A Pororoca J Heriberto Reátegui A Pororoca Conto de Heriberto Reátegui 2 A Pororoca J Heriberto Reátegui A Pororoca Ao norte do paralelo zero do Equador, região do Amapá, a costa brasileira apresenta configuração extraordinária, não apenas em seu contorno físico, mas também no tocante aos fenômenos bem definidos da natureza que ali ocorrem. Sim, porque talvez não haja em qualquer outro lugar do planeta um rio tão fabuloso como o Amazonas que derrame no oceano, pela sua extensa boca, uma quantidade tão grande de detritos orgânicos extraídos de suas margens interiores. Medindo cerca de 250 quilômetros de largura em sua foz (apenas braço norte), se considerarmos o seu alcance como sendo o ponto mais distante do Arquipélago de Marajó, então a desembocadura do gigante chega a abrir um rasgo de 350 quilômetros em direção ao Atlântico. Ao receber uma carga tão extraordinária de matérias diversas (cientistas chegaram a calcular em 300 milhões de toneladas/ano), o oceano vinga-se da agressão sofrida empurrando de volta o Amazonas e demais rios da área a até 50 quilômetros de seus cursos (caso do Amazonas), por intermédio das marés cheias, a intervalos diários de onze horas. Dessa luta de titãs resulta que o percurso da costa, que vai da desembocadura do Amazonas até muito além do Cabo Norte, apresenta um assoreamento incomum que altera, ano a ano, tanto a costa como o relevo do fundo do oceano, em razão da enorme carga de detritos recebida. Em contrapartida, ao investir contra a margem e a foz dos rios, o oceano, impulsionado principalmente pelas grandes marés que ocorrem entre dezembro e março, modifica constantemente o seu contorno e deixa a entrada desses rios com uma aparência espectral de terra arrasada. Ao fenômeno provocado pelas grandes marés chamadas de sizígia, os índios deram o nome de pororoca e ocorre quando as águas do Atlântico - vasto e profundo - tropeçam com os baixios formados pelo aterro produzido pelo Amazonas: seu movimento livre fica abruptamente perturbado e então arrebentam com frenética violência, formando vagalhões tumultuários que arremetem num barulho ensurdecedor 3 A Pororoca J Heriberto Reátegui contra as margens e entram nos rios invadindo terras, roubando florestas e barrancos e destruindo tudo o que se opõe à sua passagem. Registram alguns historiadores, e o fato é confirmado por ribeirinhos, que a pororoca nessas ocasiões chega a arremeter com ondas de cerca de dez metros de altura e o barulho de sua arrebentação é ouvido a quilômetros e quilômetros de distância. Por essa razão, os moradores das margens dos rios fazem as suas habitações em lugares suficientemente altos para não serem atingidos, enquanto que aqueles que navegam em barcos evitam a proximidade da costa, nessas épocas, assim como a entrada dos rios até a distância aproximada de dez quilômetros de suas jusantes, nos momentos que antecedem o repuxo, ou enchente da maré, para não serem destruídos pela avalanche. Entretanto, o que há de mais estranho e misterioso nesse fenômeno (nem os historiadores conseguem explicar), é que ele só raramente acontece nas proporções dantescas aqui descritas, ficando, às vezes, até cinco anos sem ocorrer. Além disso, a pororoca mostra a sua força máxima apenas uma ou, no máximo, três vezes durante um ano. Fora desses parâmetros, as marés transcorrem normalmente e a navegação por aquelas paragens se desenvolve sem maiores transtornos. Numa manhã quente do verão de 1954, o barco conduzido pelo Pastor Halley contornava célere a extensa costa que vai da desembocadura do Amazonas até o Cabo Norte, cortando desdenhoso as ondas um tanto encapeladas do oceano, porém normais àquela época do ano. Havíamos partido na noite do dia anterior, com o objetivo de penetrar no Rio Araguari ainda com maré cheia e subir o Igarapé do Pacoval até quase a sua nascente. Morava, ali, um caboclo de nome Antenor, que vivia da caça e da pesca e que, numa de suas viagens a Macapá para vender peles de animais silvestres por ele abatidos, nos convidara para caçar porcos-do-mato (caititus), muito abundantes naquele lugar. Ao contrário de outras viagens por aquela região, não vimos, desta vez, quaisquer pássaros voando, ou pousados nas margens dos manguezais existentes. O vento que atingia com força os nossos rostos, em virtude do deslocamento rápido do barco, era extremamente fustigante e abrasador. Acostumados a viajar em condições desfavoráveis, estranhamos um pouco a falta dos pássaros e animais pelo caminho, mas 4 A Pororoca J Heriberto Reátegui não ligamos muito para o mormaço, de vez que o tempo, em geral, apresentava-se em boas condições, embora sombrio. Pelo meio-dia, atingimos a boca do Araguari e penetramos nas suas águas barrentas e salobras, pela presença constante da água do mar. Mais umas duas horas subindo e abria-se, do lado direito, a entrada das águas quase límpidas do Igarapé do Pacoval. O igarapé é um rio estreito, mas, na Amazônia, atinge não raro, na sua foz, a largura de uns sessenta metros. Era assim o Pacoval que adentramos e que percorremos por cerca de mais duas horas até que a navegação tornou-se difícil, não só pelos inúmeros córregos que nele desaguavam e que nos obrigavam a parar para conferir se não se tratava da continuação do igarapé, mas também porque ia estreitando-se cada vez mais e apresentava tranqueiras e inúmeros galhos de árvores, pelo canal. Orientados por outro raro morador daquelas paragens, que havia erguido a sua casinha de palha na "boca" do Pacoval, chegamos, enfim, ao barraco do caçador Antenor, tendo vencido os últimos quilômetros de igarapé na base do "varejão", ou seja, impulsionando o barco com uma vara comprida, com o motor desligado, uma vez que a casinha ficava próxima à nascente do igarapé e a navegação a motor tornara-se impossível. Antenor, Da. Maroca - sua esposa - e mais três filhos ainda pequenos moravam naquelas brenhas, cercados pela mata, no meio de porcos comuns e do-mato, completamente mansos (criados desde pequenos), galinhas, patos e quatro cachorros vira-latas que aprontaram terrível alarido, ao chegarmos. Fomos recebidos com simplicidade, mas com grande afeição. Manhã seguinte, cedo partimos para a caça aos porcos, carregando nossas Savage de dois canos (Winchester calibre 12), facão e matula com cartuchos e outros apetrechos, além das marmitas com a carne suína cozida, com arroz. Antenor, nem se dignou levar a sua velha espingarda de carregar pela boca. À nossa frente, como que dirigindo a caravana e ainda num alarido infernal de contentamento... os quatro vira-latas. Pensei: Com esse barulho todo, nunca conseguiremos ver sequer um caititu! A mata em que entramos era a chamada "terra firme", que ao contrário da várzea, não é alcançada pelas enchentes. Era limpa por baixo, o que nos permitia caminhar facilmente, mas era cheia de morros pois, ao contrário do que muita gente pensa, na Amazônia há terras montanhosas. 5 A Pororoca J Heriberto Reátegui Estranhamente os cachorros sumiram no oco profundo da mata e nós seguíamos, em marcha batida, na direção dos latidos, guiados por Antenor, que de vez em quando emitia um grito como que a avisar aos cães que nós ainda os acompanhávamos. Estes nos pareciam cada vez mais distantes. Meu Pai! (pensei) vamos nos perder nesta imensidão de mata ou então varar sabe lá aonde, talvez em Caiena, na Guiana Francesa! Mal sabia eu, que na caça aos caititus, os verdadeiros caçadores são os cães. Antenor, no caso, era apenas o intérprete dos latidos, afã que era exercido com competência, pois logo ele falou: Encontraram um porco! Depois: Já entocaram! Ô...ô...oi! Segura ele! E nós, naquela correria louca dos desatinados, a seguir em direção a um barulho que nos parecia estar a quilômetros de distância... Chegamos, enfim, a uma toca no tronco de uma grande árvore, onde os cães, enlouquecidos, queriam entrar, mas retrocediam a tempo para não serem dilacerados pela caça que batia os dentes como uma matraca, avisando que ninguém se atrevesse a penetrar naquele seu último reduto. Como então tirá-lo lá de dentro? Antenor, rápido cortou umas varas, espantou os cães a pauladas e, mais rápido ainda, construiu uma grade na boca da toca, amarrando-a com embiras retiradas de uma árvore próxima. Um só tiro, falou, autoritário, e na cabeça, para não estragar o couro! Pegando uma vara comprida com ramos e folhas na ponta, cutucou a matraca no fundo da toca. O porco avançou com força total e deu uma cabeçada na grade, quase a arrebentando. Nesse exato momento, a Savage de Pastor Halley estourou um cartucho de chumbo grosso bem na estrela branca que os caititus em geral portam no meio da testa e o sangue da caça encharcou a terra naquelas paragens perdidas da Amazônia... Antenor afastou-se um pouco e cortou umas folhas da palmeira chamada inajá. Com perícia incomum, teceu em poucos minutos um cesto que chamou de jamachi, na verdade um meio-cesto, comprido, com duas alças dos lados e uma na parte de cima. Nele foi colocado o caititu e preso com embiras. Lépido, o caboclo vestiu o jamachi, passando as duas alças pelos braços e a outra pela cabeça, bem na testa, como fazem os índios ao carregarem seus filhos nas costas. Os cães foram liberados e a correria infernal recomeçou. Sobe e desce morro, Antenor correndo com o jamachi nas costas, dizia: Encontraram uma onça jaguatirica... Não te mete, Meloso, que a bicha te estraçalha! (Meloso 6 A Pororoca J Heriberto Reátegui era o cão mais novo, com pouca experiência de caça). Agora é um veado mateiro, mas não adianta que ele corre mais do que os cães! Assim o caboclo ia interpretando, de longe, o alarido dos caçadores. Afinal, a trilha dos caititus foi descoberta e a barulheira estacionou. Logo chegamos ao local e vimos que a toca era o oco de um pedaço de árvore tombada. Dessa forma os dois lados do buraco foram gradeados e Antenor informou que, pelo barulho das matracas, dois porcos estavam ali. Postados um de cada lado do pau esperamos o vasculho do caboclo funcionar. O primeiro porco, espirrou do lado em que Pastor Halley estava e tombou fulminado pelo chumbo grosso da Savage. O segundo, do meu lado, foi abatido do mesmo jeito com certeiro tiro na cabeça. Mais dois jamachis foram rapidamente tecidos e... imaginem para quem sobrou? Vestimos os nossos cestos, cada um contendo um porco. Carregar o jamachi nas costas não era de todo desconfortável, mas a alça que se assentava na cabeça fazia o corpo balançar e querer tombar como quando se está aprendendo a andar de bicicleta. Antenor explicou que, sem a alça da cabeça, ninguém conseguiria andar sequer um quilômetro, pois os ombros virariam uma chaga só. A custo, aprendemos a andar de jamachi e seguimos na direção que o guia dizia ser a da casa. Cães à frente, como sempre, dessa vez investindo contra tudo que era bicho que existia naquelas brenhas, desce morro, sobe morro, caititus nas costas, que a princípio pesavam no máximo 20 quilos e que agora já pesavam no mínimo 50, finalmente chegamos ao casebre lá pelas duas horas da tarde, sem sequer havermos mexido nas marmitas que continham nosso almoço. Descoirados os porcos-do-mato, dois foram salgados para que os levássemos e um foi moqueado (sapecado na fogueira), para sustento de Antenor e sua família. Os couros foram esticados em varas e postos a secar, ao sol. À noite Pastor Halley leu e interpretou para todos uma porção do Novo Testamento, fez uma oração de agradecimentos a Deus pelo sucesso da caçada e implorou bênçãos sobre a família que nos hospedara. Poderíamos voltar a Macapá, no dia seguinte, lá pelas 3 horas da madrugada quando a maré já estaria cheia, mas nossos corpos cansados e doloridos não nos estimularam a tanto e preferimos ficar para seguir no dia posterior. Aproveitamos para andar pelas proximidades da casa de Antenor e admirar as belezas naturais daquele mundo perdido nas distâncias e especular sobre que tipos de sonhos, desejos ou ilusões 7 A Pororoca J Heriberto Reátegui seriam capazes de impulsionar um homem a viver, com sua família, no meio dos animais e tão afastado dos demais seres de sua espécie, como Antenor o fazia... A marcação de nossa saída para o dia posterior, impunha-nos um horário penoso, pois teríamos que partir às 2 horas da madrugada, momento em que a maré estaria totalmente cheia, começando a refluir e proporcionando-nos corrente favorável e menos empecilhos no leito do igarapé. Ocorreu, entretanto, que na hora aprazada o céu estava extremamente escuro e nossas lanternas com as baterias já gastas não propiciavam visibilidade suficiente para uma navegação segura. Somente às 4 horas da manhã nos dispusemos a sair e, ainda assim, com densa neblina e escuridão. Calculamos que havíamos gasto cerca de 6 horas na vinda, a partir da "boca" do Rio Araguari e que dispúnhamos, mesmo com imprevistos, de 8 horas para atravessar, de volta, a sua foz, antes da baixa-mar que se daria por volta do meio-dia. Saímos com o motor em marcha lenta e vencemos a neblina e a escuridão unicamente com a mão da Divina Providência a nos guiar. Sem muita ênfase, Pastor Halley cantarolava um "corinho" que dizia: "Segura na Mão de Deus... segura! Se as águas do mar da vida quiserem te afogar, segura..." Dissipada a escuridão e, mais tarde, a própria neblina, saímos da "boca" do Pacoval às 8 horas da manhã. Paramos um pouco no barraco do "seu" Manuel para tomar um cafezinho e seguimos viagem rio afora. As águas agora barrentas do Araguari baixavam ainda lentamente e encontravam-se entulhadas de moitas de capins que vagavam em sua corrente e que se haviam desprendido dos barrancos, na enchente. Isso fazia com que o piloto prosseguisse em marcha lenta. Ainda assim, muitas vezes foi necessário parar para retirar da hélice enormes entulhos de capim ou para substituir o pino da mesma que se quebrara ao bater num galho de pau. O mormaço fustigava, inclemente, nossas faces àquela hora da manhã, embora não houvesse sol. Notamos, novamente, a falta de pássaros pelas margens, nas copas das árvores ou a revoada de bandos, pelos ares. Em contrapartida, enormes jacarés passeavam lugubremente pelas margens ou observavam-nos, sorrateiros, do meio dos capinzais. Uma hora de viagem, pelo rio, e um imprevisto raro e desagradável veio agravar nosso desconforto: a hélice do motor partiu-se ao bater 8 A Pororoca J Heriberto Reátegui contra um tronco de árvore. É de se registrar que o pino de cobre que trava a hélice, já era feito numa consistência apropriada para se partir ao choque da mesma com um empecilho, evitando, com isso, a quebra da própria hélice. Nessa ocasião, material não convenientemente dimensionado permitiu a ruptura de peça tão importante do motor. Mas Pastor Halley era um aventureiro precavido e trazia na caixa de ferramentas uma hélice sobressalente. Com a perda de alguns minutos preciosos dedicados à montagem da peça, reiniciamos a jornada com um misto de alegria e preocupação: alguma coisa no bojo do nosso barco não ia bem. A velocidade diminuía cada vez mais, causada, tanto pela sujeira do leito do rio como pela baixa, agora rápida, de suas águas e também pelo receio de que algo pior acontecesse ao motor. As horas corriam céleres e não conseguíamos alcançar a "boca" do Araguari. O leito do rio secava rapidamente e as tranqueiras e galhos de árvores se tornavam visíveis, obrigando o piloto a diminuir ainda mais a velocidade. Sabíamos que a foz não devia estar muito longe, mas as curvas naturais do percurso não nos permitiam divisá-la. Foi quando começamos a ouvir um ronco surdo e distante a turvar nossos sentidos. Pareciam trovões incessantes, mas não havia nuvens de tempestade, embora o céu estivesse sombrio. O Pô...rô...rou...ca! Disse Pastor Halley, assustado. Este vocábulo do tupi-guarani, pronunciado daquela maneira pelo amigo estrangeiro, deu- me enorme vontade de rir... E, de fato, eu comecei a rir, um riso frouxo, despropositado e fora de hora, ditado certamente por um estado de espírito bem próximo do medo, ante a expectativa de um acontecimento anormal. O estrondo pavoroso aumentava cada vez mais. O ar pesado e tórrido podia ser cortado com uma faca e nos sufocava ao nível das águas. Como que movido por um estranho furor, Pastor Halley torceu ao máximo o acelerador do motor e saiu a dirigir freneticamente o barco, com uma velocidade incrível e em ziguezagues arrojados para se desviar dos montes de capim e tranqueiras que entulhavam nossa estrada líquida. - Vamos ver se alcançamos o mar alto para melhor enfrentar o pôrôrouca! E eu, novamente, tal qual um idiota, comecei a rir aquele riso frouxo, despropositado e fora de hora... Não por muito tempo, porém. Na tresloucada carreira do piloto estrangeiro por tão ínvios caminhos d'água, o barco colidiu violentamente 9 A Pororoca J Heriberto Reátegui com uma grande árvore afundada, empinou perigosamente a proa em decolagem, derrapou nas malhas intrincadas da galhada e parou abruptamente num sopapo, derrubando desastradamente seus ocupantes. Embora eu me segurasse firmemente na bancada da proa, fui jogado às águas com todos os documentos. Documentos? Pastor Halley veio parar no banco da frente aonde eu me encontrava antes, abraçado a um caititu. Minha Winchester Savage, calibre 12, cano duplo, conseguiu planar, por segundos, em pleno ar e mergulhou, para sempre, no seio tórrido do Araguari. O tanque de combustível desprendeu-se do motor, passou sobre nós como um bólide e amerissou à distância, conspurcando a face das águas com uma mistura de óleo e gasolina. A caixa de ferramentas abriu-se em pouso forçado e espalhou pelos ares utensílios, peças e badulaques que dariam para consertar até o arco-da-velha. Sob máxima tensão, verificamos que o lugar em que o barco encalhara ficava no final de uma grande curva, o que nos permitiu ver a desembocadura do rio a uma distância não maior que uns quinhentos metros. O que vimos, então, fez-nos esquecer todos os nossos passados infortúnios: qual réptil coleante, a monstruosa pororoca avançava, de lado, empurrando à frente os seus filhinhos, numa escadaria que ascendia até uns dez metros de altura, mais ou menos. No alto do seu cocuruto, pululavam milhões e milhões de escaravelhos prateados, formando um turbilhão alucinante de espumas nas crispas do gigante enfurecido. Eram, provavelmente, os coveiros de plantão. O ronco tonitruante do monstro assemelhava-se ao estouro de uma grande boiada, misturado ao gemido contínuo de todos os animais que habitavam a terra. O bafo de ar quente deslocado pelo ciclone fazia-nos tremer como acessados pela febre da malária e, quanto mais perto chegava, mais nos sufocava e mais desconforto nos causava ao espírito... No limite de nossas forças mentais, urgia que tomássemos uma decisão acertada, aquela que conseguisse, pelo menos, preservar as nossas vidas. Não consta do estatuto dos aventureiros permissão para o desespero, o pânico, ou o colapso da mente. Consta, apenas, autorização para o arrojo, a coragem e a esperança a nortearem suas ações. - Pulamos na água? perguntei. Impossível! A distância até as margens era grande, o barranco alto não nos permitiria subir, ainda que 10 A Pororoca J Heriberto Reátegui chegássemos lá. Ademais, enormes jacarés faziam presença por todo o lugar, tendo mesmo, alguns, mergulhado em nossa direção. - Segure a corda do barco! Não a largue, em qualquer situação! O barco! Sim, ali estava a nossa última fronteira de esperança... Pastor Halley amarrou a ponta do cabo no banco traseiro do grande barco de madeira de lei, agarrou-se a ele firmemente e pronunciou, compungido, a sentença proferida por Abraão, no monte Moriá: Deus proverá! Nesse instante, já contemplávamos, trêmulos e embevecidos, a proximidade do monstro que irrompia como um dilúvio, em nossa direção. O ar quente deslocado quase nos arrebatava do barco e fazia fervilhar a água do rio, à nossa volta. Num estado de torpor e quase delírio, aguardamos, conformados e confiantes, o embate inaudito com a pororoca. - Vamos subir com ela, disse Pastor Halley. De fato, ao chegarem os filhinhos do réptil gigantesco, o barco foi levantado incólume, com árvore e tudo, até os dez metros de altura onde se encontrava a cabeleira do titã. Mas então... ao confronto com os escaravelhos prateados que vinham na sua crista... o caos desceu às águas transtornando a ascensão do barco em parafusos contínuos para, afinal, a desordem e a escuridão se abaterem implacavelmente sobre nós... No embate com as ondas tumultuárias que encabeçavam a pororoca, o barco foi lançado no âmago de um moedor gigante e senti, então, que seria esmagado por forças descomunais. Entretanto, quando a pressão sobre meu peito já se tornava quase insuportável... aterrissei mansamente num lugar seco, um espaço amplo e silencioso, coberto por gigantesca abóbada. O olho do furacão, pensei. A lembrança da pororoca ainda estava presente na minha mente, mas eu senti que ela era opcional e a abandonei, com certa satisfação. O silêncio que imperava, então, naquele mundo novo (e eu tinha consciência disto), não era de caráter coercitivo, mas temporário, porque em seguida ouvi, com pureza jamais observada, o som de instrumentos em afinação. Olhando para a direção de onde vinha o som, focalizei uma orquestra sinfônica, com músicos e maestro vestidos a rigor, num palco em início de espetáculo. Calculando, mentalmente, a grande distância que me separava da orquestra, admirei- me de que a visão captasse tudo, até mesmo os mínimos detalhes e em qualquer ângulo em que se encontrassem. Parecia que os meus olhos funcionavam como um binóculo, no qual a focalização era um simples ato de vontade da mente. Senti uma certa necessidade de testar minha capacidade de locomoção, naquele ambiente, mas logo surgiu do solo, à 11 A Pororoca J Heriberto Reátegui minha frente, uma estreita lâmina de cristal espelhado. Deduzi que aquela peça mantinha certa relação com todo o meu eu e experimentei breve tristeza, por imaginá-la frágil e destrutível. Não me locomovi, mas senti que poderia deslocar-me, mesmo sem mexer qualquer músculo. Nenhum sentimento de medo ou aflição... apenas uma leve e doce expectativa... Do próprio núcleo da mente emergiu a idéia de que o novo estado em que me encontrava era continuação natural da vida, ao qual eu deveria me adaptar. Nesse instante, a orquestra começou a tocar. Uma peça pesada, lenta, que não me despertou admiração, embora minha preferência fosse pela música clássica. Música fúnebre, pensei. Então o instrumental, que começara em pianíssimo foi, num crescendo, do adagio ao allegro, enchendo de sons majestosos e cristalinos a grande abóbada em que me encontrava. Imaginei que se tratava de um prelude. Após um início extremamente dramático, já se ouviam o som agudo de violinos que respondiam, com brilho intenso, ao desafio melódico dos instrumentos graves. Com extrema paixão a orquestra inteira, sempre em escala ascendente, alcançava, na música, exaltação extraordinária... E, no instante em que era mais intensa a vibração dos instrumentos, abriu-se por trás da orquestra o pano de boca de um enorme palco; disposto em três fileiras, um coral majestoso, composto de homens e mulheres de todas as raças, jovens e idosos, todos belos e imponentes, sorrindo e preparados para cantar... Senti um frêmito percorrer todo o meu ser... A união do coro à orquestra se constituiu em harmonia de beleza indescritível. Um hino agora era cantado na língua italiana... E eu ouvia todos os detalhes, tanto da música quanto do coral e via, igualmente, todos os movimentos que ocorriam. Em determinado momento, fixei a visão num violinista, no instante exato em que a corda prima do seu violino se partiu. O músico apenas olhou de soslaio e continuou a tocar, com um sorriso nos lábios, como se nada tivesse acontecido... O final da peça - que poderia ser considerada uma sinfonia - foi de uma intensidade e beleza como eu jamais pude imaginar. Fiquei pasmado por instantes e só retornei ao normal no momento em que uma luz singular penetrou por uma abertura da abóbada que se encontrava justamente sobre minha cabeça, embora eu não a tivesse notado antes. A luminosidade do ambiente foi elevada a um grau inimaginável. Parecia que muitos sóis se levantaram no espaço e jorravam bilhões e bilhões de fótons sobre o lugar. E aquela era apenas uma partícula da luz exterior que penetrava pela abertura da construção... O mais curioso do fato era que não havia reflexos nem sombras no ambiente, mesmo antes de a luminosidade 12 A Pororoca J Heriberto Reátegui extrema penetrar... Como me parecesse, desde o princípio, que o meu corpo levitava, pensei em subir em direção à abertura da abóbada para examinar que luz era aquela... Foi o suficiente para que eu subisse alguns metros, mas, para desconforto meu, a lâmina de cristal subiu comigo na mesma altura e velocidade. Pensei, de forma até prosaica, que aquela lâmina espelhada continha o enigma da vida e da morte, e que esse enigma, de alguma forma, estava ligado à estrutura do meu ser. Como a palavra morte me viesse pela primeira vez à mente, começaram a surgir impressos, na própria face do cristal, embora eu soubesse que provinham da minha mente, os versos de um poema que eu jamais sonhara compor. A epígrafe era o verso de uma carta de Paulo - o Apóstolo - aos cristãos de Corinto: "Onde está, ó morte, a tua vitória?" À principio eu te temia... Depois passei a odiar-te... Hoje eu sinto que te amo: Um amor singelo, à distância, sem tragédia e sem remorsos... Pois agora eu te vejo como és: A certeza absoluta desta vida; Tão previsível como o nascer... E quando eu te sentir perto: O frio ou o calor da tua presença... Eu saberei estar pronto... Para aquele encontro supremo Em que apenas por instantes terás posse do meu ser... Mas então eu já estarei longe, Em plena viagem... Nesse instante verifiquei que, enquanto os versos apareciam no espelho, eu continuava subindo para a abertura ao alto e a lâmina de cristal crescia e me acompanhava sem, entretanto, se desprender do solo. Dominado por um desejo súbito de fugir àquela presença incômoda e perscrutar, lá fora, o calor e o brilho da aurora incomum, pela primeira vez, naquele lugar, usei as mãos e tentei empurrar para longe o objeto de minha aflição. Minhas mãos apenas tocaram a face do espelho e isso foi o bastante para estilhaçá-lo em mil fragmentos. Para grande desgosto meu, 13 A Pororoca J Heriberto Reátegui no momento em que a peça se despedaçou e os fragmentos despencaram, meu corpo tombou com eles... em direção a um abismo de escuridão. O moedor gigante, pensei, enquanto era levado, aos trancos, pela goela líquida de um monstro. Por um tempo que me pareceu excessivamente longo fui sugado, moído e vergastado... e quando era mais forte a pressão em meu peito e eu senti que meus pulmões iriam estourar, consegui emergir das águas e bati com a cabeça no cavername de um barco, ainda em plena escuridão. Minhas mãos seguravam uma corda com tanta força que tive que despender grande esforço para soltá-las. Logo percebi que estava sob o nosso barco que emborcara e que, de alguma forma desconhecida, fôra libertado pelo monstro. As ondas já não eram tão turbulentas, mas o estrondo de águas em tormento fazia-se ouvir com toda a sua força. Mergulhei para sair da cobertura do barco e emergi novamente, desta vez em plena claridade do dia. Vi, ainda, as águas espumantes transbordarem o leito do rio e esparramarem-se pelas terras circundantes. Pastor Halley, que fora lançado sobre o barranco e seguro por arbustos, caminhava, já, em minha direção. O barco encalhara sobre o tronco de uma árvore, junto à margem. Deduzi que as ondas que encabeçavam a pororoca não souberam fazer a curvatura do rio e jogaram- nos contra o barranco, onde encalhamos. Já em terra firme, olhei com assombro, à esquerda... e vi, a não mais de cem metros de distância... a pororoca em toda a sua pujança, que subia o rio semeando destruição. Árvores centenárias tombavam gemendo e estertorando sob o guante impiedoso do gigante. Seus filhinhos já não eram visíveis mas, no alto de sua crista, os escaravelhos prateados pulavam como monstrinhos em ebulição... Santo Deus! Não fazia, pois, mais do que dois minutos que ela havia passado sobre nós... Pela primeira vez minha mente entrou em desordem, a cabeça rodopiou e senti vontade de vomitar. Com os pensamentos confusos, fui compelido a retroceder no tempo e ajustar o relógio interior, para poder encarar, de frente, a realidade que nos cercava. Nesse esforço inaudito, uma cortina de escuridão desceu sobre a memória e escondeu, totalmente, qualquer fato, ilusão, projeção mental ou o que fosse que eu tivesse vivido no âmago da pororoca. Era como se os escritos de um livro, não de um livro, apenas de um caderno, fossem criptografados e se transformassem em alguns pontinhos e quadrados. Não! Não me lembrava de nada, mas sabia que algo inconcebível, 14 A Pororoca J Heriberto Reátegui metafísico ou transcendental ocorrera comigo, há apenas alguns segundos, atrás... Que coisa, hein, Irmão? E Pastor Halley me amparava, enquanto eu jogava litros de água, do estômago para fora. Que coisa? Pensei. Nada mais a dizer? Milagre! Estamos vivos! Ou outra coisa qualquer? Santo Deus! Como poderia um homem tão preparado como aquele, formado em Teologia pela Universidade do Kansas, Ph.D. pela Universidade de Purdue, nos Estados Unidos, manifestar-se, dessa forma, ante acontecimento tão extraordinário? Desviramos o barco, tiramos a água que ficou, com as próprias mãos e, por instantes, ficamos a admirar aquela bela construção que salvara nossas vidas em situação terrivelmente avassaladora. Com algumas lascas arrancadas, fazendo água por pequenas trincas, apenas o motor-de-popa e a corda como ornamentos, o barco foi por nós impulsionado com dois varejões improvisados, sem pressa alguma, em direção ao mar, aonde pegaríamos corrente favorável que nos levaria em direção à foz do Amazonas, ou então, diretamente ao vértice do Triângulo das Bermudas. Nada disso nos preocupava após o embate com a pororoca, cujo estrondo perdia-se nas distâncias. Mar aberto, com ondas apenas balouçantes, deitamo-nos nos bancos centrais do barco e ficamos a olhar as nuvens no céu já claro, em descanso aos corpos doloridos. Fiz um esforço tremendo para me lembrar de algo que havia acontecido ou que houvera imaginado horas atrás, mas tudo foi debalde: as lembranças esvaíram-se nas brumas do esquecimento. Só havia mesmo uma maneira de descrever o indescritível: - Que coisa, hein, Pastor? - Pois é, Irmão, será que os caititus conseguiram se salvar? Ou estão agora encolhidinhos no bucho dos jacarés? A tarde não se escoara ainda, quando um dos muitos barcos cargueiros que trafegavam entre Caiena e o Território do Amapá abordou o nosso barco, quebrando o pesado sono em que nos encontrávamos. Horas depois, aportávamos em Macapá, onde, por intermédio da Rádio local, espalhamos aos quatro ventos a nossa aventura incomum com a pororoca. Várias vezes retornamos à região do Araguari, em visita aos ribeirinhos e no afã de pescar e caçar por aquelas paragens, mas nunca 15 A Pororoca J Heriberto Reátegui mais nos deparamos com o fenômeno das águas em proporções tão gigantescas. Anos depois... quando até a lembrança do naufrágio já era para mim um pequeno borrão nas memórias do passado mais precisamente num verão de 1983, na capital das Gerais... liguei a televisão no momento em que o apresentador anunciava o início de um espetáculo de gala, transmitido ao vivo, em comemoração ao centenário do Opera House dos reis da Inglaterra. Logo, foi anunciada a apresentação de uma peça de Mascagni, com orquestra e côro do próprio Opera House. A música começou em surdina (quase inaudível mesmo), pesada e inexpressiva. Afastei-me da sala, pois achei que não era aquele o meu estilo de música... mas o som do instrumental foi se elevando e, do lugar onde eu estava, pude ouvir os violinos que respondiam, com preciosismo, à harmonia melodiosa dos instrumentos graves, na execução do prelúdio de uma peça magistral... Aproximei-me novamente da televisão e pude ver, abrindo-se, o pano de boca de um imenso palco. Nele um coral majestoso uniu-se à orquestra num hino de exaltação ao sol... Senti um frêmito percorrer todo o meu corpo... E quando se tornou mais dramática a execução da orquestra e mais vibrante o cântico do coral, uma das câmeras aproximou-se, com o zoom, do grupo dos violinos e... para assombro meu... focalizou um virtuose no momento exato em que a corda prima do seu violino se partiu. O músico continuou, indiferente... a tocar. Não mais era possível segurar tamanha emoção! Uma pororoca de lágrimas inundou os meus olhos... descerraram-se cortinas do passado, comecei a vagar, em pensamento, por lugares procelosos que havia trilhado muitos anos antes e sorvi, em êxtase, memórias que eu julgava perdidas na bruma dos tempos... Mistérios, sons, luz e cantos, tudo aflorou claro e primoroso no cerne de minha mente. Tão somente não me foi possível descrevê-los fielmente porque ocorreram em dimensão quase inacessível à linguagem comum. Daí em diante, meus sonhos passaram a ser constantemente assediados por um monstro marinho de proporções gigantescas... mas ele não me causa qualquer medo ou aflição. O estrondo de suas catadupas soa como um cântico de saudade por aventuras vividas e, por extensão, eu sonho acordado com o dia em que, por modo transcendente eu for chamado a viver, de novo, todos os encantos, mistérios e perigos da luta 16 A Pororoca J Heriberto Reátegui titânica entre as águas frias do Atlântico e as águas quentes do fabuloso Amazonas... Então, mesmo que o meu corpo já se encontre debilitado... vergado sob o peso dos anos... eu saberei estar pronto... para comparecer - não importa o meio de transporte - à orla do Cabo Norte e navegar Araguari acima... no dorso encapelado da pororoca... AVENTURA! AVENTURA! Qual o significado daquela lâmina de cristal que não me permitiu transpor o que seria, talvez, o umbral do reino encantado dos teus domínios? Fim ********* 17