si próprio?" Naqueles tempos os cegos não iam à escola e eram ensinados para viver como mendigos profissionais. Em muitos casos, na Europa e na Ásia, eles eram expulsos de casa, quando ainda meninos, pois eram tidos como sêres malditos, ou então alugados para pesados serviços de carga. Na maioria das vêzes o cego era vendido a uma fábrica, na qual, durante toda a vida, padejava carvão e dormia no chão, ou então amontoava pilhas de estêrco para os que negociavam nessa mercadoria. Não havia leis sôbre os cegos, mas era certo que êles não faziam parte da humanidade e não podiam prestar serviços remunerados. Eram verdadeiros párias. As revoluções americana e francesa, que deviam espalhar os sentimentos de igualdade entre os homens, e que tinha ocorrido há pouco, ainda não haviam conseguido impor todos os seus objetivos. Muitos cegos logravam ganhar um parco sustento, ingressando em companhias de palhaços. Iam de uma cidade a outra, através da Europa, ridicularizando sua própria infelicidade e assim provocando o riso alheio. As pessoas achavam graça, não porque fôssem mais cruéis que as de hoje, mas porque ninguém lhes ensinara que a invalidez deve ser lamentada e que os desgraçados devem ser ajudados. Nem mesmo os governos tinham aprendido isso. Era comum, por exemplo, encontrar nas feiras um bando de cegos, de chapéu pontudo, que formavam uma orquestra muda. O maestro agitava no ar um pedaço de cabo de vassoura diante de uma fôlha de música, ao mesmo tempo que os outros cegos estufavam as bochechas ou fingiam tocar, com pedaços de pau, violinos sem cordas. Os transeuntes atiravam moedas quando o maestro batia os componentes da orquestra com seu pau de vassoura. O ato, realizado com a maior solenidade, à qual se ajuntava o efeito do silêncio, produzia grande hilaridade no público. Não havia nada de mau nesse procedimento. Tal acontecia porque ainda não se tinha nenhum meio de integrar os cegos na sociedade, de arranjar recursos com os quais pudessem ganhar a vida. Nas casas de família, em que todos trabalhavam para viver, eles representavam uma bôca a mais para alimentar, e freqüentemente a comida não dava nem para os que tinham emprêgo. Assim, os cegos se tornavam, na maior parte, mendigos profissionais. Muitos morriam de fome e frio. Os policiais das maiores cidades européias encontravam tôdas as manhãs uma porção de pessoas mortas de frio ou fome. Era um espetáculo banal, cuja crueldade a ninguém impressionava. Não havia lugar para os cegos, eis tudo! Não havia nada que êles pudessem fazer. Ao chegar à idade de dez anos, Luís pediu aos pais que o matriculassem numa escola para cegos, que havia em Paris. "Quem já ouviu dizer que uma criança cega vá à escola? Você está doido?" perguntou o pai. "Está louco, meu filho!" E para tranqüilizar o menino, disse orgulhosamente: "Não tenha receio, que você não será mendigo". "Estamos guardando dinheiro para você, e o vigário com certeza há de ajudá-lo a achar alguma colocação na igreja. Mas de que servirá uma escola para cegos? Que espécie de escola é essa? Que loucura, meu filho!" Mas o pequeno não estava louco. O advogado havia lhe falado a respeito da escola, que recebia meninos cegos, filhos ou parentes da aristocracia ou da nova e rica, burguesia. "Papai", disse o menino, "Papai eu lhe suplico! Os cegos são as criaturas mais solitárias do mundo! Aqui eu posso distinguir um pássaro do outro, pelo canto. Posso reconhecer a entrada da casa, pela trave de cima, porém jamais poderei aprender o que existe fora do meu ouvido e do meu tato. Só os livros podem libertar os cegos". "Mas, meu filho, não há livros para os cegos!" disse o pai confuso. "Existe, existem!" exclamou o menino. "Na escola de Paris há livros para os cegos. O advogado disse que lá existem livros!" o pai conversou com o advogado. Tudo era verdade. Os livros eram esquisitos, é certo mas na escola dae Paris, os filhos dos ricos podiam ter livros, por piores que êstes fôssem. "Que mais pode você dar ao seu filho? Por que não tentar? Disse o advogado com toda a seriedade. "Você tem dinheiro!" Naquele tempo os aristocratas que, por doença ou acidente, ficavam cegos, recebiam pequenas pensões com as quais podiam levar uma vida modesta. Não lhes era permitido casar e não passavam de meros organismos que tinham a felicidade de ter parentes ricos, que dêles pudessem cuidar. Poucas razões parecia haver para dar instrução aos cegos e para ensiná-los a ler e escrever, quando mesmo as pessoas que tinha saúde, na maioria, não sabiam fazer essas coisas. Assim, nem os ricos viam motivo para dar instrução aos cegos. A escola parisiense que o pequeno Luís desejava freqüentar era o "Institut Nationale des Jeunes Aveugles", o Instituto Nacional para os Menores Cegos. Não quer issto dizeer que houvesse um instituto semelhante para os cegos idosos. De modo algum. A escola fôra fundada por um esquecido pioneiro, Valentin Haüy, em 1784. herdeiro de grande fortuna e, ao que parece, pessoa de grande sensibilidade, Haüy ficara muito impressionado com o espetáculo de uma orquestra muda de cegos, que vira numa feira dos Balcãs. Jurou dedicar-se aos cegos. Estudando o assunto, verificou que êstes têm muita habilidade nos dedos, são muito sensíveis à música e dotados de grande piedade. Em 1780, Haüy comunicou à sua mãe que desejava empregar tôda a sua herança e sua vida na tarefa de melhorar as condições de vida dos cegos. "Estou perfeitamente a par da falta de humanidade por parte dos humanistas", escreveu ele. "Aqui assistimos ao espetáculo da condenação de milhares de pessoas, já bastante infelizes por não possuir um dos sentidos, à sorte das que não possuem nenhum dos sentidos". Referia-se aos reprováveis métodos usados em relação aos loucos. "Há aqui um grande desperdício, que procurarei vencer", acrescentava. Haüy passou a ser olhado como um jovem excêntrico, quando resolveu fundar a escola e obteve a necessária licença oficial. A escola não se parecia muito com uma escola, nem mesmo com o que se conhecia por escola, naqueles tempos. Nela se matricularam doze estudantes, vindos dos porões atulhados do velho bairro de Paris, em que Haüy adquirira um edifício decrépito. Não encontrando professôres adequados, Haüy cometeu o erro de aceitar para êsse mister pessoas até então empregadas em hospícios, para tratar dos loucos. Um dia encontrou um dos seus auxiliares batendo num dos cegos e por isso decidiu tomar conta, pessoalmente, da escola. Os amigos zombaram dêle, mas não conseguiram demovê-lo de seu propósito. Mudou-se para a escola, passou a comer a mesma comida de seus pupilos e a interessar-se pela sua educação. O outrora alegre parisiense tornou-se um visionário social. A primeira cartilha que compôs era uma coisa verdadeiramente comovedora, segundo ele próprio confessou. "Mesmo que meus alunos consigam aprender a ler e escrever, que farão depois?" pensou. Mas resolveu a dúvida e lançou o tema de sua misericórdia pessoal: "Não devo ocupar-me com o que venham a fazer depois. Minha obra estará plenamente realizada se conseguir abrir um caminho que ponha os cegos em contato com a vida que os cerca". E ajuntou, com tôda a sabedoria: "Alguém os levará daí por diante". A princípio o método de ensino era difícil e desencorajador. Haüy fabricou letras, com varetas trabalhadas com a maior dificuldade. Com essas varetas, algumas das quais tinham nada menos de 15 centímetros de comprimento, os alunos puderam aprender as vinte e seis letras do alfabeto. Haüy cortava as varetas e fabricava as letras. Depois escolhia frases simples, como pro exemplo esta: "Meu nome é Valentim Haüy", e construía toda uma sentença, que era pendurada numa armação que ia de um lado a outro da sala. Tateando desajeitadamente ao longo desta, os estudantes iam reconhecendo letra por letra formando palavras. Haüy, que era antes um incentivador e um trabalhador social do que um professor, trouxe os seus amigos à escola e fêz que eles contribuíssem para a sua manutenção. Vendo os estudantes tatear o caminho através da sala e decifrar a sentença, ficaram entusiasmados. "É uma coisa incrível! Extraordinária!" disseram, enquanto aspiravam com força suas almofadinhas perfumadas, para evitar o cheiro que vinha da cozinha próxima. Nos círculos oficiais Haüy era considerado como um perturbador da ordem, produto da revolução francesa, ávido de abruptas reformas. "Quer ir contra Deus" disse o responsável por um grupo de cegos. "Êle é contra Deus, pois qual a utilidade de ensinar os cegos...a ler?" Em pouco os críticos descobriram que os alunos do Instituto apenas podiam ler nas varetas do mestre, e murmuraram: "Será que Haüy pretende fazer livros com varetas? Isto é ridículo!" disseram. A verdade é que o método das varetas não durou muito. Certo dia, um dos alunos da escola, que também servia de porteiro, recebeu o cartão de um amigo de Haüy. "Diga-lhe que eu o procurei", recomendou o visitante, com altivez. O ceguinho apertou o cartão, para não perde-lo. Quando Haüy chegou à escola tarde da noite, o estudante ainda estava esperando por ele. "Um amigo seu esteve aqui, Mestre. Aqui está o seu cartão". Haüy dispensou-o com uma palavra gentil, mas o estudante acompanhou-o até o quarto. "Mestre", disse, "o senhor apertou o cartão?" "Que é que você quer dizer?" perguntou Haüy, amàvelmente. "Desculpe minha impertinência", disse o estudante, "mas o cartão é impresso em alto relêvo e eu pude perceber as letras. Quem sabe se será possível fazer letras assim, para a leitura dos cegos? Isto é o que eu queria dizer..." Haüy não precisava de maiores informações. Percebeu perfeitamente a idéia. Como disse mais tarde, só necessitava de um lugar onde pudessem reunir-se as pessoas interessadas no problema, que seria imenso e que só desse modo poderia ser resolvido. E foi assim que, não muito antes de Braille ingressar na escola, surgiu a impressão de livros em relêvo. O novo método revolucionou o curso do ensino, pois permitia fazer letras quase do tamanho normal. É verdade que elas tinham uma polegada de altura, e era preciso imprimir não apenas sentenças, mas parágrafos inteiros! Haüy conseguiu que lhe fabricassem tios móveis, que permitissem imprimir grandes letras, do tamanho das usadas nas manchetes dos jornais de hoje. Os tipos eram gravados fundamente, para calcar bem o papel. Do outro lado dêste, a letra aparecia em relevo, e os estudantes podiam estudá-las uma a uma, separadamente. Ao fim de dois anos o Instituto já tinha o aspecto de uma biblioteca, embora possuísse apenas três livros. É que cada livro era dividido em vinte parte, cada uma das quais pesava 10 quilos. O custo era enorme, mas Haüy não olhava despesas. A escola, agora, já era uma verdadeira escola. Tinha livros de ensino, e contava com vinte alunos, que podiam aprender a ler, mas não, naturalmente a escrever. A essa escola é que veio ter Luís Braille, acompanhado por uma velha arca, a mesma que a mãe usara quando deixara a aldeia natal, para casar-se. O pai carregou a mala para dentro da escola, cumprimentou Valentin Haüy e entregou-lhe o filho pálido e cego. "Peço-lhe disse, tropeçando nas palavras, "peço-lhe, por favor... ele é um menino muito sensível... Imploro... Haüy apertou-lhe as mãos. "Não tenha receio. Faremos o mais que pudermos por ele". Os outros estudantes ajudaram Luís a levar a mala para o andar de cima. E todos o cumprimentaram, com apertos de mão. Após o jantar, que consistia em ervilha e mingau de aveia, Luís foi acompanhado pelos companheiros até o quarto em que devia dormir. Não era como o seu dormitório de Coupvray, mas sentia-se em casa. Em tôrno de si só havia cegos como ele próprio. "Vim para casa", disse êle a Haüy, sorrindo. Não dormiu bem aquela noite, conforme relatou mais tarde. Não sabia exatamente onde estava, onde era o banheiro, onde se achavam suas roupas. O pequeno quarto era frio e indiferente. Chegavam até êle os ruídos do tráfego parisiense, os estranhos sons das rodas a bater no calçamento. Podia ouvir o barulho dos cascos dos cavalos. A vida chegava até êle em sílabas sonoras. O ouvido era tudo. Sòmente o som tinha importância. Havia cheiro, havia tato, havia gôsto, mas o som era o mais importante de tudo. Êle ia aprender a compreender o tato e a transformá-lo em janelas para os cegos, mas isto sòmente após muita derrota e muita agonia, a maior parte delas no próprio Instituto a que chegara como ceguinho assustado e solitário. CAPÍTULO 3 MOVE-SE O DEDO Luís adaptou-se à nova vida, fora do lar, com o desembaraço de um menino muito mais velho. Em pouco tornou-se popular entre os companheiros cegos, na maioria naturais de Paris. Contava-lhes as lendas do campo, ao passo que eles lhe relatavam coisas jamais sonhadas a respeito da vida citadina. O pálido menino, minado por tosse incessante, que haveria de matá-lo prematuramente, sentia-se no seu elemento. "Eu tinha a sensação de estar em casa", escreveu ele mais tarde. "Convivia com pessoas que sofriam do mesmo mal e não encontrava, a todo instante, aquêle paralisante embaraço que os que vêem revelam diante de nós. Estava entre irmãos", disse com toda a simplicidade. O dia era dos mais estimulantes, para ele, que deixara o limitado ramerrão do lar. E o ambiente também era mais saudável. Não mais era uma criatura segregada; agora podia participar de tôdas as atividades dos companheiros. A matrícula e a pensão eram gratuitas para as pessoas pobres, incapazes de pagá-las. Quando perguntado sôbre se poderia pagar 75 francos mensais pela pensão e pela educação do filho, o pai do menino ofereceu-se para pagar até mais. "Talvez exista aqui algum menino cujos parentes não possam ajudá-lo. Gostaria de auxiliá-lo", disse Braille, desajeitadamente. "Não passo de um pobre seleiro, no que se refere à riqueza, mas só tenho êsse filho", continuou, passando a mão pelo cabelo negro do menino, que volveu para o pai, orgulhosamente, o rosto cego. Haüy recusou a oferta de auxílio e convenceu Braille de que seu filho seria muito bem tratado, convidanddo-o ao mesmo tempo a retornar a Paris, sempre que desejasse, para visitar a escola. Os alunos recebiam de manhã cedo uma alimentação muito simples, após a qual se reuniam na sala de aula, em forma de anfiteatro, semelhante às salas de operação dos hospitais. Dispunham-se em fileiras circulares, cada qual mais alta que a precedente. O mestre ficava em baixo. O professor batia as mãos e logo apareciam dois serventes, com os gigantescos livros impressos em relêvo, os quais, de tão grandes eram montados em plataformas. Os principiantes, como Luís, aprendiam primeiro o alfabeto. Os mais adiantados eram, à tarde, divididos em grupos. Mas todos se reuniam na mesma sala. A escola, como acontecia com tôdas as daquele tempo, era dirigida com disciplina militar. Os serventes, recrutados, em geral, na escória de Paris, não eram muito amáveis para com os cegos. Furtavam quanto podiam das pequeninas coisas que os parentes ou amigos traziam para os meninos. No segundo dia, quando Luís estava em seu quarto, vazio como cela, ouviu passos abafados na soleira da porta. Percebeu que alguém mexia em suas roupas. Ficou tão assustado que não pode pedir auxílio ou emitir uma única palavra. Afinal os passos se afastaram e, com êles, tinham desaparecido uma galinha assada e uma torta, que a mãe havia preparado para o menino. Êste jamais esqueceria o furto. Era seu primeiro contato com o mundo exterior, fora da forte e amável proteção do pai e dos ternos cuidados da mãe. "Percebi, então, que os cegos são prêsa fácil de todos os que queiram aproveitar-se deles. São desvalidos", escreveu aos 14 anos de idade. "Talvez os cegos devam ensinar ao mundo a piedade que lhe falta", escreveu numa carta ao vigário. E que de fato faltava piedade ao mundo, descobriu êle ao sair com os companheiros. Logo de início fizera amizade com um menino, dois anos mais velho que êle. Êsse pequeno chamava-se Jean d'Anjou, parente longe da aristocrática família D'Anjou, e recebera a incumbência de ajudar Luís a adaptar-se à escola. Jean ficara cego em conseqüência de uma queda, quando tinha nove anos. Sua mãe, dama da alta sociedade parisiense, achou que o filho cego era intolerável sobrecarga e ficou muito contente quando Haüy se ofereceu para recebê-lo em seu instituto. Jean afeiçoou-se logo a Luís, quando êste pediu que lhe contasse como era seu rosto. Jean explico:"Meus cabelos são encacheados, mas meu nariz é feio. Apalpe só, aqui..." "De fato, o nariz não é dos mais bonitos...", concordou Luís. "Sou mais ou menos rico e, tanto quanto me lembro, meus olhos são castanhos. E no meu rosto existe uma verruga. Quase todos os membros da família d'Anjou possuem uma verruga assim. Ponha o dedo aqui..." Luís sentiu com o dedo a verruga. "Oh, é uma verruga muito distinta!" disse êle. Os meninos riram e ficaram amigos logo nesse primeiro encontro. No terceiro dia Jean convidou Luís para um passeio. "Posso andar sòzinho na rua e sei achar o caminho de casa, como um pombo correio", explicou. Segurando a mão de Luís, Jean meteu-se com ele no meio do barulhento tráfego. Dentro de sua treva, Luís ficou aterrorizado, não sentindo junto de si a forte mão paterna. Jean era uns sete centímetros mais alto que êle, e caminhava com uma segurança tal, que fazia inveja ao jovem provinciano. Jean gostava de conversar. "À esquerda existe ma boa padaria. Quando seu pai vier, você deve trazê-lo aqui e pedir que êle compre doces cobertos. São deliciosos. Infelizmente, não tenho mais nenhum". Luís disse, então, que possuía alguns francos, que o pai lhe dera. "Vamos comer uns doces!" Grande aventura foi, para êle, entrar na loja, com a mão agarrada à do amigo, e pedir doces cobertos, com voz firme. "Quer dos azuis ou dos côr-de-rosa?! Perguntou uma voz feminina. "De ambos", retrucou Luís, estendendo a mão cheia de moedas. "Isto basta", replicou a mulher, escolhendo algumas moedas e devolvendo as outras. "Isto basta! Eu não enganaria um pobre ceguinho". Durante tôda a sua vida Luís haveria de ouvir essa frase. - "Eu não enganaria um pobre cego". Sentiu aquilo, mas não disse nada. De mãos dadas, os meninos deixaram a padaria. Mal havia descido o degrau da porta, Luís sentiu uma pancada atrás da cabeça e ao mesmo tempo ouviu vozes altas, que zombavam dêle. O saco de papel, com os doces, foi-lhe arrebatado das mãos, enquanto recebia outra pancada, no casaco. Colocou prontamente a mão no lugar do golpe e aí encontrou alguma coisa quente e pegajosa. Levando a mão ao nariz sentiu cheiro de estêrco.. "Que é isso? Que é isso? Ouvia Jean repetir várias vêzes. Estavam cercados por uma porção de rapazes, que gritavam e zombavam deles. Os dois cegos procuravam escapar, mas eram detidos pelos golpes de seus perseguidores.. "Mendigos! Mendigos! Gritavam os malvados. "Vocês ganharam êsses doces de esmola!" Jean segurou a mão de Luís e tratou de voltar para a escola. Nesse momento, Haüy veio correndo na direção dêles. "Meus ceguinhos!" gritava ele. "Vão embora, seus demônios!" Voltando-se para Luís, que tremia, disse: "Não tenha mêdo, pois eles não compreendem. Talvez o mundo crie juizo algum dia!" levou-os de volta à escola, conversou com êles, tranqüilizou-os e afinal deixou-os. Os meninos, por sua vez, sentiam-se constrangidos. Finalmente, Jean disse: "Sempre será assim para nós!" "Não sei", disse Luís, "não sei, mas por acaso somos animais? Isto não aconteceria em Coupvray", completou, amargurado. Não tardou em provar ainda mais da dor de ser cego. Uma tarde, durante a segunda refeição do dia, logo após haver-se sentado à mesa, ao lado de Jean, ouviu o ruído da concha no seu prato. Imediatamente tratou de mergulhar a colher, que foi bater no fundo do prato, sem encontrar sopa. "Não me deram sopa", murmurou ele a Jean.. "São esses danados dos criados, outra vaez!" disse o amigo. "Precisamos falar com o Sr. Haüy. Tome um pouco da minha, agora". "Não, obrigado", respondeu Luís, "não estou com fome". Deixou o lugar, devagarinho, e, ajudado pela bengalinha, subiu para o quarto. Aí chegando, atirou-se na cama. Naquela noite, porém não conseguiu dormir. No dia seguinte aventurou-se novamente à rua, procurou a boa senhora da padaria e pediu que ela escrevesse uma carta por ele. Felizmente ela sabia escrever um pouquinho. "Caro papai: peço que me leve de novo para casa. Sinto-me infeliz aqui. Para os parisienses os cegos são como animais. Tenho fome e frio. Os criados furtam-me. Hoje mesmo fui atacado e roubado pelos moleques de Paris. Êles jogaram estêrco em cima de mim. Não lhe darei trabalho, pai. Venha buscar-me, por favor". Se o correio daqueles tempos fôsse como o de hoje, bem diferente seria a história dos cegos. A carta de Luís ao pai demorou mais de dez dias para chegar ao destinatário e nesse entretempo o menino aprendeu a suportar insultos, o furto, as pancadas e as zombarias. Depressa reconheceu que seu lugar era mesmo na escola, entre os seus semelhantes. Quando o pai - o bom e fiel Luisão - veio a galope, com a face contraída e os olhos cheios de susto, o pequeno Luís já se havia acostumado e estava perfeitamente à vontade. "É verdade, papai, que eu estaria protegido e bem cuidado a seu lado. Mas meu lugar é aqui, porque aqui estão os livros. Sento-me realmente feliz aqui". Quase esquecera a própria miséria. O pai retornou a Coupvray, com o coração angustiado, e foi procurar o vigário. "Peço-lhe novamente que deixe o menino escolher o próprio caminho", disse o sacerdote. "Deixe-o fazer o que bem queira. É uma criança, sim, mas no que se refere ao sofrimento é mais velho que nós. Deixe-o", acrescentou, gravemente. O menino era um bom aluno. Em pouco já estava ajudando o gravador que tinha sido escolhido para fazer o primeiro livro da Bíblia, em relêvo. "Faça-se a Luz", repetia Luís devagar, quando foram gravadas as primeiras enormes páginas. "É uma boa frase para lembrarmos", disse a Jean. Certo dia Luís criticou Haüy por sòmente mandar gravar em relêvo histórias infantis. "Senhor", disse com firmeza, "já tenho onze anos, não mais estou interessado nas histórias de Reynaud, a Raposa, e outras... Reynaud é muito bom para crianças. Que tal se nos desse alguma leitura mais elevada?" haüy reclinou a cabeça para trás e não pode deixar de rir. "Veremos, veremos!" prometeu. "Vou comprar uma imprensa para a escola, e aí a impressão sairá muito mais barata. Então poderemos imprimir tudo o que desejarmos. Mas antes", ajuntou ele, "eu gostaria de achar um meio de ensinar vocês a escrever, seja lá de que jeito fôr". Nas semanas seguintes Luís andou dando tratos à bola. Guardava seus pensamentos para sí e não os confiava nem a Haüy nem a Jean. Afinal tornou a procurar a mulher da padaria e mandou nova carta ao pai. Um Mês após, mais ou menos, chegava para êle uma misterioso embrulho. Tremendo de excitação, Luís foi para seu quarto, abriu o embrulho e começou a trabalhar. Algumas horas depois, procurou o quarto de Haüy, sempre com a sua bengalinha, e bateu à porta, decididamente. "Posso interrompê-lo por um minuto, senhor?" perguntou o pálido menino. "Mas, por favor, não se ria de mim", suplicou, exibindo ao mesmo tempo o papel do embrulho. "Está certo, mestre?" indagou. Haüy acariciou ternamente o rosto do menino. "Você é um bom rapaz", disse distraído. "Orgulho-me de você". Luís havia pedido que o pai lhe enfiasse o alfabeto recortado em couro grosso. O pai logo chamara em seu auxílio o vigário, o qual por sua vez chamara as crianças da aldeia, que os ajudaram com seus afiados canivetes. Conhecendo as letras pelo tato, Luís fôra-as colocando sôbre o papel e desenhando-lhes os contornos. Assim, conseguira escrever, em tipos grandes: "Eu me chamo Luís Braille". "Você precisa conhecer uma senhora de minhas relações", disse Haüy ao menino, alguns dias após. "Iremos lá na primeira folga que tivermos". Fiel à promessa, no dia seguinte Haüy mandou que o menino pusesse a melhor roupa que tinha, um terno de veludo que a mãe fizera de um velho vestido. Todo de azul, Luís foi colocado num carro e levado à presença de uma senhora que deveria ter profunda influência em sua vida e, mais importante ainda, sôbre os cegos do futuro. Luís entrou numa grande sala. Sentia fofos tapêtes sob os pés. Teve noção do tamanho da sala pela distância a que ouviu a doce voz que o saudava. "Então, é êste o revolucionário de que me falou?" ouviu a senhora dizer. Também ouviu, consternado, o ruído abafado de uma bengala que tocava o tapête. Não tardou muito, o ruído tornou-se próximo e uma perfumada mão começou a examinar-lhe a face. "É o rosto delicado de um poeta. Êste aqui vai dar muito que fazer", disse a voz musical. "Venha, sente-se aqui comigo". Luís sentiu o contato de cetim, enquanto a senhora o levava para o sofá. Em sua mão ela colocou uma caixa esmaltada, dizendo: "São balas para você". Haüy sentou-se discretamente, numa cadeira próxima. "Por que deseja você leituras mais adiantadas" perguntou a senhora. "Já não sou criança", contestou êle com embaraço. E inclinando-se para a frente, disse: "Senhora, não leve a mal, mas eu julguei ter ouvido o ruído de uma bengala..." "Sim, meu filho, também sou cega", respondeu ela, ao mesmo tempo que o beijava na testa. Luís sentiu o perfume da elegante senhora e percebeu que em suas foscas mãos havia grandes pedras. "Sabe quem sou?" perguntou com ar zombeteiro. "Não, minha senhora, não sei". E corajosamente adiantou: "Mas sei que a senhora tamabém é cega e que é uma dama importante". "Pois fique quietinho, que eu lhe quero dizer umas coisas, a meu jeito". O menino ficou quieto, e ouviu o farfalhar do vestido. Logo depois irrompeu na ampla sala uma cristalina música. Depois as teclas tocaram uma escala, logo surgindo outra ária majestosa. Os trechos leves alternavam-se com notas forte, que se erguiam triunfantes. Vinham finalmente, repetidos, pequenos soluços sonoros. Êle não poderia dizer o aspecto que tinha naquela ocasião, mas Haüy contando o fato mais tarde, referiu-se ao triste menino como um elfo, que "ficava sentado, e balançava-se e enxugava as lágrimas com impaciência". "Sente-se aqui comigo", disse a delicada voz musical. Sem a bengala, o menino ergueu-se em direção à música e encontrou o banco, no qual se sentou ao lado da senhora. Ela dominou as teclas, guiando sôbre elas, ao mesmo tempo, as mãos do menino. "Esta é uma boa linguagem para os cegos, não é mesmo?" perguntou. O francês que falava era gutural e diferente do comum.. "A senhora não é francesa?", perguntou o menino delicadamente. "Não, sou austríaca", disse ela. "Meu nome é Teresa von Paradis. Sabe disso? "Confesso que não, minha Senhora", respondeu o pequeno. "Não é muito gentil, senhor Braille", interveio Haüy. "A senhora von Paradis é a mais famosa pianista da Europa. Já tocou para reis. É a mais popular concertista de Paris e das capitais da Europa". "Se nunca ouvi falar da senhora é porque sou cego e muito ignorante. Desculpe-me, senhora" disse Braille, voltando para ela os olhos cegos. Teresa apertou-o contra o peito. "Você é diplomata e encantador. É muito mais velho que sua idade. O senhor Haüy não exagerou. Você tem muito sentimento e é um menino bem educado. Vejamos. Que é que deseja? Ah, deixe-me dizer antes uma coisa. Permita-me que o ajude a encontrar na vida a riqueza que encontrei. Está disposto a estudar muito?" "Muitíssimo, senhora" respondeu o menino. "Muitíssimo". "Também se sente solitário, na sua cegueira?" perguntou ela, perspicaz. "Muito, minha senhora. Muito mesmo. Mas não tanto desde que entrei para a escola do Sr. Haüy". "Ah, o diplomata, novamente!" comentou Teresa von Paradis. "Vamos tratar disso. Há muito estou convencida de que os cegos podem aprender música melhor do que os que enxergam. Havemos de ver. Quer que eu experimente? Pergundou ela. "Sim, minha senhora" disse o menino. A distinta senhora beijou-o e colocou em suas mão, não apenas as balas, mas também a caixa esmaltada. "Uma lembrancinha", disse. "Não se esqueça de mim. Não se esqueça de seus irmãos cegos". Era êsse seu primeiro e último encontro com a célebre Senhora von Paradis. Teresa von Paradis nascera em Viena, de pais ricos, e, como Braille, ficara cega ainda muito nova. Seu pai, homem de vasta compreensão, animara-a a continuar sua carreira musical, para a qual sempre mostrara talento. Com quatorze anos dera seu primeiro concêrto em Viena e deixara a assistência dominada pela perícia de sua técnica. Mais tarde aprimorou ainda mais o estilo e tornou-se mestra consumada. Estudara da única maneira possível: o pai contratara um pianista famoso para tocar para ela, à hora. Penosa e esforçadamente, Teresa fôra aprendendo as notas e a técnica, até ultrapassar os próprios mestres. Nos dois anos seguinte, exceção feita de um pequeno e louco intervalo, a vida de Luís foi verdadeiramente encantada. Diàriamente, após as aulas do Instituto, era conduzido à igreja próxima, onde recebia lições de órgão. A Senhora von Paradis escolhera êsse instrumento por ser, segundo julgava, o que mais se adaptava à triste condição. Só uma vez escreveu a Luís, que nunca mais recebeu notícias dela. "Meu caro Irmão", dizia a carta, "resolvi que o órgão, que é o instrumento mais adequado à música sacra, seja o seu trabalho". "O ouvido dos cegos acha-se mais próximo de Deus do que o das pessoas que vêem. As pernas dos cegos, que sempre estão tropeçando e parando, mostram-se mais seguras nos pedais do órgão do que as dos que vêem. Estou perfeitamente certa de que você saberá tirar do órgão melodias agradáveis àqueles que foram criados à semelhança de Deus. "Saiba, entretanto, que a humanidade será mais crítica do que Deus. Trabalhe com determinação. Não procure ser feliz, porque isto é impossível, mas procure encontrar alegria nas melodias que elevar a Êle. Desejo ouvir notícias suas e de seus progressos". Mais tarde, a Senhora von Paradis pagou ao organista de igreja o necessário para custear por um ano os estudos do menino. Luís deveria tornar-se um dos maiores organistas e violoncelistas da Europa. Teresa von Paradis morreu em 1821. Sua lembrança, guardou-a Luís como um tesouro. CAPÍTULO 4 ABRE-SE UMA JANELA Muito surprêso ficou o organista da Igreja de Santa Ana quando Haüy, conduzindo até o órgão o rapazinho anêmico e de ar triste, e colocando a mão sôbre a cabeça dele, disse: "Êste será o seu novo aluno, se quiser aceitá-lo". Contou, então, a Raul Delacorte, o organista, o que a Senhora von Paradis havia oferecido e o que ela sugerira. E contou, também, alguma coisa da vida e da cegueira de Luís Braille. Delacorte ergueu as mãos, desanimado. "Isto é mais do que estranho. Como poderei ensinar a um cego que não enxerga desde criança? Como poderá ele ler as notas e entender a teoria da música? Se êle ao menos houvesse estudado um pouquinho antes de ficar cego, talvez eu pudesse achar um jeito. Francamente, bem que gostaria de ganhar esse dinheirinho a mais, mas, apesar de tôda a pena que tenho do rapaz, não vejo como possa ajudá-lo". E continuou: "Além disso, de que servirá? De que lhe adiantará a música, mesmo que eu consiga ensiná-la? "Servirá, meu amigo, para dar-lhe uma vida mais completa", respondeu Haüy. "E o senhor verificará que, como quase tôdas as pessoas cegas, ele tem ouvido muito apurado e talvez não seja tão difícil ensinar. Basta um pouco de paciência e de bondade", disse, inclinando-se para a frente, para que o menino não o ouvisse. Delacorte assentiu, pousou a mão na cabeça do menino e perguntou:"Quer que eu toque para você?" O menino concordou e sentou-se no banco, ao lado de Haüy. Logo depois ouviu-se uma suave melodia, depois vieram notas mais fortes e em pouco a igreja estava tôda tomada pela música. Delacorte tocou durante alguns minutos, e afinal parou e disse:"Isto foi do mestre Bacah. Se você aprender, tocá-lo-á muitas vezes, embora ele não seja apreciado por muitos dos amantes da música, que não gostam dos revolucionários. Mas com o tempo você aprenderá mais a respeito dêle. Sabia que o órgão é um dos mais difíceis instrumentos?" "A Senhora von Paradis disse-me", respondeu humildemente o menino. "Mas também disse que é um dos que dão maior satisfação". O organista gostou da resposta. Bateu no ombro do menino. "Você é diplomata. E também há de dar um bom músico". Luís seria dispensado de algumas de suas obrigações na escola e durante um mês iria duas vêzes por dia à igreja. Essa foi a combinação feita. Se ao fim do mês Delacorte achasse impossível ensiná-lo, então o projeto seria abandonado. Naquele tempo os órgãos eram muito complicados, embora não tão difíceis de tocar como hoje. Luís sentava-se no grande banco, ao lado de Delacorte, e quando o organista tocava uma nota, escutava-a com tôda a atenção, enquanto seu dedo foi colocado sôbre a tecla. Depois ele mesmo premia a teclaa, escutando ainda mais encantado o som emitido pelo enorme instrumento. "Veja bem como isto é maravilhoso", dizia Delacorte, batendo a tecla e tirando um som muito forte. "Sentimos que aqui existe uma força, e se você fôr capaz de dominá-la, será organista". Passava então a explicar a teoria do órgão, mostrando como o ar penetra nos tubos de vários cumprimentos, quando se premem as teclas, e produz vibrações, que dependem do tamanho dos tubos.. O menino ouvia e ia compreendendo o mecanismo pelo qual as teclas produzem os sons fortes, e os outros, suaves como trinados de flauta. Entendida uma parte do teclado, Delacorte passava a tocar alguns acordes e depois mandava o menino repetí-los de ouvido. O organista ficou entusiasmado com a compreensão do menino e embora mantivesse em sigilo, até o fim do período experimental de um mês, o resultado de seu julgamento, Luís percebeu que êle estava satisfeito, no dia em que lhe disse ter mandado colocar blocos de madeira nos pedais, para alteá-los. "Assim as suas pernas poderão alcançá-los. Você é muito pequeno para êsse instrumento". Naquele dia o menino voltou para a escola com a cabeça cheia de melodias e notas. Em seu quarto agitava as mãos, imaginando ouvir as imponentes melodias. O mês logo chegou ao fim, sem que Luís se desse conta, tão enlevado se achava por aprender algo novo. Certo dia, ao chegar â igreja, como de costume, o organista acompanhou-o até o estrado do órgão e disse: "Vamos fazer de você um grande músico. Tem queda, e é muito mais fácil ensinar a você do que aos outros meninos, que enxergam. Êles vêem, mas não têm visão, meu filho, e isso é o que você possui", concluiu o organista, com simplicidade. No fim da lição pediu que o menino dissesse a Haüy que êle estava muito satisfeito e que continuaria as lições. "Não pelo dinheiro, meu caro. Peça ao Sr. Haüy que venha aqui qualquer dia para ouvi-lo tocar os exercícios. E agora, vamos trabalhar". Passou-se mais de um mês, durante o qual a existência de Luís foi ganhando vida nova, distinta da escola à proporção que a música penetrava nela. E um belo dia êle pediu a Haüy que o acompanhasse, ao que o bom homem acedeu. Delacorte e Haüy ficaram sentados no banco perto do órgão, enquanto o menino dava o seu primeiro concêrto. Consistia apenas em um simples exercício, mas os ouvintes ficaram encantados com a impecável execução. Deram-lhe palmadinhas nas costas e levaram-no para jantar num restaurante próximo. Enquanto os dois homens conversavam sôbre política, o menino entregava-se aos devaneios naturais da idade. "Dia virá, pensava êle, em que ganharei o meu próprio sustento com o órgão e tocarei para a alta sociedade. Pelo ouvido é que os cegos hão de encontrar o caminho de sua libertação". Acontece, entretanto, que os companheiros de escola ficaram com inveja. Seus únicos confidentes eram Jean e um outro menino, Josef, filho de um manufatureiro de sêda, em Lião. "Vocês também precisam aprender", dizia-lhes Luís entusiasmado. "Assim passarão a sentir-se diferentes em relação a si mesmos e ao mundo. A música dá uma sensação de poder e de liberdade, que eu não sei exprimir. O bom Sr. Delacorte ajudá-los-á, e eu também os ajudarei, talvez assim que saiba um pouco mais. Querem vir comigo". Josef, que tinha dezesseis anos e era muito grande e forte para a idade, riu. "Meu pai bem que gostaria de saber que eu toco órgão e pretendo arranjar emprêgo. Êle está sempre insinuando que eu, tôda a vida, comerei a comida dêle, até arranjar casamento. E que depois disso êle terá de alimentar a mim, a minha mulher e a meus filhos". Josef perdera a vista dois anos antes, quando atacado por uma doença a cujo respeito os médicos nada sabiam. Seu pai, que tinha muitas relações em Paris, viera a saber da existência do Instituto e tratara de matricular o filho, "para ver se livre dêle", dizia Josef. Luís não tinha meios de verificar se tal história era verdadeira, mas procurou explicar que, para êle, o estudo da música não tinha por fim ganhar dinheiro. "A música faz que nos sintamos bem", disse singelamente. Josef riu-se de novo. Os outros companheiros eram manifestamente hostis. Quando Luís regressava da escola, talvez trauteando uma ária, êles desatavam a rir. "Lá vem o maestro! Ouçam só a sua bengala! Até aí há música! Música de sapateado!" Um dia, quando Luís subia os degraus da escada que conduzia ao seu quarto, um dos meninos puxou-lhe a bengala e êle rolou no chão. Sentiu uma dor aguda nas costas e durante alguns momentos não conseguiu levantar-se. Aos seus ouvidos chegou a voz estridente de Ernest Montelard, o vilão da escola, que dizia: "Pare com essa cantoria! Nem porisso você deixará de acabar nas sarjetas, pedindo esmola!" Sentiu Luís, então, um contundente pontapé nas costelas, ao mesmo tempo que se erguia grande alarido em tôrno dele. Os outros haviam estado à sua espreita, para o planejado ataque. Luís ia levantar-se, humilhado e choroso, quando ouviu um grande brado. Era Josef. Logo a seguir ouviu a voz de Ernest, implorando misericórdia, juntamente com várias pancadas no chão. "Você gosta de judiar dos pequenos, não é? Pois então, tome! E tome mais! E mais esta, seu porco!" esbravejava Josef. Esnest começou a chorar e tratou de arrastar-se para o fundo da sala, gritando por Haüy. Haüy veio correndo e ficou mais aborrecido do que Luís jamais o julgava capaz. "Que vem a ser isso:" perguntou. "Pois não basta que o mundo bata em vocês? Será possível que ainda queiram bater uns nos outros? Que vergonha!" Agarrando Josef, bateu nêle. Luís ouviu os protestos de Josef. Então Haüy ajudou Luís a levantar-se e quis saber o que se passara. Luís explicou que os alunos pareciam estar com inveja dêle, por causa das aulas de música. "É tudo", disse. "Josef quis defender-me". Haüy dispersou os meninos e mandou que Luís ficasse de cama durante tres dias, porque estava todo machucado. Pela primeira vez em sua vida de criança ele sentiu ódio e amargura no coração. Ficou com verdadeiro horror do som das bengalas em tôrno dêle. Tornou-se bruto para com os empregados que traziam a comida. A seus lábios vieram palavras feias, que êle ouvira os camponeses dirigir aos cavalos e aos bois. Mais ainda, passou a sonhar com uma desforra contra Ernest: "Aquele coisa à-toa, aquele bruto! Hei de mostrar-lhe!" Quando Haüy foi ve-lo, achou-o insolente. "Nada tenho a dizer-lhe", disse. "O senhor tem aqui um bando de animais. Não faço parte dele. Meu lugar não é aqui. Além disso, o senhor deve saber que sou músico, e não simples inválido, como os outros!" O bom e jeitoso Haüy não ficou surpreso, e muito menos ofendido. "Está certo, meu caro. Se você acha que é bom demais para êste lugar, pode deixá-lo. Os meninos não tinham más intenções. São cruéis como todos os meninos, talvez mais por serem cegos. Mas não queriam fazer-lhe mal. Pense nisso!" Assim dizendo, saiu. Naquela noite ele embarafustou pelo corredor e abriu a porta de Ernest. Ouviu o amigo roncando, dirigiu-se pé ante pé à cama e, tomado por uma fúria que a ele mesmo surpreendeu, golpeou com a bengala, uma, duas vezes. Ernest deu um grito e saltou da cama aos berros, confuso e em pânico. Luís seguiu em direção a voz e bateu a bengala novamente. Sentiu um golpe medonho, seguido de um som horrível, e logo após o silêncio, que, aliás, durou pouco. Sem perceber, estivera gritando e dizendo impropérios. Não mais conseguia achar o inimigo e, furioso, agitava a bengala no quarto, quebrando tudo que estava a seu alcance. Ouviu-se então, um ruído de passos a correr, e outros estudantes penetraram no quarto, fazendo perguntas e gritando. Chegou finalmente Haüy, que o agarrou pelo pescoço e o sacudiu sem pena. "Seu assassino!" exclamou. "Você, fazer uma coisa dessas? Pois agora, apanhe". E deitando-o sôbre os joelhos, deu-lhe uma boa surra. A humilhação foi insuportável para o menino. Seguido pelos companheiros que escarneciam, voltou para o seu quarto e ficou acordado o resto da noite, oscilando entre o pranto e novos propósitos de vingança. De madrugada tomou súbita decisão. Enfiou a roupa apressadamente, contou o dinheiro que possuía e procurou a saída, pé ante pé. Abriu a porta e recebeu sôbre o corpo a brisa fresca e matinal de Paris. Sentindo-se refrescado e encorajado, pisou a rua e só usou a bengala ao chegar à esquina. Não sabia ainda para onde ir, mas pouco se importava com isso, desde que fugisse de Haüy, a quem passara a odiar pela humilhação que lhe infligira, e dos companheiros, a quem chamava bárbaros. A surra que Haüy lhe dera, mais do que qualquer outra coisa, enchera-o de raiva. Imaginava gozar de especial posição no coração do mestre e fôra, apesar disso, tratado como qualquer outro. Entrou num bistro que se encontrava aberto desde cedo, e pediu vinho e um croissant, famoso pãozinho francês, em forma de meia lua. Depois saiu e foi logo atraído pelo barulho de grandes carroças que trepidavam sôbre as pedras da rua, e pelos passos pesado daquilo que supunha serem enormes cavalos. Era o mercado, onde os sitiantes que viviam nas redondezas da cidade vinham vender seus produtos e seus animais. O menino ouviu o grasnar dos gansos e o cacarejar das galinhas e de vez em quando, o guincho de um porco ao ser descarregado de uma grande carroça. Não tinha limites a saudade que sentia do lar, e que era espicaçada tanto pelo castigo que recebera, quanto pelos ruídos campestres que ouvia. Procurou uma parede, sentou-se no chão e começou a chorar. Afinal, não passava de um menino pálido e magro, e muito longe dos pais. Sentiu de repente um golpe forte na cabeça e, assustado, volveu para cima os olhos cegos, parando de chorar por um instante. "Vá-se embora daqui, mendigo! Tenho que armar minha barraca!" sentiu nas costelas uma pontada tão forte que quase o fez desmaiar. Levantou-se e afastou-se cambaleando, perseguido pelos gritos do vendedor. "Vocês, mendigos, acordam cedo, hem? E tOda essa cena é só para ver se consegue verduras de graça! Pois espere, aqui tem uma verdura de graça!" E o menino sentiu alguma coisa pegajosa e mole bater em cheio na parte de trás do seu pescoço. Tratava-se, provàvelmente, de uma maçã podre. Uma palavra gentil talvez o fizesse chorar mais. Mas era demais. Voltou-se, limpando o pescoço com o lenço, e disse: "Não sou mendigo, meu senhor, e nada quero do senhor. Por que motivo me bate e me dá pontapés?" O homem caiu das nuvens. "E ainda ousa responder-me, seu ladrão? Todos vocês, cegos, são ladrões e malandros. Tome cuidado, senão torno a bater-lhe". "Senhor, não sou mendigo nem ladrão, insisto. Quer dar-me emprego?" Ocorreu-lhe, então, que, se não tinha feito um amigo, tinha pelo menos feito um conhecido. Afinal, não conhecia pessoa alguma a quem pudesse apelar. Era horrível a idéia de voltar aos pais, apesar da saudade que sentia. Que o esperaria lá? "Dar-te um emprêgo?" rosnou o homem. "Para que me roube?" Depois, movido pela cobiça, o homem refletiu um momento e disse: "Está bem, dar-lhe-ei um emprêgo, uma refeição por dia e um lugar para dormir. Está bom? Mas olhe, tome cuidado! Estarei sempre a vigiá-lo". "Que devo fazer, senhor?" perguntou o pequeno, com serena dignidade. "Todos os dias você escolherá as verduras, separando as estragadas das boas, e colocando-as em montes separados. À noite dormirá na loja, numa boa cama feita de sacos. Se trabalhar bem, ganhará duas refeições por dia. Quanto a isso, veremos. Ninguém dirá que Anatole Bouchard não tem bom coração. Você é pequeno e talvez ainda não se tenha tornado um grande ladrão". Dizendo isso, o homem soltou uma gargalhada, que Luís aprenderia a odiar, nos meses seguintes. O trabalho não era pesado, exceto nas ocasiões em que, durante o dia, Bouchard obrigava o menino a puxar grandes sacos de um extremo a outro da pequena loja, para empilhá-los. Os trabalhos mais pesados vinham no fim do longo dia, que começava de madrugada, quando o menino ajudava a desmontar as barracas e a levar para dentro da loja as frutas e as verduras. Depois Bouchard empurrava o menino para dentro da loja e, sem ao menos dizer "boa noite", fechava a pesada porta de ferro, e punha o fecho, que prendia com pesado cadeado. O pequeno ouvia os passos de Bouchard, que se afastavam, e deitava-se numa pilha de sacos de cheiravam a frutas, verduras e coisas do campo. Em pouco, quando se fazia silêncio e a escuridão caía, começavam a surgir grandes ratos, que se punham a roer as batatas, que eram o que mais apeciavam. Nas primeiras noites o menino era sempre despertado por Bouchard, que vinha fiscalizá-lo. O quitandeiro levantava o grande fecho da porta e perguntava, resmungando: "Você está aí?" Depois afastava-se, deixando o pequeno só com seus pensamentos. Luís foi ficando muito sujo. Nunca tomava banho nem penteava o cabelo. Certa vez a mulher do verdureiro veio à loja, com uma tesoura grande, e disse "Você parece um selvagem da África, e meu marido diz que até lhe espanta os fregueses". O menino deixou que a mulher lhe cortasse o cabelo. Depois ela trouxe uma bacia com água e mandou que se lavasse naquela noite. "Você está com um cheiro maravilhoso", disse ela, escarninha. Numa época em que as pessoas não se banhavam com freqüência, Luís viera, entretanto, de região rural em que as pessoas costumavam nadas de vez em quando, nas lagoas e nos lagos próximos. Sabia perfeitamente que estava cheirando mal, mas não se importava com isso. Os dias passavam-se iguaizinhos uns aos outros. Ouvia conversas como jamais ouvira antes, o sujo mexerico das mulheres que vinham dos cortiços, para fazer compras na loja. De vez em quando um moleque da rua puxava a bengala do cego, quando ele se sentava à porta. E aos poucos o infeliz aprendeu a brandir a bengala no ar, a fim de afugentar os importunos, dizendo ao mesmo tempo impropérios, como ouvia os outros fazer. Às vêzes pensava em Haüy e nos pais e, cheio de compaixão por si próprio, sentia-se feliz só de pensar que eles andavam, desesperados, à sua procura. Outras vezes, tinha a certeza de que todos estavam muito satisfeitos com o seu desaparecimento. Apesar da promessa feita por Bouchard, o menino jamais recebeu mais de uma refeição por dia, que consistia num pedaço de pão e sopa grossa, feita pela senhora Bouchard. Podia comer, entretanto, quando quisesse das verduras e frutas estragadas, as quais, para ser rejeitadas até pela mais econômica das donas de casa de Paris, deviam estar mesmo no último grau de decomposição. A verdade, porém, é que as verduras e frutas eram, apesar disso, nutritivas, pois o menino, embora dormisse como um porco num chiqueiro se alimentasse mal, conseguiu engordar e sentir uma força nova no seu corpo. Sempre introspectivo, por causa da própria cegueira, começou a achar prazer em conversar consigo mesmo, à medida que nêle se desenvolviam as manifestações da adolescência. Tinha sonhos febris e incompreensíveis. Principiou a sentir-se inquieto e seu pensamento entrou a visitar regiões que até o amedrontavam. Começou a pensar em meninas. E a vida anterior, passada na casa e na escola, tornou-se remota como um sonho. "Você está engordando, seu malandro!" disse Bouchard um dia, soltando a sua terrível gargalhada "Mas não à custa de sua comida, uma vez por dia", retrucou Luís, insolentemente. Sua voz ganhara timbre diferente e ele arrastava as palavras, como faziam os meninos de rua. Recebeu uma bofetada, que o atirou de costas no chão, ao mesmo tempo que sua bengala vibrava no ar, em sinal de defesa. Sentiu que ela tocou o rosto de Bouchard; com o coração a bater descompassado, saiu a correr da loja e, sem cuidar do lugar para onde ia, esbarrou num muro, machucando gravemente a cabeça. Caiu e esperou, resignado, pela morte. Ouviu passos, que não eram, porém os de Bouchard, tão familiares. Não vinham ao seu encalço. Eram os transeuntes, que passavam sem se deter. Um cão mal cheiroso aproximou-se, farejou e foi-se afinal embora, tocado pela bengala. Ao fim de algum tempo, o menino levantou-se. O sangue empastava-lhe a cabeça. Dirigindo-se ao primeiro transeunte, perguntou-lhe o caminho da escola. Sentia-se humilde, derrotado e, apesar disso, orgulhoso, embora não pudesse compreender porque. Parecia que a fuga se dera há muito tempo. Foi tateando o caminho até chegar, ajudado por um estranho, à soleira da porta da escola. Abriu-a e entrou. Dominaram-no os antigos odores. O cheiro da sopa, o cheiro acre da roupa suja, o assoalho com uma das tábuas soltas, e afinal o silêncio. Depois, a voz de Haüy, os braços dele a abraçá-lo, os seus beijos afetuosos. O menino não pôde conter as lágrimas.. "Você está imundo", disse Haüy. "Seus pais quase ficaram loucos de procurá-lo". "Já o tínhamos dado como morto. Você está com um cheiro horrível, como nunca experimentei!" E começou a fazer perguntas e mais perguntas. Jean segurava-lhe o braço e até Ernest, o seu grande inimigo, estava a seu lado, o que fez que as lágrimas aumentassem até sacudí-lo grandes e profundos soluços. Sentiu-se muito feliz por estar de volta após uma ausência de quatro meses. No dia seguinte Haüy mostrou-se muito discreto, depois de haver Luís tomado um banho completo. Mandou um mensageiro a Coupvray, com a máxima velocidade, e dois dias após o pai chegava à escola, apressado. Terminara a grande aventura do pequeno Luís. "Posso continuar com a música?" perguntou ele depois de ter sido repreendido pelo pai. Responderam-lhe que podia, mas que também era preciso que se portasse convenientemente. Foi posto em observação, na escola, e Haüy prometeu que ninguém zombaria dêle. "Na verdade, eu conto com você para me ajudar a ensinar os outros meninos", disse Haüy. "Talvez você consiga interessá-los, também, na música". CAPÍTULO 5 O OLHAR POUSOU EM MIM Luís tinha, agora, catorze anos. Tornara a emagrecer. Com a agitação da adolescência, o apetite desaparecera. Trabalhava intensamente na escola, e ainda mais no órgão. O organista mostrava-se muito satisfeito e deixava-lhe inteira liberdade para praticar, sempre que o instrumento se achasse desocupado. Todos os dias, às dezesseis horas, duas horas antes da bênção, o menino se dirigia à Igreja de Santa Ana. Nessas duas horas benditas ele podia dominar o poderoso instrumento, na grande igreja vazia. Movendo os pés com segurança e firmeza, e as mãos leves, como uma carícia, ele ia tirando de ouvido, dos tubos sonoros, sons que, no dizer do mestre, até lhe davam inveja. "Nada mais posso ensinar-lhe", disse o mestre. Como os pés do menino já alcançassem os pedais, os blocos de madeira passaram a servir outro aluno dele. Luís gostava de ensinar e de guiar as mãos do seu aluno cego, o que fazia bem ao seu espírito e o ajudava a perceber os seus próprios defeitos. Às vezes o cônego, que mais tarde se tornou seu grande amigo, sentava-se atrás, silencioso, e vendo o menino manejar as teclas e os registros, murmurou consigo mesmo: "Exatamente como uma pintura sacra, ou uma cena de vitralll". Rude foi o golpe que Luís sofreu quando Haüy morreu de repente, de ataque cardíaco. Novo mestre tomou conta da escola, um pedagogo que não acreditava na vantagem de ensinar aos cegos qualquer coisa que representasse cultura, mas apenas na conveniência do ensino de ofícios. Em conseqüência das grandes guerras que assolavam a Europa, desenvolviam-se por toda parte as fábricas de munições e de armas pesadas. O novo mestre, Jacques Grenet, acreditava que os cegos com seus dedos hábeis pudessem ser muito úteis nessas fábricas. Obteve um contrato do Governo para explorar uma pequena fábrica de projéteis, e prendia os meninos durante cinco horas por dia, nesse ofício. Luís relutava, mas tinha de trabalhar, como os demais. Quando o menino foi pedir a Grenet que lhe desse mais tempo para praticar o órgão, Grenet respondeu: " Você tem talento para o órgão, eu sei mas não é melhor que os outros meninos aqui. E continuou: "Agora você pode ir, e nunca mais volte a aborrecer-me, sem ser chamado". Luís sentiu muito a morte de Haüy e em memória dêle compôs, apesar de sua pouca idade, uma espécie de réquiem a que denominou "A noite chegou". Outras tragédias lhe reservava aquele ano. Um dia o único bom amigo, Jean, desapareceu da escola e, ao indagar dele, Luís inteirou-se de que o rapazinho regressara ao lar. Mais tarde veio a saber que morrera de tuberculose. Outra vez um mensageiro chegou apressado à escola, com a notícia do falecimento do velho Braille. Morrera de um ataque, na oficina. O menino voltou ao lar, na carruagem do correio, para assistir ao funeral. Recordou, então, os meses passados na loja de verduras, quando bem pouco se incomodava com o desespêro dos pais. Sentiu os olhos cheios de lágrimas. Ouviu a mãe, que chorava baixinho. Ficou com ela uns dois meses, dormiu, comeu as suas boas comidas. Haviam tratado um homem para dirigir a oficina, e de vez em quando Luís ia sentar-se no seu antigo lugar, para sentir o cheiro acre do couro e sonhar, enquanto o estranho trabalhava. Sentia-se inquieto, e afinal pediu à mãe que o deixasse regressar a Paris. "Nada tenho para fazer aqui. Venha comigo a Paris, por favor. Lá poderemos viver bem. Posso continuar com o órgão. Venha comigo, por favor. A vida lá é boa!" A senhora Braille, por sua vez, pedia que ele ficasse. "Agora só tenho a você. Fique, por favor. Temos dinheiro bastante para viver muitos anos. E possuímos uma boa renda, embora o danado dêsse operário esteja sempre a querer mais dinheiro. Fique, por favor". Luís sentia falta do órgão, dos ruídos da vibrante Paris, pela qual acabara de afeiçoar-se. Era um impasse, sem dúvida, e o moço propôs à mãe que o deixasse voltar à escola, por uns quatro meses. "Se eu fôr infeliz ou se você quiser que eu volte, regressarei", disse. A mãe concordou. Decorrido um mês, chegou uma carta em que a mãe insistia, suplicante, na volta do filho, ao mesmo tempo que mandava uma caixa repleta de guloseimas, inclusive um pastelão de carne que, apesar de se haver estragado um pouco na viagem, foi repartido entre os companheiros e apreciado por todos. Antes de poder responder, dizendo que estava tão feliz com o órgão, em Paris, que não poderia voltar a Coupvray, chegou outra mensagem, participando o falecimento da mãe. Só sobrevivera poucos meses ao marido. Sabe-se hoje, que morreu de câncer, naquele tempo conhecido por "doença consuntiva". A viúva Braille deixou todo o seu dinheiro a Luís. Para um menino de pouco mais de dez anos era muita riqueza, mas nem por isso ele se sentia feliz e alegre. As quatro pessoas que mais lhe eram caras, os pais, Haüy e Jean, haviam morrido em curto espaço de tempo. Tinham-se ido quando mais necessários lhe eram. Aguda foi a sua crise juvenil e sòmente no órgão pôde ele encontrar a paz. Em torno, por toda parte, ouvia os ecos da grande cidade, que crescia e se tornava consciente de suas funções de "Cidade da Luz do Mundo Ocidental", e prestava atenção ao ruído dos soldados que marchavam nas ruas. Podia ouvir a delicada voz do menino do tambor, marcando o compasso, e dizia consigo mesmo: "Quem me dera ter sido isso...menino do tambor, nos exércitos de Napoleão"... Sentia-se à margem da vida. A cegueira impedia-o de conhecer a plenitude da puberdade e afastava-o das moças cujas vozes ouvia nas ruas, por onde quer que andasse. "Que sou eu? Que hei de fazer?"perguntava a si mesmo. Sentia vagos e amorfos desejos. Na sua idade, quando tanto precisava de descargas emocionais, não tinha ninguém a quem pudesse recorrer. Nos domingos alugava um carro e ia para as margens do Sena, onde se sentava sob as árvores e se deixava ficar, escutando o que diziam as pessoas que faziam pique-niques nos arredores. Raramente levava farnel, e, à tarde, regressava exausto de tanto perguntar o caminho aos transeuntes e de ser conduzido por estranhos, mais solitário ainda do que nunca. Procurava piedade e atenção, e acabou imaginando um plano para encontrá-las. Num domingo deixou a escola e dirigiu-se a uma apinhada avenida, onde passeava a fina flor da elegância de Paris, e atirou-se ao chão. "Por que não?" pensava, desafiante. "Suponhamos que meus pais não possuíssem meios, e me houvessem deixado sem tostão. Seria um mendigo, não seria?" Estendia o chapéu e murmurava qualquer coisa, assim que sentia a aproximação de passos. Ouvia o tilintar das moedas que caíam no chapéu.. "Aquele ali é um mendigo muito bem vestido, não?" ouviu um transeunte dizer. E sentiu-se batido por um pé. Ouviu, então, o riso alegre de uma mulher que dizia:"Estamos numa avenida elegante e é preciso que os mendigos também se vistam bem". E ambos riram. Pouco se importava ele, pois a verdade é que sentia uma certa emoção em mendigar. Encontrava a atenção pela qual ansiava. Afinal, não se sentia, nesses momentos, completamente à margem da vida buliçosa que vibrava em tôrno dele. E a voz feminina, embora estivesse a escarnecê-lo, também lhe dava grande sensação. Durante muitas semanas guardava carinhosamente a lembrança do riso, até que se transformasse em nota de ternura, e não mais de indiferença e zombaria. Outra vez atirou para longe a bengala e disse com seus botões: "Ótimo! Esplêndido! Assim encontrarei a morte. Eis-me sem a bengala. Andarei sem destino. Se algum cavalo me atropelar, melhor para mim. Mas eles ficarão compadecidos". Colocou as mãos nos bolsos, deliberadamente, e tentou caminhar. Andou alguns passos, mas as pernas estavam duras, tremiam de mêdo, e ele não pode ir mais longe. Começou a cambalear e a agitar-se ma ria. E afinal estacou, paralizado. Ao seu ouvido chegou uma voz feminina:"O pobrezinho perdeu a bengala!" Conteve-se até entrar no carro que ela, a seu pedido, chamara. No carro, porém, chorou como criança. Em seu quarto, perguntou a si mesmo: "Hei de ser sempre exagerado?" Sim, haveria de ser sempre dramático, pensou. Luís tinha um diário, ao qual confiava seus pensamentos mais íntimos. Era apenas uma forma de introspecção, passatempo favorito dos adolescentes com vida fechada. Mas a sua vida era mais fechado do que a de qualquer outro. É claro que ele não podia escrever corretamente mas apenas com letras de fôrma. Media com o polegar o espaço que devia reservar para cada linha, e então continuava com a pena.. Pensava muitas vêzes na Senhora von Paradis, que em sua imaginação começava a adquirir as feições de sua própria mãe. Acentuaram-se mais ainda as pregas em tôrno de sua boca; aos quinze anos, parecia ter trinta. Aconteceu, entretanto, que, nesse momento crítico da vida, Luís achou uma posição no mundo. O organista da Igreja de Santa Ana mudou-se de Paris e o cônego, com surpresa de todos, inclusive de si próprio, convidou Luís Braille para substituí-lo. O cônego, Rechard Benoit, era uma criatura notável, lá a seu modo. Havia desempenhado alto cargo na Catedral de Notre Dame e, por se haver oposto ao bispo numa questão de pormenores teológicos, fôra rebaixado e enviado a Santa Ana. Era, pois, uma criatura conhecedora da alta sociedade e com boas relações entre as pessoas bem colocadas nos círculos culturais. Estava destinado a influir profundamente na vida de Braille. Os paroquianos ficaram admirados de ver um ceguinho subir ao órgão. Embora não se tornasse, por muitos anos, um organista consumado, adaptou-se muito bem ao instrumento, no qual encontrava, tanto de manhã quanto à tarde, alívio para seus tormentos juvenis. Tornou-se muito religioso e chegou a pensar em buscar a paz na ordem dos frades cegos, morrendo de vez para o mundo. "Não seria melhor para mim?"indagou do cônego, com estranha maturidade. "Não tenho pais nem amigos, só tenho obrigações para comigo mesmo. De outra forma que será de mim? devo mendigar nas ruas mais tarde? Já o tentei uma vez", reconheceu envergonhado, "e a verdade é que preferiria morrer". "Agradeça a Deus pelo que você possui agora", disse o cônego. "Outros como você teriam apenas aprendido a ser palhaços ambulantes ou estariam servindo de criados nas casas de caridade. Você não tem motivo para desesperar", disse mansamente. "Por que preocupar-se com o que acontecerá depois? Você é vivo, tem vontade de aprender, talento para a música, e algum dinheiro herdados dos pais. Quanto aos amigos, bem, também não possuo muitos. Serei seu amigo e você será meu". Êle conseguiu aumento de ordenado para Luís, como organista. As necessidades do rapaz eram poucas e muito escasso o seu apetite. Seu corpo fraco e gasto, devastado por tosse rebelde, parecia encolher cada vez mais. No entanto, vestia-se caprichosamente e gastava parte de seu dinheiro comprando bustos de compositores. Sentia grande prazer em apalpá-los com os dedos, correndo as mãos pelas suas faces, e sonhava que também o seu busto passaria à posteridade. As conversas do cônego contribuíam para libertá-lo de si próprio. Ouvia histórias a respeito dos grandes e dos quase-grandes de Paris, e começou a compreender que, afinal, também eles eram humanos e tinham lacunas, deficiências e cegueiras. Resolveu dedicar aos outros a maior parte dos vencimentos que recebia da Igreja, e assim custeou o estudo de dois estudantes. Era isto prova de que quanto o menino já era homem, de quanto era mais velho do que poderia parecer, pela idade. O novo diretor da escola, professor Leopold Erhardt, alemão, preocupava-se muito mais com seus solitários encontros com a bebida do que com o bem-estar dos alunos. O pequeno Braille causou-lhe boa impressão, por sua sensatez, e Erhardt acabou por passar-lhe quase toda a responsabilidade da escola. Assim, a vida do rapaz tornou-se cheia aos dezesseis anos. Deixou de lamentar a sorte, e agora mergulhava em animadas discussões com o cônego e com Erhardt, quando êste se encontrava em estado normal.. Sua vida completava-se com o órgão. Chegou a tentar até mesmo a vida noturna de Paris. Esta última aventura tornou-se possível graças ao interesse da filha do padeiro local, o dona da loja em que comprara doces ao chegar a Paris. Denise criara uma romântica afeição pelo cego ao vê-lo, na igreja, acima dos fiéis, diante do órgão. Sua face pálida, emoldurada pelo cabelo crespo, e seus olhos dramáticos e suplicantes, fixos no vitral colorido, cativaram a moça. Sempre que Luís entrava na padaria, Denise conversava com ele a respeito de música e elogiava-o tanto que ele, às vezes, até ficava encabulado. Outras vezes meditava: "É uma moça muito inteligente". Freqüentemente pensava nela, ao tocar, e ainda mais freqüentemente em seu quarto, quando a sós. A voz da moça era fresca e infantil e bolia com alguma coisa, dentro dele, que o rapaz não podia compreender. Um dia, para experimentá-la, o jovem perguntou se ela poderia acompanhá-lo à igreja, algum dia em que ele fôsse estudar. Tão rápida e espontâneamente ela concordou, que Luís se sentiu totalmente dominado e invadido por uma grande e cálida felicidade, que o acompanhou até o leito. Outro dia ele a procurou na padaria e, falando como se fôsse a coisa mais natura, embora estivesse vestido com sua melhor roupa domingueira, convidou-a para passear. Temia uma negativa e não sabia o que fazer nesse caso. Mas a moça novamente aceitou com alegria. Ele estava encantado, mas a verdade é que não conhecia a conversa que ela tivera com a mãe. Naqueles tempos, até mesmo as pessoas das classes mais pobres vigiavam cautelosamente as filhas. As moças nada tinham que ver com os moços, e jamais os acompanhavam em excursões, a não ser quando em presença de uma outra pessoa. As famílias ricas pagavam aias para fim, geralmente viúvas de posição. As pessoas de classe mais simples, como os comerciantes, geralmente pediam a algum parente que acompanhasse as moças quando elas estivessem com um rapaz. Quando Luís pedira a Denise que o acompanhasse à igreja para ouví-lo tocar, a moça obediente como a maioria das jovens daquele tempo, conversou com a mãe a esse respeito: "Que é que você acha, mamãe?" perguntou ela. A mãe, terna e prudente, pensou um pouco e disse: "Esses pobres cegos são inofensivos. Não vejo mal em que o acompanhe. Mas tenha juízo", aconselhou. "Não vá afeiçoar-se a ele, pois você é sadia e bonita. Penso que é permissível, no seu caso, afrouxar as convenções e dispensar uma guardiã. Afinal, êsses estudantes cegos são nossos conhecidos, e o caso é bem diferente do de um estranho qualquer, que desejasse a sua companhia". "Sim", continuou ela, que era uma mulher generosa, "acho até que será uma bonita ação. E afinal, ele é realmente inofensivo". Assim Denise não hesitou em acompanhar Luís. Uma vez a seu lado, enquanto explorava o caminho com a bengala, a moça deu-lhe o braço e disse:"Eu o guiarei". Tão grande foi a emoção, que ele quase caiu de joelhos, para beijar os pés da moça. Mas, como um homem de sociedade, limitou-se a dizer: "Muito obrigado, eu conheço o caminho da igreja". E para mostrar a sua briosa, louca e tola independência, desprendeu-se do braço dela e conversou desembaraçado enquanto caminhava a seu lado. Na igreja, com verdadeiro horror, tropeçou nos degraus e a moça, ao alcançá-lo, achou-o embaraçado de novo e humilhado. Ao penetrar a nave e subir os degraus do órgão, tornou a tropeçar e praguejou com tanta violência que ela riu de sua atrapalhação. Para dissipar a impressão de estar rindo dele, a moça apressou-se em explicar: "Não, Luís - permita-me charmar-lhe assim - não, Luís, eu não podia imaginar que um organista com cara de santo pudesse praguejar desse jeito! Afinal, sou filha de padeiro e costumo ouvir o que os fregueses dizem". Luís ficou novamente comovido. Não havia dúvida que a moça sabia compreendê-lo e era dotada de grande inteligência. Procurou tocar da melhor maneira para que a moça, que se sentara a seu lado, mas não podia saber se ela estava gostando, ou não. Apesar do seu aspecto displicente, ele, na verdade, planejava cuidadosamente toda a tarde, e quando a moça acedeu ao convite para jantar, sua alegria não teve limites. Chamou um carro, com auxílio dela, e em pouco se encontravam num lugar caro e muito freqüentado, de que o cônego havia falado. Conversou com a moça até quase de madrugada, enquanto ela permanecia fascinada pelas mulheres que passavam, règiamente vestidas. Às vezes, ele não podia saber se a moça estava ouvindo, mas nem por isso deixava de falar de seus sonhos a respeito de um sistema de leitura, de sua vida em Coupvray, tal como dela se lembrava, e da sua posição de quase diretor da escola. Gabava-se, falava de coisas sem importância, contava algumas das anedotas que o cônego lhe ensinara. A moça acabou vencida pelo vinho, pelo ambiente, pelo jovem cego, pela multidão, pela boa comida e pela maneira como Luís gastava dinheiro e dava gorjetas. Foi uma noite magnífica, que a deixou caída pelo rapaz, do que êste podia imaginar. Tendo a moça manifestado interêsse pela música, Luís começou a ensinar-lhe os rudimentos das cordas. Comprou para ela um violoncelo e, quando o interesse da moça desapareceu, passou a estudar de ouvido, e, em pouco, dominava o instrumento. Em breve, estava levando Denise a concertos e peças; o par era visto nos clubes noturnos e nos salões para os quais o cônego lhe dera apresentação. A moça vivia num turbilhão, ao passo que Luís passara a viver uma vida pràticamente normal - a vida de um jovem belo e endinheirado, que não fosse cego. Isto lhe fazia bem e alimentava seu amor próprio, sua sensibilidade e seus sonhos. Luís costumava levá-la a um clube conhecido por sua freguesia política, e com ele conversava a respeito de mulheres, de guerra, de paz, de Napoleão, do povo - em suma, de todas as coisas com as quais nunca tivera contato. "Você é os meu olhos", disse a Denise, com dramática veemência. Ela tremeu e não pôde evitar as lágrimas. Para ele tudo isso constituía uma vida sã, fora do círculo estreito do órgão e da escola. O moço expandia-se, adotava maneirismos ao falar, mudava o ângulo do chapéu e mostrava-se feliz. Se não fôssem os olhos, seria normal. Através das relações feitas nos clubes, travou contato com famílias parisienses, que a princípio o convidaram por piedade, mas depois o apreciaram como boa companhia, pelo seu espírito e talento. Por sua vez, o jovem sabia ser humilde na sua aflição, e agradava a vaidade dos novos amigos, pedindo a opinião dêles sôbre os acontecimentos que agitavam o país e o mundo.. E os amigos diziam:"Não há dúvida que é um rapaz inteligente, apesar de cego". Por intermédio dos novos amigos foi conseguindo outros, e assim conquistando posição nos salões da época, onde reunia a nata da sociedade. Era costume em Paris, então, reunirem-se os políticos e os intelectuais até alta noite, bebendo café, comendo frutas e exercitando o espírito em palestras. Numa dessas reuniões, à qual levou Denise, Braille teve oportunidade de conversar com Alphonse Thibaud, que lhe perguntou por que o grosseiro método do relêvo. "Veja", disse Thibaud, "o senhor é rico, jovem, inteligente e dispõe de tempo. Dedicar-se a esta missão, nessa época de luzes, seria uma boa coisa para o senhor". Braille respondeu com tamanho ressentimento, que espantou tanto ao ouvinte quanto a si próprio. "Que é que o senhor deseja que nós façamos, cavalheiro? Isso é fácil de falar, mas que é que o senhor quer dizer?" perguntou amargamente. Thibaud caiu em si, "Desculpe-me", disse, "bem percebo o quanto o ofendi. Mas parece-me que, com bastante aplicação, talvez fôsse possível descobrir um novo método. De maneira alguma tive a intenção de magoá-lo", explico polidamente, continuando. "Veja, o senhor sabe perfeitamente as dificuldades que encontra em informar-se a respeito do que se passa ao seu redor. Por que não seria uma boa idéia?" "Pois eu vou dizer-lhe porque", retrucou Braille. "É dever dos que vêem achar êsse geito. Como poderei eu, que tateio no escuro, realizar isso? E como seria fácil para os que vêem! Não me são familiares as coisas que para os outros são comuns. Quanto mais jfácil seria para os que vêem! E continuou:"O senhor diz que sou rico, que sou inteligente. Não, não sou nada disso. As minhas chamadas riquezas foram amealhadas por um pai que trabalhou duramente, e minha inteligência é apenas uma farsa. Os moleques das ruas de Paris sabem mais do que eu. Não, não sou nada. Os que vêem é que devem ajudar-nos. Êles é que poderão encontrar o meio a que o senhor se refere", disse, teimoso. "E se os que vêem não se incomodarem?" perguntou Thibaud. "E se êles não ligarem?" Thibaud exprimia o grande conflito que se apresentara após a Revolução Francesa, a questão de saber se o indivíduo é responsável pelo bem-estar do companheiro, a nova crise de relações que tinha surgido para dirigir as fôrças do mundo e modelar a história. "Existe no mundo, hoje uma revolução de pensamento", disse Thibaud. "É possível que atinja até os cegos. Já atingiu muitos setores, como por exemplo o dos velhos e o dos muitos pobres. O que eu quero dizer é que talvaez um cego possa apressar aquilo que, a meu ver, é dever dos que vêem, isto é, ajudar aos seus irmãos cegos". Thibaud era conselheiro comercial do Govêrno Francês e, por isso, muito cauteloso no falar. "É, talvez o senhor me tenha ensinado uma coisa", ponderou Braille, levantando-se e procurando a bengala. "Talvez me tenha ensinado algo. Venha, Denise, estou cansado". De volta, Braille caminhou pensativo pelas ruas estreitas e sujas de Paris. "Que acha você do que aquêle homem disse?" perguntou a Denise. "Confesso que fiquei impressionada", respondeu ela. "Não compreendo por que havia de ser tão difícil conseguir o que êle diz, nessa época da ciência", completou. "Você não compreende! Veja, Denise", disse êle parando para encará-la. "Olha os meus olhos. Eu não posso vê-la! Pois não me compreende? Não posso vê-la! Não posso ver nada... disse, erguendo a voz estridente. "Pois veja agora", continuou êle, como para forçar o argumento. "Eu lhe explico. Não posso entender a metade das coisas que você me diz, e que leu nos jornais. Estou longe da vida. Percebe?" e ajuntou: "Como é êsse canhão de que você me fala? Qual é a forma de um canhão? Que é que você quer dizer quando afirma que os inglêses adotaram novas modas masculinas? Que é moda? Você me diz que tem novo chapéu côr-de-rosa. Esplêndido! Mas, por Deus, que é cor-de-rosa? Que é cor-de-rosa? Gritou novamente. Denise começou a chorar. Luìs ficou aflito. "Desculpe-me, não chore. Muitas vêzes falei assim comigo mesmo, mas, em nome de Deus - e olhe que falo humildemente - que é cor-de-rosa? Perdão, mas que é cor-de-rosa?" No seu tormento êle começou a chorar e apertou a mão contra os olhos, sob pálido luar de Paris, enquanto a moça também chorava e repetia:"Mas a côr-de-rosa não importa, não importa saber o que é! Creia-me, isso não é importante". Beijou-o levemente na face e, tomando-o pelo braço, conduziu-o à casa, murmurando-lhe palavras maternais. Pode-se ler no seu diário a angústia e o desespêro qu o assaltaram nesse momento da vida. Naquela madrugada, e em muitas outras noites, êle escreveu febrilmente no seu diário, êsse grande e desajeitado livro, que se formou de maneira tão árdua e dolorosa. "Procurarei formular o problema tão cientìficamente como um matemático. Sou cego. Não posso ver. Está claro? Esplêndido. Isso pelo menos está claro. Sou cego e não posso ver. Agora vem o problema: Como posso arranjar um meio de ver? Como poderei ler o que foi escrito pelos que vêem? A respeito da história. Da arte. Da medicina. Da política. Das mulheres e dos homens que vivem em tôrno de mim. do mistério do nascimento e do amor. De Denise. Que devo fazer com ela? O quê? Em suma, como será possível a mim, cego, conseguir um lugar no mundo, como parte dêsse mundo? Como poderei conseguir meu lugar, não em igualdade de condições com os que vêem, pois isso é manifestamente impossível, mas quase no mesmo nível? Como poderei ler e escrever os escritos, não muito tempo depois de haverem sido feitos, de modo que não fique muito atrasado em relação ao que se passa? Será isto insolúvel? Talvez seja, mas não posso aceitar que seja. Digo aqui e agora que, se isto fôr insolúvel aniquilar-me-á. Deixo bem claro: se não puder encontrar um meio de ler, escrever e compreender a vida em tôrno de mim, por meio de uma fórmula clássica e simples, então eu me matarei. Como cheguei a essa palavra "insolúvel"? É uma bela palavra, e se a conheço e posso usá-la, então nem tudo é sem esperança. Pois então, muito bem. Foi pelo método do relêvo que eu cheguei a essa palavra. Antes dêle jamais a teria conhecido, essa palavra grande e importante, a distinta palavra "insolúvel".. Antes do relêvo eu teria sido ensinado pelo método das varetas, e nunca teria encontrado essa bonita palavra. Estou, pois, muito adiantado. Isso tudo é formidável. Vejam agora, posso escrever. Posso colocar meus dedos nos relêvos do papel e reconhecer as letras pela sua forma, e não pelo seu aspecto. Sem dúvida, formidável. Conheço as palavras só pelas letras. A dificuldade resolve-se, portanto, na tentativa de fazer que os dedos andem tão depressa como os olhos. Será isso possível? Não, não e, realmente, é impossível". E aqui o seu raciocínio empacou. "Muito bem, o fato é que eu aprendi a ler de acôrdo com os valores dos que vêem. Que convencimento tentarem os cegos usar o mesmo alfabeto, as mesmas fórmulas usadas pelos que vêem! Que ridículo! Sem dúvida, ridículo. Por que haveremos de limitar-nos às coisas usadas pelos que vêem, quando os seus métodos foram desenvolvidos para os olhos? E nós, nós não temos olhos. Como é terrìvelmente ridículo querermos seguir os caminhos traçados para os que vêem! Como poderão os cegos, sem olhos, pensar sequer em usar os petrechos dos que vêem? O absurdo é fantástico. É até uma estupidez.. Existe nisso tudo alguma coisa de errado. É arrogância, é indolência querer que os que vêem esperem que os cegos os alcancem, querer que êles escrevam devagar, que falem devagar, para que nós possamos ler devagar os que êles escrevem. A solução está, pois, num sistema que nada tenha que ver com os olhos. Deverá basear-se no ouvido? Nosso ouvido é tão bom e tão rápido como o dos que vêem. Há quem diga ser até mais rápido. Estará nos sons a resposta? Podemos conseguir sons mecânicos? Uma espécie de conversa por meio de sons? Haveremos de experimentar. Estará no cheiro a resposta? Dizem que o nosso olfato é mais agudo do que o dos que vêem. Será possível que alguma espécie de odor possa servir de palavras, por intermédio do nariz? É engraçado, mas por que não? Será o tato, da maneira por que hoje o empregamos, uma solução melhor? Estará nêle a solução final? Haveremos de ver. O usarmos hoje o sentido do tato não significa que nêle resida a última solução. A atual situação não é satisfatória. Basta ver a maneira desajeitada pela qual escrevo e leio! Talvez a solução esteja no sentido do gôsto, o último que falta. Teremos de provar as palavras? Isso também é engraçado, mas não mais do que o tato, por exemplo. Por que o paladar, o olfato e o ouvido não de ser engraçados, quando o tato não é? Por que? E assim Luís Braille descreveu o seu impasse, a sua crise, em seu francês normando, duro e arcaico, com palavras laboriosas e doloridamente nascidas, feitas de letras enormes, como as de um menino de escola, muito atrasado. As letras do seu diário parecem atormentadas, desencontradas como os problemas que ele levantava. São altas e pontudas como a sua impaciência. Dirigiu-se à janela e voltou o rosto para fora. Sentiu um frêmito nas pálpebras, quando estas foram atravessadas pelo luar e pela sombra. E sentiu também uma pequenina pontada nos olhos, como sempre acontecia quando a luz batia nêles, depois de haverem permanecido na sombra. "Será essa dor um milagre? Talvez se realize um dos milagres de que o cônego fala", suplicava. Naquele tempo, que todavia não é tão distante do atual, os homens viviam mais chegados aos milagres e acreditavam firmemente nêles. Empolgou-o um pensamento: "Se eu recobrasse a vista, por milagre, esqueceria meus irmãos cegos? E veementemente jurava, em resposta: "Nunca, nunca!" E lançou um desafio a Deus: "Dê-me de volta a minha vista e veja se eu esquecerei meus irmãos! Experimente!" Mas nada acontecia. A dor passava, e êle caía em profundo sono. Nos meses seguintes tornou-se inquieto e pediu um mês de licença. "Quero voltar novamente à minha casa. Preciso pensar e afastar-me um pouco daqui", disse ele. Deram-lhe a licença. Fêz as malas, feliz, e tomou a diligência, que partiu pela estrada áspera, que o inverno endurecera. Foi muito terna a despedida de Denise. Ela o beijou na testa e deu-lhe um embrulhinho com alimento para a viagem. Êsses cuidados maternais empolgaram-no. "Você é como irmã para mim", disse êle, estouvadamente. Denise não gostou, e assim se separaram por algum tempo, êle com a sensação de um destino fracassado, e com aspecto de quem tem uma obra a realizar, e ela com sensação de perda. A mãe repreendeu-a severamente e disse-lhe que esquecesse aquêle moço ingrado, que só pensava em si próprio. "Você é muito tôla. Se êle ao menos fosse rico, poderia ser um bom casamento, mas não passa de um pobre cego e nós somos mais ricos do que êle", dizia, procurando convencer Denise. Mas a moça não esqueceria Luís nem o afastaria de seu pensamento. CAPITULO 6 MAIS PERTO DO HORIZONTE O JOVEM Luís regressou à casa paterna, agora ocupada por um sobrinho de seu pai, que tomara a seu cargo a oficina. Foi recebido gentilmente, mas não pôde tolerar o cheiro de couro que se espalhava por tôda a casa, pois êste o fazia recordar a sua desgraça e a perda do pai. Visitou o velho advogado, já muito idoso. Conversaram a respeito do vigário da aldeia, que falecera, e dos assuntos que no momento eram objeto de comentário no lugar. "Eu o aconselharia a casar-se, meu filho", disse o advogado, George Lamontoire. "Não faltam moças, aqui na aldeia, que gostariam de desposá-lo. Assim você ficaria entre os seus, entre os que o conhecem e conheceram seu pai e seu avô". Luís encolhia os ombros, embaraçado. "Nenhuma me quereria, disse. "Além disso, como haveria de saber se a moça é bonita?" continuou, com ar trocista. O advogado fêz um gesto com a mão. "Basta que seja moço e forte. Você precisa de ter a seu lado alguém que cuide de você". Luís tornou a sorrir, desanimado, e a dar de ombros. "Há coisas mais importantes", disse, afinal. Na casa paterna instalara-se em seu velho quarto e lá, cercado pelas paredes familiares, nas quais reconhecia novamente as falhas do rebôco, que os seus dedos identificavam como paisagens e cabeças de animais, sentiu-se feliz por algum tempo. Mas a melancolia, em parte motivada pelo cheiro do couro, não tardou a aborrê-lo, e por isso o moço pediu ao advogado que o deixasse morar com êle e sua família, por algum tempo. "Sinto-me solitário demais na velha oficina paterna. Em sua casa, o senhor poderá, ao menos, contar-me as coisas maravilhosas que tem visto e apreciado em Paris", disse êle enlevado.. "Com todo prazer o receberemos em nossa casa", respondeu com simplicidade o advogado. Lamontoire não se mostrou muito impressionado, nas conversas que se seguiram, com o propósito que Luís manifestava, de procurar uma nova linguagem para os cegos. "Existem coisas mais importantes", disse. "A França está num turbilhão. O mundo também. A Igreja escarnecida. Os homens de hoje, se sensatos, dedicam-se a maiores empreendimentos", disse, aèreamente. "Além disso, os cegos acham-se em minoria. Você devia empregar o seu talento em coisas maiores", repetiu. "Case-se, tenha filhos, um lar! Encontrará satisfação nisso. Afinal, não há muito mais que fazer, nem mesmo para uma pessoa que vê, e dêsse modo a sua vida se aproximará da normalidade". Luís sentia-se desiludido, à medida que o advogado falava. "Você é moço. Sente seu mal agudamente, talvez mais até do que deveria. Não vejo razão para isso, a não ser que você seja uma criatura mais sensível do que as outras. Muitos homens venceram as suas dificuldades, sem se engolfarem nelas. Não vejo por que você também não o possa conseguir. Creia-me, ninguém se importa dos paralíticos, dos coxos, dos cegos". E continuou: "Sou materialista. Gostaria de aconselhá-lo a investir o seu dinheiro - o dinheiro que seu pai deixou - em qualquer coisa prática, que lhe assegurasse uma renda, ainda que pequena. Aqui pelas redondezas existem muitas propriedades que você poderia comprar e explorar. Ouça-me, meu bom amigo. É por isso que eu fiquei contente com a sua vinda a Coupvray. Até andei pensando em escrever-lhe a êsse respeito. Luís começou a falar, e o advogado, percebendo a sua amargura, interrompeu-o. "Não quero dizer que você esteja errado. Tudo que você pretende é muito digno", prosseguiu, tomando um gole de vinho, "mas acho que você não deve concentrar-se exclusivamente em si próprio e na sua cegueira. Saia de dentro de si mesmo. Você possui alguns recursos. Aprenda a viver como outras pessoas de sua idade. Não longe daqui existe uma viúva moça, a quem já falei a seu respeito. Ela bem que cuidaria de você. Sua infelicidade foi muito grande, pois o marido foi morto por um touro, um ano após o casamento. Desculpe-me se insisto", continuou o advogado, "mas seria muito bom que você se estabelecesse, casasse e se aproximasse de uma existência normal. Acharia confôrto nos filhos". E prosseguiu: "Você tem sofrido muito. Acho que agora devia divertir-se". E voltou ao vinho, um tanto constrangido. Luís permaneceu quieto por uns momentos. Quase podia ver a viúva moça, sentir o cheiro de um bom jantar e imaginar-se entre os próprios filhos. "Por que não?" De repente deu de ombros, involuntàriamente, e falou: "Senhor, tenho o maior respeito por sua pessoa, mas o senhor não compreende. Não pode entender". E chorou. "Talvez eu esteja emocionado demais, por estar em Coupvray. Não queria chegar ao ponto de chorar", disse hesitante. "Falaremos disso depois, algum outro dia. Agora vamos comer', ponderou o advogado. E erguendo a voz, gritou: Eh, maman, que temos para o jantar? Pelo fim do inverno, estando geladas e duras as estradas, Luís saiu um dia a passeio, como de costume. A neve já se havia derretido, mas começara a fazer um frio prematuro e persistente de primavera. O ar estava puro e linpo. Cabaça ereta, inspirando forte, o moço pensou despreocupadamente no que haveria para o almôço, e deixou que o espírito vagasse, livre, na direção da viúva desconhecida. Mas logo voltou a pensar no almoço. Seu apetite nunca estivera melhor. Pela primeira vez, desde que se fizera moço, vivia no seio de um lar, saboreando os aspectos saudáveis da vida familiar e gozando da comida doméstica. Melhor do que qualquer outro, talvez, êle apreciava essas coisas, por viver há tanto tempo sem lar. Enquanto caminhava ao longo da estrada, batendo a bengala e tateando com ela pelos musgos macios das árvores, que lhe marcavam o caminho, julgou ouvir um eco. Bateu com mais força e o eco retornou. O ruído aproximou-se. Luîs parou, mas o ruído se fêz novamente ouvir e, com aquêle instinto de antena, que os próprios cegos não podem explicar, sentiu uma presença junto de si. "Bonjour", disse alegremente. "Bonjour", respondeu uma voz. "Era você que estava batendo:" "Sim, era eu". "É cego?". "É cego?" Estas duas últimas perguntas surgiram ao mesmo tempo das duas pessoas, que se adiantaram, cada qual procurando as mãos da outra, e se cumprimentaram. "As donas de casa são generosas, por aqui?" perguntou o estranho. "Generosas?...que quer dizer?" indagou Luís, espantado. "Ora, ora", disse o homem. "Poderei arranjar comida por aqui? E uma cama para dormir? Ontem eu dormi num celeiro. Não como desde ontem de manhã. Os cães enxotaram-me da última aldeia, para lá da colina". E acenava para trás, com a bengala. "Venha comigo", disse Luís muito aflito. "Venha comigo. Não tem dinheiro?" perguntou, como para experimentar o estranho. "Que brincalhão que você é!" disse o outro. "Quase me faz arrebentar de tanto rir. Que quer com essa história de perguntar se tenho dinheiro? Será que os fazendeiros daqui lhe dão dinheiro?" Luís não respondeu, mas tomou-o pelo braço e, triste, conduziu-o pela estrada, na direção da aldeia. No quarto aquecido, enquanto o fogo crepitava no velho fogão, Luís podia ouvir o estranho desvencilhar-se das roupas. Parece haver muitas delas. O mau cheiro era sufocante. Luís pediu à mulher do advogado que desse de comer ao pobre. Diante da comida, Luís dirigiu-se, tateando, à sala de visitas. "Desculpem-me, desculpem-me, eu não sabia que êle era assim". "Que esperava você?" retrucou o advogado. "Ele é cego, é um mendigo profissional. Não estou fazendo pouco caso, mas apenas sendo realista. Que outra sorte aguarda os inválidos? Não escondo, como você deve saber, o que penso de seus pais: êles eram fora do comum. Considere-se feliz! Não posso deixar de dizer que, se êles tivessem seguido a norma usual, talvez o houvessem vendido a algum fazendeiro miserável, para trabalhar como escravo, para sempre. Espero que você veja, neste incidente, uma lição objetiva. Aconselho-o a empregar o seu dinheiro em alguma coisa que o ponha a coberto de uma situação dessas. Digo-lhe isto porque sou seu amigo". Luís subiu a escada, tateando, entrou em seu quarto, apanhou uma porção de roupas e voltou à cozinha, sôbre cuja mesa colocou todo o dinheiro que tinha nos bolsos, assim como as roupas, fazendo entrega de tudo ao estranho. "Que nome tem?" perguntou contrafeito. "Nome? Ora, nome, para que preciso disso?" perguntou o estranho com brutalidade. "Preciso de um nome para andar tateando pelas estradas? Você parece tonto!" "Quer levar algumas comida?" indagou Luís. Foi preparado um farnel para o mendigo, que se pôs a caminho, depois de haver murmurado a Luís: "Você está bem arranjadinho por aqui, hem?" Luís não respondeu, mas permaneceu de pé na estrada, até não ouvir o ruído da bengala do estranho. "Acho que não tenho sabido reconhecer o quanto sou feliz", disse ao advogado, naquela noite, após um longo silêncio.. "Não, Luís, você não sabe", respondeu o advogado, com veemência. E bateu forte o cachimbo contra a lareira. "Não seria possível imaginar melhor exemplo para você testemunhar. O que viu e ouviu é típico. Você não avalia o quanto é feliz". E prosseguiu: "Creia-me, sou seu amigo, sou como um pai para você. Lembro-me perfeitamente de quando você ficou cego e das conversas que então mantive com seus pais, a seu respeito. Peço-lhe mais uma vez que veja o êrro em que está incidindo. Peço-lhe que deixe aquela escola e se estabeleça. Você tem dinheiro bastante para viver sem trabalhar. Pode ter uma boa fazendola e contratar outras pessoas para trabalhar para você. Assim terá estabilidade. Ouça-me meu filho, antes que seja tarde demais!" Luís aprovava com a cabeça, mas não dizia nada. "Não discutirei com o senhor, meu amigo, meu bom amigo... Mas há muita coisa que o senhor não compreende. Minha vida não é nada..." O advogado esvaziou o cachimbo e subiu a escada. Cada passo seu soava como uma reprovação. Naquela noite Luís não dormiu muito. De manhã cedo procurou a pequena igreja onde fôra tantas vêzes com os pais. Sentou-se no último banco daquele templo frio e silenciosoo. "Que estou fazendo aqui?" perguntou. "Que estou fazendo aqui? Meu lugar é ao lado do mendigo cego. Sou um traidor, pois vivo confortàvelmente, enquanto êle leva vida de cachorro, batido aqui, enxotado dali... "E continuou: "Pelo menos ele às vezes se encontra entre seus semelhantes, e realiza o seu destino. Eu não passo de uma caricatura de ser humano, vivendo confortàvelmente. Sou culpado". Sentiu ímpeto de sair da igreja, meter-se pela estrada e perder-se no mundo, como mendigo. "Que perderei? Alimento? Roupas? Por que não?" Sentia-se enobrecido com tais pensamentos e eenchia-se de ânimo. Então a lembrança repugnante do fedor do mendigo voltava. "Será isso nobre? Será uma boa solução? Que provarei com isso?" Passava a acusar-se, então, de covardia. "Estou procurando justificar meu confôrto. Estou procurando arranjar motivos para me sentir melhor. Em minha cegueira, digo a mim mesmo que sou uma criatura especial. Mas o que sou é um grande caloteiro. Por que não vou ao encalço do pobre e não me ponho a seu lado? Sei muito bem por que. Sou um grande farsante, eis o motivo. Tenho mêdo, esta é a verdade. Se manifesto desprêzo por mim, é porque estou protegido e vivo no macio". Sua confusão aumentou e êle acabou chorando. Caminhou, depois, pela igreja, na direção do órgão, sentou-se diante dêle e, erguendo a cabeça, tocou suavemente até sentir-se aliviado, enquanto os raios do meio-dia penetravam através dos vitrais coloridos. Então disse, alto:" Uma coisa eu juro. Jamais esquecerei meus irmãos". Sentiu mais fortemente o calor do sol em sua face, e seus pés apertaram com mais força os pedais, à medida que uma íntima satisfação se apoderava dêle. Alguns dias depois, partia para Paris com uma determinação que não o abandonaria para o resto da vida. Jamais renunciaria ao seu voto de dedicar-se à melhoria da sorte dos cegos do mundo. Nem a doença, nem zombarias, nem a música, a música que era o seu maior e principal prazer, o deteria. Era um homem predestinado. O encontro casual com o mendigo ajudara-o a tomar a melhor resolução. Os tempos ainda não estavam maduros para experiências dêsse gênero nem para a obtenção de apoio de pessoas ricas para uma obra social como essa de melhorar a sorte dos cegos. À queda de Napoleão seguira-se o Congresso de Viena. E a verdade é que, embora as resoluções do Congresso falassem, com eloqüência, da liberdade e do bem-estar do homem, essas coisas não passavam de palavras. Desenvolvera-se também um movimento de reação. A totalidade da Europa estava dominada por homens de idéias conservadoras, que não queriam mudar as coisas. Seus interêsses seriam mais bem defendidos pela conservação do estado de coisas vigente. Por isso combatiam as mudanças. Muitas pessoas e instituições, que poderiam ter auxiliado Braille em sua obra, haviam sido colhidas nas garras da desgraça. Os preços entravam em colapso, os impostos aumentavam, os fazendeiros não conseguiam vender seus produtos, acentuara-se o desemprêgo. Maus tempos para conseguir que alguém derramasse uma lágrima pelos cegos. Em outras épocas talvez Braille fôsse mais feliz e conseguisse realizar seus projetos de maneira mais suave. É interessante notar que muitos e muitos anos ainda haveriam de passar antes de Braille obter o reconhecimento a que faria jus pelo seu curso de leitura e escrita. A história nunca nos desaponta. Nem de mais nem de menos, mas sempre responde ao menor movimento. Braille devia ser parte daquele tortuoso, doloroso e não reconhecido movimento. Havia grande desinterêsse por tudo o mais. Mas por baixo da reação, da miséria e da indiferença, o período em que Braille lutou tão valorosamente - (começou seus esforços sérios com a idade de dezessete anos, em 1826) - foi um período de muito pensamento, que deveria desembocar num outro, de ação. Influenciados pela Revolução Francesa, os homens começavam a duvidar de que a infelicidade e a pobreza fôssem ordens de Deus, como diziam os poderosos de outrora. Os cientistas começaram a abrir novos caminhos, desfazendo os velhos preconceitos, um dos quais era, por exemplo, o de que o nascimento devesse ser acompanhado de dor. Os homens começaram a olhar para as estrelas e para dentro do solo. Êsse renascimento, êsse pesquisar e lutar, haveria de consubstanciar-se nas magníficas descobertas e invenções do fim do século dezenove, que deveriam abrir caminho para o nosso maravilhoso século. Braille foi um dos inúmeros sonhadores que, por baixo da superfície dos hábitos conservadores e dominantes, continuavam a sonhar com um mundo melhor. Não foi uma exceção. O mundo estava cheio de pessoas assim. Havia os que sonhavam com navios que não precisassem do vento para seguir suas rotas. Outros sonhavam com veículos que viajassem pelo ar. E também havia os que sonhavam com navios que navegassem por baixo d'água. Havia médicos que se mostravam impacientes diante da teoria de que tal ou tal doença seja uma sentença inapelável de morte. Pessoas havia que se dedicavam ao preparo de melhores dentes postiços e outras que procuravam descobrir drogas que abolissem a dor. Na indústria, naquele tempo, havia pessoas de imaginação que perguntavam se o destino da humanidade era o de servir de besta de carga e se não haveria meios de fazer as coisas de maneira mais fácil, pelo aproveitamento das propriedades físicas da natureza. Entre êsses pensadores, que pertubavam a ordem das coisas, na esteira da Revolução Francesa, havia homens como Braille, que não consideravam como escória humana os inválidos, de nascença, ou por acidente. Desconhecidos dêle, durante toda a sua vida, outros homens reuniam estatísticas para provar que a maioria dos cegos devia sua infelicidade à doença e não a acidentes. Procuravam mostrar que era possível vencer a cegueira congênita. Eram precursores do que hoje chamamos de medicina preventiva. Havia homens que trabalhavam na obtenção de pernas e braços artificiais, para os que sofriam amputações, enquanto outros se dedicavam à descoberta de dispositivos que beneficiassem os surdos. Braille não estava só nesse esfôrço de encontrar uma porta de saída para os cegos. Do outro lado do oceano, na América, outros homens, desconhecidos dêle, também, se dedicavam à mesma tarefa. Se soubesse de tudo isso, Luís sem dúvida se sentiria encorajado. Sua vida, além da música, não teria sido apenas amargura e solidão, qualidades que parecem afligir os gigantes da civilização, no curso de suas lutas. Como outros homens de gênio, Braille julgava-se só, uma voz no deserto. Ainda não se haviam desenvolvido sociedades internacionais que assegurassem o intercâmbio de idéias de um país com outro. Muito raras eram as traduções das pesquisas. Durante o século dezenove houve, por isso, uma penosa duplicação de esforços em todos os campos de aspiração humana. Certa criatura inventava uma coisa e depois descobria, com surpresa, que outra pessoa, em outro país, e muitas vezes no mesmo, chegara às mesmas conclusões, talvez ao mesmo tempo. Assim, sob as correntes de um mundo desordenado, que procurava salvar os resíduos feudais deixados pela Revolução Francesa, Braille e milhares de homens como êle, sonhavam, lutavam e desiludiam-se. Jamais vimos gigantes como êsses do século dezenove, que não tinham lar, nem família, nem espíritos afins que os compreendessem. Nada mais compreendiam êles senão que tinham que lutar. E em geral lutavam sòzinhos. Muitos, como Braille, morriam prematuramente, inteiramente gastos. Muito, como Braille, conseguiam realizar o que desejavam. Muitos não o conseguiam e por isso permaneceram ignorados. Por um triz Braille escapou de ficar desconhecido da história. CAPITULO 7 A CHISPA Braille entrava agora na fase mais importante de sua vida, a mais feliz, a mais compensadora e também a mais frustrada e amarga. Em oito anos encontrara paz na sua música e tornara-se um dos mais notáveis organistas e violoncelistas da Europa. Na música achara grande prazer, muita fama pessoal e, mais importante ainda, conseguira os fundos necessários para levar avante suas pesquisas em tôrno de um novo sistema de leitura e escrita para os cegos. Nesse ínterim, continuava a ensinar no Instituto. O programa diário exigia muito de sua saúde. Nunca fôra robusto, sua tosse piorou. Mas êle não se importava e não dava ouvidos aos conselhos dos que lhe eram mais chegados. Mergulhou profundamente em seus estudos de órgão, e em pouco tempo tornou-se mestre, dando aos vinte e cinco anos um concêrto, em Paris, que foi aclamado pelos maiores músicos da Europa. Também escreveu muitas composições com o auxílio de amigos que guiavam seus patéticos esforços no sentido de pôr no papel aquilo que cantava no seu íntimo. Pouco comia e continuava a andar ao léu, pelas ruas de Paris, sòzinho. Era convidado a muitos serões musicais, aos quais em geral comparecia acompanhado de Denise. Após um de seus recitais proferiu conferência em que defendia a idéia de ter sido reservada aos cegos a missão de criar música para o mundo. Dizia que "a sensibilidade, o sentido cromático e a aguda audição são nativos nos cegos. Privados da côr da natureza, dos verdes e dos azuis de que nos falam, somos perseguidos, dentro de nós, pelo fantasma dessas lembranças. Por que não hão de os governos instituir grandes escolas para a educação musical dos cegos? Não é uma teoria má, meus amigos. Pensem nos milhares de cegos que podem tomar a si uma grande parte de nossa cultura e dar-lhe forma e acabamento novos. Por que não? Naquele tempo Paris tinha, entre os veteranos das guerras napoleônicas, mais cegos do que em qualquer outra época de sua história. Robustecido pelo aplauso com que sua teoria fôra saudada, Luís chegou a reunir, certo dia, mais de uma centena de cegos em seu instituto, para pô-la à prova. "Senhores, disse na primeira palestra, vamos dar-lhes a oportunidade de mostrar ao mundo que os cegos não foram postos à margem, como uma classe especial. Com isso terão, também, a possibilidade de ganhar a vida de maneira digna. Queiram ajudar-me a estudar com firmeza. Em um ano, talvez mesmo em seis meses, muitos dos senhores serão pessoas valiosas e cheias de dignidade, graças à música". Mais tarde ele confessou que estava apenas procurando assegurar aos pobres um lugar ao sol. "Nunca pude escapar à idéia de que fôssemos uma classe predestinada, e a música me parecia um ótimo meio de demonstrá-lo". Foi olhado como louco, por causa dessa experiência de ensino em massa. Seus amigos músicos deram de ombros e disseram que o que importava era o talento, e não a cegueira. Seja lá como fôr, a verdade é que a teoria de Braille não foi provada nem rejeitada. Diversos daqueles cegos perseveraram e tornaram-se hábeis num ou noutro instrumento. Mas a maioria, triste é dizer, interessava-se mais por encontrar um lugar aquecido, em que pudesse sentar-se e tomar um prato de sopa, que acompanhava cada lição, do que pela teoria. Naquele tempo o Govêrno foi forçado a pagar uma pequena indenização e pensão aos veteranos inválidos, tão grande era o número de mendigos profissionais deixados pelas guerras. E assim a classe de Braille ficou em pouco reduzida, apenas, aos que realmente gostavam de música e revelavam talento. Braille defendia-se e à teoria, dizendo que não era sua idéia que estava errada, mas sim a constituição das classes, com soldados profissionais que tinham, naturalmente, pouco interesse em assuntos culturais, como a música. Que êle não estava inteiramente errado, prova-o a existência, no mundo atual, de um grande número de cegos que se tornaram grandes pianistas, cantores e violinistas. Em 1826, não sabemos bem em que estação do ano, Braille estava certa vez sentado num café, ouvindo ociosamente a leitura das notícias do dia, feita por Denise, sua fiél companheira. Bebia vinho e prestava atenção ao relato das teorias de um filósofo inglês, Jeremias Bentham, que defendia a tese da obrigação, por parte dos governos, de zelar pelo bem-estar dos cidadãos ou súditos. "Êsse homem está nos tirando da selva", comentou Braille. "Para que servirá o govêrno, dizia, senão para servir os cidadões?" Denise continuava a ler a respeito da teoria de Bentham sôbre um govêrno baseado na "lei e na moralidade", e na qual ele atacava as chamadas leis "naturais" da economia. "Ele tem razão, sim, ele tem razão! Como funcionarão as leis "naturais", por exemplo, para os cegos?" perguntava. "Acham eles um lugar "natural" na economia? Será "natural" serem eles mendigos e ladrões? Estou certo de que à economia custa mais colocá-los nas prisões e perseguí-los nas estradas do que dar-lhes oportunidade de trabalho produtivo, com o qual possam sustentar-se a si mesmos". Denise percebeu que o moço se inflamava. Ultimamente Braille começara a irritar-se com facilidade. Nada havia de extraordinário em sua vida. Não via futuro nela. Sentia-se derrotado e sem objetivos. A moça passou para outro artigo do jornal. Braille começou a ouvir negligentemente, depois inclinou-se para a frente e sua face contraiu-se. Encarou-a firmemente como os olhos cegos. "O Sr. Charles Barbier, ex-capitão do exército" - lia a jovem - "acha que seu sistema de transmissão noturna de mensagem talvez pudesse ser ensinado aos cegos, para que o desenvolvessem em seu benefício". "Leia de novo, leia de novo!" gritou Braille. Denise leu todo o artigo novamente. Dizia que o Capitão Charles Barbier, do exército frânces, havia inventado um sistema pelo qual uma sentinela, num pôsto avançado, podia receber a mensagem de outra, e lê-la, sem necessidade de luz". Em resumo, o sistema consistia numa série de figuras em relêvo, sôbre um papel grosso. Passando os dedos ao longo das elevações, feitas com um picotador, era possível reconhecer mensagens simples, como por exemplo, "inimigo à esquerda", "fogo de barragem", "mandem reforços". As sentinelas podiam ser ràpidamente ensinadas a decifrar essas mensagens. Um círculo elevado, como a cratera de um vulcão, poderia significar "estamos cercados"; um triângulo significaria" estamos cercados por três lados, e assim por diante. As elevações poderiam ser feitas com uma sovela afiada que, sem furar, forçasse o papel, cavando depressões que, pelo outro lado, pareceriam elevações. Braille reclinou-se em sua cadeira, chupando pensativamente o castão de sua bengala. "Isso outra vez não pass de relevação", murmurou. Mas é relevação de espécie nova, de manejo automático. Empolgou-o, de súbito um pensamento. "Por Deus", exclamou. "Por Deus!" disse batendo a bengala. "É isto o que eu queria! É isto"! Denise levantou-se espantada e contrafeita. "Luís, Luís, acalme-se!" disse, olhando em tôrno. "Garanto, Denise, garanto que achei!" tornou a exclamar, fazendo uma espécie de pirueta em tôrno da mesa, e apanhando o jornal que estava nas mãos dela. Os fregueses do café pararam de comer e conversar, e osalão ficou sillencioso, enquanto o cego colocava o jornal diante dos olhos, como se, por algum sobre-humano poder, pudesse obrigá-lo a enxergar. Continuou a falar alto e quando o dono do café veio correndo, deixou-se cair na cadeira, enquanto as lágrimas lhe rolavam dos olhos. O dono disse, polidamente. "Senhor Braille, acalme-se por favor, o senhor está pertubando meus fregueses". "Desculpe-me, meu amigo" disse Braille, "estou muito contente! A tarefa agora é simples! Mas o senhor não compreende o que quero dizer... Olhe, disse, atirando sôbre a mesa um punhado de dinheiro, "pago ma garrafa de vinho para cada um dos seus fregueses, para celebrar! Êste é um momento histórico!" Denise pôs-se a seu lado: "Luís, Luís, você me espanta... Por favor, Luís..." O moço agarrou-a e abraçou-a "ahá", disse com emoção, "não se espante, minha pobre menina, amanhã comprarei um vestido para você, um vestido que deixará Paris boquiaberta. Você fará inveja a uma duquesa. E bem o merece. Mais tarde contarei porque..." Ela o ajudou a levantar-se e acompanhou-o à porta. Os fregueses observavam a cena com a aflição e o constrangimento com que em geral se olham os cegos. "Aquêle está ruinzinho", Luís ouviu alguém dizer. "Não por muito tempo, não por muito tempo", respondeu ele, voltando a cabeça alegremente. Enquanto Denise o acompanhava ao Instituto, Luís mal se pode conter, tão excitado estava. "Amanhã você tem de me ajudar", dizia. "Precisamos encontrar o Capitão Barbier". Passou a noite toda andando de lá para cá e pensando, até sentir a cabaça estalar. Não teria descanso enquanto não obtivesse maiores informações tinha a fronte quente e bebeu muitos copos d'água durante a noite. Às sete da manhã surgiu em casa de Denise, cansado e desfeito, depois de passar a um substituto o encargo das aulas. "Luís, Luís, você assim fica doente", ponderou Denise, suavemente. Luís afagou os cabelos dela e disse: "Não se preocupe comigo, minha menina. Sinto-me muito feliz". Foram juntos à Igreja de Santa Ana para avisar ao cônego que ele não poderia tocar naquele dia. "Estou a serviço de Deus", disse. O cônego olhou para Denise, que encolheu os ombros desarvorada. "Que se passa, Luís?" perguntou o sacerdote. "Posso ajudá-lo? Você parece desorientado", continuou, pondo a mão em seu ombro. "Preciso resolver isto sòzinho", respondeu o moço, que quase dançava de impaciência. "Agora vejo tudo. Não muito claro, saibam, mas vejo", repetia a todo instante. "Venha, Denise! Venha, menina!" Entraram num carro e tocaram ràpidamente para a redação do jornal que publicara o artigo. Lá, só encontraram uma servente que lavava o chão e lhes informou que o escritório do diretor só abria ao meio-dia. "Assim nada se fará", retrucou ele. "Onde mora esse homem?" A mulher explicou, e eles partiram velozmente para a casa do diretor, num subúrbio de Paris. Lá chegando, Luís tirou o pobre homem da cama e pediu que lhe dissesse onde poderia encontrar o Capitão Barbier. O diretor não compreendia nada do que o moço falava. "Senhor, percebo que está atormentado, talvez por mais de uma razão", disse acrimoniosamente. "Mas por acaso será isto motivo para despertar um bom cidadão e perguntar-lhe coisas que não fazem sentido? Que é que o senhor deseja, afinal? Quem é o senhor? Braille procurou explicar o caso. O diretor lembrou-se imediatamente. "Ah, sim", disse. "O senhor deve procurar o autor do artigo, Monsieur Priete. Eis o endereço dele, e felicidades!" Lá se foram os dois, apressados, pelas ruas apinhadas, de volta ao centro de Paris. Denise ajudou Luís a subir os degraus de uma velha casa. Cansaram-se de subir, pois a escada parecia não ter fim. No andar mais alto encontraram uma porta com um cartão, no qual se lia o nome do escritor. Luís bateu e tornou a bater com a bengala, decididamente. Através da porta ouviu uma voz áspera, perguntando quem era. "Quem é?" repetiu Luís. "Ah, quer saber quem é? É a história batendo à sua porta, meu amigo! Levante-se e venha cumprimentá-la". Apareceu diante dele uma cabeça enrolada num lenço: "Está louco? Que é que o senhor quer?" Luís explicou rapidamente. "Pode parecer que não haja motivo para despertar um homem no meio da noite. Talvez a coisa pudesse esperar. Ora, não é nem meio-dia ainda?!" "Para ser franco", disse o escritor, "obtive a informação dum artigo técnico de um jornal militar". Prietre deu o nome da publicação a Luís, que, com Denise, se pôs apressadamente a caminho do Ministério da Guerra, onde, segundo Priete, o autor devia ser conhecido. Surgiram dificuldades no ministério. Muitas listas foram consultadas. Gente importante afastou Luís do caminho, passando-lhes à frente. Mais listas foram consultadas por um funcionário meticuloso e resmungador. Só à tardinha conseguiram encontrar o endereço desejado. Nem Denise nem Luís haviam comido coisa alguma durante o dia. Agora estavam humildemente sentados num banco duro e incômodo, num corredor em que o vento encanava. Denise pediu que Luís voltasse a casa para repousar e trocar de roupa antes de procurar o capitão. O aspecto dele era deplorável, as maçãs do rosto muito salientes e a barba por fazer, a dar-lhe o aspecto de moribundo. Nem mesmo assim, entretanto, ele conseguia conter-se, enquanto esperavam condução. "Fique comigo, por favor", suplicou. "Sei que você está cansada, mas se me deixar, os cocheiros poderão enganar-me e furtar-me, e acabarão por atirar-me à rua. Fique comigo, por favor! Você sabe que essa gente é como fera em relação aos cegos". Denise apertou-lhe o braço. "Por certo, Luís, eu estava apenas pensando em você". Seguiram em busca da casa do capitão, que ficava no outro extremo da cidade. Já era noite quando lá chegaram. Felizmente Barbier estava em casa. Braille, de pé à porta, cumprimentou reverentemente com a cabeça:"Senhor, venho procurá-lo a respeito de um assunto de transcendental importância. Peço-lhe que me conceda alguns minutos do seu tempo". O capitão olhou curiosamente para aquele homem desgrenhado e para a moça que, protetoramente, lhe segurava o braço:"Queiram entrar e sentar-se", disse gentilmente, conduzindo-o a uma cadeira. "Dada as circunstâncias, prefiro falar de pé", disse Luís com singela dignidade. E continuou: "Senhor, falo por mim e por todos os cegos atuais e futuros. Poderá o senhor ensinar-me o seu método de transmissão de mensagens à noite? Acho que poderei adaptá-lo às necessidades dos cegos, como o senhor sugeriu". "Sem dúvida", disse o capitão, "não é nenhum segredo militar. Eu mesmo propus o adaptassem". "Agradeço-lhe imensamente por isso também", disse Braille, "pois hoje é raro encontrar, entre os que vêem, interesse pelos cegos. Muito raro". Barbier conseguiu afinal acomodar Braille numa cadeira e mandou que trouxessem vinho e comida. Conversaram até meia-noite, enquanto Denise, em sua cadeira, batia a cabeça. "Minha pobre Denise, meus pobres olhos" disse Braille quando eles partiram na carruagem do capitão. "Você deve estar muito zangada comigo, e muito cansada. Talvez não deseje continuar por mais tempo a ser os meus olhos". "Não estou zangada, Luís. Sinto-me feliz porque você imagina ter encontrado um caminho. Se assim for, encontrará a paz e, com isso", acrescentou timidamente, "talvez possa pensar em outras coisas". O moço, porém, não prestava atenção. De tão cansado, só podia ouvir o que de mais íntimo havia em seu espírito. Tomando por base o método de Barbier, Braille empregou os três anos seguintes, até 1829, em trabalho persistente, dedicado e teimoso. Seus esforços incansáveis, que o haveriam de matar prematuramente, aos quarenta e dois anos, só terminariam quando conseguisse o seu código fácil flexível e perfeito. Mas até que isso acontecesse muitas semanas exaustivas e muitos meses desesperantes tiveram de passar. CAPÍTULO 8 VEJO A AURORA Durante dois anos Braille cansou-se de premer a ponta romba de uma sovela sobre quilômetros de papel mole. Experimentou códigos feitos com os signos do Zodíaco e códigos que usavam os símbolos matemáticos, que aprendera em sua meninice. Procurou descobrir se os aborígenes da Austrália, que, segundo se dizia, falavam por meio de breves guturais, utilizavam algum código que se pudesse adaptar. Símbolos, sinais, letras e teorias dançavam em sua cabeça. Às vezes sofria de dores terebrantes e outras vezes a tosse piorava tanto, que os acessos quase o faziam cair de joelhos. Só comia quando alguém lho lembrava. Seus dias passaram a desenrolar-se segundo um padrão semelhante as de todos os famosos profetas. Seus recursos evaporaram-se e, para refazê-los ele passou a dar recitais de órgão, ao mesmo tempo que ministrava de cinco a sete horas de aula por dia. Emagrecia cada vez mais e com isto fazia aumentar o amor maternal de Denise. Após um ano de experiência e trabalho conseguiu inventar um código que se mostrava perfeito para pessoas que já soubessem ler e escrever. Isto constituiu seu maior desespero, pois era necessário transpor, antes, a ponte do saber ler e escrever. "Depois disto é preciso desaprender, para então aprender o meu código" disse desanimado. Para caca letra do alfabeto havia um número ilimitado de possibilidades matemáticas quanto ao número de picadas com a ponta da sovela. Assim, por exemplo, Braille chegou a imaginar um código "Não há vantagem alguma em relação ao método do relevo" disse, destruindo mais uma vez o seu alfabeto maravilhosamente construído, e recomeçando o trabalho. "Desse jeito, cada cego precisaria levar consigo toda uma resma de papel para escrever uma sentença", disse, rindo, desenxabido. Conseguiu o auxílio de militares habituados a trabalhar com códigos. Mas de nada valeram eles, pois operavam com aquilo que Braille chamava de "olhos que varrem", isto é, podiam ler de relance linhas inteiras e depois fazer a transcrição. "Trabalham com os olhos. Que posso eu fazer com isso? É um outro mundo", reconheceu. Tentativas e erros. Tentativas e erros. O processo continuava infindável. Chegou a tentar símbolos musicais. "Vejam", disse aos seus amigos do mundo musical, "vejam a imensa quantidade de sons, representadas por sete notas básicas, cinco linhas e espaços da pauta! Com esses elementos conseguimos múltiplas variações que representam todos os sons que o ouvido humano conhece. Vejamos se podemos aproveitar essas notas num alfabeto que sirva para ler e escrever". A sugestão não serviu. Era, além disso, complicada demais. Voltou Braille a pensar em pontinhos. E um dia teve a idéia de pontos em variação, isto é de pontos que pudessem alterar com aquilo que ele chamava de "alfabeto que se dobrava sobre si mesmo". Daí deduziu ele a chave de seu sistema, a famosa "célula Braille", como é chamada. Esta "célula" não apenas resistiu à ação do tempo, mas também gerou acrimoniosos debates em todo mundo, entre as pessoas ligadas à educação dos cegos, e entre os próprios cegos. Depois de refinar seu sistema, Braille, quando se divertia com o seu próprio código, descobriu pasmado que podia usá-lo na aritmética, na álgebra e até nas matemáticas superiores. Também não tardou a descobrir que ele também podia ser aplicado à música. Tão perfeito era seu sistema de "célula" que pode ser aplicado a tôda forma de empreendimento e conhecimento humano. O próprio Braille não percebera a sua perfeição. Aos não iniciados o sistema parece complexo, mas sua simplicidade aparece, após atento exame. A célulaa tem a largura de dos pontos e a altura de três. Sua vantagem reside em poder ser lida com mais facilidade do que as letras romanas impressas em relevo, e de poder ser feita à mão, por meio dos simples dispositivos conhecidos pelos nomes de "ardósia" e "estilete" de Braille. Era mais do que a verdadeira e velha teoria de Braille, segundo a qual os cegos se quisessem ler e escrever eficientemente deveriam deixar de lado toda a mecânica dos que vêem. A aparelhagem de hoje, não muito diferente da usada por Braille, consiste numa prancheta cuja superfície é cheia de depressões horizontais e verticais, feitas em linhas separadas por um espaço de uns três décimos de centímetro. Sobre essa prancheta corre uma espécie de régua perfurada, qual o delineador comum de mapa. Colocando-se uma ou mais folhas de papel sobre a prancheta, vai-se apertando o estilete através dos orifícios da régua, que permitem obter todas as combinações possíveis de pontos. A régua perfurada possui seis pontos, assim: . . . . . . Como as folhas são lidas pelo avesso, a escrita tem de se fazer da direita para a esquerda, de modo que, do outro lado, apareça da esquerda para a direita. Podem-se fazer diversas cópias ao mesmo tempo. O código original de Braille tinha 43 símbolos que abrangem todo o alfabeto, os ditongos e os sinais de pontuação. Dez sinais fundamentais constituem a base de todos os outros, e representam as primeiras dez letras do alfabeto e os primeiros dez números arábicos: A B C D E F G H I J . . .. .. . .. .. . . . . . . . .. .. . .. 1 2 3 4 5 6 7 8 9 0 Colocando um ponto abaixo e à esquerda de cada sinal fundamental, forma-se uma segunda série, que compreende as dez letras seguinte. Colocando dois pontos sob cada uma dos símbolos fundamentais, obtemos a terceira série U, V, X, Y, C (brando) E, A, E, U. Existem muitas outras variações. Na verdade, partindo dos dez símbolos básicos, podemos formar um número ilimitado de variações. Surpreendentemente é que o sistema foi aplicado de tal modo que tornou o aprendizado da leitura e da escrita da música mais fácil para os cegos do que para os que vêem. A notação musical de Braille, com todos os aperfeiçoamentos introduzidos pelos sucessores de Braille, é capaz de exprimir todos os caracteres necessários à reprodução da mais complicada composição. Com muito cuidado, cautelosamente, Braille experimentou os seus pontos, a que chamava de "pancadas congeladas". Divertiu-se com eles, fez alguns aperfeiçoamentos após a primeira exposição da idéia, e depois se deteve satisfeito. "Não encontro defeito", exclamava após cada prova. Experimentou até estar seguro, absolutamente seguro. Tirou, então uma semana de férias, dormiu, alimentou-se bem, vagou pelas ruas, feliz. Pela primeira vez na vida, sentia-se animado e rico. Dizia e repetia consigo mesmo: "Consegui! Consegui! Certo dia chamou Denise ao seu quarto e pediu-lhe que escolhesse ao acaso qualquer trecho e o lesse devagar. À medida que ela ia lendo, com seu francês claro e encantador ele calcava o papel através da régua perfurada. Depois de lidos uns dez parágrafos, ele pediu que a moça parasse, virou o papel pelo avesso e, tateando, facilmente repetiu, palavra por palavra, tudo o que lhe havia ditado. "E então, que acha, hem, minha menina? Que acha?" perguntou, dançando no quarto. À moça aquilo parecia incrível, um milagre que ela nem podia imaginar. "Luís, você vai deixar toda a gente entusiasmada", disse ela. Orgulhoso, e com a certeza de que tinha algo de importante a oferecer, Braille convocou uma reunião do corpo docente do Instituto e dos alunos mais velhos. "Senhores, talvez já tenham ouvido falar de algumas misteriosas atividades, nestes últimos meses. Estou pronto, agora, para mostrar os resultados, que ofereço em nome do Instituto e em honra de seu fundador, Haüy". E chamou um dos auxiliares: "Armand, faça o favor de ler qualquer trecho, de qualquer volume ou periódico que queira escolher". Sentou-se com a prancheta e o estilete e, à medida que Armand ia lendo, marcava no papel, com uma expressão curiosa e feliz ao redor da boca. A voz soava e Luís batia. Nada mais se ouvia além da voz e do som surdo do estilete batendo o papel espêsso. O ruído dêste era como um assovio, o começo de uma nova língua. Após dez minutos, mais ou menos, de leitura, quando imaginou que a assistência já se tornasse impaciente, Luís disse: "Basta! Agora vou ler o que foi ditado". E com voz modulada, que às vezes falhava, e que nem de longe correspondia ao assunto que estava sendo ligo - era um tratado de biologia - Luís repetiu o que fôra ditado. De vez em quando tropeçava por causa do nervosismo, ou encalhava numa palavra científica e era obrigado a voltar atrás com os dedos. Mas as palavras saíam quase com a mesma velocidade com que haviam sido pronunciadas por Armand. Finda a leitura, fêz-se silêncio. E logo se elevou uma verdadeira babel de vozes. Lá de trás veio a voz estridente do novo diretor, o Dr. La Porte, que substituíra o tolo Erhardt: "Há trapaça aí! Com certeza ele decorou tudo. Já ouvi falar do que anda passando nesta escola, debaixo do meu próprio nariz! Garanto que ele decorou tudo!" ouviu-se um zum-zum de vozes, explodiram discussões. Luís enterrompeu: "Dr. La Porte, terei muito prazer em repetir a experiência com outro trecho qualquer, da sua própria escolha. Não compreendo... o senhor está enganado", exclamou ao ver que La Porte tentava dizer alguma coisa.'Não decorei nada! Estou realmente espantado com essa reação!" Ele e La Porte tinham sido bons amigos, se não íntimos, pelo menos mùtuamente respeitosos. "O senhor escolhe o trecho, e a pessoa que deva ler", disse, em desafio. "Basta dêsse disparate, voltemos às aulas", disse La Porte, bruscamente. Luís ouviu o ruído de cadeiras empurradas, e ficou sòzinho no estrado. A única pessoa que lhe dirigiu a palavra foi um alluno que, ao passar por ele, disse: "Sr. Braille, muitos estudantes têm inteira confiança no que o senhor fêz". Naquela tarde Luís procurou La Porte em seu gabinete, e perguntou por que se opusera ao seu método. "É um embuste", respondeu La Porte, teimoso. "E se não fôr um embuste, estão é uma tolice. Temos aqui um grande capital em livros feitos pelo sistema em relêvo e o novo método tornaria obsoleta tôda a nossa técnica. Agora não é ocasião para experiências. Já perdemos o apoio de muitos dos nossos benfeitores. Não podemos adotar nenhuma novidade". "Mas, senhor diretor..." disse Braille, desarvorado. "Na verdade, proíbo que faça qualquer outra demonstração!" disse severamente o diretor. Braille esgueirou-se para o seu quarto, tonto, desconcertado. No dia seguinte procurou o cônego na Igreja Santa Ana. "Por que?" perguntava, "por que?" O cônego era homem muito amadurecido, bom conhecedor tanto das coisas do mundo quanto das do espírito. "Pode ser uma simples questão de ciúme", disse sagazmente, "mas também pode ser que o Dr. La Porte tenha dito a verdade. Talvez não seja ocasião propícia para experiências. Em muitos outros setores fazem-se hoje experiências que encontram oposição por parte daqueles que dão ao progresso o nome de "revolução". Luís procurou novamente o diretor, mas dessa vez foi severamente repreendido. "Compreenda, Luís, eu nada tenho contra novos métodos. Quero, porém, falar claramente. Temos uma escola cheia de alunos, muitos dos quais pagos pela benevolência do novo govêrno. Qualquer tentativa de aumentar o currículo poderia merecer críticas. Além disso precisaríamos desaprender tudo o que ensinamos aos estudantes. Seria uma confissão de atraso, de insuficiência. De um golpe, o novo método abalaria os alicerces do que construímos. Há muitos cegos que já estão acostumados ao método do relêvo. Admiro a simplicidade de seu método e sei mais do que você pensa a respeito dele, pois o pessoal daqui me tem mantido a par dos acontecimentos", disse de maneira significativa, "Mas procure entender. Você não compreende dificuldades de administrar um escola mantida, em parte, pelos fundo públicos. Conseguimos obter êsses fundos após numerosas manobras nos ministérios e intervenção de muitas altas personalidades. Pense bem no que aconteceria se, de repente, denuciássemos como sem valor tudo aquilo que antes alegamos ser útil. Os ministros perderiam a paciência conosco. Teríamos sérias dificuldades financeiras. Isto é o que você arranjará com seu novo método, e eu lhe digo com franqueza que me oporei decididamente, a ponto mesmo de pedir a sua demissão. Como vê, não posso ser mais franco", concluiu. "Mas que hei de fazer com meu método?" perguntou Braille, desolado. "Que hei de fazer? Jogá-lo fora?" "Faça o que bem entender, meu amigo, mas conserve-o fora desta escola e não espere usá-lo oficialmente aqui, e muito menos não oficialmente. Não quero mais falar disso", concluiu, batendo com força na mesa. Na semana seguinte Braille mal pôde cumprir seus deveres. Sua alegria e sua idéia de predestinação havia sido esmagadas. Sentia-se vazio, sòzinho, quebrado. Pensou em tornar a Coupvray. Precisava de confôrto maternal. Tinha, então vinte anos e era um vencido. CAPÍTULO 9 CLARÃO AO MEIO DIA Aos poucos Luís começou a emergir de sua treva e de sua derrota. Ao fim de algumas semanas contratou uma pessoa para, em caráter particular, ler para êle trechos de autores clássicos. Enquanto escutava, ia premendo com o estilete o papel fixado à prancheta. E em pouco formara em seu quarto uma pilha de manuscritos. Foi o primeiro cego na história, que mergulhou nas riquezas do imenso arquivo da literatura. Sentia-se profundamente tocado pelo que lia e relia à noite, enquanto os dedos se moviam, rápidos, sôbre candentes frases e inspiradas poesias. Voltou a procurar os amigos que se interessavam pela música e começou a divulgar o assunto nas casas dos ricos. Organizou recitais de leitura, acompanhados de um pequeno discurso, que preparava. Tratou de interessar em sua nova técnica as pessoas ricas e importantes. Nada, porém, de prático resultava, além do ruído dos aplausos jprovocados pelas conferências e pelo discurso. Ele não sabia ao certo o que queria ou buscava realizar. Sentia tão-somente que precisava atrair de alguma forma a atenção do mundo, do mundo dos que viam. "Estou me tornando uma espécie de palhaço", disse a Denise, quase rindo de si próprio. "Faço exibições nos salões de ricos, como se fôsse um prestidigitador com uma nova espécie de jôgo de salãoo descoberto por mim. as grandes damas e os cavalheiros importantes escutam, observam-me. A seguir alguém organiza um recital de piano, e assim termina uma noite divertida, sem que nada aconteça depois. Não passo de um simples número do programa da noite. Quem me dera saber o que fazer..." Um amigo altamente colocado conseguiu, afinal, uma audiência oficial para êle, no Instituto Real. Luís ficou muito animado. "Agora serei ouvido em audiência oficial e o método será universalmente reconhecido", exclamava. "Não existe, no mundo, quem não dê ouvidos ao Instituto Real. Terei projeção. Mostrarei que o meu sistema não é um jôgo de salão". Acompanhado por Denise, compareceu à sessão, vestido em seu melhor terno e com imponente chapéu. Sentou ao lado de um químico que estava para discorrer sôbre as propriedades da água. À sua direita encontrava-se um entusiasta dos balões, que afirmava que, se lhe dessem os fundos necessários, atravessaria pelo ar o Canal da Mancha. No estrado, um conferentista falava sôbre as possibilidades da máquina a vapor. O anterior discursara sôbre os métodos para combater om inseto que devorara a maioria dos vinhedos da França e que dêsse modo arruinaria, naquele ano, a indústria vinícula do país. Os membros do Instituto Real, todos êles de barbas grisalhas, passavam a mão pelo rosto, sentados, e cochichavam, dando escassa atenção aos oradores. Falar perante o Instituto era, então, uma grande honra. O Instituto, que começara como organização honorária de cientistas, tornara-se, com o tempo, uma espécie de filtro das descobertas que inundavam a França, com o renascimento das invenções. Muitos de seus membros eram gênios da ciência, mas outros haviam obtido seus lugares por meio da política ou da intervenção de amigos e parentes influentes. Um velho resmungador chamou o nome de Luís, que ouviu, com evidente enjôo, a palavra "demonstração" aplicada ao assunto de sua comunicação ao Instituto. Não notou diminuição alguma no ruído das conversas dos sábios que se achavam diante dêle. Mas resolveu impor-se e fazer o mais que pudesse. Apelou para todas as suas reservas. Levara Denise consigo, para fazer a leitura, mas na hora abandonou corajosamente aquele plano e, interrompendo uma jovial explosão de riso, pediu que alguém do Instituto lesse para ele. "Desse modo", dirigiu-se cortêsmente à assembléia, "não haverá suspeita de frande. Não poderá surgir acusação de haver eu decorado o trecho". O Presidente do Instituto disse gravemente: "Com prazer acedemos ao seu pedido, Senhor Braille. Mas desejo lembrar-lhe que não é hábito do Instituto trazer charlatães ao seu auditório. No interêsse da ciência procuramos respigar da maneira mais cuidadosa possível os conferencistas aqui apresentados". Braille inclinou a cabeça, respeitosamente. "Agradeço a oportunidade se ser ouvido", disse. "Senhor, desejo apenas mostrar que os cegos dispõem agora de um meio simples e fácil de leitura e escrita. Isto, graças a um milagre". "Prossiga, senhor", disse o presidente. Um auxiliar começou a ler um relatório sôbre a coagulação do sangue que se achava sôbre a mesa, diante do presidente. O relatório estava repleto de fórmulas químicas, mas apesar disso Braille batia o seu estilete com rapidez e firmeza. Denise, que estava sentada no centro do anfiteatro, torcia o lenço, nervosamente. De onde estava, Luís lhe parecia um pobre menino pálido, raquítico e ardente, com a cabeça cega erguida, e as mãos, como a de um acólito em devoção, a trabalhar em sua já familiar prancheta. A voz continuava a ler e Luís continuava a premer o estilete contra o papel. Os membros continuavam a conversar entre si, e o moço podia ouvir o ruído da impaciência dos outros conferencistas, que, no banco inferior, esperavam a vez de falar. Podia ouvir, também, os comentários que os membros do Instituto faziam a respeito de uma nova dançarina, que monopolizava as atenções da cidade e, depois, a ardente discussão dêles em tôrno de um vinho. De repente o presidente interrompeu a jocosidade do ambiente: "Já basta, Senhor Braille. Pode ler, agora o que lhe foi ditado". Luís virou o papel pelo avêsso, movendo as mãos com graça e rapidez. Denise reparava nos nós dos dedos dele, muito brancos contra o papel grosso com que trabalhava. Sua voz era forte e comedida. Às vêzes tropeçava numa palavra alemã, que se havia insinuado no tratado sôbre o sangue. Mas continuava firme, enquanto o presidente olhava, indiferente, o manuscrito aberto diante dêle. Ao acabar, quedou em ansiosa expectativa, mas logo ouviu-se a voz do velho, que chamava o conferencista seguinte. Desceu do estrado, fêz um cumprimento na direção do presidente e de seus colegas, e saiu com Denise, a bater a bengala. Permaneceu calado durante o caminho de volta. Agradeceu a Denise, e nada falou. Ela tinha pena dele, e ele por sua vez, sentia-se abatido, sem saber por quê. Se esperava alguma coisa daquela audiência - e não se pode negar que nela depositara grandes esperanças - estava condenado a desilusão. Algumas semanas após, recebia um ofício no qual o Govêrno Francês agradecia os seus esforços e sua contribuição à ciência. E foi tudo. Não sabia pr que esperara mais. Tivera, porém, a impressão de que a audiência deveria marcar um momento decisivo para a sua vida e seu método. Apesar disso, nada aacontecera. Sentiu-se aniquilado e triste. Tomado pela melancolia, tornara-se irrequieto e sem objetivos. Era como se não mais houvesse horizontes. "Sou um tolo, suponho, um grande tolo", dizia consigo. De vez em quando mandava que lhe lessem um clássico, que imediatamente "traduzia" para os caracteres dos cegos. A consolação da leitura passou a ter grande significação em sua vida. Percebeu estar gozando um prazer que fôra negado a todos os cegos desde a criação do mundo. "Até mesmo Baldar, o deus cego, não pôde fazer o que eu faço", pensava. "Sou o primeiro cego, na história, que realmente pode sentar-se e ler alguma coisa de maneira simples, e sem necessidade de empregar uma técnica incômoda. Posso ler tão depressa, ou pelo menos quase tão depressa como qualquer pessoa". Então o seu orgulho vinha à tona: "Serei o cego mais culto da história. Já é alguma coisa" e esboçava um de seus raros sorrisos. "Serei um grande homem, um dos maiores do meu tempo, se conseguir passar êsse método aos meus irmãos cegos". Sentou-se à janela, atento aos ruídos da rua. Paris estava encantadora naquela tarde. Deixando o livro, sentiu a brisa tocar-lhe o rosto. Ouvindo o vozerio de jovens que vinham da igreja, sentiu o coração pesado. Ansiava por êles e por sua companhia. Imaginava-se a passear e conversar com uma moça, beijando-a, de braços dados. "Que absurdo! Exclamou. "Que moça haveria de querer?" Ouviu uma risada alegre na rua e tentou imaginar o rosto da moça, que tomou as feições que atribuía a Denise. Algo fundiu-se dentro dele. Soaram na escada os passos de Denise, que agora tinha livre acesso à escola. Ela entrou, beijou-lhe as faces, como sempre fazia, e pela primeira vez ele se sentiu perturbado diante dela. A jovem atirou a capa sôbre uma cadeira e sentou-se na cama, trauteando uma canção. "Por que há de você estar sempre cantarolando?" perguntou ele, irritado. "Você está de mau humor hoje, meu amigo. De muito mau humor", disse ela, com tôda a calma. "Quer que eu vá embora?" "Vá, se quiser, vá! Va!" retrucou Braille, quase gritando. "Que aconteceu de ruim, Luís", indagou a moça pondo-se de joelhos, a seu lado. Luís desfez-se em lágrimas, que não sabia explicar. Denise mexeu nos cabelos dele e aproximou do peito a sua cabeça. "Denise", disse Braille, "por que é tão dedicada a mim? Sou cego, sou nada. Acaso tem pena de mim?". Tomou-a nos braços e beijou-a, sem perceber o que estava fazendo. Notou que ela tremia e começava a chorar, o que o assustou, pois nunca a vira proceder dêsse modo. E também notou que ela já era uma moça, e não mais uma menina. "Luís, Luís, esperei tanto tempo por isso. Luís, você é tão maravilhoso, tão inteligente, tão belo!" murmurou Denise. Dominado por um impulso incompreensível, o moço empurrou Denise. "Ah, o que você tem é pena de mim, bem que o percebo! Và embora, nunca mais quero vê-la". E começou a rir, sarcástico: "Nunca mais quero vê-la", dizia e repetia. "Que farsa! Nunca a verei, esta é a verdade! Ando a copiar frases dos livros que leio, e isto me dá a ilusão de ser quase normal, quando de fato não sou". A moça dirigi-se à janela e olhou para fora. "Você não tem razão, Luís, pois eu o amo. Quero acompanhá-lo sempre. Posso ajudá-lo, cuidar de você, trabalhar para você. Posso servir de olhos para você, posso ser o seu amor, seu coração. Não fique zangado comigo! Esperei tanto por você!". Luís esperou um pouco, com os sentidos em grande confusão. Desejava desesperadamente acreditar nela, mas algo resistia em seu íntimo. A inteligência dizia uma coisa e as emoções, outra. Não podia dominar a situação e, em desespêro de causa, exclamou:"Se eu não tivesse dinheiro, você não cuidaria de mim. Vá-se embora! Vá-se embora e deixe-me sòzinho!" "Você não sabe o que está dizendo, Luís. Você está nervoso! Amo-o e desejo cuidar de você para sempre", explicou Denise, ternamente. Mas Luís estava dominado pela amargura. "Você é moça e tôdas as moças são fáceis de impressionar, e maternais". "Luís, por que está tão triste? Não tenho culpa de sua cegueira. Por que me recrimina por isso?" tornou-se, então, revoltada. "Você não quer entender! Você ignora tudo a respeito dos outros e pensa que o mundo gira em torno dos cegos. É convencido e intolerante. Mas está enganado a meu respeito. Sei que é falta de vergonha, de minha parte, dizer que o amo. Não o amo por ser cego. Amo-o porque você é você. Talvez nunca venha a compreender isso". "Lamento tê-la aborrecido", disse ele contrito. "Mas não a amo. Só amo meu trabalho, minha música, meu ensino, meu novo método. Nada temos em comum, pois não passo de um cego e você é normal. Você manifesta um sentimento maternal para comigo, e em mim não há espaço para sentimento algum. Posso ser convencido, mas não estou zangado com você. Apenas quero que vá embora e esqueça tudo a meu respeito. Os seus sonhos não passam de sonhos de menina, eis tudo". Ela vestiu a capa e permaneceu à porta durante algum tempo. Afinal perguntou, com voz sumida: "Quer que eu vá embora, Luís" "Sim, quero que vá", respondeu o moço, ouviu-a sair e bater a porta, e então mergulhou o rosto nas mãos e chorou. "Não me importo", disse. Mas no íntimo, bem que sentia. Saiu de casa e entrou num bistro, sentou-se e bebeu vinho, tomado de estranha opressão, que não podia dominar. Era uma criatura emocionalmente mal desenvolvida, e por imaturo e sem relações mundanas, não percebia que estava apenas evitando encarar a realidade, que o levava a temer tôda associação muito íntima, que pudesse acabar em desilusão. As relações entre ele e a moça até agora haviam sido acidentais e ela sempre o via em condições favoráveis. Mas casamento significava restrição poderia alterar-lhe o modo de vida. Talvez ela esperasse mais do que ele pudesse dar. Além disso, ele era uma pessoa dedicada. Sua vida pertencia a todos os cegos. Como poderia abandoná-los por causa da moça? Torturava-se com êsses ocultos receios, que não distinguia nem entendia, e tratava de criar uma resistência dentro de si. Para satisfazer seu amor-próprio, disse a si mesmo que a amava, mas não podia impor-lhe a mesma infelicidade que o afligia. E havendo feito paz com seu espírito, chamou-se de idiota e decidiu vê-la no dia seguinte. Mas reincidiu no mau procedimento. Continuou a fazer-se de mártir até que Denise não mais pode tolerar. Jamais ouvira ele, riso mais irônico e mordaz do que o dela quando, inclinando para trás a cabeça, gritou: "Você é louco! Eu costumava respeitá-lo, mas o que você quer é fazer romance em tôrno de si próprio. Acha que sofre demais, não é? Pois que dizer então dos veteranos pernetas que vemos nas ruas, e que combateram com Napoleão, na Rússia? Que dizer daqueles cujos olhos foram estraçalhados pelas balas? E dos que não tem mais pernas nem braços? Paris está cheia dêles. Mas você, você anda aí armando uma grande tragédia por causa da sua cegueira! Há milhares de cegos em Paris, talvez centenas de milhares em todo o mundo"! Empurrando-o para a porta, exclamou: "Saia daqui entes que eu me porte como uma mulher grosseira. Estou farta de seu orgulho e de sua estupidez. Você só enxerga a si próprio. Chego a tremer diante de tanta estupidez. Pense nisso, meu amigo", disse ela, friamente. "E agora, vá. Devo encontrar-me daqui a uma hora com um homem, um homem de verdade. E que não é cego, saiba, se isso lhe dá prazer". "Procedi bem", dizia ele, subindo a rua, a bater a bengala. "Não há dúvida que agi bem, forcei-a a desistir de seu amor por mim. Agora será mais feliz", disse de boa fé. Em seus devaneios chegou a assumir atitude ainda mais nobre, estrefalando: "Não devo deixar que mulher alguma me afaste de meus propósitos. Dediquei-me aos cegos. Mulher alguma deve interferir com meu trabalho".E à semelhança de muitos outros gênios torturados, meneou a cabeça, nobremene, esboçou um sorriso, o homem predestinado e engolfou-se no trabalho. As noite eram, todavia, muito desagradáveis e às vezes ele se surpreendia a trautear as ingênuas canções de Denise, e a pensar em suas maneiras meigas e suaves. Entregou-se de corpo e alma ao trabalho da escola a aos recitais de órgão. Foi nessa ocasião que ele dominou o violondelo e, involuntàriamente, escreveu uma sonata dedicada à Denise, chamada " A mocidade é a primavera, tu és a primavera". Três meses após a tempestade sentimental que tivera com Denise, recebeu uma carta em que esta lhe participava o seu casamento e comunicava estar residindo em Lião: "Espero que seja muito feliz", dizia. "Escrevo esta carta com permissão de meu marido. Quando formos a Paris haveremos de visitá-lo. Li a respeito de seus concertos, nos jornais, e sinto-me orgulhosa. Meus melhores votos de felicidade". Luís não respondeu. Ao ouvir a leitura da carta, percebeu como havia sido tolo deixando-a partir. Consolou-se dizendo:"Sem mim ela não será feliz. Com certeza desposou um imbecil". Mas não podia esquecer, antes repetia a todo instante, os têrmos da carta. Foi êsse, talvez, o pior período de sua vida. Pior do que quando fugira da escola e dormira em cima dos sacos de verduras, pior do que quando fôra espancado por Haüy. Pior ainda do que quando perdera a vista. Ao fim de algum tempo reconheceu plenamente o quanto fôra tolo e passou a martirizar-se menos. Tornou-se mais calmo e sizudo, e, pe por um lado se lisonjeava por não a haver desposado, tendo em vista sua deficiência, por outro estava ciente da tristeza que sentia por não o ter feito. "Talvez seja melhor assim", disse filosòficamente. Mas não havia sido melhor, bem o sabia ele; sentia-se melhor, entretanto, pensando assim. Em um dos salões que freqüentava, deparou nova oportunidade de encontrar amor e confôrto, mas tornou a rejeitá-la por causa de seu falso e coluntarioso orgulho. A Condessa Lafiche, de nobre família francesa, enviuvara aos vinte e dois anos, quando seu marido foi morto na batalha de Austerlitz. Muito rica e de natureza romântica, diz a história que Mariana não era muito bonita; mas Luís, é claro, não podia saber disso. Dela, além da bonita voz de contralto, ele só conhecia o confôrto da carruagem em que o transportava à escola. Uma noite ao conduzí-lo à casa, a condessa inclinou-se para a frente e beijou-lhe a mão. Luís ficou perplexo e ao mesmo tempo envaidecido. "Por que faz isso" perguntou friamente. "Você toca muito bem. Gosto de música e você é um belo homem" respondeu ela, sem titubear. "Não há lugar para mulheres em minha vida", retrucou ele, rìspidamente. 'Tenho muito que realizar". "Por isso é que o torna tão atraente", disse Mariana, insinuante. Durante várias semanas ela o perseguiu até ser pela última vez repelida. Mariana bateu-o, pô-lo para fora da carruagem e exclamou: "Você é um louco, talvez pense que é um deus. Pois saiba que só existe um Deus". O cego tomou-lhe a mão, levou-a aos lábios, beijou-a e disse irônicamente: "Procure esquecer, senhora. Será difícil, bem sei, mas tente". Soltando uma palavra imprópria para uma senhora, Mariana mandou que o cocheiro tocasse o carro. Algum tempo depois uma aluna caiu-se de amôres por Luís e ele novamente se portou como um homem predestinado, cuja vida não tinha lugar para frivolidades. "Em minha vida, Georgette, não há lugar para a felicidade. Devo marchar para a frente, metido com minha música e meu sistema de leitura. Você há de compreender, espero". Daí por diante, Luís nunca mais havia de conhecer a companhia de uma mulher ou o seu amor. Com o passar do tempo, evitou-as cada vez mais. Sentia falta de Denise, e muitas vezes a solidão o amargurava. Ficava a pensar na atitude que deveria tomar quando ela viesse visitá-lo em Paris. Mas essa agonia lhe foi poupada, pois a moça nunca o procurou. E ele perdeu as esperanças. CAPÍTULO 10 TREVAS, NOVAMENTE Certo dia, quando um dos alunos estava em seu quarto, conversando sôbre os acontecimentos do dia, Braille perguntou-lhe se gostaria de ouví-lo ler. O menino, um tanto encafifado, disse: "Tenho ouvido falar de seu método de leitura, senhor. Todos riem dele". Braille não disse nada, embora ficasse profundamente ofendido. Tirou um manuscrito espêsso e mal encapado de um armário cheio dêles, e começou a ler por meio dos pontinhos. Era um trecho de Shakespeare. O menino ficou encantado. Começou a freqüentar secretamente o quarto de Braille, e em pouco outros meninos o acompanharam. Iniciou-se, para Luís, uma dupla vida. Durante o dia, nas aulas, ensinava o método clássico: à noite, mais de doze meninos esgueiravam-se para o seu quarto, a fim de aprender o método dos pontinhos. Em poucos meses Braille reunira tôda uma classe, fora do programa e feita de devotos, que o adoravam. Jamais se sentira tão feliz, nem mesmo com a música. "Olhem so", exclamava, feliz. "Temos aqui uma aula de escrita. Apesar de cegos, podemos escrever uns para os outros, se quisermos". Os meninos aprenderam a esconder debaixo da camisa o estilete e a prancheta, e de vez em quando trocavam bilhetes entre si. Um dêles foi apreendido em classe por um instrutor que tinha inveja de Braille, e o levou ao diretor. Braille foi chamado. "Não precisa perguntar por que motivo está aqui", disse o diretor. "Há muito o preveni, e o senhor continua. Não haverá outras infrações, não haverá mais aulas noturnas", disse. "Ouviu?" Braille reagiu. "O senhor não pode deter a marcha da ciência, senhor. Não pode impedir que os cegos se comuniquem com o mundo. Se meu método morrer, um outro lhe tomará o lugar. Disso, tenho certeza. Só cumprirei o que determina porque não desejo que meus alunos se vejam em apuros com o senhor. Mas quero dizer-lhe uma coisa,", acrescentou, desafiante e com grande emoção. "Meus estudantes aprenderam mais à noite, em poucos meses, do que o Instituto pode ensinar-lhes em anos. Dei-lhe mais, em poucos meses, do que receberiam em sua escola, em toda a vida. Meus alunos podem corresponder-se por escrito!"gritou, furioso, batendo a bengala na mesa de La Pote. "Podem os seus fazer o mesmo? Podem êles, podem?" berrava. Mas não adiantava. Luís teve de encerrar suas aulas noturnas. Desanimado, continuou a viver no Instituto, a tocar órgão na igreja, e ensinar música a alguns ceguinhos e a dar, de vez em quando, algum recital de violoncelo, sempre muito concorrido. Poucos eram seus problemas financeiros. Não se interessava por nenhum amigo em particular, exceção feita de alguns poucos, com quem conversava de música. Raramente falava de seu método, mas nunca o afastava do pensamento. Ficava desolado só de pensar que ele não conseguira implantá-lo e vê-lo florescer. "Sou, talvez, o único cego, no mundo, que pode ler e escrever. Sou, por isso, o mais solitário dos homens", monologou desiludido, andando de lá para cá, no quarto, em pleno inverno parisiense. Podia, ouvir, lá fora, as alegres campainhas dos trenós e a algazarra das crianças. Sentia-se só, terrìvelmente só. "Estou ainda mais só do que quando inventei meu sistema", pensava. "Naquele tempo animava-me a possibilidade de realizá-lo. Hoje, nem sequer tenho tal esperança em relação ao dia de amanhã". Só encontrava consôlo na leitura dos livros que transcrevera para seu método, e que haviam sido ditados pela pessoa que pagava para tal fim. Publicada, em 1839, a conferência que fizera no Instituto Real, Braille recebeu muitas cartas de pessoas que trabalhavam no mesmo assunto, em todo o mundo, de homens interessados em melhorar a sina dos cegos. Interessante, e espantoso para ele, quase todos êsses homens cuidavam apenas de melhorar o método do relêvo. Braille continuava isolado, e muitas vezes chegava a duvidar de que estivesse certo. "Mas como posso estar errado", comentava consigo mesmo " se, escrevo e leio em livros que nada têm de incômodos? Comparemos meu método com o do relêvo. Posso ler mais depressa e com mais clareza. Quando leio, não preciso manter uma montanha em meu colo. Melhor e mais importante ainda, posso também escrever. Não entendo por que êsse meu invento, êsse meu pobre órgão, não pegou... Ninguém gosta dele... Nada havia de errado no método de Braille, conforme o mundo descobriria mais tarde. Como outros inventores, estava apenas sofrendo os efeitos de tardio reconhecimento, da falta daquilo que hoje chamamos de agência de "publicidade". Não havia ninguém que se encarregasse de difundir o seu método no estrangeiro, de pô-lo ao alcance de todos, de torná-lo procurado. À semelhança de muitos poetas e pintores, que foram "descobertos" após a morte, conheceria Braille a amargura de não ter o reconhecimento dos contemporâneos. E essa amargura feria-o como lâmina cortante, deixando-o doente e furioso. Felizmente, porém, em contraste com a de muitos outros gênios incompreendidos, sua vida conheceria um grande momento, com características teatrais. Êsse momento de fato surgiu e, felizmente, por intermédio da música. Entre os alunos a quem ele ensinava órgão e violoncelo, existia uma adorável ceguinha, natural da Alsácia-Lorena, e chamada Teresa von Kleinert. Essa menina revelou enorme interêsse pelo órgão, que naquela época era, principalmente, instrumento para homens. Mas interessava-se ainda mais pelo piano, que hoje é um tanto diferente do que foi naqueles tempos, há cem anos. Seu talento era notável e sua beleza e graça eram de tão fina qualidade que ela não demorou em tornar-se assídua freqüentadora dos mesmos salões parisienses, que Braille visitava, raras vêzes últimamente por causa da tosse, que se agravara, e de sua crescente acrimônia. Desde suas primeiras associações com a moça, na igreja, Braille lhe ensinara o método dos pontos, que ela prontamente aprendeu, formando depois, com auxílio de Luís, uma biblioteca musical tôda escrita em sistema Braille. Onde quer que fôsse, para tocar piano, levava consigo a sua biblioteca. Em 1841 foi convidada para dar um concêrto no elegante salão de Madame Desmoulins, viúva que herdara grande soma, e que atraía a nata da cultura e do espírito parisiense. Braille havia sido convidado para tocar violoncelo, mas não pôde comparecer por causa da doênça. Ficara tuberculoso e piorava ràpidamente. Batendo a bengalinha, com um andar cauteloso, que se tornava ainda mais comovente por causa da sua mocidade e beleza, a jovem dirigiu-se ao piano, levando debaixo do braço o maço de músicas, de uns trinta centímetros de espessura, tôdas elas impressa em sistema Braille. Chegando ao piano, voltou-se e cumprimentou a brilhante assistência, formada de escritores, artistas, jornalistas, militares, diplomatas, os intelectuais de Paris. Inclinando-se para a frente, começou a tocar, sem pôr a mão nas notas que se achavam gravadas nas espessas fôlhas de música, abertas diante dela. De vez em quando estendia a mão, ràpidamente, e esquadrinhava com os dedos as fôlhas, percorrendo-as entrecortadamente. Tocou músicas tempestuosas e ternas, e a última peça escolhida foi uma composição saltitante, original de Braille. A audição foi coroada por enorme aplauso. De pé, graciosamente, ao lado do piano, a moça agradeceu a ovação. Depois, levantou uma das mãos e pediu silêncio. Adiantou-se, e, voltando para o auditório o rosto cego, disse: "Senhoras e senhores, quem tocou esta noite não fui eu, mas um homem alquebrado, desiludido e moribundo. Muitos dos senhores conhecem Luís Braille como grande organista, mas poucos talvez o conheçam como um dador de luz, como eu o conheço. Na maioria, os senhores o aclamam como músico, mas nenhum dos senhores talvez o conheça como um buscador da verdade, apesar de viver na treva, como eu o conheço". Fêz-se silêncio, e ela continuou: "Êle hoje está morrendo de tuberculose. Mas está morrendo ainda mais depressa por causa de suas desilusões. Não por não ter conseguido, por ser cego, grande fama como organista, mas porque, tendo conseguido furar as trevas que envolvem os olhos dos cegos, não pode chegar até eles. Se pude tocar esta noite, foi tão-sòmente porque Braille me ensinou. Sem êsse ensinamento não poderia tocar tão desembaraçadamente. Seria, em minha cegueira, pouco mais do que um animal. Peço-lhes, pois, que aplaudam o moribundo que aqui não se encontra, e não a mim. eu toco através dos olhos dêlle". As palavras simples da despretenciosa moça calaram na elegante multidão. No dia seguinte os jornais de Paris estavam cheios dos nomes de Braille e da jovem. O que os canais comuns e lógicos não haviam conseguido, conseguira-o um ato inteligente de propaganda, hoje tão usada. A história impressionou tão profundamente os corações sensíveis dos parisienses, que em poucos meses se constituiu comissão para apurar os fatos. Desencavaram o relatório do Instituto de França e reimprimiram-no. Muitos dos jornais aproveitaram a oportunidade para atacar os diretores do Instituto, a quem chamavam "velhos carcomiddos e inúteis num mundo científico". Os diretores do Instituto Real apressaram-se em melhorar sua posição, pedindo ao Govêrno que fizesse uma doação, a Braille, para que ele pudesse continuar sua "meritória pesquisa". Infelizmente, porém o cego recusou o estipêndio, que ascendia a perto de 8 mil cruzeiros por ano, porque seu trabalho teria de ficar sob a orientação e a direção do Instituto Real. Disse ele, em violenta carta aos diretores do Instituto, que não se submeteria à direção de ninguém. "Se não tiver plena liberdade não poderei continuar, a não ser à minha própria custa. Por que hei de fazer todo o trabalho e deixar que depois os senhores se atribuam toda a glória, com já fizeram em ocasiões anteriores?" Se estava certo ou errado, não podemos saber. A recusa não foi bem recebida e um jornal chegou a insinuar. "Talvez Sr. Braille é orgulhoso e egoísta demais. Afinal, ainda não está estabelecido que o seu método seja o melhor. Existem outros métodos de leitura jpara cegos". E passou a descrever o método Fry, desenvolvido por um Dr. Fry, de Londres, que por isso ganhara um prêmio de quatro mil cruzeiros dado pela Sociedade Escocesa de Artes. Luís conhecia muito bem esse método escocês, assim como um outro imaginado por James Gall, de Edinburgo, em 1827, havia interrompido as experiências com eles porque se baseavam em variações em tôrno do alfabero e não permitiam leitura rápida. Considerava-os, além disso, inúteis por ser cara a impressão de livros com letras em relêvo. Em vista de outros acontecimentos, cedo declinou o interêsse humano despertado pela história de Braille. Luís Napoleão, Presidente da França, estava procurando restabelecer a monarquia; fazendo-se ele imperador, e os jornais franceses lutavam para manter-se livres. Combatiam os esforços de Luís Napoleão no sentido de dominá-los e impor-lhes contrôle oficial. No meio do tumulto de uma França cuja vida nacional sofria grandes alterações, em virtude dos atos de um candidato a imperador, Luís foi esquecido. Perdeu todo o ânimo, tornou-se mais esquesito do que nunca, e só vibrava quando chegava até ele uma nova música. Escreviam-se na Alemanha e em Viena algumas maiores composições que o mundo jamais conhecera, e muitas delas, depois de tocadas lá, chegavam até Paris. Mas ao fim de algum tempo a própria música passou a deixá-lo impaciente, a encolher os ombros. Quanto mais amargurado se tornava, menos discípulos tinha. Só raramente era convidado para recepções. Seu azedume inicial cedo se dissipou, assim que ele percebeu que os velhos amigos começavam a evitá-lo. "Estarei ficando maçante?" perguntava-se a si próprio. Era bastante esperto para reconhecer a verdade.. "Parece que só falo do meu sistema de leitura e escrita, e a pior coisa de que se pode acusar um francês é de ser maçante", refletiu, com um sorriso desenxabido. Assim, à semelhança de muitos outros gênios, antes e depois dele, Braille adquiriu o hábito inimitável de encolher os ombros. Seu rosto ganhou expressão mais gentil do que a que exibira durante muito tempo, e ele adotou afinal uma atitude intelectual muito salutar. "Talvez meu sistema esteja errado. Não devo estar certo, uma vez que o mundo não me dá atenção. Afinal, devo estar sendo parcial", disse com um sorriso triste. Mas por baixo dessas aparências seu coração estava despedaçado com a derrota e sua tosse piorava. Contentava-se em sonhar com Denise e criara afeição muito forte pelas crianças que moravam ao lado, na loja de um alfaiate. Com seu dinheiro comprava-lhes brinquedos e divertia-as, fazendo-as subir pelas suas costas. Apesar de ainda moço, encanecera. Passava a maior parte do tempo nos cafés das calçadas, ouvindo a música das vozes e dos passos e o som dos carros na avenida. Por vêzes sonhava com a idéia de transcrever na nova linguagem todos os poetas, mas suas energias estavam fracas demais para isso. Em 1851 deixou ou Instituto e, com um pequeno pecúlio que fizera, alugou pequenino quarto numa água-furtada. Nunca mais voltou a tocar violoncelo ou órgão, porque êsse trabalho produzia emoção invencível, que o deixava sacudido pela tosse. Estava com quarenta e um anos. Travou amizade com revolucionários que haviam fugido a Alemanha em 1848, para aninhar-se em Paris. Falou-lhes de seu sistema e sentiu-se feliz quando lhe disseram que também ele era um revolucionário contra a má ordem das coisas. De vez em quando ia à igreja para ouvir a música do órgão. Notou que se tornava muito religioso. Inconscientemente parecia sentir a aproximação da morte e ia-se despojando da ira, do orgulho e da impaciência em face daquilo que chamava de "estupidez". Os olhos cegos, o sorriso cansado e os cabelos grisalhos davam bonito aspecto ao seu rosto. E muito divertido ficou o cego quando um de seus novos amigos alemães, um pintor, lhe pediu que posasse para uma alegoria sobre a História, que estava fazendo. "Que devo representar?" perguntou Braille, bem humorado. "Deus, senhor"! disse o pintor. "Pois Deus é cego, como o senhor; e o seu rosto aproxima-se mais do que qualquer outro da impressão que tenho de Deus". Luís sorriu, cansado. "Amigo, não creio que Deus seja cego", retrucou. "Minha idéia a respeito dele é diferente da sua. Não me prestarei a servir aos seus ressentimentos". Quando se viu forçado a acamar-se em sua água-furtada, em março de 1852, ele foi tomado de mêdo. "Morrerei, e meu sistema morrerá comigo", pensou febrilmente. Chamou a senhoria e pediu que convocasse os seus amigos. Tres deles apareceram: um jornalista, um compositor e um comerciante. "Sinto-me cansado", disse. "Se meu sistema para os cegos tiver algum valor não desejo que se perca. Por favor, ajudem-me a ajudem meus amigos cegos". Deixou a metade de seus haveres para a senhoria, que fôra tão gentil para com ele, e o resto destinou a estudantes pobres do Instituto. E não havia muito mais a fazer. Estava sòzinho em seu quarto no dia 28 de março, quando a morte o surpreendeu. Seu fim só foi conhecido um dia mais tarde, quando a senhoria resolveu subir para ver o que acontecera, intrigada por não o ouvir tossir. Os jornais de Paris deram curta notícia, talvez um único parágrafo, e ele foi quase imediatamente esquecido. Nenhuma pessoa importante compareceu ao seu entêrro. Diz a crônica, entretanto, que o dia estava luminoso. Só em 1854, dois anos após a sua morte, é que veio o reconhecimento oficial, provocado, aliás, indiretamente, por ele. O gigante cego havia trabalhado ainda melhor do que imaginava. Tereza von Kleinert, a jovem musicista a quem ensinara, deu uma série de concertos que atraíram a atenção de Luís Napoleão, que afinal se tornara imperador. Luís Napoleão fazia planos para a Exposição Internacional de Paris, programada para o ano seguinte. Concedeu audiência à pianista e determinou que, entre as demonstrações, se incluísse uma sôbre o método de Braille. O imperador havia planejado o grande acontecimento para mostrar o progresso cultural, econômico e científico da França sob sua benigna tutela. E imaginou um bom número: Teresa se exibiria na exposição, para mostrar como um cego podia tocar piano graças ao método inventado por um francês. O êxito foi rápido. Os visitantes ficaram impressionadíssimos com a novidade e levaram a notícia a quase todos os países da Europa. Daí por diante o gênio de Braille abriu janelas aos cegos de todo o mundo, em todos os climas e em todas as línguas, onde quer que se ouvisse o bater de uma bengala de cego. Pondo de lado o sistema Moon, que usa linhas em relêvo, formando ângulos e curvas, e que é aprendido com mais facilidade pelos que ficam cegos em idades mais avançadas, o método Braille é adotado como padrão em todo o mundo. Hoje é difícil encontrar algum govêrno, mesmo nas regiões mais atrasadas do Extremo e do Médio Oriente, que não estimule, com dotações e escolas, o ensino dos cegos pelo método de Luís. Não existe nação que não possua pelo menos uma organização destinada a Braille. Seu nome, na maioria dos dicionários, na maior parte das línguas, já nem mais é escrito com B maiúsculo, pois a palavra é agora usada para designar um sistema e não apenas uma pessoa. São mui poucas, atualmente, as ocupações que os cegos não possam exercer, por serem cegos. Podem viver nos colégios e nas fábricas, ao lado dos que vêem. O eminente patrono de Luís, Haüy, passou a receber o seu nome de "Pai e Apóstolo dos Cegos". Luís,em todos os países civilizados, é considerado como seu filho. Se ele pudesse hoje contemplar o que realizou, as atarefadas oficinas, as bibliotecas, as escolas e os salões de música - povoados de cegos, talvez batesse a bengala sôbre a mesa e gritasse de entusiasmo e prazer. Quem sabe? . 8