SENTI NA PELE - O Deficiente visual Índice Índice ........................................ 00 Senti na pele! ................................ 3 Apresentação ................................... 9 Inserção do Deficiente Visual na Sociedade .... 15 A Integração da Criança Deficiente na Escola .. 33 integração do Deficiente Visual na Escola ..... 43 Breves referências à situação dos deficientes visuais no Ensino Superior ........ 59 Os Professores deficientes e a sua colocação .. 69 O Professor Deficiente Visual no sistema educativo: Que problemas, que soluções? ........ 77 Associativismo Tiflológico .................... 87 Deficientes Visuais: Família, Ensino, Emprego ............ 97 Senti na pele! Em Jeito de Introdução Passados que estão cinquenta anos de vida, dos quais trinta e um e meio na mais completa cegueira de olhos, talvez se possam alinhar algumas ideias, palavras despretenciosas e sugestões ainda mais despretenciosas. Por característica, não gosto de estudar, pois de um modo geral as obras de carácter didático revestem um não sei quê de chato, que detesto. Talvez seja o facto de serem didáticas e isso fazer funcionar em mim, de imediato, como que uma quebra de tensão que me leva a "desligar"; detesto coisas teóricas, como detesto algumas das práticas e concretas que me sejam impostas. Por isso, não gosto de estudar. Todavia, gosto de aprender e de saber. Mas, tento aprender e saber com o que vejo e ouço, com o que me rodeia, com quem me rodeia, comigo próprio, com os meus erros, as minhas vitórias, as minhas derrotas, com os meus sentimentos, com o meu comportamento. Hoje, virada a primeira metade do meu século e lembrando o que dizia aquela que me atirou para a aventura, que é viver, "já estou velho para ter medo de dizer as coisas". Bem! Verdade, verdade, ainda tenho medo, mas, perdê-lo é uma questão de tempo. E, enquanto esse momento de desassombro não chega, vou praticando; e aqui e agora vou já dizendo algumas coisas. Disse já, que detesto estudar em livros didáticos, ou não, grandes teorias, afirmações acertadíssimas, opiniões importantes escritas, na maior parte das vezes, por autores teóricos que experimentaram as suas teorias... mas nos outros. Pudera! Por vezes é tal o que teorizam que, como cautelas e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém... Preferem acautelar-se! Por isso, não os leio. Também afirmei que gosto de aprender e de saber e como o tenho feito: para dizer a verdade, com Amigos, outros amigos, gente boa, "gente porreira", alguns inimigos e coisas avulsas, por vezes com aspecto de pessoas. Mas, basicamente, a minha aprendizagem tem resultado da minha experiência pessoal. Por isso, quando digo ou passo ao papel as tais ideias e palavras despretenciosas, pretendo transmitir a quem ouvir e ler tudo o que, em quase trinta e dois anos de cegueira, senti na pele. E como essa sensação por vezes foi tão desagradável! Pretendo transmitir as conclusões de toda uma vivência, mas não pretendo que sejam consideradas mais uma série de teorias, de informações importantes ou de algo digno de um livro didático. E não o pretendo, pois acredito que, como eu, haverá muitos outros avessos à chateza desse tipo de literatura. Assim, Senti na pele será, tão somente, uma pequena colectânea de textos não muito longos, em que a problemática da deficiência visual será abordada. Não se fará uma ordenação cronológica, mas uma tentativa de sistematização que acompanharia uma vida, desde o nascimento à integração no mundo, passando pela família, pela escola, pelo emprego. Gostaria que estas páginas, que para muitos serão teóricas e demasiadas -e por isso sugiro que as não leiam- gostaria, dizia eu, que servissem para que todos e cada um pensasse, de espírito aberto, que se se cometeram erros, estes deveriam servir para que se aprendesse; se se tem uma visão idílica do mundo, esta deverá ser repensada, pois o mundo onde nos inserimos é duro, exigente, incompreensivo, cruel em suma. Nós, os deficientes, fazemos parte dele; nós, os deficientes, temos de "levar" com os nossos problemas específicos, para além de termos de nos confrontar com os comuns; nós, os deficientes, temos, desde muito cedo, de adquirir as nossas próprias armaduras, já que, para nós, a vida é bem mais dura que para os outros. Na verdade, ser cego não é a morte de ninguém, mas ser cego, neste mundo, e especialmente neste país, é "profissão de alto risco"; além disso, o mal só acontece aos outros, mas, quando é um deles a pensá-lo, um dos tais "outros" pode ser cada um de nós. Lisboa, 25-26 de Maio de 1998 Apresentação Recentemente completei meio século de existência, do qual cerca de dois terços na mais completa cegueira. Com apenas dezoito anos e na sequência de um acidente com uma granada, adquiri esse estado de cegueira e outras deficiências, nomeadamente a amputação da mão direita e destruição bi-lateral dos tímpanos, o que se traduz já numa razoável perda da audição, num dos ouvidos, e da perda total no outro. A robustez física, aliada à força anímica, permitiram- -me sobreviver aos gravíssimos ferimentos. Aprendi, de imediato, que os erros se pagam caro: na verdade, os conselhos dos mais velhos, por chatos que sejam, devem, têm de, ser ouvidos, pois é bem certo que o diabo sabe mais por ser velho que por ser diabo; depois, um explosivo tem de ser "tratado com respeito", nada se facilitando, mesmo quando se é quase um perito. Desrespeitá-lo dá lugar num cemitério ou numa cama de hospital. Concluiu-se isso mesmo tempos mais tarde. A primeira ilacção que pude tirar do evento foi quase lapalissiana: se não se obtem resposta a uma pergunta, que, de facto, a não tem, o melhor que se tem a fazer é deixar de insistir nela, encolher os ombros e esperar. Foi o que fiz. Depois, um grupo de quatro enfermeiras, três médicos, em presença, e uma montanha de gente, fora do hospital, mas sempre presente a transmitir força, alimentaram a espera. Dias mais tarde, já num outro hospital, a primeira grande lição de aquisição de auto-confiança dada pela Enfermeira-chefe, com suave firmeza e sem admissão de réplica: pela primeira vez, após ter cegado há escassos dezasseis dias, ela não permitiu que me fosse dada qualquer ajuda mas ensinou-me a forma como deveria fazer um determinado percurso; fê-lo com indicações precisas sobre pontos de referência e possíveis obstáculos a encontrar. Passada a experiência, a Enfermeira-chefe Dolores disse apenas: "Meu pai tem 80 anos e cegou há pouco. Se ele se habituou a fazer as suas coisas sozinho, você com 18 anos tem melhores condições que ele.". Abençoadas palavras, saudosa Enfermeira Dolores. Mais tarde, após a saída do hospital, foi uma amiga da minha idade quem, em tom sério, em ar de brincadeira e chamando as coisas pelo seu nome, me apoiou para vencer algumas das barreiras que a nova situação me colocava à frente. Regressado a Angola, sete meses volvidos sobre o acidente que me vitimara, percebi o valor da solidariedade, da amizade, com companheirismo e da curiosidade, as razões que levaram a que a minha casa estivesse permanentemente cheia de gente. Por brincadeira e passatempo comecei a participar num programa radiofónico, criando mais tarde o meu próprio programa, a única fonte de rendimento de que dispunha. Nesse período conheci uma rapariga que, contra tudo e contra todos, me acompanhou durante quatro anos. A ela fiquei a dever a passagem da última e maior barreira que se me deparou: vencer o "medo" de reentrar no quarto onde tivera o acidente que me cegara e simultâneamente me matara o irmão. Penso que, ainda hoje, a Ju não percebeu a enorme dimensão desse gesto que resultou da sua subtil intuição, perspicácia, inteligência e muito carinho. Mas eu sei-o! Porém, tudo isso não teria resultado sem a presença constante, a abnegação, a persistência, a luta contra a dor de ver um filho desfeito e outro gravemente ferido, a procura de soluções, cada uma a confirmar a inevitabilidade duma situação de facto, de uma MULHER que, vencendo o cansaço, o medo e combatendo tudo foi o esteio para uma vitória sobre o azar que, apesar de tudo, foi a perda de olhos, mão e audição. A Esmeraldina, Mãe de quem assina estes textos, soube aprender a lidar com a cegueira dum filho, soube ajudá-lo a lidar com essa cegueira e, mesmo quando erravam, esses erros serviam para evitar outros. Por vezes, confrontaram-se as preocupações da Mãe com as necessidades do filho, de permanente exercício para alcançar e manter a autonomia possível, baseadas no princípio de que um cego nem sempre tem quem possa e/ou queira ajudá-lo e, portanto, tem de estar preparado para sobreviver sozinho. É um treino que exige auto-disciplina e por vezes leva a que o deficiente se imponha recusar-se aceitar determinadas colaborações. O papel dela foi determinante para que uma situação, totalmente inesperada, pudesse ser vencida, à custa de sacrifícios, luta, lágrimas e sorrisos, mas vencida. A Esmeraldina é, pois, a autora moral das reflexões que aqui se deixam e, embora tardiamente, a destinatária de um bem- -haja. Espero que, o que seguidamente se apresenta, possa ajudar todos quantos por medo, por desconhecimento ou uma qualquer razão ainda se sintam perdidos por causa de um mundo que, não sendo de maravilha, é bem melhor que o resultante de outros tipos de deficiências ou doenças. Inserção do Deficiente Visual na Sociedade Como dizem os brasileiros, por vezes damos por nós a "chover no molhado". A que propósito vem isto? É simples. Vejamos o que pretendem eles com tal expressão. Tão somente querem dizer que se está discutir qualquer assunto que não tem discussão possível, por tão evidente que é. Diríamos nós, portugueses, que se estaria a discutir o "sexo dos anjos". Uma consulta rápida a um pequeno dicionário, concretamente Dicionário da Língua Portuguesa, F. Magalhães, XVI Ed., transcrito em Braille e publicado pela Fundação Para o Livro do Cego no Brasil, permite-nos ler o seguinte: - Inserir = introduzir - pág. 676 - Tomo III - Sociedade = estado dos homens que vivem sob leis comuns - pág. 1089 - Tomo V. Consultando depois a Constituição da República Portuguesa -I Revisão - 1982, podemos ler, entre outras coisas: "Art. 1º - Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana..." "Art. 4º - São cidadãos portugueses todos aqueles que como tal sejam considerados pela lei ou por convenção internacional." "Art. 71º - 1- Os cidadãos física ou mentalmente deficientes gozam plenamente dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição." "Art. 71º - 2- O Estado obriga-se a realizar uma política nacional de prevenção e de tratamento, reabilitação e integração dos deficientes, a desenvolver uma pedagogia que sensibilize a sociedade quanto aos deveres de solidariedade e de respeito para com eles e a assumir o encargo da efectiva realização dos seus direitos, sem prejuízo dos direitos ou deveres dos pais ou tutores." Perante o que atrás se deixa, não correremos o risco de "chover no molhado"? Se os deficientes são portugueses por lei ou por convenção; se gozam plenamente de todos os direitos e se estão sujeitos a todos os deveres consignados na Constituição; se são pessoas humanas com uma dignidade a respeitar, porque, antes de serem deficientes, são isso mesmo, pessoas humanas, então, porquê falar ou discutir acerca da introdução dos deficientes num grupo de Homens sujeitos a um conjunto de leis a que, afinal, pertencem por condição e por dignidade inerentes à sua condição de Homens? Todavia, apesar desta evidência, a realidade é bem outra. As primeiras linhas, as transcrições, são meras questões teóricas e a verdade de cada um, a verdade de cada dia, a verdade de cada situação mostram, com fria dureza, que não passam disso mesmo: meras expressões teóricas. Assim sendo... Passemos à integração. Quem ousará negar que ninguém nasce a seu pedido e muito menos transportando com gosto uma deficiência. Se cada ser que nasce resulta da vontade, consciente ou inconsciente de dois indivíduos, cabe a estes a responsabilidade de fazer do nascituro alguém física e psicologicamente perfeito. Contudo, se à nascença o novo ser for já portador de uma qualquer deficiência, tendo em conta que o tempo e as práticas da antiga Esparta estão ultrapassados, nada resta aos pais, para além de facultarem ao filho deficiente as condições necessárias e suficientes, para que ele se adapte ao mundo em que entrou. Felizmente, são em pequeno número as marginalizações de filhos deficientes, apesar de serem muitas, em termos relativos. Nestes casos, mais que deficiente e para além disso, a pessoa tornar-se-á inadaptada, situação bem mais grave, convenhamos. Por vergonha, por ignorância ou por maldade dos progenitores, a criança será "escondida" e não frequentará a escola, ou só muito tardiamente o fará. Que resultará daqui? Por certo e logicamente, uma quase incapacidade para a penetração no estádio seguinte, que é o da angariação dos meios de subsistência. Se o deficiente não tiver uma reserva quase inesgotável de energia, de inconformismo, de espírito de luta e, aqui e ali, um pequeno incentivo exterior à família, jamais passará de uma coisa, com a forma de ser humano, e um farrapo, sob o ponto de vista psicológico. Para ele a sociedade será algo proibido, pois jamais se integrará. Noutros casos, a família vai dando certo campo de manobra ao deficiente, mas não deixa de lhe ir recordando, a propósito ou a despropósito, a sua condição. "Não mata, mas mói", pode dizer-se; e também neste tipo de situações, a perspectiva de inadaptação é um perigo real e grande. Uma vez mais serão a energia, o inconformismo, o espírito de luta e incentivos de ordem diversa que permitirão que o deficiente sobreviva ao naufrágio. Regra geral, à deficiência vem juntar-se uma enorme revolta contra aqueles que deram origem à situação. Porém, o inverso daquelas situações também acontece. A criança é super-protegida, rodeada de mil e um cuidados e objecto de todas as atenções. Assim, como todos os recém-nascidos, ou bébés de tenra idade, depressa se apercebe do valor da sua deficiência, como arma para a sua chantagenzinha. Torna-se depois caprichosa, teimosa e egoísta; assim, virá a ser, embora por razões distintas, um ser inadaptado ou dificilmente adaptável. A passagem do ambiente restrito do lar e da família para um mais amplo, que é a Escola, fará com que o mundo apareça hostil e indesejável. Na verdade, as atenções não lhe serão destinadas por inteiro, a teimosia dificilmente lhe será admitida e o egoísmo será combatido. A criança deficiente sentir-se-á perdida nesse mundo e tornar-se-á excessivamente introvertida ou muitíssimo agressiva. Não será fácil que aconteça de outro modo. Mais tarde, a sua vida será o resultado de qualquer destes tipos de comportamento e, certamente, não será das mais agradáveis. Note- -se que, neste caso, o resultado de tal actuação dos progenitores, ou outros familiares, seria igual, independentemente do indivíduo ser, ou não, portador de uma deficiência; esta funcionaria apenas como factor agravante para semelhante forma de agir. A acção da família é, pois, determinante para a melhor ou pior integração do indivíduo, o que é uma verdade quase "Lapalissiana". A criança deficiente deverá ser encarada com toda a naturalidade, cabendo à família ajudá-la na descoberta que ela própria fará de si mesma e das soluções para os problemas com que irá confrontar-se, o que acontece, aliás, com qualquer criança. A família deverá ter, isso sim, a atenção necessária para que um qualquer problema possa ser ultrapassado, se e quando a solução não estiver ao alcance do jovem; deverá dispensar-lhe os cuidados suficientes para evitar quaisquer ocorrências graves, resultantes da falta da visão. É importante que primeiro a família se prepare para aceitar o deficiente, que verdadeiramente o aceite, que o ensine a aceitar a sua diferença pois, se ela própria o não quiser ou souber fazer, como poderá orientar, preparar e ajudar aquele que precisa? Em suma, um comportamento normal para com um deficiente visual, por parte da sua família, permitir-lhe-á uma fácil integração, pois dar-lhe-á a dimensão exacta das suas capacidades e possibilidades para enfrentar o desafio que é a vida. Mas... E se o filho nascer "perfeitinho" e a deficiência sobrevier posteriormente? À família compete recolher, de imediato, a informação possível, preparando-se e ajudando a preparar o recém- deficiente, para que este se adapte à nova situação. Essa adaptação, quase sempre dolorosa e difícil, feita em local e ambiente seguros, levará à aquisição de auto-confiança e da força necessárias para a inserção no mundo exterior e, consequentemente, a uma reintegração plena na sociedade. A integração começará, pois, sempre pela família e do êxito ou do fracasso desse passo resultará o êxito ou o fracasso do passo seguinte. A escola, como a família, é uma Instituição, cuja quota de responsabilidade no processo de inserção dos deficientes é particularmente importante. Como todas, "a moda da integração" chegou ao ensino. Como as outras, a "moda da integração" quase se traduziu num conhecido e não muito antigo lema: "integração na Escola e nas escolas, rapidamente e em força". Esta manifestação de uma reminiscência, de uma certa mentalidade, associada às características que as modas revestem, não teria tido em conta uma pergunta simples: e depois? Integrar na escola é importante; integrar na escola é necessário; integrar na escola, todavia, é perigoso e impõe cautelas. Integração desde o início é o que defendem alguns; integração apenas a partir do Ciclo Preparatório (2º Ciclo), defendem outros. Criaram-se serviços especiais, organizaram-se planos de actividades, constituíram-se centros de apoio fixos e equipas itinerantes, adquiriu-se muito material, é verdade. Mas... Vejamos. Quantas crianças estão a frequentar a escola primária, isto é, as duas primeiras fases com os seus quatro anos de escolaridade? Qual a sua distribuição geográfica? Estão concentradas ou dispersas? Os centros de apoio cobrem as necessidades, no caso da concentração? As equipas são em número suficiente para assegurarem um apoio eficaz, no caso da dispersão? E o material é o suficiente? Os livros e as gravações (entre outro daquele material) são entregues aos utentes em tempo aceitável? Há equipamento para alunos e professores de apoio e quando há está funcional? Honestamente os responsáveis terão de reconhecer que não. Os apoiantes, por professores e especializados que sejam, são seres humanos e não têm o poder da ubiquidade; além disso, cada dia continua a ter vinte e quatro horas. Por outro lado, as distâncias a percorrer pelas equipas de itinerantes são consideráveis e, assim, regra geral, cada criança apenas conta com a presença de um técnico uma ou duas vezes por semana e por um período de pouquíssimas horas em cada visita (note-se que este texto data de há mais de uma década; algumas -mas não todas- destas situações foram já alteradas). Além disso, a capacidade de resposta dos organismos produtores de material didáctico é reduzida, tendo em conta as limitações materiais e de pessoal especializado - no caso do Centro de Recursos, por exemplo - e porque todos os ano os livros adoptados mudam e em cada escola é escolhido um diferente. Acresce, por vezes, a intransigência de professores que não aceitam os títulos já publicados em Braille ou gravados, porque a sua opção foi outra e não pode ser "beliscada". Note-se, ainda, que a aprendizagem do sistema Braille é algo mais lenta que a da escrita e da leitura correntes, numa primeira fase, e por bastante tempo. Sabe-se que, entre as crianças do nível etário das que acima referimos, o espírito de competição é considerável. Assim, com os óbices que acabámos de enumerar, a integração será vantajosa? A igualdade que se pretende não será sentida de forma diferente pela criança cega, ou seja, não se sentirá ela mais diferente e inferiorizada pela impossibilidade de acompanhar a par e passo os seus condiscípulos? Tal sentimento de impotência não poderá traduzir-se em revolta surda, ou não, crescente, que condicionará a personalidade e o comportamento do ser, num futuro não muito distante? Em suma: valerá a pena apostar na integração na Escola, tão cedo, sem se dispor das condições necessárias e suficientes para o êxito total do objectivo, que seria a "igualização" e, por conseguinte, a sua integração? A esse nível e até nos seguintes, há que ter em conta, também e de maneira considerável, as características da criança e mesmo do adolescente que, por maldade infantil e inconsciente, mas maldade, "goza" e/ou minimiza o condiscípulo deficiente. A frase "bem feito! Não me agarras, porque és ceguinho...", ou outras do género, não deixarão marcas profundas numa criança de pouca idade ou na fase de mudança, a nível do seu psíquico? No 2º Ciclo (Preparatório) e no Secundário já as condições serão algo diferentes, mas apenas no que respeita às condições pessoais de cada aluno, já que os serviços, as equipas, os centros e as incapacidades das respostas continuarão a manter--se. Além disso, surge um aspecto ou dois diferentes: de um professor passa-se a um conjunto de nove ou dez e cada qual com modos de ver e de agir distintos; e que sensibilização, para receber um aluno cego ou amblíope, têm esses docentes? Como exigir deles uma actuação que frequentemente não seja uma agressão, real ou aparente? No entanto, repetimos, a este nível já o deficiente "encaixa" melhor ou pior as situações e na maioria dos casos consegue mesmo ultrapassá-las. Chegados ao Ensino Superior, então sim, o deficiente é "lançado às feras, na selva que são as faculdades". Selva, porque se vive na ânsia de uma boa nota, pelo que salve-se quem puder e como puder; selva, porque na "caça à nota" tudo é válido, como no amor e na guerra. Feras, porque, quer condiscípulos quer docentes, embora já só uma minoria, abominam os estudantes deficientes; feras, porque, calma e tranquilamente, alguns alunos e professores ignoram os cegos e amblíopes, embora sem os hostilizarem, o que também é uma forma de agressão e marginalização. Felizmente neste momento há um grupo de docentes e de discentes portadores de deficiência -pequeno, mas que talvez tenha força para remover muitos dos obstáculos-, que entenderam uma verdade tão simples como a que já expressámos atrás: os estudantes deficientes, cegos e amblíopes, antes de serem estudantes já eram deficientes e conseguiram chegar a uma faculdade; e, antes de serem deficientes já eram pessoas e por isso, tal como todos os que estudam nas Universidades, devem ser, têm de ser tratados como tal; assim sendo, a integração estaria consumada. Entretanto, não deixemos de considerar o reverso da medalha: o papel do estudante deficiente. Também neste particular, o cego tem uma extraordinária responsabilidade. Há que ter em conta um pequeníssimo grupo, felizmente uma escassa meia dúzia de indivíduos, que usam a sua deficiência para ludibriar professores e condiscípulos, com "vozes meladas e falas doces", ou fazendo crer que a sua deficiência reveste maior gravidade que aquela que realmente tem. Outros, e apenas um ou dois, a exemplo do que muito boa gente faz pelas faculdades, "penduram-se" a colegas de grupo para, sem grande ou até sem nenhum esforço, atingirem o seu desiderato. Neste caso, convenhamos, "até se integraram muito bem e depressa...". Os restantes, a maioria, de há anos a esta parte tem vindo a defender o reconhecimento do seu estatuto de pessoa, mercê de um trabalho e comportamento honestos, correctos e sem golpismos; isso traduzir-se-á numa abertura à sua integração, o que já começou a acontecer. A Escola é, sem dúvida, o meio que de forma mais eficaz permitirá a plena inserção, pois as crianças normo- visuais, os jovens não deficientes, os alunos adultos, que compartilham com os cegos e amblíopes os bancos das salas de aula, poderão avaliar as capacidades e as potencialidades desses seres que, relativamente a eles, só não têm os olhos a funcionar. Outro dos aspectos a considerar é o que se reporta ao trabalho. Nenhuma pessoa em razoáveis condições de sanidade mental poderá sentir-se como tal, se a sociedade a que pertence não lhe facultar as condições mínimas para o angariar do seu modo de subsistência. Se tal permissa é válida para o geral, não poderá deixar de o ser para o particular e esse é, sem dúvida, o indivíduo deficiente visual. A penetração no mercado de trabalho normal não deve ser negada ao cego, ou ao amblíope, só porque o é. Pode e deve, isso sim, esperar-se dele uma resposta igual à que seria dada por qualquer outro empregado. Para tal, sem o recurso a avaliações paternalistas e/ou de privilégio, devem ser-lhe dadas as condições necessárias para o cabal desempenho da função que é cometida ao trabalhador. Tais condições devem ter em conta a especificidade das características físicas e assim, deve colocar-se a pessoa de acordo com um princípio básico da gestão das empresas: o homem certo no lugar certo. De facto, que lógica colocar um cego a fazer crítica a técnicas de pintura ou fotografia, um surdo a ouvir e a criticar peças musicais ou a afinar instrumentos, por exemplo? Depois, se ao empregado deficiente for facultado o que a tecnologia oferece como forma de compensação, ou se o seu objecto de trabalho for adaptado, ele tem a obrigação de cumprir rigorosamente. Finalmente, deve ter-se em conta que qualquer ser humano tem falhas e comete erros. Por isso, as reacções negativas de um deficiente a situações laborais, não devem ser imputadas à sua deficiência e muito menos devem servir para generalizar a um grupo as características atribuídas a um só dos seus membros. Exemplifiquemos: se um empregado, considerado e chamado "normal", por não ser deficiente, desabafar e sugerir ao chefe que "vá à outra banda", na maioria dos casos haverá um encolher de ombros e comentar-se-á que fulano está mal disposto; se, pelo contrário, o episódio tiver um deficiente como protagonista, embora a resposta seja menos violenta, regra geral o comentário é sensivelmente o seguinte: "estes cegos são uns malcriados". Comportamentos destes são reveladores da incapacidade de muitos para receberem os deficientes como seus iguais, sejam eles quais forem. Talvez por isso ainda se fale em integração. Na realidade, se e quando a solicitações iguais, com respostas semelhantes, os comentários forem uniformes, talvez nesse momento não seja necessário falar de inserção. Qual o papel do próprio deficiente visual em todo o processo? Como facilmente se calculará, o interessado não pode nem deve alienar as suas responsabilidades, em parte ou no todo. A política de avestruz não serve neste processo. De qualquer modo, também, entre os deficientes não há uniformidade de actuação. Condicionados pelo ambiente familiar, cada um desempenhará um papel mais ou menos positivo. Todavia, consideremos somente os indivíduos cuja infância decorreu com toda a normalidade, relativa, como é óbvio, tendo em conta alguns aspectos particulares. Jovem ou já adulto, encontra-se um grupo para quem a deficiência poderá servir como argumento para angariar o sustento fácil, através do recurso à caridade dos outros membros da sociedade. Há, entre esses, quem recorra à mendicidade por motivos ponderosíssimos tais como: uma insuficiente estrutura oficial de apoio, incapaz de solver os problemas, avançada idade, doença impeditiva de obtenção de trabalho, etc, etc, etc. Há, também, aqueles a quem o trabalho "causa borbulhas", para além de outros inconvenientes, e que usam e abusam da sua condição de "ceguinhos"; de facto, se em determinados locais alguém assim os designar, corre o risco de, no mínimo, ser violentamente invectivado mas... curiosamente, ou talvez não, algum tempo antes, ou horas depois, encontrou-se ou encontrar-se-á tal espécime no metropolitano, na rua, à porta da Feira ou de uma igreja, pedindo uma esmola para o "ceguinho". Geralmente esses são dos que mais reinvindicam a plena integração. São, sem dúvida, uma má recomendação, mas o facto é que, se a sociedade por vezes não fosse tão "cega", tais oportunismos e oportunistas seriam extirpados facilmente. Nesse mesmo grupo podem destacar-se alguns, uma minoria, que à custa da deficiência visual exploram a credibilidade de pessoas de boa fé que, por desinformação, ou um certo "deixa andar", um "nossa senhora não te rales" vão amparando tais golpes. Neste particular, a questão é bem mais grave, pois os intervenientes têm, ou deveriam ter, responsabilidades no processo de integração, dada a sua condição de estudantes universitários, de funcionários públicos e de uma certa posição na escala hierarquica, como professores, entre outras coisas, o que não deveria permitir tais oportunismos. Porque há uma tendência natural para as generalizações e os rótulos surgem mais facilmente pela negativa do que pela positiva, o seu comportamento não aplanará o caminho acidentado que leva à integração. Outro grupo de deficientes, talvez o mais numeroso, também não ajuda a aplanar tal caminho, já que se limita a aguardar que terceiros avancem com ideias e trabalho, de que posteriormente recolhem os frutos e muitas vezes exigindo a melhor fatia. É outra faceta do oportunismo, mas é o reflexo de uma mentalidade que urge modificar. Um terceiro conjunto, talvez o menos numeroso, mas mesmo assim com mais elementos do que os que seriam desejáveis, é o dos que teimam em não querer encarar a realidade da sua deficiência. Tal fuga à realidade faz-se através da rejeição a qualquer ajuda que se pretenda dar, levando o deficiente, especialmente o cego, a ver-se envolvido em situações perfeitamente evitáveis. A "mania que vêm" leva-os a não usarem a bengala, por exemplo, e na ânsia de, sem ela, não chamarem a atenção, acabam por fazê-lo ao darem uma sonora cabeçada, ou uma aparatosa queda que, além da gargalhada que tais eventos em regra provocam, a quem a eles assiste, aumentam a compaixão por quem as dá. Afinal, o resultado mostrou-se diametralmente oposto. Poderá e deverá falar-se, ainda, no grupo dos malcriados. Estes são-no, ou por pura e simples falta de educação, ou porque as agressões que lhes são feitas os levam a reagir. Assim, incluem-se no primeiro caso os que, perante a simples oferta para os ajudarem a atravessar uma rua, respondem desabridamente a quem os interpela, por exemplo. Ao segundo grupo correspondem os que, a cada passo, sentem a cabeça ou as canelas a servirem de parachoques contra um camião, um toldo, um andaime ou um madeiro que alguém deixou atravessado, ou descaído, sobre o passeio que, em última instância, deveria ser reservado a qualquer peão, cego ou não. De qualquer forma, as reacções negativas não ajudarão muito, por um lado, mas terão o condão de alertar uma sociedade para os erros que pratica. Um comportamento responsável por parte do cego ou do amblíope, o desempenho das tarefas que lhe são cometidas, a consciência das limitações de que é portador e a subsequente luta para não ser minimizado por, ou perante, colegas e superiores, o cumprimento dos seus deveres e a defesa dos seus direitos, sem exigências de privilégios, levarão por certo a que, gradualmente, embora de maneira demasiado lenta, comecem a cimentar as suas posições, garantindo a sua integração numa sociedade de que, não por acaso, fazem parte por direito, por justiça. Pelo que acaba de se expor, pensamos que a integração é algo que não teria razão de existir. Contudo, a realidade do mundo em que vivemos é bem diferente e assim, deve incentivar-se o combate contra a desigualdade e contra a marginalização. Contra a desigualdade não física, pois os deficientes, porque o são, têm forçosamente de ser desiguais. Falamos, sim, do combate à desigualdade, enquanto pessoas que são: combata-se a marginalização; criem-se condições de adaptação às circunstâncias; dêem-se oportunidades; exija-se o cumprimento de deveres da família, na escola, no trabalho, enfim, em todos os casos; reconheça-se o direito à condição de pessoa humana, que cada um tem, exija-se ao deficiente o cumprimento dos seus deveres e então a palavra integração deixará de ser uma simples expressão meramente teórica. Lisboa, Agosto de 1988 Integração da Criança Deficiente na Escola A ideia de integrar crianças deficientes em estabelecimentos regulares é recente e a força com que os seus defensores procuram justificá-la e implementá-la deve-se a vários factores, entre os quais se salientam: a tomada de consciência do benefício que tal integração pode trazer para a criança em questão e a dignificação da própria comunidade, dita civilizada, onde ela está inserida. A razão porque o ensino especial segregado existiu, e ainda existe, pode ser encontrada nas vicissitudes históricas perfeitamente justificáveis e marcando uma nítida evolução social nos finais do séc. XiX e início do XX, considerando-se a situação de completo abandono a que anteriormente estavam votados os deficientes. Seria insensato atribuir ao sistema integrado a capacidade de eclipsar totalmente a necessidade da existência de escolas segregadas. A integração apresenta benefícios a par de obstáculos e riscos. A nosso ver, os dois sistemas devem coexistir, sempre que os casos individuais o imponham, ou quando a sociedade não mostrar sinais de maturidade adequada, que justifiquem a abolição completa do ensino segregado. Não cremos que haja discordância quanto a isto. Não seria útil, no entanto, explanar aqui e agora algumas considerações óbvias a favor desta tese? Tomemos em primeiro lugar a criança deficiente em análise. Entre as chamadas crianças deficientes, ou especiais, podemos observar um leque gradativo, que vai desde a criança com ligeiras perturbações até às que figuram como casos pesados, ou crianças com multideficiências. Considerando que neste momento estamos a referir-nos ao conjunto todo, que tradicionalmente não encontrava lugar em estabelecimentos de ensino regular, e aceitando que hoje é possível alargar a fronteira, de molde a abranger uma substancial fatia do referido leque, graças à evolução tecnológica de meios de comunicação e sobretudo à mudança de atitude dos que gerem os destinos dos deficientes, ficam outros para os quais a escola regular será uma ideia a esquecer. Continuando com a nossa análise, viremos agora a nossa atenção para a estrutura da escola regular. Quem pode duvidar que a escola regular foi totalmente concebida para atender crianças com todo o seu equipamento físico, sensorial e mental em ordem? Os povos querem caminhar incessantemente na sua marcha evolutiva. Isso faz com que o aproveitamento acelere, devido às possibilidades da tecnologia moderna, apressando o estudo e a aprendizagem de grande parte da matéria, numa conjugação áudio- -visual, quer dizer: esplêndido para as crianças não deficientes, porque enriquecem o seu processo de aprendizagem. Mas, como se situa a criança deficiente nesta conjuntura? Em tais circunstâncias, parece-nos que uma criança surda ou cega, da laranja só apanhará a casca. Que dizer também da estrutura física da escola? Para as crianças vulgares não há problemas, sobem e descem a escada, correm pelos pátios e corredores, entram nas salas com a maior das facilidades. Mas, como vai uma criança cega, ou em cadeira de rodas, aproximar-se da facilidade das crianças não deficientes? O que existe de concreto na área de recreio, onde possamos dizer que a criança deficiente se pode facilmente inserir? Tomando em consideração os docentes, o pessoal auxiliar e os alunos em geral, poderemos, em boa consciência, dizer que eles estão psicologicamente aptos a receber no seu seio crianças deficientes? Alguém acredita que pode haver uma integração destes, sem haver uma mudança de atitude favorável a eles, por parte dos que os rodeiam? A integração física de uma criança deficiente é apenas uma componente da integração total. Quando aparecem estatísticas em relação às crianças integradas, julgamos que é apenas o aspecto físico "de estar presente no meio de ...", aquele que conta. Qual peixe de água doce que é lançado no mar salgado e tem de procurar adaptar-se ao meio ambiente, no qual há pouca adequação para si, a criança deficiente tem de remar contra a maré. Certamente que uma coisa é o que o deficiente tem de passar; outra é o que outros com diferentes possibilidades julgam observar. O ensino regular não faz praticamente nenhumas concessões curriculares para ir meio caminho ao encontro do deficiente. «Fazê-lo seria pôr em risco a marcha da evolução dos homens e mulheres de amanhã, de que o país precisa». Mas não será possível fazer os pequenos reajustamentos curriculares que, indo beneficiar o deficiente, não prejudicasse a outra parte? Estes reajustamentos teriam de ser feitos naturalmente pelo professor regular da classe, que está com a criança a maior parte do tempo lectivo. Mas que sabe ele sobre esta matéria? Não são raros os professores que entram em pânico, ao encarar a perspectiva de ter um deficiente na sua classe. Tratando-se de uma criança cega, o domínio do Braille, com o auxílio de um professor itinerante, não basta para resolver os inúmeros obstáculos da verdadeira integração. Estes aspectos aqui aflorados põem em claro a dimensão do desafio que a problemática apresenta. Sem dúvida que a família é o núcleo propício para o crescimento harmonioso da criança. A escola nas imediações, ou a uma distância acessível, permite à criança deficiente preparar--se para as exigências da vida em casa e na escola. Todos concordamos com isto. Mas, quando a instabilidade emocional e a violência reinam em casa, qual é a situação da criança? Ou, quando os pais estão muitas horas fora do domicílio por motivos profissionais? Como se vê, o problema não é tão fácil como pode parecer à primeira vista. Quantas vezes a própria instabilidade familiar é gerada pelo aparecimento da criança deficiente e há, no fundo, a erosão de outras vidas à sua volta. Em alguns casos, o semi-internato poderia resolver satisfatoriamente a situação. Tudo isto veio a propósito de sustentar a necessidade de haver mais de um modelo de apoio à criança deficiente. É a criança que tem de estar no centro das considerações e ter as facilidades ou serviços, como meio para a servir. A nossa pergunta deve ser sempre: o que será melhor para a criança, tomando em conta a sua realidade? o teor desta exposição, até aqui desenvolvido, poderá levar o leitor ou o ouvinte a induzir uma oposição ao sistema de integração escolar. Não. Somos preponderantemente pela integração. Mas quisemos salientar aqui as suas dificuldades, a fim de ter em conta a supressão destas, para que o insucesso escolar do deficiente, causado não pela falta de sua inteligência, mas por causa de um inadequado meio ambiente educativo, não venha a reforçar a tradicional imagem do "coitadinho" do deficiente, inútil e peso para a sociedade. Actualmente, no país, pratica-se cada vez mais a integração dos deficientes fisicamente integráveis. Vão-se constituindo equipas especializadas, que depois se espalham pelo país fora, formando núcleos de apoio a várias escolas de uma determinada região. Também presentemente existe um único estabelecimento de formação de professores especializados em Ensino Especial, o «Instituto António Aurélio da Costa Ferreira». Este Instituto está sob a alçada do Ministério da Educação. Os cursos aqui realizados têm a duração de três anos, o que de imediato desperta a atenção para o tácito reconhecimento de que lidar com deficientes e treiná-los é obra de difícil empreendimento. Mas, quando na prática se observa que, grande parte destes especialistas, no serviço integrado dá uma, duas ou poucas mais horas por semana a cada aluno e que o seu apoio regra geral se limita à transcrição de textos para Braille, no caso dos cegos, pergunta-se qual a razão de ser tanta, a especialização? As carências do país são imensas e os professores não conseguem "esticar" muito. Não existe neste caso nem incompetência, por parte dos professores especializados, nem falta de empenho, por parte da Direcção Geral do Ensino Básico, mas o que parece haver, sim, é uma discrepância entre o que é preciso , o que se realiza e o investimento que se faz durante três anos na preparação de cerca de seis dezenas de professores. Vendo a lentidão com que as "fornadas" de professores especializados saem, a Divisão do Ensino Básico, para acudir às necessidades, tem procurado organizar cursos acelerados, de três meses, destinados a professores regulares, para poder de algum modo fazer face às solicitações. Há quem reprove essas acções de formação, mas, se considerarmos o tipo de apoio que, em última análise, os deficientes recebem e que há tantos outros à espera de o receberem, não sabemos se não é mais sensato assim, nesta fase de espera e transição. Convém, a propósito, não esquecer que se trata de professores credenciados, não especializados; por outro lado, também se espera que o professor regular do aluno deficiente integrado tenha a capacidade de o ter e de o instruir, mesmo sem as mínimas luzes de especialização. Viver numa casa convenientemente mobilada e com saneamento apropriado é o ideal; mas não será preferível uma barraca, quando a escolha só pode ser ou beco ou barraca, enquanto se procura construir a casa? Deixemos esta pergunta no ar. Quanto a nós, o ideal será trabalhar no sentido de dotar cada escola com pelo menos um especialista que, embora assumindo as suas funções de ensino regular, esteja apto a tomar conta de um deficiente que porventura surja. Pergunta-se agora, chegados a este ponto da dissertação: para quê investir tanto na preparação destas crianças? Não será para que elas possam viver uma vida adulta melhor, assumindo o seu papel de cidadãos emancipados? Mas se se ficar por aqui, que sorte as espera na realidade, depois da escolaridade e depois de um tão grande envolvimento humano e material? Quem sabe responder-nos a estas perguntas? Lisboa, .. de ... 198. Integração do Deficiente Visual na Escola Ilustríssimos Senhoras e Senhores Convidados. Meus Amigos Começo por agradecer a vossa presença e pedir-vos desculpa por qualquer eventual situação menos clara, que seja abordada. E pedir-vos-ia, também, e antes do mais, licença para fazer uma saudação muito especial aos elementos da A. P. E. C.; não apenas aos elementos directivos desta Associação, mas também a todos quantos nela trabalham e que permitem que esta obra se mantenha em pé de forma forte, apesar das vicissitudes que tem atravessado. Orgulho-me do convite que me foi feito para poder apresentar um tema integrado num ciclo de conferências, que faz parte do programa comemorativo do centenário desta Associação. Seja-me permitido um lamento: é que os cabelos brancos que esta Associação mostra não tenham sido respeitados, e continuem a ser desrespeitados, depois do esbulho a que ela foi sujeita em 1975, num acto de um então Sr. Primeiro Ministro que, qualquer indivíduo cego -eu, por exemplo- só pode entender como um acto de quase, talvez, demência. Lamentavelmente, continua a A. P. E. C. esbulhada do seu património; lamentavelmente, também, as nossas autoridades mantêm-se, esperemos que por pouco tempo, cegas e surdas às diligências até agora feitas. Enfim, seria uma prenda bonita de aniversário, seria uma prenda bonita de um centenário se, de facto, a A. P. E. C. pudesse retomar em pleno as suas propriedades e não só a sua força, para que o trabalho que desenvolveu em cerca de cem anos (cem anos mais um, o da Escola António Feliciano de Castilho) possa continuar, senão por outros cem, pelo menos por duzentos. O tema que eu irei abordar começa por fazer uma referência breve aos aspectos gerais da Escola; Escola, enquanto instituição. Penso que não darei novidade a quem quer que seja, se afirmar que a Escola, neste momento e para não fugir ao contexto nacional, vive uma situação crítica. Porquê essa situação crítica? Os espaços destinados à escola, enquanto edifício, enquanto conjunto de alunos orientados por professores, apoiados por administrativos e auxiliares, os espaços destinados às escolas são curtos, porque houve, e muito bem, uma massificação do ensino. Essa massificação não foi, não pôde ser, provavelmente, acompanhada do aparecimento das estruturas necessárias para responder ao elevado número de alunos que, de um determinado momento para o outro, foram lançados nas escolas. Frequentemente, vêem-se os corredores apinhados, os pátios, quase inexistentes, também apinhados, sendo que a população escolar -toda a juventude- tem de procurar ocupar os seus tempos livres fora dos estabelecimentos, o que não é positivo, de facto. Por outro lado, a falta de espaço atinge também o trabalho do professor porque, se é verdade que ele poderia desenvolver determinado tipo de tarefas -para além das suas 22 horas lectivas normais- dentro do seu espaço-escola, necessariamente não tem onde trabalhar. Assim sendo, refugia-se em sua casa, ou em qualquer local, onde as condições sejam muito mais propícias. Obviamente, esta falta de espaço, esta existência de muita gente, em termos de alunos nas escolas -que quase permite perguntar se sobra gente, ou falta espaço- vai reflectir-se, vai ser um dos aspectos que condiciona, que determina, a qualidade da docência. A qualidade da docência, dizia há poucos dias o Sr. Ministro da Educação, não apresenta neste momento um dos índices mais elevados. E referia como uma das justificações, que é correcta -e nós sentimos que é correcta-, também, a massificação na docência, isto é: o aumento de alunos impôs o aumento de professores. Situações como as que se viveram após 1974, que levaram ao desaparecimento de muitas empresas, o que lançou muitos quadros técnicos superiores no desemprego, fizeram com que eles procurassem o ensino, não por vocação, mas por recurso; donde, tenho as minhas dúvidas que a maior parte deles funcione como Professores; funcionarão, talvez, apenas como agentes de ensino, cumprindo os seus calendários, assinando o livro do ponto e no fim de cada mês, a folha de vencimentos. Infelizmente, e porque não podemos nem devemos escamotear a realidade, esta é uma das situações. Por outro lado, as condições em que os professores trabalham, muitas vezes também não são as ideais; eu penso que, humanamente, ninguém terá condições mínimas para prestar um trabalho profícuo, se estiver a 300 ou 400 quilómetros de sua casa, instalado sabe-se lá como, trabalhando em más condições psicológicas, pensando que tem filhos menores -em sua casa, aos tais 300 ou 400 quilómetros- e nunca sabendo, no ano seguinte, qual será o seu destino. Estas são algumas das condicionantes para que a qualidade do nosso ensino não possa ser das melhores. E, se tudo isto é válido para a situação geral, com muito maior acuidade se põe o problema para os alunos deficientes, que acabam por ser integrados no Ensino regular. Quase me apetece dizer que a integração de deficientes na Escola resultou, não tanto de uma consciencialização para o problema, mas mais até de uma moda que surgiu a partir de certa altura. E um pouco a ideia de "integração para a frente e em força" faz-me levantar a seguinte questão: integração sim, ou não? As minhas palavras anteriores podem fazer crer que sou frontalmente contra a integração. Não sou! Sou abertamente a favor da integração, embora entenda que a palavra integração é errada, porque, enquanto deficiente, não posso, nem devo ser integrado numa sociedade à qual já pertenço -pois, antes de ser um deficiente, sou um ser humano; logo, a palavra integração está profundamente errada, mas...Já que ela se usa, passemos a usá-la, se bem que com algumas reticências-. Sou, na verdade, pela integração. Como? É o que já é mais discutível. Nós sabemos que a criança, por condição, transporta em si o espírito de competição; a criança, por condição, é insegura e precisa de se apoiar, precisa de não se sentir desamparada. A criança deficiente visual, ao ser lançada numa escola na idade da entrada para o Ensino Primário, poderá não vir a ser beneficiada, mas penalizada por esta integração. E porquê? É verdade que a integração numa idade muito tenra é positiva para ela, tendo em conta que, muitas vezes, os próprios pais não se encontram preparados para ter no seio da família alguém que traga uma marca, ou alguém que a adquira. Portanto, a criança corre o risco de ser marginalizada, de ser escondida da sociedade em que deveria integrar-se naturalmente; a própria família a rejeita. Por conseguinte, neste caso, a integração poderia ser positiva. Mas, quando a criança entra na escola primária, com cinco anos de idade, seis anos de idade, sete anos de idade: - sendo que o seu espírito de competição vem, mais do que nunca, em condições de trabalhar; - sendo que a criança é solicitada, a cada passo, para ver aquilo que o professor tem para mostrar; - sendo que a criança é solicitada para fazer desenhos, sem que o deficiente visual tenha as condições mínimas para tal; - sendo que a criança é solicitada no recreio para as correrias de toda a meninada com seis, sete anos; - quando, enfim, a criança deficiente visual se sente incapaz, se sente impotente para resolver todos estes aspectos, a dúvida que me fica é esta: será, de facto, vantajoso integrar a criança assim? Pode dizer-se que há apoios. É verdade, há apoios. O nosso Ministério tem actualmente uma Divisão do Ensino Especial e o apoio foi dado, no ano passado, a mais de mil alunos deficientes visuais dos diferentes níveis de ensino -excepção feita aos estudantes do Ensino Superior. Esses mais de mil alunos espalham-se por todos os pontos do país. Eram cerca de 85 as equipas de apoio; felizmente neste momento rondam já a centena e a questão que se me coloca é esta: será que humanamente é possível aos professores destacados para o apoio a essas crianças, a esses jovens, cumprirem cabalmente a sua missão? Será que uma criança da Escola Primária se sentirá apoiada só porque uma vez por semana, durante meia ou uma hora, tem a seu lado um professor que muitas vezes nem especializado é, mas que, por boa vontade, se presta a desempenhar um trabalho violentíssimo? Será que o próprio professor, ao fim de um ano, durante o qual percorreu centenas, talvez milhares de quilómetros, para que o seu trabalho acabasse por aparecer improfícuo, será que esse professor não se sentirá profundamente frustrado nos seus intentos? Em resumo: nos moldes em que se processam, os apoios responderão de forma cabal às necessidades que a integração apresenta? Será que não é um risco integrar uma criança na Escola, de forma incorrecta por falta de apoios? Não será, permita-se a expressão, lançá-la às feras, qual cristão no circo em Roma? Temos, portanto, uma série de interrogações que surgem. falámos nos apoios, falámos nos riscos e surge-nos agora uma outra questão: e os professores que, de repente, se deparam com um aluno deficiente numa das suas turmas? Como reagem? Será que nós temos os professores -não digo preparados- ao menos consciencializados para o problema do dia a dia com que se deparam a cada esquina, que é a existência de cegos e de outros deficientes visuais na sua sociedade? Parece que uma grande parte dos professores ainda não entendeu que os cegos e os amblíopes têm o seu lugarzinho na escola. E é vê-los, nas escolas primárias, quase a morrerem de susto; é vê-los, nas escolas preparatórias, a ficarem "assarapantados"; é vê-los, nas escolas secundárias, quase a tremerem sem saberem o que fazer, quando aparece um cego; é topá-los, nas universidades, onde, por razões mais que sobejas, não deveriam espantar-se com muita coisa, a ficarem -permita-se-me também aqui a expressão- quase em histeria, quando lhes aparece um cego pela frente! Há um apelo que eu gostaria de deixar aos Senhores Professores que, por ventura, venham a ouvir ou a ler estas minhas palavras: não tenham medo dos cegos, que eles não mordem e as bengalas não são para bater em ninguém; são apenas para os orientar. Tratem o cego, o deficiente visual, como pessoa que é; falem com ele; não pensem que ele é cego e portanto não ouve; isso é com os surdos. O cego saberá dar as respostas, saberá dar as orientações necessárias, saberá ajudar. É triste chegar ao fim de um curso -permitam-me pessoalizar- e ouvir-se um professor, por acaso equiparado a Catedrático, quando vai avaliar, perante a apresentação de um trabalho, um aluno que faz a vigésima terceira cadeira de um Curso -esse aluno, por acaso, fui eu- é triste, dizia eu, que o professor se vire para o aluno e lhe pergunte: "É capaz de apresentar o seu trabalho?" (cic). Vim a ser penalizado na nota, porque não me contive e acabei por ironizar, tentei e consegui, desculpem-me a palavra, "gozar" com esse senhor e com a sua ignorância. Mas provei-lhe que os cegos só não vêm com os olhos, porque quando querem, até conseguem atingir os seus desideratos. É um apelo que deixo aos Senhores Professores para que, de facto, não venham a atingir esse ponto. E, já que falámos em professores! Qual o papel do professor deficiente na Escola? Como estar o cego na Escola? Em que condições deve ocorrer o acesso à docência? O acesso à docência deveria processar-se ou por vocação ou por "recurso". O ideal seria que o acesso à docência acontecesse por vocação. O acesso por "recurso" é sempre contingente. Mas pergunto: se, talvez, não direi, cerca de 50% dos professores acorrem ao ensino por "recurso", porque, quando se entra numa Faculdade e se tira, por exemplo, um curso de arquitectura, de engenharia ou de direito e o mercado começa a estar super-saturado, a saída é sem dúvida o ensino; se, aos deficientes visuais, não são facultados outros ramos de actividade, para além do habitual serviço de telefonista, músico de esquina e pedinte, se não lhe são facultados praticamente mais nenhuns empregos, para além da docência, por que não o deficiente visual recorrer ao ensino, como "recurso"? No fundo, será mais um professor. Entenda-se que não estou a fazer a apologia do ingresso no ensino como "recurso"; estou a defender um direito, um direito que qualquer indivíduo deficiente tem, em condições de igualdade, de ascender aos meios que lhe permitam subsistir como pessoa digna, que é, que tem de ser. Resumindo esta ideia: por vocação, é o ideal; por "recurso", só em último caso. Embora correndo o risco de sair um pouco do tema, direi que é óbvio que as outras entidades, que não apenas o Ministério da Educação, têm a sua quota parte de responsabilidade neste "recurso". Portanto, Senhores Governantes, senhores responsáveis, abram as portas aos deficientes visuais, tratem-nos em pé de igualdade com os outros e exijam-lhes o mesmo que aos outros. E, já que se fazem referências aos ministérios, não posso, nem quero, deixar de mencionar a acção do Ministério da Educação. E a acção deste Ministério é perfeitamente contraditória. Eu explico: o então Secretário de Estado, Sr. Professor Doutor João de Deus Pinheiro -1983- teve, quase se diria, a coragem, teve a prática que lhe competia enquanto membro do governo, e levou a cabo um acto correcto e recebeu três deficientes visuais, concretamente os Drs. Assis Milton, Pedro Ribeiro e Henrique Portugal. O que pretendiam eles do Sr. Secretário de Estado? Que o seu estatuto de deficientes, ou melhor, que a sua condição de deficiência fosse tida em conta. Não se lhe ia pedir nada de excepcional: ia-se apenas lembrar- lhe que, se muitas senhoras podem requerer a colocação na área de residência, invocando a "lei do cônjuge", se alguns cavalheiros a podem também invocar para ficarem colocados na sua própria cidade, por que não serem os deficientes visuais igualmente um pouco contemplados com essa situação? E não só os deficientes visuais; por arrastamento, outros deficientes, especialmente os que carecem de apoio efectivo e que já têm o seu habitat. Não éramos assim tantos como isso, não iríamos prejudicar nem mais nem menos que as pessoas que recorrem à "lei do cônjuge". O Sr. Professor João de Deus Pinheiro, atento, pegou no problema com as mãos ambas e em 1983 foi publicado o Decreto Lei 235-C/83. Curiosamente o parecer de um organismo responsável pelos problemas dos deficientes -concretamente o S. N. R.- definia como deficientes apenas os insuficientes renais e os deficientes motores. Não posso, nem quero, deixar de agradecer a distinção que faz com que eu seja considerado, de facto, acima dos deficientes; na verdade, nós, os cegos, somos mais que deficientes: somos auto-suficientes. Saiu essa legislação. Mas em 1986 fomos surpreendidos por e com um despacho ministerial, o famigerado 84/MEC/86 - despacho ministerial esse que, regulamentando o Decreto-Lei que se referia ao acesso de professores à efectividade de serviço, dizia textualmente, preto no branco, que eram condições impeditivas a essa efectividade: "ser cego"; segunda condição: "ser deficiente visual com menos de um décimo de visão" (o que também quer dizer que se é cego); depois, por aí fora. Mais uma vez, pela negativa, nós viemos em primeiro lugar, sendo merecedores da "camisola amarela". Os professores deficientes visuais reuniram-se, lutaram pelos seus direitos e esse despacho veio a ser retirado um pouco antes de ser publicado. Tinha resultado de um quase "assinar de cruz" pelo Sr. Ministro -o Sr. Professor João de Deus Pinheiro- que teve a coragem de o reconhecer no Parlamento. Não descansámos. Óbvio que não descansámos, mas ficámos convencidos que um erro seria o suficiente para evitar que outro pudesse acontecer. No entanto, há quatro ou cinco meses, surge o projecto do Estatuto da Carreira Docente do Professor Não Universitário. E diz lá, no Capítulo IV, onde se fala na Selecção e Recrutamento de Professores, uma coisa tão interessante como esta: Os professores devem exercer a docência sendo para isso necessário condições específicas. E as condições de ordem física, específicas que aí aparecem, vêm resumidas em três aspectos: não serem portadores de quaisquer lesões, repito, quaisquer lesões do foro oftalmológico (novamente à cabeça); quaisquer lesões do foro otorrinolaringológico; quaisquer lesões do foro reumatismal. Não vou referir as lesões de ordem psíquica. Estas chegam! Vêm salvaguardar talvez a realidade do legislador, mas o facto é que não estamos tranquilos. E a questão é esta: se o próprio Ministério que permite a existência de um Decreto-lei -o 235-C/83- já por duas vezes diz que nós, por sermos cegos, não podemos leccionar, porquê admirarmo-nos, quando nos dirigimos a colégios -estabelecimentos de ensino particulares- e nos fecham a porta na cara, porque somos cegos? E isso aconteceu muito recentemente. Portanto, as condições de acesso, por enquanto ainda não estão "condicionadas" pelo Ministério da Educação. O apelo que aqui fica, o voto que aqui fica, é que o acesso à docência seja apenas com base na vocação, ou no "recurso", mas que não seja limitado por impedimentos de ordem física. É importante que se tenha atenção no que respeita ao acesso à docência e eu entendo que o Ministério da Educação, nesse aspecto, deve estar atento, porque a imagem do professor na Escola é importante. O Ministério tem condições para limpar essa imagem sempre que ela se mostre menos clara: tem os estágios pedagógicos, tem as avaliações, tem as inspecções. E nesse caso sim, que o professor deficiente visual seja posto em pé de igualdade; que dê uma imagem correcta dos deficientes visuais; que não seja um elemento que está na Escola, porque "coitadinho, é ceguinho" e é "chato" estar a pedir esmola, tendo um curso superior. Rejeito liminarmente esta posição. O deficiente visual na Escola tem a obrigação de dar uma imagem de dignidade, como professor, de dignidade, como deficiente, e fundamentalmente, de dignidade, como pessoa. Para isso, o seu comportamento deve pautar-se pelo cumprimento estrito das suas obrigações; deve pautar-se - permita--se-me a expressão- por um não "andar à balda", o que nada tem a ver com o vestuário, mas sim com um desleixar tudo, com a esperança que esse tudo lhe seja perdoado. Não! Isso não dignifica, não dá boa imagem. Essa imagem deve ser resultante de contactos que o professor deficiente tem, não apenas com os seus colegas, mas, em meu entender, fundamentalmente com os alunos. e porquê? É verdade que o contacto com os professores é importante. É verdade que a imagem de um deficiente visual, junto a um colega seu, docente, é importante. Mas não percamos de vista o aspecto fundamental que é o facto de os alunos, geralmente, serem de uma geração que será, daqui a alguns anos, a geração dos adultos. E, já que a mentalidade dos adultos é difícil de mudar, ao menos que trabalhemos no sentido de que a imagem que nós temos junto das crianças seja límpida, porque, quando se diz que o professor deficiente vai ser uma agressão para um aluno, vai pôr em risco a integridade psicológica de um aluno, eu só lamento que, em 1988, haja espíritos que façam uma afirmação dessas. Lamento por razões simples: e se a criança sair da escola, onde não pode ter um professor deficiente visual, e topar na primeira esquina com um "ceguinho na pedincha" não será muito mais agreste, muito mais traumatizante -como agora se diz-? Porquê não mostrar à criança que o cego, o amblíope pode ganhar a sua vida, como qualquer outro ser humano, que afinal é? Porquê não mostrar à criança que o indivíduo cego até é capaz de andar à vontade dentro de uma sala? Que um indivíduo cego até é capaz de escrever num quadro? Que um indivíduo cego até é capaz de conseguir analisar um mapa e fazer analisar um texto? Lembro-me que, quando recorri por obrigação a um Delegado de Saúde para me ser passado um atestado de robustez física, me perguntou o senhor Dr. (médico): "Como é que escreve no quadro?". "Da mesma maneira que os outros: com giz e um apagador para apagar, quando errar.". A resposta saiu expontânea e foi talvez uma manifestação inconsciente de uma certa revolta, porque ao meu merceeiro eu aceito uma pergunta dessas, ao homem do talho, que me fornece, também; mas a um médico... Lamento muito, mas não aceito. Esta imagem que os médicos têm de nós, que os catedráticos e outros docentes têm de nós, que os pais dos alunos têm de nós, tem de ser alterada e tem de ser alterada através dos contactos com os alunos: brincalhão, simples, humano, para que eles possam chegar a casa e dizer, como normalmente fazem: -- Ó pai! Sabes? Tenho um "Setor" que é cego e é "porreiro". -- Ou -- "Ó pai! Eu tenho lá um "Setor" que é cego e até escreve no quadro!". Pode ser que a mensagem levada por uma criança permita aos pais começarem a olhar para o deficiente visual como aquilo que ele, de facto, é. Não vou alongar-me mais. Concluirei, dizendo que a "Integração do Deficiente Visual na Escola" não é, nem de perto nem de longe, um tema muito fácil; é muito polémico. Não é uma tarefa fácil. A integração do deficiente visual na Escola é, depois da integração na família, o passo mais importante para a dignificação do cego, ou do amblíope, como pessoa humana. Não chega que a Constituição diga que nós, como os outros, somos cidadãos de pleno direito. É importante que nós nos sintamos como tal, que a sociedade que nos rodeia nos sinta como tal. Talvez não seja por acaso que o terceiro grande tema deste ciclo de conferências tenha sido "A Integração do Deficiente Visual na Escola". Conferência promovida pela Associação Promotora do Ensino de Cegos Lisboa, 26 de Outubro de 1988 Breves referências à situação dos Deficientes Visuais no Ensino Superior Dificuldades - Proposta de soluções - Parte I O ensino em Portugal, no geral, e o dos deficientes, em particular, processa-se com lacunas graves que implicam resultados pouco satisfatórios. No caso do "ensino integrado", para Deficientes Visuais, o ponto da situação é o seguinte: 1 - Nas Direcções Gerais dos Ensinos Básico e Secundário existem Divisões de Ensino Especial que têm como função, programar e executar uma política nacional de apoio aos estudantes do Ensino Secundário (entenda-se do 1º ano do Ciclo até ao 12º ano de escolaridade), cujo número ascende a 166 Cegos e 266 Amblíopes (de acordo com os dados referentes ao primeiro período do ano lectivo de 1986-1987, em amostragem incompleta). 1-1 - Esse apoio seria dado através de equipas especializadas, desconhecendo-se o número para o Básico (neste momento) e 21 para o Secundário, embora algumas das equipas ainda não estejam em acção. 1-2 - O material dídáctico seria obtido no Centro de Recursos adestrito ao M. E. C., apetrechado com equipamento fornecido pela Suécia, a partir da celebração de um acordo oficial estabelecido entre Portugal e esse país. 1-3 - A Imprensa Braille, no Centro Prof. Albuquerque e Castro, poderá fornecer livros, especialmente os já existentes, isto é, não imprime por encomenda e com carácter de urgência. 2 - Para os estudantes do Ensino Superior, apesar do que já se encontra legislado, nada há de concretizado, a nível oficial. Para além destes aspectos, os estudantes dos vários níveis de ensino contam com: A- Área de Deficientes Visuais da Biblioteca Nacional; B- Biblioteca Sonora da Biblioteca Pública Municipal do Porto; C- Centro de Produção de Material (em Lisboa), dependente do C. R. S. S. e um Centro similar em Coimbra; D- Biblioteca Municipal de Camões. No que respeita ao Centro de Recursos, apesar de instalado há alguns anos, por razões diversas não tem podido dar uma resposta cabal, mas ia satisfazendo. Contudo, no presente ano lectivo, este organismo foi dividido em duas entidades: uma fica ligada ao Instituto de Tecnologia Educativa (I. T. E.) e a outra ao Instituto de Inovação Educativa (I. I. E.). Por força desta divisão, o apoio dado pelo Centro está quase suspenso e as equipas de apoio debatem- -se com bastantes problemas. O Centro Prof. Albuquerque e Castro (Imprensa Braille) começou a debitar o preço das obras que envia para os estudantes, a exemplo do que acontecia já com os restantes leitores. Aliás, o envio gratuito destinava-se apenas a alguns desses estudantes, os que eram apoiados pelo M. E. C. e aos leitores que invocassem a sua pouca capacidade financeira para os adquirirem. O Centro de Produção de Material (C. P. M.), dada a existência do Centro de Recursos, no M. E. C. reduziu muito a sua actividade de apoio a estudantes do Ensino Secundário oficial e tem vindo, dentro de alguns condicionalismos, a colaborar com os estudantes do Ensino Superior, embora a resposta às solicitações fique muito aquém das necessidades. As Bibliotecas Nacional e a Municipal Camões têm os seus livros à disposição dos estudantes dos vários níveis, de acordo com as suas normas de actuação, que apontam para prazos de devolução das obras pedidas. No campo das obras gravadas a Biblioteca Nacional e a Sonora do Porto, em especial esta última, tentam corresponder o melhor possível às necessidades mas as suas estruturas mostram-se já insuficientes para as respostas, tendo em conta que os estudantes universitários são neste momento em elevado número e considerando ainda que esses serviços têm uma outra gama de leitores que, como os estudantes, têm o direito de ser atendidos. A Biblioteca Municipal Camões, inexplicavelmente mantem inoperante uma razoável quantidade de material de som que se destinava a montar estúdios de gravação, esses sim, vocacionados para o apoio específico a estudantes do Ensino Superior. O C. P. M. possui também um sector de gravações que neste momento responde, dentro do possível, a algumas das solicitações de universitários, mas, sendo um organismo ligado ao C. R. S. S., vê-se na contingência de atender outros utentes. Perante o que atrás se deixa dito, os estudantes da Universidade Clássica, Faculdades de Letras e de Direito, especialmente os da primeira, relançaram uma ideia e um movimento que surgira em 1976 mas que não conseguiu ir adiante. Assim, após vários contactos oficiais, puderam obter os apoios do Exmo. Sr. Secretário de Estado do Ensino Superior, do Sr. Reitor da U. C., dos Conselhos Directivo e Pedagógico da Faculdade de Letras e o de alguns Professores, de que se destaca a pioneira neste movimento, a par dos seus alunos, a Exma. Sra. Professora Doutora Maria Isabel Rebelo Gonçalves, que entusiasmou outros dos seus colegas. Até ao momento, obtiveram a cedência de uma sala, pelo mesmo Departamento de Clássicas, foi conseguida uma verba de dois milhões de escudos com a qual se adquiriram várias máquinas e outro material, e aguarda-se a colocação de dois professores especializados no apoio a Deficientes Visuais, processo demorado por razões de ordem burocrática e por falta, talvez, de pessoas com tal preparação. Parte II Plano de Apoio a Prestar Pela A. P. E. C. Como é sabido, o Ensino Superior reveste algumas características específicas e delas referir-se-ão apenas, aqui e agora, as que nos interessam: análise de textos, com marcação prévia ou não, sendo com curtos prazos, no primeiro caso, em geral uma semana; testes de avaliação previamente marcados ou, se se trata de pequenos exercícios com carácter pontual, feitos mais ou menos de surpresa; longas bibliografias que por vezes incluem obras volumosas das quais apenas se pretende o estudo de um capítulo ou dois. Tendo em conta estes três aspectos, vejam-se as desvantagens, os inconvenientes para os Deficientes Visuais e as possíveis soluções: a- DESVANTAGENS O curto espaço de tempo que medeia entre a marcação e a discussão de um texto, que em geral não é facultado em Braille ou ampliado (para os amblíopes), leva a que cada um tente transcrevê-lo, o que se torna moroso e requer a colaboração de terceiros, por um maior espaço de tempo, ou a gravá-lo, o que se apresenta menos moroso. Neste caso, ou aguarda pela boa vontade de alguém e a sua disponibilidade, ou paga a relativamente bom preço. Se o texto é facultado mais ou menos de surpresa, terá de esperar que o docente o leia, o que raramente acontece, ou tem de aguardar que um condiscípulo se substitua ao professor, o que também não é fácil, nem moralmente correcto; finalmente, limita- se a fazer figura de corpo presente com os efeitos de toda a ordem que isso acarreta. b) INCONVENIENTES A não obtenção a tempo de tais documentos implicará, no mínimo, a impossibilidade de uma participação activa que, para os Deficientes Visuais, é imprescindível, dado o espírito ainda existente que os "ceguinhos" pouco ou nada participam nos trabalhos, pois se limitam a "andar a reboque" dos outros. É incompreensível, mas é uma realidade palpável. Por outro lado, o esperar por terceiros para ditar ou para gravar acaba por exercer efeitos psicológicos negativos e a sua superação provoca um desgaste aparentemente inofensivo, mas que na prática e com a continuação, acabam por se fazer sentir a médio prazo e de forma violenta. Apesar de se saber que o Ensino Superior é caro, o ter de pagar material acaba, também, por desmoralizar (tanto mais que muitas das vezes se obtem tardiamente e o dispêndio se mostra ineficaz). Veja-se a título de exemplo: há quem pague uma cassete gravada por 250$00; acresça-se o preço dos textos que ascende a 400$00; 4 cassetes totalizam mil escudos (pela gravação); adicionados a cerca de 400$00 para as cassetes (se elas se adquirem por 100$00 cada unidade) e aos 400$00 pagos pelo texto, e ascende-se a 1800$00 em oposição aos apenas 400$00 dispendidos pelos condiscípulos. Um outro texto carece de ser ampliado: se contiver cem folhas, a ampliação custará dez escudos por folha, na Faculdade, totalizando mil escudos. É quanto "custa" a deficiência. Se encomendado ao Porto (Biblioteca Sonora), onde as gravações são facultadas gratuitamente, um livro como a Sociedade Feudal custará ao interessado o preço que ele pagará por vinte e duas cassetes; a História da Literatura Portuguesa custará o preço de trinta e sete cassetes. Das muitas obras exigidas apenas uma pequena e inexpressiva parte se encontra impressa ou reproduzida em "termoforme"; neste último caso, a obtenção mostra-se demorada, salvo quando já existe a matriz, o que não acontece muitas vezes. c) ALGUMAS SOLUÇÕES Obviamente só se referirão as de carácter mais urgente e as que possam ser dadas com certa presteza. A entrada em funcionamento do "Serviço de Apoio a Deficientes" não se verificará com a brevidade desejada, pelo que se sugere: 1 - A organização de uma biblioteca sonora, onde se incluirão obras de carácter geral, em duas cópias: uma para matriz e outra para consulta imediata. As obras a adquirir imediatamente após reunidas as condições para as arquivar, seriam as constantes de uma lista a fornecer pelos vários cursos de estudantes deficientes e obter-se-iam nas bibliotecas Nacional e Sonora, de forma gradual, ou por gravação original da A. P. E. C.. 2 - Apetrechamento de um pequeno estúdio com dois sectores: um destinado a executar fonocópias de obras solicitadas, integral ou parcialmente; outro, com uma pequena cabine isolada, destinada a proceder a gravações de curtos textos originais (isto é, que ainda não se encontrem gravados) e que revestissem carácter de urgência. 3 - Criação de um sector de transcrição de pequenos textos originais, com carácter de urgência e preferentemente de línguas estrangeiras. 4 - A exemplo do que a Associação fazia antigamente, a organização de uma biblioteca escrita e sonora, onde se encontrassem as obras da Literatura Portuguesa e uma ou outra estrangeira que fosse sendo lançada no mercado. 5 - Instalação de uma fotocopiadora com sistema de ampliação destinada a trabalhos para amblíopes. (Refira-se que este material não se destinaria somente às ampliações, mas também a outros serviços da A. P. E. C.) 6 - Aquisição de material de som (gravadores) destinado a empréstimo aos beneficiários a fim de gravarem aulas. 7 - Aquisição de máquinas de dactilografia Braille e uma de teclado internacional -IBM-, cujos caracteres são em Braille, permitindo a sua utilização por qualquer dactilógrafa. A mais longo prazo, seria importante a criação de uma sala de leitura, onde os amblíopes pudessem consultar obras a tinta, utilizando-se para tal material de tipo "Delta" ou "Visualtec". Lísboa, .. de 198. Os Professores deficientes e a sua colocaçäo No momento presente, ninguém ligado ao ensino desconhece o problema grave que é a colocaçäo dos professores näo efectivos. Em cada ano, após o encerramento das actividades lectívas, logo que se começa a pensar no que a seguir virá, inicia-se um período de ansiosa e desgastante espera que culmina com a colocação do docente. Numa grande parte, as referidas colocações são motivo de desânimo, desespero até, pois as preferencias por escolas poucas vezes resultam. Assacam-se as responsabilidades ao computador, cuja frieza de máquina não tem em linha de conta o que quer que seja e assim, o dezenraizamento do professor repete-se anual e inexoravelment. Esse desenraizar não é compensado de qualquer modo e à situação de ordem psicológica vem juntar-se o problema da duplicaçäo das despesas, que aumentam incessantemente e de modo assustador. Qual a reacção do professor perante esta situaçäo? Começa por haver toda uma revolta, que se pode exteriorizar ou não e que vai levar a um estado de espírito impeditivo de um bom rendimento, traduzido numa boa qualidade de serviços Ao falar-se em insucesso escolar, sistematicamente, esquece-se que o sucesso do aluno passa pelo professor -e de forma considerável-. De facto, como trabalhar concentradamente, se se está a pensar nos filhos, nos pais, nos conjuges e nas contas a pagar em duplicado com um só ordenado? E surgem as críticas ao professor que mete artigos quartos, que usa e abusa dos atestados, que presta pouca atenção aos problemas da sua escola, que não apoia os colegas em estágio etc. etc. etc. O panorama não é brilhante e é geral o descontentamento entre os que trabalham no ensino -entenda-se entre os professores-. O acusarem-se forças político-partidárias de criarem tal descontentamento, para a obtençäo de dividendos políticos, a nosso ver e em parte, é escamotear a realidade dos factos, talvez com base no princípio de que a melhor forma de resolver um problema difícil é dizer que ele é impossível. Estamos conscientes que esta é de facto uma questão de difícil soluçäo, mas estamos crentes que não é insolúvel. Se, como atrás se deixa sumariamente mostrado, a situação do professor não efectivo no geral é complicada, não se pode deixar de pensar no que ela representará para o deficiente. De facto, a juntar a tudo há as limitações que a deficiênecia representa, seja ela a visual, a motora ou a auditiva, por exemplo. O Simples facto de um indivíduo ser deficiente, obriga-O de imediato a todo um conjunto de despesas, que os não portadoras de deficiências não têm: é o transporte que se perde, são as barreiras arquitectónicas a vencer, são os acessos ao local de trabalho que se mostram quase impraticáveis para quem näo se desloca facilmente, ou totalmente para os que apresentem as limitaçöes Já apontadas. Poderá contrapor-se, como o fazem algumas pessoas, que as mulheres grávidas também têm os seus problemas, merecendo tanta atenção como o deficiente. Pensamos que a comparação é pouco realísta, quase diríamos infeliz, pois a gravidez, salvo algumas excepções, não conduz às limitações causadas pela locomoção em cadeira de rodas, ou com canadianas, ou às devidas à cegueira. De facto, a grávida desloca-se com certa facilidade por zonas não asfaltadas, por entre árvores, em locais onde apenas distingue o passeio da rua, por passeios pejados de carros ou de outros obstáculos, sabendo como e onde pode utilizar a estrada, etc.. Por outro lado, qualquer pessoa sente dificuldades com o vento e com a chuva, mas para o deficiente -especialmente os visuais que dependem do ouvido e da bengala, que o vento desgoverna- as dificuldades são imensas e incalculáveis para quem as não sinta em si mesmo. Acontece, por vezes, a colocação em locais para e de onde o professor pode ir e vir diariamente, apesar dos 50 ou 60 quilómetros que separam a residência da escola, casos de Alenquer, Azambuja e Mafra, para Lisboa, Moura e Serpa, para Beja, Guimarães ou Espinho, para o Porto, por exemplo. Nesses casos, melhor ou pior, o professor aproveita essa hora e meia ou as duas horas da viagem para ir lendo, ou até, corrigir fichas de avaliação ou qualquer outro trabalho. E o professor deficiente -especialmente o visual-? Para além dos demais, este é outro aspecto negativo a acrescentar. Na verdade, as viagens são períodos mortos, de total desaproveitamento que, por isso, acabam por levar a um considerável desgaste de ordem psicológica. Tais lapsos de tempo poderiam ser aproveitados pelo professor deficiente para as correcções, que os outros podem fazer no comboio, se ele estivesse mais próximo da sua residência, onde o seu esquema pessoal de apoio poderia funcionar. Na verdade, a "Escola Integrada" apenas tem pensado no aluno deficiente, esquecendo totalmente o professor nessas condições. Assim, para além do trabalho mais que meritório -por dedicado e denodado das responsáveis- levado a cabo pelo Núcleo de Apoio aos Professores Deficientes Visuais (N. A. P. D. V.), da Direcção Geral do Ensino Básico, insuficiente por carências humanas e materiais, nada se faz. Os professores do Ensino Secundário terão de bastar-se a si próprios. Se os Conselhos directivos das escolas não forem compreensivos, "arranjando" alguém que possa ler testes e/ou outros trabalhos, para que o professor deficiente visual corrija, este terá de pagar do seu bolso a quem o faça, o que de imediato representa "salário desigual para trabalho igual", o que é verdadeira e gravemente descriminatório. Verifica-se, pois, o agravamento da situação do professor colocado fora da área da residência, pelo facto de ele ser portador de uma limitação. A tudo o que acima se deixa salientado, acrescente-se um outro aspecto relevante: os professores deficientes visuais -os que maiores dificuldades enfrentam- são ainda em escasso número, não atingindo uma centena. Por tudo o que se apresenta, sugere-se e solicita-se: 1 - Que a colocação de professores deficientes se concretize fora do processo do computador. 2 - Que a colocação de professores deficientes tenha em conta -plenamente- as preferências indicadas no boletim de inscrição e admissão a concurso. 3 - Que em todas as escolas seja destacado um professor para apoio ao colega deficiente, quer haja docentes com redução de horário ao abrigo do Art. 20, quer se reduza o horário a um qualquer professor. 4 - Que se opte pela segunda alternativa do ponto anterior, pois se alguém pede uma redução do seu horário, é porque as actividades lectivas a tempo inteiro são incompatíveis com o seu estado de saúde. A aceitação destas sugestões e a sua efectivação não pretendem dar ao deficiente uma situação de privilégio, mmas apenas permitir que ele se integre, de facto, na sociedade, sem violências, sem sobressaltos, num direito que lhe assiste, enquanto ser humano. Conferência promovida pelo Grupo de Estudo de Reabilitação e Integração Social do I. P. S. D. Lisboa, 12 de Novembro de 1982 O Professor Deficiente Visual no Sistema Educativo Que problemas, que soluções? Se é verdade que, em muitos aspectos, Portugal ocupa um dos últimos lugares na Europa, também é verdade que os deficientes portugueses, em geral, e os visuais, em particular, marcam pontos por esse mundo além. A que se deverá tal fenómeno? Por certo o nível intelectual, por cá, não será superior ao de outras gentes, noutros lugares; porém, se algures a "lei D" (a lei do «desenrasca» que se aprende na tropa) é bem aplicada, não tenhamos dúvidas que é em Portugal. Temos pois a razão básica para que os deficientes vísuais se lancem na aventura, que é a penetração no mercado normal de trabalho. De facto, numa parte considerável de países, dos chamados ricos, as verbas concedidas aos deficientes, através de esquemas de segurança social, são o suficiente para que eles se lancem num "dolce fare niente" que, obviamente, condiciona a sua forma de estar na vida e na sociedade desses países. Ninguém questiona o aforismo "a necessidade aguça o engenho". As necessidades e outras dificuldades, com que os deficientes visuais se confrontam, começam logo à entrada na escola, prolongando-se até às faculdades onde, apesar de muitas queixas que se ouvem, as coisas estão muito facilitadas; contudo, estaremos sempre em pé de desigualdade pois, queiramos ou não aceitar a realidade, somos diferentes dos outros e por isso nos confrontamos com duas análises simplistas a nosso respeito: ou somos «coisas» ou, se alguém antes deu boas provas, somos os «maiores». Ora, no meio é que está a virtude. Este quadro prolonga-se e voltamos a situar-nos nele, quando entramos numa sala de aula para leccionar. Toda a escola faz essa mesma análise, desde o Conselho Directivo aos auxiliares, passando pelos alunos. Este primeiro problema é, sem dúvida, o mais fácil de solucionar. Simplesmente temos deve demonstrar que não somos nem melhores nem piores: somos diferentes. Tal demonstração, de imediato, cria a alguns um outro problema: ou não se convencem da sua condição de deficientes ou, pelo contrário, exploram-na de forma que atinge as raias da indignidade. Assim sendo, como criar a imagem correcta? A esses podemos sugerir uma reflexão profunda, tendente à total consciencialização da sua condição de deficiente e de professor. Se tal não for conseguido, então, todos passaremos a ser «coisas» e aqueles que, dentro do Ministério, já tentaram escorraçar-nos terão encontrado o argumento ideal. Outra questão é aquela que se prende com a actuação de qualquer docente dentro da sala de aula. Se alguém afirmar que jamais teve algum problema com as suas turmas, permito-me considerar que não fala verdade. Indisciplina sempre houve, há e haverá. Hoje, com o medo que se tem de muitas palavras, já não se chama indisciplina: chama-se juventude, irreverência, inadaptação e outras designações similares. Se é verdade que este é um problema com que todos os professores se confrontam, não o é menos, no que a nós diz respeito. A indisciplina acontece nas nossas aulas, porque somos invisuais, dizem-nos aberta ou camufladamente. Que fazer? Aqueles que tenham a audição em perfeitas condições poderão minimizar algumas das situações, admoestando, reprimindo e demonstrando de forma subtil que percepcionaram o acto e os seus autores. Dois exemplos poderão ilustrar o que se disse: --Uma professora comentava comigo a sua "admiração" pelo nosso trabalho e questionando-me acerca do modo como decorriam as aulas. E, como quem não quer a coisa, lá foi dizendo que lhe constara que os meus alunos apagavam as luzes da sala. Limitei- me a responder que conhecia a situação, pois havia sempre quem nos transmitisse esses acontecimentos; além disso, os brincalhões pertenciam ao grupo dos que, a partir de meados do segundo período, iam desaparecendo. Terminei acrescentando, em jeito de brincadeira, que a luz apagada nos igualava a todos, dentro da sala e como eles não estavam habituados à escuridão, rapidamente as luzes eram reacendidas. A experiência, em regra, não voltava a verificar-se. O segundo caso foi há apenas dois anos. Tratava-se de uma turma do 2º Ano do Curso Geral Nocturno em que havia quatro rapazotes de 15 ou 16 anos, barulhentos, conversadores e indisciplinados, não respeitando os que, depois de um dia de trabalho, queriam aproveitar ao máximo o tempo das aulas. Estes mostravam desagrado e eu limitava-me a fazer o meu trabalho. Cerca de mês e meio após o início do meu trabalho, a meio de uma aula que começara com barulho, como sempre, fiz nova chamada depois de ter mandado fechar a porta da sala. Até ao fim do período a presença desse quarteto foi-se tornando mais rara, extinguindo-se no segundo período. No fim do ano, após a turma ter aumentado o seu rendimento, o "pai" da turma, com 44 anos, questionou-me acerca desse aspecto. Respondi que, embora quase surdo, ainda percebia que a porta se abria e se mantinha aberta e pedi que fizessem a experiência, chamando a atenção para a diferença dos sons; além disso, se as aulas começavam sempre com muito barulho e, em pouco tempo, depois da chamada se tornavam silenciosas, não partia do princípio que os alunos tinham emudecido de repente e muito menos se tinham tornado educados e respeitadores. Assim, só podiam ter saído da sala, como se tinha comprovado no dia em que eu, de surpresa, repetira a chamada.-- A audição ajuda, sem dúvida, a ultrapassar algumas questões, mas, em cada momento, é preciso encontrar a solução adequada à situação que surge. A política de educação, que está a ser implementada traz mais algumas dificuldades. Para reduzir o número de docentes -creio que por isso, mais que por outras razões- limitou-se o número de disciplinas a leccionar e aumentou-se o número de alunos em cada turma. A saída de docentes, ou o seu não ingresso no sistema, é uma ameaça que atinge todos e portanto não será fácil que os deficientes visuais lhe escapem. Neste particular, todas as cautelas são poucas, pois os Arts. 22-2, 22-3, 23-1, 23-2, 23-3 do estatuto da carreira docente são, cada vez mais, uma arma apontada a nós, deficientes. Basta ler com atenção e acreditar que, palavras leva-as o vento, com mais facilidade que a uma folha do Diário da República e nós sabemos, por experiência própria, que assim é: lembremos o despacho 84/M. E. C./E6. Como obviar a dificuldade criada com o aumento do número de alunos nas turmas? O recurso a reduções de horário por se ser deficiente, quando já se entrou para a profissão tendo tal característica, parece incorrecto, tanto como invocar a deficiência para não dar testes, passar filmes, analisar mapas e textos, por exemplo. Todavia, a lei faculta a redução de horas aos docentes que leccionem os cursos nocturnos. Esse poderá ser um dos processos de redução, não tanto de tempos lectivos, mas do número de trabalhos de diversos tipos que temos de corrigir e avaliar. Outra hipótese seria a de solicitar aos Conselhos Directivos a inclusão nos nossos horários de tempos destinados a apoios a alunos com dificuldades de aprendizagem causados por qualquer motivo. Não é ilegal, não é um privilégio para nós e é, pensamos, uma forma de nos reduzirem o número de alunos. Esta preocupação com os "muitos alunos" resulta, por sua vez, de um outro problema grave: conseguir uma colaboração à altura da responsabilidade que é corrigir um teste; a qualidade tem, necessariamente, de ser paga e quem não tiver um familiar dedicado, que cobre pouco ou nada, terá de pagar e bem. Assim, a nossa deficiência torna-se um factor redutor do salário pois, em comparação com colegas sem deficiência, ganharei menos uns contos de reis, os que canalizo para pagamentos do apoio que recebo. Às escolas, agora que passarão a ter autonomia administrativa, poderia solicitar-se que, horários incompletos de docentes, fossem preenchidos com horas de apoio ao nosso trabalho, mas sempre de modo a que essas horas não coincidissem com a nossa prestação na escola. O que atrás se deixa dito é, mesmo assim, menos grave que a questão das colocações. Em 1980 começou-se uma luta neste campo. Se havia destacamentos por conveniência de serviço, por que motivo não podíamos ser atingidos pelos destacamentos, se éramos em tão pequeno número (talvez não atingíssemos as oito dezenas) e se com os outros deficientes esse número era, ainda assim, irrisório? Esta pergunta manteve-se até 1983, altura em que a acção do Sr. Professor João de Deus Pinheiro -então Secretário de Estado do Ensino- levou o Sr. Professor Fraústo da Silva - Ministro da Educação- a conseguir a promulgação do D. L. 235/C/83, que contemplava a aspiração de anos. Mas o decreto falava apenas de deficientes de forma muito genérica e por isso qualquer coisa poderia ser invocada para requerer o destacamento, dando lugar a abusos. Esses abusos levaram, por sua vez, à assunção de medidas fáceis por parte do Ministério da Educação. Em lugar de emendar o articulado genérico do 235/C/83, estabelecendo limites mínimos de deficiência, como acontece no caso dos benefícios fiscais, o Ministério da educação, aproveitando a publicação do Estatuto da Carreira Docente, adoptou a solução mais fácil e económica: inscreveu o 235/C/83 na "molhada de Decretos-Lei a revogar". Incluiu o destacamento de deficientes no quadro geral daqueles e com este "rebuçado" calou a boca a possíveis contestatários. E o que se previa, isto é, a supressão dos destacamentos, aconteceu este ano: com a promulgação do Decreto- -Lei 206/93, quem quisesse ser destacado teria o enormíssimo privilégio de, a título extraordinário, concorrer à segunda parte do concurso relativo ao ano lectivo de 1993/1994. Se, na primeira parte do referido concurso, os interessados não obtiveram colocação onde lhes interessava, quer por não haver vagas nos quadros das escolas escolhidas, quer porque o seu número na lista ordenada era muito alto, como pensar que este concurso extraordinário resolveria o problema? E no caso dos que apenas podem participar na segunda parte do concurso? A esses ficaria irremediavelmente interdita qualquer possibilidade de destacamento. Assim seria, mas não foi, pelo menos teoricamente. Na verdade, depois da promulgação do D. L. 206/93, nada faria prever a publicação de um qualquer instrumento legal que se referisse a destacamentos. Porém, esse instrumento legal surgiu em 17 de Agosto na forma de um Despacho Conjunto, o 134/SERE- -SEEBS/93. Contemplava a situação dos deficientes visuais para requerimento de um possível destacamento. Contudo, na prática, ficou-se na mesma. Vejamos: em Agosto são muito poucas as pessoas que não estão em férias, até porque só poderiam ser gozadas entre 18 de Julho e 3 de Setembro e assim, não era (como não foi) fácil detectar a publicação do Despacho; por outro lado, quatro dias passados foi afixada a lista definitiva de colocações respeitantes à segunda parte do concurso e, por esta razão, pergunta-se: se, cerca de seis mil pessoas ficaram por colocar, restariam algumas vagas às quais os interessados se pudessem candidatar? Além disso, tal Despacho não mereceu qualquer reparo por parte da Comunicação Social e, assim sendo, só o acaso permitiu que ele fosse descoberto, mas já no termo do prazo estipulado, o dia 1 de Setembro! Quantos de nós, afinal, pudemos beneficiar com a publicação do citado Despacho? Somos deficientes visuais, é certo, mas, Senhores do Ministério, que do alto da vossa imensa sapiência nos olhais com comiseração, dai-nos, ao menos, o benefício de nos considerarmos gente, Pessoas sem visão sensorial, mas com visão intelectual. Que fazer perante este problema? Medo não devemos ter, cautela sim. E com cautela e firmeza recomeçar todo o caminho até ao relançamento de um qualquer "235/C". É explicar ao Ministério que o nosso destacamento não é um luxo, um privilégio, um prazer, um atropelo a terceiros, mas uma necessidade imperiosa. Nós não podemos "levar os olhos" que nos lêem, não podemos fazer deslocar o material de que precisamos, nós não podemos ser colocados e locais quase inacessíveis, até para quem vê e que, mesmo assim, passa perigos e tormentas que talvez apavorassem Vasco da Gama. É preciso que o Ministério saiba tudo isto. Não pedimos impossíveis: apenas que facilitem a nossa tarefa, pois do resto se encarregará a proverbial capacidade de "desenrascanso" que caracteriza os portugueses. Não há que ter medo, pois lutaremos por uma situação de justiça e se houver represálias, os nossos direitos estão consignados na Constituição e portanto são, teoricamente, inalienáveis. Se não forem respeitados, há tribunais que, teoricamente, são independentes do poder político; e, se mesmo assim, formos atingidos, as instâncias internacionais poderão ser um recurso. Cremos, porém, que o bom senso prevalecerá no Ministério e que este problema possa ser resolvido. Como é claro, não se esgotam em meia dúzia de páginas e em outros tantos minutos o enumerar de todos os problemas com que os deficientes visuais se debatem e igualmente as soluções a apresentar. Esperemos, no entanto, que este punhado de questões, que todos conhecem, possa servir de tema de reflexão, não a nós, mas àqueles que regem o nosso sistema educativo e que não podem, ou não querem, mergulhar neste mar de problemas, mar revolto que, quando bate na rocha, «lixa» os mexilhões, que somos nós, mesmo quando não nos deixam mexer em nada. Conferência apresentada no 1º Encontro Nacional de Professores Deficientes Visuais promovido pela A. C. A. . P. O. Lisboa, 27/28 de Novembro de 1993 Associativismo Tiflológico A velha, mas sempre actual, "Parábola dos sete vimes" mostra, de forma indesmentível, que só a união faz a força. Relembremo-la: Um velho, à hora da morte, pediu a cada um dos seus sete filhos que lhe trouxesse um vime. Feita a vontade ao progenitor, este quis que, um a um, os rapazes partissem o seu vime, o que fizeram com extrema facilidade. Depois, ainda por solicitação do moribundo, sete varas foram reunidas num feixe e seguidamente, um de cada vez, os filhos tentaram quebrar o molho. Esforço vão. Todavia, quando a instâncias do seu velho pai juntaram as forças, o molho pôde ser quebrado. Passemos da parábola à realidade. A fim de adquirirem ou manterem uma posição política e económica forte, vemos a Europa a associar-se em organizações diversas: é a C. E. E., é o Comecom, é a EFTA, é a NATO, é o Pacto de Varsóvia, entre outras. Noutras zonas do Globo são, por exemplo: a O. U. A., no continente africano, a O. E. A., no continente americano, e a própria ONU. Que se pretende com todas essas organizações internacionais? Apenas a força! A força política, a força económica, para defesa de interesses comuns. A nível mais restrito, vejamos o panorama neste cantinho no extremo Sudoeste da velha Europa. Depois de muito tempo de monolitismo político, durante o qual, apesar de tudo, alguns se associavam num partido dominante, vemos hoje uma série de associações de carácter político e ideológico. Essas associações, os partidos políticos, juntam, por vezes, as suas forças de molde a que a sorte os contemple à boca das urnas. E o facto é que, na maioria dos casos, conseguem os seus intentos. Os trabalhadores -e os que trabalham-, por vezes organizaram-se e apareceram associados em sindicatos. Contudo, sentiram a necessidade de revigorar as forças, reunindo-se em duas grandes centrais sindicais. O patronato, de igual forma, entendeu por bem juntar forças, para que a sua influência nos mais diversos campos de acção pudesse ser maior. Na realidade, as intenções em ambos os casos foram bem concretizadas. No desporto o panorama é o mesmo. No caso da defesa do nosso património ambiental também a situação se repete. E os deficientes? Entre os deficientes, igualmente, sentiu-se a necessidade de uma união de esforços. Assim, nos princípios da década de 1970, surgiu a Associação Portuguesa de Deficientes, genericamente conhecida e designada por A. P. D.. Posteriormente, após o fim da guerra colonial, surgiu a Associação dos Deficientes das Forças Armadas, a A. D. F. A.. Mais recentemente, há quatro ou cinco anos, apareceu a União Coordenadora Nacional dos Organismos de Deficientes, a U. C. N. O. D.. Mais que caracterizar cada uma dessas instituições e fazer o seu historial, interessa, aqui e agora, referir que, embora não tanto como se desejaria, muitos são os aspectos em que os deficientes foram contemplados, pelo menos no papel e portanto em teoria, muitas das vezes. Os resultados obtidos por tais instituições contemplam os deficientes e as deficiências, em geral. Porém, vocacionadas especificamente para cada uma das muitas deficiências existentes, encontram-se inúmeras associações disseminadas por todo o país. Algumas delas revestem carácter meramente local. Assim sendo, a sua capacidade de acção e de intervenção reveste pouca importância, ou até nenhuma. No caso dos deficientes visuais, os cegos e os amblíopes, qual o panorama? Há uma centena de anos nasceu a mais antiga associação destinada a preocupar-se com e a ocupar-se dos problemas dos cegos portugueses. Foi a Associação Promotora do Ensino de Cegos, proprietária do asilo/escola António Feliciano de Castilho, de que foi espoliada durante a "febre pseudo- revolucionária" de Vasco Gonçalves, com a qual, infelizmente, têm pactuado as autoridades actuais. Desta forma aparecem, se não contagiadas por essa "febre", imbuídas de uma negligência que reveste um carácter tão condenável como aquela. Cerca de quatro décadas depois, embora com objectivos distintos, foi criada a Associação de Cegos Louis Braille. De um fraccionamento das pouco fortes possibilidades de expressão e de pressão, viria a resultar, aproximadamente uma vintena de anos mais tarde, a Liga de Cegos João de Deus. Mais recentemente, surgiu uma outra associação, com objectivos totalmente diversos, igualmente em Lisboa: a Associação Promotora de Emprego de Deficientes Visuais. No Porto está sediada a Associação dos Cegos do Norte de Portugal. Em Elvas existe uma pequena e praticamente desconhecida associação de cegos. Com este panorama, qual a verdadeira situação material, social e cultural dos deficientes visuais portugueses? Perante a questão de, quem teria a obrigação e a competência para promover social e culturalmente e assegurar uma vivência condigna aos cidadãos deficientes, a resposta surge simples e clara: ao Estado. Aliás, quando a Constituição da República Portuguesa, de 1976, com a primeira revisão em 1982, estabelece tal obrigatoriedade referente a qualquer cidadão e reconhece os deficientes, também, como cidadãos, ninguém poderá negar essa evidência. Todavia, quando se olha em redor, que ilacções podemos retirar do que se nos depara? As pensões sociais atribuídas servem, no mínimo, para "vegetar dignamente" e como os deficientes visuais são considerados capazes de se bastarem a si próprios, a "choruda" verba, que é o complemento de grande invalidez, nem sempre é concedida. Em termos de emprego, apesar do que se inscreve nos acordos e/ou contratos colectivos, a verdade é que os deficientes visuais são, em regra, preteridos. Em organismos estatais, por vezes, não sabem "o que lhes hão de fazer" ou em que os ocupar. Aliás, projectos de instrumentos legais, postos a discussão, ou não, mostram, preto no branco, a mentalidade descriminatória de técnicos superiores e quiçá, de governantes -veja-se a título de exemplo, o felizmente retírado despacho 84/MEC/86, de Abril-. Quando se reconhece que o aspecto material é condição sinae quanon para uma vivência minimamente digna, como estranhar o espectáculo degradante que nos é dado por inúmeros "ceguinhos" que nos mimoseiam com imagens e/ou odores pouco agradáveis. De quem é a responsabilidade de tal espectáculo? Dos intervenientes será, numa quota reduzida; o Estado é, sem dúvida, o grande, o enorme responsável, pela incapacidade que patenteia para solucionar os graves problemas que uma das suas minorias apresenta. Um Estado adulto é, indubitavelmente, o que se preocupa prioritariamente com as suas minorias. No entanto, também não pode deixar de imputar-se às associações de e para deficientes visuais uma quota parte das responsabilidades. De facto, que força têm para poder modificar esse estado de coisas e a que se deve tal fraqueza? Uma vez mais a resposta é simples: à falta de união entre os principais interessados e, ainda, à desunião das várias Instituições que, até agora, se têm limitado a tentar tudo resolver de per si. É óbvio que, enquanto os esforços se dispersarem e os hipotéticos interlocutores dos organismos oficiais forem múltiplos, haverá reticências, por parte do Estado, quanto à legitimidade dos que aparecem como representantes mais válidos dos deficientes visuais. No que respeita à promoção cultural dos cegos e dos amblíopes, qual tem sido o papel do estado e das associações? Implantou-se o ensino integrado, constituíram-se equipas de apoio, com carácter itinerante, na maioria dos casos, e outras fixas; criou-se um Centro de Recursos equipado, ou a equipar com material sofisticado e oferecido. A realidade, porém, mostra que, de um modo geral, os objectivos atingidos se situam muito aquém dos pretendidos. Os porquê não interessa aqui dissecá-los. Também nesta área as associações não conseguiram superar todos os problemas, apesar dos seus esforços. É que, a promoção cultural de qualquer extracto de uma sociedade é onerosa e as Instituições de e para deficientes visuais não têm, não podem ter, as fontes e receita que estão ao alcance do Estado. Por isso, não têm podido substituir-se a ele, apesar de quanto têm vindo a trabalhar para tal. Posto isto, que fazer? Acabar com as Associações de e para deficientes visuais? Forçar o Estado a cumprir as suas obrigações? Para a primeira questão, dir-se-á que sim e que não; para a segunda, a resposta é uma só: sim. Vejamos! Se se tiver em conta que as Associações existentes congregam uma percentagem ínfima de cegos e de amblíopes portugueses; se se tiver em conta que os sócios de uma são, geralmente, sócios das outras; se se tiver em conta que as fontes de receita das Associações se limitam a magríssimos subsídios estatais, a donativos e, em alguns casos, aos sorteios, que dão uma imagem nada invejável dos deficientes e das suas Instituições, mas são um mal absolutamente imprescindível; se se tiver em conta que as Associações servem para um pequeno número de sócios as frequentarem quase como um club de bairro; se se tiver em conta que uma minoria desses poucos sócios por vezes críam um ambiente que afasta os outros e impede novas adesões; se se tiver em conta que, por vezes, se fundam associações para recolha de benefícios pessoais materiais elevados; se se tiver em conta que, apesar de estatutariamente, as associações revestirem carácter nacional, mas na prática a sua acção se restringir a um âmbito local; se se tiver em conta que é necessário atraír os deficientes visuais espalhados por todo o país e que as Assocíações não têm, neste momento, credibilidade para tal; se se tiver em conta tudo isto, então sim, acabem-se as Associações. Contudo, não se mate o associativismo. Embora não seja adepto de comparações com o que acontece noutros países, pela forma simplista como elas se fazem, não pode deixar de chamar-se a atenção para os resultados fabulosos, a todos os níveis, da expressão do Associativismo que é a Organização Nacional dos Cegos de Espanha, a ONCE. Temos de salvaguardar as diferenças de mentalidade, de cultura, da economia, do tempo da sua existência, mas olhemos para esse exemplo. Há poucos anos, a ONCE era uma das quinze empresas que mais impostos pagava ao estado espanhol. Não só não recorria a quaisquer auxílios, como ainda "enchia" os cofres do estado. Como se conseguiu tal milagre? Não é um milagre. É, sim, o fruto de um trabalho árduo, consciente, dedicado e desinteressado de um grupo de indivíduos que, por acaso, são os deficientes visuais espanhóis e que, não por acaso, souberam agregar-se numa Instituição, que lhes foi imposta pelo regime totalitário então vigente, e souberam tirar partido dessa agregação. Não acabemos com o associativismo tiflológico em Portugal. Sem falsos complexos de superioridade ou de inferioridade, com humildade, mas sem subserviência, com dedicação, mas sem oportunismos golpistas, com trabalho árduo e consciente, federando, unindo ou fazendo nascer uma nova associação, congreguem-se esforços a nível nacional, consciencializem-se as pessoas, umas às outras e a si próprias, para as tarefas e para o papel que têm a desempenhar na sociedade a que pertencem, porque são seres humanos e consequentemente cidadãos de pleno direito, assim o associativismo em Portugal, em plenitude, terá força para, mais que exigir direitos ao Estado, demonstrar a este que cumpre deveres e não será uma limitação que impedirá qualquer cego ou amblíope de, então sim, pedir, como pessoa que é, que o reconheçam como tal. 1º Centenário da A. P. E. C. Lisboa, Julho de 1988 Deficientes Visuais: Família; Ensino; Emprego. Avaliar impõe comparar e, para tal, necessário se torna que haja um termo. Neste caso, os termos de comparação são algumas experiências, situações, reflexões e ideias que há alguns anos se fizeram, viveram e escreveram. A família e seu comportamento, a Escola e seus problemas e o emprego serão aspectos a abordar nas páginas que se seguirão. Nomeadamente no que se refere às duas primeiras questões, foi importante o ano lectivo de 1997/1998 e o trabalho realizado numa equipa de Apoio Educativo. Disse-se atrás, quer no tempo quer nos textos anteriores, que à família cabe um extraordinário papel na normal formação do carácter e personalidade de qualquer pessoa e, maior ainda, se e quando se tratar de pessoas portadoras de deficiências. O recém-nascido não tem a menor responsabilidade no seu nascimento, pois, de facto, "... nem sequer foi ouvido no acto de que nasceu...". Assim, é aos pais, jovens ou idosos, ricos ou pobres, cultos ou ignorantes, com estudos ou sem qualquer escolaridade, que tem de ser assacada a total responsabilidade do acto. Isso impõe, de imediato, obrigações que podem ser mais ou menos pesadas, consoante se trate de crianças ditas normais ou não. Casos há em que, perante o choque inicial provocado pela notícia de uma situação anómala, os pais reagem, "arregaçam as mangas", procuram informação e adoptam soluções adequadas. O encarar da realidade facilita toda a actuação posterior. Aprender a lidar com a deficiência é outro auxiliar precioso. Ir consciencializando a criança para a sua verdadeira situação, tratando-a como uma criança, diferente, mas criança, quase completará um bom trabalho. Este, porém, não pode ser apenas dos pais: é de toda a família. Perante a sua realidade, e ao comparar-se com as outras, a criança deficiente fará perguntas, muitas perguntas: as habituais de cada criança e as suas próprias perguntas. Pais, irmãos, avós, tios e todos só podem, só têm de, responder com a verdade, só devem responder ao que lhes for perguntado, de modo muito claro. É verdade que, por vezes, a resposta custará a dar, pois será dura; todavia, fugir a ela poderá ter um efeito contraproducente, não no imediato, mas num futuro que inexoravelmente chegará. Será preferível, desde cedo, doa ou não, chamar as coisas pelo nome; o ser humano é um animal de hábitos e assim, quanto mais depressa a criança se habituar a ser diferente, mais depressa organizará as suas próprias defesas. Iludir as questões, retardando a tomada de consciências das situações apenas para quando elas são inevitáveis, pode ser nefasto, pois o deficiente perceberá então, que o mundo envolvente não é cor-de-rosa, mas negro. O grave é que, nesse momento, por não estar preparado, poderá não ter defesas e as consequências são imprevisíveis, mas, por certo, sempre negativas. A criança deficiente é pessoa e portanto, um ser com dignidade. Como tal tem de ser tratada. Um ambiente familiar e social regular, ajudarão a garantir essa dignidade. Mas, e nos casos em que os pais se mostram incapazes de aceitar a deficiência da criança? Esta é rejeitada, malquista, "despachada" para outros e para longe, escondida. Por quê? Acaso a criança pediu para ser deficiente? Ninguém acredita que um recém-nascido vem ao mundo, trazendo uma cegueira, só para "chatear" os pais porque eles vêm bem. Acaso a mãe e/ou o pai, premeditadamente, provocaram a situação? Se sim, então e por maioria de razões assumam a sua responsabilidade, não culpem terceiros e invistam tudo, pois a isso são moralmente obrigados; se não houve premeditação, de quê ter vergonha? E de quem? Para quê e por quê esconder a criança? Se isto acontecer, quando mais tarde retomarem os filhos, saberão lidar com eles? E os filhos sentir-se-ão desejados e bem recebidos? Serão capazes de ir crescendo sem a necessidade pungente de ter de agradar aos pais, para deles, em troca, receberem carinho e atenção? Serão os pais capazes de orientar os filhos sem lhes incutir no espírito valores errados, que farão deles pessoas egocêntricas, instáveis, introvertidas, agressivas e complexadas? De quanto já vi, desde que me movimento entre pessoas com deficiências, a resposta é: não. E, lamentavelmente, são as crianças, depois adolescentes e mais tarde adultos, quem paga a factura. E a que preço!? A pais, principalmente a estes, e outros familiares, deixa-se esta opinião: em lugar de buscar um culpado, cuja identidade não interessa, em lugar de esconderem os filhos, em lugar de os enganarem pintando o mundo com cores bonitas, em lugar de os apoiarem contra tudo e contra todos, preparem-nos para a vida, façam como ensina o provérbio chinês: "... não lhe dê o peixe, ensine-o a pescar". E a questão persiste já num outro campo: a escola. Como é evidente, o comportamento da criança na escola será condicionado pelo seu ambiente familiar. Se a Escola, por seu lado, não tiver condições para trabalhara e com a criança deficiente, os problemas surgirão ou agravar-se-ão. E voltamos à integração. Desde sempre, e reporto-me ao início da década de 1980, quando se começou a falar e a pôr em prática a integração que se pretendia total, questionei o processo. Integração, segregação ou um sistema misto, quer dizer, primeiro segregado e depois integrado? Por segregado, entenda-se o ensino em estabelecimentos especial e exclusivamente destinados a deficientes. Quase duas décadas passadas, penso que tinha razão nalgumas das posições defendidas. No presente ano lectivo (1997/98), abordando este tema com alunos do 12º ano, e sem ter perguntado o que quer que fosse, fui surpreendido com a seguinte afirmação: "Se eu não tivesse feito a quarta no Keler, não tinha conseguido nada no Secundário.". A autora tem 17 anos e frequentou a Escola Helem Keler até completar o actualmente denominado 1º Ciclo do Ensino Básico. Podendo ser uma opinião única, entendi saber outras, directas ou não, estas por interpostas pessoas. Foram iguais. Interrogando sobre as razões de tal opinião, as respostas coincidiram com as posições que, atrás no tempo e nestes textos, se encontram expostas ("A Integração da Criança Deficiente na Escola", p. 33 e "integração do Deficiente Visual na Escola" p. 43). A aluna mencionada, como centenas de outros estudantes portadores de deficiências, passaram para o ensino regular, onde foram e são integrados e contariam a partir de então com o apoio de professores que constituíam, e constituem, as equipas de Ensino Especial, agora rebaptizado para Apoios Educativos. E depois? A pecha anteriormente referida subsiste: professores especializados (onde e como?), credenciados ou com saber de experiência feito serão em número suficiente? A sua distribuição estará correcta? Equipamento existe? Se sim, estará bem distribuído? Há anos, a especialização de professores era feita no Instituto A. Aurélio da Costa Ferreira. Hoje em dia, essa especialização é feita em E. S. E. e num ou noutro Instituto Superior privado. Não me alongarei em considerações sobre o modo como se processa e sua qualidade, pois não o conheço pessoalmente. Todavia e com as reservas inerentes ao facto de emitir opinião com base em informações de terceiros, parece que tais especializações, que ficam caras, não são sequer melhores que as ministradas no Instituto A. Costa Ferreira. Mas com escolas ministrando, bem ou mal, a especialização, se pensarmos que Portugal não é só Lisboa e o resto é paisagem, teremos de concluir que o número de docentes preparados para o trabalho de apoio é insuficiente. Mesmo se, em Lisboa, há carências, fácil é calcular como será na paisagem. Numa vila do distrito de Viseu, por exemplo, três irmãos, deficientes visuais, no 11º, 12º e a terceira com o 12º recém-terminado, nunca ouviram falar de ensino especial, apoio educativo, direitos, etc. etc.. Falta de professores, ou má gestão de recursos humanos, que existe, serão as razões. Neste caso, a integração foi apenas a inclusão de deficientes visuais numa escola onde se foram resolvendo os poucos problemas com que se iam deparando. E, se eles fossem totalmente cegos, como teriam feito? No que respeita a equipamento, a situação é a igual à dos professores: não existe, se existe está ultrapassada ou degradada, não há verbas para reposição da que se vai perdendo, nem para a sua reparação. Outras vezes, há uma má distribuição desse equipamento; neste caso, a colaboração entre as várias equipas poderá solucionar ou minimizar o problema. Relativamente a material, especialmente livros, também não se pôde resolver tudo. No Ministério, o C. R. E. I., tenta satisfazer os muitos pedidos. Se estes contemplam obras já transcritas, ampliadas ou gravadas, a resposta é bastante rápida; mas, se não houver o título solicitado, a questão complica-se: falta pessoal, as verbas são insuficientes e a tarefa acaba por ser morosa. Além de morosa, no caso da transcrição para Braille, é dispendiosa. Por outro lado, os pedidos são feitos no fim do ano lectivo, só depois de se conhecerem os livros adoptados em cada escola, e a sua variedade é assinalável. Mas, justiça se faça, o referido serviço esforça- se para responder. De igual modo, as bibliotecas sonoras, nomeadamente a da Municipal do Porto, estão a desenvolver uma actividade bastante grande, podendo fornecer quase todos os títulos para os ensinos Básico e Secundário em pouco tempo. Se as carências humanas e de equipamento são graves, do 2º Ciclo do Básico em diante, voltamos a interrogar-nos: será bom para uma criança deficiente ser mandada para uma escola regular do 1º Ciclo, sem haver quem possa apoiá-la, ou havendo aí um docente acabado de sair duma E. S. E., ou similar, sem experiência de qualquer tipo? Penso que, melhor que a minha opinião, a dos alunos, que apresentei duas ou três folhas atrás, será elucidativa. E, mesmo quando já existe especialização ou experiência, as coisas nem sempre correm bem. Antes de ir adiante, cabe aqui uma palavra para quantos, designadamente os que iniciam este tipo de trabalho, se empenham nas suas tarefas. É uma actividade difícil e árduo, quer pelos problemas suscitados pela deficiência, quer por algumas famílias, em certos casos; é um trabalho que exige sensibilidade e aprendizagem. É uma actividade, em suma, que até se prolonga no dia do professor, mesmo em sua casa, mas com maior acuidade que nas outras e variadas situações com que todos os docentes se confrontam. Há, em geral, da parte daqueles professores, a melhor das boas intenções e o maior espírito de colaboração e de sacrifício. Por outro lado, a grande maioria é constituída por pessoas sem qualquer deficiência (pelo menos no conceito do senso comum). Isso leva a que, inconscientemente, se tente fazer tudo ao aluno, resolver-lhe todas as dificuldades, dar-lhes "a papinha toda feita", permitir-lhe atitudes não admitidas a outros, etc. E voltamos à questão do provérbio chinês. A observação da forma de actuar de professores especializados ou não, mas com longa prática, leva a constatar algumas das anteriores considerações. Embora experientes, embora sensibilizados para as questões, felizmente sofrem de um "mal" que foi já mencionado atrás: não são portadores de deficiências. Sabe-se que, "de boas intenções está o inferno cheio"; e o inferno é quanto nos rodeia. Portanto, por duro que seja, por violento que pareça, por muito que custe, não se pode "mastigar" tudo, limitando-se o aluno a "engolir". No mundo universitário, no mundo laboral, no mundo em geral, aquele que, por causa das boas intenções, não estiver já algo calejado, poderá ser trucidado; porém, se estiver calejado, mas mal por causa da actuação do professor de apoio, poderá trucidar. Não se pode exigir igualdade de direitos e simultâneamente privilégios, por se ser cego, deficiente motor, surdo, portador de problemas do foro neuro-psiquiátrico. Tolerância em excesso, facilitismo exagerado, permissividade inexplicável -isto é, exagerada super-protecção- não darão o calo desejado ou, o que é mais grave ainda, permitem criar, desenvolver e aperfeiçoar métodos de actuação tortuosos, de resultados duvidosos tendo em conta a sociedade em que se vive. Sejam permitidas, pois, duas palavras aos colegas inegavelmente bem intencionados que trabalham com deficientes: estes, antes de o serem, são pessoas; pessoas diferentes, mas pessoas. Educar pessoas é, fazê-las crescer física e espiritualmente direitas, mesmo que para tal tenha de se utilizar o sistema aplicado à fragilíssima árvore que se planta. Educar é ensinar, desde o ventre materno, com continuação nas escolas, o valor do sim e o valor do não. Educar é saber transmitir a existência de direitos, mas nunca esquecer os deveres que lhes são inerentes. Educar é, em suma, preparar para a vida, mesmo que para tal seja necessário fazer sofrer, nesse momento; e lembro uma frase -que me tem servido de orientação- de uma Professora, alguém que foi a Mãe, Mestra, Amiga e Companheira do signatário, quando ele, seu irmão ou qualquer aluno choramingava ao ser contrariado: "Prefiro que chores tu agora, que eu mais tarde". Referi, linhas atrás, o Ensino Superior. Neste particular, algo mudou e, em certos casos, para melhor. De facto, ao invés de três ou quatro cegos, é frequente em cada ano ver um maior número de estudantes universitários, diversificando-se também os cursos. Este aumento de alunos tem vindo a minimizar alguns aspectos, de uma certa rejeição, com que se debatiam os deficientes, há cerca de duas dezenas de anos. Professores, estudantes e outros elementos nas Faculdades, começaram a habituar-se e a aceitar os estudantes sensorial ou físicamente diferentes. O mérito é dos discentes em questão que na sua maior parte se impuseram e pela positiva. Gostaríamos que tal mérito coubesse à totalidade desses alunos, mas, como já se disse lá atrás, há alguns para quem o recurso a golpadas foi e é prática corrente. Aqui, honra seja feita aos professores que, em regra, têm sabido distinguir o trigo do joio, a partir das boas provas dadas pela tal maioria. Um outro factor, de facilitação dos estudos superiores, é o que se prende com o acesso a bibliografias. Nos últimos anos tem vindo a assistir-se a um esforço, nomeadamente por parte da Biblioteca Sonora, no Porto, no sentido de aumentar o número de títulos disponíveis. Pode verificar-se com facilidade, que se contam por milhares e cobrem praticamente todas as áreas do Ensino Superior. Outras instituições contribuem para a existência de material, nomeadamente as bibliotecas Nacional e a Municipal Camões. Cabe, aqui, uma referência ao serviço de apoio aos alunos deficientes visuais, na Faculdade de Letras da U. C. L., cujo contributo para a integração tem sido assinalável, se bem que, como no caso dos ensinos Básico e Secundário, a sua actuação pouco mais tenha contemplado que a adaptação e transcrição de testes, gravações e sensibilização de professores; raras vezes sensibilizam os deficientes para a sua própria realidade. Aliás, não é fácil, pois muitos deles vão mal habituados ou desabituados no que concerne à resolução dos seus problemas; falta-lhes o professor do Ensino Especial, que quase sempre, era quem tudo fazia e acabaram as facilidades excessivas dadas para ingressarem na universidade. O choque é grande, mas acaba por resultar favoravelmente: o "menino" amadurece, à força, mas amadurece. Mas, a respeito do ingresso na universidade, não posso, nem quero, deixar de manifestar o meu entendimento. Estabelece-se, em cada ano, um certo número de vagas num contingente especial. São destinadas a candidatos deficientes sensoriais, físicos e/ou mentais, aos quais se exige uma percentagem de incapacidade e uma média mínima de dez valores. Pasmo! Que se queiram aliviar as muitas dificuldades com que por vezes se debatem os deficientes, eu entendo, aceito e agradeço; que se alargue o tempo para prestação das provas de acesso ao ensino superior, como aliás se faz nas escolas secundárias, também aceito, porque é justo; que se estabeleça um patamar um pouco mais baixo, na ordem de um ou dois valores, ainda vou aceitando; mas, deixar ingressar numa universidade um aluno, com média de dez, só porque é cego, coxo ou insuficiente renal, por exemplo... Afinal, a cegueira reduz o nível e a capacidade intelectual? Porque não tenho uma ou as duas mãos, não posso memorizar, compreender, analisar e fazer qualquer tipo de construção mental? A falta de mobilidade impede o trabalho do encéfalo? Desde a entrada em vigor desta medida, tendente a facilitar a integração no ensino superior, considerei-a aberrante. Na verdade, estabelecer dez valores para entrada num curso superior, cuja média exigida é de quinze ou dezasseis valores, é passar um atestado de menoridade mental, de incapacidade intelectual, a qualquer pessoa. O facto de se ser cego, paraplégico, surdo, ou outra qualquer coisa, não pode significar incapacidade intelectual. Sabe-se, ou não se sabe. Quem sabe e tem condições, avança; quem não sabe e não tem condições, fica por ali. O que não se pode, em definitivo, é camuflar incapacidades intelectuais, preguiça, maus hábitos e oportunismos com a deficiência visual ou outra. Há diferenças entre um cego, que não vê porque não pode, e um "ceguinho", que não vê porque não quer, pois é cómodo. E com menores ou maiores dificuldades no ingresso e durante os anos de estudo, o curso faz-se. E depois? Objectivo a atingir: emprego. Perspectivas? Não muitas, nem muito variadas. Soluções? Muito poucas, ou nenhumas. Recurso: dar aulas. Triste e de cores escuras, com efeito, o futuro. O quadro é geral e nele os deficientes estão diluídos. Não estão melhor nem pior, se se desenha uma possibilidade de emprego, mas se e quando a admissão for resultante de concurso documental; mas se o empresário não for o Estado e a admissão resultar de provas presenciais e entrevistas, então "a coisa toda muda"; aqui a deficiência pesa e quase sempre é uma factura a pagar. E as frustrações acumulam-se, a revolta cresce e os esforços para alcançar uma solução revelam-se infrutíferos. De um modo geral, os responsáveis pelas admissões de pessoal mostram-se receosos e$ imbuídos da tradicional ideia: cego é igual a mendigo, músico e telefonista. Não se interrogam sobre uma questão tão simples como esta: se há um diploma, não quererá isso dizer alguma coisa? Surge, por fim, a panaceia universal: dar aulas. Queira-se ou não, vai-se para o ensino. E aqueles que, conscientemente, não querem enveredar por esse caminho, pois detestam ensinar, pois não sentem vocação, pois pretendem exercer actividade para a qual se especializaram? Para esses,... Bem, para esses, só resta o desemprego, arranjar paciência para esperar um emprego ou, em última instância, arranjar "um velho rico". Todavia, em desespero de causa, acabam por "dar aulas", o que, aliás, fazem todos os outros, deficientes ou não. Quando a solução é adoptada, bem ou mal está ultrapassada a questão da sobrevivência. E se é verdade que, há anos, tudo era complicado, pois se era colocado onde calhava, as coisas foram mudando e neste momento todo e qualquer professor consegue, com toda a facilidade, ser destacado para junto da sua residência. Pretendi, ao longo desta mão cheia de páginas, abordar algumas das questões relacionadas com a situação dos deficientes visuais. Restringi-me a esta deficiência, pois a minha semi- -surdez não é suficiente para me fazer sentir na pele a imensidade das questões que essa deficiência suscita. Todavia, começo já a ter uma ideia, se bem que pálida, de que ser surdo deve ser bem mais complicado que ser cego. Ser cego e surdo... Bem, o melhor é intervalar um pouco. Não mudei muito a minha maneira de ver os problemas, mas penso que tal não se deverá tanto a uma incapacidade para mudar, mas sim ao facto de, no geral, os problemas serem os mesmos, com uma ou outra tonalidade, mas os mesmos. Valha a verdade que, uma ou outra situação se alterou. Isso, no entanto, não foi o suficiente para se poder embandeirar em arco. Não sou um derrotista. Por temperamento, por hábito e por necessidade sou bastante realista e, por isso, embora as dificuldades sejam muitas e grandes, ainda vou acreditando que algumas possam vir a ser superadas e com isso, não eu, mas os que me procederem sairão beneficiados. Lisboa, (22) Setembro de 1998 1